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“O Amor é Artesanal”

INTRODUÇÃO À AMORIS LAETITIA


com antologia de textos do Magistério da Igreja
Copyright © 2023 by Pe. Luiz Antonio Belini

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

A Câmara Brasileira do Livro certifica que a presente obra intelectual, encontra-se,


registrada nos termos e normas legais da Lei nº 9.610/1998 dos Direitos Autorais do Brasil.
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Capa
MOAI COMUNICAÇÃO

Projeto Gráfico
MOAI COMUNICAÇÃO

Preparação
JAIR ELIAS DOS SANTOS JÚNIOR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Belini, Luiz Antonio


O amor é artesanal : introdução à Amoris
Laetitia com antologia de textos do magistério
da igreja / Luiz Antonio Belini. -- 1. ed. --
Campo Mourão, PR : Nova Historia Editora e Gestão
Cultural, 2023.

Bibliografia.
ISBN 978-65-84973-09-1

1. Catolicismo 2. Ensinamentos bíblicos


3. Documentos papais 4. Francisco, Papa, 1936-
5. Francisco, Papa, 1936- - Mensagens 6. Igreja
Católica 7. Igreja Católica - Educação - Documentos
papais I. Título.

23-153997 CDD-262.91
Índices para catálogo sistemático:

1. Documentos papais : Igreja Católica 262.91

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
NOVA HISTÓRIA EDITORA E GESTÃO CULTURAL
Rua João Teodoro de Oliveira, 171 | Parque das Acácias
Campo Mourão | Paraná | [44] 99923-4760
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Pe. Luiz Antonio Belini

“O Amor é Artesanal”
INTRODUÇÃO À AMORIS LAETITIA
com antologia de textos do Magistério da Igreja

2023
1º Edição
Campo Mourão - PR
INTRODUÇÃO

Este texto foi sendo pensado ao longo do ano de 2021.


Sem a possibilidade de encontros presenciais por causa
da pandemia de COVID-19, surgiu a oportunidade de uma
apresentação da Exortação Pós-Sinodal Amoris Laetitia do
papa Francisco de modo virtual.
Foram 49 “aulas”, totalizando cerca de 60 horas. Elas con-
tinuam disponíveis no Facebook. Os participantes pediram,
então, o texto utilizado nas apresentações. A princípio, ele
havia sido preparado com o objetivo de servir de subsídio
para a apresentação e também para a confecção dos slides,
o que explica seu caráter fragmentário e esquemático. Em-
bora tendo sido revisto e retocado, seu caráter esquemáti-
co permaneceu. O público destas aulas era em sua grande
maioria composta por leigos, o que justifica, em alguns ca-
sos, abordagens detalhadas e a apresentação de textos do
magistério que eles, em uma circunstância normal, teriam
acesso com dificuldade. O fato de contemplarem certa au-
tonomia temática e se prolongarem no tempo, obrigou a
repetição de algumas idéias, embora sem tornar enfado-
nho, espero, o texto.
Desejo agradecer ao padre Adilson Naruishi pela ines-
timável ajuda na confecção dos slides e pela logística de
transmissão que possibilitaram essas aulas e o apoio do
Sr. Everaldo José Maldonado. Ao padre José Carlos Krause

5
Ferreira com quem discuti longamente esses textos. Aos
padres Jurandir Coronado Aguilar, Roberto Carlos Reis e
Pedro Speri, companheiros históricos no ministério presbi-
teral. Ao dom Bruno Elizeu Versari, o clero e à Pastoral da
Família da Diocese de Campo Mourão. Ao Encontro Matri-
monial Mundial, particularmente aos casais da cidade de
Floresta. Por fim, aos casais da Paróquia São Judas Tadeu
de Quinta do Sol, em especial, os do Encontro Matrimonial,
com quem tenho compartilhado a Amoris Laetitia.
Dedico este livro a todas as famílias, particularmente a
minha, com quem aprendi o amoris laetitia de viver em fa-
mília!
SIGLAS

AL - Amoris Laetitia (Francisco)


ADS - Arcanum Divinae Sapientiae (Leão XIII)
CC – Casti Connubii (Pio XI)
CDF – Congregação para a Doutrina da Fé
CEBs – Comunidades Eclesiais de Base
CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos de Brasil
CIC – Código de Direito Canônico
CIgC - Catecismo da Igreja Católica
CTI – Comissão Teológica Internacional
DAp – Documento de Aparecida
DCE - Deus Caritas Est (Bento XVI)
DH - Denzinger
EG - Evangelii Gaudium (Francisco)
EN - Evangelii Nuntiandi (Paulo VI)
ES - Ecclesiam Suam (Paulo VI)
FC - Familiaris Consortio (João Paulo II)
FT - Fratelli Tutti (Francisco)
GD - Gaudete in Domino (Paulo VI)

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GE - Gaudete et Ecsultate (Francisco)
GS – Gaudium et Spes (Concílio Vaticano II)
HV - Humanae Vitae (Paulo VI)
LG - Lumen Gentium (Concílio Vaticano II)
LS - Laudato Si (Francisco)
MI - Mitis Iudex Dominus Iesus (Francisco)
MM - Mater et Magistra (João XXIII)
MV - Misericordiae Vultus (Francisco)
PP - Populorum Progressio (Paulo VI)
RF - Relatio Finalis (SB 2015)
RS - Relatio Synodi (SB 2014)
SB – Sínodo dos Bispos
VS - Veritatis Splendor (João Paulo II)

8
I
POR UMA NOVA
ABORDAGEM PASTORAL

MUDANÇA DE PARADIGMA
A eleição do papa Francisco aprofundou na Igreja uma
mudança que vem sendo gestada nas últimas décadas e
que a coloca no espírito do Concílio Vaticano II. Essa mu-
dança tem sido expressa como “mudança de paradigma”. É
bom dar uma breve olhada no significado desta palavra tão
usada atualmente.

UMA PALAVRA NOVA EM NOSSO LINGUAJAR PASTORAL


A palavra paradigma tem uma longa história. Para Pla-
tão, o paradigma é o modelo, em um sentido “forte” do ter-
mo. Refere-se ao Mundo Inteligível (“ideias”) modelo para o
Mundo Sensível; o Demiurgo contemplando aquele molda
este (a matéria informe). Platão explica esta relação entre
o Mundo Sensível com o Inteligível, seu paradigma, atra-
vés de três conceitos: imitação (“imagem”), participação e
comunhão. Aristóteles o esvazia de significado ontológico.
Continua o utilizando na retórica, onde o paradigma é to-
mado simplesmente como exemplo. O interessante desta
primeira abordagem é que o paradigma refere-se tanto à
realidade (aos seres) quanto ao pensamento (a apreensão,
organização do mundo e decisão para nele agir). Os pri-
meiros intelectuais cristãos – “teólogos” - utilizaram o ins-

9
trumental conceitual de Platão para teorizar compreensi-
velmente o cristianismo para o mundo pagão, fortemente
helenizado (ex: Orígenes e Agostinho).
Thomas Kuhn, em sua obra A Estrutura das Revoluções
Científicas (1962) resgata o conceito de paradigma para a
ciência: o paradigma representa
“uma realidade complexa, constituída por leis e teorias
científicas, princípios éticos, concepções culturais, proce-
dimentos metodológicos, modalidade de comunicação e
transmissão de teorias, na qual se inspira uma determina-
da comunidade. É um conjunto de elementos científicos
e extra-científicos que abrange fatores sociais, culturais e
psicológicos” (RESTORI; RASCHIETTI, p.2).
Permite que uma comunidade de pensadores partilhe
seu saber e agir. Embora, para ele, a ciência não progrida
cumulativamente, mas por revoluções, tornando o para-
digma anterior obsoleto. Hans Küng, teólogo, aplica a teo-
ria de Kuhn em sua análise da Igreja:
“Do mesmo modo, penso que mutatis mutandis na his-
tória da Igreja e da sociedade podemos falar também de
macroconstelações epocais, de modelos fundamentais,
isto é, de grandes paradigmas que tem estruturado a vi-
são cristã, ou seja, de grandes paradigmas que tem estru-
turado a visão cristã da realidade e que se tem transfor-
mado ao longo da história da teologia e da Igreja” (KUNG
1986).
Poderíamos entender paradigma então como “cosmovi-
são”. Grandes teorias interpretativas da realidade e o modo
da própria realidade se apresentar (o que condiciona o nos-

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so agir). Podemos falar de muitos paradigmas: teológico,
científico, cultural etc. Mas a palavra paradigma e modelo
permitem um uso muito amplo e variado (no próprio livro
do Kuhn se identificam 21 acepções).
Poderemos compreender melhor com dois exemplos
significativos:
“Nós não vivemos simplesmente numa época de mudan-
ças; mas numa mudança de época” DAp 44. O segundo ter-
mo “época” equivale ao que entendemos por paradigma):
Documento de Aparecida n.44 (já constava no Instrumento
de trabalho e foi mantido). As mudanças não afetam ape-
nas os elementos objetivos, mas os próprios critérios de
compreensão e julgamento. Aparecem então afirmações
fortes: “discípulos missionários”; “conversão pastoral”.
O segundo exemplo podemos tirá-lo de nosso cotidiano:
“o fulano.... está fora da casinha”; ou seja, fala ou faz algo
muito diferente do esperado. A “casinha” é o nosso paradig-
ma.
Um paradigma pode não responder mais às perguntas.
Entrar em crise e dar lugar a outro paradigma. Isso exige
tempo, quem está no processo não tem a mesma compre-
ensão.
Os paradigmas também podem ser interpor; misturar –
por isso, podemos falar de “conflito de interpretações”; e
de interpretação hegemônica (mas não única). O Vaticano
II tem um paradigma hegemônico, mas traz internamente
o do Vaticano I. O agricultor afirma “se Deus quiser vai cho-

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ver”, mas para plantar recorre à meteorologia.
O paradigma tem um (ou mais) eixo estruturante. No
exemplo simples da casa: enquanto a mulher pode conce-
bê-la a partir da cozinha, o homem poderá fazê-lo a partir
do sofá; escritório/biblioteca; casa para viver ou lazer.

QUAL O EIXO ESTRUTURANTE COM O QUAL O PAPA FRAN-


CISCO PENSA A IGREJA?
O papa Francisco tem usado a palavra paradigma e dei-
xado claro que pensa numa mudança, já explicitada pelo
DAp: “a ação missionária é o paradigma de toda a obra
da Igreja” (EG 15); por isso, o papa propõe uma mudança
de paradigma para a Igreja: de “conservação” a “decidida-
mente missionária”. Em outras palavras: uma “Igreja em sa-
ída” (EG cap. I); mudança de paradigma: EG 27, 33, 41, 43;
52 – paradigma.
Para a explicação é útil a análise dos paradigmas (O papa
Francisco utiliza muito esse método) – pode ser entendi-
do como “modelo”, desde que em seu sentido “forte”; não
apenas como exemplo, mas como “forma”, o que possibilita
[no sentido em que foi comentado anteriormente]: “épo-
ca de mudanças” para “mudança de época”. Embora essa
expressão tenha se tornado corrente entre nós a partir de
Aparecida, sua idéia já está presente em análises do século
XVIII (em relação às transformações do mundo de então:
mudança de era ou de idade).

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O USO FEITO PELO PAPA FRANCISCO:
Evangelii Gaudium (A palavra paradigma aparece 3 ve-
zes):
EG 15: “... a ação missionária é o paradigma de toda a obra
da Igreja”;
É necessário passar de uma pastoral de mera conservação
para uma pastoral decididamente missionária. Enquanto a
conservação está centrada na administração dos sacramen-
tos, sendo a missão uma de suas atividades e de grupos
próprios, com um sujeito, o discípulo;
A pastoral decididamente missionária está centrada no
anúncio do Evangelho, que leva aos sacramentos. O seu
modo de ser é missionário; e o seu sujeito: discípulo-mis-
sionário.
→ Cap. 1: A transformação missionária da Igreja. EG 20:
Igreja “em saída”; [o papa Francisco gosta de verbos – ex-
primem ação]: n.24: “primeirear”, envolver-se, acompanhar,
frutificar e festejar.
Conversão pastoral - EG 25, 26: “estruturas eclesiais”;
EG 27: como o papa sonha esse novo paradigma de Igreja
missionária. Envolve: paróquia e padres; bispos e o próprio
papa.
EG 33: ser ousados e criativos; sem impedimentos nem re-
ceios – mas não caminhar sozinhos; presença guia dos bis-
pos e usar o discernimento pastoral. Isso é uma novidade
em um documento papal; em geral se exorta a obediência

13
e prudência – por isso o incômodo causado por Francisco.
→ Mudanças sempre comportam riscos e incertezas.
Igreja entendida como Caminho; como Povo de Deus a Ca-
minho; só tropeça ou erra o caminho quem caminha; ficar
imóvel seria a solução: os “conservadores” são os que se ins-
talaram no paradigma e se sentem seguros nele, aceitando,
no máximo, alguma adaptação.
O papa, no entanto, nos anima, mesmo diante dos riscos:
EG 45: “ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da
estrada”;
EG 49: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada
por ter saído...”
→ Essa pastoral decididamente missionária deve se con-
frontar com um mundo novo (que ajudou a por em crise o
paradigma eclesial antigo: de Trento e Vaticano I):
EG 52: “viragem histórica” (com mudanças positivas e ne-
gativas); “mudança de época” (progresso científico e inova-
ções tecnológicas); “estamos na era do conhecimento e da
informação” (hoje é mais importante produzir o software
do que o hardware);
EG 73: lugar privilegiado de evangelização são essas no-
vas culturas que estão se formando.
Laudato Si (Usa 16 vezes a palavra paradigma; mundo:
“casa comum”; humanidade: “família humana”):
LS 53: apresentando o “VER” da nossa “casa comum”, o
papa constata que estamos vivendo em um “paradigma

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tecno-econômico”; irá denominá-lo na maioria das vezes
como “paradigma tecnocrático”.
→ Irá apresentar este paradigma no Cap. III (n.101ss):
LS 106: é um paradigma homogêneo e unidimensional;
com um novo sujeito: domina a ciência e a técnica – “expe-
rimentação”; o problema é que nada disso é neutro, interfe-
rindo no modo de ser e pensar, inclusive da família: LS 107;
LS 108: esse paradigma dominante é massificador e res-
tringe a liberdade e o poder de decisão; (em AL o papa vai
lembra a dificuldade de decisão dos jovens de hoje e a difi-
culdade em manter no longo prazo suas decisões);
LS 119: o papa propõe um novo paradigma, que ele cha-
ma de ecologia integral, contemplando todo homem e o
homem todo, em todas as suas relações; mas para isso é
preciso “curar as relações humanas fundamentais” – LS 141.
LS 162: a constatação leva-nos à necessidade de trans-
formarmos essa realidade; o problema é que há uma de-
terioração ética e cultural que acompanha a deterioração
ecológica – Mundo Pós-Moderno [paradigma].
LS 213: a importância da família no desenvolvimento de
um novo paradigma.
Amoris Laetitia (O papa usa a palavra paradigma 1 vez;
mas a idéia é recorrente; usa mais frequentemente “mode-
lo”):
AL 1: o desejo de ser família permanece nos jovens; o
que está em crise é mais propriamente um “modelo de fa-

15
mília” – AL 32; família ampla/nuclear [teremos oportunida-
de de analisar detalhadamente essas questões].
AL 53: modelos de família [aparece a palavra paradig-
ma];
→ Cap. VIII: uma mudança fundamental: sem negar a
objetividade da norma universal, o papa trabalha a subje-
tividade de quem deve concretizá-la; Paradigma: não é de
exclusão, mas de inclusão; realizar o Bem Possível.

AO ESTUDARMOS AL PROCURAREMOS:
→ Analisar os elementos constitutivos internos: COM-
PREENSÃO (perspectiva interna; desde dentro);
→ Situar o texto no fluir dos acontecimentos e num con-
texto cada vez mais amplo: EXPLICAÇÃO (perspectiva ex-
terna, desde fora).

16
II
PARA ENTENDER
A AMORIS LAETITIA

É uma Exortação Pós-Sinodal. Sua história está relacio-


nada a dois Sínodos dos Bispos. Para entendê-la em profun-
didade, é preciso refazer sua história e conhecer um pouco
seu autor.
O papa Francisco foi eleito aos 76 anos. Quando a maior
parte dos homens está aposentada e pensa em uma vida
tranquila, inicia seu pontificado, que sabemos, é uma vida
intensa e estressante. Jorge Mario Bergoglio nasceu em
Buenos Aires, Argentina. Algumas datas: 17/12/1936; Orde-
nação sacerdotal: 1969; Episcopal: 1992; Arcebispo de Bue-
nos Aires: 1998; Cardeal: 2001; Papado: 13/3/2013.
“A cabeça pensa a partir de onde estão os pés”
É importante o “lugar social do teólogo” – e o papa é já
uma pessoa “madura”. Com suas convicções bem estabe-
lecidas e com a liberdade e sabedoria próprias da idade.
Onde estiveram e por onde andaram os pés de Francisco?
O ser humano existe sempre na concretude de cada
pessoa (José, Maria, Marcos, Mateus, Madalena...), o gê-
nero humano é uma abstração. É situado no espaço e no
tempo; aqui e agora; história e cultura – condiciona o nosso
modo de ser, pensar e agir. Condiciona, não determina. O
determinismo não deixa espaço para a liberdade humana

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(religioso: Deus quis; popular: destino; científico: tudo está
obrigatoriamente encadeado pela relação de causa-efeito);
isso nos coloca frente ao historicismo e alguns setores da
ciência moderna. Condiciona: estabelece condições – pos-
sibilita e limita (às condições dadas) a ação. Conserva um
“espaço” para a liberdade (que por ser “liberdade humana”
é sempre limitada; liberdade absoluta só a de Deus – esse é
o equívoco que leva Sartre ao ateísmo).
Nós não temos um padrão único de pensar essa ques-
tão: às vezes somos deterministas (explicamos de forma
simplista a realidade e nos eximimos de responsabilidade);
às vezes, apelamos para uma liberdade abstrata. Esse tema
será central para AL: cap. VII: Educação para os valores: 273;
outros: 201; 222; 286; 301-303.
Sobre o fato de ser Argentino e, portanto, latino-america-
no, escreveu o Cardeal Hummes:
“O fato de ser um latino-americano significou, por sua vez,
um salto enorme para a Igreja, pois assim abria-se caminho
para superar a demasiada europeização da Igreja. Abria-se
potencialmente a Igreja para grandes novidades e para enor-
mes desafios de inculturação. A partir de então, tornava-se
mais fácil fechar velhas portas, histórica e culturalmente ul-
trapassadas, e tornava-se possível abrir novas portas, mais
condizentes com o mundo atual e o futuro. Um novo tempo
se iniciava para a Igreja. Os Cardeais, durante os três dias de
reuniões antes do Conclave, já haviam pedido uma série de
reformas na Igreja. O novo Papa logo manifestou que preten-
dia atender a esses apelos” (HUMMES 2017, p.6).
Argentino, latino-americano, é sua experiência de vida e

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de Igreja. Religioso da Companhia de Jesus, aliás, é o pri-
meiro papa religioso em 182 anos, desde Gregório XVI,
1831; e o primeiro papa jesuíta. Primeiro papa do continen-
te americano; um papa que não tem o doutorado desde de
um século de papas doutores (o último papa não doutor foi
Pio X – 1903-1914).
Por outro lado, são marcantes em Francisco algumas ca-
racterísticas:
→ Longa experiência pastoral. Afirmando com o seu lin-
guajar: é pastor que gosta do cheiro das ovelhas. Poderí-
amos comparar esta experiência de vida e pastoral com a
do papa Bento XVI (enquanto padre foi professor; depois,
passou longo tempo na Cúria Romana).
→ É alguém que gosta do contato com as pessoas, da
interação, do abraço. Escolheu morar na casa Santa Marta e
não no palácio papal.
→ Demonstra interesse e acolhimento pelas pessoas;
ternura.
→ Tem uma concepção social tipicamente latino-ame-
ricana: § 185; 186; 201. Interessante quanto à eucaristia - se
vive ou não a justiça §186. A Igreja está acostumada a um
discurso focado no indivíduo e, em geral, a aspectos de sua
vida moral sexual.
→ Francisco é o primeiro papa pós-conciliar que não par-
ticipou do Vaticano II; mas o Concílio corre em suas veias,
ilumina seus pensamentos e suas decisões (cf. CODA 2017,
p.59); o que segundo Francisco é algo positivo, porque para

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ele não há conflito de interpretações (Entrevista a Antonio
Spadaro, L’Osservatorio Romano, 21/09/2013).
Para compreender Francisco e a Igreja na qual vivemos é
fundamental recordarmos um pouco da história do século
XX e do Concílio ainda que apenas esquematicamente.

CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965)


Vivemos em um tempo de transformações muito rápi-
das. Mudam não apenas elementos periféricos, mas o pró-
prio paradigma. A popularização dos meios de comunica-
ção de massa, a internet e as mídias sociais nos trouxeram
experiências e transformações inéditas. Temos dificuldade
em pensar como vivíamos a duas ou três décadas atrás. A
maior parte dos católicos já não se lembra de como era a
Igreja antes do Concílio. Nisso tudo há um risco. Muitos co-
meçam a ter saudades de um passado do qual não se recor-
dam bem, mas é idealizado. A travessia do deserto nos traz
a saudade das cebolas do Egito.
Por outro lado, a pandemia do vírus Covid-19 também
nos recordou que somos frágeis. No momento, o Brasil tem
quase 600 mil mortos cuja causa é diretamente provocada
pela pandemia. É um número enorme de famílias enluta-
das. Muitos não morreram, mas carregam sequelas. Este
clima provocou uma mudança no nosso modo de viver.
Obrigou-nos a refletir sobre a vida e a morte. Sobre o que
realmente é essencial. A repensar a vida e a escala de valo-
res, redefinir o que realmente importa.

20
É interessante notar que o século XX passou por vários
eventos assim, com um claro efeito sobre a Igreja. Até ago-
ra, a pandemia conhecida como “gripe espanhola” era ape-
nas um detalhe em livros de história. Passamos a entendê-
-la “existencialmente”. Também as duas grandes guerras.
Na história humana sempre houve guerras, mas nenhuma
com tanta capacidade de destruição.
Ainda se reflete pouco sobre o impacto desses eventos
para a Igreja, sobretudo sobre a consciência de sua missão.
O Concílio inegavelmente reflete esse contexto. Bastam
dois exemplos: seu empenho no diálogo com o mundo
moderno e o ecumenismo. Vejamos, ainda que esquemati-
camente, esses eventos.

CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO E CULTURAL:


→ Primeira Guerra Mundial (1914-1918): Mobilizou 70
milhões de militares (60 milhões eram europeus). Foi o 6º
conflito com mais mortos da históri. Militares mortos, de-
saparecidos ou feridos: 31 milhões. Civis mortos: quase 8
milhões.
→ Pandemia: Gripe Espanhola (jan/1918 a dez/1920):
Infectou cerca de 500 milhões de pessoas (1/4 da pop.
mundial). Mortos: número incerto; estima-se entre 17 e 100
milhões. Brasil: entre 30 e 300 mil; RJ teve dias com até 1000
mortes.
→ Segunda Guerra Mundial (1939-1945): Mobilizou
mais de 100 milhões de militares. Foi o conflito mais mortal

21
da história. Mortos - militares: + de 24 milhões. Civis: + de
49 milhões.
→ Guerra do Vietnã (1955-1975): Entre Vietnã do Nor-
te – apoiado por URSS e aliados e Vietnã do Sul – apoiado
pelos EUA e aliados. (Está acontecendo durante o Concílio
e poderia levar a uma nova guerra em escala mundial; re-
volta dos jovens).

PÓS SEGUNDA GUERRA MUNDIAL:


→ Reconstrução da Europa (1947 – “plano Marshall” –
para a reconstrução da Europa; expansão econômica e Es-
tado de Bem-Estar Social – contra o avanço do comunismo);
→ Reorganização da escala de valores: liberdade, tole-
rância, pluralidade;
→ Criação de instâncias que evitem novas guerras: de-
mocracia; ONU; OMC; as bases para a União Europeia;
→ Cultura: tudo centrado na existência (niilismo; perso-
nalismo; existencialismo; teorias da comunicação; filosofia
da linguagem; hermenêutica); novas pedagogias;
→ Juventude: reage na década de 60 com movimentos
libertários – paz e amor; hippies; rock and roll.

CONTEXTO ECLESIAL:
→ As guerras foram, em muitas batalhas, cristãos ma-
tando cristãos: muitos judeus eram tradicionalmente cris-

22
tãos (Maximiliano Kolbe, franciscano; e Dietrich Bonhoeffer,
luterano). Como o continente mais cristão pode chegar a
essa situação?
→ A maioria dos padres conciliares (bispos) vivenciou
toda essa situação do século XX. Isso sem dúvida influen-
ciou no modo de viver sua fé e pensar a missão da Igreja
no mundo. Bata pensarmos na idade dos papas: João XXIII
(1881-1963); Paulo VI (1897-1978) e João Paulo II (1920-
2005; primeiro papa não italiano desde 1523).
→ Como falar com sentido, ensinar, propor verdades em
um mundo tão desconfiado com todas as instituições que
haviam sempre dirigido a Europa com poderes absolutos?
→ Desde o fim da Primeira Guerra Mundial há um reflo-
rescimento da teologia católica. O lema é “volta às fontes”.
Movimentos:
Bíblico (Método histórico-crítico; boas traduções, Bíblia
nas mãos do povo, etc.)
Litúrgico (comunhão dos fieis dentro da missa; língua
vernácula, simplificação dos ritos...)
Patrístico (recuperação e edição crítica e acessível das
obras; inspiração para a Iniciação à Vida Cristã)
Ecumênico (diálogo respeitoso com as outras confissões
cristãs)
Missionário (inculturação da fé)
Leigo (mais espaço na Igreja enquanto instituição; Ação
Católica, JUC, JEC, JOC)

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Teológico (de uma teologia essencialista, dedutivista para
uma mais bíblica, com perspectiva histórica e pastoral)
Social (Doutrina Social da Igreja; João XXIII: Mater et Ma-
gistra; Pacem in Terris).

DISCURSO PROGRAMÁTICO DE JOÃO XXIII NA ABERTURA


DO CONCÍLIO:
→ Irá soar como um divisor de águas (o papa exemplifi-
cou o que esperava do Concílio, que fosse uma “rufada de
ar fresco na Igreja”);
“Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o re-
médio da misericórdia que o da severidade. (…)
A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecu-
mênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe
amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia
e bondade com os filhos dela separados” (João XXIII, Dis-
curso de Abertura do Concílio, 11 de out. 1962).
Na convocação oficial para o Concílio, indicou os três ob-
jetivos:
• participação da Igreja na busca de uma humanidade
melhor;
• apresentação da mensagem cristã (com um linguajar com-
preensível)
• e preparação dos espíritos para a unidade dos cristãos.
Como se percebe, os objetivos indicam uma abertura da
Igreja para o mundo e para outras denominações religio-

24
sas. A palavra-chave que irá se impor para expressar o clima
que viverá a Igreja com o Concílio será “aggiornamento”, ou
seja, “atualização”, “colocar-se em dia”. Em outras palavras:
com o Concílio, a Igreja quer dialogar com o mundo mo-
derno.
O próprio João XXIII descrevia sua decisão como “um
gesto de tranquila audácia”.
Se dentro da Igreja o anúncio de convocação para o Con-
cílio encontrou clima de tensão e preocupação, fora a acei-
tação foi outra:
“... levantou na opinião pública mundial, católica e leiga,
imediata onda de esperanças e otimismo pelo seu anuncia-
do propósito de buscar, num mundo dilacerado por divisões
políticas e religiosas, a unidade dos cristãos e, num horizon-
te mais amplo, a unidade de toda a família humana” (BEO-
ZZO 2005, p.3).
→ Princípios que deveriam orientar os trabalhos (segun-
do a síntese do padre Libânio em 4 palavras):
Pastoral (não quer centralizar suas discussões na doutri-
na ou proclamar dogmas; mas na ação e missão)
Ecumênico (entendimento com as religiões cristãs, que
foram convidadas a mandar representantes para o Concí-
lio, principalmente anglicanos, luteranos e calvinistas)
Diálogo (com os não cristãos, ateus e, em geral, com o
chamado “mundo moderno”)
Aggiornamento (atualização; ser capaz de cumprir sua
missão no “mundo de hoje” de modo compreensível)

25
Poderíamos acrescentar: misericórdia (amor para com o
próximo; papa Francisco: “hospital de campanha”).

ALGUMAS IDÉIAS ESSENCIAIS DO CONCÍLIO PARA NÓS


Como o Concílio entende a Igreja (Lumen Gentium):
• Ao invés de Igreja sociedade perfeita e visível: sacra-
mento (sinal e instrumento) de salvação (LG 1);
• A Igreja não é fim em si mesma; mas existe em função
do anúncio da Boa Nova/ Evangelho;
• A Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica; mas fora
dela também existem “elementos de santificação e verda-
de”; “impelem à unidade católica” (LG 8);
• A Igreja compreendida com a imagem de “Povo de
Deus”; concepção dinâmica; histórica (LG 9); “comunidade”;
• Reunindo em seu seio a humanidade. É ao mesmo tem-
po santa e pecadora. Sempre com necessidade de purificar-
-se, buscando sem cessar a penitência e a renovação (LG 8);
• O Concílio inicia pelo que é comum a todo o Povo de
Deus (Batismo): sacerdócio comum; senso da fé e os caris-
mas do povo cristão; para num segundo momento expor o
que distingue seus membros (constituição hierárquica – LG
18ss); distinção entendida não como privilégio, mas minis-
tério/serviço.
“Não há, pois, em Cristo e na Igreja, nenhuma desigualda-
de em vista de raça ou nação, condição social ou sexo...” (LG
32).

26
• Todo batizado é sujeito de sua fé (importante para o
discernimento em AL);
• Igreja pobre com predileção pelos pobres e excluídos
(contra a pobreza e a exclusão - LG 8; em vista do paradig-
ma de integração - LS);
• Matrimônio: comunidade de vida e de amor (GS 48).
Família: Igreja Doméstica (LG 11).

SINODALIDADE
→ Papa Francisco sobre o Concílio Vaticano II: Miseri-
cordiae Vultus 4.
“Escolhi a data de 8 de Dezembro, porque é cheia de signifi-
cado na história recente da Igreja. Com efeito, abrirei a Porta
Santa no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecumê-
nico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo
aquele acontecimento. Começava então, para ela, um per-
curso novo da sua história. Os Padres, reunidos no Concílio,
tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito,
a exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de
modo mais compreensível. Derrubadas as muralhas que,
por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa ci-
dadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evan-
gelho de maneira nova. Uma nova etapa na evangelização
de sempre. Um novo compromisso para todos os cristãos de
testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua
fé. A Igreja sentia a responsabilidade de ser, no mundo, o si-
nal vivo do amor do Pai” (MV 4)
Francisco recebe o Vaticano II de forma criativa, graças à
mediação de duas realidades:

27
A história é mestra da vida – olhar a história, relacionar os
acontecimentos, nos ajuda a entender o presente e a orien-
tar o futuro. A história, no entanto, não se desenvolve de
forma linear e ascendente – “positivistamente”; mas em “es-
piral”, ou, em forma de “ondas” – fluxo e refluxo. Tomemos
o exemplo da Campanha da Fraternidade 2021 – Ecumênica
– as discussões e repercussões estiveram muito distantes
do clima Conciliar de Diálogo e Ecumenismo.
O magistério pós-conciliar, sobretudo de Paulo VI.
Parece mesmo que Francisco retome Paulo VI de forma
programática: EG espelha, primeiro, a Exortação Apostólica
Evangelii Nuntiandi (8/12/1975; como resposta ao III Sínodo
dos Bispos: Evangelização, de 1974; 10º aniversário de en-
cerramento do Concílio Vaticano II – EN 2), dita por Fran-
cisco como o documento pastoral mais significativo por-
que soube olhar a situação real e as experiências vividas
pelo povo de Deus uma década depois do Concílio e com
discernimento evangélico propor as vias que a missão da
Igreja é chamada pelo Espírito a levar a efeito no contexto
plural de nosso tempo (cf. CODA 2017, p.60-61). EN espelha
a grande influência da Igreja Latino-Americana, das CEBs e
das consequências sociais da evangelização.
O segundo documento é a Exortação Apostólica Gau-
dete in Domino (GD - 9/5/1975); nela, Paulo VI reflete sobre
o drama do homem e da história, apresentando como a
meta do homem e da missão da Igreja a alegria de Cristo,
aquela que o mundo não pode dar (cf. Jo 15,11). Daqui par-
te Francisco: da alegria do Evangelho. Alegria pelo que o

28
Evangelho é: Boa Notícia, anúncio do amor incondicional
de Deus por suas criaturas; e alegria que é fruto do Evange-
lho. A Igreja nasce dessa alegria e a anuncia a todos. É este
o aggiornamento [atualização] que o papa João XXIII queria
para a Igreja com o Concílio.
Palavra-chave do papa Francisco – Alegria – intitula suas
Exortações (Evangelii Gaudium; Amoris Laetitia e Gaudete et
Ecsultate); expõe sua visão sobre a alegria na EG 2-8; mas é
toda a Introdução.
Vale a pena citar ainda dois documentos de Paulo VI: a
Ecclesiam Suam (6/8/1964: durante o Concílio; primeira en-
cíclica depois da eleição para o papado; é um “programa”
de trabalho) apresenta três pensamentos essenciais:
→ aprofundar a consciência que a Igreja tem de si como
mistério e ministra de Cristo (§3-4) [a Igreja não é fim em
si mesma, mas existe para anúncio da Boa Nova, missão;
Francisco: “Igreja em saída”];
→ sempre necessitada de reforma, ou seja, de renova-
ção, para melhor se adequar a imagem de seu Esposo e
Senhor (§4). É o ideal já posto ao Concílio de “atualização”
(§27). Exige “espírito de pobreza” (§30) e de “caridade” (§32);
a Igreja tem a missão de ser sacramento de salvação para
o mundo, em grande parte atualmente surdo para o seu
anúncio.
→ Aqui se coloca o problema do diálogo com o mun-
do contemporâneo (características desse diálogo Igreja
– Mundo contemporâneo: clareza, mansidão, confiança e

29
prudência §47). Apelos de Paulo VI assumidos por Francis-
co.
O último documento a ser lembrado aqui: Populorum
Progressio (26/03/1967). Esta Encíclica atende um pedido
de parte dos bispos conciliares por uma “Igreja dos Pobres”
e ela própria, pobre.
Pacto das Catacumbas: pedido que atende aos Bispos
“Igreja dos pobres” do Concílio. PP 4. Cardeal Montini – fu-
turo Paulo VI, Visita o Rio de Janeiro em 1960, a convite de
Dom Hélder Câmara – vai conhecer uma favela.
PP deixa claro o papel dos cristãos na edificação de um
mundo novo, mais justo e equitativo.
Esse grupo de bispos, muito ativo no Concílio, responsá-
vel pela opção pelos pobres ficou conhecido por um pacto
de coerência de vida – Pacto das Catacumbas (cf. BEOZZO
2015). Um dos seus maiores expoentes foi dom Helder Câ-
mara.
Podemos tomar contato com o ideal desse grupo pelo
testemunho de Dom Antonio Fragoso (1920-2006), então
bispo de Cratéus – CE e assistente da JOC – Juventude Ope-
rária Católica:
“O tema era ‘A Igreja e os pobres’, começando pela identi-
dade entre Jesus e os pobres. Lembro-me do argumento
central: quando afirmamos a identidade entre Jesus e o
pão consagrado: ‘Isto é meu corpo’, nós o adoramos e tira-
mos consequências para nossa espiritualidade, e tudo mais.
Quando se afirma a identidade entre ele e os que não têm
pão, casa, nós não tiramos as consequências para a espiri-

30
tualidade, liturgia, ação pastoral. Lembro-me que, na sessão
final, fomos celebrar numa das catacumbas, a eucaristia fi-
nal. Assinamos um compromisso nosso com os pobres: dar
uma atenção prioritária aos pobres (não ter dinheiro em
banco, patrimônio) e este compromisso chegou a ser assi-
nado por 500 bispos” (Dom Antônio Fragoso. In: BEOZZO
2004, p.149).
“[O Concílio] permitiu-me descobrir (a releitura foi feita de-
pois) que os pobres não estavam no coração e no horizonte
dos bispos. Por isto, o Concílio não deu maior atenção ao
tema. O Concílio permitiu-me sair daquele pessimismo so-
bre a natureza e dar-me alegria, mas não o vi se reconciliar
com os pobres” (Dom Antônio Fragoso. In: BEOZZO 2004,
p.150).
No Concílio, a maioria dos bispos eram europeus e nor-
te-americanos, ou seja, do chamado “primeiro mundo”.
Até por isso, o sujeito com quem o Concílio dialoga privi-
legiadamente é o homem moderno, marcado pela ciência
e tecnologia, com certo otimismo ingênuo com o Estado
de Bem-Estar Social implantado no pós-guerra. O resto do
mundo vivenciava uma outra realidade.
“O grupo, consciente de que o Concílio não respondera, nem
mesmo com a Gaudium et spes, às necessidades e expectati-
vas do Terceiro Mundo, arrancara de Paulo VI a promessa de
uma encíclica que tratasse do crescente abismo entre ricos
e pobres e do ‘desenvolvimento dos povos’. Paulo VI cum-
priu, de fato, sua promessa quando na publicação da carta
encíclica Populorum progressio, em 1967” (BEOZZO 2004,
p.150).
O papa Paulo VI mostra, em PP 4, que existe um outro
lado do progresso. Muitos povos são “mantidos” no subde-

31
senvolvimento. O papa irá insistir em um progresso inte-
gral, para todos. A palavra-chave será justiça.
A segunda mediação da qual recebe o papa Francisco o
Concílio é justamente a vida e o espírito da Igreja latino-
-americana.
Foi uma recepção aberta ao futuro e criativa. Percebia-
-se o Concílio muito mais como ponto de partida que de
chegada. Sobretudo a experiência junto ao CELAM: Rio de
Janeiro 1955; Medellín 1968; Puebla 1979; Santo Domin-
go 1992; Aparecida 2007 [que não tem paralelo em outros
continentes] (CODA 2017, p.65-70) e às Conferências Epis-
copais [que tem uma atuação muito mais efetiva entre os
latino-americanos]. A CNBB havia sido criada pelo esforço
sobretudo de D. Helder, em 1952; já saiu do Concílio com
um Plano de Pastoral de Conjunto (1966-1970)].
Na Conferência de Aparecida (13-31/5/2007), o papa
Francisco, então cardeal Bergoglio, foi o responsável pela
comissão que elaborou o Documento de Aparecida (SAN-
TOS 2014, p.5). Fruto dessa experiência é a insistência de
Francisco na Sinodalidade (SEMERARO 2017, p.20-21). Vale
a pena ver: Discurso do Papa Francisco Aos bispos respon-
sáveis do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) por
ocasião da reunião geral de coordenação (RJ, 28/7/2013).
Da caminhada do CELAM, vale a pena lembrar alguns tó-
picos da Conferência de Medellín (1968), que aplicou o Con-
cílio para a Igreja Latino-Americana. Leiamos aqueles que
encarnam o ideal da Igreja dos Pobres:

32
CELAM, Medellín Cap.XIV: Pobreza da Igreja
REALIDADE LATINO-AMERICANA:
“O episcopado Latino-Americano não pode ficar indife-
rente perante as tremendas injustiças sociais existentes
na América Latina que mantêm a maioria de nossos po-
vos numa dolorosa pobreza e que, em muitíssimos casos,
chega a ser miséria inumana.
Um surdo clamor brota de milhões de homens, pedindo
a seus pastores uma libertação que não lhes advém de
parte nenhuma. ‘Agora, nos escutais em silêncio, mas ou-
vimos o grito que sobe de vosso sofrimento’, disse o Papa
aos camponeses na Colômbia.
E chegam também a nós queixas de que a hierarquia, o
clero, e os religiosos são ricos e aliados dos ricos.”
ORIENTAÇÕES PASTORAIS:
9. “A ordem específica do Senhor de evangelizar os po-
bres deve levar-nos a uma distribuição tal dos esforços e
do pessoal apostólico que se dê preferência efetiva aos
setores mais pobres, necessitados e segregados por um
motivo ou outro, estimulando e acelerando as iniciativas
e estudos que se vêem realizando neste sentido.”
TESTEMUNHO
12. “Desejamos que nossa morada e modo de vida sejam
modestos, nosso vestir simples e nossas obras e institui-
ções funcionais, sem aparato nem ostentação.
(...) Desejamos renunciar a títulos honoríficos, próprios de
outra época.
13. Com a ajuda de todo o povo de Deus esperamos su-
perar o sistema de espórtulas, substituindo-o por outras

33
formas de cooperação econômica que estejam desliga-
das da administração dos sacramentos.
Na administração dos bens diocesanos e paroquiais to-
marão parte leigos competentes e será orientada para o
bem da comunidade. (...)
15. Exortamos aos sacerdotes a dar o testemunho de po-
breza e desprendimento dos bens materiais, como o fa-
zem sobretudo em regiões rurais e bairros pobres”.
Escolheu o nome Francisco como expressão de seu ponti-
ficado.
A escolha deste nome foi explicada pelo próprio papa,
alguns dias após sua eleição e pelo cardeal Hummes. Quan-
do se confirmou a sua eleição pelo escrutínio, o cardeal
Hummes, que estava a seu lado, com a ternura de grandes
amigos pessoais, o parabenizou e repetiu o que foi dito ao
apóstolo Paulo: “Não se esqueça dos pobres” (Gl 2,10). Foi
então que veio à mente do cardeal Bergoglio escolher o
nome de Francisco. O primeiro papa jesuíta escolhendo o
nome do patrono dos franciscanos! Logo se percebeu que
este nome expressava muito bem o programa de trabalho
do novo papa, de seu apelo para o cuidado com o nosso
planeta e com os pobres e todos os que vivem nas “perife-
rias humanas”.
Papa Francisco, Discurso 16/março/2013:
“Alguns não sabiam por que o Bispo de Roma se quis cha-
mar Francisco. Alguns pensaram em Francisco Xavier, em
Francisco de Sales, e também em Francisco de Assis. Deixai
que vos conte como se passaram as coisas. Na eleição, tinha
ao meu lado o Cardeal Cláudio Hummes, o arcebispo eméri-

34
to de São Paulo e também prefeito emérito da Congregação
para o Clero: um grande amigo, um grande amigo! Quando
o caso começava a tornar-se um pouco «perigoso», ele ani-
mava-me. E quando os votos atingiram dois terços, surgiu
o habitual aplauso, porque foi eleito o Papa. Ele abraçou-
-me, beijou-me e disse-me: «Não te esqueças dos pobres!»
E aquela palavra gravou-se-me na cabeça: os pobres, os
pobres. Logo depois, associando com os pobres, pensei em
Francisco de Assis. Em seguida pensei nas guerras, enquanto
continuava o escrutínio até contar todos os votos. E Francis-
co é o homem da paz. E assim surgiu o nome no meu cora-
ção: Francisco de Assis. Para mim, é o homem da pobreza,
o homem da paz, o homem que ama e preserva a criação;
neste tempo, também a nossa relação com a criação não é
muito boa, pois não? [Francisco] é o homem que nos dá este
espírito de paz, o homem pobre... Ah, como eu queria uma
Igreja pobre e para os pobres!
Depois não faltaram algumas brincadeiras... «Mas, tu deve-
rias chamar-te Adriano, porque Adriano VI foi o reformador;
e é preciso reformar...». Outro disse-me: «Não! O teu nome
deveria ser Clemente». «Mas por quê?». «Clemente XV! Assim
vingavas-te de Clemente XIV que suprimiu a Companhia de
Jesus!». São brincadeiras...”

MOMENTO DE SUA ELEIÇÃO:


Crise interna da instituição eclesial e frente à sociedade
que havia levado à renúncia do papa Bento XVI. Havia 600
anos que um papa não renunciava. Algumas tarefas eram
urgentes: necessidade de reforma da Cúria Romana; o Ban-
co do Vaticano; responder aos casos de pedofilia do clero. O
cardeal Hummes expõe assim a razão da renúncia de Bento

35
XVI que serve para nós como contexto para entendermos
as primeiras ações de Francisco:
“Mas por que renunciou? A razão por ele alegada foi a de
não se sentir mais em condições físicas e psicológicas para
continuar a conduzir hoje a Igreja. De fato, sua idade já era
avançada e o peso do governo da Igreja havia se tornado
bem maior nos últimos tempos. Basta lembrar as principais
crises e escândalos que assolavam a Igreja, como a crise da
descristianização, sobretudo no Ocidente, em grande parte
causada pela cultura pós-moderna dominante, a crise de
milhões de católicos migrando para outras Igrejas cristãs, a
diminuição drástica das vocações sacerdotais e religiosas,
o aumento do número de divórcios e de casais de segunda
união, os escândalos da pedofilia e do chamado ‘Vatileaks’,
os problemas internos da Cúria Romana e do IOR e assim
por diante. Em consequência, a Igreja católica era constan-
temente criticada, quando não denunciada pela mídia in-
ternacional, e muitos católicos, diante de tudo isso, estavam
perplexos e confusos. De início, a renúncia do Papa deixou
muitos desnorteados. A mídia do mundo inteiro especulava
sobre os motivos da renúncia e sobre o futuro da Igreja. Mas,
aos poucos, os católicos e a opinião pública em geral deram-
-se conta de que o gesto de Bento XVI era de muita grande-
za. Um gesto que merecia ser aplaudido, pois manifestava,
de um lado, grande racionalidade e, de outro, profunda hu-
mildade. Só um Papa muito racional e muito santo poderia
tomar uma decisão tão grave e, ao mesmo tempo, tão cheia
de novos horizontes e esperanças” (HUMMES 2017, p.5)

O MODO DE ESCREVER:
Poderemos chamar o estilo de Francisco de Sapiencial;
enquanto o comum na tradição papal seria deuteronômi-

36
ca. Como exemplo, podemos tomar o primeiro capítulo de
AL, que é uma “narrativa”; normalmente, pelo título, se es-
peraria uma exegese ou busca de definições...
As citações que o papa faz são incomuns para um do-
cumento pontifício: Jorge Luis Borges § 8; Mario Benedet-
ti §181; Martin Luther King §118; filme: A festa de Babette
§129; Erich Fromm §284; Dietrich Bonhoeffer §320; Confe-
rências Episcopais: Argentina. Mexicana, Chilena, Australia-
na, Italiana; Documento de Aparecida. Francisco tem falado
com insistência contra a “auto-referencialidade”.

MODO DE PENSAR DO PAPA


É um pensamento dinâmico que respeita a complexi-
dade; não busca soluções simples. A regra não é escolher
um extremo e eliminar o outro, mas a integração. Apego
a realidade: influência de Romano Guardini (1885-1968);
Henri de Lubac (1896-1991) e Michel de Certeau (1925-
1986).
Típico do pensamento teológico latino-americano: que
integrou no método teológico as ciências humanas, sobre-
tudo a sociologia e a contribuição das filosofias contempo-
râneas. Distinguindo-se de um pensamento apoiado quase
exclusivamente numa filosofia de cunho essencialista, es-
tática, fixista. Comentando o princípio “o tempo é superior
ao espaço” – expressa o primado de itinerário sobre o lugar
a ocupar; a Igreja existe para inaugurar itinerários, não para
ocupar espaços; segundo o teólogo italiano Andrea Grillo,
este é um princípio que vem de alguém tipicamente não-

37
-europeu. Os europeus estão muito acostumados a pensar
“estados” – “de graça”, “de pecado” ou é gelo ou água, ou
seja, o estado de coisas ou pessoas são fixos..., marcada
pela busca da unificação, quase uniformidade. O modelo
geométrico representativo desse pensamento é, geral-
mente, o “círculo”; já Francisco fala do maravilhoso “polie-
dro” (GRILLO 2016).
Sem, no entanto, abandonar Tomás de Aquino como
teólogo de referência. É o mais citado em EG. Mesmo no
capítulo mais polêmico de AL, o VIII, a argumentação se-
gue Tomás. Na Europa há uma discussão sobre a leitura
que Francisco faz de Tomás. O papa Francisco é fiel ao pen-
samento de Tomás de Aquino que soube compreender e
amar com paixão o singular, estabelecendo uma relação
fecunda: “o caminho do conhecimento se inicia com o sin-
gular, passa para o universal, mas retorna de novo ao con-
creto”; na verdade, seus críticos fazem uma interpretação
pobre de Tomás, uma leitura a-histórica que perpassa boa
parte da reflexão tomista contemporânea (LOPEZ 2016,
p.5; SEMERARO 2017, p.49).
Do pensamento latino-americano Francisco herda tam-
bém o emprego de um método muito eficaz: ver-julgar-agir.
Este método é o da Doutrina Social da Igreja (ver, por
exemplo: João XXIII, Mater et Magistra 235-238; de 15/
maio/1961); mas se desenvolveu com características pró-
prias na década de 60, dentro da JUC e foi assimilado pelas
Teologias Latino-Americanas e pelo magistério. Enquanto
na Doutrina Social o acento recai no momento do Julgar,

38
na América – Latina se intensificou e aprimorou o Ver, uti-
lizando da contribuição das várias ciências disponíveis e o
Agir. Sobre esse método: DAp 19.
Por ser constantemente acusado de estar sujeito a ide-
ologias já que faz uso de métodos de análise da realidade
científicos e filosóficos – podemos lembrar-nos da famosa
polêmica em torno da análise marxista da qual são acusa-
das algumas das teologias da libertação, o papa a explicitou
em seu discurso no Rio de Janeiro em 28/7/2013 mencio-
nado acima, quando falava de algumas tentações contra o
discípulo missionário:
“1. A ideologização da mensagem evangélica. É uma tenta-
ção que se verificou na Igreja desde o início: procurar uma
hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria
mensagem do Evangelho e fora da Igreja. Um exemplo: a
dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a for-
ma de ‘assepsia’. Foi usado, e está bem, o método de ‘ver, jul-
gar, agir’ (cf. n.º 19). A tentação se encontraria em optar por
um ‘ver’ totalmente asséptico, um ‘ver’ neutro, o que não é
viável. O ver é sempre influenciado pelo olhar. Não há uma
hermenêutica asséptica. Então a pergunta era: Com que
olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o
olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32.
Existem outras maneiras de ideologização da mensagem
e, atualmente, aparecem na América Latina e no Caribe
propostas desta índole” (FRANCISCO, Discurso. 28 de jul.
2013).
Pois bem, esse é o método de AL, principalmente entre
os capítulos 2º ao 8º. E é, de longe, o documento papal que
apresenta a mais vasta análise da realidade das famílias

39
contemporâneas (o “ver”), fruto, como diz o papa, dos dois
Sínodos e de sua experiência pessoal (AL §4; 31).
→ Em Evangelii Gaudium 221-237 o papa nos dá quatro
princípios [nós percebemos que orientam o seu modo de
pensar]:
O primeiro princípio e que o papa repete muito: “o tem-
po é superior ao espaço”. EG 222-225. Mais que dominar
espaços, querer resolver tudo no momento presente, dar
prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar proces-
sos do que possuir espaços: EG 223. O tempo espelha a
plenitude que se abre – itinerários; o espaço se refere ao
momento, o aqui e agora (cf. SCANNONE)
“A unidade é superior ao conflito” (EG 226ss). Diante do
conflito: uns lavam as mãos; outros se tornam prisioneiros
do conflito; proposta: aceitar suportar o conflito, resolvê-lo
e transformá-lo. Uma comunhão nas diferenças.
“A realidade é superior à idéia” (EG 231ss). Existe uma
tensão bipolar entre a ideia e a realidade; a realidade sim-
plesmente é, a ideia elabora-se; deve existir um diálogo
permanente, impedindo que a ideia se separe da realidade,
isto dá origem ao idealismo; manipula-se a realidade...
AL: a pessoa é superior à categoria (p. ex. “solteiros”, “ca-
sados”, “divorciados recasados”)
“O todo é mais do que a parte, sendo também mais do
que a simples soma delas” (EG 234). Tensão entre globali-
zação e a localização. O modelo não é a esfera [unidade na
igualdade]; é o poliedro [unidade na diversidade] (EG 236)

40
– AL §4: “precioso poliedro” [poli=muitos; hedra=faces].
Exemplos:
Evitar os dois extremos: a família “tradicional”, enquan-
to marcada pelo autoritarismo e violência; mas também o
desprezo pelo matrimônio enquanto instituição. O cami-
nho é a redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua re-
novação (AL 53).
Nem machismo, nem feminismo; mas igual dignidade
(AL 54).
Nem o desprezo pelos homossexuais; nem a Ideologia
de gênero. Mas compreender a fragilidade humana, acom-
panhar e integrar o máximo que for possível (AL 56).
Pais autoritários - pais ausentes (AL 176).
Construir um mundo à medida dos desejos dos filhos -
levá-lo a viver sem consciência da sua dignidade, de seus
direitos (AL 270).

41
42
III
HISTÓRIA INICIADA COM A
PREPARAÇÃO DO SB DE 2014

Os bispos gostaram da experiência do Concílio e pedi-


ram ao papa a criação de um instituto que possibilitasse
sua continuidade no governo cotidiano da Igreja (Christus
Dominus 5; Ad Gentes 29).
Em resposta, Paulo VI cria o Sínodo dos Bispos em
15/09/1965, com o motu próprio “Apostolica sollicitudo”.
Acolhido pelo CIC 342-348. É de natureza consultiva, ou
seja, o papa não é obrigado a seguir suas indicações. As
Assembleias Ordinárias deverão acontecer a cada 3 anos.
O número de participantes depende do tamanho da Con-
ferência Episcopal – mais de 100 bispos: 4 participantes; o
papa pode nomear até 15%. Pode haver ainda Extraordi-
nárias (participam os presidentes das Conferências Episco-
pais) e Especiais.
Em sua saudação aos padres sinodais durante a 1ª Con-
gregação Geral, em 06/10/2014, o papa Francisco afirmou
que para o bom funcionamento do Sínodo é preciso duas
disposições (“sinodalidade”): falar com parresia (com cora-
gem; franqueza); ouvir com humildade.
O papa Francisco nos dá indicações do caminho sinodal
em AL 1 a 5. O papa cita em AL: Relatio Synodi 2014: 52x;
Relatio Finalis 2015: 84x.

