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FAJOPA - FACULDADE JOÃO PAULO II

CURSO DE TEOLOGIA

O CARISMA FRANCISCANO COMO FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA A


AÇÃO PASTORAL PAROQUIAL

EVERTON LEANDRO PIÔTTO

SÃO JOSÉ DO RIO PRETO


2020
2

EVERTON LEANDRO PIÔTTO

O CARISMA FRANCISCANO COMO FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA A


AÇÃO PASTORAL PAROQUIAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a


Faculdade João Paulo II como requisito para
obtenção do Título de Bacharel em Teologia, sob
orientação do Prof. Me. Luís Roberto Pedroza da
Silva.

SÃO JOSÉ DO RIO PRETO


2020
3

EVERTON LEANDRO PIÔTTO

O CARISMA FRANCISCANO COMO FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA A


AÇÃO PASTORAL PAROQUIAL

( ) Orientador: _____________________________________________________________

( ) Leitor: _________________________________________________________________

Nota:________

Observações:______________________________________________________________
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São José do Rio Preto, ............ de ............................ de 2021.

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Assinatura
4

AGRADECIMENTO

Agradeço à Ordem dos Frades Menores, que me proporcionou desenvolver-me

enquanto pessoa e financiou os estudos de Teologia, aos meus familiares consangüíneos,

especialmente meus pais pelo apoio nas horas difíceis e nas partilhas. Às comunidades

paroquiais por onde trabalhei, que muito me ajudaram a amar ainda mais o Carisma

Franciscano, exatamente por exigirem, ao seu modo, o verdadeiro testemunho de Frade

Menor Franciscano. Ao meu irmão consangüíneo, Leonardo Henrique Piôtto, que fez sua

páscoa definitiva este ano, mesmo sendo tão jovem, deixando saudades eternas e os familiares

ansiosos por revê-lo na Pátria Celeste.


5

“Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo”


(Evangelho de João, 21, 17)
6

RESUMO

A vastíssima produção literária franciscana nos demonstra o quanto a espiritualidade de


Francisco de Assis, alinhada aos anseios eclesiais que lhe foram contemporâneos, fomentou
discussões filosófico-teológicas capazes de fundamentar, teoricamente, algo experimentado
no cotidiano do "poverello". Naquilo que se refere aos elementos éticos e morais
disseminados entre os próprios franciscanos e entre os fiéis leigos que aderiram ao seu projeto
de vida, pode-se identificar muitos pontos de convergência com a vida do fundador e seus
primeiros seguidores. Neste sentido, um dos objetivos do presente estudo é apresentar um
pouco mais acerca daquilo que o franciscanismo produziu no que se refere ao conceito de
dignidade da pessoa humana, mais especificamente quanto à dignidade que favoreceu afeto,
algo que marcava a vida da primeira geração minorítica e dos principais pensadores da Escola
Franciscana. Pretende-se enfatizar o quanto o pensamento franciscano ofereceu, e ainda pode
oferecer, à Igreja Contemporânea, aos educadores, aos catequistas e agentes de pastoral –
mesmo em tempos onde a ideia de "persona" vem sendo descaracterizada e feita mero objeto
nas mãos de um sistema “líquido” em relação aos valores humanos – oferecendo ferramentas
para que o indivíduo seja visto a partir de um novo olhar, mais humanitário e aberto à
afetividade na pastoral.

Palavras-chave: Franciscanismo. São Francisco de Assis. Formação. Pastoral.


7

ABSTRACT

Keywords:
8

Lista de Abreviaturas

CIC – Catecismo da IgrejaCatólica


DocAp – Documento de Aparecida,Conclusões da Conferência de Aparecida
DSI - Compêndio da Doutrina Social da Igreja
GE – GaudiumSpes - Constituição Dogmática Gaudium et Spes
TES – Testamento de São Francisco de Assis
CtFi – Carta aos fiéis (São Francisco de Assis)
1CEL – Biografia de São Francisco de Assis segundo Tomás de Celano
LM – Legenda Maior de São Francisco de Assis segundo São Boaventura
FI – Fioreti de São Francisco de Assis (Hagiografia)
ADM – Admoestações de São Francisco de Assis
RnB – Regra Não-Bulada de São Francisco de Assis
RB – Regra Bulada de São Francisco de Assis
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................... 10

2 O ETHOS COMO CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES.......................... 14

2.1- A compreensão de si mesmo: o homem como pessoa.......... 18

2.2- O “eu” que cuida e o “eu” que é cuidado................................. 23

3 O CARISMA FRANCISCANO COMO PARTE DOS DEBATES ACERCA


DA DIGNIDADE HUMANA QUE SE DESDOBRA EM
AFETO.................................................................................................. 30

3.1- O franciscanismo e sua práxis pastoral: princípios de vida


evangélica............................................................................................. 34

4 DA VIDA E DAS INTUIÇÕES FORMATIVAS E PEDAGÓGICAS DE


FRANCISCO DE ASSIS....................................................................... 37

4.1- Francisco de Assis e a experiência do outro em sua vida............. 37

4.2- Francisco de Assis e o pensamento franciscano.......................... 43

5 O PENSAMENTO FRANCISCANO COMO FORMAÇÃO DAS


COMUNIDADES CRISTÃS NA ATUALIDADE................................... 50

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................. 54

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................... 56
10

1. INTRODUÇÃO

A vastíssima produção literária franciscana nos demonstra o quanto a


espiritualidade de Francisco de Assis, alinhada aos anseios eclesiais que lhe foram
contemporâneos, fomentou discussões filosófico-teológicas capazes de
fundamentar, teoricamente, algo experimentado no cotidiano do "poverello". Naquilo
que se refere aos elementos éticos e morais disseminados entre os próprios
franciscanos e entre os fiéis leigos que aderiram ao seu projeto de vida, pode-se
identificar muitos pontos de convergência com a vida do fundador e seus primeiros
seguidores. Quanto ao arcabouço teórico, o franciscanismo se associa a conteúdos
doutrinais agostinianos, com alto nível de contribuição teológica para a Igreja por
longo tempo, até que se houvesse considerável sobreposição do tomismo. Também
se caracteriza pela grande fidelidade aos temas vigentes na Igreja contemporânea
em seu contexto histórico inicial, no século XIII – Eucaristia, Maria, a pessoa de
Cristo e a Sagrada Escritura – fortemente destacados nos Concílios precedentes e
bastante debatidos dentre as heresias do período em questão. 
O modo de enxergar o mundo, a sociedade, o meio familiar, constituem,
junto a diferentes fatores, aquilo que dá à mentalidade as ferramentas e saberes
suficientes para a compreensão daquele que é o diferente de nós, o outro. Tais
ferramentas e saberes constituem não apenas uma visão multifacetada em si, mas o
próprio fio condutor que servirá como diretriz fundamental capaz de iluminar todo o
pensar, a vida e toda a visão que alguém pode ter daquele que é o outro. 
Neste sentido, um dos objetivos do presente estudo é apresentar um pouco
mais acerca daquilo que o franciscanismo produziu no que se refere ao conceito de
dignidade da pessoa humana, mais especificamente quanto à dignidade que
favoreceu afeto, algo que marcava a vida da primeira geração minorítica e dos
principais pensadores da Escola Franciscana.  A construção de seu preciosíssimo
legado espiritual tornara-se marcante porque fora inicialmente gestado e nascido da
prática vivencial evangélica de Francisco de Assis e de seus seguidores, sempre a
partir da fidelidade à Igreja, rompendo com práticas viciosas e corrompidas,
contestando os valores distorcidos, contudo, sem gerar rupturas institucionais.
Portanto, este estudo pretende-se enfatizar o quanto o pensamento franciscano
ofereceu, e ainda pode oferecer, à Igreja Contemporânea, aos educadores, aos
catequistas e agentes de pastoral - mesmo em tempos onde a ideia de "persona"
11

vem sendo descaracterizada e feita mero objeto nas mãos de um sistema “líquido”
em relação aos valores humanos - oferecendo ferramentas para que o indivíduo seja
visto a partir de um novo olhar, mais humanitário e aberto à afetividade na pastoral.  
Notadamente a espiritualidade franciscana propõe o resgate de valores,
virtudes e, por que não,  da própria dignidade da pessoa. Logo, seria inviável
desconsiderar a pessoa humana em sua totalidade para estabelecer a relação
acima. Aqui, merece destaque o fato de que a questão mais intrigante da vida de
Francisco de Assis não consiste unicamente no ato de fazer-se pobre, mas naquilo
que há por detrás disso: a vivência radical do Evangelho por meio do amor que se
desdobra na vida fraterna. A tal ponto que se pode relacionar o próprio amor divino
manifestado na relação do homem com Deus ao amor expressado no cuidado do
homem consigo mesmo e com o outro. 
Em sentido amplo, ao falar acerca da concepção franciscana em torno da
inter-relação e da pessoa humana, fala-se da alma transformada que é resultante de
relações interpessoais, ou seja, fraternas. Relações estas que se apresentam como
verdadeiro "lugar teológico", merecendo ser estudadas e aprofundadas em suas
bases teóricas e vivenciais. Obviamente que se compreende bem a estreiteza entre
a vida dedicada a uma atenção direta de cuidado e promoção social dos excluídos,
empenhando-se por defender sua dignidade e integridade, e o próprio modo
teológico de pensar franciscano. 
Com isso, o tema “dignidade humana”, à luz do franciscanismo, se desdobra
em diversas facetas capazes de gerar reflexões para inumeráveis sentidos,
constituindo amplas visões de mundo e pessoa, a partir de diferentes olhares
provindos das ciências humanas e teológicas disponíveis. Por meio de um viés
humanista e ao mesmo tempo teológico, o franciscanismo estende seus ramos na
sociedade, no entanto sem pregar um humanismo descrente ou ateu. Ao contrário,
demonstra-lhe que o zelo pastoral – o amor fraterno nas ações cotidianas, a cortesia
e o afeto – quando associados a uma mística que compreende o mundo e o homem
em sentido holístico, resulta na modificação de como o indivíduo enxerga e interage
com a realidade à sua volta. Em sentido claro, apresenta reflexões pertinentes aos
campos da educação, da vida comunitária e da formação pastoral humanizadoras,
que vão desde a mística oracional à práxis socioeducativa, das múltiplas teorias
acerca do comportamento e do cuidado para com o ser humano à atenção devida
quanto a sua integridade física, além do espiritual. 
12

Nota-se claramente nos apontamentos realizados pelos mais variados


pensadores que se alimentam da espiritualidade de Francisco de Assis uma
preocupação com o homem em seus diversos aspectos, o que resulta em processos
de acompanhamento que priorizam o cuidado, o zelo e o afeto. Uma vez que o
cuidado e o zelo pastoral através do afeto podem ser alcançados de várias formas –
pois neste caso o foco está na compreensão inovadora acerca do próprio homem
enquanto ser amado por Deus – os meios utilizados para que a promoção humana
aconteça tanto em teoria, quanto na prática,  podem variar em modo, tempo ou
mesmo agentes (frades, padres, religiosos, professores, formadores, gestores,
técnicos, trabalhadores etc.). A pessoa humana é compreendida a partir de Cristo -
que vindo ao mundo elevou à perfeição a obra da criação divina tornando-se Ele
mesmo em tudo semelhante aos homens, exceto no pecado -, daí se compreende o
porquê se faz necessário valorizar a pessoa humana em seus mais amplos
aspectos. 
Por meio de tal fundamentação teórico-prática relacionada ao pensamento
humanista franciscano em seu mais amplo grau, o fiel atua na sociedade sem perder
de vista o “sagrado” da pessoa humana, reconhecendo-se um colaborador da
mesma, cooperador da criação e agente de transformação social em sentido pleno,
empoderando os indivíduos que o cercam não apenas no referente à espiritualidade
alienante em que se encontram imersos muitas das vezes, mas formando-lhes a
mentalidade, partindo da noção de fraternidade universal e dignificação de sua vida.
Eis aqui um elemento importante em relação à teologia franciscana: o
franciscanismo ter-se ocupado com a reflexão acerca do homem e sua relação com
Deus e com a integração entre o ser humano e o cosmos, mesmo antes que os
pressupostos da Antropologia Teológica e da virada antropológica na teologia
houvessem acontecido.
A integração, no homem, entre as próprias potencialidades, internas a si,
juntamente com as potencialidades fraternas do universo, forjam um novo ser que se
completa na fraternidade universal e na relação com a pessoa do próximo, o qual
será elemento integrante da própria completude, abarcando as esferas humano-
afetiva (alma), espiritual e interrelacional: eu-tu, eu outro, eu natureza, eu cosmos,
eu-eu. Cabendo aqui um verdadeiro trabalho de reforçamento da autenticidade
pessoal, que se desdobra em alteridade e resiliência. 
Visto que em certa medida a fraternidade é um dos maiores legados
13

deixados pelo movimento franciscano para o mundo – não em sentido criacional,


mas discutida em termos e especulações de conteúdo filosófico-teológico a partir de
grandes teóricos e místicos seguidores do poverello de Assis – temos como produto
um conjunto de reflexões que, frutificando em muitos outros elementos capazes de
gerar promoção da vida humana, elevou isso a um grau de reflexão teórica e até
mesmo a um ethos social muito particular, por ser basicamente evangélico. Ou seja,
impacta positivamente todas as relações sociais, tornando-se exemplo possível de
ser seguido pelos crentes e até mesmo não-crentes. 
Diversas são as passagens, nas Fontes Franciscanas e mesmo nos estudos
posteriores, onde se podem estabelecer encontros com o Francisco de Assis
formador. Grande educador dos fiéis leigos e leigas e dos seus frades seguidores, o
filho de Pedro Di Bernardone personificou um ethos peculiar dentro da Mãe Igreja,
envolvendo os mais diversos mistérios da vida inter-relacional e fraterna. O mesmo
diga-se quanto aos seus testemunhos e à integração com a natureza, esta
compreendida como uma extensão do seu próprio ser. Daí o primeiro passo para
uma “pedagogia franciscana”, ou mesmo uma “pedagogia franciscana do afeto”, que
pode ser aplicada na prática pastoral sem perder a própria essencialidade e dom
carismático que lhe são peculiares. Algo possível também graças aos filósofos e
teólogos franciscanos posteriores ao poverello, que foram capazes de sintetizar e
realizar o aprofundamento desta práxis de Francisco, teorizando aquilo que fora
vivenciado por ele, gestado em sua Proto-regra, Regras, Testamento e demais
escritos como as hagiografias, a fim de se estabelecerem pontos argumentativos de
reflexão, os quais, posteriormente, serviriam de base para a transposição do
carisma, de mera vivência evangélica, a uma verdadeira “teoria do amor fraterno”.
 Da união estabelecida entre práxis e teoria há de se encontrar um modelo
de vida que serviu de projeto para milhares de indivíduos ao longo da história,
mesmo antes dos saberes científicos e teóricos complexos das ciências
pedagógicas, psicológicas e demais áreas contemporâneas surtirem efeito como
contribuintes para a melhoria da vida social. Neste ensejo, a teologia franciscana
ensina que o coração – as emoções – e a razão – mentalidade – do homem são
“iluminados pela luz Divina”. Portanto, todas as ações e práticas benéficas feitas por
este, o são a partir da inspiração impressa pelo “Espírito do Senhor e seu santo
modo de operar” no próprio interior humano. Como resultado disso, o humanismo
franciscano deposita uma crença gigantesca na pessoa humana, a ponto de sempre
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ressaltar as qualidades ao invés dos defeitos, as virtudes ao invés dos vícios, o bem
ao invés do mal. 
O estudo apresentado aqui traz uma parte dos ideais fraternos embasados
no pensamento franciscano naquilo que se associa ao amor e à afetividade como
práticas pedagógicas e formativas nas casas religiosas da Ordem dos Frades
Menores e mesmo nas comunidades paroquiais em que se inserem, não em sentido
institucional, mas em sentido pastoral e vivencial. Para início de conversa foram
traçados alguns elementos acerca da ideia de dignidade humana e da antropologia
teológica. Em nível eclesiológico, seguindo-se para as compreensões do próprio
franciscanismo neste sentido, procurou-se mostrar como a virada antropológica na
teologia pode ajudar a compreender melhor o próprio pensamento franciscano,
mesmo sendo muito posterior a este. 
No desenvolvimento deste trabalho foram utilizadas, como fontes primárias e
secundárias: as Regras, o Testamento e os Escritos de São Francisco de Assis;
hagiografias relativas a São Francisco de Assis, que contém as descrições de seu
modo de agir, pensar e falar; textos de autores posteriores a São Francisco de Assis,
que comentaram ou descreveram também a vida dos frades; Documentos da Ordem
dos Frades Menores (OFM) sobre o referido tema; os conteúdos desenvolvidos por
pensadores dos inícios da escola franciscana de Filosofia e Teologia, responsáveis
pela teorização das práticas vivenciais dos primeiros frades. Tais saberes serão
confrontados com os conteúdos relacionados à Antropologia Teológica e à
Pedagogia do Afeto, que apresentam claramente a importância e o valor da pessoa
humana em sua totalidade. 

