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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

IGREJAS ORGÂNICAS -
MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA:
O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA”

LIVAN CHIROMA

São Bernardo do Campo


2014
LIVAN CHIROMA

IGREJAS ORGÂNICAS -
MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA:
O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA”

Dissertação apresentada em cumprimento às


exigências parciais do Programa de Pós
Graduação em Ciências da Religião da
Faculdade de Humanidades e Direito da
Universidade Metodista de São Paulo para a
obtenção do grau de mestre.

Área de concentração: Religião, Sociedade e


Cultura.

Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas


Socioculturais
Orientador: Prof. Dr. Leonildo Silveira
Campos.

Universidade Metodista de São Paulo

São Bernardo do Campo

2014
FICHA CATALOGRÁFICA

C446i CHIROMA, Livan


Igrejas orgânicas – mobilidades e reconfiguração religiosa: o caso
do “Caminho da Graça” / Chiroma Livan -- São Bernardo do Campo,
2014.
138fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de


Humanidades e Direito, Programa de Pós-Graduação Ciências da
Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do
Campo
Bibliografia

Orientação de: Leonildo Silveira Campos

1. Trânsito religioso 2. Protestantismo 3. Cristianismo primitivo


I. Título

CDD 280
A dissertação de mestrado sob o título "IGREJAS ORGÂNICAS - MOBILIDADE E
RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA: O CASO DO ´CAMINHO DA GRAÇA´",
elaborada por LIVAN CHIROMA, foi apresentada e aprovada em 09 de Outubro de
2014, perante a banca examinadora composta por Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
(Presidente/UMESP), Prof. Dr. Paulo Ayres Mattos (Titular/UMESP) e Prof. Dr.
Ronaldo Rômulo Machado de Almeida (Titular/UNICAMP).

____________________________________________

Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos


Orientador e presidente da Banca Examinadora

____________________________________________

Prof. Helmut Henders


Coordenador do Programa de Pós Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião


Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura
Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais
AGRADECIMENTOS

Ao CNPq pela concessão da bolsa.

Sou grato à minha mãe Yasu Chiroma Veiga e ao meu pai, o qual não viu este texto
concluído por conta de seu falecimento em agosto de 2012. A Francisco Ferreira Veiga
(1936-2012) dedico este trabalho.

Agradeço ao Professor Leonildo Silveira Campos, meu orientador, pelas sugestões,


horas de orientação e conversas; sobretudo, por seu empenho para que esta dissertação
se concretizasse na reta final. Sou privilegiado por ter sido orientado por um tão
reconhecido pesquisador.

À Profa. Dr. Sandra Duarte e ao Prof. Dr. Nicanor Lopes, pelas colaborações na banca
de qualificação.

Aos integrantes do GIPESP – Grupos de pesquisa interdisciplinar do Protestantismo.

Aos professores do PPG em Ciências da Religião da UMESP, pela dedicação.

A Caio Fábio D´Araújo Filho, Carlos Bregantim, Ana D´Araújo, Marcelo Quintela,
Leonardo Silva, Gito Wendel, Wagner H. Silva e a todos das “Estações do Caminho”
Campinas, São Paulo e diversos colaboradores participantes de “Igrejas Orgânicas” e do
“Caminho da Graça” que generosamente foram solícitos aos meus questionamentos.

A Alex Fajardo, que me cedeu seu acervo pessoal das Revistas VINDE;

Aos amigos do curso de Ciências Sociais da Unicamp e aos participantes do Laboratório


de Antropologia da Religião - LAR. Ali participei de diversos debates que colaboraram
neste para este texto.

Aos amigos e amigas que sentiram minha ausência, obrigado pela compreensão.

À Dayana Façanha, pela amizade, paciência e incentivo por conta da produção desta
dissertação, nos momentos de incertezas e distância.
CHIROMA, Livan. Igrejas Orgânicas – mobilidade e reconfiguração religiosa: o caso
do “Caminho da Graça”, dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São
Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