43
• Sínodo dos Bispos – Extraordinário – 2014:
• 08/10/13 - Papa Francisco convoca uma Assembleia Ge-
ral Extraordinária do Sínodo dos Bispos (SB), será a terceira
da história;
A Secretaria Geral do SB dá inicio à preparação enviando
uma extensa consulta a toda a Igreja: é o Documento Prepa-
ratório à III Assembleia Geral Extraordinária do SB: Os Desa-
fios Pastorais Sobre a Família no Contexto da Evangeli-
zação [publicado em novembro/2013]. As citações abaixo
são deste documento:
→ Vivemos uma época de crise social e espiritual que in-
terpela a missão evangelizadora da Igreja para a família;
“Propor o Evangelho sobre a família neste contexto é mais
urgente e necessário do que nunca. A importância deste
tema sobressai do fato que o Santo Padre decidiu estabe-
lecer para o Sínodo dos Bispos um itinerário de trabalho em
duas etapas:
a primeira, a Assembleia Geral Extraordinária de 2014, des-
tinada a especificar o “status quaestionis” e a recolher tes-
temunhos e propostas dos Bispos para anunciar e viver de
maneira fidedigna o Evangelho para a família;
a segunda, a Assembleia Geral Ordinária de 2015, em ordem
a procurar linhas de ação para a pastoral da pessoa huma-
na e da família”.
Em outras palavras, o SB de 2014 está centrado em co-
lher a realidade das famílias; a partir de seu resultado, tra-
balhará o SB de 2015 para propor uma pastoral adequada.
O mundo mudou e nos coloca muitos desafios:

44
“Hoje perfilam-se problemáticas até há poucos anos inédi-
tas, desde a difusão dos casais de fato, que não acedem ao
matrimônio e às vezes excluem esta própria ideia, até às uni-
ões entre pessoas do mesmo sexo, às quais não raro é permi-
tida a adoção de filhos. Entre as numerosas novas situações
que exigem a atenção e o compromisso pastoral da Igreja,
será suficiente recordar:
os matrimônios mistos ou interreligiosos;
a família monoparental;
a poligamia;
os matrimônios combinados, com a conseqüente proble-
mática do dote, por vezes entendido como preço de compra
da mulher;
o sistema das castas;
a cultura do não-comprometimento e da presumível insta-
bilidade do vínculo;
as formas de feminismo hostis à Igreja;
os fenômenos migratórios e reformulação da própria ideia
de família;
o pluralismo relativista na noção de matrimônio;
a influência dos meios de comunicação sobre a cultura po-
pular na compreensão do matrimônio e da vida familiar;
as tendências de pensamento subjacentes a propostas legis-
lativas que desvalorizam a permanência e a fidelidade do
pacto matrimonial;
o difundir-se do fenômeno das mães de substituição (“bar-
riga de aluguel”); e as novas interpretações dos direitos hu-
manos.

45
Mas sobretudo no âmbito mais estritamente eclesial, o en-
fraquecimento ou abandono da fé na sacramentalidade
do matrimônio e no poder terapêutico da penitência sa-
cramental.”
→ É urgente que o papa e os bispos enfrentem estes de-
safios;
“Esta realidade encontra uma correspondência singular no
vasto acolhimento que tem, nos nossos dias, o ensinamen-
to sobre a misericórdia divina e sobre a ternura em relação
às pessoas feridas, nas periferias geográficas e existenciais:
as expectativas que disto derivam, a propósito das escolhas
pastorais relativas à família, são extremamente amplas. Por
isso, uma reflexão do Sínodo dos Bispos a respeito destes te-
mas parece tanto necessária e urgente quanto indispensá-
vel, como expressão de caridade dos Pastores em relação a
quantos lhes são confiados e a toda a família humana.”
“A boa nova do amor divino deve ser proclamada a quan-
tos vivem esta fundamental experiência humana pessoal,
de casal e de comunhão aberta ao dom dos filhos, que é a
comunidade familiar. A doutrina da fé sobre o matrimônio
deve ser apresentada de modo comunicativo e eficaz, para
ser capaz de alcançar os corações e de os transformar se-
gundo a vontade de Deus manifestada em Cristo Jesus.”
→ Fontes bíblicas e Documentos do magistério; reco-
menda-se a leitura do CIgC n. 1601-1658; 2231-2391.
QUESTIONÁRIO (enviado para todas as Dioceses):
1 - Sobre a difusão da Sagrada Escritura e do Magistério da
Igreja a propósito da família
2 - Sobre o matrimônio segundo a lei natural

46
3 – A pastoral da família no contexto da evangelização
4 – Sobre a pastoral para enfrentar algumas situações ma-
trimoniais difíceis
5 - Sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo
6 - Sobre a educação dos filhos no contexto das situações
de matrimônios irregulares
7 - Sobre a abertura dos esposos à vida
8 - Sobre a relação entre a família e a pessoa
9 - Outros desafios e propostas
• Os resultados dessa consulta foram reunidos no Instru-
mentum Laboris (ou seja, o texto sobre o qual trabalhou o
SB de 2014), publicado em novembro de 2013.
“O texto está estruturado em três partes e retoma, em con-
formidade com uma ordem funcional à Assembleia sinodal,
as oito temáticas propostas no questionário.
A primeira parte é dedicada ao Evangelho da família, entre
desígnio de Deus e vocação da pessoa em Cristo, horizonte
no qual se relevam o conhecimento e a recepção do dado
bíblico e dos documentos do Magistério da Igreja, incluindo
as dificuldades, entre as quais a compreensão da lei natural.
A segunda parte aborda as várias propostas de pastoral fa-
miliar, os relativos desafios e as situações mais difíceis.
A terceira parte é dedicada à abertura à vida e à responsabi-
lidade educacional dos pais, que caracterizam o matrimônio
entre o homem e a mulher, com referência particular às si-
tuações pastorais atuais.” (BALDISSERI, Secretário-Geral do
Sínodo dos Bispos, 24/06/2014)

47
→ 05 a 19/10/2014 - Acontece na Cidade do Vaticano a III
Assembleia Geral Extraordinária do SB com o tema: Os De-
safios Pastorais Sobre a Família no Contexto da Evange-
lização.
(253 participantes; padres sinodais anunciados 191; que
votaram 183 [América: 38]; não alcançaram os 2/3 de apro-
vação: §52, 53 e 54)
Os padres sinodais avaliam e aprofundam os dados, os
testemunhos e as sugestões das Igrejas Particulares, com
a finalidade de enfrentar os novos desafios sobre a família.
Como resultado é publicado [enviado ao papa] um Relatio
Synodi (Relatório Final - as conclusões). Essa publicação em
forma de Documento é uma novidade. Até então, se fazia
um elenco das questões discutidas e enviava-se ao papa. O
único documento era a Exortação Pós-Sinodal por ele pu-
blicada.
[Publicado como Lineamenta para a XIV Assembleia Geral
Ordinária; Edições CNBB, Documentos da Igreja 18; contém
a tabela de votação dos padres sinodais por parágrafos]

CONTEXTO PARA ENTENDER A REALIDADE:


→ A “Igreja em saída” deve anunciar o Evangelho da Fa-
mília às famílias na realidade em que elas vivem.
Vivemos uma “desconstrução” do mundo ocidental cris-
tão num ritmo diferente em cada região e cultura, mas num
ritmo acelerado:

48
Este “mundo” havia se constituído numa íntima relação
entre Igreja – Estado (monarquias); um regime que ficou
conhecido como Cristandade (+/- séc. IV a XVIII).
O Estado assumia a legislação (e em muitos casos a ma-
nutenção) da Igreja e a Igreja dava legitimidade ao Estado
monárquico. Tinha seus prós e contra. Exemplos: inquisi-
ção – a princípio deveria ser para cuidar da retidão da fé,
mas era usada para eliminar adversários políticos do poder
constituído; escravidão – legitimada ou ao menos tolerada;
Brasil imperial: Padroado (toda comunicação entre o Vatica-
no e os bispos brasileiros passavam pelos órgãos oficiais do
Império; os 7 bispos que participaram do Concílio Vaticano
I, em 1870 – ao todo eram 11, nunca tinha tido um contato
direto com o papa).
Sobre isso, vale ler o que o papa escreveu em Fratelli Tutti
86:
“Às vezes deixa-me triste o fato de, apesar de estar dotada
de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a
condenar energicamente a escravatura e várias formas
de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritua-
lidade e da teologia, não temos desculpas. Todavia, ain-
da há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo
menos autorizados pela sua fé a defender várias formas de
nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, des-
prezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé,
com o humanismo que inspira, deve manter vivo um
sentido crítico perante estas tendências e ajudar a re-
agir rapidamente quando começam a insinuar-se. Para
isso, é importante que a catequese e a pregação incluam, de
forma mais direta e clara, o sentido social da existência,

49
a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção so-
bre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motiva-
ções para amar e acolher a todos.”
Em relação à família: monogamia; indissolubilidade
(proibição do divórcio); criminalização do aborto, euta-
násia, sexo fora do casamento (em geral tolerado para os
homens); homoafetividade; Calendário cristão (domingo e
dias santos de guarda).
O mundo moderno começa a “desconstruir” esta situa-
ção: um acontecimento que baliza o início desta situação:
Revolução Francesa – 1789 (vai influenciar de modo dife-
rente e em ritmo diferente dependendo das nações).
Começam a se formar os “Estados Nacionais” como Re-
públicas; com divisão de poderes; fundamentados num
contrato social; democracia; ou seja, autonomia do Esta-
do, que se rege pela sua Constituição [“Estado Leigo/lai-
co” - “sociedade secularizada”; afirma a liberdade religiosa,
mas não tem uma oficial]. Pauta-se pela “igualdade” entre
os cidadãos e por uma distinção entre o público (que é de
âmbito comum aos cidadãos e mais sujeito ao controle do
Estado) e o privado (vida particular dos cidadãos, de prefe-
rência com o mínimo de intervenção estatal). A religião vai
sendo relegada cada vez mais ao âmbito do privado.
A “desconstrução” vai permitindo formas de vida antes
proibidas: poligamia; descriminalização do aborto, eutaná-
sia, homoafetividade, adultério... permitindo a manipula-
ção genética e gerativa; etc. Desconstrução do calendário
cristão.

50
Durante a Cristandade vivia-se no modo “automático”/
“pastoral de manutenção”; com o fim da Cristandade é pre-
ciso recuperar as motivações, os porquês; entender e assi-
milar o modo de vida evangélico; “nadar contra a corrente”.
Não basta apenas lutar para manter o que for possível da
moral cristã na legislação civil; será preciso que os cristãos
assimilem positiva e existencialmente a moral cristã.
Será um trabalho de “formiguinha” e não de massa; daí
a importância do princípio “o tempo é superior ao espaço”
– iniciar processos... Apresenta-se também a necessida-
de e oportunidade de se recuperar a Iniciação à Vida Cris-
tã (desenvolvida no tempo da Igreja perseguida; anterior
à Cristandade) e aplicada ao matrimônio – “catecumenato
matrimonial”. Neste sentido, o papa tem chamado a aten-
ção para a falta de uma verdadeira compreensão do sacra-
mento do matrimônio.
→ Em uma época de mudanças rápidas e profundas,
uma Igreja que quer ser evangelizadora precisa reconhe-
cer:
EG 35: o anúncio concentra-se no essencial;
EG 36: existe um núcleo fundamental; “hierarquia de ver-
dades”: válido tanto para os dogmas quanto para a doutri-
na moral.
EG 41: na doutrina cristã, distinguir a substância de sua
formulação (roupagem).
EG 43: costumes não diretamente ligados ao núcleo do
Evangelho, mas assumidos na história e que podem ser re-

51
vistos.
→ Três mudanças fundamentais – paradigmáticas – que
serão encaradas pelos Sínodos e por Amoris Laetitia:
Liberdade e consciência das pessoas para uma autêntica
fidelidade familiar; não mais mantida pelo controle social
e econômico – AL 32-33; 37. A própria concepção do ser
humano como “pessoa” emergiu com o cristianismo, mas
que a Igreja nem sempre soube integrar com o fim do regi-
me de cristandade. O mundo moderno está marcado pela
emergência do indivíduo sobre a coletividade.
Papel e identidade da mulher no âmbito familiar – AL 173-
174; 176-177. A emancipação jurídica e econômica da mu-
lher alterou significativamente as relações familiares. O fato
da mulher ter contrato de trabalho independente do espo-
so foi fundamental para a mudança.
Significado unitivo e procriativo da sexualidade – AL 52;
74; 150-152; 178-184. Vai acontecendo uma separação en-
tre vida sexual e reprodução (com novos métodos artificiais
para impedir a gravidez) e entre reprodução e vida sexual
(não é mais estritamente necessário o ato sexual para a re-
produção).
• Sínodo dos Bispos – Ordinário – 2015:
→ 12/12/2014 - O secretário geral do SB envia às Igrejas
Particulares o Documento Preparatório para a XIV Assem-
bleia Geral Ordinária do SB: A Vocação e a Missão da Fa-
mília na Igreja e no mundo Contemporâneo.

52
Este Documento Preparatório é constituído do Relatio Sy-
nodi 2014 com o acréscimo de novas perguntas que deve-
rão ser respondidas e devolvidas até 15/04/15.
→ Este novo QUESTIONÁRIO é muito interessante. Feito
com base nos debates até agora desenvolvidos; apresenta
antes de cada grupo de perguntas uma síntese do tema
tratado. Está dividido em dois grupos:
Uma primeira pergunta referente a todas as seções da
Relatio Synodi: “A descrição da realidade da família, presente
na Relatio Synodi, corresponde àquilo que se observa na Igre-
ja e na sociedade de hoje? Quais são os aspectos que faltam e
que podem ser integrados?”
O segundo grupo dirige perguntas específicas a cada
um dos pontos tratados.
→ Os resultados dessa consulta foram reunidos no Ins-
trumentum Laboris, publicado em 23/06/2015.
Antes mesmo da realização do Sínodo, o papa Francis-
co publicou a Carta Apostólica em forma de “Motu Proprio”
Mitis Iudex Dominus Iesus – Sobre a reforma do processo ca-
nônico para as causas de declaração de nulidade do matrimô-
nio no Código de Direito Canônico (de 15/05/2015; mas que
começa a valer a partir de 08/12/2015; cf. ALMEIDA 2017;
RIBEIRO 2016). Em resposta aos pedidos feitos pelo SB 2014
(Lineamenta 48); assumido e acrescentado pelo Instrumen-
to Laboris n.114 e 115; mencionado em RF – SB 2015 n.82.
Leiamos dois parágrafos desse “Motu Proprio”:
“Neste sentido, apontaram também os votos da maioria

53
dos meus Irmãos no Episcopado, reunidos no recente Síno-
do Extraordinário, que imploraram processos mais rápidos
e acessíveis. Em total sintonia com tais desejos, decidi, com
este Motu Proprio, dar disposições que favoreçam, não a
nulidade dos matrimônios, mas a celeridade dos processos,
no fundo, uma justa simplificação, para que, por causa da
demora na definição do juízo, o coração dos fiéis que aguar-
dam pelo esclarecimento do seu próprio estado não seja
longamente oprimido pelas trevas da dúvida.”
“A III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos,
celebrada no mês de Outubro de 2014, constatou a dificul-
dade dos fiéis em chegar aos tribunais da Igreja. Uma vez
que o Bispo, à semelhança do Bom Pastor, tem obrigação
de ir ao encontro dos seus fiéis que precisam de particular
cuidado pastoral, dada por certa a colaboração do Suces-
sor de Pedro e dos Bispos em difundir o conhecimento da
lei, pareceu oportuno oferecer, juntamente com as normas
detalhadas para a aplicação do processo matrimonial, al-
guns instrumentos para que a ação dos tribunais possa dar
resposta às exigências daqueles fiéis que pedem a verifica-
ção da verdade sobre a existência ou não do vínculo do seu
matrimônio falido.”
E o que sobre ele afirma RF – SB 2015 n.82:
“Para muitos fiéis que viveram uma experiência matrimo-
nial infeliz, a averiguação da nulidade do seu matrimónio
representa um caminho a percorrer. Os recentes Motu Pro-
prio Mitis Iudex Dominus Iesus e Mitis et Misericors Iesus le-
varam a uma simplificação dos procedimentos para a even-
tual declaração de nulidade matrimonial. Com estes textos,
o Santo Padre quis também «evidenciar que o próprio Bispo
na sua Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por
isso mesmo juiz no meio dos fiéis a ele confiados» (MI, pre-

54
âmbulo, III). Por conseguinte, a prática destes documentos
constitui uma grande responsabilidade para os Ordinários
diocesanos, chamados a julgar eles mesmos algumas cau-
sas e, de qualquer modo, a assegurar um acesso mais fácil
dos fiéis à justiça. Isto comporta a preparação de pessoal su-
ficiente, composto por clérigos e leigos, que se consagre de
forma prioritária a este serviço eclesial. Portanto, será neces-
sário pôr à disposição das pessoas separadas ou dos casais
em crise, um serviço de informação, de aconselhamento e
de mediação, ligado à pastoral familiar, que também pode-
rá receber as pessoas em vista da investigação preliminar ao
processo matrimonial (cf. MI, arts. 2-3).”
→ 04 a 25/10/2015 - Realização da XIV Assembleia Geral
Ordinária do SB: A Vocação e a Missão da Família na Igre-
ja e no mundo Contemporâneo.
(270 Padres Sinodais: 42 por ofício; 183 por eleição; 45
por nomeação pontifícia; todos os parágrafos receberam
mais de 2/3 de aprovação)
Em 24/10/2015 - é publicado o Relatio Syinodi [Relatório
Final] enviado ao Papa Francisco.
• 19/03/2016 - o Papa Francisco publica a Exortação
Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia - Sobre o Amor na
Família.
* Valor magisterial de AL:
Alguns críticos do papa Francisco e de AL procuraram des-
qualificá-la afirmando que não teria valor doutrinal, afinal,
seria simplesmente uma “Exortação”... Precisamos, portanto,
responder a esta questão: qual o valor doutrinal de AL?

55
→ LG 25 (O múnus episcopal de ensinar): retomando o já
definido pelo Concílio de Trento:
“Esta religiosa submissão da vontade e da inteligência deve
de modo particular ser prestada com relação ao autêntico
Magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não fala
‘ex-cathedra’. E isso de tal forma que seu magistério supre-
mo seja reverentemente reconhecido, suas sentenças since-
ramente acolhidas, sempre de acordo com sua mente e von-
tade. Esta mente e vontade constam principalmente ou da
índole dos documentos, ou da frequente proposição de
uma mesma doutrina, ou de sua maneira de falar”.
→ Em um documento de 1990, da Congregação para a
Doutrina da Fé, assinado por J. Ratzinger, A vocação eclesial
do teólogo (CDF 1990), comenta-se as diversas formas de
magistérios da Igreja: Infalível, Definitivo e Ordinário mas
não definitivo.
Esta última forma tem a função de tornar os ensinamen-
tos do Magistério significativos em uma determinada situ-
ação que está sujeita a mudanças. É o que se aplica a AL:
“propõem um ensinamento que conduz a uma melhor com-
preensão da Revelação em matéria de fé e de costumes, e
diretivas morais derivantes deste ensinamento (...) as deci-
sões magisteriais em matéria de disciplina, mesmo não sen-
do garantidas pelo carisma da infalibilidade, não são des-
providas da assistência divina, e exigem a adesão dos fieis”
(n.17); “é exigida uma religiosa submissão da vontade e da
inteligência” (n.23).
A postura do papa Francisco em AL 2 e 3 confirmam esta
colocação: “continuar a aprofundar, com liberdade, algumas
questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais”; nem

56
tudo deve ser resolvido com intervenções magisteriais; in-
clusive deixando existir “maneiras diferentes de interpretar”...
(cf. PIÉ-NINOT 2016, p.7).
→ De qualquer forma, AL gozaria da mesma autoridade
que
Arcanum Divinae Sapientiae (“Sobre a Constituição Cristã
da Família”, Leão XIII, 10/02/1880);
Casti Connubii (“Sobre o Matrimônio Cristão”, Pio XI,
31/12/1930);
Humanae Vitae (“Sobre a Regulação da Natalidade”, Pau-
lo VI, 24/07/1968);
Familiaris Consortio (“Sobre a Função da Família Cristã no
Mundo de Hoje”, João Paulo II, 22/11/1981);
ou mesmo de Veritatis Splendor (“O esplendor da Verda-
de”, João Paulo II, 06/08,1993), que alguns querem tomar
como critério contra ela.
→ Segundo o teólogo Maurizio Gronchi [Palestra de
Apresentação de AL na Diocese de Ragusa, 11/05/2016],
no entanto:
AL é única no seu estilo e valor - porque é o resultado
de um caminho que envolveu os
fiéis cristãos: sinodal/sensus fidei fidelium
Sínodo dos Bispos/ colegial
papa/ primado (documento em que se expressa o ma-
gistério papal).

57
58
IV
À LUZ DA PALAVRA
(CAPÍTULO I DE AL)

O papa articula sua reflexão a partir das Sagradas Escritu-


ras mas não apresenta uma investigação segundo métodos
de crítica textual e histórica, e sim a partir de uma leitura que
poderemos chamar de “sapiencial” ou até mesmo “espiritual”.
Ponto de partida será o Salmo 128:
“A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de
amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde
entra em cena a família de Adão e Eva, como seu peso de
violência mas também com a força da vida que continua
(cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as núpcias
da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap21, 2.9).As duas casas de que
fala Jesus, construídas ora sobre a rocha ora sobre a areia
(cf. Mt 7, 24-27), representam muitas situações familiares,
criadas pela liberdade de quantos habitam nelas, porque
– como escreve o poeta – «toda a casa é um candelabro».
Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista,
através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias
nupciais quer judaica quer cristã”:
«Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.

59
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte Sião!
Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).” (AL 8)
Encontramos nos dois primeiros capítulos do Gênesis a
representação do casal humano em sua realidade funda-
mental (AL 10). Em Gn 1,27, imagem de Deus é o casal
“homem e mulher”, salientando a fecundidade. O casal que
ama e gera vida é “escultura viva” capaz de manifestar Deus
criador e salvador (AL 11). O próprio Deus Trindade é co-
munhão de amor: “a família não é alheia à própria essência
divina”.
Gn 2 - “inquietação vivida pelo homem, que busca «uma
auxiliar semelhante» (vv. 18.20), capaz de resolver esta soli-
dão que o perturba” (AL 12).
“Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a
família (...)«Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só»
(Mt 19, 5; cf. Gn 2, 24). No original hebraico, o verbo «unir-se»
indica uma estreita sintonia, uma adesão física e interior, a
ponto de se utilizar para descrever a união com Deus, como
canta o orante: «A minha alma está unida a Ti» (Sl 63/62, 9).
Deste modo, evoca-se a união matrimonial não apenas na
sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua do-
ação voluntária de amor. O fruto desta união é «tornar-se
uma só carne», quer no abraço físico, quer na união dos co-
rações e das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos
dois e, em si mesmo, há de levar as duas «carnes», unindo-as

60
genética e espiritualmente” (AL 13)
Seguindo o Salmo, aparecem os filhos; dons de Deus; “a
presença dos filhos é (...) um sinal de plenitude da família
na continuidade da mesma história de salvação, de gera-
ção em geração.” (AL 14)
“Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sa-
bemos que, no Novo Testamento, se fala da «igreja que se
reúne em casa» (cf. 1Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col 4, 15; Flm 2).
O espaço vital duma família podia transformar-se em igre-
ja doméstica, em local da Eucaristia, da presença de Cristo
sentado à mesma mesa.” (AL 15)
“A Bíblia considera a família também como o local da cate-
quese dos filhos. (...)
A família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mes-
tres da fé para seus filhos. É uma tarefa «artesanal», pes-
soa a pessoa: «Se amanhã o teu filho te perguntar (...), dir-
-lhe-ás...» (Ex 13, 14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor
as diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os velhos e
as crianças» (Sl 148, 12).” (AL 16)
Entre pais e filhos deve haver uma reciprocidade amoro-
sa (AL 17); mas “o Evangelho nos lembra que os filhos não
são uma propriedade da família, mas espera-os o seu cami-
nho pessoal de vida”. (AL 18)
Também fica claro que a família está desde o início marcada
por “um rastro de sofrimento e sangue” (AL 20). Está confron-
tada com o pecado.
“O idílio, que o Salmo128 apresenta, não nega uma amarga
realidade que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença
do sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida

61
da família e a sua comunhão íntima de vida e de amor. Não
é de estranhar que o discurso de Cristo sobre o matrimônio
(cf.Mt 19, 3-9) apareça inserido numa disputa a respeito do
divórcio. A Palavra de Deus é testemunha constante desta
dimensão obscura que assoma já nos primórdios, quando,
com o pecado, a relação de amor e pureza entre o homem e
a mulher se transforma num domínio: «Procurarás apaixo-
nadamente o teu marido, mas ele te dominará» (Gn 3, 16).”
(AL 19)
“É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas pá-
ginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim
contra Abel e dos vários litígios entre os filhos e entre as es-
posas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas
tragédias que cobrem de sangue a família de David, até às
numerosas dificuldades familiares que registra a história
de Tobias ou a confissão amarga de Jó abandonado: Deus
«afastou de mim os meus irmãos, e os meus amigos retira-
ram-se como estranhos. (...)A minha mulher sente repugnân-
cia do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios
filhos» (Jó 19, 13.17).” (AL 20)
O próprio Jesus nasce em uma família e se envolve com o
drama das famílias. Suas parábolas mostram suas ansieda-
des e tensões (AL 21).
“Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de
Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstra-
tas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para
as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação,
mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus «enxugar
todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte,
nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4)” (AL 22).
O papa lembra ainda da manutenção da família: o traba-

62
lho (AL 23); o problema do desemprego e da precariedade
laboral que afeta as famílias (AL 25); o pecado que provoca
o uso despótico da natureza; os desequilíbrios sócio-eco-
nômicos (AL 26).
A ternura do abraço:
“Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs sobretudo a
lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22,
39; Jo 13, 34), e o fez através de um princípio que um pai
ou uma mãe costumam testemunhar na sua própria vida:
«Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos
seus amigos» (Jo 15, 13). Frutos do amor são também a mi-
sericórdia e o perdão. Nesta linha, é emblemática a cena
que nos apresenta uma adúltera na explanada do templo
de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e,
depois, sozinha com Jesus, que não a condena mas convi-
da-a a uma vida mais digna (cf. Jo 8, 1-11).” (AL 27)
“No horizonte do amor, essencial na experiência cristã do
matrimônio e da família, destaca-se ainda outra virtude,
um pouco ignorada nestes tempos de relações frenéticas e
superficiais: a ternura.” (AL 28)
“Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromis-
so, de família humana e Trindade divina, contemplamos a
família que a Palavra de Deus confia nas mãos do marido,
da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão de
pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. Por sua vez, a atividade geradora e educativa
é um reflexo da obra criadora do Pai. A família é chamada a
compartilhara oração diária, a leitura da Palavra de Deus e
a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-
-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.” (AL 29)

63
64
V
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS
FAMÍLIAS (CAPÍTULO II DE AL)

É o momento do “Ver”. O papa Francisco pretende partir


da realidade vivenciada pelas famílias. Embora sem a pre-
tensão de ser exaustivo. Utilizando o contributo dos Síno-
dos (AL 31) e a própria experiência. É preciso lembrar que o
papa havia pedido para se mapear os “desafios pastorais”,
portanto, aqui tem uma concentração de aspectos negati-
vos “desafiadores”.
Contextualizando: a mudança antropológico-cultural e a
situação atual da família - AL 32 e 53:
“«Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a realidade atu-
al da família em toda a sua complexidade, nas suas luzes
e sombras. (...) Hoje, a mudança antropológico-cultural
influencia todos os aspectos da vida e requer uma abor-
dagem analítica e diversificada». Já no contexto de várias
décadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam uma rea-
lidade doméstica com mais espaços de liberdade, «com uma
distribuição equitativa de encargos, responsabilidades e ta-
refas (...). Valorizando mais a comunicação pessoal entre os
esposos, contribui-se para humanizar toda a vida familiar.
(...) Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para
onde caminhamos permitem a sobrevivência indiscri-
minada de formas e modelos do passado». Mas «estamos
conscientes da direção que vão tomando as mudanças an-
tropológico-culturais, em razão das quais os indivíduos são
menos apoiados do que no passado pelas estruturas sociais
na sua vida afetiva e familiar»” (RS 5; RF 5 – AL 32)

65
“«Em certas sociedades ainda vigora a prática da poliga-
mia; em outros contextos, permanece a prática dos matri-
mônios arranjados. (...) Em muitos contextos, e não apenas
ocidentais, está se difundindo amplamente a prática da
convivência que precede o matrimônio e também a prática
de convivências não orientadas para assumir a forma de um
vínculo institucional». Em vários países, a legislação facilita
o avanço de várias alternativas, de modo que um matrimô-
nio com as características de exclusividade, indissolubilida-
de e abertura à vida acaba por aparecer como mais uma
proposta antiquada entre muitas outras. Avança, em mui-
tos países, uma desconstrução jurídica da família, que
tende a adotar formas baseadas quase exclusivamente no
paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legíti-
mo e justo rejeitar velhas formas de família «tradicional»,
caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive pela violência,
todavia isso não deveria levar ao desprezo do matrimônio,
mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua re-
novação. A força da família «reside essencialmente na sua
capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que
possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do
amor».” (RF 25;10 - AL 53)
• Principais vetores destas transformações: industrializa-
ção e urbanização. Aconteceu de modo diversificado e em
momentos diferentes a depender da região. Sumariamen-
te, podemos dar algumas indicações:
Industrialização: tem início na Inglaterra – séc. XVIII; se
espalha pela Europa – séc. XIX; Brasil – séc. XX (pelos anos
50; JK – “50 anos em 5”). A industrialização aumenta a ne-
cessidade de mão de obra e, ao mesmo tempo, libera a
mão de obra do campo, uma das consequências será a for-
te urbanização.

66
Urbanização: Inglaterra – 1750: pop. urb. – 15%; 1850 –
50%; 1900 – 85%; Londres: 1900 – 4,5 mi. hab.; Brasil – 1950:
a pop. urbana se torna maior que a rural; 1980 – 67,70%;
2010 – 84,36; PR (2010) – 85,33%.
A industrialização e a urbanização irão transformar o
modo de configurar-se das sociedades.

Sociedade agrícola / rural Industrializada / urbana /


/ manufatureira tecnológica.
Mundo pré-moderno ou Mundo moderno ou indus-
pré-industrial; centrada na trializado; centrado na me-
mão-de-obra; com pouca ou canização/ tecnologia (mão-
nenhuma mobilidade local, -de-obra especializada); com
laboral e social; é um mundo alguma mobilidade social e
“fechado. muita local e laboral. Mundo
complexo e “aberto”.

Família alargada Família nuclear;


Matrimônio como contrato Decidido pelos cônjuges e
entre famílias com base no sentimento /
Grande apoio / controle fa- amor;
miliar Apoio limitado e maior ten-
Divórcio: raros e questão de dência à crise e instabilidade;
família / socialmente repro- Questão dos indivíduos en-
váveis volvidos e freqüentes / social-
mente indiferentes;

67
Compartilham ambiente Ambientes / locais / horá-
de trabalho rios diferentes
Transcorre a vida em família. Pouco tempo juntos e com
qualidade duvidosa.

Autoridade masculina/ Profissionalização e autono-


submissão da mulher mia da mulher / autoridade
“papeis fixos” / pouco espaço pelo consenso e negociada
para a individualidade e inti- “papeis fluidos”/ personaliza-
midade; ção/ liberdade e consciência/
Intimidade e comunicação exige maior amadurecimen-
limitada; to psicológico e emocional;
Maior intimidade e necessi-
dade de diálogo;

A família será regulada pelo que Santo Agostinho chama


a ordem do amor:
“Essa ordem implica por um lado a superioridade do marido
sobre a mulher e os filhos, e por outro a pronta sujeição e
obediência da mulher (...) O grau e o modo desta sujeição
da mulher ao marido pode variar segundo a variedade das
pessoas, dos lugares e dos tempos; e até, se o homem me-
nosprezar o seu dever, compete à mulher supri-lo na direção
da família. Mas em nenhum tempo e lugar é lícito subverter
ou prejudicar a estrutura essencial da própria família e a sua
lei firmemente estabelecida por Deus” - CC 25-28.
“É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de sub-
missão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação
inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que

68
« as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos » (Ef 5,
22). São Paulo exprime-se em categorias culturais próprias
daquela época; nós não devemos assumir esta roupagem
cultural, mas a mensagem revelada que subjaz ao conjun-
to da perícope. Retomemos a sábia explicação de São João
Paulo II: « O amor exclui todo o gênero de submissão, pelo
qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...).
A comunidade ou unidade, que devem constituir por causa
do matrimônio, realiza-se através de uma recíproca doa-
ção, que é também submissão mútua ». Por isso, se diz que
« devem também os maridos amar as suas mulheres, como
o seu próprio corpo » (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíbli-
co convida a superar o cômodo individualismo para viver
disponíveis aos outros: « Submetei-vos uns aos outros » (Ef
5,21). Entre os cônjuges, esta recíproca « submissão» adqui-
re um significado especial, devendo-se entender como uma
pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de
características de fidelidade, respeito e solicitude. A sexu-
alidade está ao serviço desta amizade conjugal de modo
inseparável, porque tende a procurar que o outro viva em
plenitude” (AL 156).
“Também não se pode ignorar que, na configuração do pró-
prio modo de ser – feminino ou masculino –, não confluem
apenas fatores biológicos ou genéticos, mas uma multipli-
cidade de elementos que têm a ver com o temperamento, a
história familiar, a cultura, as experiências vividas, a forma-
ção recebida, as influências de amigos, familiares e pessoas
admiradas, e outras circunstâncias concretas que exigem
um esforço de adaptação. É verdade que não podemos se-
parar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus,
que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na
qual existem elementos biológicos que é impossível ignorar.
Mas também é verdade que o masculino e o feminino não

69
são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por exem-
plo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-
-se de maneira flexível à condição laboral da esposa; o fato
de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da cria-
ção dos filhos não o torna menos masculino nem significa
um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preci-
so ajudar as crianças a aceitar como normais estes « inter-
câmbios » sadios que não tiram dignidade alguma à figura
paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do
feminino, e não educa as crianças e os jovens para a recipro-
cidade encarnada nas condições reais do matrimônio. Tal
rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das
capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de
considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e
pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Gra-
ças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias
inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade
e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade con-
creta dos filhos e das suas potencialidades” (AL 286)

Sociedades mais simples Sociedades mais comple-


sócio-economicamente xas e excludentes
Necessidades menores e mais Maiores necessidades/ famí-
apoio familiar lias e sociedade com menor
Filhos: investimento capacidade de ajuda;
Despesas;

Grande taxa de mortali- Baixa taxa de mortalidade


dade infantil e baixa ex- e alongamento da expec-
pectativa de vida tativa de vida

70
Para uma comparação, podemos utilizar uma estimativa,
embora sabendo que ela é apenas uma referência. A ex-
pectativa de vida em Roma no século I a.C:
“Ao nascer, se tinha uma esperança de vida de 20 anos; se
se chegava aos 5 anos, a esperança era de 40 anos. 30% dos
nascidos morriam antes dos 6 anos; 60% morria antes dos
15 anos, 75% na metade dos vinte, 90% na metade dos qua-
renta. Apenas uns 3% chegava aos sessenta anos de idade”
(PENA 2005, p.31; ver ainda: MALINA 1996, p.15).

TAXA DE NATALIDADE E DE MORTALIDADE (POR 1000 HAB):


Alemanha: 8,33 – 10,55;
Itália: 8,89 – 10,3;
Níger: 47,5 – 10,2
BR: 18,67 – 6,25; (2010: natalidade – 1,89 filhos por mu-
lher em idade fértil; PR: 1,86);

EXPECTATIVA DE VIDA:
Portugal (2017): 80,8 anos;
Brasil: 1950: 44 anos; 1960: 54 anos; 2016: 75,8 anos.

Os matrimônios duram Retardamento do matri-


mais tempo; passam por mônio: mais parceiros
mais “etapas”, com novas de namoro e namoro por
exigências; mais tempo; vida sexual
pré-matrimonial;

71
O papa comenta esta questão em relação aos matrimô-
nios: “necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca es-
colha” (AL 163).

Procriação como dádiva Procriação como auto-reali-


zação e às vezes como peso
A sociedade atual separou:
vida sexual e procriação; e
procriação de vida sexual;
Filhos: em menor número e
mais tarde;

A Igreja mantém a essencial unidade entre a função uni-


tiva e reprodutiva do ato sexual, declarando imoral esta se-
paração. Somente a relação sexual aberta à possibilidade
da geração de uma nova vida é legítima (CC 54-57: tirar o
poder gerador do ato sexual o torna “um ato torpe e intrin-
secamente desonesto” n.55; assim, tornam-se réus de “cul-
pa grave” 57; GS 51; HV 11.14; FC 32.34 - sempre retomando
a CC: usar contraceptivo “falsifica” a verdade do amor conju-
gal; AL §80-82).
Essa questão tem posto um dilema: a Igreja entende le-
gítimo apenas os métodos de regulação da fecundidade
naturais, ou seja, evitando a relação em período fértil; mas
a massa dos católicos recorrem aos métodos artificiais e à
esterilização. Mais à frente voltaremos a esta questão para
analisá-la detalhadamente.
Sociedades organizadas a Sociedades secularizadas /
partir de princípios religiosos laicas

72
No primeiro modelo (Sociedade e Família tradicional)
o homem poderia dizer: “És minha esposa, por isso te
amo”;
No segundo modelo (Sociedade industrial) o homem
pode dizer: “Te amo, por isso és minha esposa”.
Isto não quer dizer, a princípio, que um modelo seja me-
lhor do que o outro, ou que o amor não seja possível nos
dois, já que é fruto da convivência e da decisão de amar.
A situação atual das famílias: luzes e sombras.
“A mudança antropológico-cultural influencia todos os
aspectos da vida e requer uma abordagem analítica e diversi-
ficada” (RS 5; AL 32).
* Luzes:
→ Realidade doméstica com mais espaços de liberdade:
distribuição equitativa de encargos, responsabilidades e
tarefas; valorização da comunicação pessoal entre os espo-
sos; contribui para humanizar toda a vida familiar.
“Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para onde
caminhamos permitem a sobrevivência indiscriminada de
formas e modelos do passado” (CEE; AL 32).
→ Mas estamos conscientes de que em virtude destas
mudanças “os indivíduos são menos apoiados do que no
passado pelas estruturas sociais na sua vida afetiva e fami-
liar” (RF 5; AL 32)
* Sombras:
→ Individualismo exagerado: acaba por considerar cada

73
componente da família como uma ilha; desejos pessoais as-
sumidos como absolutos; geram dinâmicas de intolerância e
agressividade. O papa chamará a atenção para todo tipo de
violência para com a mulher, que foi atenuado em relação ao
passado, mas que ainda persiste (AL 54).
→ O ritmo de vida atual, o estresse, a organização social
e laboral, porque são fatores culturais que colocam em ris-
co a possibilidade de opções permanentes.
→ Comportamento ambíguo: autenticidade/fuga dos
compromissos; liberdade de escolha/incapacidade de es-
tabelecer laços duradouros; sentido de justiça/só a exigem
para si;
“Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender
a família, esta pode transformar-se em um lugar de passa-
gem, onde uma pessoa vai quando lhe parecer conveniente
para si mesma ou para reclamar direitos, enquanto os vín-
culos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das
circunstâncias (...) Neste contexto, o ideal matrimonial com
um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por
ser destruído pelas conveniências contingentes ou pelos ca-
prichos da sensibilidade” (AL 34).
* Frente a esta situação, a Igreja deve apresentar sua
mensagem sobre o matrimônio. Evitando, no entanto, ficar
apenas na “denúncia retórica dos males atuais”; ou “querer
impor normas pela força da autoridade”. (AL 35)
“É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que
consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar
pelo matrimônio e a família, de modo que as pessoas este-
jam mais bem preparadas para responder à graça que Deus

74
lhes oferece” (AL 35).
“Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamen-
tações autodefensivas, em vez de suscitar uma criatividade
missionária. (...) ‘para libertar em nós as energias da esperan-
ça, traduzindo-as em sonhos proféticos, ações transformado-
ras e imaginação da caridade’” (AL 57).
* Autocrítica:
“Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para
reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as
convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas aju-
daram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo
que nos convém uma salutar reação de autocrítica” (AL 36).
→ Ênfase quase exclusiva no dever da procriação; ofus-
cando o fim unitivo: o convite a crescer no amor e o ideal
de ajuda mútua;
→ Não fizemos um bom acompanhamento dos jovens
casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas
aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupa-
ções mais concretas;
→ Excessiva idealização (apresentação do matrimônio
como um ideal “demasiado abstrato, construído quase arti-
ficialmente”), distante da situação concreta e das possibili-
dades efetivas das famílias;
→ Simples insistência em questões doutrinais, bioéticas
e morais, sem motivar a abertura à graça (AL 37);
→ Apresentar o matrimônio como um fardo para car-
regar a vida inteira mais que caminho dinâmico de cresci-
mento e realização;

75
→ “Também nos custa deixar espaço à consciência dos
fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao
Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o
seu próprio discernimento perante situações onde se rompem
todos os esquemas. Somos chamados a formar as consci-
ências, não a pretender substituí-las” (AL 37);
→ E por fim:
“Muitas vezes agimos na defensiva, gastamos nossa energia
atacando o mundo decadente, mas com pouca capacidade
de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sen-
tem a mensagem da Igreja sobre o matrimônio e a família
como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus,
o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente,
não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas
frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL 38).
* A partir do §39 o papa trabalha mais detalhadamente
algumas situações:
→ A decadência cultural, perceptível à luz dos vários sin-
tomas da “cultura do provisório”: rapidez em que as pessoas
passam de uma relação afetiva a outra; tudo é descartável;
narcisismo; retardamento das núpcias; afetividade sem li-
mites; pornografia e comércio do corpo; as crises conjugais
são tratadas de modo apressado e superficial.
“Neste contexto, por vezes os casais sentem-se inseguros, in-
decisos, custando-lhes a encontrar as formas para crescer.
Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estádios primá-
rios da vida emocional e sexual” (AL 41).
“As crises conjugais são «enfrentadas muitas vezes de modo
apressado e sem a coragem da paciência, da averiguação,

76
do perdão recíproco, da reconciliação e até do sacrifício.
Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, no-
vos casais, novas uniões e novos casamentos, criando situ-
ações familiares complexas e problemáticas para a opção
cristã».” (AL 41)
→ Queda demográfica, resultado de uma mentalidade
antinatalista (“O avanço das biotecnologias também teve um
forte impacto sobre a natalidade” - AL 42); solidão; impotên-
cia em face da realidade socioeconômica; falta de habitação
digna ou adequada (“devemos insistir nos direitos da família,
e não apenas nos direitos individuais” – AL 44); problemas
relativos ao trabalho; filhos nascidos fora do matrimônio ou
que crescem sem um dos genitores; violência; abuso sexual
(“a exploração sexual da infância constitui uma das realida-
des mais escandalosas e perversas da sociedade atual” – AL
45; pedofilia); migrações; pessoas com deficiência e idosos;
→ Famílias que caíram na miséria.
“Quero assinalar a situação das famílias caídas na miséria,
penalizadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida
se fazem sentir de forma lancinante. Se todos têm dificulda-
des, estas, numa casa muito pobre, tornam-se mais duras.
Por exemplo, se uma mulher deve criar o seu filho sozinha,
devido a uma separação ou por outras causas, e tem de ir
trabalhar sem a possibilidade de o deixar com outra pessoa,
o filho cresce num abandono que o expõe a todos os tipos de
risco e fica comprometido o seu amadurecimento pessoal.
Nas situações difíceis em que vivem as pessoas mais necessi-
tadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em compreen-
der, consolar e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de
normas como se fossem uma rocha, tendo como resultado
fazê-las sentir-se julgadas e abandonadas precisamente por

77
aquela Mãe que é chamada a levar-lhes a misericórdia de
Deus. Assim, em vez de oferecer a força sanadora da graça e
da luz do Evangelho, alguns querem «doutrinar» o Evange-
lho, transformá-lo em «pedras mortas para as jogar contra
os outros».” (AL 49)
→ além destas situações anteriormente elencadas, o
papa lembra novos desafios: a função educativa; toxico-
dependência, alcoolismo, jogos de azar e outras depen-
dências; violência familiar e agressividade social;
→ O enfraquecimento da família como sociedade natu-
ral fundada no matrimônio, enfraquece também a socieda-
de (AL 53) – não pode ser equiparada a “uniões de fato” ou
“entre pessoas do mesmo sexo”.
“Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, ape-
sar das melhorias notáveis registradas no reconhecimento
dos direitos da mulher e na sua participação no espaço pú-
blico, ainda há muito que avançar em alguns países. Não se
acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco a
violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mu-
lheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravi-
dão, que não constituem um sinal de força masculina, mas
uma covarde degradação. A violência verbal, física e sexual,
perpetrada contra as mulheres em alguns casais, contradiz
a própria natureza da união conjugal. Penso na grave muti-
lação genital da mulher em algumas culturas, mas também
na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e
aos lugares onde as decisões são tomadas. A história carre-
ga os vestígios dos excessos das culturas patriarcais, onde a
mulher era considerada um ser de segunda classe, mas re-
cordemos também o «aluguel de ventres» ou «a instrumen-
talização e comercialização do corpo feminino na cultura

78
mediática contemporânea». Alguns consideram que muitos
dos problemas atuais ocorreram a partir da emancipação
da mulher. Mas este argumento não é válido, «é falso, não
é verdade! Trata-se de uma forma de machismo». A idêntica
dignidade entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos
com a superação de velhas formas de discriminação e o de-
senvolvimento de um estilo de reciprocidade dentro das fa-
mílias. Se aparecem formas de feminismo que não podemos
considerar adequadas, de igual modo admiramos a obra do
Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da mu-
lher e dos seus direitos.” (AL 54)
→ O homem tem um papel decisivo na família. Sustento e
proteção.
“A ausência do pai penaliza gravemente a vida familiar, a
educação dos filhos e a sua integração na sociedade. Tal
ausência pode ser física, afetiva, cognitiva e espiritual. Esta
carência priva os filhos dum modelo adequado do compor-
tamento paterno.” (RF 28; AL 55)
“Outro desafio surge de várias formas de uma ideologia
genericamente chamada gender, que «nega a diferença
e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma
sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropo-
lógica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e
diretrizes legislativas que promovem uma identidade pesso-
al e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da
diversidade biológica entre homem e mulher. A identidade
humana é determinada por uma opção individualista, que
também muda com o tempo». Preocupa o fato de algumas
ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas
aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se
como pensamento único que determina até mesmo a edu-
cação das crianças. É preciso não esquecer que «sexo bioló-

79
gico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se
distinguir, mas não separar».” (RF 58; AL 56)
“Por outro lado, «a revolução biotecnológica no campo da
procriação humana introduziu a possibilidade de manipu-
lar o ato generativo, tornando-o independente da relação
sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem
como a paternidade e a maternidade tornaram-se realida-
des componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo preva-
lecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais». Uma coisa
é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da
vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em
dois os aspectos inseparáveis da realidade. Não caiamos
no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos
criaturas, não somos onipotentes. A criação precede-nos e
deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos
chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa,
antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.”
(RF 33; AL 56)
→ Conclusão:
“Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem
longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, reali-
zam a sua vocação e continuam para diante embora caiam
muitas vezes ao longo do caminho. Partindo das reflexões
sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal,
mas um interpelante mosaico formado por muitas reali-
dades diferentes, cheias de alegrias, dramas e sonhos. As
realidades que nos preocupam, são desafios. Não caiamos
na armadilha de nos consumirmos em lamentações auto-
defensivas, em vez de suscitar uma criatividade missionária.
Em todas as situações, «a Igreja sente a necessidade de di-
zer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os grandes
valores do matrimônio e da família cristã correspondem à

80
busca que atravessa a existência humana». Se constatamos
muitas dificuldades, estas são – como disseram os bispos
da Colômbia – um apelo para «libertar em nós as energias
da esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos, ações
transformadoras e imaginação da caridade».” (RS 11; AL 57)

81
82
VI
O OLHAR FIXO EM JESUS:
A VOCAÇÃO DA FAMÍLIA

É o momento do JULGAR: iluminar com a Palavra de Deus


e com o Magistério da Igreja.
AL 6: “Alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja
sobre o matrimônio e a família”.
• AL não pretende ser sistemática, nem entrar em ques-
tões discutíveis; mas apenas elencar algumas ideias básicas
e consolidadas.
[Nós que estamos fazendo um estudo, podemos nos
aprofundar]
→ AL 58: O olhar fixo em Jesus;
O papa Francisco tem insistido no QUERIGMA: “primeiro
anúncio”;
“Primeiro”: cronologicamente; mas também porque pri-
mordial (“mais belo, mais importante, mais atraente e, ao
mesmo tempo, mais necessário’ e ‘deve ocupar o centro da
atividade evangelizadora’”); porque nos coloca em contato
com a pessoa “viva” de Jesus.
“Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre
de novo o primeiro anúncio, que é o «mais belo, mais impor-
tante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário»
e «deve ocupar o centro da atividade evangelizadora». É o
anúncio principal, «aquele que sempre se tem de voltar a

83
ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de
voltar a anunciar, de uma forma ou de outra». Porque «nada
há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consis-
tente e mais sábio que esse anúncio» e «toda a formação
cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma».”
(AL 58)
AL 59: Querigma: anúncio de amor e ternura; necessário
para evitar que nosso ensinamento sobre o matrimônio e a
família se torne defesa de doutrina fria e sem vida.
AL 60: o papa apresenta o capítulo:
“Dentro deste quadro, o presente capítulo recolhe uma sín-
tese da doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família.
Também aqui citarei várias contribuições prestadas pelos
Padres sinodais nas suas considerações acerca da luz que a
fé nos oferece. Eles partiram do olhar de Jesus, dizendo que
Ele «olhou para as mulheres e os homens que encontrou
com amor e ternura, acompanhando os seus passos com
verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar as exigências
do Reino de Deus». De igual modo nos acompanha, hoje, o
Senhor no nosso compromisso de viver e transmitir o Evan-
gelho da família.” (AL 60)
AL 61: Contrariando os que proibiam o matrimônio (1Cor
7,1), o NT ensina a bondade do matrimônio (1Tm 4,4); é um
dom; que inclui a sexualidade.
AL 62: Jesus, questionado sobre o divórcio, afirma a “in-
dissolubilidade do matrimônio”; não como jugo, mas como
dom; recuperando o projeto originário de Deus.
“«Jesus, que reconciliou em Si todas as coisas, voltou a le-
var o matrimônio e a família à sua forma original (cf. Mc
10, 1-12). A família e o matrimônio foram redimidos por

84
Cristo (cf. Ef 5, 21-32), restaurados à imagem da Santíssima
Trindade, mistério donde brota todo o amor verdadeiro. A
aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na
história da salvação, recebe a revelação plena do seu signi-
ficado em Cristo e na sua Igreja. O matrimônio e a família
recebem de Cristo, através da Igreja, a graça necessária para
testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O
Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a
criação do homem à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn
1, 26-27) até à realização do mistério da Aliança em Cristo
no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19, 9)»”
(AL 63)
AL 64 e 65: Jesus que se envolve com as famílias; Ele mes-
mo que nasceu em uma. “Este é o mistério do Natal e o segre-
do de Nazaré, cheio de perfume da família!”.
AL 66: “... cada família, não obstante a sua fragilidade, pode
tornar-se uma luz na escuridão do mundo”.
[Não podemos nesse momento apresentar um estudo
sistemático sobre o matrimônio e a família na Bíblia; mas
podemos aprofundar alguns elementos]
• Jesus recupera o projeto originário de Deus para o
matrimônio (AL 62 e 63). O faz, segundo AL, afirmando a
indissolubilidade do matrimônio. São dois os textos co-
mumente citados: Mc 10,1-11 e Mt 19,1-12 (são textos pa-
ralelos que se distinguem em detalhes determinados pelos
leitores aos quais os evangelistas se dirigem; e Mt 5,31-32
sobre o divórcio).
O debate com os fariseus se dá em torno de Dt 24,1-4:
“1
Quando um homem se casa com uma mulher e con-

85
suma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela,
por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escre-
va para ela um documento de divórcio e o entregue a
ela, deixando-a sair de casa em liberdade. 2 Tendo saído de
sua casa, se ela se casar com outro, 3 e também este se di-
vorciar dela e lhe entregar nas mãos um documento de di-
vórcio e a deixar ir embora em liberdade, ou se o segun-
do marido morrer, 4 então o primeiro marido, que se havia
divorciado dela, não poderá casar-se outra vez com
ela, pois estará contaminada: seria um ato abominá-
vel diante de Javé. Você não deve tornar culpada de pecado
a terra que Javé seu Deus vai lhe dar como herança.”
• Para entendermos esta questão precisamos olhar ainda
que minimamente para a sociedade e cultura israelita. Irá
ter uma variação histórica, por isso, os textos deveriam ser
colocados no seu contexto para serem bem interpretados;
mas nesse momento faremos apenas algumas indicações.
→ É patriarcal; organizada a partir do homem; inicial-
mente com poder quase absoluto sobre a esposa e filhos,
bem como outros que compõem a família (Judá condena a
nora Tamar à morte: “queimada viva” – Gn 38,24; pode ven-
der uma filha – Ex 21,7); com a sociedade mais organizada,
esse poder irá passar ao conselho dos anciãos – Dt 21,18-
21:
“18
Se alguém tiver um filho rebelde e incorrigí-
vel, que não obedece ao pai e à mãe e não os ouve, nem quan-
do o corrigem, 19 o pai e a mãe o pegarão e o le-
varão aos anciãos da cidade para ser julgado.
20
E dirão aos anciãos da cidade: ‘Este nosso filho é rebel-
de e incorrigível: não nos obedece, é devasso e beberrão’.

