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CURSO DE TEOLOGIA
( ) Orientador: _____________________________________________________________
( ) Leitor: _________________________________________________________________
Nota:________
Observações:______________________________________________________________
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Assinatura
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AGRADECIMENTO
especialmente meus pais pelo apoio nas horas difíceis e nas partilhas. Às comunidades
paroquiais por onde trabalhei, que muito me ajudaram a amar ainda mais o Carisma
Menor Franciscano. Ao meu irmão consangüíneo, Leonardo Henrique Piôtto, que fez sua
páscoa definitiva este ano, mesmo sendo tão jovem, deixando saudades eternas e os familiares
RESUMO
ABSTRACT
Keywords:
8
Lista de Abreviaturas
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................... 10
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................. 54
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................... 56
10
1. INTRODUÇÃO
vem sendo descaracterizada e feita mero objeto nas mãos de um sistema “líquido”
em relação aos valores humanos - oferecendo ferramentas para que o indivíduo seja
visto a partir de um novo olhar, mais humanitário e aberto à afetividade na pastoral.
Notadamente a espiritualidade franciscana propõe o resgate de valores,
virtudes e, por que não, da própria dignidade da pessoa. Logo, seria inviável
desconsiderar a pessoa humana em sua totalidade para estabelecer a relação
acima. Aqui, merece destaque o fato de que a questão mais intrigante da vida de
Francisco de Assis não consiste unicamente no ato de fazer-se pobre, mas naquilo
que há por detrás disso: a vivência radical do Evangelho por meio do amor que se
desdobra na vida fraterna. A tal ponto que se pode relacionar o próprio amor divino
manifestado na relação do homem com Deus ao amor expressado no cuidado do
homem consigo mesmo e com o outro.
Em sentido amplo, ao falar acerca da concepção franciscana em torno da
inter-relação e da pessoa humana, fala-se da alma transformada que é resultante de
relações interpessoais, ou seja, fraternas. Relações estas que se apresentam como
verdadeiro "lugar teológico", merecendo ser estudadas e aprofundadas em suas
bases teóricas e vivenciais. Obviamente que se compreende bem a estreiteza entre
a vida dedicada a uma atenção direta de cuidado e promoção social dos excluídos,
empenhando-se por defender sua dignidade e integridade, e o próprio modo
teológico de pensar franciscano.
Com isso, o tema “dignidade humana”, à luz do franciscanismo, se desdobra
em diversas facetas capazes de gerar reflexões para inumeráveis sentidos,
constituindo amplas visões de mundo e pessoa, a partir de diferentes olhares
provindos das ciências humanas e teológicas disponíveis. Por meio de um viés
humanista e ao mesmo tempo teológico, o franciscanismo estende seus ramos na
sociedade, no entanto sem pregar um humanismo descrente ou ateu. Ao contrário,
demonstra-lhe que o zelo pastoral – o amor fraterno nas ações cotidianas, a cortesia
e o afeto – quando associados a uma mística que compreende o mundo e o homem
em sentido holístico, resulta na modificação de como o indivíduo enxerga e interage
com a realidade à sua volta. Em sentido claro, apresenta reflexões pertinentes aos
campos da educação, da vida comunitária e da formação pastoral humanizadoras,
que vão desde a mística oracional à práxis socioeducativa, das múltiplas teorias
acerca do comportamento e do cuidado para com o ser humano à atenção devida
quanto a sua integridade física, além do espiritual.
12
ressaltar as qualidades ao invés dos defeitos, as virtudes ao invés dos vícios, o bem
ao invés do mal.
O estudo apresentado aqui traz uma parte dos ideais fraternos embasados
no pensamento franciscano naquilo que se associa ao amor e à afetividade como
práticas pedagógicas e formativas nas casas religiosas da Ordem dos Frades
Menores e mesmo nas comunidades paroquiais em que se inserem, não em sentido
institucional, mas em sentido pastoral e vivencial. Para início de conversa foram
traçados alguns elementos acerca da ideia de dignidade humana e da antropologia
teológica. Em nível eclesiológico, seguindo-se para as compreensões do próprio
franciscanismo neste sentido, procurou-se mostrar como a virada antropológica na
teologia pode ajudar a compreender melhor o próprio pensamento franciscano,
mesmo sendo muito posterior a este.
No desenvolvimento deste trabalho foram utilizadas, como fontes primárias e
secundárias: as Regras, o Testamento e os Escritos de São Francisco de Assis;
hagiografias relativas a São Francisco de Assis, que contém as descrições de seu
modo de agir, pensar e falar; textos de autores posteriores a São Francisco de Assis,
que comentaram ou descreveram também a vida dos frades; Documentos da Ordem
dos Frades Menores (OFM) sobre o referido tema; os conteúdos desenvolvidos por
pensadores dos inícios da escola franciscana de Filosofia e Teologia, responsáveis
pela teorização das práticas vivenciais dos primeiros frades. Tais saberes serão
confrontados com os conteúdos relacionados à Antropologia Teológica e à
Pedagogia do Afeto, que apresentam claramente a importância e o valor da pessoa
humana em sua totalidade.
passadas” (AGOSTINI, 1997, p. 23). É necessário lembrar ainda que “os costumes,
as normas morais, a ordem positiva do direito têm uma ligação estreita com este
ethos, são explicados por ele. A própria cultura... adquire sua identidade do ethos”
(AGOSTINI, 1997, p.24).