RESUMO

Este texto é a apresentação do resultado de uma pesquisa empreendida sobre o


recrudescimento de um movimento que convencionamos denominar de “Igreja
Orgânica” (IO). Para este estudo, diante de centenas de grupos encontrados durante o
período da pesquisa, escolhemos a análise do “Caminho da Graça” (CdG), comunidade
iniciada em meados de 2004, e que atualmente conta com cerca de 70 grupos no Brasil e
no exterior. O grupo foi iniciado pelo (ex) reverendo Caio Fábio de Araújo Filho, ou
simplesmente Caio Fábio, sustentados por uma mensagem de “contracultura
evangélica” ou um “retorno da Igreja cristã tal como era no Novo Testamento”. Embora
o CdG categoricamente não se auto declare uma IO, pudemos enquadrá-lo nesta
tipologia observando as práticas e discurso das principais lideranças. Vemos na
consolidação do Neopentecostalismo, especialmente nos anos de 1990, o início das
suspeitas e decepções em massa com o universo evangélico, sobretudo advindas deste
segmento do cristianismo; sendo assim estas comunidades alternativas vêm acolher
dissidentes “decepcionados” e “feridos” por estas expressões religiosas. Fez-se
necessário, portanto, compreender a morfologia das igrejas no período do cristianismo
original, uma vez que um dos pontos de contestação destes grupos é o retorno às
experiências comunitárias dos primeiros cristãos, tais quais narradas no Novo
Testamento; evidenciar a biografia das principais lideranças do movimento e; enfatizar
os conflitos e as motivações intracampo e extracampo existentes para compreender o
êxodo e circulação dos fiéis em direção a uma experiência de fé mais pormenorizada e
“pós moderna”; houve também necessidade de uma observação participativa, de
inspiração etnográfica, para a condução de abordagens teóricas.

Palavras-chaves: Protestantismo; Caminho da Graça, Igrejas Orgânicas, Trânsito


Religioso, Evangélicos não Determinados, Cristianismo primitivo.
CHIROMA, Livan. Organic Churches – mobility and religious rearrangement: the
“Caminho da Graça” case, Master thesis, Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo, 2014.

ABSTRACT

This text is the presentation of the results of a study on the rise of a movement here
conventionally called “Organic Church” (OC). For the present study, among hundreds
of groups met during the research period, “Caminho da Graça” (CdG), a community
founded by mid-2004 and currently numbering around seventy groups in Brazil and
abroad, was chosen as the object of analysis. The group was started by the (ex-) Rev.
Caio Fábio de Araújo, or simply Caio Fábio, backed by a message of “Evangelical
counterculture” or a “return to the Christian Church as it was in the New Testament.”
Although CdG categorically denies the OC label, we can fit them into the movement
observing the practices and discourse of the main leadership. The consolidation of Neo-
Pentecostalism, especially in the 1990s, is seen as the beginning of suspiciousness and
mass disappointment with the Evangelical, and above all the Neo-Pentecostal,
worldview. Thus, these alternative communities welcome dissidents “hurt” by these
contexts. It was therefore necessary, firstly, to understand the morphology of churches
in the original Christianity period, since one of these groups’ points of dispute is the
return to community experiences lived in the New Testament; secondly, to expose the
biographies of the main leaders of the movement; thirdly, to emphasize the conflicts and
motivations both within the church context and outside of it in order to understand the
exodus and the movement of believers towards a more thorough faith experience; and
lastly, to perform ethnographically-inspired participative observation in order to
conduct theoretical approaches.

Keywords: Protestantism; Caminho da Graça, Organic Churches, Religious Transit,


Undetermined Evangelicals, Christian Unspecified, Primitive Christianity.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 09
CAPÍTULO I – Cristianismo orgânico ou institucionalizado? ..................................... 15
1.1 Em busca das experiências fundantes ................................................................ 20
1.2 Algumas questões teóricas preliminares ............................................................ 23
1.3 Identidades e comunidade no cristianismo original: sombras e luzes ............... 29
1.3.1 Movimento de Jesus ............................................................................... 31
1.3.2 O surgimento das Ekklésias ................................................................... 37
1.3.3 O papel das redes familiares na expansão do cristianismo .................... 39
1.3.4 Conflitos na Igreja “primitiva” .............................................................. 46
1.4 O início de uma igreja segundo o modelo imperial ........................................... 49

CAPÍTULO II - “Igreja Orgânica”: teoria e técnica ...................................................... 52


2.1 Igrejas orgânicas como construtoras de uma realidade “livre” .......................... 55
2.2 Análise dos produtores culturais ........................................................................ 65
2.2.1 Frank Viola e a denúncia do “Cristianismo Pagão” ............................... 65
2.2.2 Neil Cole - plantando a fé onde a vida acontece .................................... 71
2.2.3 Simson Wolfgang – “casas que transformam o mundo” ....................... 73