2- O ETHOS COMO CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES

Ao humanizar ainda mais as relações em sua plenitude cristã, o carisma


franciscano demonstra intensa preocupação com a compreensão do ser a partir de
sua singularidade, apesar de calcar os alicerces sobre  a fraternidade. Pautando-se
na relação firmada entre participação e comunhão fraterna, de forma que haja entre
os seus membros um intenso amor unitivo, caracteriza-se por conceitos e
orientações firmes a respeito das relações que se estabelecem entre os diferentes,
ou seja, em torno do “eu da interioridade” e do “eu da exterioridade” – o eu
consciente e o eu inconsciente – proporcionando um modo específico de “ser” no
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que se refere ao cuidado de si mesmo em relação à espiritualidade pessoal e ao


acompanhamento junto à pessoa humana em direção à sua dignidade,
potencialidade e afetividade. Pontos altamente característicos do carisma
franciscano, principalmente por seu viés transcendente, fortemente unido ao
imanente, o que provoca os seguidores a atuarem na sociedade por meio do
cuidado com o outro. 
No entanto há algo mais no franciscanismo, merecendo aprofundamento
sem que haja desvalorização das eruditas temáticas intelectuais que o cercaram no
decorrer do tempo e que, dando–se insistentemente ao agir caritativo, não se
entregue à desatenção acerca da prática e do cuidado pastoral na Igreja a partir de
sua Doutrina Social. Este elemento, resulta da convivência fraterna elevada a alto
grau de relação interpessoal a partir da práxis da fraternidade, uma característica
ressaltada na vida consagrada, de modo especial no movimento franciscano, sendo
percebida no estreitamento dos laços fraternos das comunidades minoríticas. Dado
por crerem, desde suas origens, que seja assim a própria vontade divina, é
imprescindível entender o fato de que a escola de pensamento franciscano
desenvolveu, ao longo de sua história, uma firme convicção: há uma preciosa
complexidade no ser humano, que passa a ser compreendido a partir de diversas
esferas inter-relacionadas entre si, sendo ele mesmo um fruto das relações
interpessoais estabelecidas na comunidade ou “fraternitas” onde se insere. 
A enraização do indivíduo no ethos, caracterizado pela organização social
onde se insere,  constitui parte integrante do ser humano tanto por desenvolver
quanto por se alimentar, simultaneamente, de saberes relacionados com tradição,
educação, laços afetivos e familiares, enfim vida social; que por sua vez, resultam
outros elementos muito diversos, acabando por se tornarem essenciais para o
desenvolvimento do indivíduo tanto em âmbito particular quanto social, uma vez que
“a mais importante experiência dos outros ocorre na situação de estar face a face
com o outro, que é o caso prototípico da interação social” (Cf. BERGER;
LUCKMANN, 1983, p. 47). Não obstante sofra alterações significativas entre povos e
culturas que se manifestam fenomenologicamente no referente às tradições e
vivências familiares, a humanidade toda vive e se estrutura a partir do ethos, o qual
se constitui de uma "matriz de percepção, avaliação e ação, a partir da qual
realizamos as mais diferentes tarefas, resolvemos problemas, corrigimos
incessantemente os resultados obtidos e integramos todas as experiências
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passadas” (AGOSTINI, 1997, p. 23). É necessário lembrar ainda que “os costumes,
as normas morais, a ordem positiva do direito têm uma ligação estreita com este
ethos, são explicados por ele. A própria cultura... adquire sua identidade do ethos”
(AGOSTINI, 1997, p.24).
Este ethos, em sentido amplo, revela-se como uma verdadeira arte de viver
e conviver, morada, sustento da vida e, consequente cuidado da mesma. Tal sentido
é associado a tudo aquilo que se ocupa com o bem e o cuidado do ser. Uma vez que
todo relacionamento constrói conhecimento, valores, trocas entre sujeito e objeto,
torna-se fácil entender que as relações sociais articulam-se a fim de gerar
conhecimento e aprendizado constantemente. Os valores morais e até mesmo
religiosos, construídos desde sociedades antigas não cristãs,  são resultados de
elementos motivadores para o aprendizado dos indivíduos a partir de testemunhos,
regras, acordos, convívio social, que tornam-se novos ethos na medida em que são
atualizados e aprimorados. 
Estas normativas de convivência social formam elementos que servem para
a organização do homem em comunidades e são objeto de estudo para filósofos e
teólogos desde tempos antigos, sendo atualmente também compreendidos a partir
de outras tantas áreas do conhecimento de humanidades. O cotidiano, de comum,
corriqueiro e popular, torna-se algo visto como um gerador de relações interpessoais
merecedoras de serem estudadas e conhecidas, de onde se afere que “o grupo
forma o indivíduo, colocando-o na presença do outro, incitando-o a se colocar no
lugar do outro, levando-o a interiorizar o outro em geral, bem como seus valores”
(STOETZEL, 1978, p. 236). Exatamente porque caracteriza uma grandiosa fonte de
saberes científicos, religiosos, filosóficos, esta fraternidade universal produz
significantes conteúdos que lhe são peculiares e específicos, revelando um pouco
mais acerca de quem é o homem enquanto ser individual, e o que se diz acerca dele
quanto à sua relação com o todo da sociedade humana. O Compêndio de Doutrina
Social da Igreja aponta que "a humanidade compreende cada vez mais claramente
estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de
responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário" (CDSI, 6).
Percebendo-se diferente do universo criado, o homem estabelece relações –
afetivas ou não – com este, enxerga que “a personalidade humana é essencialmente
comunhão para fora; o  simples fato de o ser humano ser corpo vivo o coloca
necessariamente numa situação de abertura, contato e relação com o mundo
17

humano e cósmico” (BOFF, 2004, p. 115-116). Interagindo com o meio que o cerca,
consegue estabelecer relação e limites entre este todo e seu próprio ego:
Como é sabido, a visão do ser humano enquanto pessoa vai se
desenvolvendo, na revelação bíblico-cristã, em conexão com a auto-
revelação de um Deus com características pessoais. Um Deus que tanto no
seu agir salvífico - tema central no Antigo Testamento e no Novo Testamento
- quanto na ação criadora divina, é apresentado na sua relação dialógica
com o ser humano. (RUBIO, 2007, p. 261).
Constituída ao longo do tempo, será esta auto-compreensão, como um ser
especial, que falará alto no desenvolvimento da reflexão que o homem tem de si
mesmo na atualidade. Algo gestado paulatinamente, mas carregado de idas e vindas
tanto no quesito antropocêntrico, quanto teológico ao longo do tempo. Mencione-se
aquilo que se pode extrair da própria Bíblia acerca dos arquétipos humanos. Embora
a concepção de “arquétipos” seja usual na psicologia analítica recente, nas
Sagradas Escrituras nota-se figuras que servem de base para grandes reflexões
quanto à dignidade e ao valor da pessoa humana, pois
Histórias dos tempos antigos não contam as coisas que aconteceram uma
única vez, e sim, as coisas que aconteceram pela primeira vez como coisas
que sempre acontecerão. Contam ‘o que nunca foi’ e ‘é sempre’, põem a
descoberto o que qualquer pessoa sabe, mas não  sabe, e querem ajudar a
vencer na vida com esse saber e essa natureza  preestabelecida. Seus
heróis e anti-heróis não são figuras que alguma  vez existiram na História,
mas são inteiramente históricas, porque toda  pessoa tem parte nelas
(ZENGER apud SCHENEIDER, 2000, p. 123).
Estas "figuras históricas", às quais toda pessoa tem parte, demonstram
claramente o quanto a relação interpessoal, e também, do indivíduo consigo mesmo
e com o universo criado, constitui verdadeiro "saber teológico", merecendo atenção
e aprofundamento. A existência e a vivência enquanto pessoa é efetivamente
verdade quando há abertura àquele que se aproxima e consideração da presença
fraterna do outro, servindo como contribuinte para o pleno desenvolvimento do ser
pessoal que renasce a partir desta inter-relação, algo demonstrável por meio de
inúmeras narrativas bíblicas (cf. CDSI, 61). Também,
O dinamismo da vida pessoal consiste, então, em um permanente sair de si
em direção ao outro, para compreendê-lo e assumir suas dificuldades, para
dar e dar-se ao outro. Na perseverança de uma relação fiel. Só assim a
pessoa se expõe ex-siste, torna-se próximo e é direcionada: o esse ad não
é uma possibilidade adicionada, um aspecto acidental, mas resulta
constitutivo do ser pessoal enquanto feito não para a solidão de uma
interioridade auto-suficiente, mas para a comunhão de uma relação na qual
reciprocamente se dá e se recebe (FORTE, 2003, p. 86).
A íntima relação de unidade provinda da Trindade criadora imprime a
necessidade da fraternidade integradora como parte da vida e essência humanas.
Como nos aponta o Compêndio de Doutrina Social da Igreja ao afirmar: "é o próprio
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mistério de Deus, o amor trinitário, que funda o significado e o valor da pessoa, da


sociabilidade e do agir do homem no mundo, na medida em que foi revelado e
comunicado à humanidade, por meio de Cristo” (CDSI, 54). Na História do
pensamento cristão nota-se que,
O aprofundamento e a sublimação da ideia de Deus, concebido como o
amor não poderia deixar de reformar, outrossim, a concepção das relações
do homem para com Deus, e bem assim as relações mútuas dos homens
entre si;  numa palavra, era forçoso que surgisse uma nova atitude ética. A
teologia do amor constitui o fundamento para uma ética da caridade
(BOEHNER; GILSON, 2019, p.18).
Por outro lado, a carência humana que aumenta no isolamento social dos
indivíduos, "sentimentos de ausência" e solidão resultantes da necessidade de afeto,
explicam-se, pela origem Divina do ser humano que, perdendo a relação com o
Criador, busca preencher tal ausência de formas variadas. Neste sentido, vale
ressaltar que a ética do cuidado e da acolhida vem sendo redescoberta com imensa
força nos tempos atuais, mas remonta a elementos antigos, bíblicos e extra-bíblicos,
que apresentam o homem como um ser dependente dos demais, e jamais um
indivíduo isolado. 
2.1- A compreensão de si mesmo: o homem como pessoa
Na busca por definir-se enquanto ser existente no mundo, o homem esbarra
com a necessidade de abrir-se ao outro e ao universo, e “esta Teologia da caridade
é o que há de mais especificamente cristão. É a fonte atuando pela caridade”
(BOEHNER; GILSON, 2019, p.18), em outros termos: "cumpre que a teologia do
amor venha acompanhada de uma ética da qualidade" (BOEHNER; GILSON, 2019,
p.18). Aponta Mounier em âmbito filosófico:
A pessoa só existe voltada para o outro, ela só se conhece por meio do
outro, ela só se encontra no outro. A experiência primitiva da pessoa é a
experiência da segunda pessoa: o tu, e nele o nós, precede o eu, ou ao
menos o acompanha.... Quando a comunicação se enfraquece ou se
corrompe, perco profundamente a mim mesmo: todas as loucuras são um
fracasso na relação com os outros – o alter torna-se alienus, e eu, por minha
vez, torno-me estranho a mim mesmo, alienado. Quase se poderia dizer que
só existo à medida que existo para os outros, e, no limite: ser é amar
(MOUNIER, s/d, p. 76.).
Refletindo acerca disso alguns dos filósofos antigos e medievais – dentre
estes, os franciscanos – entendiam que o cuidado nada mais era do que um retorno
ao ethos primeiro, à casa, ao mundo em que se habita, ao modo de ser na
sociedade onde se insere. Este ponto remete a temas como desvelo, solicitude,
atenção ao outro, alteridade, altruísmo, cordialidade, que são capazes de gerar
novos afetos e gestos humanitários. Ainda que se tenha havido mudanças na
19

concepção acerca do corpo humano e do próprio ser humano ao longo da história do


pensamento, a interação que este realiza entre os demais seres que convivem de
forma direta ou indireta acaba, de algum modo, por contribuir para variadas
concepções a respeito da corporeidade, da afetividade, do próprio ego enquanto
consciência. 
Sabendo disso, é possível deduzir como se dá, no caso da tradição judaico-
cristã, o momento onde a fé e a espiritualidade geram serviço, ministério que se
desdobra em auto-entrega, com o desenvolvimento de dons espirituais e de
santificação da pessoa na própria comunidade: a vida de fraternidade. Pois se
compreende que,
Tal é a imagem de Deus à semelhança do qual é criado o ser humano. O
respeito a esta alteridade é a tal ponto essencial para a vida que o narrador
do relato das origens (Gn 1-11) consagra suas três mais célebres páginas à
ilustração das consequências mortíferas da transgressão dessa lei da vida:
a falta de Adão e Eva, o assassinato de Caim e a Torre de Babel (WÉNIN,
2006, p. 12).
A própria criação, do nada – creatio ex nihilo – "faz referência à dependência
total do ser humano em seu ser-aqui, em seu ser-assim e também em seu caminho
histórico e na realização de sua liberdade" (MULLER, 2015, p.  135). No
cristianismo, esta compreensão de que Cristo com o Pai e o Espírito Santo são um e
todos são um por meio da participação nele é o que estimula a vivência do cuidado
com a pessoa do outro, aqui entendida e protegida em sua totalidade e humanidade,
porque tem relação com o próprio Senhor. Um cuidado com o bem viver do outro,
tanto ser humano quanto outros seres criados em respeito e consideração ao ato
criador de Deus e dos seus vestígios presentes nos seres, como afirmavam os
pensadores franciscanos. Dessa forma, qual deve ser o valor e a dignidade da
pessoa humana, uma vez que esta é percebida com maior importância, haja vista
que
O conceito pessoa procede de uma visão tipicamente cristã cujos dados
fundamentais foram fornecidos já no Antigo Testamento e levados a uma
realização plena somente com Jesus Cristo. À luz da perspectiva
veterotestamentária da salvação e da criação, o humano é um ser de
diálogo e de resposta, chamado à interpelação do próprio Deus criador e
salvador, de outros seres humanos e do mundo criado. É um ser de diálogo,
capaz de acolher o dom do amor salvífico de Deus. Assim, o ser humano é
visto como um ser dialógico-relacional. (RUBIO, 2004, p. 108-109). 
A respeito do conceito de pessoa, em seu Dicionário de Filosofia,
Abbagnano aponta que isto significa, "no sentido mais comum do termo, o homem 
em suas relações com o mundo ou consigo mesmo. No sentido mais geral (por
quanto esta palavra foi aplicada também a Deus), um sujeito de relações
20