Este ethos, em sentido amplo, revela-se como uma verdadeira arte de viver
e conviver, morada, sustento da vida e, consequente cuidado da mesma. Tal sentido
é associado a tudo aquilo que se ocupa com o bem e o cuidado do ser. Uma vez que
todo relacionamento constrói conhecimento, valores, trocas entre sujeito e objeto,
torna-se fácil entender que as relações sociais articulam-se a fim de gerar
conhecimento e aprendizado constantemente. Os valores morais e até mesmo
religiosos, construídos desde sociedades antigas não cristãs, são resultados de
elementos motivadores para o aprendizado dos indivíduos a partir de testemunhos,
regras, acordos, convívio social, que tornam-se novos ethos na medida em que são
atualizados e aprimorados.
Estas normativas de convivência social formam elementos que servem para
a organização do homem em comunidades e são objeto de estudo para filósofos e
teólogos desde tempos antigos, sendo atualmente também compreendidos a partir
de outras tantas áreas do conhecimento de humanidades. O cotidiano, de comum,
corriqueiro e popular, torna-se algo visto como um gerador de relações interpessoais
merecedoras de serem estudadas e conhecidas, de onde se afere que “o grupo
forma o indivíduo, colocando-o na presença do outro, incitando-o a se colocar no
lugar do outro, levando-o a interiorizar o outro em geral, bem como seus valores”
(STOETZEL, 1978, p. 236). Exatamente porque caracteriza uma grandiosa fonte de
saberes científicos, religiosos, filosóficos, esta fraternidade universal produz
significantes conteúdos que lhe são peculiares e específicos, revelando um pouco
mais acerca de quem é o homem enquanto ser individual, e o que se diz acerca dele
quanto à sua relação com o todo da sociedade humana. O Compêndio de Doutrina
Social da Igreja aponta que "a humanidade compreende cada vez mais claramente
estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de
responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário" (CDSI, 6).
Percebendo-se diferente do universo criado, o homem estabelece relações –
afetivas ou não – com este, enxerga que “a personalidade humana é essencialmente
comunhão para fora; o simples fato de o ser humano ser corpo vivo o coloca
necessariamente numa situação de abertura, contato e relação com o mundo
17
humano e cósmico” (BOFF, 2004, p. 115-116). Interagindo com o meio que o cerca,
consegue estabelecer relação e limites entre este todo e seu próprio ego:
Como é sabido, a visão do ser humano enquanto pessoa vai se
desenvolvendo, na revelação bíblico-cristã, em conexão com a auto-
revelação de um Deus com características pessoais. Um Deus que tanto no
seu agir salvífico - tema central no Antigo Testamento e no Novo Testamento
- quanto na ação criadora divina, é apresentado na sua relação dialógica
com o ser humano. (RUBIO, 2007, p. 261).
Constituída ao longo do tempo, será esta auto-compreensão, como um ser
especial, que falará alto no desenvolvimento da reflexão que o homem tem de si
mesmo na atualidade. Algo gestado paulatinamente, mas carregado de idas e vindas
tanto no quesito antropocêntrico, quanto teológico ao longo do tempo. Mencione-se
aquilo que se pode extrair da própria Bíblia acerca dos arquétipos humanos. Embora
a concepção de “arquétipos” seja usual na psicologia analítica recente, nas
Sagradas Escrituras nota-se figuras que servem de base para grandes reflexões
quanto à dignidade e ao valor da pessoa humana, pois
Histórias dos tempos antigos não contam as coisas que aconteceram uma
única vez, e sim, as coisas que aconteceram pela primeira vez como coisas
que sempre acontecerão. Contam ‘o que nunca foi’ e ‘é sempre’, põem a
descoberto o que qualquer pessoa sabe, mas não sabe, e querem ajudar a
vencer na vida com esse saber e essa natureza preestabelecida. Seus
heróis e anti-heróis não são figuras que alguma vez existiram na História,
mas são inteiramente históricas, porque toda pessoa tem parte nelas
(ZENGER apud SCHENEIDER, 2000, p. 123).
Estas "figuras históricas", às quais toda pessoa tem parte, demonstram
claramente o quanto a relação interpessoal, e também, do indivíduo consigo mesmo
e com o universo criado, constitui verdadeiro "saber teológico", merecendo atenção
e aprofundamento. A existência e a vivência enquanto pessoa é efetivamente
verdade quando há abertura àquele que se aproxima e consideração da presença
fraterna do outro, servindo como contribuinte para o pleno desenvolvimento do ser
pessoal que renasce a partir desta inter-relação, algo demonstrável por meio de
inúmeras narrativas bíblicas (cf. CDSI, 61). Também,
O dinamismo da vida pessoal consiste, então, em um permanente sair de si
em direção ao outro, para compreendê-lo e assumir suas dificuldades, para
dar e dar-se ao outro. Na perseverança de uma relação fiel. Só assim a
pessoa se expõe ex-siste, torna-se próximo e é direcionada: o esse ad não
é uma possibilidade adicionada, um aspecto acidental, mas resulta
constitutivo do ser pessoal enquanto feito não para a solidão de uma
interioridade auto-suficiente, mas para a comunhão de uma relação na qual
reciprocamente se dá e se recebe (FORTE, 2003, p. 86).