CAPÍTULO III – “CAMINHO DA GRAÇA: TRAJETÓRIA DE UMA IGREJA


ORGÂNICA .................................................................................................................. 78
3.1 O fundador: Biografia, trajetória e peregrinações ............................................. 81
3.1.1 Do Amazonas ao Rio de Janeiro ............................................................ 83
3.1.2 No Rio de Janeiro uma nova fase: “A era Caio Fábio” ......................... 88
3.1.3 Controvérsias – Associação Evangélica Brasileira (AEVB) x Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD) ................................................................. 91
3.2 Estrutura da Visão Nacional de Evangelização -VINDE .................................. 96
3.2.1 A VINDE na televisão ........................................................................... 97
3.2.2 VINDE Revista ...................................................................................... 99
3.2.3 A VINDE na área de assistência social: A Fábrica da Esperança ....... 99
3.3 A Queda de Caio Fábio ................................................................................... 102
3.4 História do “Caminho da Graça” ..................................................................... 103
3.5 Estações do Caminho – novo (não) lugares religiosos .................................... 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 128

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 132


ANEXOS ..................................................................................................................... 141
INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar o fenômeno das “Igrejas Orgânicas” (IO) 1,


tomando-se como objeto de estudo o movimento “Caminho da Graça”, fundado pelo
pastor Caio Fábio de Araújo Filho. Procurei trabalhar as biografias, as técnicas e teorias
de alguns dos principais pensadores dessa forma de praticar o cristianismo, para
sublinhar a recomposição das formas religiosas desenvolvidas pelos sujeitos dissidentes
dos principais eixos denominacionais, em direção a uma experiência religiosa menos
institucionalizadas. Desta maneira, é importante destacar a construção cultural que os
principais líderes dessa tendência usam para recusar o modelo “Igreja Institucional”.
Dentro desse esforço daremos enfoque especial ao chamado “Caminho da Graça”, aqui
representado como modelo de uma das principais formas no Brasil de questionar a
institucionalização da igreja cristã.

As primeiras pesquisas que fiz sobre a religião começaram nos trabalhos para
conclusão dos cursos nas faculdades de Comunicação e depois na de Teologia. Em
ambos os casos tratei de temas que envolviam religião, sociedade e mercado numa
perspectiva sociológica. Na primeira, realizei pesquisas sobre o marketing religioso em
uma Igreja neopentecostal; na segunda fiz uma análise dos métodos de plantação de
igrejas em áreas urbanas, destacando-se a alteridade e os aspectos “transculturais”, que
normalmente são pensados nas missões evangélicas que se voltam a uma cultura
exótica. Porém, neste caso, salientamos que as metrópoles possuem seu próprio mundo
simbólico, que é traduzido pelo missionário ou pelo “plantador de igrejas” nas áreas
urbanas, estabelecendo sua própria tradução Na época da graduação li o livro Teatro,
templo e mercado de Leonildo Silveira Campos, que despertou interesse pelas pesquisas
no campo das Ciências da Religião e da Sociologia.

Ao iniciar o Mestrado, o interesse se concentrou na análise do trânsito religioso


entre os jovens evangélicos, sob a influência da “pós-modernidade”. Este fenômeno
tornou-se digno de atenção através de observações pessoais e intuitivas, ao notar que
muitos dos meus conhecidos e amigos evangélicos estavam deixando o hábito de

1
Apesar de outras nomenclaturas, como “Igreja nos Lares”, Igreja Simples”, “Igreja doméstica”, “Igreja
não denominacional”, neste trabalho usaremos a expressão “Igreja Orgânica” ou “IO”.

9
congregar em suas igrejas, sobretudo os mais jovens, demonstrando, com isso, um
“desânimo religioso”.

Porém, no decorrer das disciplinas cursadas no Mestrado, pude compreender o


fenômeno dos “desigrejados” como fator subjacente da secularização, a atomização da
religiosidade, a relativização institucional e a ação religiosa forjada em ambientes web,
formando ”rebanhos virtuais” 2

Logo, como parte do processo ao longo da pesquisa, o desafio inicial foi o de


delimitar o objeto a ser analisado. Nesta fase guardamos a publicação que estimularia as
primeiras indicações do que seria posteriormente pesquisado. Refiro-me à matéria no
jornal Folha de S. Paulo, do dia 15/08/2011 cujo título era “cresce o número de
evangélicos sem ligação com igrejas”. A reportagem, pautada nos dados estatísticos
publicados pelo Instituto FGV, a partir dos dados de Pesquisa de Orçamento Familiar
(POF), dizia assim: “especialistas dizem que processo pode ser análogo ao de quem se
identifica como 'católico não praticante'. Pesquisa mostra que, entre 2003 e 2009, fatia
de fiéis que dizem não ter vínculo institucional saltou de 4% para 14%”. 3