(ABBAGNANO, 2003, p. 761 [verbete: pessoa]). O mesmo autor ainda faz referência
às questões que trataram do termo pessoa no início do cristianismo, onde se passou
por um processo que indica mudança daquela tradicional visão grega de pessoa
enquanto "persona'' (máscara), para uma compreensão de pessoa enquanto
substancialidade, como no caso de Santo Agostinho. Assim, “Na complexidade da
Nascente dogmática  cristológica e trinitária,  os santos padres recorrerão ao termo h
hipóstasis, dando tal acento ao caráter ontológico, que deixa na penumbra a pessoa
enquanto ser histórico fechar "(BRIGHENTI, 2006, p. 157).
Logo depois, foi novamente modificada a partir de São Tomás de Aquino
que, partindo da compreensão de Boécio, entendia a pessoa como relação, fazendo
referência à relação entre as pessoas da Trindade, o mundo, o homem e a natureza,
portanto, vinculando o termo à questões de ordem metafísica, questionando sua
substancialidade. Os períodos que sucederam à Idade Média, como a era moderna
e a contemporânea, apresentaram caracterizações diferentes acerca da terminologia
"pessoa”. Mas vale mencionar que na Idade Média, onde a cristandade se
caracterizava por permear grande parte, se não toda a europa, a ideia de
individualidade era deixada de lado para a valorização do coletivo cristão. O outro
não é enxergado como um diferente, mas como extensão do corpo comunitário,
eclesial, assim "o que conta da cidadania é o coletivo. Consequentemente, já que o
ser humano não existe enquanto indivíduo, não tem direitos, mas deveres”
(BRIGHENTI, 2006, p. 157). Ou seja, “os direitos humanos são contra os direitos
civis, o que,  numa sociedade teocrática, equivale a ser contra os direitos de Deus”
(BRIGHENTI, 2006, p. 157).
No período moderno por exemplo, a análise desse termo firmou suas bases
a partir da racionalidade humana, a ponto de separar a mente e o corpo. Por sua
vez, a Idade Contemporânea trouxe consigo um leque de alternativas e visões a
respeito deste mesmo conceito (cf. ABBAGNANO, 2003, p. 761-3). Atualmente, a
antropologia teológica aponta que 
O homem ‘perfeito’, não é aquele que consta de alma e corpo,  mas sim de
alma, corpo e espírito,  em que este último elemento, na sua complexidade
teo-antropológica, é, ao mesmo tempo, transcendente, Divino e necessário
a nossa ‘ perfeição’ (LADARIA, 2016, p. 68).
A Igreja, no entanto, de um modo ou outro, se ocupa com a proclamação da
Dignidade da Pessoa Humana de longa data. Recebida da tradição bíblica, esta
pregação firma suas bases sobre Gênesis 1, 31. Esta compreensão acerca do ser
21

humano como algo "sagrado" remonta ao Primeiro Testamento, como afirma Rubio:
É pela fé bíblico-cristã que sabemos que a criação do mundo, em certo
sentido, visa o aparecimento do ser humano, imagem de Deus, capaz de se
decidir pela abertura ou pelo fechamento ao dom de Deus, capaz de um
autêntico diálogo com Ele. Visa a criação de um ser livre, capaz de escolher
por ele mesmo. Destino surpreendente para a gigantesca evolução do
universo! Para o teólogo e, em geral, para a pessoa de fé, é motivo de
alegria o fato de que, a partir da própria ciência, cientistas se abram a essa
perspectiva. O universo inteiro fica 'personalizado', como já intuía T. de
Chardin. Ou, conforme afirma a fé cristã, a criação toda apresenta um
caráter 'responsorial'. (...) Começa, assim, a ser superada a brutal
separação entre o cosmo e o ser humano, desenvolvida pela ciência
mecanicista moderna (RUBIO, 2007, p. 271).
Se é merecido à pessoa uma consideração maior – sem que se menospreze
os outros seres criados –, pode-se compreender que o cuidado corresponde ao ato
de afetar e ao mesmo tempo ser afetado pelo outro, como algo igualmente
importante. Para que haja o cuidado de modo intensificado e significativo faz-se
necessária a abertura à possibilidade de alguém que cuide. E também a disposição
pessoal de alguém permitir-se cuidar, mesmo que necessite ou não disso. Sendo,
portanto, ambos os agentes cuidadores e zeladores uns dos outros, ficam
estabelecidas relações de afeto, que são entrelaçadas à questão da dignidade
humana. Como afirma Ladaria (2016, p. 73), a unidade com Cristo faz com que os
homens também se tornem um um tu  aos olhos de Deus, portanto, sendo
chamados em Cristo pelo Pai celestial, o ser pessoal humano encontra sua
plenitude, determinando com isso as diferentes formas de relação resistentes entre
os indivíduos humanos. Sobre o tema referente à Dignidade Humana e ao afeto,
Urbano Zilles afirma que 
Os homens podem conhecer-se a si mesmos. Diante dele caem as ilusões.
Em suas feridas refletem-se as nossas; em seu abandono, o nosso; em sua
solidão, a nossa; em sua solidariedade, também encontramos a
humanidade em Deus, seu amor. [...] Ele une os homens em sua carência
comum de humanidade. [...] Na cruz nasce a esperança de um homem
novo, de um mundo novo, pois ele ressuscitou dos mortos e vive. O homem
resumido em Cristo é a síntese mais arrojada, o elo entre Deus absoluto e a
múltipla alteridade do mundo (ZILLES, 2011, p. 37).  
O médico e pensador da educação Henri Wallon afirmou, em seus estudos
sobre o desenvolvimento da aprendizagem, que o “contágio das emoções é um fato
comprovado variadíssimas vezes. Depende do seu poder expressivo (...) e que
incessantes permutas e, sem dúvida, ritos coletivos transformaram de meios naturais
em mímica mais ou menos convencional fechar" (WALLON, 1968, p. 149). A teóloga
Olga Consuelo Caro, da pontifícia Universidade da Javeriana, de Bogotá,  assim
afirma:
Hoje é um sinal dos tempos a volta ao sujeito ou o resgate da subjetividade.
22

subjetividade não entendida em termos abstratos,  teóricos, individualistas,


afastados da realidade ou como sujeitos massificados numa classe social ou
num grupo determinado, sem nenhuma identidade individual. É urgente
propor o tema do sujeito em termos de sujeito integral: o ser humano
concreto, real, corporal, que pensa, sente, acredita, age e que, sem perder a
sua autonomia e o seu ser único, constitui-se na relação com os outros e
com o mundo em que vive  (CARO apud RUBIO, 2007, p. 92). 
A partir das ciências humanas contemporâneas o sujeito, entendido como
determinante de seu próprio aprendizado, não é apenas agente observador de um
ambiente que gera conhecimento, mas possui a capacidade de estabelecer
interação com este, ou seja, o sujeito se constrói na medida em que constrói o meio
onde se relaciona e interage. Cada um confere significado àquilo que vive e vê,
desenvolvendo comportamentos e aprendizados a partir das sensações e emoções
que estabelece nos grupos onde convive. Percebe-se, na atualidade, uma
compreensão de que o indivíduo emerge como pessoa livre e independente, 
o ser humano ‘tem direito a ternura’, à valorização da sua corporeidade, a
viver feliz neste tempo presente, desenvolver e amadurecer na sua
dimensão afetiva. Porém, é preciso apostar decididamente nessa
integração, no concreto das realizações humanas (CARO apud RUBIO,
2007, p. 93).
Nada substitui o encontro, o contato direto com os demais membros da
sociedade e com o universo como algo determinante do “eu”; algo que favorece o
crescimento de uma pessoa livre e participativa. Conclui-se então que a comunidade
é um lugar particular onde se torna possível a descoberta, a criação, a
conscientização e a conversão social; mas também contribui significativamente para
a autodescoberta, autocriação, autoconscientização e conversão individual. E aqui
entende-se bem que “o grupo oferece aos processos de massa pessoas de olhos
abertos, e não autômatos” (BOFF, 1995, p. 17). É da convivência que são gerados
os sentimentos, 
o fluxo de sentimentos que acompanha o dinamismo da consciência
intencional merece especial atenção pelo papel que desempenha na vida
humana. Sem os sentimentos, nosso conhecimento e nossa decisão seriam
como uma leve folha de papel” (CARO apud RUBIO, 2007, p. 103).
Exatamente porque o pensamento teológico moderno reconhece que corpo
e alma constituem, integralmente, aquilo que é o ser humano, "na medida em que
ambos são corpo e alma do homem, ele é uno” (LADARIA, 2016, p. 69). Tudo isso é
reconhecido na teologia, e também no próprio pensamento Franciscano, a partir da
compreensão de que é por causa de Cristo, em sua relação com as outras duas
pessoas da Santíssima Trindade, que o homem também possui caráter de pessoa.
Nesse sentido é a relação com Jesus Cristo, a unidade estabelecida com ele, a
participação em sua missão Universal e o compromisso com o Reino, quem garante
23

este olhar para o outro como pessoa possuidora de grande dignidade (cf. LADARIA,
2016, p. 73-74).
 2.2- O “eu” que cuida e o “eu” que é cuidado
Ao partir-se das relações pessoais e da preocupação que se desperta entre
o “eu que cuida” e o “eu que é cuidado” se vê nascer uma relação de reciprocidade
afetiva, onde se alarga o aprendizado acerca do ensinamento de Cristo: "amai-vos
uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34; 15,12). Algo correspondente à
intersubjetividade humana, sem que se perca, com isso, a individualidade.
Se o decisivo em Deus é o Amor e a Liberdade, devemos concluir que o ser
humano, criado à imagem desse Deus, deverá ser valorizado, sobretudo
pela capacidade de se decidir com liberdade (de maneira condicionada e
finita, mas real) e de amar (também de maneira limitada e penetrada de
ambigüidade, mas real). Ou com outras palavras, o ser humano, na
perspectiva cristã, é acima de tudo alguém, uma pessoa chamada a se
decidir na abertura, para acolher o dom de Deus salvador-criador e para
viver o amor concreto aos outros seres pessoais e a assumir sua
responsabilidade face ao mundo criado pelo amor de Deus. Alguém criado à
imagem de um Deus criador-salvador, chamado a criar algo novo na história
e no cosmo (RUBIO, 2007, p.265).
As produções filosófico-teológicas a respeito do ser humano formam uma
lista imensa de saberes que podem contribuir com a reflexão a respeito do mesmo,
bem como auxiliar na compreensão do que é o homem e qual seu papel no mundo.
Podem também ajudar a compreender e refletir melhor sobre a necessidade que
este possui de estabelecer relações interpessoais, sejam elas corpóreas ou
extracorpóreas. Isto abre espaço de oportunidade para reflexões em torno da
qualidade de vida fraterna, análise de exemplos dessa mesma vivência fraterna,
oportunidade para a elaboração de conteúdos filosóficos e teológicos a respeito das
próprias relações estabelecidas dentro da comunidade de fé. 
Em nossa sociedade tão despersonalizada, aumenta paradoxalmente o grau
de dependência recíproca, e se sente a necessidade de ‘personalizar’  as
relações sociais, marcadas não raro pelo anonimato. A teologia Cristã,
porém, além de assumir esse dado, mostra-nos como essa dimensão social
do homem diz respeito a nossa relação com Deus (cf. LADARIA, 2016, p.
75).
Também o personalismo filosófico do século XX recobra a relação como
característica do próprio ser humano, onde "na oratória mais ou menos confusa, que
é característica dominante desta corrente, a nota conceitual que se consegue
discernir é o conceito de pessoa como auto-relação ou consciência" (ABBAGNANO,
2003, p. 759 [verbete personalismo]). Um conjunto de reflexões que se desdobra na
compreensão entre o eu e o tu, seja este último o Sagrado, a natureza, o cosmos
etc. Merecendo destaque as três doutrinas importantes a seu respeito, a doutrina
24

teológica, a doutrina metafísica, e a doutrina ético-política, o personalismo apresenta


importantes chaves de leitura para a compreensão do ser humano e sua dignidade.
Em sua primeira vertente afirma a personalidade divina como sendo a causa
criadora das coisas existentes; na segunda remonta a ordem espiritual presente no
mundo, a partir da compreensão de que Deus é criador de tudo, merecendo
destaque a produção de E. Mounier (Le personalisme, 1950); e na terceira, “enfatiza
o valor absoluto da pessoa e seus laços de solidariedade com as outras pessoas,
em oposição ao coletivismo e ao individualismo” (ABBAGNANO, 2003, p. 759
[ verbete: personalismo]). Assim afirma Agenor Brighenti:
O personalismo (E. Mounier)  se esforçará  em comprovar que "ser humano
algum é uma ilha” (Thomas Merton) e,  fundado no existencialismo
(Kierkegaard),  irá explicitar a identidade do ser humano enquanto ser
social. K. O. Apel  introduz a problemática no centro da comunicação
linguística, postulando a inserção da racionalidade no horizonte da
intersubjetividade,  ou seja,  colocando um “tu” diante do "eu". E. Lévinas e
P. Ricoeur irão tirar as consequências do interpessoal para busca do
Universal. (BRIGHENTI, 2006, p. 158).
Antes mesmo disso, faz-se importante remeter o olhar para a modernidade.
Bingemer e Feller por sua vez, ao falarem sobre ela, cujo começo situam por volta
do século XVI, afirmam: "constata-se uma virada antropocêntrica, que coloca o
sujeito humano no centro do saber e encara a realidade como matéria-prima a ser
transformada” (BINGEMER; FELLER, 2002, p. 27-8). Apontam também para
momentos históricos como o surgimento do programa filosófico de Descartes, a
Reforma Protestante e outros fenômenos histórico-sociais onde são delimitadas
relações existentes entre os eu individual e Deus; onde essa descoberta de que "nós
somos sujeitos de nosso pensar,  de nossa história e de nosso destino tem
consequências na maneira pela qual vamos entender esse Deus que nos cria e nos
mantém vivos" (BINGEMER; FELLER, 2002, p. 28) se deu a partir de grandes
passos. Por outro lado, os mesmos autores também apontam os problemas que
sucederam a partir daí, mesmo após a própria Contra-reforma católica, onde nota-se
uma grande influência da subjetividade em detrimento àquela visão dogmática
afirmada em Trento (1546-1563). 
Já em relação à pós-modernidade, "a antropologia hoje não é mais tanto
subjetiva, mas intersubjetiva e relacional. O ser humano não é mais visto como
indivíduo e protagonista do cogito – "penso, logo existo" –  de Descartes, mas como
nó de relações" (BINGEMER; FELLER, 2002, p. 29). Também elucidada por
conceitos éticos, como o de alteridade, segundo Emmanuel Levinas aprofunda-se a
25

noção de que a relação interpessoal que emerge deste “colocar-se no lugar do


outro" – a consciência humana tem ampliado a compreensão de si mesma e de sua
ligação com as demais consciências, oportunizando intensas reflexões que
nasceram da convivência fraterna em seus diversos aspectos e grupos. Ainda que
algo assim se desse anteriormente na Igreja de uma ou outra forma por meio do
pensamento agostiniano-franciscano, vale ressaltar que o tomismo imperava com
suas análises da realidade decaída de uma humanidade pecadora. Logo, enxergar o
homem como um ser inteligente, livre, sujeito, pessoa, autônomo, responsável,
trouxe para o pensamento teológico algo muito valioso, principalmente quando
associado às ciências humanas modernas e contemporâneas, do século XX. Ao
relacionar o tema antropologia teológica às questões referentes à criação e a
Teologia da Graça, Ladaria  traça uma interessante história dessas concepções,
demonstrando claramente as variantes interpretações acerca da dignidade humana
a partir da Criação Divina no decorrer da história humana (cf. LADARIA, 2016, p. 16-
36).
As narrativas do Antigo Testamento falam da esperança e da espera do povo
hebreu pelo messias. Por sua vez, o Novo Testamento afirma que este messias,
muito longe de um homem qualquer, comum a tantos outros, era humano e divino;
capaz de conduzir e salvar o povo por inteiro, tanto corporal quanto espiritualmente.
Importante destacar que a experiência dos discípulos com Jesus de Nazaré não se
constituiu apenas de milagres e prodígios realizados por este, mas esteve permeada
de testemunhos, ensinamentos e comportamentos que imprimiram, a começar por
eles próprios, um verdadeiro ethos capaz de alterar a concepção de mundo, a
compreensão da própria fé e o comportamento inter-relacional. Diante de um mundo
obscurecido pelo pecado e a morte, a experiência com Jesus de Nazaré evidencia
uma verdadeira prática pedagógica capaz de conduzir o homem ao bem viver,
conforme o plano Divino para a humanidade. Dessa forma, atender a este pedagogo
do Pai, compreendendo e imitando seus feitos, constitui também um comportamento
a ser assumido pelo fiel (cf. LADARIA, 2016, p. 54).
Ao longo da história, nem sempre o pensamento teológico atribuiu à
dimensão corporal do homem a dignidade de imagem de Deus, pois é evidente que
Deus em si mesmo é incorpóreo, logo, tudo aquilo que é matéria, para o
pensamento filosófico-teológico – principalmente o medieval tomista – está em plano
inferior. Ocupando-se muito mais com as questões de substância e causalidade,  por
26

vezes o pensamento teológico deixou um pouco de lado a dimensão físico corpórea


do ser humano. No AT: "Não há dúvida que uma estreita unidade entre alma e corpo
é pressuposta, quer pelo uso de termos linguísticos não exclusivos, quer pelas
funções ‘espirituais’ atribuídas literalmente ao corpo e ‘materiais’ à alma" (Dicionário
de Teologia Moral, p. 187 [verbete: corporeidade]). Tão pouco no Novo Testamento
se nota uma preocupação em descrever ontologicamente os componentes do corpo
humano, ou mesmo definir conceitos filosófico-teológicos como os de pessoa ou
dignidade humana. 
Em sua missão de revelar o Projeto de amor do Pai levando todos os
homens ao conhecimento de seu Amor, a figura impactante de Jesus Cristo marcou
profundamente a humanidade em sentido salvífico e mesmo histórico e
antropológico, uma vez que 
Tudo começou com um encontro. Algumas pessoas entraram em contato
com Jesus de Nazaré e com ele ficaram. Por causa desse encontro e por
aquilo que estava em Jogo na vida e na morte de Jesus, sua própria vida
recebeu um novo significado” (KASPER apud SESBOÜÉ, 1997, p. 23). 
Na Tradição da Igreja, merece referência o fato de que
No Concílio de Latrão IV (1215) – uma dezena de anos antes da morte de
São Francisco,  o cantor da criação – recusou-se, contra os albigenses, a
espiritualização dos homens e afirmou-se sua unidade feita de corpo e
espírito, pois as coisas espirituais e materiais provêm todas do único Deus.
E o Concílio de Viena (1311-12) retomou a doutrina tomista da Alma
espiritual, forma do corpo, para reafirmar a unidade do homem (Dicionário
de Teologia Moral, 1997, p. 189). 
Certa recuperação se observa em alguns documentos e teólogos nos
últimos tempos, ainda que não se possa dizer que a referência cristológica tenha
voltado a ser tão decisiva como o foi nos primeiros tempos da Igreja (Cf. CIC 364.
382). Como é bem sabido, esta dimensão cristológica da “teologia da imagem”
também se perderá aos poucos, por sucessivos séculos, quando o ponto de
referência era, sobretudo, a Trinidade refletida na alma humana, em sua memória,
inteligência e vontade. A corporeidade, o ser imanente, retomado nas produções
teológicas das últimas décadas, tem oferecido muito para a compreensão do ser
humano às luzes das mais variadas áreas do conhecimento, com o diferencial de
serem atreladas à teologia. Tais abordagens ajudam a entender que 
Não se entende  que o ser humano está unido em espírito, corpo e alma, 
mas que é uno. (...)  A natureza do ser humano não se consuma na
dualidade de espírito e matéria,  mas na unidade da pessoa com seus atos
corporalmente espirituais e éticos (unidade substancial) (MULLER, 2015, p.
94).
Para a teologia atual, pensar teologicamente a corporeidade humana exige
27