A íntima relação de unidade provinda da Trindade criadora imprime a
necessidade da fraternidade integradora como parte da vida e essência humanas.
Como nos aponta o Compêndio de Doutrina Social da Igreja ao afirmar: "é o próprio
18
(ABBAGNANO, 2003, p. 761 [verbete: pessoa]). O mesmo autor ainda faz referência
às questões que trataram do termo pessoa no início do cristianismo, onde se passou
por um processo que indica mudança daquela tradicional visão grega de pessoa
enquanto "persona'' (máscara), para uma compreensão de pessoa enquanto
substancialidade, como no caso de Santo Agostinho. Assim, “Na complexidade da
Nascente dogmática cristológica e trinitária, os santos padres recorrerão ao termo h
hipóstasis, dando tal acento ao caráter ontológico, que deixa na penumbra a pessoa
enquanto ser histórico fechar "(BRIGHENTI, 2006, p. 157).
Logo depois, foi novamente modificada a partir de São Tomás de Aquino
que, partindo da compreensão de Boécio, entendia a pessoa como relação, fazendo
referência à relação entre as pessoas da Trindade, o mundo, o homem e a natureza,
portanto, vinculando o termo à questões de ordem metafísica, questionando sua
substancialidade. Os períodos que sucederam à Idade Média, como a era moderna
e a contemporânea, apresentaram caracterizações diferentes acerca da terminologia
"pessoa”. Mas vale mencionar que na Idade Média, onde a cristandade se
caracterizava por permear grande parte, se não toda a europa, a ideia de
individualidade era deixada de lado para a valorização do coletivo cristão. O outro
não é enxergado como um diferente, mas como extensão do corpo comunitário,
eclesial, assim "o que conta da cidadania é o coletivo. Consequentemente, já que o
ser humano não existe enquanto indivíduo, não tem direitos, mas deveres”
(BRIGHENTI, 2006, p. 157). Ou seja, “os direitos humanos são contra os direitos
civis, o que, numa sociedade teocrática, equivale a ser contra os direitos de Deus”
(BRIGHENTI, 2006, p. 157).
No período moderno por exemplo, a análise desse termo firmou suas bases
a partir da racionalidade humana, a ponto de separar a mente e o corpo. Por sua
vez, a Idade Contemporânea trouxe consigo um leque de alternativas e visões a
respeito deste mesmo conceito (cf. ABBAGNANO, 2003, p. 761-3). Atualmente, a
antropologia teológica aponta que
O homem ‘perfeito’, não é aquele que consta de alma e corpo, mas sim de
alma, corpo e espírito, em que este último elemento, na sua complexidade
teo-antropológica, é, ao mesmo tempo, transcendente, Divino e necessário
a nossa ‘ perfeição’ (LADARIA, 2016, p. 68).
A Igreja, no entanto, de um modo ou outro, se ocupa com a proclamação da
Dignidade da Pessoa Humana de longa data. Recebida da tradição bíblica, esta
pregação firma suas bases sobre Gênesis 1, 31. Esta compreensão acerca do ser
21
humano como algo "sagrado" remonta ao Primeiro Testamento, como afirma Rubio:
É pela fé bíblico-cristã que sabemos que a criação do mundo, em certo
sentido, visa o aparecimento do ser humano, imagem de Deus, capaz de se
decidir pela abertura ou pelo fechamento ao dom de Deus, capaz de um
autêntico diálogo com Ele. Visa a criação de um ser livre, capaz de escolher
por ele mesmo. Destino surpreendente para a gigantesca evolução do
universo! Para o teólogo e, em geral, para a pessoa de fé, é motivo de
alegria o fato de que, a partir da própria ciência, cientistas se abram a essa
perspectiva. O universo inteiro fica 'personalizado', como já intuía T. de
Chardin. Ou, conforme afirma a fé cristã, a criação toda apresenta um
caráter 'responsorial'. (...) Começa, assim, a ser superada a brutal
separação entre o cosmo e o ser humano, desenvolvida pela ciência
mecanicista moderna (RUBIO, 2007, p. 271).
Se é merecido à pessoa uma consideração maior – sem que se menospreze
os outros seres criados –, pode-se compreender que o cuidado corresponde ao ato
de afetar e ao mesmo tempo ser afetado pelo outro, como algo igualmente
importante. Para que haja o cuidado de modo intensificado e significativo faz-se
necessária a abertura à possibilidade de alguém que cuide. E também a disposição
pessoal de alguém permitir-se cuidar, mesmo que necessite ou não disso. Sendo,
portanto, ambos os agentes cuidadores e zeladores uns dos outros, ficam
estabelecidas relações de afeto, que são entrelaçadas à questão da dignidade
humana. Como afirma Ladaria (2016, p. 73), a unidade com Cristo faz com que os
homens também se tornem um um tu aos olhos de Deus, portanto, sendo
chamados em Cristo pelo Pai celestial, o ser pessoal humano encontra sua
plenitude, determinando com isso as diferentes formas de relação resistentes entre
os indivíduos humanos. Sobre o tema referente à Dignidade Humana e ao afeto,
Urbano Zilles afirma que
Os homens podem conhecer-se a si mesmos. Diante dele caem as ilusões.