O aspecto que mais chamou atenção foi o recrudescimento dos “evangélicos não
determinados”, ou seja, aqueles que se afirmam cristãos, mas optam por não se
estabelecerem em uma denominação específica. Seria isso um sintoma do fenômeno do
“desigrejamento”? Neste sentido, análise de Campos 4 é oportuna:

“O aparecimento de uma nova categoria, “evangélicos sem igreja” ou os


“evangélicos não determinados”, foi uma novidade que já havia se manifestado em
pesquisas anteriores, como a de 2009 (POF), que tomou por base os números da
pesquisa dos orçamentos familiares. Esses “evangélicos não determinados”
chegaram ao índice de 4,8%, acima dos 4% dos evangélicos de missão (ou
tradicionais), porém, abaixo dos pentecostais, 13,3%”.

2
“Rebanho virtual” e o individualismo religioso. Entrevista especial com Leonildo Silveira Campos.
<www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512839-rebanho-virtual-e-o-individualismo-religioso-entrevista-
especial-com-leonildo-silveira-campos> Acessado em 29/08/2014.
3
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1508201102.htm>. Acessado em 20/08/2014.
4
Idem.

10
Ora, a categoria dos “evangélicos não determinados” é uma vertente sobre a qual os
especialistas estão ainda por desvendar suas tramas, levantando diversas hipóteses
(TEIXEIRA & MENEZES: 2012). Por conseguinte, é oportuno lembrar da pesquisa de
Regina Novais 5 que não relaciona a aversão dos indivíduos às religiões
institucionalizadas ao ateísmo ou no agnosticismo; ou seja, segundo Novais, há um tipo
de fé que “circula”, porém desvinculada de uma agência. Seriam estes religiosos
“circuláveis” praticantes de algum tipo de culto ou formato congregacional particular?

Assim, caímos no problema principal – a formação de comunidades cristãs


evangélicas de “margem”, constituídas por aqueles que optaram em deixar as fileiras
das igrejas evangélicas “institucionais”, normalmente motivados por infortúnios e
decepções eclesiásticas variadas ou então movidos por um convencimento “teológico”
de que as práticas das “igrejas tal qual a conhecemos” estão equivocadas, sendo
necessário retornar as experiências religiosas tal qual eram encontradas no Novo
Testamento. Neste trabalho, denominamos estes grupos de “Igrejas Orgânicas” (IO),
movimento crescente na América do Norte 6. Segundo o Jornal Fox News “Um estudo
realizado pelo Barna Group, uma empresa especializada em dados sobre religião e
7
sociedade, estima que 6 a 12 milhões de americanos frequentam igrejas domésticas”.

Logo, através de uma simples busca do termo “Igreja Orgânica” no Google ou no


Facebook encontramos centenas destes grupos autônomos. São diversos os movimentos
que, dentro do espectro cristão – evangélico, advogam pelos “grupos domésticos”, o
sistema da “igreja simples”, o anticlericalismo, ou, como convencionamos chamar, a
“Igreja Orgânica”. Porém, escolhemos delimitar nossas hipóteses pesquisando o
movimento “Caminho da Graça”, pela ação expressiva de seu líder, Caio Fábio Filho.
Cerca de 70 “Estações do Caminho” se espalham pelo Brasil e pelo exterior. Outro
argumento para nossa delimitação é que, mesmo não havendo uma declaração clara de
que o “Caminho” fosse uma “Igreja Orgânicas”, em nosso entender, analisando suas
práticas, pudemos traçar algumas relações que tornaram esta comparação possível:

5
"Os jovens "sem religião": ventos secularizantes, "espírito de época" e novos sincretismos. Notas
preliminares".www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000300020. Acessado
em 28/08/2014.
6
"Cresce o movimento de cristãos que ´pulam o sermão´, adoram em pequenos grupos em seus lares"
[tradução livre do autor]. <www.foxnews.com/us/2010/07/21/growing-movement-christians-skip-
sermon-worship-small-groups-home>. Acessado em 20/11/2013.
7
Idem. Tradução livre do autor.

11
ethos anti institucional; sentimento anticlerical; lideranças leigas; reuniões nos lares e
em locais “não sagrados”; um profundo discursos de retorno ao “Cristianismo
primitivo”.

Nossa análise de campo foi realizada em Campinas, uma cidade do interior de São
Paulo, junto a grupo com cerca de 30 pessoas, de Junho de 2013 até Fevereiro de
2014. 8Além disso, realizamos pesquisas na “Estação da Graça” em São Paulo-Capital, e
ainda em uma outra, ainda em fase de “implantação”. Para cumprir nosso objetivo de
análise também acompanhamos a mídia social e assistimos incontáveis vídeos no
Youtube e na “Vem e Vê TV” 9, a mídia do “Caminho da Graça”. Adicionamos também
anotações no caderno de campo e conversas informais com seus principais expoentes;
esta análise é seguramente uma fotografia, pois o movimento está em constante
remodelagem.