86
21
E todos os homens da cidade o apedrejarão até que mor-
ra. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio, e todo o Is-
rael ouvirá e ficará com medo.”
→ A mulher é sempre dependente/propriedade de um
homem: pai, marido (Ex 20,17: “Não cobice a casa do seu
próximo, nem a mulher do próximo, nem o escravo, nem a
escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que
pertença ao seu próximo”), filho mais velho e na situação de
chefe da família, irmão do marido, etc.
→ É juridicamente incapaz:
Não pode estabelecer contratos (o contrato de matrimô-
nio é feito entre o pai da noiva e o noivo) - Tobias 7,12-17:
“Raguel respondeu: «Vou fazer o que você me pede.
A minha filha vai lhe ser dada em casamento, con-
forme está determinado no Livro de Moisés, e
como Deus mandou fazer. Receba então a sua irmã. Vo-
cês, a partir de agora, são marido e mulher. Ela perten-
ce a você de hoje para sempre. Que o Senhor do céu os aju-
de esta noite, e lhes conceda a sua misericórdia e a sua paz».
13
Então Raguel chamou sua filha Sara, que se apresen-
tou. Ele a tomou pela mão e a entregou a Tobias, dizendo:
«Receba Sara. Conforme a Lei e a sentença que está es-
crita no Livro de Moisés, ela é dada a você como es-
posa. Receba-a e volte são e salvo para a casa do
seu pai. Que o Deus do céu os acompanhe com a
sua paz». 14 Então chamou a mãe da moça e mandou tra-
zer uma folha de papiro. Escreveu o contrato de casamento, se-
gundo o qual concedia a própria filha como esposa de To-
bias, conforme a sentença da lei de Moisés. Depois dis-
so, começaram a comer e beber. 15 Ragüel chamou sua esposa

87
Edna e disse: «Irmã, prepare o outro quarto e leve para lá
a nossa filha». 16 Ela foi preparar a cama no quarto e le-
vou a filha para lá. Depois começou a chorar pela filha, en-
xugou as lágrimas e disse: 17 «Coragem, filha! Que o Se-
nhor do céu transforme sua tristeza em alegria
Coragem, filha!» E saiu.”
“4
Os outros tinham saído e fechado a porta do quar-
to. Tobias levantou-se e disse a Sara: «Levante-se, mi-
nha irmã! Vamos rezar e suplicar ao Senhor que nos con-
ceda misericórdia e salvação». 5 Então ela se levantou, e
os dois começaram a rezar, pedindo que Deus os proteges-
se. Eles diziam:
«Bendito sejas tu, Deus de nossos antepassados,
e bendito seja o teu Nome para todo o sempre!
Que o céu e tuas criaturas todas
te bendigam para todo o sempre.
6
Tu criaste Adão
e, como ajuda e apoio,
criaste Eva, sua mulher,
e dos dois nasceu a raça humana.
Tu mesmo disseste:
‘Não é bom que o homem fique só.
Façamos para ele uma auxiliar
que lhe seja semelhante’.
7
Se eu me caso com minha prima,
não é para satisfazer minha paixão.
Eu me caso com reta intenção.
Por favor, tem piedade de mim e dela
e faze que juntos cheguemos à velhice».
8
E os dois disseram juntos: «Amém! Amém!»
9
Depois dormiram a noite inteira.” (Tobias 8,4-8)

88
Não tem direito a herança; nem fica com os bens do ma-
rido (é instituída uma exceção quando não houver um pa-
rente homem previsto na Lei: Nm 27,1-11, filhas de Salfaad);
→ Nos períodos mais antigos encontramos a poliginia –
Abrãao (esposa: Sara; concubinas: Agar e Cetura);
Posteriormente: poligamia – Jacó: duas esposas e duas
concubinas;
→ A mulher é vítima frequente de violência sexual:
Tamar é violentada por Amnon, seu meio irmão - 2Sm
13,14; Dina, filha de Jacó e Lia é violentada por Siquém - Gn
24,2. Pode-se imaginar como não seria muito pior a situa-
ção das escravas.
Em geral, o violentador tinha que pagar uma indeniza-
ção para o proprietário da violentada; caso fosse solteira,
além da indenização deveria se casar com ela sem direito
a repudiá-la.
→ É um mundo onde os homens têm direitos e as mu-
lheres deveres. O próprio adultério nesse contexto tem
significado diferente para homens e mulheres.
→ No tempo de Jesus a situação não parece ter melho-
rado muito. Não temos muitas informações. Não há nenhu-
ma condenação explícita da poligamia (Herodes tinha vá-
rias esposas). Parece que a monogamia havia se imposto
mais por restrição econômica que por jurídica.
As mulheres repudiadas ou viúvas frequentemente
caiam na miséria; como opção: servidão ou prostituição.

89
Não à toa Jesus se encontrará com frequência com mulhe-
res nessa situação e demonstrará uma imensa misericórdia
para com elas.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O AGIR E O ENSINAMENTO


DE JESUS
→ Jesus rompe com a tradição judaica (com os costu-
mes) em muitos pontos:
Não se casa; não se preocupa com descendência; não
assume seu papel de primogênito e chefe da família na au-
sência de José; sai de casa para viver uma vida de pregador
itinerante; não continua o trabalho da família - artesão (Je-
sus abandona seu “lugar social” – Mc 3,21-35).
→Jesus relativiza os laços familiares em função do Reino de
Deus; mas isto não relativiza ou desmerece o matrimônio e
a família. Na verdade, Jesus irá colocar este tipo de relacio-
namento em um novo patamar; abrindo a possibilidade de
outros modelos de vida (como o celibato pelo Reino);
[é preciso se lembrar de como era limitante o modelo de
família; Jesus mesmo nunca teria cumprido sua missão se
não tivesse rompido/relativizado com seus laços familiares
(Lc 2,41-52?)]
→ Jesus eleva a Lei a um novo patamar; fixa o manda-
mento do amor a Deus e ao próximo como o mais importante
e a partir dele deduz um modo novo de compreender toda
a lei e os profetas. Há na pregação de Jesus um movimento
da exterioridade do comportamento para a interioridade

90
das motivações; isto dá uma nova qualidade à vida moral e
religiosa e também maior liberdade frente à lei, mas é mais
exigente.
→ O mandamento do amor e a compreensão de Deus
como infinita bondade e misericórdia unidos à liberdade
frente a lei, que possibilitava a Jesus reinterpretá-la (pre-
servando o que tinha de verdadeiro e modificando-a em
seus aspectos caducos - Jesus leva a Lei a seu pleno cum-
primento, o que não significa observá-la cegamente até os
mínimos detalhes), possibilitava um relacionamento mais
“humanizado”, livre, com as mulheres e crianças, viúvas e
órfãos; Jesus não se preocupa em ser visto com prostitutas;
enfrenta a letra da lei pela mulher adúltera.
→ Tanto a fonte Q (Mt 5,32 = Lc 16,18) quanto o Evan-
gelho de Marcos (Mc 10,11) nos transmitem um logion de
Jesus que define o repúdio da esposa como adultério. [lem-
brete: o conceito judaico de adultério, não era o mesmo
para o homem e para a mulher; a relação sexual de uma
mulher casada com outro homem que não seu marido era
sempre adultério; a relação sexual do marido com outra
mulher que não sua esposa ou esposas, só era penalizado
quando feria o direito de outro homem].
As análises exegéticas nos levam a aceitar Lc 16,18 como
o que reproduz mais fielmente o logion, as palavras de
Jesus: “Quem repudia sua mulher e casa com outra, comete
adultério; quem casa com uma repudiada [por seu marido
- acréscimo de Lc; presente na Bíblia Pastoral, não na do Pe-
regrino], comete adultério”.

91
→Jesus parte do direito matrimonial judaico, patriarcal e
poligâmico. Somente o marido pode repudiar sua mulher
(a mulher somente indiretamente e em casos muito excep-
cionais). Mas Jesus declara ilegítimo o que o direito judaico
declarava legítimo: o repúdio da esposa e o novo casamen-
to, inclusive com uma repudiada.
A argumentação de Jesus parte de uma dupla afirmação:
o matrimônio cria entre o homem e a mulher uma unidade
que não pode ser supressa pela lei; o marido pode conver-
ter-se em adúltero com respeito à sua mulher, ou seja, a
vinculação anteriormente unilateral da mulher a seu esposo
passa a ser uma vinculação mútua. De certa forma Jesus
está estabelecendo uma igualdade de direitos, ao menos
sob esta questão.
• Jesus afirma o projeto original do Criador citando Gn
1,27; 2,24.
[Em Mt 19,1-12: fariseus querem por Jesus à prova; po-
de-se repudiar por qualquer motivo? (Eclo 25,26: “Se ela
não obedece às ordens que você lhe dá, separe-se dela”); ci-
tam Moisés, Jesus aceita o desafio de discutir a partir da
Torá; apresenta uma exceção: porneia (?);
Mc 10,1-12: afirma a possibilidade da mulher também
iniciar o divórcio]
→ O relato sacerdotal de Gn 1-2,4a [v.26-31] - do tempo
do exílio da Babilônia (entre 586-538 a.C) não se interessa
pelo aspecto interpessoal da relação entre os sexos; se con-
centra exclusivamente sobre a fecundidade, sinal da ben-

92
ção de Deus.
26
Então Deus disse: «Façamos o homem à nossa ima-
gem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar,
as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e to-
dos os répteis que rastejam sobre a terra». 27 E Deus criou o ho-
mem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou;
e os criou homem e mulher. 28 E Deus os abençoou e
lhes disse: «Sejam fecundos, multipliquem-se, en-
cham e submetam a terra; dominem os peixes do mar,
as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam so-
bre a terra». 29 E Deus disse: «Vejam! Eu entrego a vo-
cês todas as ervas que produzem semente e estão sobre
toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão se-
mente: tudo isso será alimento para vocês.
→ Neste “mundo” do Israel antigo é incrível encontrar
um relato fundante como o de Gn 2, provavelmente do séc.
X (relato javista). Construído com um linguajar mítico, colo-
ca a origem do homem antes da história e numa situação
paradisíaca. Toda a criação é boa. Será o mal uso da liberda-
de humana que irá subvertê-la.
“Linguajar mítico” não quer dizer falso, mentiroso ou fan-
tasioso. É um modo literário de expressar uma verdade na
qual se crê, próprio do mundo antigo.
É um relato etiológico; quer explicar o presente se re-
metendo ao passado. Para o judeu, o que é verdadeiro no
presente sempre o foi, ou seja, desde o momento inicial.
(O mundo antigo – olha para trás: mito; mundo moderno/
industrial e tecnológico, olha para frente: utopia).
Neste relato idealizado, reina a harmonia entre o homem

93
e a mulher, e destes com a natureza e com Deus. A mulher
é para o homem osso dos seus ossos e carne da sua carne (Gn
2,23); uma auxiliar a ele semelhante (Gn 2,18). E a grande
conclusão: “Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe e
se une à sua mulher, e eles dois se tornam uma só carne”
(Gn 2,24).
15
Javé Deus tomou o homem e o colocou no jar-
dim de Éden, para que o cultivasse e guardas-
se. 16 E Javé Deus ordenou ao homem: «Você pode co-
mer de todas as árvores do jardim. 17 Mas não pode co-
mer da árvore do conhecimento do bem e
do mal, porque no dia em que dela comer, com certe-
za você morrerá». 18 Javé Deus disse: «Não é bom que o ho-
mem esteja sozinho. Vou fazer para ele uma auxi-
liar que lhe seja semelhante». 19 Então Javé Deus for-
mou do solo todas as feras e todas as aves do céu. E
as apresentou ao homem para ver com que nome ele
as chamaria: cada ser vivo levaria o nome que o ho-
mem lhe desse. 20 O homem deu então nome a todos os ani-
mais, às aves do céu e a todas as feras. Mas o homem não en-
controu uma auxiliar que lhe fosse semelhante.
21
Então Javé Deus fez cair um torpor sobre o homem, e
ele dormiu. Tomou então uma costela do homem e no lu-
gar fez crescer carne. 22 Depois, da costela que tinha tira-
do do homem, Javé Deus modelou uma mulher, e apre-
sentou-a para o homem. 23 Então o homem exclamou:
«Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha car-
ne! Ela será chamada mulher, porque foi tirada do ho-
mem!» 24 Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, e
se une à sua mulher, e eles dois se tornam uma só carne.
25
Ora, o homem e sua mulher estavam nus, porém, não sen-
tiam vergonha.

94
Em Gn 2,18 se insinua que o homem está só – solidão – e
isto não é bom; os animais não preenchem essa solidão;
Digno de nota: Deus não cria a mulher para a fecundida-
de (como em Gn 1), mas para uma relação com o homem; é
um ser da mesma natureza, igual dignidade, mas que dife-
rente, pode completá-lo (“semelhante”).
A mulher resolve o problema da solidão do homem. O
matrimônio aparece assim como a expressão mais eleva-
da e mais direta desse complemento: comunhão total de
vida e dom de si. A mulher é criada durante um êxtase do
homem – “torpor místico”; criada da costela – indica a pro-
ximidade. É o próprio Deus quem apresenta a mulher para
o homem – como nas “cerimônias”; cortejo nupcial.
Ao ver a mulher o homem tem uma exclamação exultan-
te: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Ela
será chamada mulher, porque foi tirada do homem!” (a tra-
dução perde o tom poético; “terrosa” – “terroso”; a mulher
é o “tu” do homem, que dando nome a ela, dá nome a si
mesmo – toma “consciência de si; com a mulher, o homem
“nasce para si mesmo”). Juntos formarão “uma só carne” (ex-
pressa o homem todo a partir da dimensão corpórea);
[Quando o homem e a mulher formam uma só carne?;
quando geram um filho? Ver a aplicação feita por Paulo em
1Cor 6,16: “Ou não sabeis que quem se une a uma prostituta
se torna um corpo com ela? Pois é dito que formarão os dois
uma só carne”]
Nudez – harmonia (é uma afirmação teológica; indica a

95
harmonia; ausência de vergonha)
Como o debate era em torno da indissolubilidade – di-
vórcio ou não – quase não se ateve a este ponto: a harmonia
original; que talvez fosse a mais importante; será o pecado
que provocar todo tipo de desordem; portanto, quando fa-
lamos de projeto original de Deus para o matrimônio – im-
plica relações harmoniosas entre marido e mulher; Paulo,
permitindo em alguns casos o divórcio, afirma justamente
que “O Senhor nos chamou para vivermos em paz” – 1Cor
7,15.
• O pecado causa uma ruptura na harmonia paradisía-
ca, de onde o homem é expulso. É o drama do casal narra-
do em Gn 3. Há uma degradação da relação interpessoal que
adota a forma de concupiscência e dominação: Gn 3,16 –
mulher:
16
Javé Deus disse então para a mulher: «Vou fa-
zê-la sofrer muito em sua gravidez: entre do-
res, você dará à luz seus filhos; a paixão vai arras-
tar você para o marido, e ele a dominará».
Gn 3,17-19 – homem (AL 26):
17
Javé Deus disse para o homem: «Já que você deu ou-
vidos à sua mulher e comeu da árvore cujo fruto eu
lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra por
sua causa. Enquanto você viver, você dela se alimenta-
rá com fadiga. 18 A terra produzirá para você espinhos e er-
vas daninhas, e você comerá a erva dos campos. 19 Você co-
merá seu pão com o suor do seu rosto, até que volte para
a terra, pois dela foi tirado. Você é pó, e ao pó voltará».

96
Entre os filhos: Gn 4,8 - Caim, agricultor, mata Abel, pas-
tor [até hoje a disputa pela terra faz vítimas; a discussão do
momento: agropecuária no bioma amazônico]. (AL 20)
Interessante aqui é notar que a assimetria na relação
entre homem e mulher é apresentada como conseqüên-
cia do pecado e não faz parte originalmente do projeto
de Deus (AL 19)
→ A poliginia ou poligamia tem início biblicamente
justamente com a descendência de Caim, quando Lamec
toma para si duas mulheres. Este é também um desvio em
relação ao relato das origens?
Os exegetas não são unânimes em afirmar que os relatos
de Gn 1 e 2 impliquem a monogamia.
O certo é que Deus, quando pretende reiniciar seu pro-
jeto criativo, com o dilúvio, irá conservar Noé e seus filhos
com uma única esposa (Gn 6,18; 7,13). E um casal de cada
espécie animal. Mas não se pode esperar mais do que es-
tes textos podem nos dar. Serão os profetas quem apor-
tarão uma reflexão mais elaborada.
→ O profeta Oséias [atividade entre 752 e 724 a.C] é
quem começa a falar da relação entre Deus e o seu povo
como uma aliança esponsal, a partir de sua própria expe-
riência matrimonial (Os 1 e 3). Oséias não pretendia tomar
o casamento em geral como símbolo da Aliança, mas apre-
senta o seu como um símbolo expressivo. No entanto, o
fazendo, lançou uma semente que faria crescer a compre-
ensão do sentido do matrimônio como tal no culto de Javé.

97
Vai encontrar seu auge em Isaías. Depois dele não en-
contraremos mais avanços no AT nesse sentido. Ver, prin-
cipalmente, Is 54; 62,4-5 sobre a aliança entre Javé e Sião:
“ 1 Por causa de Sião não ficarei em silêncio, por causa de Je-
rusalém não ficarei quieto,
enquanto a justiça não surgir para ela como aurora e en-
quanto sua salvação não brilhar como lâmpada.
As nações verão a sua justiça e todos os reis ve-
2

rão a sua glória. Você então será chamada com


o nome novo que a boca de Javé indicou.
Você será uma coroa magnífica na mão de Javé, um diade-
3

ma real na palma do seu Deus. 4 Ninguém a chamará Aban-


donada, e sua terra já não terá mais o nome de Desolada.
Pelo contrário, você será chamada Minha Delícia e sua ter-
ra terá por nome a Desposada, porque Javé vai amar você, e
sua terra terá um esposo.
5
Como o jovem se casa com uma jovem, o seu cria-
dor casará com você; como o esposo que se alegra com
a esposa, seu Deus se alegrará com você.” (Is 62,1-5)
Jesus deveria conhecer bem esse texto, porque na Sina-
goga, quando irá ler, será justamente o capítulo anterior, o
61.
“Ao fazer com que o casal ideal, formado por Deus-esposo
e a Comundade-esposa, brilhe assim diante dos olhares
dos crentes (Is 54; 61,1-6), é indubitável que estes textos,
grávidos de esperança, deveriam exercer uma influência
indireta sobre o pensamento religioso, fazendo com que
esse integrasse uma representação que os relatos da cria-
ção situavam fora do tempo histórico. Situada entre um
paraíso primitivo definitivamente perdido e um paraíso

98
recuperado que torna realidade nova ‘o começo’, a condi-
ção humana tem de ser entendida em uma perspectiva
dinâmica da que não pode evadir-se já nenhuma realida-
de. Poderia ficar à margem dela o matrimônio?” (GRELOT
1970, p.206).
• No AT, sobretudo com os profetas, fala-se do amor de
Deus pelo seu povo como aliança de amor esponsal que
não desfalece; vai crescendo a expectativa em torno da
ação de Deus através de um enviado, o “messias” [ungido;
“Cristo”], que resgataria o povo da situação subjugada em
que estava; no NT se apresenta Cristo como o Esposo que
chega para celebrar as suas núpcias com a humanidade
em comunhão com todos os que esperam e anseiam por
sua vinda.
As imagens simbólicas das núpcias de Cristo - cordeiro
com a humanidade são freqüentes:
Mt 22,2-14 - parábola do rei que prepara o banquete es-
ponsal do filho;
Mt 25,1-13 - as virgens insensatas e as prudentes;
Jo 3,29 - Cristo, o noivo esperado;
Mt 9,15; Mc 2,19-20 - o noivo presente, motivo de festa
[ainda: Lc 14,8.16-24; 2Cor 11,2-3];
o Apocalipse contempla a realização escatológica como
núpcias do cordeiro com seus escolhidos: Ap 19,7-9; 21,2.9;
22,17.
Através da imagem das núpcias se expressa a mensa-
gem central dos evangelhos: a chegada daquele em quem

99
se cumprem as promessas divinas, que vem selar com seu
próprio sangue a aliança de Deus com seu povo, que traz
a paz e a reconciliação para todos os povos, que convoca
a todos para o banquete celestial: Hb 6,13-20; 7,20-28; 8,6-
9,28; Rm 4,25; 5,18-21; 1Pd 2,4-10; Ef 2.
“No Novo Testamento o matrimonio é usado primeira-
mente como meio de revelar a glorificação escatológica e
celeste na qual os cristãos, juntamente com Cristo, deve-
rão celebrar as eternas núpcias com Deus. Tão importante
é esta idéia que, além das parábolas que retratam o reino
de Deus como uma festa nupcial, o termo grego gamos
(casamento) não é usado nos livros do Novo Testamen-
to com o sentido primário de casamento entre dois seres
humanos, com duas exceções apenas [Hb 13,4; Jo 2,1-2],
mas antes denota o casamento escatológico de Cristo
com seus remidos (...) [referindo-se não apenas a celibatá-
rios] mas todos os batizados sem exceção” (SCHILLEBEE-
CKX 1969, p.110). Essa questão é particularmente signifi-
cativa em João (2,1-11; 19,34-37).
→ Este simbolismo Deus – povo; Marido – mulher será
assumido pelo NT: Jesus: noivo – Igreja: noiva; Jesus/Igre-
ja – Esposo/esposa; o Reino de Deus será frequentemente
comparado a um banquete nupcial. O auge dessa analogia
será Ef 5,22-32. Determinante para a definição da sacra-
mentalidade do matrimônio. (AL 63; 72; 73; 122)
22*
Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como
ao Senhor. 23 De fato, o marido é a cabeça da sua es-
posa, assim como Cristo, salvador do Corpo, é a cabe-
ça da Igreja. 24 E assim como a Igreja está submissa a Cris-
to, assim também as mulheres sejam submissas em tudo a

100
seus maridos.
25
Maridos, amem suas mulheres, como Cristo amou a Igre-
ja e se entregou por ela; 26 assim, ele a purificou com
o banho de água e a santificou pela Palavra, 27 para apre-
sentar a si mesmo uma Igreja gloriosa, sem man-
cha nem ruga ou qualquer outro
defeito, mas santa e imaculada. 28 Portanto, os mari-
dos devem amar suas mulheres como a seus próprios cor-
pos. Quem ama sua mulher, está amando a si mes-
mo. 29 Ninguém odeia a sua própria carne; pelo contrário,
a nutre e dela cuida, como Cristo faz com a igreja, 30 por-
que somos membros do corpo dele. 31 Por isso, o ho-
mem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e
os dois serão uma só carne. 32 Esse mistério é grande: eu
me refiro a Cristo e à Igreja. 33 Portanto, cada um de vo-
cês ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher res-
peite o seu marido.
• Podemos, depois desse percurso, voltar a Jesus que re-
cupera o matrimônio no projeto originário de Deus. Preci-
saríamos fazer uma análise detalhada de todos os textos,
algo impossível para o momento, mas precisamos lembrar
ao menos como Mt 19 o trabalhou. É um contexto de dis-
puta com os fariseus; perguntam se se pode repudiar a mu-
lher por qualquer motivo; no final, ainda se afirma uma pos-
sibilidade: no caso de pornéia (v.9: termo até hoje debatido,
já que é muito amplo: fornicação, adultério, prostituição,
concubinato; um matrimônio inválido). Questão: o repúdio
seria tolerável em algum caso?
• Duas questões para continuar a reflexão:

101
→ Quando Deus une indissoluvelmente duas pessoas?
Quando se tornam uma só carne?
O matrimônio era algo familiar, portanto, talvez pudés-
semos responder que seja o “matrimônio natural” – isto vai
ser importante para as posições atuais da Igreja, por exem-
plo, frente ao matrimônio civil; “uma só carne” – quando ti-
verem uma relação sexual? – ver Paulo: 1Cor 6,16: “quem
se une a uma prostituta se torna uma só carne com ela”;
quando gerarem um filho?
→ Jesus pretendia com sua afirmação contra o repúdio/
divórcio estabelecer uma lei moral absoluta?
Duas respostas têm sido dadas a esta questão: sim e não;
Sim: a história da Igreja cristã mostra que ela entendeu
a afirmação de Jesus como uma norma moral absoluta a
ser seguida, sem necessidade de interpretação e aplicação
caso a caso;
Não: o modo como Jesus se expressa faz parte de seu
recurso retórico; Ele usa afirmações fortes e extremas, que
nos chocam e nos fazem refletir, mas buscamos entendê-
-las para aplicar em nossa vida: ler o contexto do logion de
Mt 5,27-32:
Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não cometa adulté-
27 «

rio’. 28 Eu, porém, lhes digo: todo aquele que olha para
uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adulté-
rio com ela no coração.
29
Se o olho direito leva você a pecar, arranque-o e jogue-
-o fora! É melhor perder um membro, do que o seu cor-

102
po todo ser jogado no inferno.
30
Se a mão direita leva você a pecar, corte-a e jogue-
-a fora! É melhor perder um membro do que o seu cor-
po todo ir para o inferno.
31
Também foi dito: ‘Quem se divorciar de sua mu-
lher, lhe dê uma certidão de divórcio’. 32 Eu, porém,
lhes digo: todo aquele que se divorcia de sua mulher,
a não ser por causa de fornicação, faz com que ela se tor-
ne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada, co-
mete adultério.»
E ainda: Mc 10,24-25; Mt 19,23-24:
23
Então Jesus disse aos discípulos: «Eu garan-
to a vocês: um rico dificilmente entrará no Rei-
no do Céu. 24 E digo ainda: é mais fácil um ca-
melo entrar pelo buraco de uma agulha,
do que um rico entrar no Reino de Deus.»

1COR 7: QUESTÕES PRÁTICAS EM RELAÇÃO AO MA-


TRIMÔNIO.
Devemos nos lembrar que Paulo antes de sua conversão
fazia parte da escola de rabinos de Jerusalém [estava longe
de sua família - Tarso]; tem, portanto, uma grande forma-
ção, principalmente sobre a Lei; após sua conversão tor-
na-se celibatário, que Paulo interpreta como um carisma e
não como obrigação: 1Cor 7,7 [não temos informações so-
bre sua situação anterior, mas como rabino e em sua idade
dificilmente não seria casado; o celibato de Paulo deve ser
o de quem deixou a esposa ou foi por ela deixado após a
conversão, como em 1Cor 7,15]; os conselhos que Paulo dá

103
sobre o matrimônio são respostas a problemas concretos
que aparecem nas comunidades [precisamos distinguir o
que é uma doutrina consolidada e orientação geral e o que
está posto como resposta a um problema concreto e cir-
cunstancial]; suas cartas antecedem aos Evangelhos escri-
tos. Podemos afirmar que estas orientações são resultado
de uma combinação de fatores: Paulo tem presente sua
formação rabínica; a interpreta à luz do Evangelho para
situações concretas fora da Palestina. Em outras palavras,
fundamenta-se na moral judaica de sua época tendo pre-
sente que a perfeição está no amor, vivendo em um am-
biente culturalmente diferente.
Lembrando: estamos em um terreno de missão; não ju-
daico; com expectativa escatológica iminente: Jesus havia
prometido voltar antes que tivessem terminado de percor-
rer as vilas da Galileia – Mt 10,23:
23
Quando perseguirem vocês numa cidade, fu-
jam para outra. Eu garanto que vocês não acaba-
rão de percorrer as cidades de Israel, antes que venha o Fi-
lho do Homem.
Paulo afirma em 1Ts 4,15:
Eis o que declaramos a vocês, baseando-nos na pala-
vra do Senhor: nós, que ainda estaremos vivos por oca-
sião da vinda do Senhor, não teremos nenhuma vanta-
gem sobre aqueles que já tiverem morrido.
Essa questão somente será resolvida a contento com
2Pd 3: para Deus, mil anos é como um dia e um dia como
mil anos”.

104
1Cor 7,1-4: contra quem desvalorizava o casamento:
para evitar imoralidade, cada homem tenha sua mulher e
vice-versa. Um é dono do corpo do outro. Interessante a
igualdade.
1Cor 7,5-6: privação de sexo somente temporária e de
comum acordo, para não serem tentados. E para se dedica-
rem à oração.
Dionísio de Alexandria (sec. III) e muitos outros: mulher
menstruada não podia comungar; Agostinho (354-430):
abster-se de relação durante a quaresma; Jerônimo (c.347-
420): abster-se de relação alguns dias antes de comungar;
Cesário de Arles (470-543): o casal não deveria pisar na Igre-
ja por 30 dias depois de ter relação; Os livros penitenciais
em geral pedem abstenção de 3 a 8 dias para comungar (cf.
JUNGMANN 2008, p.805 n.23).
1Cor 7,6-7: diz isto como concessão, não como obriga-
ção. Seria melhor que todos fossem como ele, mas isso é
um carisma (dom, não esforço pessoal);
1Cor 7,8: aos solteiros e viúvos, ficarem só, como ele. Mas
os que não puderem se conter, é melhor casar-se.
Paulo diz exatamente o contrário do Gn – é melhor estar
só;
1Cor 7,10: casados não se separem; se o fizerem, não se
casem novamente;
1Cor 7,12ss: se um dos dois se converte – não se separe,
se o não convertido assim consentir. Senão se separe (mas

105
tudo indica que não deve se casar novamente).
1Cor 7,17ss: não se preocupar em mudar de situação;
cada um pode ser fiel como o Senhor o chamou; mas os
escravos, se tiverem oportunidade, não deixem escapar a
liberdade;
1Cor 7,25ss: por causa da “iminente tribulação” o melhor
é cada um ficar como está, não se casando; Virgindade.
1Cor 7,36-40:
36
Se alguém, transbordando de paixão, acha que não con-
seguirá respeitar a noiva, e que as coisas devem seguir o seu cur-
so, faça o que quiser. Não peca; que se case. 37 Ao contrário,
se alguém, por firme convicção, sem constrangimento e
no pleno uso de sua vontade, resolve respeitar a sua noi-
va, está agindo bem. 38 Portanto, quem se casa com sua noi-
va faz bem; e quem não se casa, procede melhor ainda.
39
A esposa está ligada ao marido durante todo o tem-
po em que ele viver. Se o marido morrer, ela ficará livre para ca-
sar-se com quem quiser; mas, apenas no Senhor. 40 A
meu ver, porém, ela será mais feliz se ficar como está. Pen-
so que eu também possuo o Espírito de Deus.
A Igreja sempre afirmou a sua estima pelo matrimônio,
mas também sempre deixou claro a superioridade da vir-
gindade e do celibato.
A valorização da perpétua virgindade frente ao matrimô-
nio, a encontramos no Concílio de Trento em sua sessão 24,
de 11 de novembro de 1563, can.10, que afirma:
“Se alguém disser que o estado conjugal deve ser preferido
ao estado de virgindade ou celibato, e que não é melhor e

106
mais valioso permanecer na virgindade ou celibato do que
unir-se em matrimônio [cf. Mt 19,11s; 1Cor 7,25s.38.40]: seja
anátema” (DH 1810).
João Paulo II, Familiaris Consortio, n.16:
“É por isso que a Igreja, durante toda a sua história, defendeu sempre a
superioridade deste carisma no confronto com o matrimônio, em razão
do laço singular que ele tem com o Reino de Deus”.

SEXUALIDADE E MATRIMÔNIO NOS SANTOS PADRES


→ Carta a Diogneto (V, 6-8; 1995 p.23; provavelmente de
meados do séc. II).
Mostra o contraste entre a prática do matrimônio cristão
e a prática de muitos pagãos. Afirma-se nesta passagem
que os cristãos
“casam-se como todo mundo, geram filhos, mas não se
livram dos recém-nascidos, têm em comum a mesa, não
porém o leito. Vivem na carne, mas não segundo a carne”.
→ Atenágoras de Atenas (séc. II), Petição em favor dos
cristãos (n.33; 1995 p.161; aproximadamente do ano 177).
Dirigida ao imperador Marco Aurélio e a seu filho Cômo-
do; pretende rebater três acusações que fazem aos cristãos:
ateísmo; refeições bacanais; incestos.
“Como temos esperança na vida eterna, desprezamos as
coisas da vida presente e até os prazeres da alma, tendo
cada um de nós por mulher aquela que tomou conforme as
leis estabelecidas por nós e com a finalidade de procriar fi-
lhos. Assim como o lavrador, jogada a semente na terra, es-
pera a colheita e não continua semeando, do mesmo modo,

107
para nós, a medida do desejo é a procriação dos filhos. E até
é fácil encontrar muitos dentre nós, homens e mulheres, que
chegaram celibatários à velhice, com a esperança de um re-
lacionamento mais íntimo com Deus. Se o viver na virginda-
de e castração aproxima mais de Deus e só o pensamento
e o desejo separam, se fugimos dos pensamentos, quanto
mais não recusaremos as obras?”
→ Clemente de Alexandria (morto antes de 215), O Peda-
gogo (95, 2-3; CLEMENTE 1988, p.230). Introdução aos pro-
blemas com que se defronta o neoconvertido, Clemente de
Alexandria examina, no primeiro livro, os princípios gerais
da conduta cristã justa. Nos outros dois livros, trata de pro-
blemas concretos da vida cristã, entre os quais justamente
os ligados ao matrimônio:
“Mas as núpcias sejam aceitas e regulamentadas. De fato,
o Senhor quer que a humanidade se multiplique (Gn 1,28),
mas não diz ‘vivei na libertinagem’ nem deseja que nós nos
entreguemos aos prazeres como se estivéssemos nascidos
para o acasalamento (…). Até os animais, desprovidos de
razão, têm um tempo próprio para a inseminação. Copu-
lar por (outras) razões que não a procriação de filhos é
violar a natureza. É bom que, aprendendo na escola dessa
mestra (a natureza), respeitemos as sábias lições da sua pe-
dagogia em relação ao tempo, ou seja, aquilo que ela fixou
a respeito da velhice e da idade das crianças (a estas não
possibilitam que se casem, aos velhos não quer mais que se
casem); portanto, (a natureza) não autoriza as núpcias em
qualquer idade. O matrimônio é desejo da procriação,
não uma expulsão desordenada de sêmen, o que é contrário
à lei da razão”.
→ Nos primeiros séculos da era cristã dominavam fi-

108
losofias que pregavam a continência e menosprezavam o
matrimônio. Ex: o Estoicismo. Seitas: encratismo; gnosticis-
mo; maniqueísmo.
→ Joviniano (monge; não temos outras informações;
séc. IV); o conhecemos indiretamente pelas refutações que
dirigiram contra ele.
Jerônimo (aprox. 347-419/420) o apresenta ensinando
“que as virgens, viúvas e mulheres casadas, uma vez lavadas
em Cristo (batizadas), têm méritos iguais, se não diferem nas
outras coisas” (Contra Joviniano 1,3; PL 23.224).
Com isso ele abriu a discussão sobre a questão do méri-
to e, depois, sobre a virgindade perpétua de Maria. Acen-
tuava, na realidade, o significado do batismo, desacreditan-
do as formas exasperadas de ascese, do jejum, colocando
no mesmo plano as virgens, as viúvas e as casadas. A men-
sagem de Joviniano fez muitos discípulos nos ambientes
romanos e influenciou algumas virgens consagradas. Com-
preende-se a imediata reação dos defensores do ascetismo
mais rigoroso, como são Jerônimo.
→ Agostinho (354-430): O matrimônio e a concupiscência;
Dos bens do matrimônio.
Agostinho insiste sobre o valor social da união entre ho-
mem e mulher e sintetiza a bondade do matrimônio ou os
bens em três itens: o bem da prole, o bem da fidelidade
recíproca e o bem da indissolubilidade, rebatendo, ponto
por ponto, as afirmações de Joviniano.
Para Agostinho, como para a maioria dos padres da Igre-

109
ja, o fim do matrimônio é antes de tudo a procriação da
prole. Concebendo o ser humano profundamente lesado
pelo pecado original, Agostinho põe a sexualidade na
esfera animal e não lhe atribui nenhuma característica
especificamente humana. Isso se demonstra, segundo
ele, na excitação autônoma dos órgãos sexuais, na impos-
sibilidade de se dominar com a vontade o orgasmo e na
intensa emoção libidinosa que levam a uma diminuição e
subjugação do espírito à sexualidade, de tal forma que a
procriação não se dê sem um certo impulso ao apetite ani-
malesco. Equiparando pecado original, concupiscência
e emoção libidinosa, Agostinho conclui e define a união
conjugal boa em teoria, mas considera, em concreto,
cada contato sexual, pelo menos materialmente, mau.
Assim, pode-se dizer literalmente que cada filho nasce
“no pecado” dos pais.
Mas, devido à condescendência e para garantir a des-
cendência querida por Deus, trata-se de um pecado per-
mitido ou tolerado, pelo qual a consumação do matri-
mônio, subjetivamente voltada para a procriação dos
filhos, deve ser moralmente justificada. O mesmo se
diga do cumprimento dos deveres conjugais, porque pelo
matrimônio se transferiu ao outro cônjuge o direito sobre o
próprio corpo. O que hoje se recrimina a Agostinho é que,
para ele, como para a maioria absoluta dos Santos Padres,
o ato sexual, mesmo no matrimônio, só se justifica em vista
da procriação, como o mostra com clareza o texto acima
citado de Atenágoras.

110
Agostinho, Dos bens do matrimônio (obra escrita por
volta de 401; AGOSTINHO 2014). Agostinho utilizará como
fundamento das suas afirmações 1Cor 7.
Cap.VI: “O ato conjugal em ordem à geração não é peca-
do; para acalmar a concupiscência em virtude da fidelidade
conjugal e sempre com o cônjuge, não passa de pecado ve-
nial. A fornicação e o adultério sempre são pecado mortal.
Em conseqüência, a continência absoluta de todo ato
carnal é mais excelente que o concúbito [ato sexual] ma-
trimonial feito com a intenção de ter filhos.”
Cap. IX: “De tudo isto devemos deduzir que nos primeiros
tempos do gênero humano, e principalmente para a propa-
gação do povo de Deus, pelo qual fosse anunciado e do qual
havia de nascer o Príncipe e Salvador de todos os povos: os
santos Patriarcas deveram usar necessariamente deste bem
das núpcias, desejável, não por si mesmo, mas por este outro
motivo. Ora, como na atualidade e no mundo inteiro abun-
dam as amizades espirituais para constituir uma sociedade
prazerosa, santa e sincera, deve-se aconselhar inclusive
àqueles que querem casar-se com o único intuito de
gerar filhos, que prefiram o bem da continência, que é
mais excelente.”
Cap.X: “Sei que alguns murmuram dizendo: se todos os ho-
mens quisessem abster-se de todo comércio carnal, como
subsistiria o gênero humano? Oxalá todos quisessem isto,
inspirados “pela caridade de um coração puro, pela consci-
ência reta, e por uma fé não fingida” (1Tm 1,5), porque mais
cedo se completaria a Cidade de Deus e se aceleraria o fim
dos tempos. Pois que outra coisa parece inculcar o Apóstolo,
quando, tratando deste ponto, escreve: “Quisera que todos
fossem como eu”?, e também em outro lugar: ‘Digo-vos, ir-
mãos, que o tempo é curto; o que importa é que os que têm
mulher vivam como se a não tivesse...’ (1Cor 7, 32-34)”.
E a conclusão do
Cap.XI: “O concúbito é necessário para a procriação, e só

111
neste caso é verdadeiramente nupcial. Quando ultrapassa
esta finalidade, não é um ato racional, é libidinoso.”

OS BENS DO MATRIMÔNIO:
Cap.XXIV,32: “Entre todos os povos e entre todos os homens
sempre foram considerados como bem do matrimônio a
procriação e a castidade conjugal, e no povo de Deus a
santidade do sacramento, pela qual é nefando que a mu-
lher separada do marido se case com outro, durante a vida
do marido, mesmo com o libelo de repúdio nem sequer por
motivo da procriação, essencial ao matrimônio. Nem pela
falta de prole se dissolve o vínculo conjugal, senão unica-
mente pela morte do cônjuge. (...)
Que o matrimônio visa à procriação o declara o Após-
tolo com estas palavras: “Quero que as viúvas mais jovens
se casem”; e como se alguém lhe perguntasse, para quê?,
acrescenta: “para que criem filhos e seja mães de família”
(1Tm 5,14). Referindo-se à castidade conjugal disse: “A mu-
lher não tem poder sobre o seu corpo, mas sim o marido, e
igualmente o marido não tem poder sobre o seu corpo, mas
sim a mulher”. E sobre a santidade do sacramento continua:
“A mulher não se separe do seu marido; se ela se separa, per-
maneça inupta ou reconcilie-se com o marido; e o marido
não repudie sua mulher” (1Cor 7,10-11).
Os três bens do matrimônio, que o tornam legal e san-
to, são: a prole, a fidelidade e o sacramento. Nos tempos
atuais já se considera mais útil e mais santo não procurar
a prole carnal, abstendo-se de todo contato desta espé-
cie, para unir-se espiritualmente a um único esposo, Jesus
Cristo; com tal que se sirvam desta abstenção e imunidade
como está escrito, para pensar nas coisas do Senhor; e de
como lhe agradar mais, isto é: que se observe sempre a con-

112
tinência, sem que se menoscabe a obediência.”
Por outro lado, Agostinho vivera em sua própria casa
uma situação de infidelidade por parte de seu pai, confor-
me narra nas Confissões.
Agostinho, sobre a submissão de sua mãe Mônica a seu
pai: Confissões IX, 9,19:
“Desse modo, educada no pudor e na sobriedade, e submis-
sa por ti a seus pais, (…) quando chegou à idade de casar-se
foi dada a um marido, a quem serviu como senhor, (…) Su-
portou infidelidades conjugais, sem jamais hostilizar ou de-
monstrar ressentimento contra o marido por isso. Esperava
que tua misericórdia descesse sobre ele, para que tivesse fé
em ti e se tornasse casto. (…) Minha mãe havia aprendido a
não o contrariar com atos ou palavras, quando o via irado.
(…) Muitas senhoras, embora casadas com homens mais
mansos, traziam sinais de pancadas que lhes desfiguravam
o rosto e, nas conversas entre amigas, deploravam o com-
portamento dos maridos. Minha mãe, pelo contrário, ain-
da que com ar de brincadeira, lhes reprovava as conversas,
lembrando-lhes que o contrato lido no casamento devia
ser considerado como o documento da própria submissão,
não tendo elas condição de assumirem atitudes de soberba
contra seus senhores. Conhecendo o tipo de marido colérico
que minha mãe suportava, muito se admiravam por nunca
se ouvir dizer ou se revelar, por algum indício, que Patrício
tivesse batido na mulher, nem que algum dia tivessem bri-
gado em casa. As amigas perguntavam-lhe confidencial-
mente a razão disso, e ela explicava-lhes o comportamento
que acabo de descrever. Algumas então adotavam o mes-
mo sistema e congratulavam-se por havê-lo experimenta-
do. Aquelas que não o observavam continuavam a sofrer
violências.”

113
O MAGISTÉRIO DA IGREJA
→ AL inicia sua apresentação do Magistério a partir do
Concílio Vaticano II, particularmente da GS. Como nós esta-
mos fazendo um estudo, precisamos ampliar nosso percur-
so histórico. O passado nos ajuda a compreender o presen-
te e a projetar o futuro.
O modo de ser da Igreja de hoje é fruto de decisões e
respostas a problemas que foram sendo enfrentados na
história (como vimos em 1Cor 7); por isso, conhecer a his-
tória nos ajuda a compreender e a estabelecer um juízo
adequado sobre os costumes, normas, etc. Nós temos uma
tendência – ingênua – de pensar que tudo sempre foi
como é hoje; ao invés, muito é fruto de decisões históri-
cas. É importante tomar consciência do que é fundamental
e perene e do que pode ser modificado.
→ Apresentando o Magistério, embora mais demorada-
mente, já iremos tomando conhecimento dos temas dos ca-
pítulos de 4 a 7 de AL.
→ O modo de ser da Igreja atual (organização eclesiásti-
ca; unidade/unificação; vida litúrgica e sacramental) é fruto
dos últimos Concílios, sobretudo de Trento (1545-1563), O
Concílio Vaticano II (1962-1965) atualizou, mas não modifi-
cou substancialmente sua estrutura.
O mundo era muito mais plural e a Igreja também: nós
estamos na era da globalização, nos esquecemos de como
era. Por exemplo: dois padres, na mesma Igreja e no mesmo
dia, celebravam missas muito diferentes. Será uma das recla-

114
mações feitas no Concílio de Trento.
→ Em relação especificamente ao matrimônio e à famí-
lia:
O que faz a união de duas pessoas casamento na or-
dem natural? (contrato – cópula?);
O que faz o casamento ser um sacramento? (identida-
de ou não entre matrimônio e sacramento; ou seja, o que
torna um matrimônio natural sacramento é algo que lhe é
acrescentado, que “vem” de fora?; ou é o próprio consenti-
mento mas entre dois batizados e desde a perspectiva da
fé?)
Temos que nos perguntar: quando existe um casamen-
to? Ou seja, o que faz com que duas pessoas se tornem
um casal/ marido e mulher/ matrimônio? (por exemplo:
o “concubinato” não é considerado matrimônio – patriar-
cas: esposas e concubinas; Agostinho).
E quando este matrimônio é sacramento? [esta res-
posta vai depender da compreensão de “sacramento”, o
que foi se aprimorando na história]
Quando se fala em casamento, devemos nos lembrar
de que vai muito além da relação entre os nubentes ou da
família com os filhos; principalmente no mundo patriarcal,
pré-moderno, onde todos vivem e trabalham juntos, tem
o problema da divisão dos bens e da herança; dos filhos
de vários matrimônios ou de fora do matrimonio. É interes-
sante: o contrato matrimonial irá evoluir na história muito
ligado à evolução do contrato imobiliário. [até hoje muitas

115
pessoas entram num cartório de registro civil para se casar
ou quando compram ou vendem uma casa]
O direito romano exigia para o matrimônio apenas o
contrato (Ulpiano, jurista romano). Como vimos, para os
cristãos o que justificava o casamento e o ato conjugal era
a procriação – nos séculos de XI a XIII haverá uma intensa
disputa entre a teoria do consenso (ou seja, o aspecto con-
tratual ou o consentimento) e da cópula - a tendência será
unir estas duas exigências.
CDC – Cân. 1061 §1: O matrimônio válido entre os batiza-
dos chama-se só ratificado, se não foi consumado; ratificado
e consumado se os cônjuges realizaram entre si, de modo hu-
mano, o ato conjugal apto por si para a geração da prole, ao
qual por sua própria natureza se ordena o matrimônio, e pelo
qual os cônjuges se tornam uma só carne.
Nós nos acostumamos a dizer que “casou está casado”;
“uma vez casado, casado para sempre”; que a Igreja não
aceita a separação; “não anula os casamentos”, e assim por
diante... tudo isso é verdadeiro, mas insuficiente;
Nem todos os casamentos são tidos como sacramentos
(só no civil, por exemplo);
Nem todos os casamentos mesmo celebrados são váli-
dos; existem impedimentos (isso não é novidade, já o Le-
vítico traz uma lista: Lv 18 e 20: principalmente quanto ao
grau de parentesco).
Exigem uma verificação; existe uma “justiça eclesiástica”,
Tribunais Eclesiásticos que analisam e dão um veredicto;

116
Mas esta estrutura sempre foi muito precária, sobretudo
no terceiro mundo, de difícil acesso e caro (pela burocracia);
O papa Francisco quis mudar isso, “desburocratizan-
do” – por ex. exigindo uma sentença única; simplifican-
do os tribunais e os processos, como o processo breve;
dando mais autonomia para os bispos; é preciso inves-
tir numa Pastoral Judiciária.
AL 244 [faz parte do capítulo VI, Algumas perspectivas
pastorais]
“Além disso, um grande número de Padres «sublinhou a ne-
cessidade de tornar mais acessíveis, ágeis e possivelmente
gratuitos os procedimentos para o reconhecimento dos ca-
sos de nulidade». A lentidão dos processos irrita e cansa as
pessoas. Os meus dois documentos recentes sobre tal ma-
téria levaram a uma simplificação dos procedimentos para
uma eventual declaração de nulidade matrimonial. Através
deles, quis também «evidenciar que o próprio bispo na sua
Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por isso
mesmo juiz no meio dos fiéis a ele confiados». Por isso, «a
aplicação destes documentos é uma grande responsabilida-
de para os Ordinários diocesanos, chamados eles próprios a
julgar algumas causas e, de qualquer modo, assegurar um
acesso mais fácil dos fiéis à justiça. Isto implica a preparação
de pessoal suficiente, composto por clérigos e leigos, que se
dedique de modo prioritário a este serviço eclesial. Por con-
seguinte, será necessário colocar à disposição das pessoas
separadas ou dos casais em crise um serviço de informação,
aconselhamento e mediação, ligado à pastoral familiar, que
possa também acolher as pessoas tendo em vista a investi-
gação preliminar do processo matrimonial (cf. Mitis Iudex,
arts. 2-3)»”

117
• No mundo bíblico e nos primeiros séculos da Igreja o
matrimônio, embora altamente valorizado, é uma ques-
tão entre famílias. Não envolve a Igreja como tal. Embora a
Igreja se interesse por ele. O testemunho de Inácio de An-
tioquia pode ser valioso:
Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo (5,1-2; 1995 p.123).
Inácio é contemporâneo dos últimos escritos do NT e se-
gue os conselhos de Paulo em 1Cor 7 (morto por volta de
110); Policarpo era bispo de Esmirna.
“Foge das profissões desonestas. Além disso, faze homilia
contra elas. Dize às minhas irmãs que amem o Senhor e se
contentem com seus maridos física e espiritualmente. Reco-
menda também aos meus irmãos, em nome de Jesus Cristo,
que amem suas esposas, como o Senhor ama a Igreja. Se al-
guém pode permanecer na castidade em honra da carne do
Senhor, que permaneça na humildade. Se ele se gloria disso,
está perdido, e considerando-se mais do que o bispo, está
corrompido. Convém que os homens e as mulheres que
se casam, contratem sua união com o parecer do bispo,
a fim de que seu matrimônio seja feito segundo o Se-
nhor e não segundo a concupiscência. Que tudo seja feito
para a honra de Deus.” (5,1-2)
Papa Sirício (384-399) – em uma carta menciona uma
“bênção nupcial”;
Santo Ambrósio (c.340-397) – escreve sobre uma “Bên-
ção por parte do sacerdote e da imposição do véu à esposa;
A celebração do matrimônio se torna obrigatória na Igre-
ja de Roma por volta do século V ou VI, mas apenas para os
clérigos; para a validade do matrimônio basta o recípro-

118
co consenso dos esposos.
Nicolau I, Resposta aos Búlgaros 13/11/866 (DH 643):
[quando o príncipe Bogóris e por isso, toda Bulgária se
converte ao cristianismo, questiona o papa de como proce-
der sobre os matrimônios; a resposta indica a centralidade
do consentimento; a citação, na verdade, é de um pseu-
do-João Crisóstomo]
“Cap. 3. … Segundo as leis seja suficiente o consentimen-
to daqueles de cuja união se trata; se faltar às núpcias só
esse consentimento, todo o resto, mesmo realizado o coito,
será inútil, como atesta o grande doutor João Crisóstomo,
que diz: “O que faz o matrimônio não é o coito, mas a vonta-
de <= o consentimento>”.
Para entender o que é o consentimento, ou seja, “a en-
trega mútua de um homem e uma mulher para constituir o
matrimônio”; podemos recorrer ao CDC:
CDC - Cân. 1057:
§1. É o consentimento das partes legitimamente manifesta-
do entre pessoas juridicamente hábeis que faz o matrimô-
nio; esse consentimento não pode ser suprido por nenhum
poder humano.
§2. O consentimento matrimonial é o ato de vontade pelo
qual um homem e uma mulher, por aliança irrevogável, se
entregam e se recebem mutuamente parar constituir o ma-
trimônio.
O modo de expressar esse consentimento variou bastan-
te na história e ainda respeita particularidades culturais.
Para os leigos apresento uma das formas mais comuns

119
do ritual do matrimonio brasileiro para entender o que é o
rito litúrgico do consentimento:

RITO DO MATRIMÔNIO
O sacerdote (ou o assistente eclesiástico) convida os noi-
vos a manifestarem seu consentimento:
Para manifestar o vosso consentimento em selar a sagrada
aliança do Matrimônio, diante de Deus e sua Igreja, aqui
reunida, daí um ao outro a mão direita:
Eu, ......, te recebo, .... por minha esposa/o e te prometo
ser fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza,
na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.
Aceitação do consentimento (pelo assistente eclesiásti-
co):
Deus confirme este compromisso que manifestastes pe-
rante a Igreja e derrame sobre vós as suas bênçãos! Nin-
guém separe o que Deus uniu!
→ O matrimônio indica o momento em que se celebra
a união, mas não é apenas um fato pontual; é também a
união de vida que é estabelecida pelo vínculo matrimonial
até a morte de um dos cônjuges.
É preciso entender o desenvolvimento do conceito de
matrimônio – Patrística e Escolástica – que irá usar a onto-
logia aristotélica/tomista: matéria e forma; causa eficiente e
final; substância e acidente; com a formulação analítica de
sacramento, a Igreja visa normatizar o acesso e organizar os
sacramentos; que serão reduzidos a 7 (Agostinho contava

120
304) número que indica perfeição e totalidade – Trindade +
quatro elementos, envolvendo a vida por inteiro;
Definição de Sacramento pelo CIgC (§1084):
“Sentado à direita do Pai” e derramando o Espírito Santo no
seu Corpo que é a Igreja, Cristo age agora pelos sacramen-
tos, instituídos por ele para comunicar a sua graça. Os sa-
cramentos são sinais sensíveis (palavras e ações), aces-
síveis à nossa humanidade atual. Realizam eficazmente
a graça que significam, em virtude da ação de Cristo e
pelo poder do Espírito Santo.
Ler também: §1117
[Questões práticas: não existem cartórios, documenta-
ção, por isso, para evitar que alguém tente o matrimônio
mais de uma vez, já o papa Inocêncio III em 1212 aconse-
lhava que se seguisse o exemplo da Bretanha com o con-
trato de imóveis, fazendo na Igreja Paroquial o proclama do
contrato por três domingos.
A Igreja está começando a trazer para si a responsabili-
dade sobre os matrimônios; mas muitos continuam acon-
tecendo nas famílias; daí a necessidade da publicidade; aos
poucos eles vão passar a acontecer na porta da Igreja, an-
tes das celebrações, para que todos tomem conhecimento
– são os chamados “casamentos praceiros”.]
Concílio de FLORENÇA (17º ecumênico): 26 fev. 1439 –
ago. (?) 1445:
“Em quinto lugar, para facilitar a compreensão aos armênios
de hoje e de amanhã, redigimos nesta brevíssima fórmula a
doutrina sobre os sacramentos. Os sacramentos da nova