Em suas feridas refletem-se as nossas; em seu abandono, o nosso; em sua
solidão, a nossa; em sua solidariedade, também encontramos a
humanidade em Deus, seu amor. [...] Ele une os homens em sua carência
comum de humanidade. [...] Na cruz nasce a esperança de um homem
novo, de um mundo novo, pois ele ressuscitou dos mortos e vive. O homem
resumido em Cristo é a síntese mais arrojada, o elo entre Deus absoluto e a
múltipla alteridade do mundo (ZILLES, 2011, p. 37).
O médico e pensador da educação Henri Wallon afirmou, em seus estudos
sobre o desenvolvimento da aprendizagem, que o “contágio das emoções é um fato
comprovado variadíssimas vezes. Depende do seu poder expressivo (...) e que
incessantes permutas e, sem dúvida, ritos coletivos transformaram de meios naturais
em mímica mais ou menos convencional fechar" (WALLON, 1968, p. 149). A teóloga
Olga Consuelo Caro, da pontifícia Universidade da Javeriana, de Bogotá, assim
afirma:
Hoje é um sinal dos tempos a volta ao sujeito ou o resgate da subjetividade.
22
este olhar para o outro como pessoa possuidora de grande dignidade (cf. LADARIA,
2016, p. 73-74).
2.2- O “eu” que cuida e o “eu” que é cuidado
Ao partir-se das relações pessoais e da preocupação que se desperta entre
o “eu que cuida” e o “eu que é cuidado” se vê nascer uma relação de reciprocidade
afetiva, onde se alarga o aprendizado acerca do ensinamento de Cristo: "amai-vos
uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34; 15,12). Algo correspondente à
intersubjetividade humana, sem que se perca, com isso, a individualidade.
Se o decisivo em Deus é o Amor e a Liberdade, devemos concluir que o ser
humano, criado à imagem desse Deus, deverá ser valorizado, sobretudo
pela capacidade de se decidir com liberdade (de maneira condicionada e
finita, mas real) e de amar (também de maneira limitada e penetrada de
ambigüidade, mas real). Ou com outras palavras, o ser humano, na
perspectiva cristã, é acima de tudo alguém, uma pessoa chamada a se
decidir na abertura, para acolher o dom de Deus salvador-criador e para
viver o amor concreto aos outros seres pessoais e a assumir sua
responsabilidade face ao mundo criado pelo amor de Deus. Alguém criado à
imagem de um Deus criador-salvador, chamado a criar algo novo na história
e no cosmo (RUBIO, 2007, p.265).
As produções filosófico-teológicas a respeito do ser humano formam uma
lista imensa de saberes que podem contribuir com a reflexão a respeito do mesmo,
bem como auxiliar na compreensão do que é o homem e qual seu papel no mundo.
Podem também ajudar a compreender e refletir melhor sobre a necessidade que
este possui de estabelecer relações interpessoais, sejam elas corpóreas ou
extracorpóreas. Isto abre espaço de oportunidade para reflexões em torno da
qualidade de vida fraterna, análise de exemplos dessa mesma vivência fraterna,
oportunidade para a elaboração de conteúdos filosóficos e teológicos a respeito das
próprias relações estabelecidas dentro da comunidade de fé.
Em nossa sociedade tão despersonalizada, aumenta paradoxalmente o grau
de dependência recíproca, e se sente a necessidade de ‘personalizar’ as
relações sociais, marcadas não raro pelo anonimato. A teologia Cristã,
porém, além de assumir esse dado, mostra-nos como essa dimensão social
do homem diz respeito a nossa relação com Deus (cf. LADARIA, 2016, p.
75).
Também o personalismo filosófico do século XX recobra a relação como
característica do próprio ser humano, onde "na oratória mais ou menos confusa, que
é característica dominante desta corrente, a nota conceitual que se consegue
discernir é o conceito de pessoa como auto-relação ou consciência" (ABBAGNANO,
2003, p. 759 [verbete personalismo]). Um conjunto de reflexões que se desdobra na
compreensão entre o eu e o tu, seja este último o Sagrado, a natureza, o cosmos
etc. Merecendo destaque as três doutrinas importantes a seu respeito, a doutrina
24
sinodal Christifideles Laici, de 1988, escrita pelo Papa são João Paulo II diz que "a
afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo filho de
Deus ao encarnar no seio de uma mulher" (CL, 37). O mesmo documento ainda
ressalta que "a dignidade pessoal é indestrutível de cada ser humano" (CL, 37). Algo
compreensível ao cristianismo porque,
Na unidade de corpo e alma (corpore et anima unius) o homem, por sua
própria condição corporal sintetiza em si os elementos do mundo material de
tal maneira que por seu intermédio alcança o seu ponto mais alto e alça a
voz para o louvor livre ao criador. Por tanto não é lícito ao homem desprezar
a vida corporal, mas que, pelo contrário, deve considerar seu corpo como
bom e digno de honra, como criatura de Deus que há de ressuscitar no
último dia. Ferido pelo pecado, experimenta, sem dúvida, as rebeliões do
corpo. A mesma dignidade do homem pede que glorifique a Deus em seu
corpo. (GAUDIUM ET SPES, 14).