compreender e refletir teologicamente sobre a sua integridade, da mesma forma que


pensar o universo criado nessa mesma direção, uma vez  "considerado na sua
manifestação, o corpo do homem não pode ser distinguido em contraposição à 
alma. O que nós experimentamos no corpo humano vivo é a unidade operativa dos
dois componentes [corpo e alma]” (Dicionário de Teologia Moral, p. 175 [ verbete:
corporeidade]). Pode-se dizer, de acordo com o Dicionário de Teologia Moral, que 
A maneira comum de pensar o corpo e a vida foi influenciado fortemente
pela antropologia contemporânea, que não considera mais o homem como
algo de especial, enquanto criado ou remido por Deus: criado, corpo e alma
remido, corpo e alma. Inicia-se, de preferência, de quadro terreno, de algum
modo cosmológico, e considera-se o homem no conjunto dos outros seres,
especialmente os vivos (1997, p. 171-2 [verbete: corporeidade]).
 Com isso a alma poderia indicar aquilo que se entende por pessoa, ou seja,
o aspecto que caracteriza a substância-viva-humana, que recebe como seus
atributos, o conhecimento, a vontade, os sentimentos e emoções. Por sua vez,
aquilo que se pode chamar de corpo físico, seria mais associado às questões
sensoriais e materiais. Daí a importância de se observar o corpo humano de forma
holística, em sua totalidade. Acerca disso, Rubio afirma:
A visão holística do ser humano e do cosmo, influenciada pela física
quântica e pela biologia que, na explicação da vida, desenvolve a teoria dos
sistemas vivos, pode ser assim resumida: o ser humano é considerado de
maneira integrada, superando-se os dualismos clássicos e modernos. É
visto como um sistema vivo relacionado de múltiplas maneiras com os
outros seres humanos e com o ecossistema vital do qual faz parte. A
consciência ecológica é especialmente valorizada bem como os aspectos
mais intuitivos e femininos, a colaboração, a receptividade e a perspectiva
sintética. (RUBIO, 2007, p. 279-280).
A fé cristã compreende que "Deus é Amor" (1 Jo 4,8) e quer estabelecer
morada num coração que ama (cf. Jo 14,23), valoriza ainda a ideia de que, ao
amarem-se uns aos outros, é que são reconhecidos os discípulos de Cristo (cf. Jo
13,34-35), algo importante naquilo que se relaciona à afetividade e ao cuidado à
partir de uma consideração da dignidade humana. Tal associação entre fé, amor
(caridade) e afetividade humana favorece, no seio da comunidade cristã, uma
permanente diaconia que se expressa desde os seus primórdios, rendendo-lhe
frutos, em outras palavras: carismas (cf. 1Cor 12,7). É possível afirmar, como aponta
Ladaria, que “o evento Cristo não tem outro pressuposto além do amor de Deus pelo
mundo e pelos homens. A salvaguarda da gratuidade da elevação à ordem
Sobrenatural nada mais é, portanto, que a salvaguarda dessa gratuidade radical” (cf.
LADARIA, 2016, p. 83).
Nota-se que “as cartas de Paulo constituem testemunhos vivos das
28

comunidades em que se vivia o cristianismo com uma unidade capaz de superar os


antagonismos de raça, classe social, de tradições religiosas e de culturas”
(BRIGHENTI, 2006, p. 163). O cuidado de si e do outro mostram-se como
reveladores da compreensão de que o indivíduo possui grande dignidade e que este
“alter ego" também se constitui de uma singularidade imensa em relação ao todo da
criação. No campo filosófico M. Scheler (1874-1928) demonstrou o axioma da
pessoa: "o valor da pessoa é superior a todo valor de coisas, organizações e
comunidades" (1948, p. 15, v.1).  Na antropologia teológica Ladaria afirma que
o esquema de salvação é estendido à criação, isso significa que, a partir da
salvação que ocorreu em Cristo, nele se vê o princípio à luz do qual cumpre
interpretar toda a realidade. Se o mundo foi salvo por Cristo e em Cristo,
isso significa que foi criado por ele e nele. A criação não é, então, um mero
pressuposto neutro para que depois se desenvolva a história de Deus com
os homens, mas é já o início dessa história, que culminará em Jesus
(LADARIA,  2016, p. 39). 
Após o fenômeno Jesus Cristo e até mesmo dos escritos posteriores do
Novo Testamento, o Concílio Vaticano II,  novamente reconhece que, por meio de
sua missão salvadora, “a natureza humana assumida, não absorvida, foi elevada,
também em nós, a uma dignidade sem igual. O Filho de Deus, por sua encarnação,
uniu-se de certo modo a todo homem” (Gaudium et spes, 22). Pois, 
o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do
Verbo encarnado; (...) na mesma revelação do mistério do Pai e de seu
amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao homem e lhe descobre sua
altíssima vocação” (Gaudium et spes, S 22).
E, “todo aquele que segue a Cristo, o homem perfeito, torna-se ele também
mais homem” (Gaudium et spes, 41). Sobre isso convém notar o que afirmou Villa:
"podemos dispor acerca das coisas, mas jamais da pessoa, que nunca pode ser
considerada como meio para algo, mas como fim em si mesma" (VILLA, 2000, p.
597). Paulo, por exemplo, ao falar sobre o amor de Deus (Rm 5,5), aponta que esse
tem por características a gratuidade e a misericórdia, sentimentos também humanos
os quais, influenciando o plano histórico-salvifico, são desse modo, partes
constitutivas do chamado da humanidade para a salvação (Rm 11,11). 
Após séculos,  o Concílio Vaticano II  trouxe a antropologia para a discussão
de seus temas, “afirma que a pessoa, dotada de dignidade, em razão de sua sublime
vocação para a comunhão com Deus, merece reverência e respeito, pois Deus a
respeita mesmo quando ela erra” (BRIGHENTI, 2006, p. 159). Também fala que o
homem "é um ser de relações sociais, sem as quais não pode viver nem desenvolver
seus talentos. É sujeito de direitos invioláveis, que devem ser respeitados em
qualquer regime político”  (BRIGHENTI, 2006, p. 159). A exortação apostólica pós-
29

sinodal Christifideles Laici, de 1988, escrita pelo Papa são João Paulo II diz que "a
afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo filho de
Deus ao encarnar no seio de uma mulher" (CL, 37). O mesmo documento ainda
ressalta que "a dignidade pessoal é indestrutível de cada ser humano" (CL, 37). Algo
compreensível ao cristianismo porque, 
Na unidade de corpo e alma (corpore et anima unius) o homem, por sua
própria condição corporal sintetiza em si os elementos do mundo material de
tal maneira que por seu intermédio alcança o seu ponto mais alto e alça a
voz para o louvor livre ao criador. Por tanto não é lícito ao homem desprezar
a vida corporal, mas que, pelo contrário, deve considerar seu corpo como
bom e digno de honra, como criatura de Deus que há de ressuscitar no
último dia. Ferido pelo pecado, experimenta, sem dúvida, as rebeliões do
corpo. A mesma dignidade do homem pede que glorifique a Deus em seu
corpo. (GAUDIUM ET SPES, 14).
Embora tenha havido considerável mudança de concepção ao longo da
história do pensamento ocidental desde a antiguidade, passando pelo monoteísmo
judaico até chegar ao cristianismo contemporâneo, o ser humano continua tema
central nas reflexões relacionadas à história da salvação. Por sua vez, entendendo-
se que "a origem do conceito de pessoa se encontra no terreno da experiência
religiosa, no encontro com a realidade divina" (PANNENBERG, 1974, p. 20), pode-se
notar a inegável variação de sua compreensão no decorrer da história, mas na
concepção cristã, embora variante, sempre aparece como elemento de discussão e
reflexão. Atualmente, nota-se claramente a influência das ciências humanas
modernas na compreensão acerca da pessoa, e o mesmo naquilo que se refere ao
cuidado com  meio em que o ser humano vive, onde “os princípios evangélicos se
convertem para ela em normas educativas, motivações interiores e, ao mesmo
tempo, em metas finais” (DocAp, 335). Em sentido pedagógico e formativo “Jesus
Cristo, eleva e enobrece a pessoa humana, dá valor à sua existência e constitui o
perfeito exemplo de vida” (DocAp, 335).
Percebe-se, assim, que o ser humano, centro da história da salvação, tem
uma dimensão natural essencial e é identificado como parte da própria natureza,
sendo digno de governá-la e ser sustentado pela mesma, uma vez que é criado à
imagem e semelhança divinas: “O ser humano imagem de Deus em sua existência,
seu conhecimento e sua orientação, a plenitude e consumação no amor” (MULLER,
2015, p. 150). Enquanto tal, não pode ser considerado independente desta, muito
menos em oposição à mesma, mas foi constituído digno de geri-la por conta de sua
racionalidade superior. 
Importante é, a partir do pressuposto, refletir sobre o modo de se entender e
30

configurar essa centralidade, em sua diferenciação aos outros seres humanos e ao


conjunto da natureza à luz da fé cristã, sem que tal dignidade se torne uma
superioridade que tem os demais seres como inferiores. Com isso se faz importante
buscar, na ação pastoral, a reconstrução da identidade pessoal do indivíduo, a
formação e a educação para uma liberdade autêntica. Onde emergem a acolhida e a
orientação, que atendem às necessidades básicas do indivíduo formando também
seu espírito crítico, conferindo-lhe empoderamento suficiente para um encontro com
sua dignidade personalizada. É por meio de uma comunidade acolhedora e fraterna
que se vive aquilo que Jesus mesmo viveu (cf. Mc 8,27ss; 9,33-35; Mt 16,13-17; Lc
24, 33-35). Algo assumido quase que integralmente pelo pensamento franciscano ao
longo de séculos. Pois,
Como é sabido, a visão do ser humano enquanto pessoa vai se
desenvolvendo, na revelação bíblico-cristã, em conexão com a auto-
revelação de um Deus com características pessoais. Um Deus que tanto no
seu agir salvífico – tema central no Antigo Testamento e no Novo
Testamento – quanto na ação criadora divina, é apresentado na sua relação
dialógica com o ser humano. (RUBIO, 2007, p. 261).
Levando-se em conta que o ser humano como imagem e semelhança com
Deus constitui um enunciado que o Antigo Testamento considera essencial (cf.
MULLER, 2015, p. 92), "o Salmo 8  oferece uma boa explicação: a dignidade ímpar
do ser humano e sua proximidade com Deus consistem em que foi coroado com a
glória e a honra de Deus e toma parte no poder soberano (salvífico) que Deus sobre
a criação, exercendo-o  em seu nome” (MULLER, 2015, p. 93).

3- O CARISMA FRANCISCANO COMO PARTE DOS DEBATES ACERCA DA


DIGNIDADE HUMANA QUE SE DESDOBRA EM AFETO
Importa, agora, fazer menção ao pensamento teológico franciscano, que já
abordava questões de ordem antropológica mesmo antes da ampla produção
acadêmica de uma “antropologia teológica” na Igreja. Vale destacar o fato de que
"São Boaventura levou a cabo uma síntese magistral entre a mística especulativa de
tendência dionisiana e a Mística afetivo-especulativa da tradição cistercense, tendo
como paradigma a vida mítica de São Francisco de Assis” (LIMA VAZ, 2000, p.38) já
em sua época. Pensar o homem como um ser que se relaciona e que possui
dignidade, porque isto lhe foi conferido por Deus, era algo comum entre os
intelectuais seguidores de Francisco de Assis. Outro elemento importante a se
destacar, que remete automaticamente a teologia eclesial ao franciscanismo, é a
31

consciência de que 
O homem chamado a conformar-se a Cristo, enquanto constituído em seu
ser pelo chamado à comunhão com Ele, é um ser “pessoal”. Seu ser
“pessoa” não é algo acrescentado ao ser homem, mas uma característica
essencial desse ser. (LADARIA, 2016, p. 72).
Conscientes de que as relações interpessoais, para o homem, geram frutos
como a compaixão, a caridade, a ideia de comunidade e fraternidade, os quais na
atualidade são refletidos em âmbito de antropologia teológica, pois remetem ao
próprio Criador, os franciscanos espelharam-se na experiência mística do fundador
para vivenciar o ardor evangélico intensificando o cuidado e a caridade em relação
aos pobres e marginalizados. Sobre isso Ladaria afirma que “ a plenitude do homem
não consiste apenas em sua relação pessoal com Deus, independentemente dos
outros, mas na inserção com todos os irmãos no corpo de Cristo” (cf. LADARIA,
2016, p. 97).
Miller nota que São Boaventura aprofundou a questão da integridade da
pessoa humana ao tratar sobre os níveis do ser, onde percebe que aparece nos
entes individuais aquilo que chamava de imagines trinitatis, ou seja  "como sombras
das coisas inanimadas (umbra), como vestígio nos seres animados (vestigium) e
como imagem nas pessoas criadas (imago)” (MULLER, 2015, p. 150), e completa
afirmando que “o ser humano como ser pessoal espiritual e corpóreo-espiritual
integra em si todos os três níveis. No entanto, os centra em si de tal modo deve ser
considerado a imagem de Deus por excelência" (MULLER, 2015, p. 150). Logo,
entende por si mesma aquilo que é provindo da vontade divina, portanto, bem
supremo para todos. Sobre o conceito de pessoa, a partir da ótica franciscana:
A condição de criatura finita implica uma relação transcendental de
dependência com relação ao Criador, e essa mesma finitude em sua ultima
solituto ou projeção reflexiva de sua existência é, ao mesmo tempo, a razão
pela qual não se pode fechar às  relações ‘ super egoístas’  com as demais
pessoas fechar (MERINO; FRESNEDA,  2005,p. 390).
Mesmo a Teologia da Graça quando permeada pelo carisma franciscano, ao
fazer referência ao conceito de pessoa, apresenta “a ideia da pessoa concebida
como uma situação existencial que, a partir dessa ordem da existência, penetra todo
ser até sua mais profunda ipseidade" (MERINO; FRESNEDA,  2005,p. 390). Por sua
vez, a antropologia teológica aponta “que a origem e a definição do ser humano são
interpretadas à luz da auto-revelação histórica de Deus em Jesus Cristo. Ela serve à
orientação espiritual e ética na vida com base na fé cristã” (ZILLES, 2011, p.58).
Uma vida que se estrutura na unidade entre outros seres humanos e com o universo
32

criado. Esta atenção especial dada à atividade humana em meio fraterno é o que
caracteriza fortemente boa parte da produção filosófico-teológica franciscanas. E
caracteriza algo útil à antropologia teológica por associarem-lhe objeto de estudo e
fonte de inspiração. 
Acerca deste elemento vale mencionar que "os teólogos franciscanos, como
os demais pensadores cristãos, reconhecem que a razão humana, a partir da
relatividade de sua existência, pode chegar ao conhecimento do ser absolutamente
necessário" (MERINO; FRESNEDA,  2005,p. 368), entendendo-se por necessário, o
cuidado para com as necessidades básicas do outro. A Teologia Moral Franciscana
contempla “a pessoa em sua totalidade essencial, como sujeito do chamado de
Deus, e a resposta que ele realiza livre e responsavelmente” (MERINO; FRESNEDA,
2005, p. 420). Aqui o sujeito é chamado a seguir o Cristo modelo, que deve ser
apresentado à comunidade de fé pelo formador de consciências ou pelo pastor de
almas por meio de suas próprias virtudes, comportamentos e testemunho em
relação ao universo criado. De modo que converta mais pelo testemunhar do que
pelo agir. Em outros termos, como aponta Duns Escoto, "o mundo manifesta, em sua
referência a Deus, sua permanente dependência em relação à vontade divina"
(ESCOTO apud MILLER, 2015, p. 156). 
Na Segunda Recensão de sua Carta aos Fiéis, é possível notar que São
Francisco de Assis ensina a lidar com aquilo que provém da corporeidade "com seus
vícios e pecados” (37-41). Mas no sentido do corpo, enquanto matéria marcada pelo
pecado, como demonstração fenomenológica dos desejos e vícios decadentes,
percebe-se grande desprezo e repulsa da própria carne por parte do santo. Nesse
sentido, o coração do homem é, sem dúvida, um grande elemento de investigação
para a ética franciscana, embora na evolução teológica, atualmente a “moral
franciscana contempla a pessoa em sua totalidade essencial como sujeito do
chamado de Deus, e a resposta que ele realiza livre e responsavelmente" (MERINO;
FRESNEDA, 2005, p. 420). Logo, "a teologia franciscana, seguindo a linha
agostiniana e por sua vez fiel a cosmovisão bíblica, contempla e trata do coração do
homem" (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 429) e cuida também de sua integridade
física, como consideração ao ser pessoa deste. Assim, pode-se dizer que é atribuída
grande importância à vida afetiva, e consequentemente, à experiência fraterna que
transforma o interior humano. Uma vez que "não é suficiente a pura especulação
[filosófica] teológica para a perfeição do conhecimento, convém levar em conta as
33

vivências afetivas das verdades teológicas" (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 429). 