121
Lei são sete: batismo, confirmação, Eucaristia, penitência,
extrema-unção, ordem e matrimônio, e diferem muito dos
sacramentos da antiga Lei. Aqueles, de fato, não produziam
a graça, mas significavam somente que ela teria sido conce-
dida pela paixão de Cristo; estes nossos sacramentos, ao
contrário, contêm em si a graça, e a comunicam a quem
os recebe dignamente.” (DH 1310)
“Todos estes sacramentos constam de três elementos: das
coisas, que constituem a matéria, das palavras, que são a
forma, e da pessoa do ministro, que confere o sacramento
com a intenção de fazer aquilo que a Igreja faz. Se faltar um
destes elementos, não é efetuado o sacramento.” (DH 1312)
“Entre esses sacramentos há três: batismo, confirmação e
ordem, que imprimem na alma um caráter indelével, ou
seja, um sinal espiritual que distingue <quem o recebe> dos
outros, pelo que não podem ser reiterados na mesma pessoa.
Os outros quatro não imprimem o caráter e portanto se
admite repeti-los na mesma pessoa.” (DH 1313)
“O sétimo é o sacramento do matrimônio, símbolo da união
de Cristo e da Igreja, segundo as palavras do Apóstolo: ‘Este
mistério é grande, digo o em referência a Cristo e à Igreja’ [Ef
5,32]. Causa eficiente do sacramento é, segundo a regra,
o mútuo consentimento expresso em palavras e presen-
cialmente. Atribui-se ao matrimônio um bem tríplice. O
primeiro consiste em aceitar a prole e educá-la para o culto
de Deus; o segundo, na fidelidade que um cônjuge deve ob-
servar em relação ao outro; o terceiro, na indissolubilidade
do matrimônio, porque esta significa a união indissolúvel de
Cristo e da Igreja. De fato, se bem que, por motivo de fornica-
ção, seja permitido a separação de cama, não é permitido,
porém, contrair outro matrimônio, pois o vínculo do matri-
mônio legitimamente contraído é perpétuo.” (DH 1327)

122
Concílio de Trento: Decreto “Tametsi” (Sessão 24ª, 11 nov.
1563)
Cap. 1. [Motivo e teor da lei ] “A santa Igreja de Deus sempre
detestou e proibiu por justíssimas causas os casamentos
clandestinos, embora não se deva duvidar que, realizados
com o livre consentimento dos contraentes, sejam matri-
mônios ratos e verdadeiros, enquanto a Igreja não os tenha
anulado; e, por conseguinte, com razão devem ser conde-
nados, como o santo Sínodo com anátema condena, os que
negam que sejam verdadeiros e ratos, e também os que
afirmam erroneamente que os matrimônios contraídos
pelos filhos da família sem o consentimento dos pais
são nulos, e que os pais podem torná-los ratos ou nulos”
(DH 1813)
[Contra Lutero]
“Todavia, como o santo Sínodo observa que aquelas proi-
bições, devido à desobediência dos homens, já não
adiantam e pondera os graves pecados que têm origem
nesses casamentos clandestinos, principalmente daque-
les que permanecem em estado de condenação, enquanto,
abandonando a esposa anterior com a qual haviam con-
traído às escondidas, contraem publicamente com outra
e vivem com ela em perpétuo adultério; como a Igreja,
que não julga sobre o oculto, não pode remediar a esse mal,
a não ser empregando um remédio mais eficaz, por estas
razões, seguindo as pegadas do sagrado [IV] Concílio do
Latrão celebrado sob Inocêncio III, ordena que no futuro,
antes que se contraia matrimônio, seja publicamente
proclamado três vezes, pelo pároco próprio dos contra-
entes, em três dias festivos subseqüentes, na Igreja, duran-
te a celebração da Missa, entre quem deverá ser contraído
matrimônio; feitas as proclamas, se não se apresenta

123
nenhum impedimento legítimo, proceda-se à celebra-
ção do matrimônio em presença da Igreja, na qual o pá-
roco, interrogados o varão e a mulher e entendido seu
mútuo consentimento, diga: “Eu vos uno em matrimônio,
em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, ou use de
outras palavras, segundo o rito aceito em cada província.”
(DH 1814)
[Restrição da lei] “Se casualmente se suspeite que o matri-
mônio, precedendo tantas proclamas, possa ser impedido
de má fé, então se faça só uma proclama ou, ao menos, se
celebre o matrimônio na presença do pároco e duas ou três
testemunhas; depois, antes de sua consumação, façam-se
as proclamas na Igreja, para que, havendo eventuais im-
pedimentos ocultos, mais facilmente sejam descobertos; a
não ser que o próprio Ordinário julgue ser conveniente que
se omitam as citadas proclamas, o que o santo Sínodo deixa
a sua prudência e juízo.
[Sanção] Os que tentarem contrair matrimônio de outro
modo que na presença do pároco – ou de outro sacer-
dote, autorizado pelo pároco ou pelo Ordinário – e de
duas ou três testemunhas, o santo Sínodo os torna to-
talmente inábeis para assim contraírem e decreta que
tais contratos são írritos e nulos, como pelo presente
decreto os faz írritos e os anula.” (DH 1815).
De Trento em diante, somente o casamento autoriza-
do pelo pároco ou quem legitimamente tem autorização
para isso será considerado válido, qualquer outro não; o
casamento “clandestino” passa a ser nulo; com isso, aquele
casamento tido até então como natural, não é mais aceito
e, portanto, embora celebrados de fato, para a Igreja não
existiram; por isso, se tornará recorrente a afirmação: “entre

124
batizados não pode haver contrato matrimonial válido que
não seja por isso mesmo sacramento” (CDC 1055 §2; AL 75);
O CDC prevê ainda duas situações em que pode faltar o
assistente eclesiástico: em perigo de morte; e se não hou-
ver quem possa assistir ao matrimônio dentro de um mês
– Cân. 1116.
Retomando: Conclusões sobre Trento
• Concílio de Trento (1545-1563): define os 7 sacramen-
tos; o matrimônio é um deles; deste momento em diante
a Igreja proíbe/ não reconhece matrimônios que não es-
tejam por ela autorizados, celebrados, ou seja, ratificados
(proibindo assim os “casamentos clandestinos”); visando
garantir que ninguém, de má fé, tente uma segunda união.
Irá para tanto impor uma “forma canônica”. [o Consenti-
mento]
[Sanção] Os que tentarem contrair matrimônio de outro
modo que na presença do pároco – ou de outro sacer-
dote, autorizado pelo pároco ou pelo Ordinário – e de
duas ou três testemunhas, o santo Sínodo os torna to-
talmente inábeis para assim contraírem e decreta que
tais contratos são írritos e nulos, como pelo presente
decreto os faz írritos e os anula.” (DH 1815).
[são questões técnicas, um pouco difíceis para leigos,
mas que é importante alguma vez se deparar com elas]
O padre Jesus Hortal (CDC em seu comentário ao
can.1108) distingue a “forma canônica” (“os requisitos ex-
trínsecos que a legislação canônica exige para que o matri-
mônio seja válido”) das:

125
“forma essencial” (aquilo sem o qual não pode existir o
matrimonio e que é a manifestação inequívoca do consen-
timento matrimonial”);
“forma litúrgica” (“com os ritos e cerimônias que acom-
panham a forma canônica e são exigidos para a sua liceida-
de”).
Não obstante, a determinação de Trento não tem um al-
cance universal e imediato, dadas as condições sócio-cul-
turais da época. Será uma legislação tornada realmente
universal apenas pelo:
Decreto Ne temere, 02/08/1907, promulgado pela Sa-
grada Congregação do Santo Ofício (CDC p.283, comentá-
rio). DH 3469-3473:
Dos matrimônios. São válidos somente aqueles matri-
mônios que são contraídos diante do pároco, ou diante do
Ordinário do lugar, ou diante de um sacerdote delegado por
um destes dois, e ao menos duas testemunhas.
Se existe iminente perigo de morte, quando não se pode
ter o pároco ou o Ordinário do lugar ou outro sacerdote de-
legado por um deles, para atender à consciência e (se for
o caso) à legitimação da prole, o matrimônio pode válida
e licitamente ser contraído diante de qualquer sacerdote e
duas testemunhas.
Caso aconteça que, em alguma região, não pode haver
nem pároco, nem Ordinário do lugar, nem sacerdote
por eles delegado, perante o qual se poderia celebrar o
matrimônio, e esta situação se prolongar já por um mês, o
matrimônio pode lícita e validamente ser contraído quando
os esposos emitirem o consentimento formal diante de duas

126
testemunhas.
§ 1. À leis acima estabelecidas estão obrigados todos os ba-
tizados da Igreja católica e os que a ela se tenham conver-
tido da heresia ou do cisma (mesmo se estes ou aqueles se
afastaram dela posteriormente), sempre que entre si contra-
írem noivado ou matrimônio.
§ 2. Vigoram também para os mesmos católicos acima ditos,
se contraírem noivado ou matrimônio com não católicos,
batizados ou não, também depois de obtida dispensa do im-
pedimento de religião mista ou disparidade de culto; a não
ser que para algum lugar ou região particular tenha sido es-
tatuído de modo diferente pela Santa Sé.

PARA ENTENDER ESTAS DETERMINAÇÕES:


→ A Igreja tomou para si a tarefa de regular e ratificar
todos os matrimônios válidos – únicos que ela, depois de
Trento – reconhece como sacramento;
Mas nem sempre ela pode estar a disposição dos fiéis em
todos os lugares e sem prejuízo desses; [pensemos naque-
las comunidades que recebem a visita de um sacerdote um
vez a cada 6 meses ou um ano; por essa época – 1906 – co-
meçam a se estabelecer famílias no que será depois Campo
Mourão, mas o padre virá de Guarapuava e depois de Pi-
tanga para assisti-los, a cavalo, podemos imaginar que isso
não seja frequente]
Assim, esses cânones protegem o direito dos fiéis a uma
união sacramental;
→ É preciso também lembrarmos que para a Igreja, ao

127
menos em seu rito latino, os ministros do matrimônio são
os próprios nubentes.
Utilizando a teologia dos sacramentos fundamentada no
pensamento aristotélico-tomista podemos dizer:
“Ministro é aquele que, em nome de Cristo, pões a ação
sacramental, quer dizer, aplica à matéria a forma” (HORTAL
2000, p.30);
“No caso do matrimonio, há uma dupla ação: os nubentes
se entregam e se aceitam mutuamente, pois bem, entrega e
aceitação constituem a matéria e a forma desse sacramen-
to” (HORTAL 2000. p.29).
Por isso, teologicamente, o mais exato é dizer que os noi-
vos realizaram o seu matrimônio naquele momento, eles
são os sujeitos do ato sacramental; e não – que eles recebe-
ram o sacramento do matrimônio, como se o sacramento
fosse algo externo que se acrescentasse à união.
Para concluir esta seção, podemos compreender com
profundidade AL 75:
“No sacramento do matrimônio, segundo a tradição latina
da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se ca-
sam, os quais, ao manifestar o seu consentimento e expres-
sá-lo na sua entrega corpórea, recebem um grande dom.
O seu consentimento e a união dos seus corpos são os
instrumentos da ação divina que os torna uma só carne. No
batismo, ficou consagrada a sua capacidade de se unir
em matrimônio como ministros do Senhor, para responder
à vocação de Deus.
Por isso, quando dois cônjuges não--cristãos recebem o ba-

128
tismo, não é necessário renovar a promessa nupcial sendo
suficiente que não a rejeitem, pois, pelo batismo que rece-
bem, essa união torna-se automaticamente sacramental.
O próprio direito canônico reconhece a validade de al-
guns matrimônios que se celebram sem um ministro
ordenado. É que a ordem natural foi assumida pela reden-
ção de Jesus Cristo, pelo que, «entre batizados, não pode
haver contrato matrimonial válido que não seja, pelo
mesmo fato, sacramento».
A Igreja pode exigir que o ato seja público, a presença de
testemunhas e outras condições que foram variando ao
longo da história, mas isto não tira, aos dois esposos, o seu
caráter de ministros do sacramento, nem diminui a centra-
lidade do consentimento do homem e da mulher, que é
aquilo que, de por si, estabelece o vínculo sacramental.
Em todo o caso, precisamos refletir mais sobre a ação divina
no rito nupcial, que aparece muito evidenciada nas Igrejas
Orientais ao ressaltarem a importância da bênção sobre os
contraentes como sinal do dom do Espírito.”

MATRIMÔNIO E FAMÍLIA NO MUNDO MODERNO


A Igreja viveu desde o século IV ou V num regime de cris-
tandade; dava legitimidade ao poder dos monarcas e tinha
a estrutura do Estado a seu favor: legislação (p. ex. contrária
ao adultério, divórcio, aborto, homossexualidade); seu ca-
lendário era o civil (feriados dos padroeiros, corpus Christi,
sexta-feira santa); benefícios administrativos e tributários
(isenções e salários), etc.
Quando emerge o novo sujeito, no mundo moderno, a

129
estrutura medieval é obsoleta, a riqueza já não está mais
na posse da terra, mas no comércio; a nova classe rica e a
própria sociedade querem uma nova estrutura: a república
com divisão de poderes, democracia e liberdade.
Derrubando a monarquia, atingem também a Igreja a ela
ligada – confisco de bens; perda dos privilégios etc. Revo-
lução Francesa – 1789: Liberdade, Igualdade, Fraternidade;
1870 – fim dos Estados Pontifícios.
Durante o séc. XIX a Igreja lutou para preservar seus bens
e privilégios; depois, uma oposição ferrenha a tudo que se
identificasse com mundo moderno – liberdade de cons-
ciência, de religião, de educação; na Itália os católicos são
proibidos de votarem e de se candidatarem (até a concor-
data de 1929).
Não obstante tudo, grandes movimentos foram refletin-
do dentro da Igreja e gerando uma postura nova - Movi-
mentos bíblico, litúrgico, patrístico, teológico, ecumênico.
Tudo irá levar ao Vaticano II.
→ O papa João XXIII, inspirado pelo Espírito Santo, con-
voca o Concílio e coloca alguns critérios para sua realiza-
ção. Ele deverá ser:
Pastoral
(GS 2: “Deseja expor a todos como concebe a presença e a
atividade da Igreja no mundo de hoje”);
Diálogo
(GS 3: “o Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo
de Deus por Cristo congregado, não pode manifestar mais

130
eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para
com a inteira família humana,na qual está inserido, do que
estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários proble-
mas, aportando a luz do Evangelho e pondo à disposição do
gênero humano as energias salvadoras que a Igreja, condu-
zida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador”; e GS 40);
Atualização/Aggiornamento
(GS 4: “Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja inves-
tigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-
-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de
modo adaptado em cada geração,às eternas perguntas
dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura,
e da relação entre ambas.”)
Ecumenismo
(GS 22: “E o que fica dito, vale não só dos cristãos, mas de
todos os homens de boa vontade, em cujos corações a gra-
ça opera ocultamente. Com efeito, já que por todos morreu
Cristo e a vocação última de todos os homens é realmente
uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito
Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este
mistério pascal por um modo só de Deus conhecido.”)
• GS §4-10: Introdução: A condição do homem no mun-
do de hoje.
§4: Para desempenhar sua missão no mundo de hoje a
Igreja precisa conhecê-lo e entendê-lo. Algumas caracterís-
ticas:
→ Mudanças profundas e rápidas (de paradigmas); que
atingem o próprio homem (seu modo de pensar, querer e
agir);

131
→ “Os homens nunca tiveram um sentido da liberdade
tão agudo como hoje, mas ao mesmo tempo aparecem no-
vas formas de escravidão social e psíquica”;
§5: Desenvolvimento das ciências (matemáticas e natu-
rais) e técnica;
→ “Este espírito científico produz um sistema cultural e
modos de pensamento diferentes dos anteriores”;
“Assim a humanidade passa de uma noção mais estática
da ordem das coisas para uma concepção mais dinâmica
e evolutiva. Nasce daí, imenso, um complexo novo de pro-
blemas que provoca novas análises e sínteses”;
§6: (As mudanças sociais) “Por isso mesmo as tradicio-
nais comunidades locais (famílias patriarcais, clãs, tribos,
aldeias) experimentam cada dia transformações mais pro-
fundas em seus variados grupos de comunidade social”;
→ Sociedade de tipo industrial e civilização urbana;
→ Novos instrumentos de comunicação industrial;
“Não é de menosprezar o fato de que os homens, leva-
dos a emigração, por vários motivos, transformem o siste-
ma de sua vida”;
→ Muita diferença entre nações desenvolvidas e em vias
de desenvolvimento, quanto aos benefícios do mundo mo-
derno;
§7: Mudanças psicológicas, morais e religiosas:
“A mudança de mentalidade e de estruturas coloca em

132
questão frequentemente os valores recebidos, particular-
mente os jovens”;
“Por sua vez, as instituições, as leis e a maneira de pensar e
de sentir herdadas do passado nem sempre parecem adap-
tadas à situação atual; e daqui provém uma grave pertur-
bação no comportamento e até nas próprias normas de
conduta.
Por fim, as novas circunstâncias afetam a própria vida reli-
giosa. Por um lado, um sentido crítico mais apurado purifi-
ca-a de uma concepção mágica do mundo e de certas so-
brevivências supersticiosas, e exige cada dia mais a adesão
a uma fé pessoal e operante; desta maneira, muitos chegam
a um mais vivo sentido de Deus. Mas, por outro lado, gran-
des massas afastam-se praticamente da religião. Ao con-
trário do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou
a religião, ou prescindir deles já não é um fato individual e
insólito: hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado
como exigência do progresso científico ou de um novo tipo
de humanismo. Em muitas regiões, tudo isto não é apenas
afirmado no meio filosófico, mas invade em larga escala a
literatura, a arte, a interpretação das ciências do homem e
da história e até as próprias leis civis; o que provoca a deso-
rientação de muitos.”
§8: Uma evolução tão rápida causa tensões e desequilí-
brios:
Entre grupos, famílias e nações:
“No seio da família, originam-se tensões, quer devido à pres-
são das condições demográficas, econômicas e sociais, quer
pelas dificuldades que surgem entre as diferentes gerações,
quer pelo novo tipo de relações sociais entre homens e mu-
lheres”.

133
§9: Aspirações das pessoas e nações:
“Entretanto, vai crescendo a convicção de que o gênero hu-
mano não só pode e deve aumentar cada vez mais o seu
domínio sobre as coisas criadas, mas também lhe compete
estabelecer uma ordem política, social e econômica, que o
sirva cada vez melhor e ajude indivíduos e grupos a afirma-
rem e desenvolverem a própria dignidade.
Daqui vem a insistência com que muitos reivindicam aque-
les bens de que, com uma consciência muito viva, se julgam
privados por injustiça ou por desigual distribuição. As na-
ções em vias de desenvolvimento, e as de recente indepen-
dência desejam participar dos bens da civilização, não só
no campo político mas também no econômico, e aspiram
a desempenhar livremente o seu papel no plano mundial; e,
no entanto, aumenta cada dia mais a sua distância, e mui-
tas vezes, simultaneamente, a sua dependência mesmo eco-
nômica com relação às outras nações mais ricas e de mais
rápido progresso. Os povos oprimidos pela fome interpelam
os povos mais ricos. As mulheres reivindicam, onde ainda
a não alcançaram, a paridade de direito e de fato com os
homens. Os operários e os camponeses querem não apenas
ganhar o necessário para viver, mas desenvolver, graças ao
trabalho, as próprias qualidades; mais ainda, querem par-
ticipar na organização da vida econômica, social, política e
cultural. Pela primeira vez na história dos homens, todos os
povos têm já a convicção de que os bens da cultura podem e
devem estender-se efetivamente a todos.
Subjacente a todas estas exigências, esconde-se, porém,
uma aspiração mais profunda e universal: as pessoas e os
grupos anelam por uma vida plena e livre, digna do homem,
pondo ao próprio serviço tudo quanto o mundo de hoje lhes
pode proporcionar em tanta abundância. E as nações fa-

134
zem esforços cada dia maiores por chegar a uma certa co-
munidade universal.
O mundo atual apresenta-se, assim, simultaneamente po-
deroso e débil, capaz do melhor e do pior, tendo patente
diante de si o caminho da liberdade ou da servidão, do pro-
gresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio. E o ho-
mem torna-se consciente de que a ele compete dirigir as for-
ças que suscitou, e que tanto o podem esmagar como servir.
Por isso se interroga a si mesmo.”
§10: As interrogações mais profundas do Gênero hu-
mano.
A Igreja acredita que as respostas poderão ser encontra-
das no Senhor e Mestre.
“Portanto, sob a luz de Cristo, Imagem de Deus invisível e Pri-
mogênito de todas as criaturas, o Concílio pretende falar a
todos, para esclarecer o mistério do homem e cooperar na
descoberta da solução dos principais problemas do nosso
tempo”.
Vimos como essas transformações atingem a família:
Família Pré-Moderna:
→ predominância rural, agrícola e manufatureira;
→ Família Ampliada: hierarquizada; autoridade do ho-
mem, submissão da mulher e filhos; papeis definidos; seus
membros transcorrem a vida juntos; pouca mobilidade
(local, social, laboral); muitos filhos – investimento; pouca
liberdade e intimidade; ajuda da família para resolver con-
flitos;
Família Moderna:

135
→ predominância urbana, industrial e tecnológica;
→ Família nuclear: autoridade dialogada; autonomia da
mulher; trabalho em lugares separados; pouco tempo jun-
tos; papeis fluídos; muita mobilidade local e laboral; filhos:
despesa; ampla liberdade e intimidade; menos apoiados.
Acrescento neste momento:
Mundo Pré-Moderno:
→ Instituições (predominância de uma visão de mundo
estática; Estado, Igreja, Família, Empresa, Escola) se sobre-
põe aos indivíduos (se conformam em sua maioria às insti-
tuições); “Es minha mulher, por isso te amo”;
→ Heteronomia
→ Valorização do Sofrimento e Resignação (fatalismo,
determinismo, “forças incontroláveis”); ou seja, aceitação e
sacrifício (pela pátria, família, “vida eterna”);
Notar: o magistério tem dificuldade em tratar de sexuali-
dade, prazer e alegria – sempre que o faz, é indireto, cheio
de rodeios e adjetivos (ex. ato sexual: feito de “modo hu-
mano”; “honesto”; só para a procriação, como mal menor
etc; alegria: pelo prazer de uma missão cumprida, por um
trabalho bem feito) – sempre parece precisar de uma expli-
cação alheia à própria felicidade ou prazer que a legitime.
Mundo Moderno:
→ Os indivíduos se sobrepõem às instituições (visão de
mundo predominantemente evolutiva). Pessoa: perso-
nalismo e existencialismo; direitos: à felicidade, amor, ao

136
prazer (sacrifícios – aceitação limitada, quando invencível,
por um bem maior; o centro está na vida presente – isso
não é visto como concorrente da “vida eterna”); “Te amo,
por isso és minha mulher”;
→ Autonomia
→ Busca da Felicidade (direito e conquista)
• Principais documentos do magistério sobre o Matri-
mônio e a Família nos últimos séculos:
Arcanum Divinae Sapientiae (“Sobre a Constituição Cristã
da Família”, Leão XIII, 10/02/1880);
(Código de Direito Canônico 1917)
Casti Connubii (“Sobre o Matrimônio Cristão”, Pio XI,
31/12/1930);
Gaudium et Spes (“Sobre a Igreja no Mundo de Hoje”
– Concílio Vaticano II - 07/12/1965)
Humanae Vitae (“Sobre a Regulação da Natalidade”, Pau-
lo VI, 24/07/1968);
(Código de Direito Canônico 1983; cân.1055-1165; e as al-
terações feitas pelo papa Francisco)
(Catecismo da Igreja Católica – 11/10/1992: Definição de
sacramento - §1084; Sacramentos §1113-1152; diversidade
cultural - §1200-1206; Matrimônio §1601-1666)
Familiaris Consortio (“Sobre a Função da Família Cristã no
Mundo de Hoje”, João Paulo II, 22/11/1981);
Amoris Laetitia (“Sobre o Amor na Família”, Francisco,

137
19/03/2016)
• Precisamos interpretar os documentos da Igreja de for-
ma crítica; ou seja, não “ingênua”/”acrítica; mas com crité-
rios; para isso podemos percorrer vários caminhos. Em ge-
ral, pensamos que tudo sempre foi como é atualmente; e
não percebemos que tudo tem uma história, que é fruto
de interesses e decisões (nenhuma afirmação é gratuita, ex.
GS 3); tanto a Bíblia quanto os documentos do magistério
não “caíram prontos do céu”/ nem foram ditados pelo ES;
são frutos da história.
Conhecemos uma pessoa quando conhecemos sua his-
tória; assim entenderemos melhor o que ela fala, opina,
age ou reage.
O recurso à história nos ajuda a compreender um tex-
to. Esse recurso deve ser duplo: conhecer a história do tex-
to e a história das questões de que trata o texto (conhecer
a pessoa e do que a pessoa está falando);
Contextualizar o texto nos ajuda a entendê-lo.
Estamos utilizando este duplo recurso: história e contex-
tualização.
• O Magistério da Igreja (“Reformável”) costuma celebrar
seus documentos publicando novos em comemoração. E
assim, atualiza seus ensinamentos. Exemplo no campo da
Doutrina Social da Igreja:
Rerum Novarum (“Sobre a Condição dos Operários”, Leão
XIII, 15/05/1891)

138
[para situar esse documento no seu contexto histórico
é bom lembrar: Marx e Engels, Manifesto Comunista, 1848;
Bula Ineffabilis Deus (1854), Pio IX declarou infalível a dou-
trina da Imaculada Conceição]
Quadragésimo Anno (“Sobre a Restauração e Aperfeiçoa-
mento da Ordem Social em Conformidade com a Lei Evan-
gélica”, Pio XI, 15/05/1931)
Mater et Magistra (“Sobre a Evolução da Questão Social à
Luz da Doutrina Cristã”, João XXIII, 15/05/1961 – MM §6: 70
anos)
Octagesima Adveniens (“Por Ocasião do 80 aniversário da
Encíclica Rerum Novarum”, Paulo VI, 14/05/1971)
Centesimus Annus (João Paulo II).
• AL 67 retoma a GS §48 através do texto do Relatio
Synodi 2014, n.17:
“O Concílio Ecumênico Vaticano II ocupou-se, na Constitui-
ção pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade
do matrimônio e da família (cf. nn. 47-52). « Definiu o ma-
trimônio como comunidade de vida e amor (cf. n. 48), co-
locando o amor no centro da família (...). O “verdadeiro
amor entre marido e mulher” (n. 49) implica a mútua doa-
ção de si mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a
afetividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. nn. 48-
49). Além disso sublinha o enraizamento dos esposos em
Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro dos esposos cristãos
com o sacramento do matrimônio” (n. 48) e permanece com
eles. Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-
-o, leva-o à plenitude e dá aos esposos, com o seu Espírito, a
capacidade de o viver, impregnando toda a sua vida com a

139
fé, a esperança e a caridade. Assim, os cônjuges são de certo
modo consagrados e, por meio de uma graça própria, edi-
ficam o Corpo de Cristo e constituem uma igreja domésti-
ca (cf. Lumen gentium, 11), de tal modo que a Igreja, para
compreender plenamente o seu mistério, olha para a
família cristã, que o manifesta de forma genuína»”.
E a Humanae Vitae (AL 68): evidenciou o vínculo intrín-
seco entre amor conjugal e geração da vida.

ESQUEMA: SACRAMENTO DO MATRIMÔNIO


“O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua
Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e
uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor ex-
clusivo e livre fidelidade, se pertencem até a morte e abrem à
transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes
confere a graça para se constituírem como igreja doméstica
e serem fermento de vida nova para a sociedade” (AL 292).
“Assumindo o ensinamento bíblico de que tudo foi cria-
do por Cristo e para Cristo (cf. Col 1,16), os Padres sinodais
lembraram que «a ordem da redenção ilumina e realiza a
da criação. Assim, o matrimônio natural compreende-se
plenamente à luz da sua realização sacramental: só fi-
xando o olhar em Cristo é que se conhece perofundamente
a verdade das relações humanas. “Na realidade, o mistério
do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece
verdadeiramente. (...) Cristo, novo Adão, na própria revela-
ção do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a
si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gau-
dium et spes, 22). Em particular é oportuno compreender,
em chave cristocêntrica, (...) o bem dos cônjuges (bonum
coniugum)» (Relatio Finalis 2015, n.47), que inclui a unida-

140
de, a abertura à vida, a fidelidade, a indissolubilidade e,
no matrimônio cristão [sacramento], também a ajuda mú-
tua no caminho que leva a uma amizade mais plena com o
Senhor.” (AL 77)
Sobre o Sacramento do Matrimônio: AL §72-75.
* Matrimônio: dá-se pelo consentimento das partes [en-
trega e recepção]; legitimamente manifestado, por pessoas
juridicamente hábeis. E pelo ato sexual. [Matrimônio válido:
“ratificado e consumado”; “forma canônica”]
→ Fins: bem dos cônjuges [unitivo] e a geração e educa-
ção da prole [procriativo]. AL §80;
→ Propriedades: unidade - um único vínculo [opõem-se
à poligamia] e indissolubilidade - impossibilidade de disso-
lução a não ser pela morte [opõem-se ao divórcio]. AL §62;
→ Ministros: os próprios noivos. AL §75; [embora a Igre-
ja exija na maioria dos casos uma “testemunha qualificada”,
ou seja, quem pede e confirma o consentimento em nome
da Igreja]
“Temos de reconhecer como um grande valor que se
compreenda que o matrimônio é uma questão de amor:
só se podem casar aqueles que se escolhem livremente e
se amam” (AL §217).

141
142
VII
O MATRIMÔNIO E A FAMÍLIA
NO MAGISTÉRIO DA IGREJA

A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA TEMÁTICA E COMPARA-


DA COM ÊNFASE EM AMORIS LAETITIA
• AL toma como momento fundamental Gaudium et
Spes e parte dela. Nós, para podermos compreendê-la no
que tem de continuidade e novidade, precisamos ampliar
para um antes e depois de GS.
• As apresentações seguirão o seguinte esquema tendo
por referência AL:
→ Concepção (predominante/ não excludente) de ma-
trimônio (jurídica/ vocação)
→ Fins do Matrimônio: Unitivo; Cap. IV: O Amor no Matri-
mônioÊnfase: A centralidade do amor conjugal
→ Fim Procriativo: Cap.V: O Amor que se Torna Fecundo; e
Cap.VII: Reforçar a Educação; Ênfase: Controle da natalidade
→ Concepção de Família. Ênfase: papel da mulher;
→ Matrimônios que não realizam o ideal do sacramento:
Cap.VIII: Acompanhar, discernir e integrar; Ênfase: O discerni-
mento das situações chamada “irregulares”.

CONCEPÇÃO DE MATRIMÔNIO:
• De uma concepção do Matrimônio e da Família predo-

143
minantemente:
→ jurídica; contratual; centrada em direitos e deveres;
nos fins e nos bens do matrimônio; e na desvalorização de
outras formas de matrimônio (ordem natural, civil ou de
outras confissões religiosas);
Para uma mais predominantemente:
→ existencial e personalista; como vocação; centrada no
amor; com as exigências próprias do amor conjugal e fami-
liar; que valoriza o que há de positivo nas uniões mesmo
onde não se realiza a plenitude do sacramento do matri-
mônio, não as excluindo mas as integrando como possível.
• De uma concepção jurídica a uma visão mais existencial
e personalista do matrimônio.
A Igreja sempre valorizou o matrimônio, mesmo quan-
do não exigia um ato público eclesial. Depois que essa exi-
gência foi posta, no Concílio de Trento, com a obrigação da
chamada “forma canônica” e a Igreja se pôs como única ár-
bitra do matrimônio válido ou não, foi se ampliando as suas
normativas (legislação); com o advento do mundo moder-
no e com a ameaça da secularização; com o direito moder-
no regulando as novas nações, também a Igreja pretendeu
pôr sua vida em uma codificação de leis (embora saibamos
o quanto é problemático pretender codificar juridicamente
o âmbito do mistério da fé); o modelo foi a constituição de
Napoleão. Depois de longamente desejado e gestado, apa-
receu o CIC de 1917. Essa codificação leva a propor normas
rígidas abstratas e universalmente válidas.

144
Aos poucos, a pastoral, a liturgia, a teologia sacramen-
tal vai passando a ter um papel secundário e subsidiário,
e o direito canônico o papel principal: o matrimônio como
instituição, a sua natureza legal, as condições para a valida-
de, os impedimentos, as dispensas, a documentação, etc.
Dessa maneira, o amor real e vivo entre os cônjuges fi-
cava mais ou menos em segundo plano. Ainda hoje, no
processo de habilitação matrimonial não tem nada nesse
sentido: quando os noivos se conheceram, quanto tempo
namoraram, o que os levou a decidir unir-se em matrimô-
nio, ou seja, questões pessoais e existenciais; isto fica fora
do âmbito jurídico e, no máximo, entra no interesse pasto-
ral do pároco.
O matrimônio aparecia muito mais como uma institui-
ção jurídica dentro da qual se poderia exercer a sexualida-
de sem pecar (ou seja, sem culpabilidade moral e censura
social).
“Se esquecemos o diálogo amoroso do casal e entendemos
o matrimonio eclesiástico exclusivamente como uma ins-
tituição jurídica, estamos destruindo a realidade mais pro-
funda do matrimônio cristão, já que o matrimônio só pode
ser sacramento se o amor de Deus é expressado, encar-
nado e sacramentalizado no amor mútuo dos cônjuges”
(PAGOLA 1994, p.6)
→ Do matrimônio como contrato (estabelecendo direitos
e deveres) ao matrimônio como vocação (com as exigências
decorrentes do amor conjugal)
A abordagem jurídica do matrimônio tem seu funda-

145
mento em sua natureza contratual.
Entendendo por contrato o fato de duas partes (ou mais,
quando em sentido amplo, não só matrimonial) concorda-
rem em unir-se, gerando direitos e deveres para ambas as
partes contratantes (em nossa sociedade falamos muito de
contrato de compra e venda; de aluguel ou arrendamento;
de prestação de serviço; quanto mais complexa a socieda-
de e o objeto contratado mais complexo o próprio contra-
to).
Encontramos profundas variações na história. Por
exemplo: quando a mulher era considerada incapaz para
estabelecer contrato e seu pai ou responsável o fazia; quan-
do o interesse era mais da própria família ou do patriarca
do que do indivíduo. Percorrendo a Bíblia encontramos a
Ata de Repúdio, ou seja, o distrato ou ruptura do contrato;
em Tobias, a Ata do Matrimônio.
Neste sentido, o Concílio de Trento propôs um avanço,
digno do mundo moderno que se iniciava, fazendo da li-
berdade e vontade dos contraentes ser indispensável
para o matrimonio válido, embora saibamos que isso
teve na prática inúmeras limitações.
Pio XI – Casti Connubii – dialogando com o mundo pré-
-moderno:
“6. Mas, embora o matrimônio por sua própria natureza
seja de instituição divina, também a vontade humana tem
nele a sua parte, e parte notabilíssima; pois que, enquanto
é a união conjugal de determinado homem e de determina-
da mulher, não nasce senão do livre consentimento de cada

146
um dos esposos: este ato livre da vontade pelo qual cada
uma das partes entrega e recebe o direito próprio do
matrimônio (Cf. Cod. Iur. Can. c. 1081, § 2) é tão necessário
para constituir um verdadeiro matrimônio, que nenhum po-
der humano o pode suprir (Cf. Cod. Iur. Can. c. 1081, § 1). Esta
liberdade, todavia, diz respeito a um ponto somente, que é
o de saber se os contraentes efetivamente querem ou não
contrair matrimônio e se o querem com tal pessoa; mas a
natureza do matrimônio está absolutamente subtra-
ída à liberdade do homem, de modo que, desde que
alguém o tenha contraído, se encontra sujeito às suas
leis divinas e às suas propriedades essenciais. O Doutor
Angélico, dissertando acerca da fidelidade conjugal e da
prole, diz: “No matrimônio estas coisas derivam do próprio
contrato conjugal, de tal modo que, se no consentimento
que produz o matrimônio se formulasse uma condição que
lhe fosse contrária, não haveria verdadeiro matrimônio”
(Sum. Theol. part. III, Suplem., q. XLIX, art. 3.º).
7. A união conjugal é, pois, acima de tudo, um acordo mais
estreito que o dos corpos; não é um atrativo sensível nem
uma inclinação dos corações o que a determina, mas uma
decisão deliberada e firme das vontades: e desta conjun-
ção dos espíritos, por determinação de Deus, nasce um vín-
culo sagrado e inviolável.
8. Esta natureza própria e especial do contrato o torna ir-
redutivelmente diferente das relações que têm entre si os
simples animais, sob o único impulso de um cego instinto
natural, em que não existe nenhuma razão nem vontade
deliberada; torna-o totalmente diferente, também, dessas
uniões humanas irregulares, realizadas fora de qualquer
vinculo verdadeiro e honesto por vontades destituídas de
qualquer direito de convívio doméstico.

147
9. Em virtude disto, claro está que a autoridade legítima tem
o direito e até o dever de proibir, impedir e punir as uniões
vergonhosas que repugnam à razão e à natureza;”
→ O Vaticano II, dialogando com a nova situação em que
vivem os cristãos no mundo moderno, evitou utilizar o ter-
mo contrato, embora o seu sentido esteja presente. O Con-
cílio utiliza em seu lugar a palavra pacto/ “pacto conjugal”,
que conserva um pouco mais de subjetividade e expressa
melhor o teor pessoal e existencial. E colocou o amor no
centro do matrimônio.
GS 48 (retomado em AL 67):
“A íntima comunhão de vida e de amor conjugal que o
Criador fundou e dotou com Suas leis é instaurada pelo pac-
to conjugal, ou seja, o consentimento pessoal irrevogá-
vel. Dessa maneira, do ato humano pelo qual os cônjuges
se doam e recebem mutuamente, se origina, também diante
da sociedade, uma instituição firmada por uma ordenação
divina.”
Em todo caso, o matrimonio não deve ser reduzido a
um contrato. O consentimento (pacto conjugal) é mais o
início de um projeto de vida em comum, de uma vida
compartilhada conjugalmente e, na qual, estão agora cha-
mados a alcançar seu pleno desenvolvimento pessoal (hu-
mano e cristão). É o que chamamos de vocação.
“O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino, e
dirigido e enriquecido pela força redentora de Cristo e pela
ação salvadora da Igreja, para que, assim, os esposos cami-
nhem eficazmente para Deus e sejam ajudados e fortaleci-
dos na sua missão sublime de pai e mãe. Por este motivo,

148
os esposos cristãos são fortalecidos e como que consagra-
dos em ordem aos deveres do seu estado por meio de um
sacramento especial; cumprindo, graças à força deste, a
própria missão conjugal e familiar, imbuídos do Espírito
de Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e
caridade, avançam sempre mais na própria perfeição e
mútua santificação e cooperam assim juntos para a glo-
rificação de Deus”. (GS 48)
→ O papa Francisco em AL irá interpretar assim:
“O sacramento do matrimônio não é uma convenção social,
um rito vazio ou o mero sinal externo de um compromisso. O
sacramento é um dom para a santificação e a salvação dos
esposos, porque «a sua pertença recíproca é a representa-
ção real, através do sinal sacramental, da mesma relação de
Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a
lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são
um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salva-
ção, da qual o sacramento os faz participar». O matrimô-
nio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada espe-
cífica para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do
amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de casar e
formar uma família deve ser fruto de um discernimento
vocacional.” (AL 72, cit. FC 13)
→ Quanto à centralidade do amor no matrimônio –
GS; e da alegria - AL, AL tem algumas afirmações que são
únicas (e como pretende Francisco, bem “realistas”);
Todo o capítulo IV: O amor no matrimônio [analisaremos
mais a frente]. Alguns parágrafos:
“Temos de reconhecer como um grande valor que se com-
preenda que o matrimônio é uma questão de amor: só

149
se podem casar aqueles que se escolhem livremente e
se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera atra-
ção ou a uma vaga afetividade, isto faz com que os cônju-
ges sofram de uma extraordinária fragilidade quando a
afetividade entra em crise ou a atração física diminui. Uma
vez que estas confusões são frequentes, torna-se indispen-
sável o acompanhamento dos esposos nos primeiros anos
de vida matrimonial, para enriquecer e aprofundar a de-
cisão consciente e livre de se pertencerem e amarem até
ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é suficiente, a
decisão de casar-se apressa-se por várias razões e, como se
não bastasse, atrasou a maturação dos jovens. Assim os re-
cém-casados têm de completar aquele percurso que deveria
ter sido feito durante o noivado.” (AL 217).
“No matrimônio, convém cuidar a alegria do amor.
Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa
coisa só e não permite encontrar outros tipos de satisfações.
Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de des-
frutar e permite-nos encontrar prazer em realidades va-
riadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga.
Por isso, dizia São Tomás que se usa a palavra «alegria»
para se referir à dilatação da amplitude do coração. A
alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do
sofrimento, implica aceitar que o matrimônio é uma combi-
nação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repou-
so, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de
aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade
que impele os esposos a cuidarem um do outro: «prestam-se
recíproca ajuda e serviço».” (AL 126)
→ Enquanto vocação – chamado e resposta – o amor
que está no centro do matrimônio é um sentimento e, por-
tanto, algo dinâmico, não estático: ele deve ser alimentado

150
(por palavras, atos e sinais de carinho e ternura); pode se
fortalecido e crescer, sem término; ou pode definhar e dei-
xar de existir; em alguns casos, até tornar-se seu oposto, o
ódio;
“Tudo isto se realiza em um caminho de contínuo crescimen-
to. Esta forma muito particular de amor, que é o matri-
mônio, é chamada a um amadurecimento constante,
pois se deve aplicar a ele sempre o que São Tomás de Aquino
dizia da caridade: «A caridade, devido à sua natureza, não
tem um termo de aumento, porque é uma participação da
caridade infinita que é o Espírito Santo. (...) E, do lado do sujei-
to, também não é possível prefixar-lhe um termo, porque, ao
crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um
aumento maior». Paulo exortava com veemência: «O Senhor
vos faça crescer e superabundar de caridade uns para com
os outros» (1Ts 3, 12); e acrescenta: «A respeito do amor (...),
exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais» (1 Ts 4, 9.10).
Sempre mais. O amor matrimonial não se estimula falando,
antes de mais nada, da indissolubilidade como uma obriga-
ção, nem repetindo uma doutrina, mas robustecendo-o por
meio de um crescimento constante sob o impulso da graça.
O amor que não cresce, começa a correr perigo; e só pode-
mos crescer correspondendo à graça divina com mais atos
de amor, com atos de carinho mais frequentes, mais inten-
sos, mais generosos, mais ternos, mais alegres. O marido e a
mulher «tomam consciência da própria unidade e cada
vez mais a realizam». O dom do amor divino que se derra-
ma nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um constan-
te desenvolvimento deste dom da graça.” (AL 134)
“Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas
para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das
possibilidades que abre uma nova etapa. (...) quando se as-

151
sume o matrimônio como uma tarefa que implica também
superar obstáculos, cada crise é sentida como uma ocasião
para chegar a beber, juntos, o vinho melhor.” (AL 232)
“O divórcio é um mal, e é muito preocupante o aumento do
número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa
pastoral mais importante relativamente às famílias é re-
forçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos
impedir o avanço deste drama do nosso tempo.” (AL 246)
• Fins do matrimônio (ou “Bens do matrimônio”, ou seja,
a sua razão de ser) [responde à pergunta: por que se casar?]:
→ A história, quanto a essa questão, será marcada pela
teologia de Agostinho que, como vimos, estabelecia a bon-
dade do matrimônio pelos seus três bens: prole, fidelidade
e sacramento/indissolubilidade.
A própria vida sexual do casal só tem sentido em vista da
procriação.
Agostinho, Dos Bens do Matrimônio:
Cap.VI: “O ato conjugal em ordem à geração não é pecado;
para acalmar a concupiscência em virtude da fidelidade
conjugal e sempre com o cônjuge, não passa de pecado ve-
nial. A fornicação e o adultério sempre são pecado mortal.
Em conseqüência, a continência absoluta de todo ato car-
nal é mais excelente que o concúbito [ato sexual] matrimo-
nial feito com a intenção de ter filhos.”
Cap.XI: “O concúbito é necessário para a procriação, e só
neste caso é verdadeiramente nupcial. Quando ultrapassa
esta finalidade, não é um ato racional, é libidinoso.”
Cap.XXIV: “Os três bens do matrimônio, que o tornam legal e
santo, são: a prole, a fidelidade e o sacramento. Nos tempos

152
atuais já se considera mais útil e mais santo não procurar
a prole carnal, abstendo-se de todo contato desta espécie,
para unir-se espiritualmente a um único esposo, Jesus Cris-
to”.
→ PIO XI, CC: [dialoga com o mundo pré-moderno: pre-
dominantemente rural, agrícola, manufatureiro; família
ampliada]
Irá retomar Agostinho e comentá-lo.
CC 11: “No momento em que nos preparamos para expor
quais e quão grandes sejam estes bens divinamente concedi-
dos ao verdadeiro matrimônio, acodem-Nos à mente, Vene-
ráveis Irmãos, as palavras daquele preclaríssimo doutor da
Igreja, que recentemente comemoramos com a Encíclica Ad
salutem, no XV centenário de sua morte [Enc. Ad salutem,
20 de abril de 1930]: “São todos estes os bens”, diz Santo
Agostinho, “por causa dos quais as núpcias são boas: a
prole, a fidelidade, o sacramento” (Santo Agost. De bono
conj. c. XXIV, n. 32). Que com bom direito se pode afirmar
conterem estes três pontos um esplêndido compêndio de
toda a doutrina acerca do matrimônio cristão, declara-
-o eloquentemente o mesmo santo, ao dizer: “Na fidelida-
de, tem-se em vista que, fora do vínculo conjugal, não haja
união com outro ou com outra: na prole, que esta se acolha
amorosamente, se sustente com solicitude, se eduque reli-
giosamente; com o sacramento, enfim, que não se rompa
a vida comum, e que aquele ou aquela que se separa não
se junte a outrem nem mesmo por causa dos filhos. É esta
como que a regra das núpcias, na qual se enobrece a fecun-
didade da incontinência”. (S. Agost. De Gen. ad lit., livro IX.,
cap. VII; n. 12).”
CC irá afirmar então, como já o fizera Leão XIII e retoman-

153
do o CDC 1917, que o fim primeiro do matrimônio é a pro-
le e a sua educação:
CC 12: “Entre os benefícios do matrimônio ocupa, portanto,
o primeiro lugar a prole (...) Esta mesma verdade a deduz
brilhantemente Santo Agostinho das palavras do Apóstolo
S. Paulo a Timóteo (1 Tim 5, 14), dizendo: “que a procriação
dos filhos seja a razão do matrimônio o Apóstolo o teste-
munha nestes termos: eu quero que as jovens se casem. E,
como se lhe dissessem: mas por quê?, logo acrescenta: para
procriarem filhos, para serem mães de família”. (S. Agost. De
bono conj. cap. XXIV, n. 32).”
CC 14: “E, embora os cônjuges cristãos, conquanto sejam
santificados eles próprios, não possam transmitir a sua san-
tificação aos filhos, porque a geração natural da vida se
tornou, ao contrário, caminho de morte, pelo qual pas-
sa à prole o pecado original, eles participam, todavia, de
algum modo, da condição da primeira união no paraíso ter-
restre, cabendo-lhes oferecer a sua prole à Igreja, a fim de
que esta mãe fecundíssima de filhos de Deus a regenere pela
água purificadora do batismo para a justiça sobrenatural e
a torne prole de membros de Cristo, participantes da glória,
à qual todos aspiramos do íntimo do coração.”
E a vida sexual do casal?
CC 60: “A Santa Igreja também sabe perfeitamente que não
raro um dos cônjuges sofre o pecado mais do que o comete,
quando, por motivo verdadeiramente grave, admite a per-
versão da reta ordem, no que não consente e por isso não
é culpado, contanto que, neste caso, se lembre da lei da ca-
ridade e não deixe de afastar e demover o outro do pecado.
Nem se pode dizer que procedem contra a ordem da natu-
reza aqueles cônjuges que usam do seu direito do modo

154
devido e natural, embora por causas naturais, quer do
tempo, quer de certos defeitos, não possa nascer uma nova
vida. É que, quer no próprio matrimônio, quer no uso do di-
reito conjugal, há também fins secundários, como são o
auxílio mútuo, o fomentar o amor recíproco e o aquietar
a concupiscência, que os cônjuges de nenhum modo estão
proibidos de intentar, contanto que se respeite sempre a
natureza intrínseca do ato e, por conseguinte, a sua su-
bordinação ao fim principal.”
Resumindo: Fim primário – procriativo (prole e educa-
ção); secundário – unitivo (auxílio mútuo, fomentar o amor
recíproco e aquietar a concupiscência)
• GS supera a distinção de fim primário e secundário;
integra a sexualidade na vida do casal e afirma a procria-
ção como fecundidade decorrente da exigência própria do
amor matrimonial.
GS 48: “A íntima comunidade de vida e de amor conjugal
(...) O próprio Deus é o autor do matrimônio, o qual possui
diversos bens e fins, todos eles da máxima importância,
quer para a propagação do gênero humano, quer para o
proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros da
família, quer mesmo, finalmente, para a dignidade, estabi-
lidade, paz e prosperidade de toda a família humana. Por
sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor
conjugal estão ordenados para a procriação e educa-
ção da prole, que constituem como que a sua coroa. O
homem e a mulher, que, pela aliança conjugal «já não são
dois, mas uma só carne» (Mt. 19, 6), prestam-se recíproca
ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas e ati-
vidades, tomam consciência da própria unidade e cada vez
mais a realizam. Esta união íntima, já que é o dom recíproco

155
de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos fi-
lhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilida-
de da sua união”.
GS 49: “Este amor tem a sua expressão e realização peculiar
no ato próprio do matrimônio. São, portanto, honestos
e dignos os atos pelos quais os esposos se unem em intimi-
dade e pureza; realizados de modo autenticamente huma-
no, exprimem e alimentam a mútua entrega pela qual
se enriquecem um ao outro na alegria e gratidão. Esse
amor, ratificado pela promessa de ambos e, sobretudo, san-
cionado pelo sacramento de Cristo, é indissoluvelmente
fiel, de corpo e de espírito, na prosperidade e na adversida-
de; exclui, por isso, toda e qualquer espécie de adultério e di-
vórcio. A unidade do matrimônio, confirmada pelo Senhor,
manifesta-se também claramente na igual dignidade da
mulher e do homem que se deve reconhecer no mútuo e
pleno amor.”
Após expor a questão do controle da natalidade e a exor-
tação por prole numerosa:
GS 50: “No entanto, o matrimônio não foi instituído só
em ordem à procriação da prole. A própria natureza da
aliança indissolúvel entre as pessoas e o bem da prole exi-
gem que o mútuo amor dos esposos se exprima convenien-
temente, aumente e chegue à maturidade. E por isso, mesmo
que faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o
matrimônio conserva o seu valor e indissolubilidade, como
comunidade e comunhão de toda a vida.”
GS 51: “O Concílio não ignora que os esposos, na sua von-
tade de conduzir harmonicamente a própria vida conjugal,
encontram frequentes dificuldades em certas circunstâncias
da vida atual; que se podem encontrar em situações em que,

156
pelo menos temporariamente, não lhes é possível aumentar
o número de filhos e em que só dificilmente se mantêm a fi-
delidade do amor e a plena comunidade de vida. Mas quan-
do se suspende a intimidade da vida conjugal, não raro
se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da
prole; porque, nesse caso, ficam ameaçadas tanto a edu-
cação dos filhos como a coragem necessária para ter mais
filhos.”
[parágrafo retomado por AL 298, n.329 para alertar quan-
to a solução “Josefina” para os recasados, isto é, que o casal
se abstenha de relações sexuais]
• O papa Francisco em AL (recolhendo as contribui-
ções dos Sínodos dos Bispos) parte do Vaticano II (AL 80
citando GS 48) e o aprofundará:
→ É bom lembrar que o amor é o tema da Exortação e
toda ela é desenvolvida sobre ele; A Alegria do Amor;
→ A mudança já aparece na estrutura da Exortação (uni-
tivo - procriativo): Cap. IV: O Amor no Matrimônio; Cap. V: O
Amor Que se Torna Fecundo; Cap. VII: Reforçar a Educação
dos Filhos.
AL 88. “O amor vivido nas famílias é uma força permanente
para a vida da Igreja. «O fim unitivo do matrimônio é um
apelo constante a crescer e aprofundar este amor. Na sua
união de amor, os esposos experimentam a beleza da pa-
ternidade e da maternidade; partilham projetos e fadigas,
anseios e preocupações; aprendem a cuidar um do outro e
a perdoar-se mutuamente. Neste amor, celebram os seus
momentos felizes e ajudam-se nos episódios difíceis da his-
tória da sua vida. (...) A beleza do dom recíproco e gratuito,

157
a alegria pela vida que nasce e a amorosa solicitude de to-
dos os seus membros, desde os pequeninos aos idosos, são
apenas alguns dos frutos que tornam única e insubstituível
a resposta à vocação da família», (Relatio Finalis 2015, n.52)
tanto para a Igreja como para a sociedade inteira.”
O papa Francisco já havia chamado atenção no n.36 para
a ênfase quase exclusiva dada na história para o fim pro-
criativo:
“devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às
vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs
e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar
aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém
uma salutar reação de autocrítica. Além disso, muitas vezes
apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim
unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua
ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever
da procriação.”
Fim unitivo. Ênfase: a centralidade do amor conjugal
AL Cap. IV: O Amor no Matrimônio
→ Esse é o capítulo da Exortação em que aparece a
maior contribuição de Francisco; basta notar que é o ca-
pítulo que menos cita os Sínodos, apenas 1 vez, no n.158, e
já no contexto da Virgindade; Somente no capítulo 1º isso
acontece.
Juntamente com o capítulo V é indicado pelo papa como
os capítulos centrais de AL (n.6) dedicados ao amor.
É este o objetivo de AL, expresso de maneira muito cla-
ra em:

158
AL 89: “Com efeito, não poderemos encorajar um caminho
de fidelidade e doação recíproca, se não estimularmos o
crescimento, a consolidação e o aprofundamento do
amor conjugal e familiar. De fato, a graça do Sacramen-
to do Matrimônio destina-se, antes de tudo, ‘a aperfeiçoar
o amor dos cônjuges’ (CIgC, n.1641). (...) Mas a palavra
«amor», uma das mais usadas, muitas vezes aparece
desfigurada.”
→ Este problema – do uso da palavra amor – foi trabalhado
pelo papa Bento XVI em sua Encíclica Deus Caritas Est [Deus é
amor]: Sobre o amor cristão; o papa Francisco a utilizará, como
ele mesmo a cita em AL 70; aproveitemos aqui para ler uma
explicação da questão através dela:
“O termo «amor» tornou-se hoje uma das palavras mais
usadas e mesmo abusadas, à qual associamos signifi-
cados completamente diferentes. Embora o tema desta
Encíclica se concentre sobre a questão da compreensão e
da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da
Igreja, não podemos prescindir pura e simplesmente do sig-
nificado que esta palavra tem nas várias culturas e na lin-
guagem atual.
Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semânti-
co da palavra «amor»: fala-se de amor da pátria, amor à
profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre
pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e
amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o
amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem in-
divisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma
promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai
como arquétipo de amor por excelência, de tal modo
que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais

159
tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas es-
tas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o
amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações,
em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma
mesma palavra para indicar realidades totalmente diferen-
tes?”. (DCE, n.2)
O papa Francisco irá aprofundar o significado de amor
através de Paulo:
AL 90 (O nosso amor cotidiano): comenta o hino à ca-
ridade (1Cor 13,4-7), leitura frequente nas celebrações
matrimoniais, tirando preciosas consequências para a vida
conjugal; apresentando “algumas características do amor
verdadeiro”:
«O amor é paciente,
o amor é benfazejo;
não é invejoso,
não é presunçoso nem se incha de orgulho,
nada faz de vergonhoso,
não é interesseiro,
não se encoleriza,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas fica alegre com a verdade.
Ele desculpa tudo,
Crê tudo,
Espera tudo,
suporta tudo» (1 Cor 13, 4-7).
[O papa irá comentar cada um destes itens, dando pre-

160
ciosos conselhos para os casais; é um ótimo material para
ser refletido em grupos de casais]
AL 120: [a modo de conclusão]
“O cântico de São Paulo, que acabamos de repassar, permi-
te-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor
que une os esposos, amor santificado, enriquecido e ilu-
minado pela graça do sacramento do matrimônio. É uma
«união afetiva», espiritual e oblativa, mas que reúne em
si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja
capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão
enfraquecem.”
→ Este é um texto (1Cor 13) que permite vários níveis de
leitura, por isso, é bom lê-lo várias vezes;
→ Para ajudar na compreensão:
Dificuldade de tradução – isso todos já devem ter perce-
bido: algumas bíblias traduzem por Amor, outras por Cari-
dade; a palavra grega é ágape.
Precisamos já de início vencer dois preconceitos: o uso
em nossa vida cotidiana dos termos:
→ caridade (muito mais associado à misericórdia; “es-
mola”; parece depreciativo); esse termo vem do latim carus
= querido [mesma origem das nossas palavras: caro – como
em “caro amigo”, carícia], embora tenha sido associado
também à palavra grega kharis = graça; em geral, caridade
indica o amor ativo e desinteressado, que se põe a serviço dos
outros; ligado a kharis, aparece tendo origem religiosa. Foi
por isso utilizado para traduzir ágape.