Embora tenha havido considerável mudança de concepção ao longo da
história do pensamento ocidental desde a antiguidade, passando pelo monoteísmo
judaico até chegar ao cristianismo contemporâneo, o ser humano continua tema
central nas reflexões relacionadas à história da salvação. Por sua vez, entendendo-
se que "a origem do conceito de pessoa se encontra no terreno da experiência
religiosa, no encontro com a realidade divina" (PANNENBERG, 1974, p. 20), pode-se
notar a inegável variação de sua compreensão no decorrer da história, mas na
concepção cristã, embora variante, sempre aparece como elemento de discussão e
reflexão. Atualmente, nota-se claramente a influência das ciências humanas
modernas na compreensão acerca da pessoa, e o mesmo naquilo que se refere ao
cuidado com meio em que o ser humano vive, onde “os princípios evangélicos se
convertem para ela em normas educativas, motivações interiores e, ao mesmo
tempo, em metas finais” (DocAp, 335). Em sentido pedagógico e formativo “Jesus
Cristo, eleva e enobrece a pessoa humana, dá valor à sua existência e constitui o
perfeito exemplo de vida” (DocAp, 335).
Percebe-se, assim, que o ser humano, centro da história da salvação, tem
uma dimensão natural essencial e é identificado como parte da própria natureza,
sendo digno de governá-la e ser sustentado pela mesma, uma vez que é criado à
imagem e semelhança divinas: “O ser humano imagem de Deus em sua existência,
seu conhecimento e sua orientação, a plenitude e consumação no amor” (MULLER,
2015, p. 150). Enquanto tal, não pode ser considerado independente desta, muito
menos em oposição à mesma, mas foi constituído digno de geri-la por conta de sua
racionalidade superior.
Importante é, a partir do pressuposto, refletir sobre o modo de se entender e
30
consciência de que
O homem chamado a conformar-se a Cristo, enquanto constituído em seu
ser pelo chamado à comunhão com Ele, é um ser “pessoal”. Seu ser
“pessoa” não é algo acrescentado ao ser homem, mas uma característica
essencial desse ser. (LADARIA, 2016, p. 72).
Conscientes de que as relações interpessoais, para o homem, geram frutos
como a compaixão, a caridade, a ideia de comunidade e fraternidade, os quais na
atualidade são refletidos em âmbito de antropologia teológica, pois remetem ao
próprio Criador, os franciscanos espelharam-se na experiência mística do fundador
para vivenciar o ardor evangélico intensificando o cuidado e a caridade em relação
aos pobres e marginalizados. Sobre isso Ladaria afirma que “ a plenitude do homem
não consiste apenas em sua relação pessoal com Deus, independentemente dos
outros, mas na inserção com todos os irmãos no corpo de Cristo” (cf. LADARIA,
2016, p. 97).
Miller nota que São Boaventura aprofundou a questão da integridade da
pessoa humana ao tratar sobre os níveis do ser, onde percebe que aparece nos
entes individuais aquilo que chamava de imagines trinitatis, ou seja "como sombras
das coisas inanimadas (umbra), como vestígio nos seres animados (vestigium) e
como imagem nas pessoas criadas (imago)” (MULLER, 2015, p. 150), e completa
afirmando que “o ser humano como ser pessoal espiritual e corpóreo-espiritual
integra em si todos os três níveis. No entanto, os centra em si de tal modo deve ser
considerado a imagem de Deus por excelência" (MULLER, 2015, p. 150). Logo,
entende por si mesma aquilo que é provindo da vontade divina, portanto, bem
supremo para todos. Sobre o conceito de pessoa, a partir da ótica franciscana:
A condição de criatura finita implica uma relação transcendental de
dependência com relação ao Criador, e essa mesma finitude em sua ultima
solituto ou projeção reflexiva de sua existência é, ao mesmo tempo, a razão
pela qual não se pode fechar às relações ‘ super egoístas’ com as demais
pessoas fechar (MERINO; FRESNEDA, 2005,p. 390).
Mesmo a Teologia da Graça quando permeada pelo carisma franciscano, ao
fazer referência ao conceito de pessoa, apresenta “a ideia da pessoa concebida
como uma situação existencial que, a partir dessa ordem da existência, penetra todo
ser até sua mais profunda ipseidade" (MERINO; FRESNEDA, 2005,p. 390). Por sua
vez, a antropologia teológica aponta “que a origem e a definição do ser humano são
interpretadas à luz da auto-revelação histórica de Deus em Jesus Cristo. Ela serve à
orientação espiritual e ética na vida com base na fé cristã” (ZILLES, 2011, p.58).
Uma vida que se estrutura na unidade entre outros seres humanos e com o universo
32
criado. Esta atenção especial dada à atividade humana em meio fraterno é o que
caracteriza fortemente boa parte da produção filosófico-teológica franciscanas. E
caracteriza algo útil à antropologia teológica por associarem-lhe objeto de estudo e
fonte de inspiração.
Acerca deste elemento vale mencionar que "os teólogos franciscanos, como
os demais pensadores cristãos, reconhecem que a razão humana, a partir da
relatividade de sua existência, pode chegar ao conhecimento do ser absolutamente
necessário" (MERINO; FRESNEDA, 2005,p. 368), entendendo-se por necessário, o
cuidado para com as necessidades básicas do outro. A Teologia Moral Franciscana
contempla “a pessoa em sua totalidade essencial, como sujeito do chamado de
Deus, e a resposta que ele realiza livre e responsavelmente” (MERINO; FRESNEDA,
2005, p. 420). Aqui o sujeito é chamado a seguir o Cristo modelo, que deve ser
apresentado à comunidade de fé pelo formador de consciências ou pelo pastor de
almas por meio de suas próprias virtudes, comportamentos e testemunho em
relação ao universo criado. De modo que converta mais pelo testemunhar do que
pelo agir. Em outros termos, como aponta Duns Escoto, "o mundo manifesta, em sua
referência a Deus, sua permanente dependência em relação à vontade divina"
(ESCOTO apud MILLER, 2015, p. 156).