Para o pesquisador, confirmado através dos meses de pesquisa participativa em


campo, O “Caminho da Graça” é, de fato, um movimento ligado ao recrudescimento do
descontentamento recente dos cristãos protestantes com o “universo evangélico”. Este
descontentamento, como veremos no transcorrer dos capítulos, colabora para a
liquefação das identidades religiosas dos indivíduos, proporcionando uma intensa busca
por agrupamentos mais “autênticos”, menos “rígidos”, com mais “liberdade”, e que
sejam menos “hipócritas”, conforma a opinião de alguns entrevistados.

No que tange à temática desta pesquisa, não foram encontrados temas similares
nos diretórios e bancos de dados de teses e dissertações da Capes que tomassem como
objeto de pesquisa essas duas linhas que se entrecruzam em nossa abordagem principal,
a “Igreja Orgânica” e o “Caminho da Graça”. Ponderamos que a realidade da “Igreja
Orgânica” no Brasil ainda é desconhecida, não havendo reflexões acadêmicas sobre
uma de suas expressões “Caminho da Graça” apesar da proeminência midiática de seu
líder, Caio Fábio D´Araújo Filho, particularmente nos anos de 1980 e 1990 e, em
tempos recentes, via web. Mas será que o fenômeno “igreja orgânica” existe no Brasil?
Ou em outras palavras, o fenômeno tem densidade significante para uma dissertação de
mestrado? Nós apontamos uma resposta afirmativa. Pois nos EUA e Europa,
pesquisadores já tem tentado registrar academicamente tal movimento há mais de duas
décadas, principalmente entre organizações confessionais e missionárias. Seminários e

8
O período foi intermitente, devido as dinâmicas do grupo e do pesquisador.
9
Web TV de Caio Fábio. www.vemevetv.com.br

12
centros de pesquisa da religião já registram investigação sobre o tema. Por exemplo a
tese defendida no Fuller Theological Seminary por Jares James Looney, City harvest: a
study os organic church planting in a global city, no Instituto de Estudos Interculturais
é um exemplo. Porém, esses têm um tom de catequese, ou de elucidar sociologicamente
o fenômeno a fim de captura-lo para fins estratégicos e missionários.

A justificativa para a pesquisa que empreendemos encontra-se no fato de que o


perfil de nosso objeto de análise, o Caminho da Graça e suas dezenas de “Estações”
espalhadas pelo Brasil, sustenta um tipo particular de pertencimento, rotatividade,
liderança, práticas litúrgicas e lógicas de seus aplicativos espirituais que torna complexo
ao pesquisador identifica-la com os tipos tradicionalmente canonizados pela Sociologia
da Religião. Sendo que, devido as movimentações do campo religioso brasileiro nos
últimos trinta anos, com a “fragmentação”, a “privatização das experiências de fé”,
podemos indicar um novo tipo de rede religiosa-associativa, ainstituicional, podendo
sugerir que estamos diante uma “hiper-fragmentação” do tecido cristão: o
protestantismo rasgou o cristianismo do estilo católico em pedaços de 100 x 100. O
fenômeno dos sem-igreja, em pedaços de 10 x 10.

Nossos referenciais teóricos foram os conceitos formulados acerca da sociologia


do cristianismo primitivo de Gerd Theissen e Howard Clark Kee; a teoria do campo
religioso, de Pierre Bourdieu, e as contribuições de Danièle Hervieu-Léger sobre
mobilidade e transmissão religiosa. Igualmente foram importantes para a pesquisa, os
trabalhos de Leonildo Silveira Campos, Antônio Gouvêa Mendonça, Ronaldo de
Almeida e Ricardo Mariano, entre outros, nas abordagens mais gerais sobre o
protestantismo, pentecostalismo e neopentecostalismo.