161
→ erótico (associado a erotismo; comercialização capita-
lista da sexualidade; algo mais ou menos novo, o que sem-
pre houve foi a “prostituição”; Eros evoca em sentido amplo
todos os aspectos do amor, embora na história tenha sido
associado cada vez mais com a atração sexual). Eros é um
semideus da mitologia grega – ver: Banquete de Platão.
→ Retomemos AL 120: o hino paulino ajudou a entender
a caridade conjugal [“amor conjugal”] que é o amor típico
dos esposos – santificado e enriquecido pelo sacramento;
Francisco o define como: “união afetiva” (cit. Santo To-
más); espiritual e oblativa (do latim tardio: oblativu = “que
se oferece”; dádiva);
Mas essa caridade conjugal reúne em si a: Ternura da
amizade; e Paixão erótica.
O ser humano é um ser relacional, que busca e encon-
tra o outro ou os outros; essa relação assume várias conota-
ções, significados e importância. É aqui que entra o discur-
so sobre o amor.
→ AL integra numa síntese feliz estes três tipos clássi-
cos de amor: Ágape [caridade], Philia [amizade] e Eros
[erótico]. Embora, na vida do casal, os dois últimos estejam
orientados e adquiram uma perspectiva nova pelo primei-
ro.
Foram objeto de estudos profundos já na antiguidade:
Platão, Banquete – investiga o Eros; Aristóteles, Ética a Ni-
cômaco – Philia/amizade; O cristianismo primitivo irá de-

162
senvolver o Ágape – podemos encontrar uma síntese em
Bento XVI: DCE.
Vou apresentar um pouco esses tipos de amor, não na
ordem seguida pelo papa em AL, mas para facilitar a com-
preensão:
→ Amor erótico (Eros):
“A dimensão erótica do amor” (AL 150):
“Tudo isso nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O
próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente ma-
ravilhoso para as suas criaturas”.
A caridade conjugal é amor erótico.
AL 142: “O Concílio Vaticano II ensinou que este amor con-
jugal «compreende o bem de toda a pessoa e, por conse-
guinte, pode conferir especial dignidade às manifestações
do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e
sinais peculiares do amor conjugal» (GS 49). Deve haver al-
gum motivo para que um amor sem prazer nem paixão se
revele insuficiente para simbolizar a união do coração hu-
mano com Deus: «Todos os místicos afirmaram que o amor
sobrenatural e o amor celeste encontram os símbolos
que procuram mais no amor matrimonial do que na ami-
zade, no sentimento filial ou na dedicação a uma causa. E o
motivo encontra-se precisamente na sua totalidade» (Ser-
tillanges). Sendo assim, por que não determo-nos a falar
dos sentimentos e da sexualidade no matrimônio?” [tradu-
ção levemente retocada]
→ O dinamismo erótico traz para a caridade conjugal a
vivência psicofísica (matéria e espírito; corpo e alma):

163
AL 143: “Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos cha-
mavam-lhes «paixões») ocupam um lugar importante no
matrimônio. Geram-se quando «outro» se torna presente e
intervém na minha vida. É próprio de todo o ser vivo ten-
der para outra realidade, e esta tendência reveste-se
sempre de sinais afetivos basilares: prazer ou sofrimento,
alegria ou tristeza, ternura ou receio. São o pressuposto da
atividade psicológica mais elementar. O ser humano é um
vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado
de paixões.”
“Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o de-
sejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus
ama a alegria do ser humano, pois Ele criou tudo «para nos-
so bom uso» (1Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista
da sua ternura, quando nos propõe: « Meu filho, se tens com
quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente »
(Eclo 14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde
à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: «Em
um dia feliz desfruta dos bens» (Ecl 7, 14). A questão é ter a
liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas
de expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo
com as necessidades do amor mútuo.” (AL 149)
AL 157: “Entretanto a rejeição das distorções da sexualida-
de e do erotismo nunca deveria levar-nos ao seu desprezo
nem ao seu descuido. O ideal do matrimônio não pode con-
figurar-se apenas como uma doação generosa e sacrificada,
onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e
se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfa-
ção alguma. Lembremo-nos de que um amor verdadeiro
também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar
como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber,
com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do
amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual.”

164
A dimensão erótica caracteriza a caridade conjugal como
amor apaixonado e sexual. A paixão acende o desejo se-
xual que, por sua vez, alimenta o sentimento passional.
→ O magistério da Igreja, ao longo do século XX, supe-
rou a visão negativa que por muito tempo expressou frente
à paixão e a sexualidade.
O Vaticano II, alimentado pelo “personalismo cristão”,
reconheceu o valor positivo da dimensão erótica do amor
conjugal; João Paulo II em suas Catequeses sobre o amor
humano atesta a notável valorização do corpo sexuado e
do prazer sexual.
É principalmente dele que parte as colocações do papa
Francisco.
“Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O
próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente
maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e
evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se pro-
duza o «depauperamento de um valor autêntico». São João
Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a
«uma negação do valor do sexo humano» ou que o tolere
simplesmente «pela necessidade da procriação». A necessi-
dade sexual dos esposos não é objeto de menosprezo,
e «não se trata de modo algum de pôr em questão aquela
necessidade»” (AL 150; cit. João Paulo II, Catequese)
“A sexualidade não é um recurso para compensar ou entre-
ter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o
outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável.
Assim, «o coração humano torna-se participante, por assim
dizer, de outra espontaneidade». Neste contexto, o erotis-

165
mo aparece como uma manifestação especificamente
humana da sexualidade. Nele pode-se encontrar o «signi-
ficado esponsal do corpo e a autêntica dignidade do dom».
Nas suas catequeses sobre a teologia do corpo humano, São
João Paulo II ensinou que a corporeidade sexuada «é não só
fonte de fecundidade e de procriação», mas possui «a ca-
pacidade de exprimir o amor: exatamente aquele amor
em que o homem-pessoa se torna dom». O erotismo mais
saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, su-
põe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.”
(AL 151)
“Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a di-
mensão erótica do amor como um mal permitido ou como
um peso tolerável para o bem da família, mas como dom de
Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de
uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade
do outro, torna-se uma «afirmação amorosa plena e crista-
lina», mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração
humano, e assim, por um momento, «sente-se que a existên-
cia humana foi um sucesso».” (AL 152)
→ Mas o papa também alerta para o uso da sexualidade
despersonalizado e patológico; fonte de manipulação e ex-
ploração – AL 153;
“Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimônio, a se-
xualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação.”
(AL 154)
“É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de
submissão sexual.” (AL 156)
→ Amor de amizade (philia):

166
“Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal
é a ‘amizade maior’” (AL 123) citando Santo Tomás que por
sua vez se inspira em Aristóteles.
É uma das formas primordiais de amor, unindo pessoas
que podem ter origem muito diferente (de outras famílias,
nações); sem que haja atração sexual (embora ela possa
existir; quando excede a simples atração, em geral distin-
guimos da simples amizade – “amizade colorida”);
Aristóteles distinguia a amizade útil ou prazerosa (aquela
que busca o outro porque encontra nele alguma utilidade
ou prazer), daquela amizade autêntica (aquela que quer
bem o outro pelo que o outro é). No amor amigável se quer
bem o outro pelo que ele é.
A amizade se expressa na comunhão de ideais e valores
(“ter algo em comum”); na comunicação de experiências,
no plano de conhecimento pessoal e de intimidade afeti-
va. Nesse sentido, a amizade exige algum grau de convivên-
cia [ex. velhos amigos se reencontram pelas mídias sociais,
mas o contato não prospera; para a amizade “voltar” é pre-
ciso de convivência] e reciprocidade.
No caso do matrimônio, a amizade conjugal “se expressa
no projeto estável de partilhar e construir juntos toda a exis-
tência”, ou seja, contemplando “exclusividade indissolúvel”.
Leiamos o parágrafo todo:
AL 123: “Depois do amor que nos une a Deus, o amor con-
jugal é a «amizade maior». É uma união que tem todas
as características de uma boa amizade: busca do bem

167
do outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e
uma semelhança entre os amigos que se vai construin-
do com a vida partilhada. O matrimônio, porém, acres-
centa a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se
expressa no projeto estável de partilhar e construir juntos
toda a existência. Sejamos sinceros na leitura dos sinais da
realidade: quem está enamorado não projeta que essa re-
lação possa ser apenas por certo tempo; quem vive inten-
samente a alegria de se casar não está pensando em algo
passageiro; aqueles que acompanham a celebração de uma
união cheia de amor, embora frágil, esperam que possa per-
durar no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se
amem, mas também que sejam fiéis e permaneçam sempre
juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natu-
reza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo.
A união, que se cristaliza na promessa matrimonial para
sempre, é mais do que uma formalidade social ou uma tra-
dição, porque radica-se nas inclinações espontâneas da
pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança diante
de Deus, que exige fidelidade”.
Amor agápico (ágape)
A caridade conjugal é amor agápico.
Quando os cristãos quiseram expressar o amor, ou seja, a
relação afetuosa de Deus pelos homens e mulheres, revela-
do na pessoa de Cristo, em seus ensinamentos e ações, eles
utilizaram a palavra hebraica ahabá, traduzida posterior-
mente pelos LXX com a palavra grega ágape e, posterior-
mente, para o latim com caritas.
Podemos tomar um primeiro contato através da Encícli-
ca Deus Caristas Est, onde, após mencionar o livro Cântico

168
dos Cânticos, Bento XVI explica o uso dos termos:
“Como deve ser vivido o amor, para que se realize plena-
mente a sua promessa humana e divina? Uma primeira in-
dicação importante, podemos encontrá-la no Cântico dos
Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhe-
cido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predomi-
nante, as poesias contidas neste livro são originalmente
cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israe-
lita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal.
Neste contexto, é muito elucidativo o fato de, ao longo do
livro, se encontrarem duas palavras distintas para desig-
nar o «amor». Primeiro, aparece a palavra «dodim», um
plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação
de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substi-
tuída por «ahabà», que, na versão grega do Antigo Testa-
mento, é traduzida pelo termo de som semelhante «agape»,
que se tornou, como vimos, o termo característico para
a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor
indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo
exprime a experiência do amor que agora se torna ver-
dadeiramente descoberta do outro, superando assim o
caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o
amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se
busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da
felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se
renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o.
Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para
as suas íntimas purificações, que ele procure agora o cará-
ter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da ex-
clusividade — «apenas esta única pessoa» — e no sentido
de ser «para sempre». O amor compreende a totalidade
da existência em toda a sua dimensão, inclusive a tem-

169
poral. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua pro-
messa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o
amor é «êxtase»; êxtase, não no sentido de um instante de
inebriamento, mas como caminho, como êxodo perma-
nente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação
no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencon-
tro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus:
«Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a
perder, conservá-la-á» (Lc 17, 33) — disse Jesus; afirmação
esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes
(cf. Mt 10, 39; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; Jo 12, 25). Assim des-
creve Jesus o seu caminho pessoal, que O conduz, através
da cruz, à ressurreição: o caminho do grão de trigo que cai
na terra e morre e assim dá muito fruto. Partindo do centro
do seu sacrifício pessoal e do amor que aí alcança a sua ple-
nitude, Ele, com tais palavras, descreve também a essência
do amor e da existência humana em geral.” (DCE 6)
Ágape foi utilizado então para definir o tipo de relação
afetiva e efetiva de Jesus e dos primeiros cristãos. Enquan-
to a
→ Philia/amizade evoca uma partilha de ideais e vivên-
cias fraternas (Homero dizia justamente que amigos são
“duas pessoas que vão juntas” – Ilíade X,224);
→ Eros/sexualidade evoca basicamente o amor como de-
sejo;
→ Ágape indica o amor como experiência de gratuida-
de e de ajuda aos outros. (Ágape também indicava entre
os gregos um tipo de partilha de refeição, com conotações
amistosas e até eróticas; o que possibilitará, no início da
Igreja indicar com ela também as refeições que precediam

170
a eucaristia e a própria eucaristia.)
Por isso se diz que ágape é um amor espiritual e obla-
tivo:
→ Espiritual porque se alimenta do Espírito Santo, que
alimenta o coração do homem e da mulher crentes com o
amor agapico criador divino, na linha do que nos diz Paulo
em Rm 5,5:
“E a esperança não engana, pois o amor de Deus foi der-
ramado em nossos corações pelo Espírito San-
to que nos foi dado.”
→ Oblativo (ou seja, dadivoso) porque dispõe os cônju-
ges para a doação da vida um para o outro e para os filhos.
O ágape é amor gratuito.
Pelo amor erótico, busco o outro para mim; pelo amor
agapico, busco o outro pelo outro e me dou a ele.
O amor agapico é espontâneo e não egoísta; ama o ou-
tro porque quer amar e não porque pretende tirar algum
benefício. Neste sentido, seu princípio está em Deus.
Também não dependerá do valor do bem amado, no
caso, da pessoa amada. Deus ama a todos, indistintamente.
Jesus expressa amor justamente por aqueles que a socie-
dade descartava: enfermos, prostitutas, impuros... Não os
ama porque são bons, mas para que sejam bons (e felizes).
[Nós geralmente queremos que as pessoas “mereçam”
nosso amor ou ajuda; não é inteiramente gratuito]
Um exemplo para ficar mais claro: Mt 5,43-48 (o verbo

171
amar é sempre agape):
43 «
Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu pró-
ximo, e odeie o seu inimigo!’ 44 Eu, porém,
lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aque-
les que perseguem vocês! 45 Assim vocês se tornarão
filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nas-
cer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre jus-
tos e injustos. 46 Pois, se vocês amam somen-
te aqueles que os amam, que recompensa vocês
terão? Os cobradores de impostos não fazem a mes-
ma coisa? 47 E se vocês cumprimentam somente seus ir-
mãos, o que é que vocês fazem de extraordinário? Os pa-
gãos não fazem a mesma coisa? 48 Portanto, sejam perfei-
tos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu.»
Em Lc 10,25-37: O Bom Samaritano: Jesus conta esta
parábola para responder quem é o “próximo” a quem se
deve amar: v.27 – agapeseis; o samaritano teve compaixão,
misericórdia – características do ágape. Não havia philia/
amizade, nem o conhecia; também não Eros, desejo; mas
havia ágape.
Leiamos AL 120 completo – já o lemos a primeira parte:
“O cântico de São Paulo, que acabamos de repassar, permi-
te-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor
que une os esposos, amor santificado, enriquecido e ilu-
minado pela graça do sacramento do matrimônio. É uma
«união afetiva», espiritual e oblativa, mas que reúne em
si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja
capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão
enfraquecem. O Papa Pio XI ensinava que este amor per-
meia todos os deveres da vida conjugal e «detém como
que o primado da nobreza». (CC) Com efeito, este amor for-

172
te, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da aliança indes-
trutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entre-
ga até ao fim na cruz. «O Espírito, que o Senhor infunde, dá
um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de
se amarem como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge
assim aquela plenitude para a qual está interiormente orde-
nado: a caridade conjugal» (FC n.13)”.
AL 128: “A experiência estética do amor exprime-se naquele
olhar que contempla o outro como fim em si mesmo, ainda
que esteja doente, velho ou privado de atrativos sensíveis. O
olhar que aprecia tem uma enorme importância e, recusá-
-lo, habitualmente faz dano.”
AL 129: “A alegria deste amor contemplativo deve ser cul-
tivada. Uma vez que somos feitos para amar, sabemos que
não há maior alegria do que partilhar um bem: «Dá e recebe,
e alegra a tua vida» (Eclo 14, 16). As alegrias mais intensas
da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade
dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito
recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando
a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este
elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a
alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas.
Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de
quem olha para si mesmo, mas o do amante que se com-
praz no bem do ser amado, que transborda para o outro
e se torna fecundo nele.”
A apresentação que AL faz do amor conjugal une estas
três dimensões do verdadeiro amor. A caridade conjugal
é desejo do outro (eros); amizade com o outro (philia) e
dom de si ao outro (ágape). Um enriquece o outro e, em
momentos e situações diversas, um pode predominar, mas
os três estarão presentes em alguma medida.

173
A gratuidade do amor agapico acrescenta certa perfei-
ção ao amor de amizade; revela a sacralidade do outro. En-
riquece tanto o amor de amizade quanto o erótico.
A amizade conjugal personaliza o desejo erótico, evitan-
do que ele se reduza a mero instinto físico ou pulsão psí-
quica, valorizando a qualidade propriamente humana da
sexualidade.
Ninguém vive somente doando-se, mas necessita tam-
bém de amor. O amor erótico e a amizade conjugal dão con-
sistência e prazer à caridade conjugal. O ágape sem Eros se
fecha em um mundo somente seu, admirável, mas distante
da existência propriamente humana (AL 157).
Ao longo da história se explorou muito o amor agápico
no matrimônio; o amor de amizade aparece como desejá-
vel; já o amor erótico quase sempre foi tratado de maneira
superficial, quando não preconceituosa. AL irá dedicar es-
paço a este tipo de amor conjugal e estabelecer uma sínte-
se feliz.
AL irá insistir em algumas idéias:
→ A vida conjugal “se realiza em um caminho de contí-
nuo crescimento. Esta forma muito particular de amor, que
é o matrimônio, é chamada a um amadurecimento constan-
te...” (AL 134);
→ não se deve exigir do matrimonio mais do que real-
mente é;
“Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idíli-
co e perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para

174
crescer. Uma ideia celestial do amor terreno esquece que o
melhor ainda não foi alcançado, o vinho amadurecido com
o tempo. Como recordaram os bispos do Chile, «não existem
as famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consu-
mista nos propõe. Nelas, não passam os anos, não existe a
doença, a tribulação nem a morte. (...) A publicidade con-
sumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada
a ver com a realidade que devem enfrentar no dia-a-dia os
pais e as mães de família». É mais saudável aceitar com re-
alismo os limites, os desafios e as imperfeições, e dar ouvi-
dos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor
e cultivar a solidez da união, aconteça o que acontecer”. (AL
135) [um dos critérios que o papa segue é justamente o
“realismo”]
→ Diálogo
“O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável
para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e
familiar. Mas requer uma longa e diligente aprendizagem.
Homens e mulheres, adultos e jovens têm maneiras diversas
de comunicar, usam linguagens diferentes, regem-se por có-
digos distintos. O modo de perguntar, a forma de responder,
o tom usado, o momento escolhido e muitos outros fatores
podem condicionar a comunicação. Além disso, é sempre ne-
cessário cultivar algumas atitudes que são expressão de amor
e tornam possível o diálogo autêntico.” (AL 136)
Aprende-se a dialogar na vida familiar; mas esta é tam-
bém uma missão da pastoral para namorados e noivos.
→ AL expõe de forma muito equilibrada e atraente a
questão do amor, afetividade e vida sexual entre casais;
→ Principalmente entre os n.142-157; depois fala da vir-
gindade, algo que já tivemos oportunidade de ver.

175
• Fim Procriativo ou O amor que se torna fecundo (AL
cap.V)
→ A Igreja sempre afirmou como uma das finalidades
do matrimônio a transmissão da vida – a fecundidade; por
muito tempo, foi mesmo a finalidade primordial; a que
dava sentido ao ato sexual entre os cônjuges;
→ É condição para o matrimônio como sacramento:
O próprio Ritual do Matrimônio prevê uma pergunta que
antecede o consentimento (e o condiciona):
“Estais dispostos a receber com amor os filhos que Deus vos
confiar, educando-os na lei de Cristo e da Igreja?”
→ A Igreja sempre incentivou e felicitou as famílias com
muitos filhos;
→ Condenou qualquer tipo de intervenção que signifi-
casse aborto ou eliminação da vida; ou a limitação forçada
do número de filhos.
→ Questão: como controlar a natalidade. Nas últimas
décadas se tem calado sobre essa questão, mesmo agora,
não se tem muita discussão. Não tenho visto nem mesmo
quando apresentam AL; nós vamos fazer uma resenha da
questão – sabendo que ela é muito “espinhosa”. Aqui há um
grande desencontro entre o ensinamento oficial da Igreja e
a vida cotidiana dos fiéis.
Pio XI: Casti Connubii: [algumas idéias básicas sobre os
pontos acima]
CC 9: “Nenhuma lei humana poderia tirar ao homem o di-

176
reito natural a primordial do casamento, ou limitar de qual-
quer modo aquilo que é a própria causa da união conjugal,
estabelecida desde o princípio pela autoridade de Deus:
‘crescite et multiplicamini’ (Gn 1, 28)”.
CC 12: “Entre os benefícios do matrimônio ocupa, portanto,
o primeiro lugar a prole. Em verdade, o próprio Criador do
gênero humano, o qual, em sua bondade, quis servir-se do
ministério dos homens para a propagação da vida, nos deu
este ensino quando, no paraíso terrestre, instituindo o ma-
trimônio, disse aos nossos primeiros pais e, neles, a todos os
futuros esposos: “crescei e multiplicai-vos e enchei a terra”.
(Gen 1, 28). Esta mesma verdade a deduz brilhantemente
Santo Agostinho das palavras do Apóstolo S. Paulo a Timó-
teo (1 Tim 5, 14), dizendo: “que a procriação dos filhos seja a
razão do matrimônio o Apóstolo o testemunha nestes ter-
mos: eu quero que as jovens se casem. E, como se lhe disses-
sem: mas por quê?, logo acrescenta: para procriarem filhos,
para serem mães de família”. (S. Agost. De bono conj. cap.
XXIV, n. 32).”
CC 14: “Os pais cristãos compreenderão, além disso, que não
são destinados só a propagar e conservar na terra o gênero
humano e não só também a formar quaisquer adorado-
res do verdadeiro Deus, mas a dar filhos à Igreja, a procriar
concidadãos dos santos e familiares de Deus (Ef 2, 19), a fim
de que o povo dedicado ao culto do nosso Deus e Salvador
cresça cada vez mais, de dia para dia. E, embora os cônjuges
cristãos, conquanto sejam santificados eles próprios, não
possam transmitir a sua santificação aos filhos, porque a
geração natural da vida se tornou, ao contrário, caminho de
morte, pelo qual passa à prole o pecado original, eles parti-
cipam, todavia, de algum modo, da condição da primeira
união no paraíso terrestre, cabendo-lhes oferecer a sua pro-
le à Igreja, a fim de que esta mãe fecundíssima de filhos de

177
Deus a regenere pela água purificadora do batismo para a
justiça sobrenatural e a torne prole de membros de Cristo,
participantes da glória, à qual todos aspiramos do íntimo
do coração.”
Insídias contra a fecundidade
CC 54: “Mas, para tratarmos agora, Veneráveis Irmãos, de
cada um dos pontos que se opõem aos diversos bens do
matrimônio, falemos primeiro da prole, que muitos ousam
chamar molesto encargo do casamento e afirmam dever ser
evitada cuidadosamente pelos cônjuges, não pela honesta
continência (permitida até no matrimônio, pelo consenti-
mento de ambos os cônjuges), mas viciando o ato natural.
Alguns reclamam para si esta liberdade criminosa, porque,
aborrecendo os cuidados da prole, desejam somente satis-
fazer a sua voluptuosidade, sem nenhum encargo; outros
porque, dizem, não podem observar a continência nem per-
mitir a prole, por causa das dificuldades quer pessoais, quer
da mãe, quer da economia doméstica.
55. Mas nenhuma razão, sem dúvida, embora gravíssima,
pode tornar conforme com à natureza e honesto aquilo que
intrinsecamente é contra a natureza. Sendo o ato conju-
gal, por sua própria natureza, destinado à geração da
prole, aqueles que, exercendo-a, deliberadamente o
destituem da sua força e da sua eficácia natural proce-
dem contra a natureza e praticam um ato torpe e intrin-
secamente desonesto.
56. Não admira pois que, segundo atesta a Sagrada Escritu-
ra, a Majestade divina odeie sumamente este nefando cri-
me e algumas vezes o tenha castigado com a morte, como
recorda Santo Agostinho: “Ainda com a mulher legítima, o
ato matrimonial é ilícito e desonesto quando se evita a
concepção da prole. Assim fazia Onã, filho de Judá, e por

178
isso Deus o matou” (Sto. Agost., De conjug., livro, II n. 12; cf.
Gn 38, 8-10.).
Solene condenação
57. Por conseguinte, havendo alguns que, afastando-se ma-
nifestamente da doutrina cristã, ensinada desde o princípio e
nunca interrompida, pretenderam publicamente proclamar,
há pouco, doutrina diversa acerca deste modo de proceder,
a Igreja Católica, a quem o próprio Deus confiou a missão de
ensinar e defender a integridade e a honestidade dos costu-
mes, posta no meio desta ruína moral para preservar de tanta
torpeza a castidade da união nupcial, proclama altamente e
de novo promulga pela Nossa boca: qualquer uso do matri-
mônio em que, pela malícia humana, o ato seja destituí-
do da sua natural força procriadora infringe a lei de Deus
e da natureza, e aqueles que ousarem cometer tais ações
se tornam réus de culpa grave.
58. Por isso, em virtude da Nossa suprema autoridade e do
cuidado da salvação de todas as almas, advertimos aos sa-
cerdotes que se entregam ao Ministério de ouvir confissões, e
todos os outros curas de almas, que não deixem errar os fiéis
que lhes foram confiados em ponto tão grave da lei de Deus, e
muito mais que se conservem eles próprios imunes dessas per-
niciosas doutrinas e que, de nenhum modo, sejam coniventes
com elas. Se, porém, algum confessor ou pastor de almas, o
que Deus não permita, induzir ele próprio nestes erros os fi-
éis que lhe foram confiados, ou ao menos, quer aprovando,
quer se calando culposamente, neles os confirmar, saiba
que tem de dar contas severas a Deus, Supremo Juiz, de
ter traído a sua missão, e considere que lhe são dirigidas
aquelas palavras de Cristo: “São cegos e guias de cegos; e, se o
cego serve de guia ao cego, ambos cairão no abismo” (Mt 15,
14; Santo Ofício, 22 de novembro 1922).”

179
Por isso, muitos sacerdotes diziam após apresentar a
hóstia e antes da comunhão: “lembro que as mulheres que
tomam pílula/anticoncepcional não podem comungar”;
como se o maior pecado que uma pessoa pudesse fazer
fosse este. Imagine se o padre fosse elencar todos os pe-
cados graves que impossibilitam comungar... O esposo da
mulher que toma anticoncepcional poderia comungar?
→ quais seriam os meios para “impedir a gravidez”?;
→ é bom lembrarmos também que estamos em 1930,
com o fascismo e o nazismo se estruturando...
Concílio Vaticano II: Gaudium et Spes
Para entender o seu contexto; um comentário com “au-
toridade”:
“A decisão de João XXIII de convocar um Concílio univer-
sal suscitou nos católicos, entre outras coisas, a viva
esperança de uma solução definitiva do problema da
natalidade, problema angustioso para tantas consciên-
cias. Uma comissão preparatória redigiu um longo inven-
tário do ensinamento anterior do magistério da Igreja.
Logo, no entanto, os pastores em confronto com a vida e
a inquietação dos fiéis sentiram a necessidade de ampliar
esses dados por um diálogo mais direto com aqueles que
se achavam imediatamente interessados no assunto.
Essa atenção dada à vida real, notadamente à vida dos
esposos, suscitou o projeto de um esquema sobre a
igreja no mundo de hoje. Optando por essa perspectiva,
o Concílio engajava-se intrepidamente no exame apro-
fundado e realista das principais questões enfrentadas
por nossos contemporâneos. Era preciso, porém, respei-

180
tar o alcance de um Sínodo geral, cujas sentenças são
válidas para além da problemática de uma época. Por
esse motivo, o Papa Paulo VI deixou ao Concílio o estudo
dos fundamentos doutrinais e reservou para si o exame
das soluções ou das aplicações concretas quanto a re-
gulação da natalidade.
A tarefa assim distribuída, foi apresentado no outono de
1964 um novo projeto de texto sobre o matrimônio à ter-
ceira sessão do Concílio, no quadro do esquema sobre a
Igreja no mundo de hoje. Tinha esse texto a ambição de
apresentar uma ‘carta magna’ da espiritualidade conjugal,
operando a junção entre a doutrina anterior e os pontos
de vista mais modernos sobre o matrimônio e a família.”
(HEYLEN 1967, p.358)
→ Algo muito semelhante com o que aconteceu quando
o papa Francisco anunciou dois Sínodos sobre a família e
publicou AL em relação à questão da possibilidade de co-
munhão para casais recasados.
→ Já vimos que o Vaticano II não irá usar a classificação
de bem primário e secundário para indicar o bem da prole e
dos esposos; irá apresentar também uma visão mais positi-
va da vida sexual no matrimônio.
→ Leiamos alguns textos sobre nosso tema:
GS 48. “Por sua própria índole, a instituição matrimonial e o
amor conjugal estão ordenados para a procriação e edu-
cação da prole, que constituem como que a sua coroa”.
“Precedidos assim pelo exemplo e oração familiar dos pais,
tanto os filhos como todos os que vivem no círculo familiar
encontrarão mais facilmente o caminho da existência hu-
mana, da salvação e da santidade. Quanto aos esposos,

181
revestidos com a dignidade e o encargo da paternidade e
maternidade, cumprirão diligentemente o seu dever de
educação, sobretudo religiosa, que a eles cabe em pri-
meiro lugar. Os filhos, como membros vivos da família,
contribuem a seu modo para a santificação dos pais. Cor-
responderão, com a sua gratidão, piedade filial e confiança
aos benefícios recebidos dos pais e assisti-los-ão, como bons
filhos, nas dificuldades e na solidão da velhice”.
GS 50: “O matrimônio e o amor conjugal ordenam-se por
sua própria natureza à geração e educação da prole. Os fi-
lhos são, sem dúvida, o maior dom do matrimônio e contri-
buem muito para o bem dos próprios pais. O mesmo Deus
que disse «não é bom que o homem esteja só» (Gn 2,18) e
que «desde a origem fez o homem varão e mulher» (Mt
19,14), querendo comunicar-lhe uma participação espe-
cial na Sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher
dizendo: «sede fecundos e multiplicai-vos» (Gn 1,28). Por
isso, o autêntico cultivo do amor conjugal, e toda a vida
familiar que dele nasce, sem por de lado os outros fins
do matrimônio, tendem a que os esposos, com fortale-
za de ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor
do criador e salvador, que por meio deles aumenta cada
dia mais e enriquece a sua família.
Os esposos sabem que no dever de transmitir e educar a vida
humana - dever que deve ser considerado como a sua mis-
são específica - eles são os cooperadores do amor de Deus
criador e como que os seus intérpretes. Desempenhar-se-ão,
portanto, desta missão com a sua responsabilidade huma-
na e cristã; comum respeito cheio de docilidade para com
Deus, de comum acordo e com esforço comum, formarão
retamente a própria consciência, tendo em conta o seu
bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão
a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria

182
situação e tendo, finalmente, em consideração o bem da
comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria
Igreja. São os próprios esposos que, em última instância,
devem diante de Deus tomar esta decisão. Mas, no seu
modo de proceder, tenham os esposos consciência de
que não podem agir arbitrariamente, mas que sempre
se devem guiar pela consciência, que se deve conformar
com a lei divina, e ser dóceis ao magistério da Igreja,
que autenticamente a interpreta à luz do Evangelho. Essa
lei divina manifesta a plena significação do amor conjugal,
protege-o e estimula-o para a sua perfeição autenticamen-
te humana. Assim, os esposos cristãos, confiados na divina
Providência e cultivando o espírito de sacrifício, dão glória
ao Criador e caminham para a perfeição em Cristo quando
se desempenham do seu dever de procriar com responsabili-
dade generosa, humana e cristã. Entre os esposos que deste
modo satisfazem à missão que Deus lhes confiou, devem ser
especialmente lembrados aqueles que, de comum acordo e
com prudência, aceitam com grandeza de ânimo educar
uma prole numerosa.
No entanto, o matrimônio não foi instituído só em ordem à
procriação da prole. A própria natureza da aliança indisso-
lúvel entre as pessoas e o bem da prole exigem que o mútuo
amor dos esposos se exprima convenientemente, aumente
e chegue à maturidade. E por isso, mesmo que faltem os fi-
lhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimônio
conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade
e comunhão de toda a vida.”
O amor conjugal e o respeito pela vida humana
GS 51: “O Concílio não ignora que os esposos, na sua von-
tade de conduzir harmonicamente a própria vida conjugal,
encontram frequentes dificuldades em certas circunstâncias

183
da vida atual; que se podem encontrar em situações em que,
pelo menos temporariamente, não lhes é possível aumentar
o número de filhos e em que só dificilmente se mantêm a fi-
delidade do amor e a plena comunidade de vida. Mas quan-
do se suspende a intimidade da vida conjugal, não raro
se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da
prole; porque, nesse caso, ficam ameaçadas tanto a
educação dos filhos como a coragem necessária para
ter mais filhos.
Não falta quem se atreva a dar soluções imorais a estes proble-
mas, sem recuar sequer perante o homicídio. Mas a Igreja re-
corda que não pode haver verdadeira incompatibilidade entre
as leis divinas que regem a transmissão da vida e o desenvolvi-
mento do autêntico amor conjugal.
Com efeito, Deus, senhor da vida, confiou aos homens, para
que estes desempenhassem de um modo digno dos mesmos
homens, o nobre encargo de conservar a vida. Esta deve,
pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o
primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio
são crimes abomináveis. A índole sexual humana e o poder
gerador do homem, eles superam de modo admirável o que
se encontra nos graus inferiores da vida; daqui se segue que
os mesmos atos específicos da vida conjugal, realizados
segundo a autêntica dignidade humana, devem ser objeto
de grande respeito. Quando se trata, portanto, de conciliar
o amor conjugal com a transmissão responsável da vida,
a moralidade do comportamento não depende apenas da
sinceridade da intenção e da apreciação dos motivos; deve
também determinar-se por critérios objetivos, tomados da
natureza da pessoa e dos seus atos; critérios que respeitem,
em um contexto de autêntico amor, o sentido da mútua do-
ação e da procriação humana. Tudo isto só é possível se se
cultivar sinceramente a virtude da castidade conjugal.

184
Segundo estes princípios, não é lícito aos filhos da Igreja
adotar, na regulação dos nascimentos, caminhos que o
magistério, explicitando a lei divina, reprova.
Todos, finalmente, tenham bem presente que a vida huma-
na e a missão de transmiti-la não se limitam a este mundo,
nem podem ser medidas ou compreendidas unicamente em
função dele, mas que estão sempre relacionadas com o eter-
no destino do homem.”
→ O Concílio não determina na prática como regular a
natalidade; dá indicações muito gerais; chama à responsa-
bilidade os casais que devem ser fiéis à própria consciência;
mas indica que a última palavra deverá caber ao Magistério
da Igreja, a quem docilmente deverão obedecer. Uma res-
posta mais concreta será publicada pelo papa.
• Paulo VI, Humanae Vitae. Sobre a regulação da nata-
lidade (25/07/1968):
HV 1. “O gravíssimo dever de transmitir a vida humana,
pelo qual os esposos são os colaboradores livres e responsá-
veis de Deus Criador, foi sempre para eles fonte de grandes
alegrias, se bem que, algumas vezes, acompanhadas de não
poucas dificuldades e angústias.
Em todos os tempos o cumprimento deste dever pôs à
consciência dos cônjuges sérios problemas; mas, mais
recentemente, com o desenvolver-se da sociedade, produ-
ziram-se modificações tais, que fazem aparecer ques-
tões novas que a Igreja não podia ignorar, tratando-se
de matéria que tão de perto diz respeito à vida e à felicidade
dos homens”.
→ Mudanças: rápido desenvolvimento demográfico;
condições de trabalho e habitação; o modo de considerar

185
a pessoa da mulher e o seu lugar na sociedade; progresso
científico (inclusive com novos métodos de controle da na-
talidade);
→ Questões: o novo estado das coisas não exigiria “uma
revisão das normas éticas vigentes”? (HV 3);
A competência do Magistério sobre essa questão (HV 4).
HV 5. “A consciência desta mesma missão levou-nos a con-
firmar e a ampliar a Comissão de Estudo, que o nosso pre-
decessor, de venerável memória, João XXIII tinha constituí-
do, em março de 1963. Esta Comissão, que incluía também
alguns casais de esposos, além de muitos estudiosos das
várias matérias pertinentes, tinha por finalidade: primeiro,
recolher opiniões sobre os novos problemas respeitantes
à vida conjugal e, em particular, à regulação da natali-
dade; e depois, fornecer os elementos oportunos de infor-
mação, para que o Magistério pudesse dar uma resposta
adequada à expectativa não só dos fiéis, mas mesmo da
opinião pública mundial.”
A resposta do Magistério
HV 6. “As conclusões a que tinha chegado a Comissão
não podiam, contudo, ser consideradas por nós como defi-
nitivas, nem dispensar-nos de um exame pessoal do grave
problema; até mesmo porque, no seio da própria Comissão,
não se tinha chegado a um pleno acordo de juízos, acerca
das normas morais que se deviam propor e, sobretudo, por-
que tinham aflorado alguns critérios de soluções que se
afastavam da doutrina moral sobre o matrimônio, pro-
posta com firmeza constante, pelo Magistério da Igreja.
Por isso, depois de termos examinado atentamente a do-
cumentação que nos foi preparada, depois de aturada re-

186
flexão e de insistentes orações, é nossa intenção agora, em
virtude do mandato que nos foi confiado por Cristo, dar a
nossa resposta a estes graves problemas.”
→ Antes de apresentar sua resposta, o papa faz uma
apresentação dos princípios doutrinais acerca do sacra-
mento do matrimônio, à luz do Vaticano II. Apresentando
de modo particular o amor conjugal e suas características:
ser plenamente humano (espiritual e sensível); totalizante,
fiel e exclusivo, até a morte; fecundo; paternidade respon-
sável.
Respeitar a natureza e a finalidade do ato matrimo-
nial
HV 11. “Estes atos, com os quais os esposos se unem em
casta intimidade e através dos quais se transmite a vida
humana, são, como recordou o recente Concílio, ‘honestos
e dignos’; e não deixam de ser legítimos se, por causas in-
dependentes da vontade dos cônjuges, se prevê que vão ser
infecundos, pois que permanecem destinados a exprimir e
a consolidar a sua união. De fato, como o atesta a experi-
ência, não se segue sempre uma nova vida a cada um dos
atos conjugais. Deus dispôs com sabedoria leis e ritmos
naturais de fecundidade, que já por si mesmos distanciam
o suceder-se dos nascimentos. Mas, chamando a atenção
dos homens para a observância das normas da lei natural,
interpretada pela sua doutrina constante, a Igreja ensina
que qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto
à transmissão da vida.”
Inseparáveis os dois aspectos: união e procriação
HV 12. “Esta doutrina, muitas vezes exposta pelo Magisté-
rio, está fundada sobre a conexão inseparável que Deus

187
quis e que o homem não pode alterar por sua iniciativa,
entre os dois significados do ato conjugal: o significado
unitivo e o significado procriador.
Na verdade, pela sua estrutura íntima, o ato conjugal, ao
mesmo tempo que une profundamente os esposos, torna-os
aptos para a geração de novas vidas, segundo leis inscritas
no próprio ser do homem e da mulher. Salvaguardando
estes dois aspectos essenciais, unitivo e procriador, o
ato conjugal conserva integralmente o sentido de amor
mútuo e verdadeiro e a sua ordenação para a altíssima
vocação do homem para a paternidade. Nós pensamos
que os homens do nosso tempo estão particularmente em
condições de apreender o caráter profundamente razoável
e humano deste princípio fundamental.”
Vias ilícitas para a regulação dos nascimentos
HV 14. “Em conformidade com estes pontos essenciais da
visão humana e cristã do matrimônio, devemos, uma vez
mais, declarar que é absolutamente de excluir, como via
legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção
direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o
aborto querido diretamente e procurado, mesmo por ra-
zões terapêuticas.
É de excluir de igual modo, como o Magistério da Igreja re-
petidamente declarou, a esterilização direta, quer perpé-
tua quer temporária, tanto do homem como da mulher.
É, ainda, de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato
conjugal, ou durante a sua realização, ou também duran-
te o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se
proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a
procriação.
Não se podem invocar, como razões válidas, para a justifi-

188
cação dos atos conjugais tornados intencionalmente infe-
cundos, o mal menor (...) É um erro, por conseguinte, pensar
que um ato conjugal, tornado voluntariamente infecundo, e
por isso intrinsecamente desonesto, possa ser coonestado
pelo conjunto de uma vida conjugal fecunda.”
→ A solução “honesta e digna” para a regulação da nata-
lidade não pode estar em meios artificiais, mas somente no
recurso aos períodos infecundos:
HV 16. “... perguntam-se alguns, se atualmente não será
talvez razoável em muitas circunstâncias recorrer à
regulação artificial dos nascimentos, uma vez que, com
isso, se obtém a harmonia e a tranquilidade da família e me-
lhores condições para a educação dos filhos já nascidos. A
este quesito é necessário responder com clareza: a Igreja é
a primeira a elogiar e a recomendar a intervenção da inteli-
gência, numa obra que tão de perto associa a criatura racio-
nal com o seu Criador; mas, afirma também que isso se deve
fazer respeitando sempre a ordem estabelecida por Deus.
Se, portanto, existem motivos sérios para distanciar os nas-
cimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicoló-
gicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores, a Igreja
ensina que então é lícito ter em conta os ritmos naturais
imanentes às funções geradoras, para usar do matri-
mônio só nos períodos infecundos e, deste modo, regular
a natalidade, sem ofender os princípios morais que acaba-
mos de recordar.
A Igreja é coerente consigo própria, quando assim conside-
ra lícito o recurso aos períodos infecundos, ao mesmo
tempo que condena sempre como ilícito o uso dos meios
diretamente contrários à fecundação, mesmo que tal uso
seja inspirado em razões que podem aparecer honestas e
sérias.”

189
GRAVES CONSEQUÊNCIAS DOS MÉTODOS DE REGULA-
ÇÃO ARTIFICIAL DA NATALIDADE
HV 17. “Os homens retos poderão convencer-se ainda mais
da fundamentação da doutrina da Igreja neste campo, se
quiserem refletir nas conseqüências dos métodos da regula-
ção artificial da natalidade.
Considerem, antes de mais, o caminho amplo e fácil que tais
métodos abririam à infïdelidade conjugal e à degradação da
moralidade. (...)
É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das
práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela
mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e
psicológico dela, chegue a considerá-la como simples ins-
trumento de prazer egoísta e não mais como a sua compa-
nheira, respeitada e amada.
Pense-se ainda seriamente na arma perigosa que se viria a
pôr nas mãos de autoridades públicas, pouco preocupadas
com exigências morais. (...)
Deste modo, os homens, querendo evitar dificuldades indivi-
duais, familiares, ou sociais, que se verificam na observância
da lei divina, acabariam por deixar à mercê da intervenção
das autoridades públicas o setor mais pessoal e mais reser-
vado da intimidade conjugal.”
→ Ao expor algumas perspectivas pastorais, encontra-
mos um parágrafo para os sacerdotes – interessante con-
frontar com o de CC:
HV 29. “Não minimizar em nada a doutrina salutar de Cristo
é forma de caridade eminente para com as almas. Mas, isso
deve andar sempre acompanhado também de paciência
e de bondade, de que o mesmo Senhor deu o exemplo, ao

190
tratar com os homens. Tendo vindo para salvar e não para
julgar, Ele foi intransigente com o mal, mas misericordioso
para com os homens.
No meio das suas dificuldades, que os cônjuges encontrem
sempre na palavra e no coração do sacerdote o eco fiel da
voz e do amor do Redentor.
Falai, pois, com confiança, diletos Filhos, bem convencidos
de que o Espírito de Deus, ao mesmo tempo que assiste o
Magistério no propor a doutrina, ilumina também interna-
mente os corações dos fiéis, convidando-os a prestar-lhe o
seu assentimento. Ensinai aos esposos o necessário cami-
nho da oração, preparai-os para recorrerem com freqüência
e com fé aos sacramentos da Eucaristia e da Penitência, sem
se deixarem jamais desencorajar pela sua fraqueza.”

João Paulo II, Familiaris Consortio. Sobre a função da


família cristã no mundo de hoje (22/11/1981). Os filhos,
dom preciosíssimo do matrimônio:
FC 14. “Segundo o desígnio de Deus, o matrimônio é o fun-
damento da mais ampla comunidade da família, pois que
o próprio instituto do matrimônio e o amor conjugal se or-
denam à procriação e educação da prole, na qual encon-
tram a sua coroação.
Na sua realidade mais profunda, o amor é essencialmente
dom e o amor conjugal, enquanto conduz os esposos ao
«conhecimento» recíproco que os torna «uma só carne»,
não se esgota no interior do próprio casal, já que os habilita
para a máxima doação possível, pela qual se tornam coo-
peradores com Deus no dom da vida a uma nova pessoa
humana. Deste modo os cônjuges, enquanto se doam entre
si, doam para além de si mesmo a realidade do filho, reflexo

191
vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e
síntese viva e indissociável do ser pai e mãe.
Tornando-se pais, os esposos recebem de Deus o dom de
uma nova responsabilidade. O seu amor paternal é chama-
do a tornar-se para os filhos o sinal visível do próprio
amor de Deus, «do qual deriva toda a paternidade no céu
e na terra».
Não deve todavia esquecer-se que, mesmo quando a pro-
criação não é possível, nem por isso a vida conjugal perde o
seu valor. A esterilidade física, de fato, pode ser para os espo-
sos ocasião de outros serviços importantes à vida da pessoa
humana, como por exemplo a adoção, as várias formas de
obras educativas, a ajuda a outras famílias, às crianças po-
bres ou deficientes.”
→ FC trata amplamente da questão da fecundidade e do
controle de natalidade. 3ª Parte: II – O serviço à vida.
Situa a questão de um ponto de vista amplo.
Faz um breve histórico, retomando principalmente a HV.
Alerta: a doutrina da Igreja coloca-se sempre a favor da
vida; mas é mais difícil hoje de ser compreendida; porém, é
urgente e insubstituível;
Vivemos uma época de progresso científico-técnico; men-
talidade contra a vida: a favor da contracepção, aborto pro-
curado, esterilização.
Necessidade de obediência ao magistério da Igreja (pas-
tores e teólogos);
Exigência de apresentar a sexualidade como um valor e
tarefa de toda a pessoa humana; cultivar a virtude da “cas-

192
tidade conjugal”;
FC 32. “É exatamente partindo da «visão integral do ho-
mem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas tam-
bém sobrenatural e eterna» (HV), que Paulo VI afirmou que
a doutrina da Igreja «se funda na conexão inseparável,
que Deus quis e que o homem não pode quebrar por sua
iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o
significado unitivo e o significado procriativo». E conclui
reafirmando que é de excluir, como intrinsecamente de-
sonesta, «toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal,
ou na sua realização, ou no desenvolvimento das suas con-
sequências naturais, se proponha, como fim ou como meio,
tornar a procriação impossível».
Quando os cônjuges, mediante o recurso à contracepção,
separam estes dois significados que Deus Criador inscreveu
no ser do homem e da mulher e no dinamismo da sua co-
munhão sexual, comportam-se como «árbitros» do plano
divino e «manipulam» e aviltam a sexualidade humana, e
com ela a própria pessoa e a do cônjuge, alterando desse
modo o valor da doação «total». Assim, à linguagem nativa
que exprime a recíproca doação total dos cônjuges, a con-
tracepção impõe uma linguagem objetivamente contradi-
tória, a do não doar-se ao outro: deriva daqui, não somente
a recusa positiva de abertura à vida, mas também uma fal-
sificação da verdade interior do amor conjugal, chamado a
doar-se na totalidade pessoal.
Quando pelo contrário os cônjuges, mediante o recurso a
períodos de infecundidade, respeitam a conexão indivisí-
vel dos significados unitivo e procriativo da sexualidade hu-
mana, comportam-se como «ministros» de plano de Deus e
«usufruem» da sexualidade segundo o dinamismo originá-
rio da doação «total», sem manipulações e alterações.