Na Segunda Recensão de sua Carta aos Fiéis, é possível notar que São
Francisco de Assis ensina a lidar com aquilo que provém da corporeidade "com seus
vícios e pecados” (37-41). Mas no sentido do corpo, enquanto matéria marcada pelo
pecado, como demonstração fenomenológica dos desejos e vícios decadentes,
percebe-se grande desprezo e repulsa da própria carne por parte do santo. Nesse
sentido, o coração do homem é, sem dúvida, um grande elemento de investigação
para a ética franciscana, embora na evolução teológica, atualmente a “moral
franciscana contempla a pessoa em sua totalidade essencial como sujeito do
chamado de Deus, e a resposta que ele realiza livre e responsavelmente" (MERINO;
FRESNEDA, 2005, p. 420). Logo, "a teologia franciscana, seguindo a linha
agostiniana e por sua vez fiel a cosmovisão bíblica, contempla e trata do coração do
homem" (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 429) e cuida também de sua integridade
física, como consideração ao ser pessoa deste. Assim, pode-se dizer que é atribuída
grande importância à vida afetiva, e consequentemente, à experiência fraterna que
transforma o interior humano. Uma vez que "não é suficiente a pura especulação
[filosófica] teológica para a perfeição do conhecimento, convém levar em conta as
33
no mundo não há espaço para o mal e suas forças diabólicas, "toda a moral se
concentra no amor a Deus e ao próximo. A responsabilidade e a tarefa da pessoa
consiste em vivê-lo e atualizá-lo” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 431).
3.1- O franciscanismo e sua práxis pastoral: princípios de vida
evangélica
A forte experiência humana e religiosa de Francisco de Assis em seu
encontro pessoal com Cristo possibilitou-lhe “identificar a presença de Deus na
história humana, como sumo Bem, como infinita bondade” (MOREIRA, 1996, p.123-
124 ). Não obstante a isso, ele também passou a associar a padecente e dolorosa
condição de sofrimento do Crucificado Jesus Cristo aos homens e mulheres que
sofriam com as injustiças sociais, as doenças e tantos outros males físicos que
favoreciam a exclusão. O resultado de tal experiência favoreceu ao poverello fazer
uma leitura da história a partir do próprio Salvador, que também sofreu e assumiu
em tudo a condição humana, exceto o pecado (cf. MERLO, 2005, p.19). Deste
modo, pode-se afirmar que “Francisco de Assis foi, no século XIII, o homem do
retorno ao Evangelho” (LECLERC, 1983, p. 9). O teólogo franciscano Elói Leclerc
demonstrou ainda, que
O que dá à experiência evangélica franciscana sua verdadeira dimensão e
seu poder de sedução é, precisamente, esse encontro entre o Evangelho e
as aspirações profundas do homem, entre a mensagem de Jesus e as
forças criativas da história (1983, p. 10).
Dessa experiência nasceu toda uma escola de pensamento Franciscano.
Escola porque consiste numa gama de pensadores e eruditos que, entrelaçados
com a prática da vida do fazer-se “pequenino de Jesus”, desenvolveram um modo
de pensar, de ser e de educar com princípios específicos e particulares. Tais
princípios, acabam por dar vazão à formas de vida e à visões de mundo
caracterizados pelo “estilo franciscano todo próprio, que fazem perceber que o
reconhecimento do Deus do Evangelho (...) está inseparavelmente unido à
transformação dos nossos relacionamentos humanos” (LECLERC, 1983, p. 9).
Constituindo verdadeiros princípios de vida, alguns elementos promotores de
afeto e alteridade podem ser facilmente identificados. Sendo um primeiro deles a
ideia de criação como testemunha do Pai, haja vista que, passando todo o universo
a ser visto sob o olhar do Senhor, Francisco empenhou-se em enxergar, por toda
parte, os vestígios do autor, crente de que todos os seres “testemunham a perfeição
de seu amor de Pai” (MOREIRA, 1996, p. 124), bem como sendo todos eles
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de partida. Daí afirmarem alguns que São Francisco, com suas ideias, foi um dos
próceres do movimento Renascentista” (BAGGIO, 1991, p. 50). Provavelmente, ao
buscar uma vida evangélica de modo autêntico, o jovem Francisco de Assis não
planejou um modelo pedagógico cristão sistematizado para os seus
contemporâneos, menos ainda para o mundo. No entanto, “aquilo que Francisco
viveu pessoalmente, ele o propôs, pelo menos nas grandes linhas” (ZAVALONI,
1999, p. 11). Por meio de seus ensinamentos aos frades, às Irmãs clarissas e
mesmo aos leigos, o poverello sempre deixou transparecer o forte traço educador e
formador de sua personalidade, sempre firmado sobre o amor fraterno transformado
em altruísmo verdadeiro.