Assim, no capítulo 1 “Igreja Orgânica”: raízes e história no cristianismo


original, analisa-se a morfologia das ekklésias do período conhecido como
“Cristianismo primitivo”. Para atingir tal objetivo consideramos ser importante retomar
a trajetória da família nas sociedades judaica, romana e cristã, levantando dados sobre o
modelo de interação entre família, sociedade e igreja, isto é, acompanhando o núcleo
familiar do ponto de vista sociológico. Com isso, verificaremos as alterações
eclesiológicas da insurgente religião cristã espalhada em comunidades bem distintas
umas das outras e com notadas diferenças político-teológicas. Por isso procuraremos, no
decorrer do texto iluminar conflitos étnicos-religioso, mutações de crenças,
hibridizações de cosmovisões inerentes aos vários cristianismos ao redor do líder

13
messiânico – carismático Jesus até a adoção de religião cristã pela suposta conversão do
Imperador Constantino. Assim, neste bloco caracterizaremos o período reivindicado
pelas “Igreja Orgânicas” como sendo o período original de intensa “harmonia e coesão”
na comunidade dos discípulos de Jesus.

No capítulo 2, “Igreja Orgânica”: teoria e técnica, a análise recai em como as


expressões de “igrejas orgânicas” contemporâneas são pensadas na produção cultural de
seus principais teóricos. Este capítulo pretende apresentar a estrutura, características e
principais traços destes grupos. Pretende-se ainda verificar as relações existentes com os
demais “modelos eclesiásticos” informais, procurando também compreender o
surgimento de um mercado religioso voltado à um cristianismo “descompromissado” e
mais “simplificado”.

No capítulo 3, Caminho da graça: trajetória de uma “Igreja Orgânica”


analisaremos o movimento “Caminho da Graça” / ”Estações do Caminho” tomando-o
como exemplo de um tipo de “Igreja Orgânica”. Esse capítulo foi dividido em duas
seções. Na primeira, é levantado o histórico de seu fundador, Caio Fábio de Araújo
Filho, ou simplesmente Caio Fabio, relacionando-o à atual negação do modelo
institucional do cristianismo. Julgamos que a partir de seus dados biográficos foi
possível compreender e correlaciona-los aos deslocamentos no campo religioso
brasileiro, sobretudo no último quarto do século XX. Por meio dessa análise
procuramos levantar algumas hipóteses para o surgimento das “Igrejas Orgânicas”
contemporâneas, categoria na qual incluímos o CdG (Caminho da Graça), mediante a
similaridade de sua tipologia. A segunda será dedicada a pesquisar a história do CdG
com suas “Estações”, procurando também levantar hipóteses sobre seu perfil sócio
religioso à luz dos estudos da Sociologia da Religião. Nossa premissa inicial é que trata-
se de grupos constituídos por dissidentes de outras denominações que buscam
expressões alternativas e informais para manifestarem sua espiritualidade. Debateremos
este detalhe durante a etnografia.

14
CAPÍTULO I

CRISTIANISMO ORGÂNICO OU INSTITUCIONALIZADO?

“É preciso destacar a distorção de Hollywood que mostra


milhares de pessoas presentes aos sermões de Jesus.
Devemos imaginar um grupo seleto, reduzido a cerca de
trinta pessoas, apinhadas numa casa particular para ouvir um
mestre extraordinariamente desafiador

(CHASRLESWORTH, James. H. “Jesus dentro do


Judaísmo”. Rio de Janeiro: Imago Dei, 1992)

A que tradição do cristianismo dos primeiros séculos se pode recorrer para


estudar um possível período anterior ao cristianismo institucionalizado de nossos dias?

A justificativa para este empreendimento se fundamenta no fato de que uma das


propostas do “Caminho da Graça” (CdG), objeto de nossa pesquisa, é o retorno às

15
experiências religiosas equivalentes às que teriam sido vivenciadas pelos cristãos do
primeiro século também conhecido como período “pré-constantiniano” 10. É o que
pretendemos analisar neste primeiro capítulo.

Se é correto o pressuposto de muitos do “Caminho da Graça”, a era apostólica,


representa uma rede semântica atemporal que ganhou um status de experiência
“instituínte” (BASTIDE, p.250) ou “fundante”, presente nas narrativas universais dos
cristãos e, a partir desta configuração pré estatal do cristianismo, pode-se localizar um
“núcleo verdadeiro e puro” – para se recorrer a uma tipologia weberiana. Essa idílica
“comunidade cristã perfeita” teria sido desfigurada e contaminada nos séculos
posteriores sobretudo pelos processos de institucionalização da Igreja no período pós-
pascal (período apostólico) e pela adesão do imperador romano, Constantino, em
outubro de 312 E.C. (RAMALHO, p.95).