193
À luz da experiência mesma de tantos casais e dos dados
das diversas ciências humanas, a reflexão teológica pode re-
ceber e é chamada a aprofundar a diferença antropológica
e ao mesmo tempo moral, que existe entre a contracepção
e o recurso aos ritmos temporais: trata-se de uma diferença
bastante mais vasta e profunda de quanto habitualmente
se possa pensar e que, em última análise, envolve duas con-
cepções da pessoa e da sexualidade humana irredutíveis
entre si. A escolha dos ritmos naturais, de fato, comporta a
aceitação do ritmo biológico da mulher, e com isto também
a aceitação do diálogo, do respeito recíproco, da responsa-
bilidade comum, do domínio de si. Acolher, depois, o tempo
e o diálogo significa reconhecer o caráter conjuntamente es-
piritual e corpóreo da comunhão conjugal, como também
viver o amor pessoal na sua exigência de fidelidade. Neste
contexto o casal faz a experiência da comunhão conjugal
enriquecida daqueles valores de ternura e afetividade, que
constituem o segredo profundo da sexualidade humana,
mesmo na sua dimensão física. Desta maneira a sexualida-
de é respeitada e promovida na sua dimensão verdadeira e
plenamente humana, não sendo nunca «usada» como um
«objeto» que, dissolvendo a unidade pessoal da alma e do
corpo, fere a própria criação de Deus na relação mais íntima
entre a natureza e a pessoa.”
→ FC reconhece que esta orientação é exigente: neces-
sita de conhecimento e disciplina; além de uma “educação
para o autocontrole: daqui a absoluta necessidade da virtude
da castidade e da permanente educação para ela” (FC 33). E
exige sacrifício.
FC 34. “Mas o homem, chamado a viver responsavelmente o
plano sapiente e amoroso de Deus, é um ser histórico, que
se constrói, dia a dia, com numerosas decisões livres:

194
por isso ele conhece, ama e cumpre o bem moral segun-
do etapas de crescimento.
Também os cônjuges, no âmbito da vida moral, são
chamados a um contínuo caminhar, sustentados pelo de-
sejo sincero e operante de conhecer sempre melhor os valo-
res que a lei divina guarda e promove, pela vontade reta e
generosa de os encarnar nas suas decisões concretas. Eles,
porém, não podem ver a lei só como puro ideal a conseguir
no futuro, mas devem considerá-la como um mandato de
Cristo de superar cuidadosamente as dificuldades. Por isso
a chamada «lei da graduação» ou caminho gradual não
pode identificar-se com a “graduação da lei”, como se hou-
vesse vários graus e várias formas de preceito na lei divina
para homens em situações diversas. Todos os cônjuges são
chamados, segundo o plano de Deus, à santidade no ma-
trimônio e esta alta vocação realiza-se na medida em que
a pessoa humana está em grau de responder ao mandato
divino com espírito sereno, confiando na graça divina e na
vontade própria»”.
→ Tarefa a que todos estão chamados:
Suscitar convicções e oferecer uma ajuda concreta
FC 35. “Diante do problema de uma honesta regulação da
natalidade, a comunidade eclesial, no tempo presente, deve
assumir como seu dever suscitar convicções e oferecer
uma ajuda concreta a quantos quiserem viver a pater-
nidade e a maternidade de modo verdadeiramente res-
ponsável.
Neste campo, enquanto se congratula com os resultados
conseguidos pelas investigações científicas de um conheci-
mento mais preciso dos ritmos de fertilidade feminina e es-
timula uma mais decisiva e ampla extensão de tais estudos,

195
a Igreja cristã não pode não solicitar com renovado vigor a
responsabilidade de quantos - médicos, peritos, conselhei-
ros conjugais, educadores, casais - podem efetivamente aju-
dar os cônjuges a viver o seu amor com respeito pela estru-
tura e pelas finalidades do ato conjugal que o exprime. Isto
quer dizer um empenho mais vasto, decisivo e sistemáti-
co, para fazer conhecer, apreciar e aplicar os métodos
naturais de regulação da fertilidade.
Um testemunho precioso pode e deve ser dado por
aqueles esposos que, mediante o comum empenho na
continência periódica, chegaram a uma responsabili-
dade pessoal mais madura em relação ao amor e à vida.”
→ Na sequência, FC expõe sobre a educação dos filhos:
Os pais são os primeiros e principais educadores (FC 36):
é um direito-dever, essencial, insubstituível e inalienável;
Antes de tudo, educação para os valores essenciais da
vida humana: a família é a primeira escola de sociabilidade;
os pais devem dar uma educação para o amor e a sexualida-
de (FC 37); para a castidade e virgindade. A família é também
a primeira experiência de Igreja (FC 38).
• AL e o Fim Procriativo e Educativo
CAP. V: O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO
[É, juntamente com o cap.IV, considerado central pelo
papa Francisco]
→ Dimensão fecunda do amor (procriativa): “o amor
sempre dá vida. Por isso, o amor conjugal ‘não se esgota no
interior do próprio casal...’” (AL 165);

196
→ Fala-se em maneira psicológica e espiritual profunda
do acolher uma nova vida; da espera própria da gravidez;
do amor de mãe, pai e dos filhos.
A Igreja sempre incentivou famílias numerosas; tam-
bém a paternidade responsável (AL 167):
“As famílias numerosas são uma alegria para a Igreja.
Nelas, o amor manifesta a sua fecundidade generosa. Isto
não implica esquecer uma sã advertência de São João Paulo
II, quando explicava que a paternidade responsável não é
«procriação ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo
que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes,
a faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberda-
de inviolável de modo sábio e responsável, tendo em
consideração tanto as realidades sociais e demográfi-
cas, como a sua própria situação e os seus legítimos de-
sejos»” (Carta a ONU).
→ Francisco apóia a emancipação da mulher e afirma in-
clusive apoiar o “feminismo”, desde “quando não pretende
a uniformidade nem a negação da maternidade” (AL 173);
Citando a si próprio, afirma que “as mães são o antídoto
mais forte contra o propagar-se do individualismo egoísta”
(AL 174).
→ Pais: os filhos precisam de sua presença e de aten-
ção com qualidade; “um pai com uma clara e feliz identidade
masculina”;
“Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstân-
cias concretas de cada família, mas a presença clara e bem de-
finida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito
mais adequado para o amadurecimento da criança” (AL 175).

197
É preciso evitar os dois extremos: pais autoritários e pais
ausentes; bem como a inversão de papeis entre pais e fi-
lhos (AL 176).
→ Tem em consideração não apenas a família nuclear,
mas também a família como rede de relações amplas. O
próprio sacramento do matrimonio tem um caráter social.
E é aqui que encontramos a advertência mais dura de Fran-
cisco quanto à comunhão eucarística, refletindo sobre 1Cor
11,17-34 (AL 186):
“A Eucaristia exige a integração no único corpo eclesial.
Quem se aproxima do Corpo e do Sangue de Cristo não
pode ao mesmo tempo ofender aquele mesmo Corpo, fa-
zendo divisões e discriminações escandalosas entre os seus
membros. Na realidade, trata-se de «distinguir» o Corpo do
Senhor, de O reconhecer com fé e caridade, quer nos sinais
sacramentais quer na comunidade; caso contrário, come-se
e bebe-se a própria condenação (cf. v. 29). Este texto bíblico
é um sério aviso para as famílias que se fecham na própria
comodidade e se isolam e, de modo especial, para as famí-
lias que ficam indiferentes aos sofrimentos das famílias po-
bres e mais necessitadas.
Assim, a celebração eucarística torna-se um apelo constan-
te a cada um para que «se examine a si mesmo» (v. 28), a
fim de abrir as portas da própria família a uma maior comu-
nhão com os descartados da sociedade e depois, sim, rece-
ber o sacramento do amor eucarístico que faz de nós um só
corpo. Não se deve esquecer que «a “mística” do sacramento
tem um caráter social». Quando os comungantes se mos-
tram relutantes em deixar-se impelir a um compromis-
so a favor dos pobres e atribulados ou consentem dife-
rentes formas de divisão, desprezo e injustiça, recebem

198
indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as famílias, que
se alimentam da Eucaristia com a disposição adequada, re-
forçam o seu desejo de fraternidade, o seu sentido social e o
seu compromisso para com os necessitados.”
→ Trata também da fecundidade alargada (adoção; ido-
sos; cuidado com terceiros).
• AL volta ao nosso tema no Cap.VII: Reforçar a educa-
ção dos filhos
→ AL 260: A família precisa reinventar seus métodos e
descobrir novos recursos.
→ É todo dedicado a educação dos filhos: a formação
ética; a necessidade da sanção como estímulo, na devida
medida; o realismo paciente; a necessária educação sexual,
dentro de um contexto amplo da educação para o amor;
a transmissão da fé e, de forma geral, a vida familiar como
contexto educativo.
Novamente aqui ficam claras algumas características da
abordagem do papa Francisco: a sabedoria prática e a pers-
pectiva dinâmica da realidade.
→ Princípio: “o tempo é superior ao espaço”: “trata-se
mais de gerar processos que de dominar espaços”. “...Gerar
no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da
sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cul-
tivo da autêntica autonomia” (AL 261). Mais do que saber
onde está fisicamente, precisa saber onde está existencial-
mente.
→ Ajudar os filhos a criarem uma disciplina que não seja

199
uma “mutilação do desejo, mas um estímulo para ir sempre
além”:
“É preciso saber encontrar um equilíbrio entre dois extremos
igualmente nocivos: um seria pretender construir um mun-
do à medida dos desejos do filho, que cresceria sentindo-se
sujeito de direitos, mas não de responsabilidades; o outro
extremo seria levá-lo a viver sem consciência da sua dig-
nidade, da sua identidade singular e dos seus direitos, tor-
turado pelos deveres e submetido à realização dos desejos
alheios.” (AL 270)
Cada pequeno passo deve ser valorizado na educação
moral: “O percurso normal é propor pequenos passos que
possam ser compreendidos, aceitos e apreciados, e impliquem
uma renúncia proporcionada” (AL 271).
A família é a primeira escola dos valores humanos, na
qual se aprende o bom uso da liberdade (AL 274). É onde
desenvolvem a capacidade de esperar (AL 275); a sociali-
zação primária (AL 276); o respeito mútuo e o respeito por
toda a criação (AL 277).
A família deve ser o lugar primeiro da transmissão da fé:
“onde se ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir
o próximo” (AL 287); “É necessário que os filhos vejam de maneira con-
creta que, para os seus pais, a oração é realmente importante. Por isso,
os momentos de oração em família e as expressões da piedade popular
podem ter mais força evangelizadora do que todas as catequeses e to-
dos os discursos” (AL 288).

E para nós que vivemos uma experiência na pandemia


de provocar uma educação religiosa em casa, faz todo sen-
tido o seguinte:

200
“...o nosso esforço criativo é uma oferta que nos permite co-
laborar com a iniciativa divina. Por isso, «tenha-se o cuidado
de valorizar os casais, as mães e os pais, como sujeitos ativos
da catequese (...). De grande ajuda é a catequese familiar,
enquanto método eficaz para formar os pais jovens e tor-
ná-los conscientes da sua missão como evangelizadores da
sua própria família».” (cit. RF 2015, n.89)
→ Nos dois capítulos que acabamos de visitar Francisco
não se refere ao problema da natalidade e seus métodos.
Na verdade, o fará em AL, de passagem, em outros lugares:
AL 42: Faz parte do VER: retoma basicamente afirma-
ções dos Sínodos de 14 e 15: a queda demográfica como
resultado de uma mentalidade antinatalista e promovida
pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva; avanço das
biotecnologias; industrialização, revolução sexual, receio
da superpopulação, problemas econômicos; sociedade de
consumo que cria um estilo de vida antinatalista... a Igreja
rejeita todas as pressões em favor da contracepção, esteri-
lização e, principalmente, aborto.
AL 82: retoma e condena a denúncia da “mentalidade an-
tinatalista”;
AL 222:
“O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem
generosos na comunicação da vida. «De acordo com o cará-
ter pessoal e humanamente completo do amor conjugal, o
justo caminho para o planejamento familiar pressupõe um
diálogo consensual entre os esposos, o respeito dos tempos
e a consideração da dignidade de ambos os membros do
casal. Neste sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Huma-

201
nae vitae (cf.nn. 10-14) e a Exortação apostólica Familiaris
consortio (cf. nn. 14; 28-35) para se reavivar a disponibili-
dade a procriar, contrastando uma mentalidade frequente-
mente hostil à vida. (...) A opção da paternidade responsável
pressupõe a formação da consciência que é “o centro mais
secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós
com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser”
(Gaudium et spes, 16). Quanto mais procurarem os esposos
ouvir, na sua consciência, a Deus e os seus mandamentos
(cf. Rm 2, 15) e se fizerem acompanhar espiritualmente, tan-
to mais a sua decisão será intimamente livre de um arbítrio
subjetivo e da acomodação às modas de comportamento no
seu ambiente» (RF 2015, n.63). Continua a ser válido o que
ficou dito, com clareza, no Concílio Vaticano II: os cônjuges,
«de comum acordo e com esforço comum, formarão reta-
mente a própria consciência, tendo em conta o seu bem pró-
prio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão a nascer,
sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e
tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade
familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os
próprios esposos que, em última instância, devem dian-
te de Deus tomar esta decisão» (GS n.50). Por outro lado,
«deve-se promover [“encorajar”] o uso dos métodos ba-
seados nos “ritmos naturais da fecundidade” (Humanae
vitae, 11). Ponha-se em evidência também que “estes mé-
todos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura
entre eles e favorecem a educação duma liberdade autênti-
ca” (Catecismo da Igreja Católica, 2370), insistindo sempre
que os filhos são um dom maravilhoso de Deus, uma alegria
para os pais e para a Igreja. Através deles, o Senhor renova o
mundo» (RF 2015, n.63)”.
→ O que concluir sobre o recurso aos métodos artifi-
ciais?

202
[A conclusão é minha; cada um poderá estudar a ques-
tão e tirar sua conclusão]
O silêncio do papa Francisco especificamente contra os
métodos artificiais ou obrigando os naturais, tem permiti-
do interpretações favoráveis ou contrárias;
Podemos elencar, no entanto, alguns argumentos:
Certamente não se coloca na mesma linha de CC, HV e
FC, afirmando que são “intrinsecamente desonestos”; por
outro lado, se Francisco quisesse manter-se na postura
tradicional do século XX, o teria feito; no entanto, mesmo
quando cita esses documentos, evita essas colocações.
AL segue os Sínodos de 2014 e 15 que visam promover
ou encorajar os métodos naturais, mas não condenam ex-
plicitamente os artificiais;
Papa Francisco: coloca em AL 2: Realismo; [Em Congresso
da Pastoral Família do Regional – desafiados por mim - qua-
se todos os presentes confirmaram já ter usado algum tipo
de anticoncepcional ou esterilização]
AL 3: “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pas-
torais devem ser resolvidas através de intervenções magis-
teriais”;
AL 37: “Também nos custa deixar espaço à consciência dos
fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao
Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de reali-
zar o seu próprio discernimento perante situações onde se
rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as
consciências, não a pretender substituí-las.”

203
Neste caso: Francisco deixa aos casais essa decisão
[discernimento], no entanto, incentiva os métodos na-
turais.
Acrescenta, nesse debate, no entanto, o respeito pela
dignidade do outro (partner, cônjuge).
→ a nenhum dos dois é permitido pressionar o outro;
→ a ninguém é permitido usar o outro para os próprios
desejos.
No matrimônio, em todas estas questões, deve haver um
diálogo para encontrar um consenso respeitoso da digni-
dade do outro.
É também a postura indicada pelo Cardeal Kasper (cf. 2018,
p.48-49).
Os métodos naturais possuem muitas vantagens sobre os
artificiais. Mas são mais exigentes. Os artificiais são mais ap-
tos ao ritmo de vida das nossas sociedades e culturas, mas
possuem muitos inconvenientes, alguns já apontados pela
HV. Podemos acrescentar as questões relativas à saúde.
A distância entre o ideal (métodos naturais) e a realida-
de (uso em massa dos métodos artificiais) não deveria nos
imobilizar. É uma caminhada (“iniciar processos”). No espí-
rito proposto pelo papa Francisco, poderemos avançar gra-
dualmente; agindo pelo “bem possível”.
É um trabalho sobretudo para a Pastoral Familiar e para
a Catequese → já que a vivência da sexualidade se inicia
cada vez mais cedo (não dá para trabalhar essas questões

204
apenas nos “cursos de noivos”). Educação para a castidade;
para o respeito pelo outro; para o diálogo. Subsidiando as
famílias. Desenvolvendo a respeito desses temas um dis-
curso e práticas adequadas e envolventes.

MODELO DE MATRIMÔNIO E FAMÍLIA


• Concepção de família ou organização familiar. Com ên-
fase no papel da mulher na família e na sociedade.
→ CC (e a ADS de Leão XIII, citada): (lembrar que ele
dialoga com o mundo pré-moderno; não nos fixaremos
muito nesse tema, porque já tem aparecido em outros mo-
mentos).
“A ordem no amor
25. Com este mesmo amor se devem conciliar tanto os ou-
tros direitos como os outros deveres do matrimônio, de
modo que sirva não só como lei de justiça, mas também
como norma de caridade aquela palavra do Apóstolo: “O
marido dê à mulher aquilo que lhe é devido; igualmente a
mulher ao marido” (1 Cor 7, 3).
26. Ligada, enfim, com o vínculo desta caridade a sociedade
doméstica, florescerá necessariamente aquilo que Santo
Agostinho chama a ordem do amor. Essa ordem implica
de um lado a superioridade do marido sobre a mulher
e os filhos, e de outro a pronta sujeição e obediência da
mulher, não pela violência, mas como a recomenda o Após-
tolo com estas palavras: “Sujeitem-se as mulheres aos seus
maridos como ao Senhor; porque o homem é cabeça da mu-
lher, como Cristo é cabeça da Igreja”. (Ef 5, 22-23).
27. Tal sujeição não nega nem tira à mulher a liberdade a

205
que tem pleno direito, quer pela nobreza da personalida-
de humana, quer pela missão nobilíssima de esposa, mãe
e companheira, nem a obriga a condescender com todos
os caprichos do homem, quando não conformes à própria
razão ou à dignidade da esposa, nem exige enfim que a
mulher se equipare às pessoas que se chamam em direito
“menores”, às quais, por falta de maior madureza de juízo
ou por inexperiência das coisas humanas, não se costuma
conceder o livre exercício dos seus direitos; mas proíbe essa
licença exagerada que despreza o bem da família, proíbe
que no corpo desta família se separe o coração da cabeça,
com grande detrimento de todo o corpo e perigo próximo
de ruína. Se efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é o
coração; e, se ele tem o primado do governo, também a ela
pode e deve atribuir-se como coisa sua o primado do amor.
Hierarquia doméstica
28. O grau e o modo desta sujeição da mulher ao marido
pode variar segundo a variedade das pessoas, dos lu-
gares a dos tempos; e até, se o homem menosprezar o seu
dever, compete à mulher supri-lo na direção da família. Mas
em nenhum tempo e lugar é lícito subverter ou prejudi-
car a estrutura essencial da própria família e a sua lei
firmemente estabelecida por Deus.
29. Da observância desta ordem entre o marido e a mulher
já falou com muita sabedoria o nosso predecessor Leão XIII,
de feliz memória, na Encíclica que já recordamos acerca do
Matrimônio Cristão: “O marido é o chefe da família e a ca-
beça da mulher; e esta, portanto, porque é carne da sua car-
ne e osso dos seus ossos, não deve sujeitar-se a obedecer ao
marido como escrava, mas como companheira, isto é, de tal
modo que a sujeição que lhe presta não seja destituída de
decoro nem de dignidade. Naquele que governa e naquela

206
que obedece, reproduzindo nele a imagem de Cristo e nela a
da Igreja, seja, pois, a caridade divina a perpétua reguladora
dos seus deveres” (Enc. Arcanum, 10 de fev. de 1880).
30. São estas, portanto, as virtudes que se compreendem
no bem da fidelidade: unidade, castidade, caridade, nobre
e digna obediência; palavras que querem dizer outras tan-
tas vantagens dos cônjuges e do seu casamento, enquanto
asseguram ou promovem a paz, a dignidade e a felicidade
do matrimônio. Não admira, pois, que esta fidelidade seja
sempre considerada entre os insignes benefícios próprios do
matrimônio.”
“A emancipação da mulher
75. Os mesmos mestres do erro, que por escritos e por pa-
lavras ofuscam a pureza da fé e da castidade conjugal, fa-
cilmente destroem a fiel e honesta sujeição da mulher
ao marido. Ainda mais audazmente, muitos deles afirmam
com leviandade ser ela uma indigna escravidão de um
cônjuge ao outro; visto os direitos entre os cônjuges serem
iguais, para que não sejam violados pela escravidão de uma
parte, defendem com arrogância certa emancipação da
mulher, já alcançada ou por alcançar. Estabelecem, mais,
que esta emancipação deve ser tríplice: no governo da
sociedade doméstica, na administração dos bens da família
e na exclusão e supressão da prole, isto é, social, econômi-
ca e fisiológica. Fisiológica por quererem que a mulher, de
acordo com sua vontade, seja ou deva ser livre dos encargos
de esposa, quer conjugais, quer maternos (esta mais do que
de emancipação deve apodar-se de nefanda perversidade,
como já suficientemente demonstramos). Emancipação
econômica por força de que a mulher, ainda que sem co-
nhecimento e contra a vontade do marido, possa livremente
ter, gerir e administrar seus negócios privados, desprezando

207
os filhos, o marido e toda a família. Emancipação social,
enfim, por se afastarem da mulher os cuidados domésticos
tanto dos filhos como da família, para que, desprezados es-
tes, possa entregar-se até às funções e negócios públicos.
Caminho da corrupção
76. Todavia, esta emancipação da mulher não é verdadeira
nem é a razoável e digna liberdade que convém à cristã e
nobre missão de mulher e esposa; é antes a corrupção da
índole feminina e da dignidade materna e a perversão
de toda a família, porquanto o marido fica privado de sua
mulher, os filhos de sua mãe, a casa e toda a família de sua
sempre vigilante guarda. Pelo contrário, essa falsa liberda-
de e essa inatural igualdade com o homem redundam
em prejuízo da própria mulher; porque, se a mulher desce
daquele trono real a que dentro do lar doméstico foi elevada
pelo Evangelho, depressa cairá na antiga escravidão (se não
aparente, certamente de fato), tornando-se, como no paga-
nismo, mero instrumento do homem.
Justa igualdade
77. Esta igualdade de direitos, porém, que tanto se exagera
e se enaltece, deve reconhecer-se em tudo o que é próprio da
pessoa e dignidade humana, e que resulta do pacto nupcial
e está na essência do matrimônio; nestas coisas certamente
ambos os cônjuges gozam inteiramente do mesmo direito
e estão ligados pelo mesmo dever; quanto ao resto, deve
existir certa desigualdade e moderação, que o próprio
interesse da família e a necessária unidade e firmeza da or-
dem e da sociedade doméstica requerem.
78. Se, no entanto, em qualquer parte as condições sociais
e econômicas da mulher casada tiverem de transformar-
-se algum tanto devido à alteração dos usos e costumes da

208
convivência humana, compete ao poder público adaptar às
necessidades e exigências hodiernas os direitos civis da mu-
lher, tendo sempre em vista o que é requerido pela diversa
índole natural do sexo feminino, pela honestidade dos cos-
tumes e pelo interesse comum da família, e desde que tam-
bém a ordem essencial da sociedade doméstica permaneça
intacta, como instituída que foi por uma autoridade e sabe-
doria mais alta que a humana, isto é, divina, e que não pode
mudar-se por leis públicas ou pela vontade dos indivíduos.”
→ Esta postura irá sendo atenuada pelo magistério;
GS e FC já dialogam com o mundo moderno. Reconhecem que a
igual dignidade dos cônjuges implica também uma igualdade de di-
reitos fisiológicos, econômicos, políticos e laborais; embora sempre
insistam no papel primordial que a mulher possui na família como
esposa e mãe.
Para esta nova postura concorreram também os Movimentos de
renovação eclesial. Por exemplo: Bíblico – revelando os condiciona-
mentos tanto na sociedade que recebeu a Revelação quanto na dos
leitores (algo que o papa Francisco deixará claro);
→ AL: defende a igual dignidade e direitos entre o homem e a mu-
lher; que a autoridade seja dialogada e os papeis desempenhados
com certa fluidez, mas sem afetar a clara identidade de pai e mãe
(como já tivemos ocasião de ver). Podemos indicar alguns parágrafos:
AL 32: “Hoje, a mudança antropológico-cultural influencia todos os
aspectos da vida e requer uma abordagem analítica e diversificada. Já
no contexto de várias décadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam
uma realidade doméstica com mais espaços de liberdade, «com
uma distribuição equitativa de encargos, responsabilidades e ta-
refas (...). Valorizando mais a comunicação pessoal entre os esposos,
contribui-se para humanizar toda a vida familiar. (...) Nem a sociedade
em que vivemos nem aquela para onde caminhamos permitem a
sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado»”.
AL 53: “Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da fa-
mília, que tende a adotar formas baseadas quase exclusivamente no
paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo

209
rejeitar velhas formas de família «tradicional», caracterizadas pelo
autoritarismo e inclusive pela violência, todavia isso não deveria levar
ao desprezo do matrimônio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sen-
tido e à sua renovação. A força da família «reside essencialmente na
sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa
estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor».”
AL 54: “Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, apesar das
melhorias notáveis registradas no reconhecimento dos direitos da
mulher e na sua participação no espaço público, ainda há muito que
avançar em alguns países. Não se acabou ainda de erradicar costumes
inaceitáveis; destaco a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce so-
bre as mulheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravi-
dão, que não constituem um sinal de força masculina, mas uma covarde
degradação. A violência verbal, física e sexual, perpetrada contra as
mulheres em alguns casais, contradiz a própria natureza da união
conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher em algumas cul-
turas, mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho
dignos e aos lugares onde as decisões são tomadas. A história carre-
ga os vestígios dos excessos das culturas patriarcais, onde a mulher
era considerada um ser de segunda classe, mas recordemos também o
«aluguel de ventres» ou «a instrumentalização e comercialização do cor-
po feminino na cultura mediática contemporânea». Alguns conside-
ram que muitos dos problemas atuais ocorreram a partir da eman-
cipação da mulher. Mas este argumento não é válido, «é falso, não
é verdade! Trata-se de uma forma de machismo». A idêntica dignida-
de entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a superação de
velhas formas de discriminação e o desenvolvimento de um estilo de
reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem formas de feminismo
que não podemos considerar adequadas, de igual modo admiramos a
obra do Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da mulher
e dos seus direitos.”
AL 156: “É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de sub-
missão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação inade-
quada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que «as mulheres
[sejam submissas] aos seus maridos» (Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em
categorias culturais próprias daquela época; nós não devemos assu-
mir esta roupagem cultural, mas a mensagem revelada que subjaz
ao conjunto da perícope. Retomemos a sábia explicação de São João
Paulo II: «O amor exclui todo o gênero de submissão, pelo qual a mulher

210
se tornasse serva ou escrava do marido (...). A comunidade ou unidade,
que devem constituir por causa do matrimônio, realiza-se através de
uma recíproca doação, que é também submissão mútua». Por isso, se
diz que «devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu
próprio corpo» (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida a su-
perar o cômodo individualismo para viver disponíveis aos outros:
«Submetei-vos uns aos outros» (Ef 5,21). Entre os cônjuges, esta recípro-
ca «submissão» adquire um significado especial, devendo-se entender
como uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de
características de fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao
serviço desta amizade conjugal de modo inseparável, porque tende a
procurar que o outro viva em plenitude.”
AL 173: “O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas
crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje reconhece-
mos como plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres quei-
ram estudar, trabalhar, desenvolver as suas capacidades e ter objetivos
pessoais.
Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar a necessidade que as
crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses
de vida. A realidade é que «a mulher apresenta-se diante do homem
como mãe, sujeito da nova vida humana, que nela é concebida e se de-
senvolve, e dela nasce para o mundo». O enfraquecimento da presença
materna, com as suas qualidades femininas, é um risco grave para a
nossa terra. Aprecio o feminismo, quando não pretende a unifor-
midade nem a negação da maternidade. Com efeito, a grandeza das
mulheres implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade huma-
na inalienável, mas também do seu gênio feminino, indispensável para
a sociedade. As suas capacidades especificamente femininas – em par-
ticular a maternidade – conferem-lhe também deveres, já que o seu ser
mulher implica também uma missão peculiar nesta terra, que a socieda-
de deve proteger e preservar para bem de todos.”
AL 220: “O amadurecimento do amor implica também aprender a «ne-
gociar». Não se trata duma atitude interesseira nem de um jogo de tipo
comercial, mas, em última análise, de um exercício do amor recípro-
co, já que esta negociação é um entrelaçado de recíprocas ofertas
e renúncias para o bem da família. Em cada nova etapa da vida ma-
trimonial, é preciso sentar-se e negociar novamente os acordos, de
modo que não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem ambos. No
lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e ambos comparti-

211
lham a responsabilidade pela família; mas cada lar é único e cada
síntese conjugal é diferente.”
AL 276: “A família é o âmbito da socialização primária, porque é
o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a
escutar, partilhar, suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa
educativa deve levar a sentir o mundo e a sociedade como «ambiente
familiar»: é uma educação para saber «habitar» mais além dos limites
da própria casa. No contexto familiar, ensina-se a recuperar a pro-
ximidade, o cuidado, a saudação. É lá que se rompe o primeiro círculo
do egoísmo mortífero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto de
outros, com outros, que são dignos da nossa atenção, da nossa genti-
leza, do nosso afeto. Não há vínculo social, sem esta primeira dimensão
cotidiana, quase microscópica: conviver na proximidade, cruzando-nos
nos vários momentos do dia, preocupando-nos com aquilo que interes-
sa a todos, socorrendo-nos mutuamente nas pequenas coisas do dia-a-
-dia. A família tem de inventar, todos os dias, novas formas de promover
o reconhecimento mútuo.”
AL 286: “Também não se pode ignorar que, na configuração do próprio
modo de ser – feminino ou masculino –, não confluem apenas fatores
biológicos ou genéticos, mas uma multiplicidade de elementos que têm
a ver com o temperamento, a história familiar, a cultura, as experiên-
cias vividas, a formação recebida, as influências de amigos, familiares
e pessoas admiradas, e outras circunstâncias concretas que exigem
um esforço de adaptação. É verdade que não podemos separar o que é
masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as
nossas decisões e experiências e na qual existem elementos biológicos
que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o masculino e
o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por
exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se
de maneira flexível à condição laboral da esposa; o fato de assumir
tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos não o torna
menos masculino nem significa um falimento, uma capitulação ou uma
vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como normais estes
«intercâmbios» sadios que não tiram dignidade alguma à figura
paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino,
e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas
condições reais do matrimônio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o
desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao
ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança

212
e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a
Deus, isto mudou; mas, em alguns lugares, certas ideias inadequadas
continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico
desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas potencia-
lidades.”

213
214
VIII
ALGUMAS PERSPECTIVAS
PASTORAIS (CAP. VI DE AL)

O papa não se preocupa em ser sistemático em suas co-


locações.
Pastoral – a Igreja em ação; mas qual Igreja? (“modelos
de Igreja”);
Pastoral – a Igreja em ação; mas qual Igreja? Qual Igreja
temos em nossa cabeça? Falamos muito de “modelo de fa-
mília”; agora temos de nos perguntar também sobre qual
“modelo de igreja” está em nossa cabeça;
Igreja = sociedade perfeita; Igreja = povo de Deus;
Paróquia = comunidade de comunidades? (comunidade
– ter em comum); família de famílias;
Não é uma questão meramente teórica – teológica; é
prática, existencial [podemos dar uma resposta “polida”/
trabalhada intelectualmente, mas que não condiz com a
nossa prática; quando temos alguém doente em nossa fa-
mília ou alguém que não corresponde as expectativas da
família – “ovelha perdida” – como agimos? E quando isso é
em nível paroquial? – podemos de fato chamar a paróquia
de “família”? nós a sentimos assim?- essa questão irá apare-
cer em toda a sua crueza em AL 234]
Papa Francisco – EG: modelo de Igreja que orienta a AL
[inclusive as notas do cap.VIII que são os textos mais “deba-

215
tidos” de AL];
→ só a colocaremos em prática se estivermos conscien-
tes disso.
→ Igreja – “em saída” – para as periferias, sobretudo
existenciais; para isso, precisamos romper nossos velhos
paradigmas; às vezes, corremos fazer remendos muito su-
perficiais...
→ Atitude fundamental: misericórdia; (não significa in-
diferença, aceitar qualquer coisa; mas sim anunciar o ide-
al evangélico, porém, reconhecer a situação real e como
acompanhar na caminhada em vista do ideal. É, na verda-
de, o modo de agir de Jesus: condena o pecado, mas acolhe
o pecador);
→ Não podemos esperar um Guia detalhado dessa
saída; é um caminho para se fazer; não se deve esperar
todas as decisões do magistério pontifício; é preciso rein-
ventar o caminho; embora tenhamos claro onde queremos
chegar – “Reino de Deus”; “fazer a vontade do Pai”.
Quem sai para as periferias existenciais se “arrisca”;
encontra situações contraditórias e conflitivas; “é melhor
uma igreja enlameada por ter saído às ruas do que aquela
limpinha bem instalada...”
É preciso arriscar-se...
Exige liberdade e consciência; muitas vezes, se deverá
iniciar pelo primeiro anúncio;
Em alguns casos, as pessoas não virão mais a nós, será

216
preciso buscá-las... (por exemplo: homossexuais - interes-
sante a proposta da Diocese de Modena, cf. CASTELLUCCI
2016).
Este capítulo tem afinidade com o VIII; por isso, os vere-
mos em sequência;
→ Neste capítulo o papa enfrenta algumas vias pastorais
que orientam a construção de famílias sólidas e fecundas
segundo o plano de Deus: constata-se “a necessidade de
novos caminhos pastorais” (AL 199).
Lembremos o que o papa Francisco expõe em EG sobre
a necessidade de mudar nossos paradigmas – o aplica aqui
à pastoral familiar; organização, estruturas, horários - tudo
deve favorecer as famílias.
Desde o início deixa claro que não pretende apresentar
um guia de pastoral familiar. Cabe a cada comunidade
(Igreja local e paróquia) elaborar propostas práticas e
eficazes. O papa irá se concentrar nos principais desafios
pastorais, em termos gerais.
Anunciar hoje o Evangelho da família.
→ As famílias cristãs são os sujeitos principais da pasto-
ral familiar; [ou seja, elas não devem ser apenas as “destina-
tárias”/consumidoras; mas devem ter um papel ativo na
organização e desenvolvimento da pastoral familiar]
Retomando EG 1 propõe o que é o objetivo primeiro da
AL: levar as famílias a experimentarem que “o Evangelho
da família é alegria que ‘enche o coração e a vida inteira’,

217
porque, em Cristo, somos ‘libertados do pecado, da tris-
teza, do vazio interior, do isolamento” (AL 200):
→ Nossa tarefa é semear, o resto é obra de Deus (pará-
bola do semeador); sabendo que nosso anúncio é no mun-
do de hoje “sinal de contradição”; oferecer motivações;
→ “Não basta inserir uma genérica preocupação pela fa-
mília nos grandes projetos pastorais; para que as famílias
possam ser sujeitos cada vez mais ativos da pastoral familiar,
requer-se «um esforço evangelizador e catequético orientado
para o núcleo da família» que a encaminhe nesta direção” (AL
200).
[CNBB: família - tema transversal; cf. CNBB 2017, n.9]
Por Evangelho da Família se compreende tudo o que
pode se referir à família a partir do Evangelho ou, dito de
outra forma, o Evangelho como boa notícia para a famí-
lia; a expressão apareceu em uma obra do teólogo alemão
e ativo auxiliar do papa Francisco, Walter Kasper. Esta obra
foi pensada como um texto para introduzir os trabalhos do
SB de 2014. Seu tema é a Boa Notícia da família, ou seja, a
família na prospectiva da fé cristã, chamando a atenção, so-
bretudo, para a necessidade de mudar de paradigma frente
há algumas questões espinhosas relacionadas à família: de
um paradigma canônico-jurídico para um paradigma que
considere a situação de quem sofre e pede ajuda, como fez
o Bom Samaritano (cf. KASPER 2014).
→ Pastoral Familiar: fazer experimentar que o Evange-
lho da Família é resposta às expectativas mais profundas da

218
pessoa humana.
Não simplesmente propor normas, mas valores (AL 201).
AL 201: “«Por isso exige-se a toda a Igreja uma conversão
missionária: é preciso não se contentar com um anúncio
puramente teórico e desligado dos problemas reais das
pessoas». A pastoral familiar «deve fazer experimentar
que o Evangelho da família é resposta às expectativas
mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e
plena realização na reciprocidade, na comunhão e na
fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma nor-
mativa, mas de propor valores, correspondendo à neces-
sidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais
secularizados». De igual modo «sublinhou-se a necessi-
dade de uma evangelização que denuncie, com desas-
sombro, os condicionalismos culturais, sociais, políticos
e econômicos, bem como o espaço excessivo dado à lógi-
ca do mercado, que impedem uma vida familiar autêntica,
gerando discriminação, pobreza, exclusão e violência. Para
isso, temos de entrar em diálogo e cooperação com as
estruturas sociais, bem como encorajar e apoiar os lei-
gos que se comprometem, como cristãos, no âmbito
cultural e sociopolítico».” (citando os dois Sínodos da Fa-
mília)
→ A principal contribuição é dada pela paróquia, que
é família de famílias; uma rede de comunidades. Por isso,
o papa lembra a necessidade de melhorar a formação, co-
meçando pelos presbíteros, seminaristas e agentes da pas-
toral:
AL 202: “«A principal contribuição para a pastoral fami-
liar é oferecida pela paróquia, que é uma família de fa-
mílias, onde se harmonizam os contributos das peque-

219
nas comunidades, movimentos e associações eclesiais».
A par de uma pastoral especificamente voltada para as famí-
lias, há necessidade de uma «formação mais adequada
dos presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas
e restantes agentes pastorais». Nas respostas às consultas
promovidas em todo o mundo, ressaltou-se que os minis-
tros ordenados carecem, habitualmente, de formação
adequada para tratar dos complexos problemas atuais
das famílias; para isso, pode ser útil também a experiência
da longa tradição oriental dos sacerdotes casados.”
O papa sugere uma maior integração das famílias no
processo formativo dos seminários e uma maior inser-
ção dos seminaristas na vida paroquial para um maior
contato com a realidade concreta das famílias (AL 203).
É interessante a mudança de tom assumido pelos Síno-
dos e pelo papa: em geral, a formação nos seminários evi-
tava o contato dos seminaristas até com a própria família;
é a primeira vez – que me lembre – de um documento do
magistério citar como referência os padres casados do rito
oriental.
→ Também é preciso investir na formação de agentes
leigos da pastoral familiar; aproveitando das contribuições
das “ciências do comportamento”; nada disso retira o valor
ou a necessidade da direção espiritual e reconciliação sa-
cramental (AL 204);
Guiar os noivos no caminho de preparação para o
matrimônio.
→ Acompanhar os que se preparam para o matrimônio.

220
“... é preciso ajudar os jovens a descobrir o valor e a riqueza
do matrimônio; o “fascínio de uma união plena” que dá sen-
tido a toda a vida (AL 205).
Os tempos e condições atuais exigem uma preparação
maior para o matrimônio e que envolva toda a comunida-
de (AL 206);
- importância das virtudes (sobretudo, castidade);
- valorizando o testemunho das próprias famílias;
- Preparação remota e próxima. Cada Igreja particular
deve discernir a que for melhor; priorizando a qualidade so-
bre a quantidade em relação ao conteúdo e comunicá-los
de forma atraente e cordial. Utilizando recursos da pastoral
popular (em geral, o dia dos namorados é mais aproveitado
pelos comerciantes do que pela criatividade dos pastores);
- Pode se pensar em uma espécie de “iniciação” ao sa-
cramento do matrimônio (AL 207): mostrando sua relação
com outros sacramentos; mas também podemos pensar na
tríplice dimensão da Iniciação: catequética, litúrgica e ascé-
tico-penitencial.
→ Preparação remota. A vida familiar é já uma prepara-
ção. Existem muitas formas mais específicas de preparação:
grupos de noivos, palestras etc. São indispensáveis, no en-
tanto, alguns momentos personalizados (AL 208).
→ Noivado (AL 209): acompanhá-los com um bom perí-
odo de antecipação; ajudando-os no discernimento – para
o qual o papa propõe alguns critérios, como exemplo;

221
→ Também aqui o papa reafirma a idéia do matrimônio
como um caminho a percorrer em constante crescimento
(AL 210 e 211):
AL 211: “Tanto a preparação próxima como o acompanha-
mento mais prolongado devem procurar que os noivos
não considerem o matrimônio como o fim do caminho,
mas o assumam como uma vocação que os lança para
diante, com a decisão firme e realista de atravessarem
juntos todas as provações e momentos difíceis. Tanto a
pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser,
antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se
ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o
amor quer a superar os momentos duros. Estas contribui-
ções não são apenas convicções doutrinais, nem se podem
reduzir aos preciosos recursos espirituais que a Igreja sem-
pre oferece, mas devem ser também percursos práticos,
conselhos bem encarnados, estratégias tomadas da
experiência, orientações psicológicas. Tudo isto cria uma
pedagogia do amor, que não pode ignorar a sensibilidade
atual dos jovens, para conseguir mobilizá-los interiormen-
te. Ao mesmo tempo, na preparação dos noivos, deve ser
possível indicar-lhes lugares e pessoas, consultórios ou
famílias prontas a ajudar, aonde poderão dirigir-se em
busca de ajuda se surgirem dificuldades. Mas nunca se
deve esquecer de lhes propor a Reconciliação sacramen-
tal, que permite colocar os pecados e os erros da vida pas-
sada e da própria relação sob o influxo do perdão misericor-
dioso de Deus e da sua força sanadora.”
Esta é uma questão que precisaríamos ter com mais cla-
reza e precisão: equipes para darem suporte a pastoral fa-
miliar; para indicar profissionais qualificados e confiáveis
nas várias áreas envolvidas pelas famílias... Também para

222
casais em dificuldade – psicólogos, psiquiatras, médicos...
→ Preparar a celebração. Refleti-la com os noivos para
que possam entender e vivenciar cada gesto; sobretudo o
consentimento (AL 213-214). Muitos gastam seu tempo e
energia pensando em coisas “externas” (roupas, festas, via-
gens); é preciso incentivar uma festa mais austera e sim-
ples, colocando acima de tudo o amor; Austeridade e sim-
plicidade deveria ser a regra, não a exceção (AL 212).
[até a cerimônia foi terceirizada para os promoters; mas
isso deveria valer também para ordenações]
AL 214: “Às vezes, os noivos não percebem o peso teoló-
gico e espiritual do consentimento, que ilumina o signi-
ficado de todos os gestos sucessivos. É necessário salientar
que aquelas palavras não podem ser reduzidas ao presen-
te; implicam uma totalidade que inclui o futuro: «até que
a morte vos separe ». O sentido do consentimento mostra
que «liberdade e fidelidade não se opõem uma à outra, aliás
apoiam-se reciprocamente quer nas relações interpessoais
quer nas sociais. (...). A honra à palavra dada, a fidelidade à
promessa não se podem comprar nem vender. Não podem
ser impostas com a força, nem guardadas sem sacrifício»”.

ACOMPANHAMENTO DOS CASAIS NOS PRIMEIROS


ANOS DE MATRIMÔNIO:
“O matrimônio é uma questão de amor; só se podem ca-
sar aqueles que se escolhem livremente e se amam” (AL
217). [Novidade do mundo moderno - Erich Fromm]
É indispensável um acompanhamento, principalmente

223
nos primeiros anos – para ajudar a amadurecer o amor –
enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se
pertencerem até o fim.
É um projeto para se construir juntos: necessita paciên-
cia, compreensão, tolerância e generosidade (AL 218). O
matrimônio não é algo estático, acabado; mas sempre em
construção, chamado a crescer...
AL 218: “Por outro lado, quero insistir que um desafio da
pastoral familiar é ajudar a descobrir que o matrimônio
não se pode entender como algo acabado. A união é real,
é irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramen-
to do matrimônio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se
protagonistas, senhores da sua própria história e criadores
de um projeto que deve ser levado para a frente conjun-
tamente. O olhar volta-se para o futuro, que é preciso cons-
truir dia-a-dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não
se pretende do cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr
de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacabado, chamado
a crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge
é constantemente crítico, isto indica que o matrimônio
não foi assumido também como um projeto a construir
juntos, com paciência, compreensão, tolerância e gene-
rosidade. Isto faz com que o amor seja substituído pouco
a pouco por um olhar inquisidor e implacável, pelo contro-
le dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações, a
competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapa-
zes de se apoiarem um ao outro para o amadurecimento de
ambos e para o crescimento da união. Aos novos cônjuges,
é necessário apresentar isto com clareza realista desde
o início, de modo que tomem consciência de que estão
apenas começando. O «sim» que deram um ao outro é o
início de um itinerário, cujo objetivo se propõe superar as cir-

224
cunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuse-
rem. A bênção recebida é uma graça e um impulso para este
caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a
dialogar para elaborar o seu projeto concreto com os seus
objetivos, meios, detalhes.”
→ O caminho implica passar por etapas diferentes,
que convidam a doar-se com generosidade; é projeto de
ambos e, portanto, necessita a cada etapa de “negociação”
(“entrelaçados de ofertas e renúncias para o bem da família”)
“No lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e am-
bos compartilham a responsabilidade pela família; mas cada
lar é único e cada síntese conjugal é diferente” (AL 220). [con-
frontar com a CC]
→ Ser realista; não cultivar expectativas demasiado al-
tas sobre a vida conjugal (AL 221): “Fazer crescer é ajudar o
outro a moldar-se na sua própria identidade. Por isso o amor
é artesanal”. Cada lar é único e cada síntese conjugal é di-
ferente.
→ Os casais devem ser acompanhados e fortalecidos
principalmente nos primeiros anos de matrimônio. O lugar
privilegiado para esse acompanhamento é a paróquia, se
servindo de todos os recursos possíveis (AL 223).
AL 224: “Este caminho é uma questão de tempo. O amor
precisa de tempo disponível e gratuito, colocando outras
coisas em segundo lugar. Faz falta tempo para dialogar,
abraçar-se sem pressa, partilhar projetos, escutar-se, olhar-
-se nos olhos, apreciar-se, fortalecer a relação. Umas vezes,
o problema é o ritmo frenético da sociedade, ou os horários
impostos pelos compromissos laborais. Outras vezes, o pro-

225
blema é que o tempo transcorrido em conjunto não tem
qualidade; limitam-se a partilhar um espaço físico, mas sem
prestar atenção um ao outro. Os agentes pastorais e os
grupos de famílias deveriam ajudar os casais jovens ou
frágeis a aprenderem a encontrar-se nestes momentos,
a parar um diante do outro, e inclusive a partilhar mo-
mentos de silêncio que os obriguem a sentir a presença
do cônjuge.”
→ Também a planificação familiar (quantos filhos e em
quais momentos) deve ser consequência de um diálogo
consensual entre os esposos. Deverá ser encorajado “o re-
curso aos métodos baseados nos ‘ritmos naturais da fecundi-
dade’ (HV 11)” (AL 222).
→ Muitos dos casais jovens desaparecem da comunidade.
“Hoje, a pastoral familiar deve ser fundamentalmente
missionária, em saída, por aproximação, em vez de se re-
duzir a ser uma fábrica de cursos a que poucos assistem” (AL
230).
“As paróquias, os movimentos, as escolas e outras insti-
tuições da Igreja podem desenvolver várias mediações para
apoiar e reavivar as famílias” (AL 229).

ILUMINAR CRISES, ANGÚSTIAS E DIFICULDADES:


→ Todas as famílias passam por crises e momentos difíceis.
“Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas
para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das
possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise im-
plica uma aprendizagem, que permite incrementar a inten-

226
sidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar um novo
sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se
resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma
inevitável deterioração, a uma mediocridade que se tem de
suportar. Pelo contrário, quando se assume o matrimônio
como uma tarefa que implica também superar obstácu-
los, cada crise é sentida como uma ocasião para chegar
a beber, juntos, o vinho melhor” (AL 232).
Em um momento de crise, o que mais fica prejudicado é
a comunicação. Algo que se aprende em tempos calmos.
É preciso cultivar sempre a arte do diálogo. E não fugir; au-
sentar-se.
Embora se constate:
“É preciso ajudar a descobrir as causas mais recônditas nos
corações dos esposos e enfrentá-las como um parto que
passará e deixará um novo tesouro. Mas, nas respostas às
consultas realizadas, assinalava-se que, em situações
difíceis ou críticas, a maioria não recorre ao acompa-
nhamento pastoral, porque não o sente compreensivo,
próximo, realista, encarnado” (AL 234).
Isto deve ser uma chamada de atenção para nós. Qual
organização colocamos à disposição dos casais em crise e
que podem recorrer com confiança e competência?
→ Crises: comuns a todos os casais (AL 235); pessoais
com incidência no casal (AL 236).
Para superar crises é sempre preciso a disposição de “sa-
ber perdoar” e “sentir-se perdoado”: “Saber perdoar e sen-
tir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida fa-
miliar” (AL 236 cit. RF-2015, 81). Para a reconciliação, pode

227
haver necessidade da ajuda generosa de parentes e amigos
e, às vezes, até de apoio externo e profissional.
→ Analisando as crises que podem acabar em reconci-
liação, o papa retoma uma indicação da RF-2015 (81): “hoje
descobrimos que ‘um ministério dedicado àqueles cuja rela-
ção matrimonial se interrompeu, parece particularmente ur-
gente’” (AL 238).
→ Velhas feridas. Podem estar presentes nas dificulda-
des pelas quais o casal passa (AL 239). Muitos nunca se sen-
tiram incondicionalmente amados na infância e enfrentam
dificuldades na vida emocional adulta (AL 240). É preciso
fazer o “caminho de cura da própria história”; superar as
“imaturidades”; se dar conta dos próprios defeitos e res-
ponsabilidades e não jogar toda a culpa no outro.
→ Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios.
Algumas crises acabam inevitavelmente em ruptura e di-
vórcio; às vezes, a separação é “até moralmente necessária”
(AL 241). É indispensável um discernimento particular
para acompanhar pastoralmente os separados, divor-
ciados, os abandonados. Uma pastoral da reconciliação e
mediação (AL 242).
Os divorciados em nova união não devem se sentir ex-
cluídos da Igreja. O papa tomou as medidas possíveis para
tornar mais ágeis os processos de nulidade matrimonial.
Estabeleceu um rito breve quando possível; lembrando a
responsabilidade do bispo e fortalecendo a Pastoral judici-
ária (AL 244); bem como simplificando o rito normal.

228
AL 244: “Além disso, um grande número de Padres «subli-
nhou a necessidade de tornar mais acessíveis, ágeis e
possivelmente gratuitos de todo os procedimentos para
o reconhecimento dos casos de nulidade». A lentidão dos
processos irrita e cansa as pessoas. Os meus dois documen-
tos recentes sobre tal matéria levaram a uma simplificação
dos procedimentos para uma eventual declaração de nu-
lidade matrimonial. Através deles, quis também «evidenciar
que o próprio bispo na sua Igreja, da qual está constituí-
do pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis
a ele confiados». Por isso, «a aplicação destes documentos
é uma grande responsabilidade para os Ordinários dioce-
sanos, chamados eles próprios a julgar algumas causas e a
garantir, de todos os modos possíveis, um acesso mais fá-
cil dos fiéis à justiça. Isto implica a preparação de pessoal
suficiente, composto por clérigos e leigos, que se dedique
de modo prioritário a este serviço eclesial. Por conseguinte,
será necessário colocar à disposição das pessoas separadas
ou dos casais em crise um serviço de informação, acon-
selhamento e mediação, ligado à pastoral familiar, que
possa também acolher as pessoas tendo em vista a in-
vestigação preliminar do processo matrimonial (cf. Mitis
Iudex, arts. 2-3)».”
→ Frente aos casos de separação e divórcio, a preocu-
pação primeira deve ser com os filhos (AL 245). Até para o
bem deles, a Igreja não pode abandonar os divorciados re-
casados. O papa insiste para que nesta circunstância nunca
se use os filhos para atingir o outro, nem prejudique a ima-
gem do outro junto aos filhos.
“O divórcio é um mal, e é muito preocupante o aumento do
número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa
pastoral mais importante relativamente às famílias é

229
reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para poder-
mos impedir o avanço deste drama do nosso tempo” (AL
246).
→ Algumas situações complexas. Entre os desafios o
papa lembra os “matrimônios mistos” (AL 247); com “dispa-
ridade de culto” (AL 248); entre um católico e outro que não
crê (AL 248); matrimônio que aconteceu quando nenhum
dos dois ainda conhecia a fé cristã (AL 249); ainda a presen-
ça de pessoas homossexuais nas famílias e na comunidade
eclesial (AL 250); bem como das famílias monoparentais
(AL 252).
Quando a morte crava o seu aguilhão.
→ Por fim, aqueles matrimônios interrompidos pela
morte de um dos seus membros (AL 253-258).

230
IX
ACOMPANHAR, DISCERNIR
E INTEGRAR A FRAGILIDADE:
ANTECEDENTES HISTÓRICOS

• O matrimônio cristão é uma questão de fé; não pode


ser reduzido a um “fato social”, jurídico ou político (mesmo
naqueles momentos em que estas dimensões foram mais
fortemente sublinhadas, como nos regimes de cristanda-
de); portanto, a problemática deste capítulo deve ser com-
preendida desde a vivência da fé e do sacramento.
• AL irá analisar dois tipos de situação: os casados em
simples convivência ou com o matrimônio civil e as pes-
soas divorciadas em novo matrimônio, que chamaremos
divorciados recasados. Vamos nos ater a elas, embora sai-
bamos que nos nossos dias e em nossa sociedade existem
muitas situações diversas.
Reforçando: nós costumamos pensar que tudo sempre
foi como é hoje, que alguma proposta de mudança rompe
com uma tradição bimilenar; temos o hábito de pensar que
tudo seja muito claro e transparente – é próprio da cons-
ciência ingênua, aquela que não passou pelo aguilhão da
dúvida; e a-histórica; na verdade, tudo tem uma longa his-
tória, passou por longas maturações e modificações, nem
tudo é tão claro; conhecer a história nos ajudará a entender
e avaliar as proposições.

231
• Devemos nos lembrar que até o Concílio de Trento,
com o decreto Tametsi (1563), o matrimônio era uma ques-
tão privada, familiar. Com ele o Concílio reconhecia como
válidos os matrimônios até então celebrados de maneira
“clandestina” – ou seja, sem publicidade; e tornava nulos os
matrimônios que a partir de então não seguissem as novas
disposições: a forma canônica.
Especificamente: tornava obrigatória, sob pena de nuli-
dade, a troca do consentimento na presença de um assis-
tente eclesiástico (em geral, padre) e de testemunhas.
→ Este decreto foi determinante para a concepção mo-
derna de matrimônio. Ele estabelecia que a união matrimo-
nial era de competência exclusiva da Igreja.
Ao longo dos séculos e variando conforme as regiões, ti-
vemos experiências distintas. Mas precisamos logo frisar:
a Igreja sempre teve muito apreço pelo matrimônio e,
conforme a exposição de Agostinho, salientou os três bens
ou fins: a prole, a fidelidade e a indissolubilidade (iden-
tificado com o sacramento).
Conforme a sociedade européia foi se tornando mais
complexa e esfacelando a unidade do regime de cristan-
dade, a Igreja sentiu necessidade de controlar melhor o
matrimônio dos seus fiéis. Para tanto, precisava torná-
-lo mais público e objetivo. Para entender, um exemplo: o
matrimônio restrito às famílias envolvidas e em uma socie-
dade sem documentação pública comum seria difícil esta-
belecer sua existência e validade jurídica, podendo os en-

232
volvidos tentarem matrimônio com uma segunda pessoa.
Houve também uma evolução na compreensão dos
sacramentos, enquanto eventos privilegiados na vida hu-
mana da manifestação salvadora de Deus que acontece
eclesialmente. Depois de longas discussões e investigações
teológicas, o Concílio de Trento os limitará a 7 e os espe-
cificará. O matrimônio será um deles. (Vale lembrar que o
Concílio reage a Lutero e sua reforma, que não reconhece o
matrimônio como sacramento).
→ O próprio decreto, no entanto, foi votado depois de
muita hesitação. O próprio nome indica essa reticência: “ta-
metsi” = embora; não obstante, se bem que. Para os padres
conciliares ele parecia limitar o direito natural ao matrimô-
nio.
→ As dificuldades para implantá-lo também foram enor-
mes. Imediatamente surgem as resistências políticas.
Na Alemanha, nas regiões protestantes, não foi aplicado.
Na França, que tinha experimentado guerras internas, a
situação foi crítica: anos de perseguição aos protestantes
calvinistas terminaram com o Edito de Nantes (1598), que
mantinha a religião católica como oficial, mas tolerava o
culto dos calvinistas, com restrições. Luiz XIV revogou este
Edito em 1685 (contra a vontade do papa Inocêncio XI, que
deixou claro que essa não era a posição da Igreja Católica)
e com o Edito de Fontainebleau proibiu o culto protestante,
mandando destruir as Igrejas e Escolas. Com isso, mesmo
os protestantes ficavam obrigados ao matrimônio católico.