O pensamento franciscano reconhece que há, na atitude compassiva, a
necessidade de parar diante do sofrimento alheio que afeta os olhos, permitindo-se
sentir emoção e dor. Tal "compaixão inicia-se com o reconhecimento daquele que é
tratado como não-sujeito, quer dizer, como não-pessoa. O outro é digno de
compaixão porque sua dignidade se encontra ferida” (MERINO; FRESNEDA, 2005,
p. 429). Nisto fica claro que uma atitude compassiva é aquela que reconhece o
sofredor, o excluído, o doente, o pobre; o que provoca a necessidade de um agir, de
modo a proteger e cuidar daquele outro, o mais excelso elemento da fraternidade. E
nos atos de misericórdia que se revela a grandeza que existe no coração humano,
pois diante da mais deprimente das situações que a vida pode apresentar é que o
homem demonstra o quanto possui de Cristo Jesus dentro de si e nos seus atos
(ORLANDO, 2003, p. 18).
E uma vez que o homem se caracteriza por ser a síntese perfeita entre o
espírito e a matéria, compreende-se a sensibilidade do mesmo aos dois elementos
de que é constituído. Portanto, os elementos do espírito provindos do alto o tornam a
chave da ação e intervenção divina terra. Esta "projeção para Deus, para os outros e
para o mundo” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 421) torna o homem um ser
essencialmente sociável. Tal atitude responsável, portanto, caracteriza a tomada de
consciência sobre a dor e a necessidade do próximo, provocando verdadeira
mudança de comportamento no agente transformador. A partir daí, segue-se o sair
de si, correspondente à necessidade sentida de transformar a realidade, auxiliando
aqueles que estão marcados pela dor cuidando de suas feridas. Tal ato consiste em
assumir o sofrimento alheio, trazendo-o para si, gerando um acompanhamento ativo
de cuidado e empatia.
Desde o início em que se dá o sentimento de compaixão a partir da
observação e do acompanhamento do outro na comunidade. Há um processo
interno de tomada de consciência e transformação espiritual, fraterna e social. Isto
situa o homem num incessante estado de transformação, metanóia, provocado o
tempo todo pelas relações entre o eu-agente, o tu e o nós da comunidade. Uma vez
que o pensamento franciscano reconhece que "o todo do mundo expressa, assim, a
bondade do seu criador, que é também seu aperfeiçoador” (FERNANDES, 2007, p.
86), tudo é marcado pela guia do amor, considerando o Sumo Bem como o
verdadeiro amor. Sendo que diante da compaixão e da caridade divinas expressas
34

no mundo não há espaço para o mal e suas forças diabólicas, "toda a moral se
concentra no amor a Deus e ao próximo. A responsabilidade e a tarefa da pessoa
consiste em vivê-lo e atualizá-lo” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 431).
3.1- O franciscanismo e sua práxis pastoral: princípios de vida
evangélica
A forte experiência humana e religiosa de Francisco de Assis em seu
encontro pessoal com Cristo possibilitou-lhe “identificar a presença de Deus na
história humana, como sumo Bem, como infinita bondade” (MOREIRA, 1996, p.123-
124 ). Não obstante a isso, ele também passou a associar a padecente e dolorosa
condição de sofrimento do Crucificado Jesus Cristo aos homens e mulheres que
sofriam com as injustiças sociais, as doenças e tantos outros males físicos que
favoreciam a exclusão. O resultado de tal experiência favoreceu ao poverello fazer
uma leitura da história a partir do próprio Salvador, que também sofreu e assumiu
em tudo a condição humana, exceto o pecado (cf. MERLO, 2005, p.19). Deste
modo, pode-se afirmar que “Francisco de Assis foi, no século XIII, o homem do
retorno ao Evangelho” (LECLERC, 1983, p. 9). O teólogo franciscano Elói Leclerc
demonstrou ainda, que
O que dá à experiência evangélica franciscana sua verdadeira dimensão e
seu poder de sedução é, precisamente, esse encontro entre o Evangelho e
as aspirações profundas do homem, entre a mensagem de Jesus e as
forças criativas da história (1983, p. 10). 
Dessa experiência nasceu toda uma escola de pensamento Franciscano.
Escola porque consiste numa gama de pensadores e eruditos que, entrelaçados
com a prática da vida do fazer-se “pequenino de Jesus”, desenvolveram um modo
de pensar, de ser e de educar com princípios específicos e particulares. Tais
princípios, acabam por dar vazão à formas de vida e à visões de mundo
caracterizados pelo “estilo franciscano todo próprio, que fazem perceber que o
reconhecimento do Deus do Evangelho (...) está inseparavelmente unido à
transformação dos nossos relacionamentos humanos” (LECLERC, 1983, p. 9). 
Constituindo verdadeiros princípios de vida, alguns elementos promotores de
afeto e alteridade podem ser facilmente identificados. Sendo um primeiro deles a
ideia de criação como testemunha do Pai, haja vista que, passando todo o universo
a ser visto sob o olhar do Senhor, Francisco empenhou-se em enxergar, por toda
parte, os vestígios do autor, crente de que todos os seres “testemunham a perfeição
de seu amor de Pai” (MOREIRA, 1996, p. 124), bem como sendo todos eles
35

“testemunhas do amor que, por natureza, se relaciona, se comunica, se doa e que,


assim sendo, recria constantemente o milagre da vida”. (MOREIRA, 1996, p. 124). 
No Cântico do Irmão Sol, obra de grande importância literária italiana,
Francisco apresentou parte de seu pensamento integrador ao associar todas as
criaturas à uma “irmandade” mística; e nisso induz o leitor a entender que “a
natureza abre-se e dá-se somente àqueles que previamente se desapropriam de si e
eliminaram resistências e opacidades” (MERINO, 1999, p. 219). Logo, demonstra
indiretamente que “sente-se vinculado não só com Deus, mas também com todos os
elementos que integram o grande espaço do universo com quem vive uma forte
unificação afetiva” (MERINO, 1999, p. 218). Merece menção o fato de que 
Ele havia feito um grande vazio em seu ser onde teria cabido a presença do
divino e do mundo. Graças à pobreza radical que Francisco alcançou em
seu ser, capacitou-se para fazer viver e receber grande riqueza ôntica dos
seres que compõem o mistério da criação” (MERINO, 1999, p. 219). 
Um segundo princípio franciscano que corrobora com o amor fraterno é a
ideia de centralidade de Cristo, onde “a abordagem que Francisco faz de Jesus é
existencial e preponderantemente prática” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 164),
entendendo assim que Ele é a perfeição do Criador e da Criatura, portanto, “nele se
desvela o mistério da pessoa humana e nesta Ele se revela” (MOREIRA, 1996, p.
124 ). Considerando que tudo foi feito n’Ele e por Ele (Jo 1.3; Hb 1.2), não foi difícil
aos franciscanos, tanto na prática formativa dentro da Ordem dos Frades Menores,
quanto na teoria trabalhada pelos intelectuais, entenderem que “o Amor que, por
natureza é comunicação, gera de maneira inefável o diferente de si mesmo,
estabelecendo a dinâmica do próprio modo de ser do Amor” (MOREIRA, 1996, p.
124). Em vista disso, Jesus é o Filho amado de Deus, a Palavra encarnada e o
Revelador do Pai, portanto, “na vivência e na reflexão de Francisco, Jesus Cristo é
fundamentalmente o mediador entre Deus e os homens” (MERINO; FRESNEDA,
2005, p. 165), e o despojamento de Cristo (kénosis) favoreceu o grande encontro
entre Deus e a humanidade, algo imitável neste mundo, por todos aqueles que o
desejarem de coração, e no caso franciscano com influência direta da ação divina
por meio do sofrimento do próximo. Ao relacionar este despojamento de si ao
serviço e à doação ao próximo:
a degradação corpórea de indivíduos atingidos por uma doença devastadora
coloca a pessoa ‘sadia’ diante de um dilema solene. A lepra torna-se
enigma, mas ao mesmo tempo viático para chegar a compreender o mistério
da encarnação de Deus (MERLO, 2005, p. 21).
Por terceiro princípio aparece cada pessoa humana, que é enxergada como
36

síntese e culminância do próprio universo, um verdadeiro “microcosmos”. Entende-


se que a pessoa humana é a chave para se desvendar e se decifrar o mistério do
próprio universo, o mesmo “Frei Francisco recorda a seus frades ‘benditos’ que na
base de sua vocação esteve o encontro com os leprosos” (MERLO, 2005, p. 21). Em
Cristo, homem e Deus, se estabelece a perfeita união do corpóreo e do sagrado;
com isso, o homem é aquele capaz de conferir sentido a todas as coisas. Quando é
fiel a sua vocação, é capaz de realizar seu ministério em relação a todas as
criaturas: ser o porta-voz, senhor e sacerdote de todas elas. Cabe portanto ao
homem zelar, proteger e louvar a Deus em nome de todas as criaturas. Sobre a
relação homem-universo, Merino cita o teólogo J. Maritain: “Francisco Compreendeu
a tempo que a natureza material, ‘antes de ser explorada em proveito nosso por
nossa indústria, reclama de algum modo para ser amansada por nosso amor’”
(MARITAN apud MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 239).
A pessoa humana, por sua capacidade de amar é partícipe da mesma vida e
do mesmo amor que dá vida a todos os seres. São Francisco e grande parte dos
irmãos que aderiram ao seu projeto sentiam-se em plena comunhão com o criador e,
por isso, uniam-se à sua obra. Chamavam-na toda de “irmã”. Sendo o serviço a
maior expressão do amor, sentiam-se servos de todos e de toda criatura. A alegria
também caracteriza meio inspirador para a produção literária franciscana e as artes
em geral, com a natureza manifestada em suas cores, formas e belezas, grande
expressão da beleza divina. Também se pode reconhecer – e porque não? – que de
um ponto de vista personalista: 
O franciscanismo, como realidade vivida e tematizada, pode contribuir com
novos elementos sumamente valiosos, parte da convicção de que o homem
é imago dei que tem uma grande dignidade pessoal e o dom da liberdade
que sempre tem de defender e proteger” (MERINO, 1999, p. 196-197).
A recusa do domínio e do poder, da posse e da superioridade, tem sua
manifestação no serviço-doação total. Amar quem não é amado, amar àqueles que
não podem retribuir, esta é a grande manifestação do amor divino entre os homens.
O franciscano são Boaventura dizia que o homem colabora com a criação quando
cuida e zela por ela. Embora 
O século XIII seja, como é sabido, o século das grandes construções
teológicas. Seus grandes Mestres irão, pois, aprofundar a natureza da 
contemplação mística  do ponto de vista da ciência teológica e determinar
sua significação na economia da vida cristã (LIMA VAZ, 2000, p. 38).
Em relação ao humanismo franciscano, pode-se afirmar que, de Francisco,
“se alimentarão os grandes expoentes do Renascimento, que o tomarão como ponto
37

de partida. Daí afirmarem alguns que São Francisco, com suas ideias, foi um dos
próceres do movimento Renascentista” (BAGGIO, 1991, p. 50). Provavelmente, ao
buscar uma vida evangélica de modo autêntico, o jovem Francisco de Assis não
planejou um modelo pedagógico cristão sistematizado para os seus
contemporâneos, menos ainda para o mundo. No entanto, “aquilo que Francisco
viveu pessoalmente, ele o propôs, pelo menos nas grandes linhas” (ZAVALONI,
1999, p. 11). Por meio de seus ensinamentos aos frades, às Irmãs clarissas e
mesmo aos leigos, o poverello sempre deixou transparecer o forte traço educador e
formador de sua personalidade, sempre firmado sobre o amor fraterno transformado
em altruísmo verdadeiro.
Não somente os homens possuem um caráter filial, mas também todas as
coisas porque todas elas foram feitas no Filho e para o Filho. Todas elas
revelam o Pai e revelam o Filho no qual foram pensadas e criadas. Esta
compreensão fundamenta o caráter fraterno de todas as coisas. Somos
irmãos e irmãs na casa do Pai que nos quis seus filhos. A vivência disso
gera um humanismo enternecedor e uma confraternização universal com o
mundo humano e sub-humano nos moldes vividos exemplarmente por São
Francisco de Assis”. (BOFF, 2003, p. 303).

4- DA VIDA E DAS INTUIÇÕES FORMATIVAS E PEDAGÓGICAS DE


FRANCISCO DE ASSIS
4.1- Francisco de Assis e a experiência do outro em sua vida
Filho de burgueses, nascido em 1181-82 (?), em Assis-Itália, recebeu o
nome de João em seu batismo, sendo posteriormente chamado Francisco por seu
pai. Não se sabe se tal “apelido” fora-lhe pela origem francesa materna, por causa
das viagens que Pedro Di Bernardoni fazia à França para aquisição de produtos
comercializados, ou se devido ao fato de o jovem Francisco interessar-se demais por
literatura francesa desde cedo, como as histórias de cavalaria e romances. O
historiador Grado Giovanni Merlo afirma que
Sobre a vida real de Francisco, filho de Pedro de Bernardone, até o
vigésimo quinto ano de idade, não ficamos sabendo grande coisa: os
acenos a uma crise pessoal despertada por uma longa doença, mas
também a atração por um glorioso destino terreno, na qualidade de homem
de armas, que lhe haveria permitido superar a condição burguesa de seu
“berço” (MERLO, 2005, p. 23).
Sabe-se que estudou na escola paroquial São Jorge, em Assis e, até por
volta dos vinte anos ajudou seu pai numa loja de tecidos, quando resolveu deixar a
função para fazer nome como membro de cavalaria. 
Era, contudo, como que naturalmente cortês nos costumes e nas palavras,
não dizia a ninguém palavras injuriosas ou torpes, por um propósito de
acordo com o seu coração. Antes, sendo um jovem brincalhão e boêmio,
propôs-se a não responder de jeito nenhum aos que lhe diziam coisas
38

torpes. Espalhou-se, por isso, a sua fama por quase toda a província, de
modo que muitos que o conheciam diziam que haveria de ser algo de
grande. (LTC, 3, 1-2)
Sabe-se que levou vida boêmia, sendo pródigo nas festas e ocupando-se
com as gastanças do dinheiro que ganhava do pai. Cordial, atraía amigos e divertia-
se com eles, sendo por vezes chamado de “jogral” entre seus pares, pois “tinha
adquirido uma ‘cultura’ cavalheiresca e cortês, da qual permanecerão traços também
na sua experiência posterior” (MERLO, 2005, p. 23). Em meio às suas idas e vindas,
após recuperado de uma doença, decidiu voltar às guerras tendo o firme propósito
de fazer fama como cavaleiro. Isto o conduziu mais de uma vez à Apulia em busca
de fama e conquistas de cavalaria. Narra-se que, certo momento de sua vida,
perdendo a guerra entre Assis e Perugia, ficou por um ano preso nessa cidade, de
onde sairia mais reflexivo e já inicialmente mudado, além da saúde física e espiritual
bastante abaladas. Numa das hagiografias a seu respeito pode-se ler:
Depois de adulto, tendo demonstrado uma inteligência sutil, exerceu a arte
do pai, isto é, o comércio, mas de maneira muito diferente porque era mais
alegre e liberal, gostava de brincadeiras e cânticos, dando a volta pela
cidade de Assis de dia e de noite, junto aos que eram parecidos com ele,
muito generoso para gastar, a ponto de consumir tudo que podia lucrar em
comilanças e outras coisas. Era, por isso, muitas vezes repreendido pelos
pais, pois lhe diziam que fazia tão grandes despesas por si e pelos outros
que não parecia filho deles mas de algum grande príncipe. Mas como os
pais eram ricos e o amavam com ternura, toleravam-no nessas coisas, sem
querer perturbá-lo. (Legenda dos Três Companheiros 2)
Em uma de suas empreitadas de guerra, viajando de Espoleto para a
Apulha, "sonha com um Palácio cheio de adereços militares e armas. (...) Mais tarde,
um sonho completa visão:  o senhor dissuade-o de continuar a viagem" (IRIARTE,
1976, p. 28); algo que em princípio causara admiração e espanto, além de grande
empolgação para prosseguir na carreira militar; na etapa de dois sonhos, lê-se que
foi apresentado um diálogo onde se dizia: “a quem queres servir? ao servo ou ao
Senhor?” (Legenda dos Três Companheiros, 11, 1-5), provocando-lhe intensa
reflexão acerca da própria existência. Mesmo assim, embora decidisse voltar às
batalhas com armas de morte, revestido de armaduras e rumando novamente para a
guerra, deparou-se com um leproso que o levou a “cair em si”, fazendo-o capaz de
enxergar para além dos olhos da carne, tanto que este, até então excluído por
muitos, merecera um beijo nas mãos e no rosto. 
Tal fato, marcante demais em sua vida, motivou-lhe entregar-se mais à
contemplação de Deus, tanto dentro de si mesmo, quanto no rosto sofredor do outro
que fenomenologicamente ou espiritualmente se apresentava diante dele. Francisco
39

recorda, em seus escritos, “a passagem da experiência individual para a fraternal”