Seguindo este critério, a conversão do imperador de Roma marcaria o auge de


um processo político-social que tornaria estatal o movimento cristão e, sob o manto do
império, se consolidaria definitivamente um processo de cristalização do cristianismo
que ganha vultuosa presença demográfica e cultural naqueles três primeiros séculos da
Era Comum (E.C.). Durante aquelas décadas que precederam a adesão do império às
lógicas monoteístas do Deus altíssimo, a hipótese é que há um progressivo
desvirtuamento da mensagem inicial pregada pelo taumaturgo-messias, Jesus de Nazaré,
calcada na simplicidade e na construção de relacionamentos. Esta mensagem estaria
marcada por dois principais pontos: a ação de sistematização teológica das igrejas
nascentes, realizado pelo apóstolo Paulo, assim como pela oficialização através dos
concílios, entre eles, o de Nicéia.

Primeiramente, é preciso delimitar os termos empregados na pesquisa e nesta


exposição: o que seria a constituição “orgânica” de uma instituição? Nas ciências
sociais modernas, o primeiro autor que considerou as sociedades, instituições e grupos,
como se fossem corpos vivos foi Herbert Spencer (1820 -1903). Este sociólogo e
filósofo, procurou demonstrar o funcionamento das sociedades por meio de um modelo
análogo aos processos naturais, em que os órgãos são beneficiados por adaptações
contínuas, tal qual a vertente do darwinismo social. Desta maneira, seguindo suas
sugestões, os grupos humanos estão inseridos em processos históricos que os

10
Verificar ANEXO I.

16
aperfeiçoariam, à luz da teoria da evolução, elaborada por Charles Darwin. No
evolucionismo spenceriano as sociedades caminham em direção à um “organismo
social” cada vez mais harmônico. Assim, aos poucos, sociedades ditas “primitivas”
seriam substituídas por outras, com maior aperfeiçoamento técnico-científico. A
premissa partilhava do pensamento das luzes, em que homem místico era substituído
pelo homem científico. No entanto, as crises no início do século XX, seguida das duas
grandes guerras, colocou em cheque o espírito evolucionista.

As teorias da administração também nos oferecem colaborações para o


entendimento do que significa “orgânico”. Gareth Morgan (2002) formulou certas
metáforas que qualificam os tipos de sistemas de gestão, com fim de aperfeiçoa-los:
“máquinas”, “cérebros”, “sistemas”, “políticos”, “organismo” etc. Segundo essas
metáforas de Morgan, é possível pensar as organizações como se fossem organismos
vivos. Desta forma, neste modelo de “gestão orgânica” o que vale é a permeabilidade
dos indivíduos em relação ao sistema total da empresa. O empreendimento, como corpo
operacional, dialoga com suas unidades mínimas, seus trabalhadores. Todos têm suas
perspectivas particulares e humanas valorizadas, diferentemente da visão mais
mecanicista da gestão empresarial. Assim, segundo o autor, as empresas que valorizam
as necessidades particulares de cada sujeito têm seu modo de gestão qualificado como
“orgânico”. Morgan (2002, p.52) ainda assinala que “desta forma, vamos vê-las [as
organizações] como sistemas vivos, que existem em ambientes mais amplos dos quais
dependem para a satisfação de várias necessidades. Consequentemente, o exame do
mundo organizacional, permite a percepção de que é possível identificar diferentes
espécies de organização em diferentes tipos de ambientes”.

Já no cristianismo, o primeiro a empregar esta metáfora foi o apóstolo Paulo. Ele


utilizou a metáfora do corpo para referir-se a natureza da Igreja e sua particular
inclinação à relacionalidade e interdependência coletiva:

“Ora, assim como o corpo é uma unidade, embora tenha muitos membros, e
todos os membros, mesmo sendo muitos, formam um só corpo, assim também
com respeito a Cristo. [...] O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos.
Se o pé disser: ´Porque não sou mão, não pertenço ao corpo´, nem por isso deixa
de fazer parte do corpo. E se o ouvido disser: ´Porque não sou olho, não pertenço
ao corpo´, nem por isso deixa de fazer parte do corpo. Se todo o corpo fosse
olho, onde estaria a audição? Se todo o corpo fosse ouvido, onde estaria o
olfato? De fato, Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua
vontade. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Assim, há
muitos membros, mas um só corpo. (1Co 12,1-20)

17
Neste texto Paulo expõe a ideia de que há uma interdependência no “corpo de
Cristo”, fazendo uma analogia direta aos sistemas biológicos. O apóstolo faz uso de
outras metáforas, mas encontramos nesta perícope a mensagem de que os diversos
membros da comunidade cristã estabelecida em Roma compreendessem que
participavam de uma comunidade onde se faz necessário o uso do “dom” de cada um;
também, todos são importantes, “não há menos, nem maior”. Ademais Paulo estava
desejoso em explicar que eles faziam parte de uma comunidade global, a ekklésia, a
universal.