233
Sua recusa tornava os filhos ilegítimos; proibia a transferên-
cia de herança etc. Tiveram que fugir para os países vizi-
nhos. Para resolver esse problema, o rei Luiz XVI instaurou
a “forma civil” de matrimônio em 1787, como alternativa à
“forma canônica”. Esta “forma civil” se tornou obrigatória
em 1792 (em 1789 – Revolução Francesa).
Este conflito de interesses – Igreja X Estado – permanece
ainda hoje, dependendo das “concordatas” entre o Vatica-
no e os diversos países.
Em alguns casos, continuam existindo as duas formas,
sem que uma reconheça a outra, por exemplo, Alemanha
e França (que por sinal, exigem o matrimônio civil antes do
religioso); na Itália, o Estado reconhece os efeitos civis do
matrimônio religioso, mas a Igreja não reconhece o civil.
No Brasil, o Estado reconhece os efeitos civis do matri-
mônio religioso, mas a Igreja não reconhece a validade do
civil (no sentido em que ele dispense o religioso – nesse
sentido, a Igreja não reconhece nunca o matrimônio civil);
embora o valorize e o pressuponha, exigindo uma dispen-
sa do ordinário local para sua ausência.
→ Como a Igreja não reconhece um matrimônio de seus
fiéis (ou ao menos um dos cônjuges) celebrado fora da “for-
ma canônica”, a não ser que tenha obtido dispensa prévia,
temos um número considerável de batizados que vivem
em situação irregular canonicamente.
(Para a Igreja Católica, não obstante, os não católicos que
contraem matrimônio somente civil se casam validamente

234
– ver o exemplo dado em AL 75).
• O problema dos divorciados recasados (AL 78), ou
seja, aquelas que se casaram conforme a “forma canônica”,
se separaram e se uniram novamente a uma outra pessoa,
seja civilmente ou não.
O papa Francisco em várias manifestações condenou o
uso indiscriminado que fazemos de adjetivos; por isso, se
prefere falar de “pessoas divorciadas recasadas”, deixan-
do claro que não se quer acentuar uma “categoria”, mas sim
pessoas que vivem e sofrem por causa de sua situação; o
cardeal Semeraro prefere “fiéis divorciados recasados”,
lembrando que são pessoas batizadas na Igreja Católica e,
portanto, indelevelmente cristãos.
→ A expressão “divorciados recasados” não existe nos
Códigos de Direito Canônico.
O Código de 1917 falava de “bígamos”. E os definia como:
“aqueles que, não obstante a presença do vínculo conjugal,
fazem a tentativa (attentaverit) de um outro matrimônio, ao
menos civil, como o chamam” (can. 2356).
Duas explicações: bígamos = dois matrimônios; nós
costumeiramente entendemos por esta palavra quem os
mantém contemporaneamente; o Código o utiliza porque
considera o primeiro matrimonio em vigor;
“fazem a tentativa” (“matrimonium attentare”): a
Igreja não reconhece o matrimônio civil como matrimônio
válido – conseqüência do decreto Tametsi, do Concílio de
Trento; não se diz, portanto, que um católico “se casa ci-

235
vilmente”, mas que “tenta casar-se civilmente”. É bom lem-
brar-se da ADS de Leão XIII.
Nem reconhece um segundo matrimônio estando o pri-
meiro válido (diferente no caso, por exemplo, da viuvez ou
de quem conseguiu a declaração de nulidade).
CIC 1917, Can. 2356. Bigami, idest qui, obstante coniu-
gali vinculo, aliud matrimonium, et si tantum civile, ut
aiunt, attentaverint, sunt ipso facto infames; et si, spre-
ta Ordinarii monitione, in illicito contubernio persistant,
pro diversa reatus gravitate excommunicentur vel perso-
nali interdicto plectantur.
Can. 2356: Os bígamos, aqueles que, não obstante a pre-
sença do vínculo conjugal, fazem a tentativa de um outro
matrimônio, ainda que só civil, como o chamam, são infa-
mes; e se, desprezando a advertência do Ordinário, per-
sistem na bigamia, serão excomungados ou interditados.
→ São “ipso facto infames” [pelo próprio fato; automa-
ticamente]: a “infâmia” (má fama; má reputação; desonra)
é uma noção que entrou no direito no século IX e que no
Código de 1917 consiste em uma pena muito grave, com-
portando muitas sanções, entre elas podemos lembrar: ex-
clusão da comunhão eucarística, da recepção da extrema-
-unção e dos funerais eclesiásticos. Na prática, correspondia
à excomunhão, como o próprio cânon termina afirmando.
→ Pio XI, CC: apresenta a mesma visão do Código de
1917.
Leiamos dois parágrafos (em que o papa comenta o ter-
ceiro bem do matrimônio, o sacramento, identificado por

236
Agostinho e a tradição com a indissolubilidade):
“45. Considerando, Veneráveis Irmãos, tamanha excelência
das castas núpcias, mais doloroso Nos parece ver como esta
divina instituição, especialmente nos nossos tempos, é tan-
tas vezes e com tanta facilidade desprezada e vilipendiada.
46. É um fato, em verdade, que não já em segredo, nas tre-
vas, mas abertamente, posto de parte todo o sentido do pu-
dor, quer oralmente, quer por escrito, pelas representações
teatrais de todos os gêneros, pelos romances, pelas novelas
e leituras amenas, pelas projeções cinematográficas, pe-
los discursos radiofônicos, enfim, por todas as descobertas
mais recentes da ciência, se calca aos pés e se ridiculariza a
santidade do matrimônio; ao passo que ou se louvam os di-
vórcios, os adultérios e os vícios mais ignominiosos, ou pelo
menos se pintam com tais cores, que parecem querer mos-
trá-los como isentos de qualquer mácula e infâmia.”
• Depois do Concílio Vaticano II a perspectiva canônica
em relação aos divorciados recasados mudou progressiva-
mente.
→ Com um decreto da Congregação para a Doutri-
na da Fé, de 20 de setembro de 1973 (depois que alguns
bispos já tinham tomado essa atitude em suas dioceses; e
pedidos insistentes das Conferências Episcopais), foi revo-
gado o cânon 1240 do CIC 1917; admitindo os divorciados
recasados (“pecadores manifestos” - públicos) aos funerais
cristãos (ritos de exéquias).
“Os Padres da Sagrada Congregação para a Doutrina da
Fé, nas reuniões plenárias dos dias 14 e 15 de novembro
de 1972, determinaram sobre as exéquias eclesiásticas:
que não sejam proibidas aos pecadores manifestos,

237
caso antes de sua morte tenham manifestado algum sinal
de penitência, com a condição de que se evite o escânda-
lo dos demais fiéis.
Sua Santidade o Papa Paulo VI na audiência concedida ao
infraescrito Prefeito no dia 17 de novembro de 1972 ratificou
a decisão anterior dos Padres, derrogando o teor do cânone
1240, 1 § e, nada obstando em contrário, aprovou-a e deter-
minou a sua publicação.
Roma, 20 de setembro de 1973.” (AAS 65 -1973 – p.500; CDF
1973)
→ Os bispos durante o Sínodo dos Bispos de 1980 in-
sistiram muito sobre a importância da acolhida pastoral
dos divorciados recasados.
→ João Paulo II recebeu a contribuição do Sínodo na
Exortação Pós-Sinodal Familiaris Consortio (22/11/1981).
Será a orientação seguida pela Igreja até Amoris Laeti-
tia. E mesmo depois de Amoris Laetitia, continua sendo a
orientação majoritariamente seguida, mesmo naquilo que
Amoris Laetitia “parece” modificar. Por isso, é importante ler
o parágrafo todo dedicado ao nosso tema: - FC 84:
“e) Divorciados que contraem nova união
84. A experiência quotidiana mostra, infelizmente, que quem
recorreu ao divórcio tem normalmente em vista a passagem
a uma nova união, obviamente não com o rito religioso ca-
tólico. Pois que se trata de uma praga que vai, juntamente
com as outras, afetando sempre mais largamente mesmo
os ambientes católicos, o problema deve ser enfrentado
com urgência inadiável. Os Padres Sinodais estudaram-no
expressamente. A Igreja, com efeito, instituída para conduzir

238
à salvação todos os homens e sobretudo os batizados, não
pode abandonar aqueles que - unidos já pelo vínculo matri-
monial sacramental - procuraram passar a novas núpcias.
Por isso, esforçar-se-á infatigavelmente por oferecer-lhes os
meios de salvação.
Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão
obrigados a discernir bem as situações. Há, na realidade,
diferença entre aqueles que sinceramente se esforçaram por
salvar o primeiro matrimônio e foram injustamente aban-
donados e aqueles que por sua grave culpa destruíram um
matrimônio canonicamente válido. Há ainda aqueles que
contraíram uma segunda união em vista da educação dos
filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consci-
ência de que o precedente matrimônio irreparavelmen-
te destruído nunca tinha sido válido.
Juntamente com o Sínodo, exorto vivamente os pastores e
a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, pro-
curando, com caridade solícita, que eles não se conside-
rem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo,
enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exor-
tados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da
Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de ca-
ridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça,
a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras
de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de
Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe mi-
sericordiosa e sustente-os na fé e na esperança.
A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sa-
grada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística
os divorciados que contraíram nova união. Não podem
ser admitidos, do momento em que o seu estado e condi-
ções de vida contradizem objetivamente aquela união
de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na

239
Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pas-
toral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis
seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da
Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.
A reconciliação pelo sacramento da penitência - que
abriria o caminho ao sacramento eucarístico - pode ser con-
cedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal
da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dis-
postos a uma forma de vida não mais em contradição
com a indissolubilidade do matrimônio. Isto tem como
consequência, concretamente, que quando o homem e a
mulher, por motivos sérios - quais, por exemplo, a educação
dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação
de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos
atos próprios dos cônjuges» (João Paulo PP. II, Homilia
para a conclusão do VI Sínodo dos Bispos (25 de Outubro de
1980), 7: AAS 72 (1980), 1082).
Igualmente o respeito devido quer ao sacramento do ma-
trimônio quer aos próprios cônjuges e aos seus familiares,
quer ainda à comunidade dos fiéis proíbe os pastores, por
qualquer motivo ou pretexto mesmo pastoral, de fa-
zer em favor dos divorciados que contraem uma nova
união, cerimônias de qualquer gênero. Estas dariam a
impressão de celebração de novas núpcias sacramentais
válidas, e consequentemente induziriam em erro sobre a
indissolubilidade do matrimônio contraído validamente.
Agindo de tal maneira, a Igreja professa a própria fidelidade
a Cristo e à sua verdade; ao mesmo tempo comporta-se com
espírito materno para com estes seus filhos, especialmente
para com aqueles que sem culpa, foram abandonados pelo
legítimo cônjuge. Com firme confiança ela vê que, mesmo
aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor
e vivem agora nesse estado, poderão obter de Deus a

240
graça da conversão e da salvação, se perseverarem na
oração, na penitência e na caridade.”
Com a FC percebemos que o discurso da Igreja acerca
dos divorciados recasados passou, em poucas décadas, da
sanção canônica (na prática: “excomunhão”) à da “solicitu-
de pastoral” (“que eles não se considerem separados da Igre-
ja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, partici-
par na sua vida”).
Embora reconhecendo que as pessoas nesta situação
poderão vivenciá-la de modo muito diverso, e os responsá-
veis deverão discernir caso a caso:
→ algumas poderão ter consciência de que seu primeiro
vínculo não foi válido;
→ outras poderão ter sofrido injustamente a primeira
separação;
→ que tenham se unido uma segunda vez pensando
principalmente no bem dos filhos;
FC continua estabelecendo a sansão de acordo com
a objetividade da lei – aquilo que é exterior – e, portan-
to, estabelece a pena comum a todos: privação dos sacra-
mentos.
E a condenação de qualquer tipo de bênção: “simula-
ção” de matrimônio.
A solução para quem quiser se reaproximar dos sacra-
mentos deverá ser:
→ Romper o atual matrimônio e recompor o anterior;

241
→ Romper o atual matrimônio e permanecer só;
→ Na impossibilidade de romper o atual matrimônio,
porque poderia causar danos ainda maiores (como prejudi-
car os filhos desta segunda união), deverá assumir o com-
promisso da continência sexual – ou seja, “viver como
irmãos”; “casal josefino”. Esta solução recebeu muitas crí-
ticas [dos “conservadores” e dos “progressistas”]: pela im-
possibilidade de controle objetivo pela Igreja ou porque
centra a problemática no “ato sexual”.
Em nenhum momento entra em questão a “felicidade
das pessoas”; por exemplo: por que alguém iria dissolver
uma segunda união estável no tempo e feliz para retomar
uma relação infeliz e frustrada?
[essa objeção vale também para os documentos atuais]
Deve-se notar que FC não apresenta o “modo” como
proceder frente aos divorciados recasados que aceitam a
proposta da continência sexual. Certamente essa decisão
permaneceria no “foro interno” dos envolvidos e do confes-
sor. Como a Igreja reiteradamente se preocupa com o “es-
cândalo” de que alguém que os conheça os veja comungar,
como proceder?
A Conferência Episcopal Italiana em seu diretório para
a Pastoral Familiar que aplicava a FC propunha que tais
pessoas comungassem “onde ninguém as conhecesse”, ao
visitar um santuário, por exemplo. Esta solução era a mais
comum.
É surpreendente encontrar essa proposta ainda a res-

242
peito de AL em teólogos como, por exemplo, Walter Kas-
per (2018, p.60): “Se houver perigo de que cause escândalo
público, caberá à sabedoria pastoral aconselhar o penitente
de comungar em uma outra comunidade ou em um lugar de
peregrinação”.
Precisamos nos questionar: qual eclesiologia que a
fundamenta? E meditar sobre a parábola do Filho Pró-
digo: frente ao “escândalo do filho mais velho” o pai não
objetou receber o mais novo, mas saiu de casa para buscar
e acalmar o mais velho.
Por isso, a integração proposta por AL deverá fazer um
discernimento pastoral também com a comunidade,
que em última instância, é quem integra.
→ Tanto o Código de Direito Canônico de 1983 (para
a Igreja latina) quanto o Código das Igrejas Orientais, de
1990, revistos e atualizados de acordo com o Concílio Vati-
cano II, abandonaram a linguagem do Código de 1917.
Mas então, em qual situação canônica se encaixam ago-
ra os divorciados recasados?
Em geral se aplica a eles o cânon 915:
Cân. 915 — Não sejam admitidos à sagrada comunhão os
excomungados e os interditos, depois da aplicação ou de-
claração da pena, e outros que obstinadamente perseverem
em pecado grave manifesto.
Este cânon levantou logo problemas de interpretação e
nem todos os canonistas estavam de acordo que a afirma-
ção “obstinadamente perseverem em pecado grave manifes-

243
to” incluísse os divorciados recasados ou pelo menos a to-
dos eles. Para eles, essa afirmação era muito vaga. Também
o fato da penalidade dever ser pronunciada e declarada
pelas autoridades competentes (bispo ou tribunal), como
o afirma em sua primeira parte.
Há aqui também uma questão técnica [da moral]: para
haver “pecado grave” é preciso a combinação de três ele-
mentos – matéria grave; consciência plena e liberdade (po-
der escolher; querer agir assim). A própria FC reconhece que
existem casos em que os envolvidos estão subjetivamente
convencidos da nulidade do primeiro vínculo matrimonial.
Pareceria mais apropriado aplicar a eles o cânon 916:
Cân. 916 — Quem estiver consciente de pecado grave não
celebre Missa nem comungue o Corpo do Senhor, sem fazer
previamente a confissão sacramental, a não ser que exista
uma razão grave e não tenha oportunidade de se confessar;
neste caso, porém, lembre-se de que tem obrigação de fazer
um ato de Contrição perfeita, que inclui o propósito de se
confessar quanto antes.
A diferença principal entre os dois cânones é que, no
primeiro caso (c.915) é o ministro da comunhão que
recusa dar a eucaristia – estamos na dimensão objetiva,
exteriorizada, da instituição (por isso a necessidade de ser
um “pecado grave manifesto”, ou seja, público); no segun-
do caso (c.916), é o próprio fiel que toma a decisão de
se abster (a dimensão em questão é subjetiva, por isso,
“quem estiver consciente de pecado grave”).
Werckmeister (2007), canonista renomado, compartilha

244
dessa visão; Semeraro (2017) também parece concordar
com ele; o padre Jesus Hortal, que comenta o código em
sua edição brasileira, o aplica, citando textualmente FC 84.
Essa disputa de interpretações será objeto de uma de-
finição específica por parte das autoridades competentes
apenas no ano 2000.
Para o cardeal Semeraro é justamente daqui que par-
te AL – ver, por exemplo, AL nota 336. O discernimento es-
taria mais de acordo com o c.916.
→ O Catecismo da Igreja Católica (1992) em seu n.1650
irá reafirmar a proibição da comunhão nos termos de FC
84.
→ Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos
da Igreja Católica a respeito da recepção da comunhão euca-
rística por fiéis divorciados novamente casados (Cardeal Rat-
zinger, 14/09/1994).
Volta a afirmar FC condenando “experiências” que se vem
fazendo em muitos lugares. Vale a pena ler um parágrafo:
“3. Cientes, porém, de que a compreensão autêntica e a ge-
nuína misericórdia nunca andam separadas da verdade,
os pastores têm o dever de recordar a estes fiéis a doutrina
da Igreja a propósito da celebração dos sacramentos e em
particular da recepção da Eucaristia. Sobre este ponto,
nos últimos anos em várias regiões foram propostas di-
versas soluções pastorais segundo as quais certamente
não seria possível uma admissão geral dos divorcia-
dos novamente casados à comunhão eucarística, mas
poderiam aproximar-se desta em determinados casos,

245
quando segundo a sua consciência a tal se consideras-
sem autorizados. Assim, por exemplo, quando tivessem
sido abandonados de modo totalmente injusto, embora se
tivessem esforçado sinceramente para salvar o matrimônio
precedente ou quando estivessem convencidos da nulidade
do matrimônio anterior, mesmo não podendo demonstrá-
-la no foro externo, ou então quando tivessem já transcorri-
do um longo período de reflexão e de penitência ou mesmo
quando não pudessem, por motivos moralmente válidos,
satisfazer a obrigação da separação.”
“4. (...) Face às novas propostas pastorais acima menciona-
das, esta Congregação considera pois seu dever reafirmar a
doutrina e a disciplina da Igreja nesta matéria. Por fidelida-
de à palavra de Jesus Cristo, a Igreja sustenta que não pode
reconhecer como válida uma nova união, se o primeiro Ma-
trimônio foi válido. Se os divorciados se casam civilmente,
ficam numa situação objetivamente contrária à lei de Deus.
Por isso, não podem aproximar-se da comunhão eucarísti-
ca, enquanto persiste tal situação.”
Este documento é provavelmente o que mais se chocaria
com Amoris Laetitia.
Este documento provocará fortes reações, a ponto do
Cardeal Ratzinger escrever um outro texto para comentá-
-lo: A propósito de algumas objeções contra a doutrina da
Igreja acerca da recepção da comunhão eucarística da parte
de fieis divorciados recasados (RATZINGER 1998).
→ Por fim, acerca do debate canônico se pronunciou o
Conselho Pontifício para os Textos Legislativos: Sobre a ad-
missão à Santa Comunhão dos fieis divorciados que contraí-
ram novas núpcias (24/06/2000).

246
Esta declaração visa pôr fim a discordância entre os
canonistas quanto ao alcance do c.915, o aplicando aos
divorciados recasados. Esclarecendo que: aqui se trata da
situação objetiva de pecado grave, já que da imputabilida-
de subjetiva, não poderia o ministro da comunhão julgar;
sendo necessário apenas a duração no tempo, não neces-
sitando a formalização de pena; e o caráter manifesto da
situação.
Frente a esta interpretação, que abrangeria também os
casais que vivem em continência, lembra que estes só po-
dem comungar quando “removido o escândalo”.
Mas essa condição não poderia ser aplicada também a ou-
tros casos?

• PERCURSO SINODAL ATÉ A AL (NO QUE SE REFERE AO


CONTEÚDO DO CAPÍTULO VIII DE AL)
O papa está respondendo ao anseio de grande parte do
episcopado e dos fiéis católicos.
Olhar este percurso é importante para tomar consciên-
cia que a problemática não surgiu com o papa Francisco e
com AL. Ela é mais profunda, tem uma história. O papa tem
tido a coragem de deixar os leigos e o clero, que está mais
diretamente em contato com os fiéis, se manifestarem.
Desde que o divórcio foi se tornando comum nos países
de maioria católica, o acesso aos sacramentos para recasa-
dos começou a inquietar setores diversos da Igreja.

247
Como já tivemos ocasião de expor, FC o afronta com uma
novidade, a de que possam ter acesso aos sacramentos
aquelas pessoas que, nesta condição, aceitem viver “como
irmãos” e evitem escândalo na comunidade.
Com o papa Francisco se reacendeu a esperança de que
algo pudesse mudar. O seu apelo ao realismo, à misericór-
dia e a convocação de um Sínodo dos Bispos extraordiná-
rio sobre a família estimulou uma discussão aberta sobre a
questão.
A introdução de uma série de perguntas sobre isso em
preparação para o Sínodo desencadeou a polêmica e pola-
rização de posturas favoráveis e contrárias que chegou aos
meios de comunicação social. A esta situação o papa se re-
fere já em AL 2:
“Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou
em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, esten-
dem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem su-
ficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pre-
tende resolver tudo através da aplicação de normas gerais
ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões
teológicas” (AL 2).
Podemos tomar consciência do questionário enviado
em preparação para o Sínodo Extraordinária de 2014:
“c) Os separados e os divorciados recasados constituem
uma realidade pastoral relevante na Igreja particular? Em
que percentagem se poderia calculá-los numericamente?
Como se enfrenta esta realidade, através de programas pas-
torais adequados?

248
d) Em todos estes casos: como vivem os batizados a sua ir-
regularidade? Estão conscientes da mesma? Simplesmente
manifestam indiferença? Sentem-se marginalizados e vi-
vem com sofrimento a impossibilidade de receber os sacra-
mentos?
e) Quais são os pedidos que as pessoas separadas e divorcia-
das dirigem à Igreja, a propósito dos sacramentos da Euca-
ristia e da Reconciliação? Entre as pessoas que se encontram
em tais situações, quantas pedem estes sacramentos?
f) A simplificação da praxe canônica em ordem ao reconhe-
cimento da declaração de nulidade do vínculo matrimonial
poderia oferecer uma contribuição positiva real para a solu-
ção das problemáticas das pessoas interessadas? Se sim, de
que forma?
g) Existe uma pastoral para ir ao encontro destes casos?
Como se realiza esta atividade pastoral? Existem programas
a este propósito, nos planos nacional e diocesano? Como a
misericórdia de Deus é anunciada a separados e divorciados
recasados e como se põe em prática a ajuda da Igreja para o
seu caminho de fé?” (Sínodo dos Bispos 2014 - Documento
Preparatório).
Uma breve apresentação das respostas, conforme en-
contramos no Instrumentum Laboris SB 2014, referentes à
nossa realidade:
A realidade dos separados, divorciados e divorciados
recasados é relevante em toda a América (86). As atitudes
são bastante semelhantes nos diversos contextos regionais
(89).
“Bastante consistente é o número daqueles que conside-
ram com menosprezo a própria situação irregular” (90).

249
“Frequentemente não se entende a relação intrínseca entre
matrimônio, Eucaristia e penitência; portanto, é muito difícil
compreender por que motivo a Igreja não admite à comu-
nhão aqueles que se encontram em uma condição irregular.
Os percursos catequéticos sobre o matrimônio não explicam
suficientemente este vínculo” (91).
Muitos, que são conscientes de sua situação, manifestam
o sofrimento pela não recepção dos sacramentos; sentem-
-se frustrados e marginalizados. Grande número de Con-
ferências Episcopais manifesta sua preocupação com esta
situação e a necessidade de integrá-los melhor.
“Além disso, há respostas e observações, da parte de algu-
mas Conferências Episcopais, que salientam a necessidade
de que a Igreja se dote de instrumentos pastorais mediante
os quais abrir a possibilidade de exercer uma misericórdia,
clemência e indulgência mais amplas em relação às novas
uniões” (92).
“A respeito do acesso aos sacramentos, evidenciam-se rea-
ções diferenciadas por parte dos fiéis divorciados recasados.
Na Europa (mas também em alguns países da América La-
tina e da Ásia), prevalece a tendência a resolver a questão
através de alguns sacerdotes que aceitem o pedido de aces-
so aos sacramentos. A este propósito, indica-se (em particu-
lar na Europa e na América Latina) um modo diferente de
responder por parte dos pastores.Por vezes, estes fiéis afas-
tam-se da Igreja ou passam para outras confissões cristãs”
(93).
Nas comunidades eclesiais se registram a presença de
pessoas em situação irregular que pedem para ser acompa-
nhadas na sua condição.

250
“Muitas das respostas recebidas indicam que em numero-
sos casos se encontra um pedido claro para poder receber
os sacramentos da Eucaristia e da Penitência, de modo es-
pecial na Europa, na América e em alguns países da África.
O pedido torna-se mais insistente sobretudo por ocasião da
celebração dos sacramentos por parte dos filhos. Às vezes
deseja-se a admissão à comunhão como que para ser “legi-
timados” pela Igreja, eliminando o sentido de exclusão ou
de marginalização. A respeito disto, alguns sugerem que se
considere a prática de determinadas Igrejas ortodoxas que,
em sua opinião, abre o caminho para um segundo ou ter-
ceiro matrimônio, com caráter penitencial; a este propósito,
dos países de maioria ortodoxa indica-se que a experiência
de tais soluções não impede o aumento dos divórcios. Ou-
tros pedem para esclarecer se a questão é de índole doutri-
nal ou apenas disciplinar” (95).
Há o pedido para a simplificação dos procedimentos em
vista da nulidade matrimonial (96; 98). Outros manifestam
sua preocupação em vista de tal simplificação, indicando o
seu risco; preferem que aja um incremento do número de
tribunais e pessoal preparado, sobretudo na América Lati-
na; e para conceder maior autoridade às instâncias locais
(99).
“Muitos apresentam pedidos relativos à simplificação: pro-
cesso canônico facilitado e mais rápido; concessão de maior
autoridade ao bispo local; maior acesso de leigos como juí-
zes; e redução do custo econômico do processo. Em particu-
lar, alguns propõem que se volte a considerar se é verdadei-
ramente necessária a dupla sentença conforme, pelo menos
quando não há pedido de apelo, obrigando contudo o defen-
sor do vínculo ao apelo em determinados casos. Propõe-se

251
também que se descentralize a terceira instância. Em todas
as áreas geográficas, pede-se um delineamento mais pasto-
ral nos tribunais eclesiásticos, com maior atenção espiritual
em relação às pessoas” (100).
“Com grande misericórdia, a Igreja é chamada a encontrar
formas de “companhia” com as quais apoiar estes seus filhos
num percurso de reconciliação. Com compreensão e paciên-
cia, é importante explicar que a impossibilidade de aceder
aos sacramentos não significa ser excluídos da vida cristã e
da relação com Deus” (103).
“Em relação a estas situações complexas, da parte de muitas
respostas, salienta-se a falta de um serviço de assistência es-
pecífica para estas pessoas nas dioceses. Muitas conferências
episcopais recordam a importância de oferecer a estes fiéis
uma participação concreta na vida da Igreja, através de gru-
pos de oração, de momentos litúrgicos e de atividades cari-
tativas. Além disso, indicam-se algumas iniciativas pastorais,
como por exemplo uma bênção pessoal para quem não pode
receber a eucaristia, ou o encorajamento da participação dos
filhos na vida paroquial. Realça-se o papel dos movimentos
de espiritualidade conjugal, das ordens religiosas e das co-
missões paroquiais para a família. É significativa a recomen-
dação da prece pelas situações difíceis, no âmbito das litur-
gias paroquiais e diocesanas na oração universal” (104).
Até aqui vimos o que se referia aos divorciados e nova-
mente casados na pesquisa em preparação ao Sínodo.
No Relatio Synodi, o relatório final entregue ao papa
Francisco, estas questões foram assim apreciadas:
No Sínodo voltou-se a pedir “opções pastorais corajosas”
e “novos caminhos pastorais, que comecem a partir da rea-

252
lidade efetiva das fragilidades familiares” (45).
A divisão quanto à necessidade de simplificação dos
processos de nulidade matrimonial permaneceu. Enquan-
to numerosos padres sinodais a pedem, alguns são contrá-
rios temendo erro de juízo:
“Numerosos Padres sinodais sublinharam a necessidade de
tornar mais acessíveis e céleres, se possível totalmente gra-
tuitos, os procedimentos para o reconhecimento dos casos
de nulidade. Entre as propostas foram indicados: a supe-
ração da necessidade da dupla sentença conforme; a pos-
sibilidade de determinar um percurso administrativo sob
a responsabilidade do bispo diocesano; a iniciação de um
processo sumário nos casos de nulidade notória. Todavia,
alguns Padres sinodais afirmam que são contrários a tais
propostas, porque não garantiriam um juízo confiável. É ne-
cessário reiterar que em todos estes casos se trata de averi-
guar a verdade sobre a validade do vínculo. Em conformida-
de com outras propostas, também seria preciso considerar a
possibilidade de dar relevância ao papel da fé dos nubentes
em ordem à validade do sacramento do matrimônio, cons-
cientes de que entre os batizados todos os matrimônios vá-
lidos constituem um sacramento” (48).
[parágrafo aprovado por: 143 sim; 45 não]
Além da simplificação dos procedimentos, “exigida por
muitos”, “requer que se realce a responsabilidade do bispo
diocesano” (49).
Por fim, um parágrafo que será acolhido amplamente na AL:
“Refletiu-se sobre a possibilidade de que os divorciados e
recasados acedam aos sacramentos da Penitência e da Eu-
caristia. Diversos Padres sinodais insistiram a favor da disci-

253
plina atualmente em vigor, em virtude da relação constitu-
tiva entre a participação na Eucaristia e a comunhão com a
Igreja e o seu ensinamento sobre o matrimônio indissolúvel.
Outros se manifestaram a favor de um acolhimento não
generalizado na mesa eucarística, em algumas situações
particulares e em condições muito específicas, sobretudo
quando se trata de casos irreversíveis e ligados a obrigações
morais em relação aos filhos, que viriam a padecer sofri-
mentos injustos. O eventual acesso aos sacramentos deve-
ria ser precedido por um caminho penitencial, sob a respon-
sabilidade do bispo diocesano. Esta questão ainda deve ser
aprofundada, tendo perfeitamente presente a distinção
entre situação objetiva de pecado e circunstâncias atenuan-
tes, uma vez que «a imputabilidade e a responsabilidade de
um ato podem ser diminuídas, e até anuladas» por diversos
«fatores psíquicos ou sociais» (Catecismo da Igreja Católica,
1735)” (52).
[Entre todos os parágrafos, este foi o que teve a aprova-
ção mais apertada: 104 placet/sim; 74 non placet/não].
Em vista da preparação para o Sínodo de 2015, foi envia-
do, juntamente com o Relatio Synodi de 2014, uma nova
bateria de perguntas (compunha o Lineamenta). Sobre o
que estamos nos interrogando, ou seja, da possibilidade
de recasados terem acesso aos sacramentos, constava uma
pergunta:
“A pastoral sacramental a favor dos divorciados recasa-
dos precisa de um ulterior aprofundamento, avaliando
também a prática ortodoxa e tendo presente «a distinção
entre situação objetiva de pecado e circunstâncias ate-
nuantes» (n. 52). Quais são as perspetivas em que agir?
Quais os passos possíveis? Quais sugestões para resolver

254
formas de impedimentos indevidas ou desnecessárias?”
(38).
No documento de trabalho para o Sínodo de 2015,
o Instrumentum Laboris, que integrou o Relatio Synodi de
2014 mais as respostas da nova consulta preparatória, a
questão aparece assim:
Após indicar a necessidade de integrar aos casais nesta
situação, inclusive eliminando oportunamente as exclu-
sões nos campos litúrgico-pastoral, educativo e caritativo,
tal como era proposto pela FC, comenta o parágrafo 52 do
Lineamenta:
“Para enfrentar a supramencionada temática, existe um co-
mum acordo acerca da hipótese de um itinerário de recon-
ciliação ou caminho penitencial, sob a autoridade do Bispo,
para os fiéis divorciados recasados civilmente, que se encon-
tram em situação de convivência irreversível. Com referên-
cia ao n. 84 da Familiaris Consortio, sugere-se um percurso
de tomada de consciência acerca do fracasso e das feridas
por ele causadas, com arrependimento, averiguação da
eventual nulidade do matrimônio, compromisso na comu-
nhão espiritual e decisão de viver em continência.
Outros, por caminho penitencial entendem um processo de
esclarecimento e de nova orientação, depois do fracasso vi-
vido, acompanhado por um presbítero para isto deputado.
Este processo deveria levar o interessado a um juízo honesto
sobre a sua condição, na qual também o próprio presbítero
possa amadurecer uma sua avaliação para poder recorrer
ao poder de ligar e de desligar, de modo adequado à situa-
ção” (123).
Também se manifesta contrário ao que foi chamada “co-

255
munhão espiritual”, que havia sido apresentada como hi-
pótese para os impedidos da comunhão sacramental:
“No que se refere à comunhão espiritual, é necessário re-
cordar que ela pressupõe a conversão e o estado de graça, e
está ligada à comunhão sacramental” (125).
O Relatório Final do Sínodo entregue ao papa Francisco
consta de três parágrafos que foram amplamente assumi-
dos em AL. Como são também fonte de intensa discussão,
os transcrevemos:
“84. Os batizados que são divorciados e recasados devem
ser integrados em maior medida nas comunidades cristãs,
de várias maneiras possíveis, evitando todas as ocasiões de
escândalo. A lógica da integração constitui a chave do seu
acompanhamento pastoral, para que não somente saibam
que pertencem ao Corpo de Cristo, que é a Igreja, mas tam-
bém possam fazer uma experiência jubilosa e fecunda da
mesma. São batizados, são irmãos e irmãs, e o Espírito San-
to derrama sobre eles dons e carismas para o bem de todos.
A sua participação pode manifestar-se em diferentes servi-
ços eclesiais: por isso, é necessário discernir quais das diver-
sas formas de exclusão atualmente praticadas nos âmbitos
litúrgico, pastoral, educativo e institucional, podem ser su-
peradas. Eles não apenas não devem sentir-se excomunga-
dos, mas podem viver e amadurecer como membros vivos
da Igreja, sentindo-a como uma mãe que os recebe sempre,
que cuida deles com carinho e que os anima no caminho da
vida e do Evangelho. Esta integração é necessária também
em ordem ao cuidado e à educação dos seus filhos, que de-
vem ser considerados os mais importantes. Para a comuni-
dade cristã, cuidar destas pessoas não é um debilitamento
da própria fé e do testemunho acerca da indissolubilidade

256
matrimonial: aliás, é precisamente neste cuidado que a Igre-
ja manifesta a sua caridade.
85. São João Paulo II ofereceu um critério global, que per-
manece a base para a avaliação destas situações: «Saibam
os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a dis-
cernir bem as situações. Há, na realidade, diferença entre
aqueles que sinceramente se esforçaram por salvar o pri-
meiro matrimônio e foram injustamente abandonados, e
aqueles que por sua grave culpa destruíram um matrimônio
canonicamente válido. Há ainda aqueles que contraíram
uma segunda união em vista da educação dos filhos e, às
vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o
precedente matrimônio, irreparavelmente destruído, nunca
tinha sido válido» (FC, 84). Portanto, é tarefa dos presbíteros
acompanhar as pessoas interessadas no caminho do discer-
nimento, em conformidade com o ensinamento da Igreja e
com as orientações do Bispo. Neste processo, será útil fazer
um exame de consciência, através de momentos de reflexão
e de arrependimento. Os divorciados recasados deveriam
interrogar-se como se comportaram em relação aos seus
filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve
tentativas de reconciliação; qual é a situação do parceiro
abandonado; quais são consequências da nova relação so-
bre o restante da família e sobre a comunidade dos fiéis; e
que exemplo ela oferece aos jovens que se devem preparar
para o matrimônio. Uma reflexão sincera pode fortalecer a
confiança na misericórdia de Deus, que a ninguém deve ser
rejeitada.
Além disso, não se pode negar que, nalgumas circunstân-
cias, «a imputabilidade e responsabilidade de um ato po-
dem ser diminuídas e até anuladas» (CIC, 1735) por causa de
diversos condicionamentos. Por conseguinte, o juízo sobre
uma situação objetiva não deve levar a um julgamento so-

257
bre a «imputabilidade subjetiva» (Pontifício Conselho para
os Textos Legislativos, Declaração, 24 de junho de 2000, 2a).
Em determinadas circunstâncias, as pessoas encontram
grandes dificuldades de agir de maneira diversa. Por isso,
não obstante seja necessário promover uma norma geral,
é preciso reconhecer que a responsabilidade em relação a
certas ações ou decisões não é a mesma em todos os casos.
Embora tenha em consideração a consciência retamente
formada pelas pessoas, o discernimento pastoral deve assu-
mir a responsabilidade por tais situações. Também as con-
sequências dos gestos realizados não são necessariamente
as mesmas em todos os casos.
86. O percurso de acompanhamento e de discernimento
orienta estes fiéis para a tomada de consciência da sua situ-
ação perante Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro inter-
no, concorre para a formação de um juízo reto sobre aquilo
que impede a possibilidade de uma participação mais plena
na vida da Igreja e sobre os passos que podem favorecê-la e
levá-la a crescer. Visto que na própria lei não existe gradu-
ação (cf. FC, 34), este discernimento nunca poderá prescin-
dir da verdade e da caridade do Evangelho, propostas pela
Igreja. Para que isto se verifique, devem ser garantidas as ne-
cessárias condições de humildade, discrição, amor à Igreja e
ao seu ensinamento, na busca sincera da vontade de Deus
e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita sincera
à mesma”.
Diferentemente do que havia acontecido no Sínodo Ex-
traordinário de 2014, quando nem todas as proposições
(parágrafos) alcançaram em sua votação dois terços de
aprovação, neste Relatório Final todas elas alcançaram, em-
bora estes três parágrafos tenham sido os mais debatidos
e com menor margem de aprovação, mostrando a divisão

258
dos padres sinodais, em número de 270:
§84: 187 sim/ 72 não;
§85: 178 sim/ 80 não (apenas um a mais do que a maioria
de dois terços).

• PREPARANDO O CAPÍTULO VIII DE AL:


O papa Francisco retoma praticamente por inteiro, em-
bora em momentos separados, os parágrafos 84, 85 e 86 da
Relatio Finalis. Irá expor mais detalhadamente três ques-
tões envolvidas:
→ a lei da gradualidade (não a gradualidade da lei; cf.
HUGUENIN 2014), ou seja, o fato de que se “conhece, ama e
cumpre o bem segundo diversas etapas de crescimento” (FC
34; cit. por AL 295), sempre procurando valorizar o bem
possível;
→ os condicionamentos e as circunstâncias atenuan-
tes nas quais se inscrevem os atos e a vida concreta das
pessoas, fazendo com que já não seja possível “dizer que to-
dos os que estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem
em estado de pecado mortal, privados da graça santificante”
(AL 301); e, por fim,
→ a consciência da impossibilidade de aplicar auto-
maticamente normas universais a casos particulares
sem discernir bem as circunstâncias, isto porque “quanto
mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indetermi-
nação” (Tomás de Aquino, cit. por AL 304).

259
“Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas
aplicando leis morais aos que vivem em situações ‘irregulares’,
como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pesso-
as” (AL 305).
Embora o papa esteja retomando o discurso do Sínodo
Ordinário de 2015, é preciso não esquecer que muitos nas
consultas em preparação do Sínodo Extraordinário de 2014
e no próprio Sínodo pediram que se estudasse a possibi-
lidade do acesso aos sacramentos, tal como acontece em
Igrejas Ortodoxas (Instrumentum Laboris SB 2014, 95).
Em AL o papa Francisco nem atende aos anseios daque-
les que esperavam uma liberação generalizada de acesso
aos sacramentos pelos divorciados recasados, nem reforça
uma norma universal de proibição. O papa foge desses dois
extremos.
Retoma, no entanto, a abertura proposta pelos Síno-
dos, seguindo a lógica da integração e da misericórdia.
Não se concentra na dimensão da objetividade da lei, mas
na subjetividade dos envolvidos (fala de pessoas e não
de categorias), deixando em aberto a possibilidade de que,
após um processo de acompanhamento e discernimento, o
próprio fiel acompanhado pelo diretor espiritual e confes-
sor e em consenso com ele (sob a orientação do bispo dio-
cesano), possa livre e conscientemente decidir pelo acesso
aos sacramentos, evitando que isso seja um escândalo para
a comunidade eclesial.
Também a comunidade eclesial deverá passar por um

260
acompanhamento e discernimento que a ajude ser acolhe-
dora e integradora.
A finalidade do itinerário de acompanhamento e dis-
cernimento, porém, deve ser a realização do bem possí-
vel em cada momento, se aproximando continuamente
mais ao ideal visado, integrando-se cada vez melhor na
comunidade eclesial. O acesso aos sacramentos poderá
acontecer, mas não necessariamente (isto já fica claro pelo
enfoque dado pelo papa: duas notas de rodapé tomadas
de EG).
Ninguém deverá iniciar o discernimento como um pe-
ríodo de tempo determinado e com a garantia de que no
final deste período será integrado aos sacramentos. Por ou-
tro lado, é preciso deixar claro que para o papa Francisco,
os sacramentos são “remédio” e “ajuda” na caminhada,
não “prêmio” de chegada. A eucaristia como “remédio” é
já tratada por santo Ambrósio em Sobre os Sacramentos (V
4,24-26; 1996, p.67, n.25: “Quem tem uma ferida procura um
remédio. É uma ferida estarmos submetidos ao pecado, e o re-
médio é o celeste e venerável sacramento”).

261
262
X
O CAPÍTULO VIII DE AL:
ACOMPANHAR, DISCERNIR E
INTEGRAR A FRAGILIDADE

• AL 291. Dirige-se a todos “os seus filhos” que vivem na


Igreja de modo “incompleto” [completo/incompleto – pro-
cessual; refere-se à categoria de “tempo”; regular/irregula-
res – estático; refere-se à categoria de “espaço”; lembrar-se
que o papa em EG afirma que “o tempo é superior ao espa-
ço”]
→ Atitude fundamental: misericórdia (“Ano Jubilar”; mi-
sericórdia não significa afirmar que tudo seja igual, que não
haja uma escala de valor);
A Igreja:
→ propõe a perfeição (da vida cristã: pessoal, conjugal e
familiar – AL 292);
→ Mas não abandona seus filhos mais “frágeis”;
→ É como uma “luz do farol de um porto”; “tocha acesa
no meio do povo em uma tempestade”; “hospital de cam-
panha”;
O ideal que a Igreja propõe é lembrado em AL 292:
“O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua
Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e
uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor ex-
clusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à

263
transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes
confere a graça para se constituírem como igreja doméstica
e serem fermento de vida nova para a sociedade.
Algumas formas de união contradizem radicalmente este
ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de forma par-
cial e analógica.
Os Padres sinodais afirmaram que a Igreja não deixa de va-
lorizar os elementos construtivos nas situações que ainda
não correspondem ou já não correspondem à sua doutri-
na sobre o matrimônio”.
Aqueles que podem se encaminhar para o sacramento
• AL 293: situações diversas:
→ matrimônio civil;
→ “mera convivência”;
Jovens:
→ adiam indefinidamente o matrimônio;
→ passam rapidamente de uma relação à outra;
Tarefa para os pastores – discernimento pastoral (enten-
der os porquês); entrar em diálogo; ajudá-los no caminho
do sacramento do matrimônio.
Evangelização: ajudar no crescimento humano e espiri-
tual;
AL 294: → às vezes, não existe uma motivação contrá-
ria ao sacramento do matrimônio, mas situações culturais
e ocasionais; é preciso valorizar os sinais de amor nessas
uniões;

264
→ muitos, depois de algum tempo vivido juntos, pedem
o sacramento;
→ escolha da mera convivência:
* por causa de uma mentalidade geral contrária às insti-
tuições e compromissos definitivos;
* porque se espera adquirir maior segurança existencial
(emprego e salário);
* porque sentem o matrimônio como um luxo, impossí-
vel na situação de miséria em que vivem;
“Mas «é preciso enfrentar todas estas situações de forma
construtiva, procurando transformá-las em oportunidades
de caminho para a plenitude do matrimônio e da família à
luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las
com paciência e delicadeza»” (AL 294; cit. RS 2014, n.42).
→ Concluindo esta primeira parte, o papa retoma de
João Paulo II uma ideia que será fundamental: a “lei da gra-
dualidade”.
“Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada «lei
da gradualidade», ciente de que o ser humano «conhece,
ama e cumpre o bem moral segundo diversas etapas de
crescimento». Não é uma «gradualidade da lei», mas uma
gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em su-
jeitos que não estão em condições de compreender, apreciar
ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei. Com
efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o cami-
nho; um dom para todos sem exceção, que se pode viver
com a força da graça, embora cada ser humano «avance
gradualmente com a progressiva integração dos dons
de Deus e das exigências do seu amor definitivo e ab-

265
soluto em toda a vida pessoal e social»” (AL 295; cit. FC)
Falando da gradualidade no exercício dos atos livres, o
papa chama a atenção para o fundamento do ser humano
enquanto pessoa:
→ é um ser histórico e cultural (“situado” no tempo e no
espaço; no aqui e agora; transforma e adapta a natureza a
si);
→ um ser consciente e voluntário, capaz de determinar
suas ações, ou seja, de agir livremente (dentro das condi-
ções possíveis – só Deus é absolutamente livre; o ser huma-
no tem uma liberdade condicionada). Uma ação será tão
mais livre quanto mais consciente e querida for a determi-
nação do agir.
→ É indivíduo de uma comunidade (ser “social”; “políti-
co”).
→ Como ser relacional, está marcado pelas relações com
os outros (iguais = relação de igualdade), com o transcen-
dente (divindade = relação de dependência) e com o mun-
do (“casa comum” – relação de cuidado).
A cada ato livre corresponde um resultado, conseqüên-
cia, portanto, cabe do sujeito uma resposta a eles – respon-
sabilidade.
Como resultado do desenvolvimento na história e cultu-
ra, iluminada também pelo Espírito divino, a humanidade
acumula um “saber viver” que é ético (ou moral, no sentido
de distinguir o bem do mal) e práxico (no sentido do agir

266
técnico). Os costumes se configuram como virtudes ou ví-
cios. Que ampliam ou limitam a liberdade no agir. E são in-
centivados ou reprimidos. Formamos assim uma escala de
valores que orientam a existência.
Discernimento das situações chamadas “irregulares”
• Pressuposto: a lógica da Igreja é o caminho da mise-
ricórdia e da integração; levando em consideração a com-
plexidade em que as pessoas vivem.
AL 296:
“«Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: margi-
nalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concí-
lio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho
da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja
é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a mi-
sericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com
coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre
imerecida, incondicional e gratuita». Por isso, «temos de
evitar juízos que não tenham em conta a complexida-
de das diversas situações e é necessário estar atentos ao
modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da
sua condição»” (cit. a si mesmo e ao RF 2015, 51)
Anteriormente nos deparamos com o alerta para a difi-
culdade de julgar, sobretudo quando o fazemos visando
pessoas e não situações. Por isso, se permanecia no âmbito
da objetividade do direito. O papa Francisco chama a aten-
ção para a subjetividade da pessoa. Há aqui uma mudança
de paradigma: da objetividade (predomínio da exteriorida-
de, “controlável”) para o da subjetividade (predomínio da
interioridade).

267
→ Integrar a todos; ajudar a cada um a encontrar a
sua própria maneira de participar da comunidade eclesial;
sempre haverá um espaço: de ministérios específicos até as
atividades sociais da Igreja (AL 297).
Especificamente sobre os divorciados recasados
• Pressupostos:

“Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas


«irregulares», os Padres sinodais chegaram a um consenso
geral que eu sustento: «Na abordagem pastoral das pessoas
que contraíram matrimônio civil, que são divorciadas nova-
mente casadas, ou que simplesmente convivem, compete
à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas
suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desíg-
nio que Deus tem para elas», sempre possível com a força
do Espírito Santo” (AL 297; cit. RS 2014, 25)
“Os divorciados que vivem em uma nova união, por exem-
plo, podem encontrar-se em situações muito diferentes,
que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirma-
ções demasiado rígidas, sem deixar espaço para um ade-
quado discernimento pessoal e pastoral.” (AL 298)
“«Perante situações difíceis e famílias feridas, é preciso lem-
brar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que,
por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as
situações” (Familiaris consortio, 84). O grau de responsa-
bilidade não é igual em todos os casos, e podem existir
fatores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao
mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há
que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade
das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo

268
como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condi-
ção»” (AL 79, reproduzindo integralmente RF 2015, 51)
“Para se entender adequadamente por que é possível e ne-
cessário um discernimento especial em algumas situa-
ções chamadas «irregulares», há uma questão que sempre
se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende
diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma
sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circuns-
tâncias atenuantes.” (AL 301)
“Todavia, da nossa consciência do peso das circuns-
tâncias atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo
biológicas – conclui-se que, «sem diminuir o valor do ideal
evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paci-
ência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas,
que se vão construindo dia após dia», dando lugar à «mise-
ricórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem pos-
sível»” (AL 308; cit. FC 44)
“Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha di-
ficuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o
convite a percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é
a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14).” (AL 306)

FRENTE AOS DIVORCIADOS EM NOVA UNIÃO, EM SÍNTESE:


→ Compete à Igreja revelar como Deus age em suas vi-
das (“pedagogia divina da graça”);
→ Ajudá-los no processo de discernimento pessoal e
pastoral (compreender e praticar a vontade de Deus para
sua vida e seu lugar na Igreja);
→ No discernimento levar em consideração os condi-

269
cionamentos e circunstâncias atenuantes;
→ Não renunciar ao Bem Possível (“dar o passo de acor-
do com as pernas”);
→ Percorrer a via caritatis (possível e recomendável a
todos);
→ Integrar ao máximo possível. É preciso desenvolver o
espírito acolhedor em nossas comunidades.
O que é e o que pretende AL com o discernimento
• Podemos iniciar com o significado mais elementar apre-
sentado pelos nossos dicionários. O Aurélio:
Discernimento: faculdade de discernir; de julgar as coisas
clara e sensatamente; critério; tino; juízo; apreciação, análise;
penetração, sagacidade, perspicácia;
Discernir (lat. discernere): conhecer distintamente, perce-
ber claro por qualquer dos sentidos; apreciar; distinguir; dis-
criminar; estabelecer diferença; separar. Distinguir.
• A palavra latina discernere, de fato, originalmente signi-
ficava: dividir, separar, distinguir.
Classicamente, portanto, a palavra discernimento faz
referência à capacidade do ser humano de interpretar
e compreender a realidade em que vive em suas mais
diversas dimensões (ex. psicológica, sociológica e cul-
tural) em vista da determinação do seu agir. Costuma
ser indicado como “bom senso”, “juízo sensato”; ligado à
virtude da “prudência”.
Em um sentido mais específico, o discernimento pode se

270
referir à formação e governo da consciência moral. Neste
sentido, busca distinguir o bem do mal.
• No âmbito religioso falamos de discernimento espiri-
tual: é a capacidade de exercitar a própria liberdade para
tomar decisões, particularmente aquelas que se referem à
identificação dos meios para atingir o fim a que se é pro-
posto; mas com uma distinção importante: faz referência
explícita à “vontade de Deus”.
→ Definição clássica dada por João Clímaco, monge cris-
tão do século VI: “Discernimento é e vem definido a compre-
ensão segura da vontade divina em cada circunstância, lugar
e ação” (apud SEMERARO 2017, p.78)
→ Discernimento: “consiste na eleição [escolha] que o ho-
mem faz à luz de Cristo e da colocação em prática, no concre-
to da vida, das consequências dessa escolha mediante a pro-
cura de decisões e ações concretas requeridas pela vontade de
seguir a Cristo” (CANAVARRO 1991, p.55).
Esquematicamente, o discernimento comporta:
→ Fim claro: fazer a vontade de Deus;
→ identificação do meio mais apto e possível para isto
no concreto da existência (pressupõe a liberdade de esco-
lher e determinar a ação).
Neste sentido, pode ser útil a definição de Giacomo Costa:
“o discernimento é a capacidade de exercitar a própria li-
berdade para tomar decisões, em particular aquelas que se
referem à identificação dos meios para atingir o fim que se
é proposto”. Responde à pergunta: “o que fazer para viver a

271
Boa Notícia do Evangelho?” (COSTA 2016, p.361).
• Neste sentido, o discernimento é uma tarefa tradi-
cionalmente cristã e pertence ao substrato mais antigo e
profundo da nossa espiritualidade.
→ Nesta nossa abordagem, podemos nos limitar bibli-
camente a Paulo: a palavra discernere será utilizada para
traduzir sobretudo διακρισεις πνευματων [diacrisis] = “dis-
cernimento dos espíritos” (1Cor 12,10); δοκιμάζειν = “dis-
cernir”, “distinguir” (Rm 12,2:
“ Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transfor-
mem-se pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é
a vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a ele,
o que é perfeito.” (Bíblia Pastoral).
→ Textos de Paulo: Ef 1,15-23; 4,11-16; 5,10ss; 1Cor 12,10;
Fl 1,3-11; Col 1,9-14; Rm 12,1-8.
Fl 1,3-11:
Agradeço ao meu Deus todas as vezes que me lem-
3

bro de vocês.
4
E sempre, em minhas orações, rezo por todos com alegria,
5
porque vocês cooperaram no anúncio do Evangelho, desde
o primeiro dia até agora.
6
Tenho certeza de que Deus, que começou em vo-
cês esse bom trabalho, vai continuá-lo até que seja concluí-
do no dia de Jesus Cristo.
7
É justo que eu pense assim de todos vocês, porque vo-
cês estão no meu coração. De fato, participam comigo da gra-
ça que recebi, seja nas prisões, seja na defesa e confirma-
ção do Evangelho.