(Testamento de São Francisco de Assis) (MERLO, 2005, p. 26). A repulsa que em
princípio um leproso lhe causara fora descrita no Testamento pouco antes de sua
morte, levando-o a mencionar tal fato como uma transformação de alma, mudança
de visão ao reconhecer que o amargor transformara-se em doçura após o referido
momento. O impacto transformador característico da auto-aceitação e da
compreensão sobre o próprio ego e, porque não, também sobre a pessoa do outro,
foi o que permaneceu de melhor neste encontro histórico, registrado em seu
Testamento:
Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma
vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras
insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles
e eu tive misericórdia com eles. E enquanto me retirava deles, justamente o
que antes me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de
corpo. (FONTES FRANCISCANAS, 2009, p. 188).
Não importa se tal relação de afeto se deu com um leproso de carne e osso,
real; com um leproso que havia dentro de si; ou mesmo com o próprio Jesus Cristo
“fingindo-se” miserável diante do assisiense em processo de conversão. Pertinente é
notar como a hagiografia menciona o resultado de tal fato, explicando que a ação
Divina foi o que o levou a beijar as mãos do leproso provocando-lhe íntima relação
com o outro-excluído, a ponto de provocar transformação em sua vida, que
extrapolou os limites da descoberta evangélica: “vivia com os leprosos, servindo a
todos por amor de Deus, com toda a diligência” (1 Cel 7,17).
O amargor e repulsa sentidos antes do processo de conversão, narrado por
Francisco em seu Testamento, foi apresentado pelos hagiógrafos eclesiásticos e,
bem posteriormente, pelo historiador franciscano Lázaro Iriarte: “o temperamento de
Francisco, toda delicadeza e finura, revoltava-se ao espetáculo da carne apodrecida
de um leproso” (IRIARTE, 1976, p. 29). Por isso mesmo, também o impacto
transformador de tal situação também provoca espanto e admiração para quem se
depara com a história de vida do santo, porque enxerga, claramente que
Francisco era triste com os tristes, sofria com os que sofriam, sabendo
consolar de modo tão delicado e convincente que, no ato mesmo
afugentava toda tentação em tristeza. quando não podia prestar ajuda real e
eficaz a um irmão enfermo, ao menos, manifestava-lhe profunda compaixão.
Sentia as dores de seus irmãos que sofriam como se fosse suas próprias
dores (ZAVALLONI, 1991, p. 50).
Fato é que tal relação de misericórdia tocou profundamente sua vida daí
para frente, a ponto de fomentar uma verdadeira convivência fraterna primeiro entre
estes de "carne podre"; depois entre aqueles indivíduos que posteriormente se
40

juntariam a ele no cuidado com este outro em estado de pobreza, doença e


exclusão; e pouco depois, juntaram-se a ele aqueles eruditos que mais tarde se
dedicariam à produção filosófico-teológica acerca da própria pessoa humana, sob o
olhar carismático de Francisco e seus primeiros companheiros. A experiência deste
encontro foi registrada pelo biógrafo Tomás de Celano: 
Ele, que tinha natural aversão pelos leprosos, julgando-os a monstruosidade
mais infeliz do mundo, encontrou-se um dia com um, quando andava a
cavalo por perto de Assis. Ficou muito aborrecido e enjoado mas, para não
quebrar o propósito que fizera, apeou e foi beijá-lo (2Cel 9, 9-15).  
De antemão percebe-se que, o fato transformado em doçura foi precedido
de um processo de conversão inimaginável aos olhos de quem não enxerga isso a
partir da fé, portanto Lázaro Iriarte aponta que
A experiência decisiva com que a graça o derrubou de uma vez, permitam-
me a expressão, foi a dos leprosos. O temperamento de Francisco, todo
delicadeza e finura, revoltava se ao espetáculo da carne apodrecida de um
leproso.  Ver a hora de provar Definitivamente a Cristo quanto estava
disposto a "conhecer sua vontade. (IRIARTE, 1976, p. 29).
Aquele sentimento despertado a partir de tal relação o conduziu
posteriormente para junto dos leprosários, lugares fétidos, onde Francisco de Assis
passou a ocupar-se por horas com o cuidado e o zelo pelo próximo, como afirma um
de seus hagiógrafos: “Dirigiu-se para onde moravam os leprosos, deu dinheiro a
cada um deles e beijou-lhes a mão e a boca. Assim substituiu o amargo pelo doce e
se dispôs corajosamente para o que ainda estava por vir” (2Cel 9, 10-15). O tal beijo
no leproso, ou nos leprosos, caracteriza a cura para sua falta de amor e elemento
favorável à conversão de vida. Uma verdadeira pedagogia do encontro afetuoso, que
tornou-se conteúdo e elemento chave para entender a conversão e a prática
formativa de Francisco de Assis em relação seus companheiros de vida consagrada.
Francisco aprendeu a amar os leprosos e, com isto, fez a experiência de Deus. Por
amar o que é repugnante aos olhos é que foi capaz de amar a Deus que não via (cf.
1Jo 4, 20-21 ). 
Francisco queria provar por si mesmo o que queria dizer ser pobre, coberto
de trapos e obrigado a estender a mão para implorar a caridade pública. (...)
Perto da porta da Basílica de São Pedro, trocou suas roupas com os
andrajos de um pedinte, um dos muitos que havia por ali.  Começou a pedir
esmolas no meio deles, em francês. (IRIARTE, 1976, p. 28).
Mesmo assim, "nos seus momentos de exaltação espiritual, Francisco falava
em francês", a língua aprendida de sua mãe, que representava seu espírito delicado
e fino (IRIARTE, 1976, p. 29). Deixar a família, os amigos, a vida burguesa,
renunciar a uma vida própria e luxuosa, um bom matrimônio, uma nova família e
filhos, por um novo ideal Cristão de pobreza e miséria, ocupando-se com aquilo que
41

ninguém se ocupava, caracterizou o resultado de uma alma que realmente


compreendeu muito acerca de si mesma e trouxe, para dentro de si, um pouco da
dor do outro. É possível afirmar que, em sentido psicológico, iniciou um forte
processo de autoconhecimento, renúncia do orgulho e de um ego inflamado,
autocontrole emocional e afetivo.
Ao olhar para o leproso, Francisco viu algo de si mesmo, suas mazelas,
pecados, marcas dolorosas. Por isso beijá-lo, nada mais era do que reconciliar-se
com o homem interior, ou seja, beijar as próprias lepras e aquilo que há de mais
horroroso dentro de si mesmo. Pode-se afirmar que o beijo no leproso foi, na
verdade, o beijo nas próprias feridas e marcas interiores da alma humana. Aqui há
relação imediata com o tema da dignidade da pessoa humana, por meio do ato de
beijar, atrelado ao aceitar-se, constitui-se a identificação e valorização do próprio ego
e do outro que é extensão desse ego. 
Somente depois desse fato é que a fala do crucifixo de São Damião confere-
lhe o “envio” por parte de Cristo: a famosa frase “vai e reconstrói a minha casa, que
como vês, está em ruínas” veio após o contato afetuoso com a dor e o sofrimento de
alguém que precisava unicamente de amor. Uma vez enviado por Cristo, renunciou a
todos os bens temporais numa praça publica de Assis, ficando nu e devolvendo ao
pai Pedro Di Bernardoni tudo o que provinha deste. Uma verdadeira profissão de fé
de Francisco e sua radical entrega nas mãos de Deus sob os cuidados da Igreja. As
vestes de “penitente” que assumiria logo em seguida faziam parte deste processo,
onde paulatinamente a ação do Espírito o transformara por completo. Dizem as
legendas e fontes históricas que o mesmo passava horas nos leprosários junto aos
pobres. Mendigando, também deteve-se à reconstrução de três pequeninas igrejas,
interpretando ao seu modo o pedido que o Senhor lhe fizera. Isto também ensinou
aos irmãos que a ele se uniram naquela grande empreitada se “servir ao Senhor”.
Pois assim ensinam as Escrituras: "Quem ama seu irmão permanece na luz e não se
expõe a tropeçar" (1Jo 2,10).
A aprovação de seu estado de vida com os primeiros seguidores se deu em
1209. Viviam de forma muito penosa: não tinham residência fixa, dormiam onde
encontravam abrigo; de Rivotorto, num rancho abandonado, fizeram sua primeira
estadia prolongada, mas saíram para ceder o lugar a um camponês. Em Santa Maria
da Porciúncula construíram uma palhoça e ali residiam. Esta se tornou a primeira
“casa” dos frades; o coração da Ordem. Nestes inícios, os menores eram
42

missionários, andando por toda Europa e mesmo no Oriente. Homem de muita


oração, Francisco se punha horas em silêncio, solitário, rezando em locais afastados
– eremitérios. E foi numa dessas experiências que recebeu os Estigmas de Cristo
(as 5 chagas), que levou consigo até a morte; configuração total a Jesus Cristo,
expressa em sua própria carne.
Encontrar-se com o leproso, ir para junto dos excluídos, fazer a experiência
com o crucificado e viver intensamente a oração e o apostolado assumido diante do
Crucificado, favoreceu ao pobrezinho de Assis encontrar-se consigo mesmo, em sua
lepra e pecados interiores e o mesmo pode-se afirmar em relação ao Cristo Senhor,
único e verdadeiro Deus. Demonstrando claramente que por meio da relação
fraterna com aquilo que é exterior a si – os leprosos, Jesus, Deus Pai, os irmãos, a
Igreja – pode-se estimular o encontro consigo mesmo. Merino (1999) afirma que
para Francisco de Assis " Cada pessoa tem o seu próprio rosto e a sua específica
personalidade, cada animal tem a sua própria missão, cada coisa o seu próprio
significado, e cada momento e circunstância o seu próprio valor, por que tudo é
graça” (p. 32). 
Tal mudança atitudinal de Francisco é preciosíssima se forem levados em
conta os conceitos científicos atuais: construtivista e interacionista de Piaget e
Vigotsky; psicanalítico de “projeção”; “comportamento operante” de Skinner
(inculcado até aquele momento pelo preconceito e ojeriza social aos leprosos); e
mesmo filosóficos como mostra Adorno (1950) ao afirmar que a fonte do preconceito
é uma personalidade autoritária ou intolerante; a corporeidade e a extensão da
consciência de Merleau Ponty; ou ainda face ao personalismo de Mounier. Em
outros termos, o amor doado àquele que caracteriza o leproso da atualidade e do
ambiente em que se vive é a maior demonstração do amor que se oferece a Deus e
à própria essencialidade humana. Bernardi (2007) afirma que:
A atitude de Francisco não era diversa. Ele mesmo afirma, segundo Celano
(1 Cel 17) que a visão dos leprosos lhe era tão insuportável que tapava o
nariz ao ver suas cabanas a duas milhas de distância. O encontro porém
encurta as distâncias, transpõe limites, desvenda valores e cria novas
situações de vida e de amor. Isso, no entanto, se torna possível a partir de
uma reconciliação consigo mesmo. Ao se reconhecer frágil – ‘como
estivesse em pecado’ – se reconcilia consigo mesmo e, ao fazê-lo,
descobre no leproso um ser humano igual a ele e aos demais e por isso
digno de ser abraçado e beijado (BERNARDI, 2007, p. 20).
Deste modo, faz-se preciso compreender que “tanto em Francisco como na
experiência franciscana, tem máxima importância a presença do tu, seja divino, seja
43

humano” (MERINO, 1999, p. 64). Algo extraordinário para a época em que nasceu
Francisco e, quando vivenciado plenamente até hoje, continua a marcar a vida social
humana e a espiritualidade cristã. Do mesmo modo que a intuição afetiva em
Francisco de Assis reinou sobre o pensamento racional, “igualmente na escola
franciscana reinou a intuição emotiva como meio para conhecer o real e sintonizar
com ele” (MERINO, 1999, p. 65). Cuidar de modo particular, atento ao indivíduo
como um ser especial, era característica dos primeiros franciscanos. Algo priorizado
dentro do carisma até os dias de hoje, sempre se inspirando no fundador:
Vindos de horizontes os mais diversos, os irmãos aprendiam a viver juntos
respeitando a diferença de cada um. De fato uma fraternidade como esta
não se parecia nada com um agrupamento sob a chefia de uma autoridade
central, como uma brigada. Seu ideal não era a uniformidade, bem ao
contrário. Cada irmão era, para Francisco, um ser singular, uma pessoa
única. Dele se disse que a árvore lhe ocultava a floresta, e sem dúvida foi o
mais belo elogio que dele se podia fazer. Ele não via as pessoas em geral, o
coletivo humano, mas o indivíduo, a pessoa viva, concreta, com sua história
singular, sua fisionomia própria, sua vocação original. (LECLERC, 2000, p.
61-62)