Não somente os homens possuem um caráter filial, mas também todas as
coisas porque todas elas foram feitas no Filho e para o Filho. Todas elas
revelam o Pai e revelam o Filho no qual foram pensadas e criadas. Esta
compreensão fundamenta o caráter fraterno de todas as coisas. Somos
irmãos e irmãs na casa do Pai que nos quis seus filhos. A vivência disso
gera um humanismo enternecedor e uma confraternização universal com o
mundo humano e sub-humano nos moldes vividos exemplarmente por São
Francisco de Assis”. (BOFF, 2003, p. 303).
torpes. Espalhou-se, por isso, a sua fama por quase toda a província, de
modo que muitos que o conheciam diziam que haveria de ser algo de
grande. (LTC, 3, 1-2)
Sabe-se que levou vida boêmia, sendo pródigo nas festas e ocupando-se
com as gastanças do dinheiro que ganhava do pai. Cordial, atraía amigos e divertia-
se com eles, sendo por vezes chamado de “jogral” entre seus pares, pois “tinha
adquirido uma ‘cultura’ cavalheiresca e cortês, da qual permanecerão traços também
na sua experiência posterior” (MERLO, 2005, p. 23). Em meio às suas idas e vindas,
após recuperado de uma doença, decidiu voltar às guerras tendo o firme propósito
de fazer fama como cavaleiro. Isto o conduziu mais de uma vez à Apulia em busca
de fama e conquistas de cavalaria. Narra-se que, certo momento de sua vida,
perdendo a guerra entre Assis e Perugia, ficou por um ano preso nessa cidade, de
onde sairia mais reflexivo e já inicialmente mudado, além da saúde física e espiritual
bastante abaladas. Numa das hagiografias a seu respeito pode-se ler:
Depois de adulto, tendo demonstrado uma inteligência sutil, exerceu a arte
do pai, isto é, o comércio, mas de maneira muito diferente porque era mais
alegre e liberal, gostava de brincadeiras e cânticos, dando a volta pela
cidade de Assis de dia e de noite, junto aos que eram parecidos com ele,
muito generoso para gastar, a ponto de consumir tudo que podia lucrar em
comilanças e outras coisas. Era, por isso, muitas vezes repreendido pelos
pais, pois lhe diziam que fazia tão grandes despesas por si e pelos outros
que não parecia filho deles mas de algum grande príncipe. Mas como os
pais eram ricos e o amavam com ternura, toleravam-no nessas coisas, sem
querer perturbá-lo. (Legenda dos Três Companheiros 2)
Em uma de suas empreitadas de guerra, viajando de Espoleto para a
Apulha, "sonha com um Palácio cheio de adereços militares e armas. (...) Mais tarde,
um sonho completa visão: o senhor dissuade-o de continuar a viagem" (IRIARTE,
1976, p. 28); algo que em princípio causara admiração e espanto, além de grande
empolgação para prosseguir na carreira militar; na etapa de dois sonhos, lê-se que
foi apresentado um diálogo onde se dizia: “a quem queres servir? ao servo ou ao
Senhor?” (Legenda dos Três Companheiros, 11, 1-5), provocando-lhe intensa
reflexão acerca da própria existência. Mesmo assim, embora decidisse voltar às
batalhas com armas de morte, revestido de armaduras e rumando novamente para a
guerra, deparou-se com um leproso que o levou a “cair em si”, fazendo-o capaz de
enxergar para além dos olhos da carne, tanto que este, até então excluído por
muitos, merecera um beijo nas mãos e no rosto.
Tal fato, marcante demais em sua vida, motivou-lhe entregar-se mais à
contemplação de Deus, tanto dentro de si mesmo, quanto no rosto sofredor do outro
que fenomenologicamente ou espiritualmente se apresentava diante dele. Francisco
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humano” (MERINO, 1999, p. 64). Algo extraordinário para a época em que nasceu
Francisco e, quando vivenciado plenamente até hoje, continua a marcar a vida social
humana e a espiritualidade cristã. Do mesmo modo que a intuição afetiva em
Francisco de Assis reinou sobre o pensamento racional, “igualmente na escola
franciscana reinou a intuição emotiva como meio para conhecer o real e sintonizar
com ele” (MERINO, 1999, p. 65). Cuidar de modo particular, atento ao indivíduo
como um ser especial, era característica dos primeiros franciscanos. Algo priorizado
dentro do carisma até os dias de hoje, sempre se inspirando no fundador:
Vindos de horizontes os mais diversos, os irmãos aprendiam a viver juntos
respeitando a diferença de cada um. De fato uma fraternidade como esta
não se parecia nada com um agrupamento sob a chefia de uma autoridade
central, como uma brigada. Seu ideal não era a uniformidade, bem ao
contrário. Cada irmão era, para Francisco, um ser singular, uma pessoa
única. Dele se disse que a árvore lhe ocultava a floresta, e sem dúvida foi o
mais belo elogio que dele se podia fazer. Ele não via as pessoas em geral, o
coletivo humano, mas o indivíduo, a pessoa viva, concreta, com sua história
singular, sua fisionomia própria, sua vocação original. (LECLERC, 2000, p.