272
8
Deus é testemunha de que eu quero bem a todos vo-
cês com a ternura de Jesus Cristo.
9
Este é o meu pedido: que o amor de vocês cres-
ça cada vez mais em perspicácia e sensibilidade em to-
das as coisas.
10
Desse modo, poderão distinguir o que é melhor, e as-
sim chegar íntegros e inocentes ao dia de Cristo.
11
Estarão repletos então dos frutos de justiça obti-
dos por meio de Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus.
Cl 1,9-14:
9
Por essa razão, desde que ficamos sabendo disso, reza-
mos continuamente por vocês. Pedimos que Deus lhes con-
ceda pleno conhecimento de sua vontade,
com toda a sabedoria e discernimento que vêm do Espí-
rito. 10 Desse modo, vocês viverão uma vida digna do Se-
nhor, fazendo tudo o que ele aprova: darão fruto em toda ati-
vidade boa e crescerão no conhecimento de Deus,
11
fortalecidos em todos os sentidos pelo poder de sua gló-
ria. Assim vocês terão perseverança e paciência a toda pro-
va. 12 Com alegria, dêem graças ao Pai, que permitiu a vo-
cês participarem da herança dos cristãos, na luz.
O discernimento sempre esteve presente na história da
espiritualidade cristã, mas um dos que mais desenvolveu
e o aplicou foi santo Inácio de Loyola, fundador da Compa-
nhia de Jesus, os jesuítas, principalmente em seus exercí-
cios espirituais. O papa Francisco é o primeiro papa jesuíta
da história. O que pode ajudar a compreender seu interes-
se e apego ao discernimento. E porque essa palavra passou
a fazer parte mais intensamente do nosso cotidiano eclesi-
ástico.

273
• Costuma-se distinguir entre momentos ou dimensões
de discernimento, estreitamente conexos, mas não perfei-
tamente idênticos (as distinções e classificações podem va-
riar um pouco conforme os autores):
→ Discernimento espiritual:
“não é de ordem puramente psicológico, sociológico, profis-
sional, não é para resolver um problema, por exemplo, de
marketing, de uma associação, de uma empresa, de uma
sociedade para ações (...) mas encontra no Espírito de Deus
o seu princípio animador” (P. Schiavone; apud: SEMERARO
2017, p.80.
→ Às vezes se chama o discernimento espiritual de dis-
cernimento vocacional, porque a vontade de Deus é per-
cebida como uma “chamada” a ser realizada pelo batizado
na Igreja e pela Igreja. Costumamos limitar essa expressão
para a vocação sacerdotal e religiosa, mas é um erro; somos
chamados a muitas atividades na Igreja, são muitos os “mi-
nistérios”. Em AL encontramos esta terminologia no n.72: “a
decisão de casar e formar uma família deve ser fruto de um
discernimento vocacional”.
→ Com freqüência, AL menciona um discernimento
pastoral, se referindo à tarefa e missão de um sujeito “pas-
toral”, principalmente bispo ou presbítero, que precisa ilu-
minar as peculiaridades e diferenças das várias situações e
circunstâncias objetivas e subjetivas em que vivem os fiéis
com a luz do Evangelho e o ensinamento da Igreja;
E um discernimento pessoal, exercitado em primeira pes-
soa, quando colocada diante da necessidade de tomar uma

274
decisão em vista da ação em uma situação determinada.
Um bom exemplo encontramos em AL 300:
“Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações
concretas, como as que mencionamos antes, é compreen-
sível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exorta-
ção uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável
a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento
a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos
casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que «o
grau de responsabilidade não é igual em todos os casos», as
consequências ou efeitos de uma norma não devem neces-
sariamente ser sempre os mesmos. Os sacerdotes têm o de-
ver de <acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho
do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orienta-
ções do bispo>” (cit. RF 2015, 85)
→ Encontramos implicitamente também em AL o dis-
cernimento moral, no qual se busca conhecer a vontade
de Deus em um nível geral, válido para todos, o que é bem
e o que é mal. Esse tipo de discernimento ajuda a entender
a direção que se deve dar à vida (é como um “farol” que
indica a rota).
Em outras palavras, existe a norma moral universal, que
é reconhecida e valorizada; mas deve ser aplicada na situ-
ação concreta da pessoa, para que ela a realize ao máximo
possível, ainda que não plenamente.
Em síntese: o discernimento moral ajuda a entender onde
se quer chegar (“farol”); o discernimento pastoral e pessoal a
entender onde se está e como proceder para avançar (“lan-
terna” que ilumina o caminho); o discernimento aceita que

275
“estamos a caminho”, em meio a desordens e imperfeições,
mas caminhando para a plenitude do desígnio de Deus so-
bre o matrimônio e a família.
→ Por discernimento comunitário ou discernimento fei-
to em comum se entende, em termos gerais, “aquela busca
da vontade de Deus à qual se sente chamada uma comuni-
dade, ou grupo de pessoas unidas por um vínculo espiritu-
al especial ou de responsabilidade apostólica, ou também
por um vínculo sacramental (como os esposos cristãos, os
membros de um presbitério diocesano) com a finalidade
de fazer escolhas fundamentais acerca do modo de viver
a fé e de empenhar-se na Igreja e no mundo” (SEMERARO
2017, p.139).
Nos últimos dias tem-se apresentado modelos de dis-
cernimento comunitário para responder à preparação do
Sínodo dos Bispos de 2023.
Para nosso tema é interessante aplicar esse tipo de dis-
cernimento à comunidade chamada a acompanhar e inte-
grar aqueles casais em situação incompleta ou irregular.
Uma questão costumeiramente mencionada é “evitar o
escândalo”; ou “dar mal exemplo”. Podemos lembrar aqui
FC 84, entre as razões para negar o sacramento da eucaris-
tia a divorciados que voltaram a se casar, afirma: “Há, além
disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem
estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erros
e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubili-
dade do matrimônio”. E os casais que decidiram “viver como

276
irmãos” para ter acesso a eucaristia? A FC não menciona
nada acerca de como operar esse acesso. Repetindo o que
já foi exposto anteriormente: a CEI, em um documento da
época, para viabilizar FC, pedia que para evitar escândalo
esses casais comungassem em Igrejas em que não fossem
conhecidos. É evidente que esta solução não se adéqua
a AL e à sua eclesiologia, nem à nossa, de paróquia como
uma família de famílias ou comunidade de comunidades
(basta pensar na eclesiologia de Aparecida).
Quem acolhe, acompanha (autorizadamente guia no
discernimento) e integra é a comunidade eclesial. Por isso,
também ela é chamada a um processo de discernimento
de como operar essa integração.
→ Discernimento conjugal: para além do discernimento
espiritual pessoal, existem questões que só podem ser fru-
to de um discernimento conjugal para os casais.
Para aqueles que simplesmente convivem ou são ca-
sados apenas no civil, porquê, quando e como receber o
sacramento do matrimônio; AL cita explicitamente ques-
tões relativas à educação dos filhos; o casal precisa tam-
bém discernir quantos e quando ter os filhos e que modo
de controle da natalidade (se recorrer como recomenda o
magistério aos métodos naturais, será muito necessário o
compromisso de ambos); quando divorciados recasados,
somente como casal poderão discernir frente a proposta
de viverem como irmãos ou como participarão no proces-
so de integração eclesial.

277
• Especificando melhor o discernimento espiritual (pesso-
al, conjugal, pastoral, comunitário):
→ é um processo; não se pode reduzi-lo a um ato (uma
conversa com o padre ou uma confissão, por exemplo);
→ é um processo aberto; em um duplo sentido: não é
pré-determinado (mais que percorrer um caminho já tra-
çado, trata-se de “fazer estrada”) e não tem fim (enquanto
existir livre e conscientemente o ser humano está chamado
a discernir e realizar o melhor); por isso, não se deve espe-
rar orientações muito detalhadas sobre o discernimento.
Serão possíveis apenas algumas orientações sobre como
proceder. De outra forma, cairíamos no casuísmo intolerá-
vel que denuncia AL;
O papa Francisco desde a EG usa um princípio: “o tempo
é superior ao espaço” e com ele afirma que “o importante é
iniciar processos...” (itinerários);
“O discernimento, então, é um processo sempre longo e
também doloroso” (SEMERARO 2017, p.109).
→ é um processo aberto à ação do Espírito de Deus que
guia seus filhos (a finalidade do discernimento é compre-
ender a vontade de Deus e atuar de acordo com ela dentro
das limitações existenciais);
Por isso, a necessidade de abertura à ação do Espírito
de Deus; o discernimento espiritual se desenvolve em cli-
ma de oração. Pode ser necessário também um “primeiro
anúncio” – não apenas entendido como transmissão de
verdades basilares do cristianismo, mas como contato com

278
a pessoa de Jesus;
→ é um processo aberto à ação do Espírito de Deus vi-
venciado eclesialmente (não se trata de um individualismo
religioso, mas de vivência fiel na Igreja); o papa Francisco
insistirá que quem discerne deve ter em vista em primeiro
lugar o bem da Igreja;
→ é um processo aberto à ação do Espírito de Deus vi-
venciado eclesialmente com a ajuda de um guia esperto;
não é necessário, em nosso caso, que seja um sacerdote;
pode ser um leigo (ou casal) competente no assunto que
acompanha e ajuda no discernimento. Nos primeiros sécu-
los do cristianismo a maioria dos guias eram monges, que
por sua vez, eram leigos.
→ é um processo aberto à ação do Espírito de Deus vi-
venciado eclesialmente com a ajuda de um guia esperto,
mas quem toma as decisões é quem discerne, não o guia (ao
guia cabe ajudar a entender a situação; não a dizer se está
certo ou não, se pode ou não).
Aqui cabe uma explicação: desde o Concílio de Trento se
começou a distinguir entre foro (“fórum” - onde se decide
as questões que podem surgir entre pessoas, com base nas
normas jurídicas) interno e externo. O foro interno, por sua
vez, pode ser um foro interno sacramental ou foro interno
não sacramental, embora os dois sempre exijam o segredo.
A Igreja reconhece o direito a que cada fiel escolha seu guia
livremente.
Tendo em vista a integração eclesial e, “em alguns casos”,

279
sacramental, por força da organização eclesial (e no nosso
caso), o pároco deve ter contato com quem discerne, se-
guindo a orientação do bispo diocesano.
→ não significa desprezo pela norma geral e nem pelo
ideal perseguido, pelo contrário; mas reconhece a neces-
sidade de tomar decisões para realizar esse ideal o melhor
possível no aqui e agora da existência.
AL insiste em não renunciar ao “bem possível”;
Exige passar de uma “pastoral da perfeição” a uma “pas-
toral da conversão” (Erio Castellucci); a meta continua a
mesma, mas é preciso acompanhar em direção à meta;
→ Pode ser preciso melhorar a “formação da consciên-
cia”; já que é a partir dela que a pessoa toma suas decisões;
→ O sujeito do discernimento é a pessoa que o faz; o
guia serve de apoio como companheiro desse processo;
portanto, não cabe ao guia tomar decisões ou as legitimar
(no caso, também quando o guia é o sacerdote, não cabe
a ele as decisões, a última palavra do pode/não pode, do
certo/errado; embora ele tenha um papel fundamental na
formação da consciência e na disposição para ação; em
todo caso, AL deixa claro que o alcance do seu papel de
guia deve seguir as orientações do Bispo e da Igreja);
→ O discernimento trabalha em muitos casos com “situ-
ações limites”; estamos diante de questões complexas, para
as quais não existem “receitas simples”; estamos distantes
do “conforto” e “segurança” da simples aplicação de nor-
mas universais. Por isso, também mais expostos ao erro e

280
incompreensões. Exige aquela disposição reiterada em EG
de ousadia e coragem; de não ficar imobilizado pelo medo
de errar; é como estar atuando no “hospital de campanha”.
O papa nos expõe isso com toda clareza em AL 308:
“Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias
atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo biológicas
– conclui-se que, «sem diminuir o valor do ideal evangéli-
co, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência,
as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão
construindo dia após dia», dando lugar à «misericórdia do
Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível» (EG 44).
Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais
rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio
sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta
ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade:
uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa clara-
mente a sua doutrina objetiva, «não renuncia ao bem
possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama
da estrada» (EG 45).
Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evan-
gelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a
assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e
evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impa-
cientes. O próprio Evangelho exige que não julguemos nem
condenemos (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Jesus «espera que renun-
ciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comuni-
tários que permitem manter-nos à distância do nó do
drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramen-
te entrar em contato com a vida concreta dos outros e
conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a
vida complica-se sempre maravilhosamente»” (EG 270).

281
→ O discernimento é antes de tudo pessoal (porque
cada um dos cônjuges tem uma história; pode ser que um
deles nem tenha sido casado, por exemplo); embora seja
também um processo conjugal (tudo aquilo que se refere
ao matrimônio atual, como veremos);
→ Deve ser proposta, ainda com mais vigor, a “via da ca-
ridade”. É o caminho do cristão. E é uma via que todos de-
vem e podem percorrer.
AL 306. “Em toda e qualquer circunstância, perante quem
tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve
ressoar o convite a percorrer a via caritatis. A caridade
fraterna é a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5,
14). Não esqueçamos a promessa feita na Sagrada Escritura:
«Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade,
porque o amor cobre a multidão de pecados» (1 Pd 4, 8); «re-
dime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela
piedade para com os infelizes» (Dn 4, 24); «a água apaga o
fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (Eclo 3, 30 [29]). O
mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em pe-
rigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar
(...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos por-
que, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim,
quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de
misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte
que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para
extinguir o incêndio» (De catechizandis rudibus, I, 14, 22)”.
Em outras palavras, a oportunidade de praticar a carida-
de não deve ser vivida como incômodo, mas como cami-
nho de salvação.
Respondendo agora a pergunta que intitulava esta parte:

282
O que é o discernimento proposto pelo nosso título:
o discernimento é um processo em que a pessoa que o
conduz [aquela que discerne] busca compreender e agir
de acordo com a norma moral, que é universal e abstrata
[fazer o bem, evitar o mal; não matar]; mas dentro das suas
condições, que são sempre particulares e concretas [e por
isso, limitadas no aqui e agora]; buscando aproximar-se
cada vez mais do ideal, não renunciando ao bem possível
em cada momento. Para o cristão, isso significa estar aberto
à vontade de Deus expressa evangelicamente [a “vontade
de Deus” para o cristão é seguir Jesus; por isso, tem que
se pautar pelo Evangelho; não é algo solto no ar...]. Guiado
pelo Espírito Santo.
O discernimento é, portanto, o processo que aplica no
concreto da vida, aqui e agora, uma norma que é univer-
sal e abstrata, respeitando cada um de seus elementos em
vista do bem possível e se orientando para a perfeição de-
sejada (para o cristão, a santidade à qual todos somos cha-
mados), deixando-se guiar pelo Espírito Santo.
Por que o discernimento é necessário?
AL 301: “Para se entender adequadamente por que é possí-
vel e necessário um discernimento especial em algumas
situações chamadas «irregulares», há uma questão que
sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se
pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja pos-
sui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as cir-
cunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer
que todos os que estão em uma situação chamada «ir-
regular» vivem em estado de pecado mortal, privados

283
da graça santificante. Os limites não dependem simples-
mente de um eventual desconhecimento da norma. Uma
pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande
dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma»
(FC 33) ou pode encontrar-se em condições concretas que
não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras
decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram os
Padres sinodais, «pode haver fatores que limitam a capa-
cidade de decisão». (RF 2015, 51) E São Tomás de Aquino
reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é
incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, (ST, Sth) pelo
que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não
manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque
a prática exterior dessa virtude está dificultada: «Diz-se que
alguns Santos não têm certas virtudes, enquanto experi-
mentam dificuldade em pô-las em ato, embora tenham os
hábitos de todas as virtudes»” (ST, STh).
“302. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo
da Igreja Católica exprime-se de maneira categórica: «A
imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser di-
minuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência,
a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas
e outros fatores psíquicos ou sociais». (n.1735) E, em outro
parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que ate-
nuam a responsabilidade moral, nomeadamente «a ima-
turidade afetiva, a força de hábitos contraídos, o estado de
angústia e outros fatores psíquicos ou sociais». (n.2352) Por
esta razão, um juízo negativo sobre uma situação obje-
tiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a
culpabilidade da pessoa envolvida. (Pontifício Conselho
para os Textos Legislativos) No contexto destas convicções,
considero muito apropriado aquilo que muitos Padres sino-
dais quiseram sustentar: «Em determinadas circunstâncias,

284
as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de
maneira diferente. (...) O discernimento pastoral, embora
tendo em conta a consciência retamente formada das pes-
soas, deve ocupar-se destas situações. As próprias conse-
quências dos atos praticados não são necessariamente as
mesmas em todos os casos». (RF 2015, 85)”
“303. A partir do reconhecimento do peso dos condiciona-
mentos concretos, podemos acrescentar que a consciência
das pessoas deve ser mais bem incorporada na práxis
da Igreja em algumas situações que não realizam obje-
tivamente a nossa concepção do matrimônio. É claro que
devemos incentivar o amadurecimento de uma consci-
ência esclarecida, formada e acompanhada pelo dis-
cernimento responsável e sério do pastor, e propor uma
confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência
pode reconhecer não só que uma situação não corres-
ponde objetivamente à proposta geral do Evangelho,
mas reconhecer também, com sinceridade e honestida-
de, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se
pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança
moral que esta é a doação que o próprio Deus está pe-
dindo no meio da complexidade concreta dos limites,
embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo.
Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é
dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas
etapas de crescimento e novas decisões que permitam reali-
zar o ideal de forma mais completa.”
• Esquematicamente: o discernimento é possível e ne-
cessário por ao menos duas razões:
→ para superar a indeterminação da norma universal
com respeito ao caso particular;

285
→ por que a Igreja reconhece que existem condiciona-
mentos e circunstâncias atenuantes que influem sobre a
capacidade de decisão e diminuem ou até anulam a impu-
tabilidade e a responsabilidade.
Retomemos a afirmação de AL 302: um juízo negativo
sobre uma situação objetiva não implica necessariamente
um juízo sobre a imputabilidade ou sobre a culpabilidade
da pessoa envolvida;
Doutrina tradicional da Igreja: não basta apenas a “ma-
téria grave”; para haver “pecado mortal” – que rompe a
amizade com Deus – é preciso também: “pleno conheci-
mento” (consciência) e “deliberado consenso” (liberdade).
Vale a pena ler dois parágrafos que AL intitula de As
normas e o discernimento:
“304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o
agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou
norma geral, porque isto não basta para discernir e
assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência
concreta de um ser humano. Peço encarecidamente que
nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de
Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pas-
toral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o caráter
necessário, todavia à medida que se abordam os casos
particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbi-
to da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais
em todas as aplicações particulares, mas apenas nos prin-
cípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas pró-
prias ações, esta não é igualmente conhecida por todos. (...)
Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumen-
ta a indeterminação». (ST, STh) É verdade que as normas

286
gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem
transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar
absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo
tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão,
aquilo que faz parte de um discernimento prático de
uma situação particular não pode ser elevado à cate-
goria de norma. Isto não só geraria uma casuística insu-
portável, mas também colocaria em risco os valores que se
devem preservar com particular cuidado.
(nota 348: Referindo-se ao conhecimento geral da norma
e ao conhecimento particular do discernimento prático,
São Tomás chega a dizer que, «se existir apenas um dos
dois conhecimentos, é preferível que este seja o conheci-
mento da realidade particular porque está mais próximo
do agir» [Sententia libri Ethicorum,VI, 6 (ed. Leonina, t. 47,
354)].)
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito ape-
nas aplicando leis morais àqueles que vivem em situa-
ções «irregulares», como se fossem pedras que se atiram
contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados,
que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensina-
mentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e jul-
gar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos
difíceis e as famílias feridas». Na mesma linha se pronunciou
a Comissão Teológica Internacional: «A lei natural não pode
ser apresentada como um conjunto já constituído de regras
que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte
de inspiração objetiva para o seu processo, eminentemen-
te pessoal, de tomada de decisão» (CTI, À procura de uma
ética universal...). Por causa dos condicionalismos ou dos
fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de
uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente
não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa vi-

287
ver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer
na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a aju-
da da Igreja.
(nota 351: Em certos casos, poderia haver também
a ajuda dos sacramentos. Por isso, «aos sacerdotes,
lembro que o confessionário não deve ser uma câ-
mara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Se-
nhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de
igual modo assinalo que a Eucaristia «não é um prê-
mio para os perfeitos, mas um remédio generoso e
um alimento para os fracos » [Ibid., 47: o. c., 1039].)
É bom notar que o papa não afirma o que muitos que-
riam e que outros insistem em ver: algo do tipo “de hoje
em diante os divorciados recasados podem voltar a co-
mungar”; como uma espécie de norma geral, contraposta
àquela que proibia, uma espécie de concessão generaliza-
da; mas afirma “em certos casos”, ou seja, no processo e
caso a caso... a partir de um discernimento;
Precisamos estar atentos: a comunhão não será uma
espécie “prêmio” para quem fizer o processo de discer-
nimento; algo como um diploma de conclusão...
Também não se deve condicionar a comunhão a uma
“santidade” alcançada no processo, ou seja, que a pes-
soa “mereça” comungar. O sacramento é “ajuda” na cami-
nhada... portanto, precisamos repensar nossos critérios: a
pessoa não pode estar vivendo inconsequentemente as
contradições de sua situação, mas também não se deve
esperar um grau de pureza que nem é exigido daqueles

288
que vivem o sacramento canonicamente correto.
O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos
possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio
dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às ve-
zes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desen-
corajamos percursos de santificação que dão glória a Deus.
Lembremo-nos de que «um pequeno passo, no meio de gran-
des limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do
que a vida externamente correta de quem transcorre os seus
dias sem enfrentar sérias dificuldades». (EG 44). A pastoral
concreta dos ministros e das comunidades não pode dei-
xar de incorporar esta realidade.”
Concretizando:
→ Nestes dois parágrafos o papa leva até as últimas con-
seqüências a sua “virada para a pessoa” (a mudança de pa-
radigma proposta): da objetividade da norma aplicada
pela instituição à subjetividade da pessoa envolvida
em cada ação. Não é desprezo pela norma; mas a sua de-
vida aplicação –
“...é possível que uma pessoa, no meio de uma situação ob-
jetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpá-
vel ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de
Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça
e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”;
→ O “sujeito” do discernimento é a pessoa que discerne.
Ele é também o responsável pelo seu discernimento e pe-
las suas ações.

289
→ O discernimento envolve certo grau de indetermina-
ção, no sentido em que quem o inicia não sabe bem até
onde irá; não tem um acordo prévio (como, por exemplo,
período de tempo); portanto: não é possível traçar anteci-
padamente orientações pastorais detalhadas sobre um dis-
cernimento específico. [mais do que percorrer um caminho
pré-determinado, é “fazer estrada”].
“... precisamente por esta razão, aquilo que faz parte de
um discernimento prático de uma situação particular
não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só
geraria uma casuística insuportável, mas também colo-
caria em risco os valores que se devem preservar com parti-
cular cuidado”.
→ Não obstante, são possíveis algumas orientações para
o discernimento. E o papa nos dá indicações preciosas em
AL (principalmente envolvendo o sacerdote que acompa-
nha o discernimento). Essas indicações devem ser integra-
das no processo de discernimento, sobretudo nas Igrejas
Locais, para permitir certa homogeneidade (até para per-
mitir a continuidade do discernimento com outros sacer-
dotes como guias – pastoral de conjunto).Aristide Fuma-
galli sugere algo parecido com o “processo de habilitação
matrimonial” (FUMAGALLI 2016, p.554).
→ Isso se aplica à integração: ao longo do processo a
pessoa (e/ou casal) deve ir sendo integrado na comuni-
dade. Esta integração poderá em algum momento contar
com a “ajuda dos sacramentos” (ou seja, poderá ter acesso
ao sacramento da penitência e eucaristia); mas isto não ne-

290
cessariamente ocorrerá (como resultado do discernimento
poderá resultar justamente o contrário, a impossibilidade
de acesso). Por isso, não se pode propor o discernimen-
to como condição para participar dos sacramentos! A
finalidade do discernimento é fazer cada vez melhor a
vontade de Deus em determinada situação; crescer em
direção ao ideal.
• O discernimento:
→ Temos com clareza a meta que nos serve de farol (es-
tático). A vontade de Deus interpretada e apresentada pela
Igreja para o matrimônio. AL a apresenta em 292:
“O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua
Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e
uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor ex-
clusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à
transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes
confere a graça para se constituírem como igreja doméstica
e serem fermento de vida nova para a sociedade”.
É a síntese do núcleo da celebração matrimonial. Ou seja,
do diálogo do representante eclesiástico com os noivos e
dos noivos entre si:
- Estais aqui de livre e espontânea vontade?
- Prometeis amor e fidelidade por toda a vida?
- Estais dispostos a receber os filhos que Deus vos con-
fiar?
A troca do consentimento.
Ideal do matrimônio cristão (que espelha a relação Cristo

291
- Igreja):
- união entre um homem e uma mulher;
- amor exclusivo e livre fidelidade;
- até à morte;
- abrem-se à transmissão da vida;
- consagrados pelo sacramento (se constituírem como igre-
ja doméstica);
- fermento de vida nova para a sociedade.
→ O discernimento ajuda a caminhar (situação concre-
ta em que estão os casais) na direção da meta, passo após
passo, servindo de lanterna (dinâmico, ilumina o caminho);
→ Em alguns casos, os obstáculos poderão ser mais fa-
cilmente removidos: quando o casal pode ter acesso ao sa-
cramento do matrimônio (casal que simplesmente convive
ou somente casado no civil); o que não significa que não
necessite de discernimento e crescimento na vida conjugal
(pode inclusive viver “pior” conjugalmente; o objetivo não
deve ser que eles simplesmente celebrem o sacramento do
matrimônio, mas que se realizem matrimonialmente, sejam
felizes e alcancem a plenitude anteriormente lembrada);
→ Em outros casos a situação pode ser mais complexa.
Os divorciados recasados, por exemplo.
Lembremos que uma das primeiras providências ao ini-
ciar o discernimento é a verificação da validade canôni-
ca do matrimônio anterior; por isso o papa insistiu em

292
simplificar os processos e torná-los mais ágeis e acessíveis;
“pastoral judiciária”.
Premissa fundamental para o discernimento:
AL 300: “Uma vez que na própria lei não há gradualidade
(cf. Familiaris consortio, 34), este discernimento não pode-
rá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade
e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça,
devem garantir-se as necessárias condições de humil-
dade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na
busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar
a uma resposta mais perfeita à mesma». (RF 2015, 86)
Estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de
mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacer-
dote pode conceder rapidamente «exceções», ou de que há
pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca
de favores. Quando uma pessoa responsável e discreta,
que não pretende colocar os seus desejos acima do bem
comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe
reconhecer a seriedade da questão que tem nas mãos,
evita-se o risco de que um certo discernimento leve a
pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.”
Condições para o discernimento:
→ exigências evangélicas de verdade e caridade;
Para todos os envolvidos no discernimento (pessoa, ca-
sal e guia);
→ humildade;
→ privacidade;
→ amor à Igreja e à sua doutrina;

293
→ busca sincera da vontade de Deus e de chegar a uma
resposta mais perfeita à mesma;
Pessoa (e/ou casal):
→ responsável e discreta;
→ não pretende colocar os seus desejos acima do bem
comum da Igreja;
Sacerdote (“guia”):
→ pastor que sabe reconhecer a seriedade da questão
que tem nas mãos;
O papa dá exemplos de questões a serem trabalhadas no
discernimento:
Em relação ao matrimônio anterior:
“Neste processo, será útil fazer um exame de consciência,
através de momentos de reflexão e arrependimento. Os
divorciados novamente casados deveriam questionar-se
como se comportaram com os seus filhos, quando a
união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de re-
conciliação; como é a situação do cônjuge abandonado;
que consequências têm a nova relação sobre o resto da
família e a comunidade dos fiéis; que exemplo ela ofe-
rece aos jovens que se devem preparar para o matrimô-
nio. Uma reflexão sincera pode reforçar a confiança na mi-
sericórdia de Deus que não é negada a ninguém” (RF 2015,
85; cit por AL 300)
Em relação à nova união:
“Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo,
com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedica-

294
ção generosa, compromisso cristão, consciência da ir-
regularidade da sua situação e grande dificuldade para
voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em
novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações
em que «o homem e a mulher, por motivos sérios – como,
por exemplo, a educação dos filhos – não se podem sepa-
rar».
Nota 329: João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio
(22 de Novembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186.
Nestas situações, muitos, conhecendo e aceitando a
possibilidade de conviver « como irmão e irmã » que a
Igreja lhes oferece, assinalam que, se faltam algumas
expressões de intimidade, « não raro se põe em risco
a fidelidade e se compromete o bem da prole » (Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 51).
É importante notar como o papa utiliza a afirmação de
GS; ele relativiza a proposta de FC – embora para a épo-
ca em que foi proposta também tenha causado escândalo
para muitos.
Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços
para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abando-
no injusto, ou o caso daqueles que «contraíram uma segun-
da união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão
subjetivamente certos em consciência de que o precedente
matrimônio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido
válido» (FC 84). Coisa diferente, porém, é uma nova união
que vem de um divórcio recente, com todas as consequ-
ências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e
famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou re-
petidamente aos seus compromissos familiares. Deve fi-
car claro que este não é o ideal que o Evangelho propõe para

295
o matrimônio e a família. Os Padres sinodais afirmaram que
o discernimento dos pastores sempre se deve fazer «distin-
guindo adequadamente», (RS 2014, 26) com um olhar que
discirna bem as situações (RS 2014, 45). Sabemos que não
existem «receitas simples» (Bento XVI)” (AL 298).
• Podemos pedagogicamente apresentar essas orientações
de maneira mais esquemática:
O discernimento (que pode ser um processo longo e do-
loroso porque revê e repara a vida passada naquilo que é
possível) não é a abdicação da autoridade magisterial, mas
o envolvimento, no caminho da Igreja, da responsabilida-
de de todos:
* os fiéis interessados, sujeitos do discernimento;
* dos agentes de pastoral, que os acompanham;
* dos presbíteros, com quem conduzirão o discernimen-
to, particularmente no foro interno; e serão os responsáveis
imediatos pela integração na comunidade (AL 300);
* das comunidades eclesiais que se abrem à integração
dos irmãos/casais cada vez mais plenamente na Igreja.
* dos bispos, aos quais, em última instância, compete
a orientação das aplicações nas Igrejas locais; constituído
pastor e cabeça, é, por isso mesmo, juiz entre os fiéis a ele
confiados (AL 244; 300).
Acompanhar:
* Sem diminuir o anúncio do ideal evangélico sobre o
matrimônio e a família, os casados em nova união deverão
se sentir objeto de uma misericórdia “imerecida, incondi-

296
cional e gratuita” (AL 297). Para tanto, é importante:
→ Assegurar sua pertença ativa na vida eclesial:
“Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova
união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da
Igreja, que «não estão excomungadas» nem são tratadas
como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial”
(243). Não apenas não devem sentir-se excomungados, mas
podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja,
sentindo-a como uma mãe que os recebe sempre, que cuida
deles com carinho e que os anima no caminho da vida e do
Evangelho” (AL 299).
→ Anunciar o ideal pleno do matrimônio tal como a
doutrina da Igreja o ensina:
“A compreensão pelas situações excepcionais não implica
jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor me-
nos de quanto Jesus oferece ao ser humano” (AL 307). “Os
sacerdotes têm o dever de ‘acompanhar as pessoas interes-
sadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina
da Igreja e as orientações do bispo’” (AL 300).
→ Recordar que frente ao ideal do matrimônio, todos es-
tão numa situação de caminhantes, de crescimento e, por-
tanto, de certo modo, de “irregularidade”; caminho de cres-
cimento que se faz gradualmente:
“... nenhuma família é uma realidade perfeita e confecciona-
da duma vez para sempre, mas requer um progressivo ama-
durecimento da sua capacidade de amar” (AL 325).
→ Valorizar o caminho que fazem os recasados, ainda
que imperfeito e gradual:
“«um pequeno passo, no meio de grandes limitações huma-

297
nas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externa-
mente correta de quem transcorre os seus dias sem enfren-
tar sérias dificuldades». A pastoral concreta dos ministros e
das comunidades não pode deixar de incorporar esta reali-
dade” (AL 305).
Discernir:
O acompanhamento do sacerdote visa ajudar o fiel em
seu discernimento pessoal, que tem sempre um caráter
pastoral. Deve ajudá-lo a entender sua situação frente a
Deus e à comunidade eclesial, julgando os obstáculos que
impedem uma participação mais plena na vida eclesial e os
passos possíveis nesta direção. Deve referir-se ao matrimô-
nio precedente e ao atual, distinguindo adequadamente a
responsabilidade pessoal e o bem possível em sua situação.
* Em relação ao matrimônio precedente:
→ Verificar a sua validade canônica. Quando for o caso,
encaminhar o pedido de declaração de nulidade. Nesta
questão, AL chama a atenção para a responsabilidade do
bispo, ordinário local e, por isso, “juiz entre os fiéis a ele
confiados” (AL 244).
“Por conseguinte, será necessário colocar à disposição das
pessoas separadas ou dos casais em crise um serviço de in-
formação, aconselhamento e mediação, ligado à pastoral
familiar, que possa também acolher as pessoas tendo em
vista a investigação preliminar do processo matrimonial (cf.
Mitis Iudex, arts. 2-3)” (AL 244).
→ Verificar a irreversibilidade do matrimônio falido. O
contrário implicaria na dissolução do matrimônio atual e o

298
restabelecimento da primeira união (solução correntemen-
te indicada para as pessoas nesta situação que desejassem
a admissão aos sacramentos):
“A Igreja reconhece a existência de situações em que «o ho-
mem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a
educação dos filhos – não se podem separar»” (298; cit. FC
84).
→ Avaliar a responsabilidade pessoal do interessado em
relação ao cônjuge, aos filhos, quando existirem, às famílias
envolvidas e à própria comunidade eclesial:
“Os divorciados novamente casados deveriam questionar-
-se como se comportaram com os seus filhos, quando a
união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de re-
conciliação; como é a situação do cônjuge abandonado;
que consequências têm a nova relação sobre o resto da fa-
mília e a comunidade dos fiéis; que exemplo ela oferece aos
jovens que se devem preparar para o matrimônio” (AL 300).
→ Deverá ser assumida toda responsabilidade visando o
bem dos filhos:
“Acima de todas as considerações que se queiram fazer, eles
são a primeira preocupação, que não deve ser ofuscada por
nenhum outro interesse ou objetivo. Peço aos pais separa-
dos: «Nunca, nunca e nunca tomeis o filho como refém! Se-
parastes-vos devido a muitas dificuldades e motivos, a vida
deu-vos esta provação, mas os filhos não devem carregar
o fardo desta separação; que eles não sejam usados como
reféns contra o outro cônjuge, mas cresçam ouvindo a mãe
falar bem do pai, embora já não estejam juntos, e o pai falar
bem da mãe». É irresponsável arruinar a imagem do pai ou
da mãe com o objetivo de monopolizar o afeto do filho, para

299
se vingar ou defender, porque isso afetará a vida interior da-
quela criança e provocará feridas difíceis de curar” (AL 245).
* Em relação ao matrimônio atual:
→ Avaliar a responsabilidade para com o novo cônjuge,
com os eventuais filhos dessa nova relação, com as famílias
envolvidas e com a comunidade cristã:
“Os divorciados recasados deveriam interrogar-se (...) quais
são as consequências da nova relação sobre o restante da
família e sobre a comunidade dos fiéis; e que exemplo ela
oferece aos jovens que se devem preparar para o matrimô-
nio” (AL 300).
→ Considerar qual é a consistência da nova relação. O
papa tem retomado a preocupação dos últimos Sínodos
com a “cultura do provisório”:
“Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas pas-
sam de uma relação afetiva para outra. Crêem que o amor,
como acontece nas redes sociais, possa ser conectado ou
desconectado ao gosto do consumidor e inclusive bloque-
ado rapidamente” (AL 39). “Coisa diferente, porém, é uma
nova união que vem de um divórcio recente, com todas as
conseqüências de sofrimento e confusão que afetam os fi-
lhos e famílias inteiras” (AL 298).
Por outro lado, existem também os casais em segunda
união estáveis e felizes:
“Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo,
com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação
generosa, compromisso cristão, consciência da irregulari-
dade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás
sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas”

300
(AL 298).
→ Verificar o empenho de vida cristã.
* Quanto a responsabilidade pessoal:
→ Considerar as possíveis circunstâncias atenuantes e
os fatores condicionantes:
“Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter
grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à
norma» ou pode encontrar-se em condições concretas que
não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras
decisões sem uma nova culpa” (AL 301).
→ Avaliar o grau subjetivo de pecado:
“Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes,
é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva
de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não
o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa
amar e possa também crescer na vida de graça e de carida-
de, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL 305).
“... o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar
o primeiro matrimônio e sofreram um abandono injusto,
ou o caso daqueles que «contraíram uma segunda união
em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetiva-
mente certos em consciência de que o precedente matrimô-
nio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido».
(...) ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos
seus compromissos familiares” (AL 298; cit. FC 84).
→ Questionar-se sobre qual a ajuda que a Igreja pode
dar no caso específico para o caminho de conversão e vida
cristã.

301
Integrar.
O caminho do discernimento, que leva a uma conscien-
tização da própria situação existencial, a uma correção
gradual de rota com o necessário arrependimento e sane-
amento da situação, deverá integrar os fiéis recasados o
mais próximo do ideal possível na vida da Igreja. Para tanto,
será oportuno:
→ Evitar toda situação que cause escândalo à fé dos ir-
mãos na comunidade eclesial. Esta é uma recomendação
recorrente nos documentos do magistério. É argumento,
por exemplo, da FC para proibir o acesso aos sacramentos
(FC 84).
“Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que
quiseram afirmar que «os batizados que se divorciaram e
voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na
comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evi-
tando toda a ocasião de escândalo»” (AL 299; cit. RF2015
84).
→ O discernimento tem um caráter pastoral, além de
pessoal. A própria comunidade deve ser de alguma forma
preparada para ele, ou seja, a comunidade deve assumir a
lógica da misericórdia.
“... creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja aten-
ta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade:
uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a
sua doutrina objetiva, «não renuncia ao bem possível, ain-
da que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada». Os
pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho
e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir

302
a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perse-
guições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio
Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (cf.
Mt 7, 1; Lc 6, 37)” (AL 308; cit. EG 44).
→ Ajudar os fiéis divorciados recasados a encontrar seu
lugar adequado para uma participação ativa na comunida-
de eclesial.
“Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a en-
contrar a sua própria maneira de participar na comunidade
eclesial (...) Obviamente, se alguém ostenta um pecado ob-
jetivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor
algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender
dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o se-
para da comunidade (cf.Mt 18, 17). Precisa de voltar a ouvir
o anúncio do Evangelho e o convite à conversão. Mas, mes-
mo para esta pessoa, pode haver alguma maneira de parti-
cipar na vida da comunidade, quer em tarefas sociais, quer
em reuniões de oração, quer na forma que lhe possa sugerir
a sua própria iniciativa discernida juntamente com o pas-
tor” (AL 297).
→ Em alguns casos, esta integração poderá receber a
ajuda dos sacramentos (AL notas: 336 e 351).
Como e quando se poderiam identificar estes casos?
Mais à frente nos depararemos com o exemplo dos bispos
da região pastoral de Buenos Aires. Nesse momento, pode-
ríamos sugerir que especificar melhor essa resposta deve-
ria ser objeto de um Sínodo Provincial, para que não fosse
empenho nem de padres, nem de bispos isoladamente.
• Duas leituras que inviabilizam sua aplicação:

303
Como era de se esperar, antes mesmo da publicação de
AL a discussão pró e contra foi forte; depois de publicada
então, as reações assumiram uma dimensão inédita dentro
e fora dos âmbitos eclesiásticos.
→ A de quem afirma que muda tudo, rompe com a Tra-
dição (e por isso, a rejeitam em bloco; afirmam que o papa
é herético; chegam a pedir sua “interdição” – é o caso dos
4 cardeais que escreveram um Dubbium sobre a questão
– Walter Brandmüller, Raymond Burke, Carlo Caffarra e Joa-
chim Meisner - “Fare chiarezza”, Roma 19/09/2016; disponí-
vel em: MAGISTER);
→ A de quem afirma que não muda nada (em geral, con-
tinuam simplesmente afirmando a FC; ou ao menos inter-
pretando AL à luz da FC);
• A existência dessas duas posturas, por si só, demons-
tram que no capítulo VIII existe sim, tanto novidade quanto
continuidade [o que permite, no limite, cada uma das lei-
turas]
→ Ao lermos AL devemos nos dar conta que a preocu-
pação da Igreja é mais ampla do que a possibilidade ou não
da participação nos sacramentos. O que o papa pretende é
levar a Alegria do Amor às Famílias. Embora esta contemple
também aqueles que vivem de modo incompleto ou irre-
gular a graça do sacramento do matrimônio.
• Mas se tem novidade em AL e aqui nos centramos no
capítulo VIII, é justo nos perguntarmos qual é esta novidade.
→ Confrontando com FC: a perspectiva é a das pessoas

304
envolvidas, não apenas em suas análises, mas também em
suas conclusões;
→ AL deixa espaço para a consciência e liberdade dos
envolvidos e dos bispos e sacerdotes envolvidos no discer-
nimento;
→ A doutrina não muda; muda a perspectiva pastoral:
de uma “pastoral da perfeição” para uma “pastoral da con-
versão”;
• Especificando melhor em ordem à pastoral
Os Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires enviaram
uma carta aos seus sacerdotes, em 05 de setembro de 2016,
intitulada - Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII
de Amoris Laetita.
Esta carta foi enviada também ao papa Francisco que
respondeu a avalizando com as seguintes palavras:
“O escrito é muito bom e explicita cabalmente o sentido do
capítulo VIII de Amoris Laetitia. Não há outras interpreta-
ções. E estou seguro de que fará muito bem. Que o Senhor
lhes retribua este esforço de caridade pastoral”.
E o papa ainda dá uma recomendação:
“Simplesmente acolher, acompanhar, discernir, integrar.
Destas quatro atitudes pastorais, a menos cultivada e prati-
cada é o discernimento; e considero urgente a formação no
discernimento, pessoal e comunitário, nos nossos Seminá-
rios e Presbitérios”.
Por fim, recorda que AL “foi fruto do trabalho e da oração
de toda a Igreja, com a mediação de dois Sínodos dos Bispos

305
e do Papa”.
(http://w2.vatican.va/content/francesco/es/let-
ters/2016/documents/papa-francesco_20160905_regio-
ne-pastorale-buenos-aires.html acesso 010918).
Eis a Carta (disponível na Revista MEDELLÍN 2016, p.483-
486):
“Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII da
Amoris Laetitia
Estimados sacerdotes,
Recebemos com alegria a exortação Amoris Laetitia, que
nos chama antes de tudo a fazer crescer o amor dos casais
e a motivar os jovens para que optem pelo matrimônio e
a família. Esses são os grandes temas que nunca deveriam
ser descuidados, nem ficar ofuscados por outras ques-
tões. Francisco abriu várias portas na pastoral familiar e
somos chamados a aproveitar este tempo de misericórdia,
para assumir como Igreja peregrina a riqueza que a Exor-
tação Apostólica nos oferece em seus diferentes capítulos.
No momento, vamos nos deter apenas no capítulo VIII,
já que faz referência a “orientações do Bispo” (300) para
discernir sobre o possível acesso de alguns “divorciados
em nova união” aos sacramentos. Acreditamos ser con-
veniente, como Bispos de uma mesma Região pastoral,
acordar alguns critérios mínimos. Nós os oferecemos sem
prejuízo da autoridade que cada Bispos tem em sua pró-
pria Diocese para precisá-los, completá-los ou limitá-los.
1) Em primeiro lugar, recordamos que não convém falar
de “permissões” para aceder aos sacramentos, mas de um
processo de discernimento acompanhado por um pastor.
É um discernimento “pessoal e pastoral” (300).

306
2) Neste caminho, o pastor deveria acentuar o anúncio
fundamental, o kerigma que estimule ou renove o encon-
tro pessoal com Jesus Cristo vivo (cf. 58).
3) O acompanhamento pastoral é um exercício da via ca-
ritatis. É um convite a seguir “o caminho de Jesus, o da mi-
sericórdia e da integração” (296). Este itinerário reivindica
a caridade pastoral do sacerdote que acolhe o penitente,
escuta-o atentamente e mostra o rosto materno da Igre-
ja, ao mesmo tempo em que aceita sua reta intenção e
seu bom propósito de colocar a vida inteira à luz do Evan-
gelho e de praticar a caridade (cf. 306).
4) Este caminho não acaba necessariamente nos sacra-
mentos, mas pode se orientar para outras formas de se
integrar mais à vida da Igreja: uma maior presença na co-
munidade, a participação em grupos de oração e refle-
xão, ou compromisso em diversos serviços eclesiais, etc.
(cf. 299).
5) Quando as circunstâncias concretas de um casal a tor-
ne factível, especialmente quando ambos sejam cristãos
com uma caminhada de fé, é possível propor o empenho
de viver na continência. Amoris Laetitia não ignora as
dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a
possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação
quando falha-se nesse propósito (cf. nota 364, segundo o
ensinamento de São João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de
22/03/1996).
6) Em outras circunstâncias mais complexas, e quando
não se pode obter uma declaração de nulidade, a opção
mencionada pode, de fato, não ser factível. Não obstante,
também é possível um caminho de discernimento. Caso
se chegue a reconhecer que em um caso concreto há li-
mitações que atenuam a responsabilidade e a culpabili-

307
dade (cf. 301-302), especialmente quando uma pessoa
considere que cairia em uma falta ulterior, prejudicando
os filhos da nova união, Amoris Laetitia abre a possibilida-
de do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eu-
caristia (cf. notas 336 e 351). Por sua vez, estes dispõem a
pessoa a seguir amadurecendo e crescendo com a força
da graça.
7) Contudo, é preciso evitar entender esta possibilidade
como um acesso irrestrito aos sacramentos, ou como se
qualquer situação o justificasse. O que se propõe é um
discernimento que distinga adequadamente cada caso.
Por exemplo, especial cuidado requer “uma nova união
que vem de um recente divórcio” ou “a situação de al-
guém que reiteradamente fracassou em seus compromis-
sos familiares” (298). Também quando há uma espécie de
apologia ou de ostentação da própria situação “como se
fosse parte do ideal cristão” (297). Nestes casos mais difí-
ceis, nós, pastores, devemos acompanhar com paciência,
procurando algum caminho de integração (cf. 297, 299).
8) Sempre é importante orientar as pessoas a se colocar
com sua consciência diante de Deus, e para isso é útil
o “exame de consciência” proposto pela Amoris Laeti-
tia (300), especialmente no que se refere a “como se com-
portaram com seus filhos” ou com o cônjuge abandona-
do. Quando houve injustiças não resolvidas, o acesso aos
sacramentos é particularmente escandaloso.
9) Pode ser conveniente que um eventual acesso aos sa-
cramentos seja realizado de maneira reservada, sobre-
tudo quando se prevejam situações conflitivas. Mas, ao
mesmo tempo, não se deve deixar de acompanhar a co-
munidade para que cresça em um espírito de compreen-
são e de acolhida, sem que isso implique criar confusões
ao ensino da Igreja sobre o matrimônio indissolúvel. A

308
comunidade é instrumento da misericórdia que é “imere-
cida, incondicional e gratuita” (297).
10) O discernimento não se encerra, porque “é dinâmi-
co e deve permanecer sempre aberto a novas etapas
de crescimento e a novas decisões que permitam reali-
zar o ideal de maneira mais plena” (303), segundo a “lei
da gradualidade” (295) e confiando na ajuda da graça.
Somos, antes de tudo, pastores. Por isso, queremos aco-
lher estas palavras do Papa: “Convido os pastores a escu-
tar com afeto e serenidade, com o desejo sincero de en-
trar no coração do drama das pessoas e compreender seu
ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer
seu próprio lugar na Igreja” (312).
Com afeto em Cristo,
Bispos da Região”
Vejamos então, de forma esquemática, as orienta-
ções dos Bispos:
1. Não convém falar em “permissões” para aceder aos
sacramentos; trata-se de um acompanhamento pessoal e
pastoral;
2. Enfatizando o Querigma;
3. É um exercício da via caritatis, também do sacerdote
que ajuda no discernimento;
4. O objetivo é a integração no modo mais perfeito possí-
vel na comunidade eclesial;
5. Quando as condições permitirem, o casal poderá re-
correr à continência e ao sacramento da reconciliação sem-
pre que necessário;

309
6. Não sendo possível a nulidade do primeiro matrimô-
nio, nem a continência, reconhecendo a existência de limi-
tações atenuantes, a integração poderá chegar aos sacra-
mentos;
7. Mas esta possibilidade não deve ser entendida como
acesso irrestrito nem mesmo que qualquer situação o jus-
tifique;
8. No processo de discernimento e integração a pessoa
deverá resolver as pendências que tiver em relação ao ma-
trimônio anterior, assumindo suas responsabilidades e ate-
nuando os efeitos;
9. Quando houver razões pastorais, o acesso aos sacra-
mentos pode ser feito de maneira reservada; mas é preciso
trabalhar também as comunidades para a integração;
10. O discernimento não termina, permanece sempre
aberto a novas etapas de crescimento.
Oração à Sagrada Família (AL 325)
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,

310
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do caráter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projeto de Deus.
Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Amém.
“O amor é artesanal” (AL 221)

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chonborn-esplora-il-significato-del-termine-il-papa-va-oltre-le-cate-
gorie-di-coppie-regolari-e-irregolari-guardando-alle-personeil-pa-
pa-va-oltre-le-cat/. Acesso em: 10 out. 2020.
UCCR, Il card. Müller: Il Papa è ambíguo? No, “è un linguaggio positivo
che abbiamo deciso assieme”. Disponível em: http://www.uccronline.
it/2016/05/11/il-card-muller-il-papa-e-ambiguo-no-e-un-linguag-
gio-positivo-che-abbiamo-deciso-assieme/. Acesso em: 22 mar 2018.
WERCKMEISTER, J. Quelques observations sur les personnes en situation
matrimoniale irrégulière dans le droit de l’Église catholique. Revue des
Sciences Religieuses 81/1 (2007) p.119-132.

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SOBRE O AUTOR

Luiz Antonio Belini nasceu em Londrina, Paraná, em


1963. Filho de Maria Paulina e Helidio Belini. Em 1979 co-
meçou sua formação no seminário jesuíta Santo Inácio, em
Ubiratã. Após ter cursado filosofia (Seminário Maior Nossa
Senhora da Glória - Maringá) e teologia (Instituto Paulo VI
- Londrina), foi ordenado presbítero da Diocese de Campo
Mourão, em 07 de janeiro de 1990. Desde então, exerceu
sua atividade pastoral junto às paróquias Santo Antonio de
Mariluz e São Judas Tadeu, de Quinta do Sol, onde reside e
trabalha atualmente como vigário paroquial e da qual pu-
blicou em 2010 a história (História da Paróquia São Judas
Tadeu de Quinta do Sol). Foi membro do Colégio de Consul-
tores, Decano e Vigário Geral.
Entre 1993 e 1995 fez o mestrado em filosofia na Pon-
tifícia Universidade Gregoriana, em Roma, tendo sua dis-
sertação publicada como A justiça na República de Platão.
A partir de 1990 lecionou nos seminários das dioceses da
Província eclesiástica de Maringá, na faculdade Famipar
(Cascavel) e nas universidades Unipar (Umuarama) e PUC
(Maringá e Londrina). Tem colaborado com artigos para
jornais e revistas. Atualmente concentra suas pesquisas na
Antropologia Teológica, tendo publicado: Temas de Escato-
logia e A morte é o fim do homem inteiro, mas não inteira-
mente: teologia da morte em J. L. Ruiz de la Peña.

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A partir de um convite para apresentar a Exortação Pós-
-Sinodal Amoris Laetitia do papa Francisco no VI Congresso
da Pastoral Familiar do Regional Sul-II que aconteceu em
Campo Mourão entre de 07 e 09/09/2018 passou a estudar
e a divulgar esta Exortação. Durante a pandemia a apresen-
tou de forma virtual a um grupo de pessoas interessadas.
Este livro é o resultado desta apresentação.

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NOVA
HISTÓRIA
EDITORA E GESTÃO CULTURAL

Esta obra foi composta pela Moai Comunicação


nas fontes Myriad Pro e sua família, e impressa
em offset pela Midiostore para a Nova História
Editora e Gestão Cultural.

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