4.2- Francisco de Assis e o pensamento franciscano


O mesmo se pode afirmar acerca dos pensadores franciscanos, onde é
possível encontrar uma prioridade da sabedoria de vida – inter-relacional – sobre a
ciência; sabedoria esta que tende a “buscar e encontrar valores que são estímulos,
não só do conhecer, mas também do viver e do sentir” (MERINO, 1999, p. 65).
Sabedoria que se traduz na arte de bem viver, amar, interpretar, conviver, trabalhar e
morrer. Assim o Franciscanismo expressa imensa simpatia por tudo o que se refere
ao ser humano, caracterizando-se pelo verdadeiro amor ao Homem e às suas
particularidades, suas formas de ser, de pensar e de agir. mesmo antes das ciências
modernas refletirem sobre o ser humano em sentido antropológico, o pensamento
fransciscano já se ocupava disso de modo intenso. Importante notar que 
a característica de Francisco é o amor Seráfico, ardente e unicamente
Seráfico.  ele se tinha lançado no amor com todas as forças de Sua
estupenda sensibilidade. quando se quer obter alguma coisa dele basta
dizer "pelo amor de Deus". com essa motivação não sabe a resistir a nada
(ZAVALLONI, 1991, p. 62).
Também potencializa os valores como bondade, comunicação, comunhão
fraterna, amizade, etc. que são formas, métodos ou expressões práticas de sua
espiritualidade e filosofia de vida. As orientações feitas por Francisco de Assis a um
ministro da Ordem, responsável pelo cuidado dos frades em determinada região
mostram uma parte do intento da comunidade iniciada ao seu redor. Em muitos
44

sentidos diversa das comunidades religiosas de então, sendo mais focada na


atenção e no cuidado com o indivíduo em sua particularidade:
Ama aos que assim contra ti procedem, não exigindo deles outra coisa
senão o que o Senhor te der. E justamente nisso deves amá-los, nem
mesmo desejando que eles se tornem cristãos melhores. E isto te valha
mais do que a vida em eremitérios. E nisso reconhecerei que amar
realmente o Senhor e a mim, servo dele e teu, se fizeres o seguinte: não
haja irmão no mundo, mesmo que tenha pecado a não poder mais, que,
após ver os teus olhos, se sinta talvez obrigado a sair de tua presença sem
obter misericórdia, se misericórdia buscou. E se não buscar misericórdia,
pergunta-lhe se não a quer receber. E se depois disso ele se apresentar
ainda mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, procurando
conquistá-lo para o Senhor, E tem sempre piedade de tais irmãos (Fontes
Franciscanas, 2004, p. 119-120).
Transformado em modelo favorável para a produção de uma verdadeira
antropologia teológica, Francisco de Assis caracterizou o “espelho de perfeição” que
serviria de molde para toda a sua fraternidade e, consequentemente, patrimônio
eclesial imitável em qualquer tempo, lugar e situação histórica.
Adequado aos ensinamentos da Igreja, favoreceu o desenvolvimento de
habilidades, comportamentos e mesmo pensamentos os quais, sendo imitados na
prática cotidiana em diferentes atividades e funções eclesiais e sociais, ainda hoje
alcançam resultados esplendorosos. Será esta relação entre ação pastoral e carisma
franciscano que norteará todo o corpo deste trabalho, com o intuito de apresentar o
quanto o amor fraterno pode servir de base para a construção de uma evangelização
firmada no afeto e no cuidado que se desdobram em zelo pastoral. Neste sentido, “o
olhar franciscano deixa, cientificamente, as coisas em sua própria materialidade e
em seu conteúdo próprio concreto para poder ver e descobrir, em sua profundidade
o que têm de vestígio ou pegada” (MERINO, 1999, p. 26) divinos. 
Sabe-se, desde muito, que “a educação favorece o desenvolvimento físico,
intelectual e moral da pessoa humana, para a plena consciência de si para o pleno
domínio de si” (ZAVALONI, 1999, p. 19), a isto soma-se a recíproca. Também é
importante mencionar que "o segredo desse estilo pedagógico reside nessa imensa
capacidade de perceber as necessidades dos irmãos e socorrê-los da maneira mais
sutil possível, a ponto de parecer normal seu modo de agir" (BERNARDI, 2003, p.
21).
A pastoral, nascente da reflexão acerca desse ponto de vista tem outro
objetivo, o “agir” sobre o indivíduo, influenciando-o e aprimorando-o por meio da
fraternidade e da comunhão entre os batizados. O processo formativo de uma
comunidade, a partir da óptica franciscana, em sua dinamicidade “indica o conjunto
45

das iniciativas que, de fato, orientam a educação na realização de objetivos


precisos” (ZAVALONI, 1999, p. 19). Para realmente favorecer o desenvolvimento
integral da pessoa, capaz de levar à maturidade, a ação formativa na comunidade
não deve restringir-se a poucos âmbitos – moral e pessoal – mas precisa “incluir
também o nível afetivo e o modo que tal nível se integra ou permanece estranho às
metas de crescimento, seja humano, seja espiritual de um indivíduo” (ZAVALONI,
1999, p. 19). Como apontou Bernardi  ao falar sobre os escritos de São Francisco de
Assis, citando uma parte de sua regra não dublada, onde se diz "tudo o que
desejardes que os homens o façam a vós, fazei-o também a eles. E ainda: guarda-te
de jamais fazer a outrem o que não querias que te fosse feito” (BERNARDI, 2003, p.
23).
Assim, entende-se que “o fato de ter presentes tais dimensões da
personalidade permite ao educador [formador] adotar um modo de ajudar ou uma
‘relação de ajuda’ em sentido próprio, mais aderente à pessoa mesma e, sobretudo,
colher de maneira mais precisa o que a pessoa está efetivamente buscando”
(ZAVALONI, 1999, p. 21). Somente quem está reconciliado consigo mesmo pode
auxiliar e acompanhar o outro no seu amadurecimento espiritual. A este respeito,
Merino afirma que “o franciscano é uma pessoa que se aceita a si mesma (...), abre-
se às suas próprias possibilidades pessoais e se dispõe a indefinidos encontros com
o não-eu" (MERINO, 1999, p. 116). Mesmo consciente de que formar-se na
comunidade e formar a comunidade pode ser até doloroso porque força o indivíduo a
se libertar daquilo que lhe amarra, este caminho é parte integrante do próprio
itinerário cristão. Em outros termos: "a libertação, por isto, é um parto. E um parto
doloroso! O homem que nasce desse parto é um homem novo" (FREIRE, 1987, p.
19 ).
Por meio do confronto com o outro a comunidade torna-se o local favorável
para a geração e o desenvolvimento de valores, habilidades e capacidades.
Portanto, a relação com o universo todo que cerca o franciscano desenvolve-se de
forma afetiva, uma intensa aplicação do termo na vida do indivíduo. O amor à Deus
garantirá melhores condições de evolução familiar, social e mesmo de aprendizado
para a comunidade, pois ensina que o outro é sagrado, criado à imagem e
semelhança divinas. Isso também auxiliará a tomada de consciência quanto ao hoje,
ao aqui e agora; à interrelação estabelecida neste momento; que é o tempo da graça
e da oportunidade para o ser humano crescer e evoluir. Isso se dá porque o
46

franciscanismo não é só um modo de vida peculiar de relacionar-se com Deus, com


o homem e com o mundo; é além disso, um modo de viver e de interpretar as
relações do homem com o homem e do homem com a natureza" (MERINO, 1999, p.
165). Será essa forma de lidar com o outro quem criará, no indivíduo, um estilo, um
modo de ser, conjunto de tratamentos que favorecem o desenvolvimento de virtudes
e vivências sempre novas e marcantes no seio da comunidade. 
Afinal, aponta o Concílio Vaticano II: “o ser humano foi criado na graça e na
glória de Cristo, que é o ser humano por excelência” (Gaudium et spes, 22). Não há
novidade alguma ao se afirmar Francisco de Assis um homem ímpar, que olhava
para o Cristo pobre e servidor, tendo-O como único livro a ser estudado, único
manual a ser lido e apreendido. Desejava simplesmente ser um homem entre os
homens, mergulhado na condição humana, embora intensamente fiel aos
ensinamentos provindos do magistério eclesiástico de sua época. Através de gestos
e comportamentos, era capaz de conquistar a simpatia de todos devido à sua
gentileza, cordialidade e capacidade de amar intensamente. A partir daí, pode-se
afirmar que Francisco é, com certeza, um intenso amante do ser humano;
antropológico por excelência, amou o homem em sua integridade e essencialidade,
como Cristo mesmo o fez: “amou-os até o fim” ( Jo 13,1 ). 
A modernidade colocou diante de nós, para não retirar mais, o desafio de
compreender a expansão das rupturas, as quebrar permanentes de
padrões. Francisco, ao ensinar como lidar com o diferente, transcende à
temporalidade medieval para fazer-se sempre atual. Em sua figura
paradigmática repousa um outro encantamento, capaz de sugerir pistas
importantes na tarefa de ‘reencantar a educação. (BERNARDI, 2007, p. 12)
Pode-se afirmar que a graça atua no homem a ponto de modificar o mais
íntimo de seu ser, superando até mesmo os limites corpóreos (físicos). Não seria
diferente com Francisco de Assis, que se destaca pela ação divina em meio aos
processos de conversão e transformação radical pela qual passara em sua jornada:
Transformação produzida pela graça divina recebe na linguagem teológica o
nome de graça criada, que não é um dom distinto e acrescentado à
comunicação que Deus faz de si, nem uma realidade distinta e
acrescentada ao ser do homem, mas o novo modo de ser do justo, o efeito
finito da presença infinita de ser nele. A graça criada é, simplesmente, o
homem novo, remodelado e recriado à imagem de Jesus Cristo pela infusão
de sua vida (RUIZ DE LA PEÑA, 1998, p. 61).
Ainda que jamais tenha se declarado pedagogo ou educador, Merino afirma
que “a arqueologia viva do franciscanismo é Francisco de Assis e a experiência
primitiva da fraternidade” (1999, p. 62), e prossegue dizendo que esta “é como o
código genético que condiciona e quase determina o conteúdo e a expressão do
47

pensamento posteriormente elaborado” (MERINO, 1999, p. 62). Assim percebe-se


que o franciscanismo não nasce de um sistema teórico, criado e elaborado a partir
de conceitos filosóficos e teológicos puramente abstratos e racionais, “mas nasce, se
potencializa e amadurece a partir de uma experiência vivida e compartilhada”
(MERINO, 1999, p. 62). Portanto somente é possível e compreensível a partir de
uma expressão pessoal e comunitária, podendo-se afirmar que “para os mestres
franciscanos, a preocupação com o ser humano tem como inspiração primeira o
comportamento de Francisco e da primitiva fraternidade” (BERNARDI, 2003, p. 27), 
o que foi vivido pelo poverello, foi transformado em pensamento pelos mesmos. E
nesse sentido, o dom carismático franciscano, vivenciado pelos seguidores de
Francisco de Assis, caracteriza-se pela vivência e anúncio do Evangelho em
comunhão fraterna com outros irmãos, no seio da comunidade de fé, a Igreja, em
permanente abertura à missão, onde o Senhor enviar (cf. MERINO, 1999, p. 31). 
A partir das intuições pedagógicas de Francisco de Assis e dos seus
seguidores é possível notar que, na escola franciscana, o cerne está no sentimento
que se desdobra em amor fraterno capaz de promover o incessante cuidado e
preocupação para com a pessoa do outro em sentido amplo: seus sentimentos,
sonhos, aspirações, limitações, corporeidade e cognição. O santo de Assis
"chamava todas as criaturas de irmãs e de uma maneira especial, por ninguém
experimentada, descobria os segredos do coração das criaturas” (BERNARDI, 2003,
p. 34). Com isso, pode-se defender a tese de que é indubitável, “para o
franciscanismo, no entanto, [que] conhecer o homem se tornou um desafio
permanente, uma vez que está convencido que o próprio Deus o escolheu para se
fazer presença visível no mundo” (BERNARDI, 2007, p. 19). 
O Livro da Sabedoria, ao refletir sobre a busca pela sabedoria divina
enquanto conhecimento e autoconhecimento, pode servir de introdução para se
compreender melhor o intento ao falar sobre a busca franciscana: “A sabedoria é
radiante, não parece, facilmente é contemplada por aqueles que a amam e se deixa
encontrar por aqueles que a buscam” (6, 12-13 ). Tal passagem pode auxiliar a
compreender melhor um elemento importante da espiritualidade que despontou em
Assis por volta de 1206, através de um novo modo de ver o outro, de forma a
conferir a este o direito de ser quem é e agir de acordo com aquilo que se acredita
como sendo provindo de Deus mesmo. Como afirma Roberto Zavalloni (1991, p. 17):
na vida de Francisco, predominou O coração a tal ponto que escondia a
48

altura irradiante de seu intelecto.  em toda sua atividade humana e religiosa,


revela ele uma inteligência intuitiva que, ao mesmo tempo, está preparada
para a ação, é realizadora, dramática.
Isso porque o franciscanismo nada mais é do que o esforço por vivenciar,
plenamente, o Evangelho de Jesus Cristo nos mais diversos ambientes sociais aos
moldes de Francisco e Clara de Assis. Sobre isso, Irani Rupolo aponta que “a
filosofia franciscana em sua abordagem antropológica, funda-se na dimensão
relacional, na carência e no amor como força maior” (RUPOLO, 1998, p. 31),
entendendo-se, obviamente, a filosofia franciscana como aquela associada ao
pensamento teológico franciscano. Junto a tal vivência evangélica, pode-se unir as
potencialidades a serem trabalhadas por quem adere ao movimento franciscano, a
saber: prática de uma vida de virtudes, empenho pela vivência dos valores cristãos e
evangélicos, atitudes de humildade, pobreza e fraternidade, dentre outros
elementos. Zavalloni afirma que “o conceito de fraternidade se dilata e se caracteriza
franciscanamente na medida em que abrange todo o criado” (ZAVALLONI, 1991, p.
43),  e continua: “o conceito de fraternidade assim entendido tem um significado
muito mais profundo do que o de solidariedade, por mais nobre pedagogicamente
válido que este possa ser” (ZAVALLONI, 1991, p. 43). Pois entende-se a partir
daquilo que caracteriza a graça atuante no mundo, sendo que “o que caracteriza a
relação Deus-criatura é diverso de qualquer dependência causal no interior do
mundo, pois autonomia e dependência crescem na mesma medida, e não ao
contrário” (MIRANDA, 2009, p.96).
Quando aplicado à vida pessoal e fraterna este conteúdo teológico, e
também antropológico em sentido comportamental humano, ganha força irradiadora
capaz de impregnar a comunidade onde o franciscano se insere. Muitos já sabem
que somente consegue transformar o interior humano aquele que se dedica a amar,
conhecer e cuidar do homem como um todo. E aqui entram conceitos de
misericórdia, compaixão, piedade – em sentido teológico – e mesmo alteridade,
reflexão social, empoderamento, valorização do outro, liderança consciente – em
sentido antropológico. Donde se compreende que
O segredo do estilo pedagógico de São Francisco reside no imenso Amor
que nutria por todas as criaturas e, em particular por seus confrades. Na
verdade ele foi pai e mãe para cada um de seus discípulos, tanto para com
suas necessidades do espírito quanto pelos do corpo. Depois de ter
inspirado o Sublime ideal da vida religiosa, vigiava ele atentamente para
que  o maligno não os tentasse com a tristeza ou com o desânimo
(ZAVALLONI, 1991, p. 49).
É a partir da vida, das alegrias, das tristezas, e também do sofrimento
49

humano que vocabulário e saber franciscanos se estabelecem como Escola de


Pensamento. Toda a condição humana, em suas mais diversas questões sociais e
espirituais caracteriza-se como “próprio da fraternidade franciscana, de sua forma de
viver e de ser, de sua cultura espiritual, de sua religiosidade e de sua fé vivida”
(MERINO, 1999, p. 63). 
Tudo isso, em condições possíveis de serem consideradas, norteia e
caracteriza por inteiro o modo de agir e interferir no mundo que os franciscanos
assumem para si. Onde as vivências comunitária e pessoal, fraterna e subjetiva,
compartilhada e interiorizada, caminham lado a lado favorecendo a compaixão, a
empatia e mesmo a alteridade do indivíduo em relação ao seu próximo, em outros
termos, ao outro. Em suma, “é a dimensão existencial franciscana, a vivência
transformada em ‘com vivência’, que age como energia espiritual e como
pensamento” (MERINO, 1999, p. 63). Por sua vez, 
A arqueologia do pensamento franciscano, em especial do bonaventuriano,
apresenta estas realidades: Deus-homem-mundo, mas as três
contempladas a partir de Cristo, modelo único. Por isso, podemos afirmar
que o discurso ético teológico Franciscano é ‘teo-cristo-antropocêntrico’,
porque quanto mais se eleva à especulação teológica, mais se observa a
unidade, a síntese e a redução de todo o existente por mediação de Cristo
ao Deus Criador. (MERINO; FRESNEDA,  2005,p. 415).
Nota-se, portanto, um verdadeiro “modo de ser franciscano”, ou “modus
vivendi franciscano”, onde não somente a Filosofia, a Teologia e o comportamento
que daí nasceram são uma filosofia, teologia e um comportamento “do coração
inteligente e da inteligência que ama” ( MERINO, 1999, p. 67), mas todo o saber
inspirado no carisma de Francisco de Assis é, consequentemente, permeado por
valores, virtudes e atitudes que ressaltam a dignidade do outro. Rompendo com as
situações de exclusão, discriminação, alienação e pré-julgamentos acerca dos
indivíduos, o franciscanismo nunca se coloca diante da realidade e da vida alheia em
sentido de confronto ou como um determinador de regras a serem obedecidas, mas
insere-se na realidade e na vida do outro numa ligação interna  de empatia,
alteridade e resiliência permanentes. Roberto Zavalloni afirma:
O corpo humano, criado à  imagem do Filho,  é assumido pelo Verbo do Pai.
O Filho de Deus, sendo não somente verdadeiro Deus, mas também
verdadeiro homem, na encarnação devia assumir um verdadeiro corpo
humano. Francisco fala disso claramente na Carta a Todos os Fiéis, 
dizendo que o Verbo se torna homem assumindo um verdadeiro corpo
humano, em sua natureza humana: “verum recipit carnem humanitatis et
fragilatis nostrae” (2CtFi, 4) (ZAVALLONI, 1991, p. 43).
Para confirmar essa tese, uma frase de São Boaventura calha muito bem:
“sem amor, nenhum conhecimento é perfeito” (São Boaventura,1 sent,d.10, a.1, q2,
50

fund 1). Em outros termos, “para pensar em profundidade  e conhecer em


profundidade há que amar em profundidade, pois só ao amor se abrem todas as
portas” (MERINO, 1999, p. 68). Eis o motivo que leva os franciscanos a se
associarem aos sofrimentos e misérias humanas. Desde o olhar amoroso de São
Francisco para todos os seres, até o mais íntimo altruísmo voluntário, o
Franciscanismo instala-se no mundo como um modo diferente de enxergar o
homem, sendo capaz de oferecer a este uma nova oportunidade de pensar-se. 
De modo natural por conta de sua excelsa posição se comparada às demais
criaturas, a “alma está orientada e imediatamente ordenada para Deus em seu
interior, representa uma configuração Divina pela disposição profunda de suas
potências"(MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 423). Também é dotada de uma potente
e tensa propensão para a verdade, e isto lhe instiga a busca incessante por
descobrir e encontrar esta verdade nas coisas, nos costumes, nos seres e nos
outros indivíduos.  partindo dessa busca pela verdade no seres, o homem passa por
si mesmo e, ali, alavanca se para encontrar a verdade absoluta.       
   