61-62)
cotidiano e voltada para o cotidiano onde o indivíduo está e constrói suas ações e
seu modo de ser no mundo, “é este ou aquele sujeito que é considerado, não outro;
esta ou aquela criatura que é exaltada, não a outra” (MOREIRA, 1996, p. 126). Aqui
predominam a particularidade, o cuidado, a atenção a ser dada ao indivíduo, e não
uma ideia de massa, como algo diluído na coletividade, sem expressão particular. “É
justamente o reconhecimento da personalidade de cada ser humano que inspira a
pedagogia da escola e que lhe confere um caráter personalizado, participativo e
democrático” (MOREIRA, 1996, p. 126) constituinte de uma incessante busca pelo
“Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (Legenda Perusina, 70). Por isso,
“do mesmo modo que em Francisco reinou a intuição afetiva sobre o pensamento,
igualmente na escola franciscana reinou a intuição emotiva como meio para
conhecer o real e sintonizar com ele” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 65).
Nesse sentido é afirmado, pelo franciscanismo, que o espírito humano é
voltado para os outros seres, no movimento que favorece o encontro, a relação e
somente através da troca que acontece neste momento é que pode realizar-se
enquanto indivíduo. Desta forma a alma humana "contém em si uma capacidade
Divina, enquanto é imagem e semelhança de Deus (...). também a vontade tende ao
infinito, porque somente com a conquista do sumo bem ela fica a pena mente
preenchida” (MERINO; FRESNEDA, 2005, p. 424). Em sua concepção, a moral
Franciscana ensina que "os outros não se reduzem a simples e anônima multidão à
massa sem rosto humano, mas formam fraternidade (e igreja) em vinculação vital e
recíproca, tanto em nível pessoal, como em nível comunitário" (MERINO;
FRESNEDA, 2005, p. 425). Além disso,
As fontes franciscanas concebem o corpo com certa positividade, porque
Francisco o vê envolvido com todas as criaturas no movimento ascensorial
rumo a Deus. Traçam as linhas do desenvolvimento da vida espiritual do
homem, o dinamismo da alma e da Meta para qual tende (ZAVALLONI,
1991, p. 111-2).
Assim, o encontro com o mundo é também oportunidade de encontro
consigo mesmo. Longe de ser um simples objeto apenas para cumprir uma ordem
programada, como uma máquina, o homem pode decidir, escolher, recusar e, com
isso, vive e explora a própria liberdade. Ou seja, a ética Franciscana é uma moral
dialogal, embasada na fé e na espiritualidade cristã, onde a relação interpessoal e
inter-relacional favorecem a descoberta e, depois também, o exercício pleno da
liberdade plena. Esta moral resulta do exercício de uma vida virtuosa firmada em
Jesus de Nazaré e também resulta na liberdade que se funda no modo de ser e de
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6- CONSIDERAÇÕES FINAIS
outro nem anula o outro. Há unidade no amor, cooperação nas ações, amizade no
atuar. Cria-se com isto uma atitude empática entre liderança e membros das
comunidades, com relações recíprocas de afeto e cuidado. Esta relação de troca de
respeito e empatia favorece a transmissão de valores acima de quaisquer saberes.
Pois o amor é o pressuposto base; logo, onde há amor não há temor ou desespero.
Tudo o que é bom, consequentemente é fruto do amor que cria e recria sempre.
Francisco de Assis, como “Cidadão do Mundo”, abriu um caminho para todos
quantos se empenham nas lutas pela causa dos menos favorecidos e
marginalizados, pela natureza e pelos bens da criação, em favor da paz e do bem. O
esclarecimento da proposta franciscana torna-se necessário, primeiro porque diz
respeito à identidade própria de cada cristão; segundo porque é, ainda hoje, capaz
de fomentar uma visão de mundo transformadora e inovadora. A clareza de quem é
o homem torna-se algo indispensável para iluminar o que fazer e como fazê-lo em
relação ao respeito ao mundo criado, além de estimular a dedicação e o afinco de
todos para com a missão eclesial. Sem que se perca de vista a necessidade da
atualização constante deste mesmo carisma frente às novas realidades do mundo
contemporâneo.
A forte experiência humana e religiosa do Poverello de Assis, em seu
encontro com o transcendente, possibilitou-lhe identificar a presença de Deus na
História humana, como Sumo Bem, como infinita bondade. Não obstante a isso,
também passou a identificar a dura realidade de dor e sofrimento em que muitos
viviam. Injustiças sociais, doenças e males pessoais e sociais que favoreciam a
exclusão de milhares de homens, mulheres e crianças levaram o jovem Francisco a
ler o mundo a partir de outro viés. Por isso, hoje, o franciscanismo procura oferecer
um contributo de verdade à questão do lugar do homem na natureza e na sociedade,
multifacetada pelas civilizações e culturas em que se manifesta a sabedoria da
humanidade.
Constituída de pensadores e eruditos que desenvolveram verdadeiros
modos de pensar e ensinar, também desenvolveram ideais e princípios de um
verdadeiro “estilo franciscano” de ser a comunidade iluminada pelo carisma
franciscano, em seu conteúdo doutrinal e atitudinal pode ser assim resumida:
centralidade do ideal cristão em seu projeto humanitário-salvífico; ideia de pessoa
humana como síntese e culminância do universo, onde o transcendente e o
imanente se entrelaçam; pessoa humana como serva de toda criatura, cuidadora e
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Bíblia de Jerusalém: Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2004.
Vozes/FFB, 2009.
RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. Criação, Graça, Salvação. São Paulo: Loyola, 1998.