5- O PENSAMENTO FRANCISCANO COMO FORMAÇÃO DAS
COMUNIDADES CRISTÃS NA ATUALIDADE
Diante da busca incessante pelo sentido da existência do ser humano no
mundo, o franciscanismo oferece reflexões que levam o homem a colocar-se como
um ser itinerante, em permanente procura de si na face da fraternidade universal.
Reconhece que os sentimentos de auto-suficiência e segurança excessiva de si
levam o indivíduo a um verdadeiro desencontro com os elementos chaves da
essência humana; permanentemente camuflando-se atrás de aparências,
pensamentos utilitaristas, vivência de um não-ser, distorção da própria
personalidade. Em outras palavras, a filosofia e teologia franciscanas, as quais no
desenrolar da história provocaram reflexões  em torno das mais diversas questões
humanas, entendem que este "ser caminhante" vive em busca constante, itinerário
permanente rumo ao Sumo e grandioso Bem. Com isso, ser seguidor de Francisco
de Assis e dos franciscanos que lhe sucederam "tem como ponto de partida o desejo
de encarnar na vida moral concreta, o ideal divino; como meio, nossa relação
vinculante com as criaturas (...); e como meta, a paz e a felicidade" (MERINO;
FRESNEDA, 2005, p. 423).
Caracterizando-se por ser uma escola de pensamento que age a partir do
51

cotidiano e voltada para o cotidiano onde o indivíduo está e constrói suas ações e
seu modo de ser no mundo, “é este ou aquele sujeito que é considerado, não outro;
esta ou aquela criatura que é exaltada, não a outra” (MOREIRA, 1996, p. 126). Aqui
predominam a particularidade, o cuidado, a atenção a ser dada ao indivíduo, e não
uma ideia de massa, como algo diluído na coletividade, sem expressão particular. “É
justamente o reconhecimento da personalidade de cada ser humano que inspira a
pedagogia da escola e que lhe confere um caráter personalizado, participativo e
democrático” (MOREIRA, 1996, p. 126) constituinte de uma incessante busca pelo
“Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (Legenda Perusina, 70). Por isso,
“do mesmo modo que em Francisco reinou a intuição afetiva sobre o pensamento,
igualmente na escola franciscana reinou a intuição emotiva como meio para
conhecer o real e sintonizar com ele” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 65).
 Nesse sentido é afirmado, pelo franciscanismo, que o espírito humano é
voltado para os outros seres, no movimento que favorece o encontro, a relação e
somente através da troca que acontece neste momento é que pode realizar-se
enquanto indivíduo.  Desta forma a alma humana "contém em si uma capacidade
Divina, enquanto é imagem e semelhança de Deus (...).  também a vontade tende ao
infinito, porque  somente  com a conquista do sumo bem ela fica a pena mente
preenchida” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 424). Em sua concepção, a moral
Franciscana ensina que "os outros não se reduzem a simples e anônima multidão à
massa sem rosto humano, mas formam fraternidade (e igreja) em vinculação vital e
recíproca, tanto em nível pessoal, como em nível comunitário" (MERINO;
FRESNEDA, 2005, p. 425). Além disso,
As fontes franciscanas concebem o corpo com certa positividade, porque
Francisco o vê envolvido com todas as criaturas no movimento ascensorial 
rumo a Deus.  Traçam as linhas do desenvolvimento da vida espiritual do
homem, o dinamismo da alma e da Meta para qual tende (ZAVALLONI,
1991, p. 111-2).
Assim, o encontro com o mundo é também oportunidade de encontro
consigo mesmo. Longe de ser um simples objeto apenas para cumprir uma ordem
programada, como uma máquina, o homem pode decidir, escolher, recusar e, com
isso, vive e explora a própria liberdade. Ou seja, a ética Franciscana é uma moral
dialogal, embasada na fé e na espiritualidade cristã, onde a relação interpessoal e
inter-relacional favorecem a descoberta e, depois também, o exercício pleno da
liberdade plena. Esta moral resulta do exercício de uma vida virtuosa firmada em
Jesus de Nazaré e também resulta na liberdade que se funda no modo de ser e de
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se comportar do mesmo Cristo. Daí se afirmar ser  "o cristocentrismo fundamento da


moral Franciscana" (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 427). Sempre que vivencia
todas as suas potencialidades, o homem cumpre a vontade de Deus para si mesmo
e se realiza enquanto ser integrado no mundo. Tal postura de respeito, cuidado,
cooperação que o franciscanismo conclama a comunidade a ter para com toda a
criatura é o que se traduz, em linhas gerais, por ética Franciscana. 
Neste sentido, entre as condições para o desenvolvimento de uma
aprendizagem do indivíduo em sentido formativo numa comunidade pastoral, é
possível mencionar os fatores externos e internos à fraternidade. Quando internos
há de se levar em conta a integridade da saúde física e mental; os fatores cognitivos
(maneira pela qual os indivíduos adquirem, interpretam, organizam e empregam os
conhecimentos relacionados a mística e a fé cristã) e os emocionais (sentimentos,
interesses, tendências, valores, emoções), que integram todos os campos da vida de
uma pessoa. Já os externos, consistem naqueles fatores referentes às questões
sociais (origem e desenvolvimento familiar, escolaridade, lazer, socialização etc.)  alé
dos pedagógico-formativos, que constituem o modo de evangelizar característico de
cada líder ou comunidade.
A fraternidade franciscana qualifica-se como Fraternidade apostólico-
Itinerante. os Frades menores, como os Doze,  são chamados a estar com
Cristo (Mc 3,14; 1Cel 24)  e a colaborar com a sua missão de salvação
mediante o anúncio do reino, da conversão e da Paz. seguimento de Cristo
pobre, humilde e crucificado e participação da sua missão evangelizadora
são os elementos constitutivo se qualificam A fraternidade Franciscana
(CONTI, 2004, p. 310).
 Com isso, o desenvolvimento humano, em sua completude, é um processo
integrado que abrange as variáveis de cada indivíduo, em permanente articulação
com o meio onde se promove um verdadeiro processo de evolução espiritual e
compreensão de mundo. A psicologia cognitivista postula que o desenvolvimento
humano se dá nas áreas cognitiva, psicomotora, socioafetiva. Aspectos tais que
constituem os elementos fundamentais para o processo de evolução espiritual e
mesmo desenvolvimento humano, e que já foram apontados no passado pelo
pensamento franciscano. Ainda de acordo com Martino Conti (2004):
O clima espiritual da fraternidade franciscana e o andar dos frades pelo
mundo são assim regidos pela regra: ‘Sejam mansos, pacíficos, modestos,
brandos e humildes, falando a todos honestamente como convém (RB 3). 
animados pelo Espírito das bem-aventuranças (mansos e pacíficos) e
adornados pelas virtudes cristãs (modestos, brandos e humildes), os frades
vivem e proclamam o Evangelho do reino com a palavra tornada digna de
crédito pelo testemunho da vida (CONTI, 2004, p. 314).
Além do mais, a afetividade, de acordo com a psicologia, consiste na
53

capacidade individual de experimentar o conjunto de fenômenos afetivos


(tendências, emoções, paixões, sentimentos) que brotam a partir das relações
interpessoais, ou até mesmo particulares. Deve ser entendida como o estado
psicológico do ser humano que pode ou não ser alterado mediante as diversas
experiências positivas ou negativas e este vem a passar durante a vida. De acordo
com Piaget (1983) a manifestação da afetividade se dá nos sentimentos, desejos,
interesses, tendências, valores e Emoções além de outros elementos e acontecem
em todos os campos da vida. Henri walon , Por sua vez, entendia que a afetividade
pode acelerar ou retardar a aprendizagem e o desenvolvimento da criança,
influênciando até mesmo a sua inteligência (1968, apud Oliveira, 1992). Wallon
destaca que "a afetividade e a inteligência constituem um par inseparável na
evolução psíquica, pois ambas têm funções bem definidas e, quando integradas,
permitem à criança atingir níveis de evolução cada vez mais elevados" (apud
ALMEIDA, 1999, p. 51). 
Se foi o Deus amor quem tudo criou, não há mal puro, ódio puro ou erro
puro, mas o que há é a corrupção do bem, diluição de parte da bondade depositada
no coração humano, como ensinava Santo Agostinho. Ver tudo com otimismo é ver o
bem doado por Deus em tudo e em todos. Pois,  “a relação Franciscana com o Tu,
com a comunidade, com Deus, com a história e com a natureza não se reduz a uma
bela expressão e explicação fenomenológica, mas conota uma mística de
participação. É uma relação mais afetiva do que mental, mais existencial do que
categorial, mais vivencial do que conceitual “ (MERINO, 1999, p. 115).
Em outros termos, um interventor na sociedade, colocando-se sempre no
“lugar do outro” e assumindo as dores e limitações impostas pelos confrontos e
embates pessoais e fraternos, de modo a tornar-se sempre melhor enquanto ser
humano e agente de transformação social é o que a comunidade de fé mais precisa
nos dias atuais. Desse modo, o autoconhecimento, a capacidade de reconciliação
com a própria história e com o meio em que se vive resultam numa grande marca
pedagógica franciscana onde a interrelação estabelecida por meio deste encontro
com o outro (fraternidade) acaba caracterizando uma verdadeira pedagogia do
afeto. 
Com o advento da função simbólica que garante formas de preservação dos
objetos ausentes, a afetividade se enriquece com novos canais de
expressão. Não mais restrita à trocas dos corpos, ela agora pode ser nutrida
através de todas as possibilidades de expressão que servem também à
atividade cognitiva (Almeida, 1999, p. 75). 
54

Todo o saber e estudo subordina-se à veneração, à devoção, à piedade, à


sabedoria, afirmam os teólogos franciscanos ao reconhecerem que “‘Saber’ ou
‘ciência’, incluídos os mais variados métodos, apontam para a comunhão com Deus
e com todas as suas obras, particularmente com a pessoa humana” (MOREIRA,
1996, p. 125 ).  Aqui aparece o primado do amor sobre todo o saber; da vontade
sobre a inteligência. Todo conhecimento, todo saber, são meios para se chegar ao
bem. A oração e a devoção jamais podem ser supressas pelo saber ou pelo
conhecimento das coisas, 
Acertadamente diz São Boaventura que este mundo é ‘um belíssimo
poema’, onde palpita uma grande Presença e onde pode ser percebida uma
infinitude de referências e simbolismos sumamente enriquecedores para o
espírito humano” (MERINO, 1999, p. 240). 
Assim, “um elemento que caracteriza esta tenaz e coerente continuidade é
dado pela insistência em apontar em Cristo o artífice supremo de qualquer elevação
humana” (ZAVALONI, 1999, p. 31). Moreira aponta que “o mundo não é uma obra
acabada. O Criador renova e recria constantemente a beleza de sua obra” (1996, p.
126). Uma vez que toda criatura se prepara, de um modo ou de outro, para a
entrega definitiva de si mesma ao Sumo Bem, ao Amor total, “a pessoa além de
preparar a si mesma, se irmana e se sente corresponsável com todas as criaturas
nessa tarefa” (MOREIRA, 1996, p. 126). Todo o serviço prestado é meio de
progresso, de evolução, para si e para o universo. A inquietação franciscana consiste
nesse inconformismo e desejo de servir a tudo e a todos para o aperfeiçoamento da
comunidade cristã, e mesmo não-cristã.

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta busca pelo aperfeiçoamento, a espiritualidade franciscana busca


também os diferentes meios para evoluir e progredir, acolhendo todo tipo de saber
como capaz de se chegar ao Sumo Bem. Sejam as ciências, ou a Teologia e mesmo
a vida pastoral comunitária, onde todos alcancem uma parcela dessa Verdade que é
Cristo. Para tanto, oferece ferramentas para um autêntico encontro com o Criador
por meio da vida fraterna. O respeito da individualidade, em sentido espiritual-
teológico, se inspira na relação trinitária e se desenvolve na comunhão solidária dos
irmãos, que respeitam-se mutuamente a partir da compreensão de que o outro é
pessoa, tem dignidade e merece grande consideração enquanto tal. 
A relação entre Pai e Filho e o Espírito Santo é dinâmica, um não exclui o
55

outro nem anula o outro. Há unidade no amor, cooperação nas ações, amizade no
atuar. Cria-se com isto uma atitude empática entre liderança e membros das
comunidades, com relações recíprocas de afeto e cuidado. Esta relação de troca de
respeito e empatia favorece a transmissão de valores acima de quaisquer saberes.
Pois o amor é o pressuposto base; logo, onde há amor não há temor ou desespero.
Tudo o que é bom, consequentemente é fruto do amor que cria e recria sempre. 
Francisco de Assis, como “Cidadão do Mundo”, abriu um caminho para todos
quantos se empenham nas lutas pela causa dos menos favorecidos e
marginalizados, pela natureza e pelos bens da criação, em favor da paz e do bem. O
esclarecimento da proposta franciscana torna-se necessário, primeiro porque diz
respeito à identidade própria de cada cristão; segundo porque é, ainda hoje, capaz
de fomentar uma visão de mundo transformadora e inovadora. A clareza de quem é
o homem torna-se algo indispensável para iluminar o que fazer e como fazê-lo em
relação ao respeito ao mundo criado, além de estimular a dedicação e o afinco de
todos para com a missão eclesial. Sem que se perca de vista a necessidade da
atualização constante deste mesmo carisma frente às novas realidades do mundo
contemporâneo.
A forte experiência humana e religiosa do Poverello de Assis, em seu
encontro com o transcendente, possibilitou-lhe identificar a presença de Deus na
História humana, como Sumo Bem, como infinita bondade. Não obstante a isso,
também passou a identificar a dura realidade de dor e sofrimento em que muitos
viviam. Injustiças sociais, doenças e males pessoais e sociais que favoreciam a
exclusão de milhares de homens, mulheres e crianças levaram o jovem Francisco a
ler o mundo a partir de outro viés. Por isso, hoje, o franciscanismo procura oferecer
um contributo de verdade à questão do lugar do homem na natureza e na sociedade,
multifacetada pelas civilizações e culturas em que se manifesta a sabedoria da
humanidade.
Constituída de pensadores e eruditos que desenvolveram verdadeiros
modos de pensar e ensinar, também desenvolveram ideais e princípios de um
verdadeiro “estilo franciscano” de ser a comunidade iluminada pelo carisma
franciscano, em seu conteúdo doutrinal e atitudinal pode ser assim resumida:
centralidade do ideal cristão em seu projeto humanitário-salvífico; ideia de pessoa
humana como síntese e culminância do universo, onde o transcendente e o
imanente se entrelaçam; pessoa humana como serva de toda criatura, cuidadora e
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protetora da natureza; subordinação de todo saber à iluminação divina e aos


serviços humanista e solidário; valorização do indivíduo como centro de sua própria
formação (afetiva, humanista, social, espiritual, existencial etc.); estímulo constante a
uma sadia inquietação diante do mundo, em busca de soluções fraternas e
solidárias; abertura à todo saber (prático, teórico, familiar) como fonte de
crescimento e aperfeiçoamento pessoal; estímulo à uma ótica otimista e alegre em
relação ao mundo; e, a consciência de que toda a criação é boa, de que o mal nada
mais é do que ausência da bondade no coração do homem. 
Uma das figurações mais cristalinas de maturidade humano-afetiva, de
integração com o universo criado e do modo de relacionar-se com o próximo figura-
se no fundador da Ordem dos Frades Menores. Não obstante a isso, o que mais
impressiona o homem moderno, ao confrontar-se com a figura de Francisco é sua
inocência sadia, seu entusiasmo pela natureza, sua ternura para com todos os
seres, sua capacidade de compaixão pelos pobres e de confraternização com tudo
incluindo a própria morte. Um homem capaz de mostrar, por meio de sua vida, que a
dignidade passa necessariamente pela humanidade vivida em sua plenitude. E, além
disso, que para ser plenamente humano é imprescindível tornar-se sensível e terno
ao próximo, doando-lhe o tudo que se tem: o amor. 

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