Spencer, Morgan e Paulo nos ajudam na compreensão do que é “orgânico”. Suas


metáforas apontam para um tipo de comunidade de fé “orgânica”, que seria um
cristianismo de vida comunitária, interdependente, harmonioso. Como lemos na citação
de Paulo acima, e veremos posteriormente nos enunciados dos líderes das “Igrejas
Orgânicas” contemporâneas, é no cristianismo neotestamentário que encontraríamos
este estilo de vida capaz de fazer surgir “uma só alma e um só coração” 11. A seguir,
pretendemos aprofundar este debate a fim de construir algumas tentativas de
comprovação desta tese.

Em relação à importância do tema, há que se destacar também o modo como a


temática das origens do cristianismo assume destaque no âmbito dos debates
empreendidos pelos clássicos do pensamento social moderno: vejamos o enfoque de
Marcell Mauss e Marx/Engels 12.

Marcel Mauss (1974) ao dissertar sobre a “noção de pessoa, a de ‘eu’” como


uma categoria do espírito humano, tem como principal pressuposto que a noção de
“eu/pessoa” não é inerente à condição humana. Esta noção não é uma consciência
intuitiva, mas decorre de um encadeamento de processos sociais historicamente
sedimentados. Mauss arquiteta um “museu de fatos” (MAUSS, 1974, p.371),
elaborando um complexo e erudito arcabouço etnográfico sócio-histórico-cultural da

11
Atos dos apóstolos 4,42.
12
Encontramos outras significativas contribuições dos clássicos. Max Weber (1864-1920), em busca das
causalidades para a “racionalização” do mundo, procurando em diversas sociedades fatores que poderiam
eclodir no capitalismo, faz interessantes abordagens em sua “Sociologia da Religião”. Destacamos
também Peter Ludwig Berger (1929-), na obra “O Dossel Sagrado”, dedica alguns parágrafos à análise
das raízes da religião cristã, encontrando as vertentes mais primitivas da secularização na transição da
religiosidade “primitiva”, ou tribal, para uma religiosidade organizada e monoteísta.

18
categoria “eu”. Neste ensaio, o autor almeja reconstruir uma genealogia histórica das
perspectivas na “noção de pessoa” em diversas culturas com diferentes noções de
indivíduo/coletividade. No subcapítulo “A pessoa cristã”, o antropólogo afirma que:
“Nossa própria noção de pessoa humana é ainda fundamentalmente a noção cristã”,
Mauss (p. 392). Para isso ele toma como base a Epístola aos Gálatas 3.38: “Já não sois,
um frente ao outro, nem judeu, nem grego, nem escravo, nem livre, nem homem, nem
mulher, pois todos sois um, em Jesus Cristo”. Maus afirma que esta unidade (Cristo e a
humanidade em uma só substância), misteriosamente similar a duas outras substâncias,
a trindade e as duas naturezas de Cristo, deu origem a uma noção de pessoa como
“substância racional indivisível, individual”: segundo Mauss “a passagem da noção de
pessoa, homem investido de um estado, à noção de homem simplesmente, de pessoa
humana”.

Uma segunda citação a ser feita parte de Friedrich Engels (1895). Engels parte
de seu interesse pela ordem política ao observar a religião cristão original.
Evidentemente compartilha com Marx a visão materialista e ateia do fenômeno
religioso. Engels privilegia a importância do cristianismo de origem na construção
histórica da sociedade ocidental. Diante da clássica assertiva sobre o caráter
entorpecedor da religião, poderíamos perguntar: houve colaboração dele à reflexão
dedicada ao Cristianismo Primitivo? Encontramos no ensaio Contribuição para a
História do Cristianismo Primitivo (ENGELS,1895) a seguinte observação: “Desde o
início, a diferença manifesta-se gritante entre este cristianismo e a religião universal de
Constantino formulada pelo concílio de Nicéia”. Seu esforço é estabelecer o paralelismo
estrutural entre o cristianismo original e o socialismo moderno; assim comentado por
Lowy (1998): “a lembrança do primeiro cristianismo está presente em todos os
movimentos populares e revolucionários”. Para Engels (1895), “o movimento [cristão]
recrutara a maioria de seus primeiros adeptos entre os escravos do Império Romano. Ao
substituir as diversas religiões nacionais, locais e tribais dos escravos, destruídas pelo
império Romano, o cristianismo foi a “primeira religião universal possível”. A tentativa
de Engels estava em fornecer autoridade e transferir a mística cristã para as causas
trabalhistas-marxistas. Dentro desta teoria, é na relação do comunismo e do
“Cristianismo primitivo” que se percebe um grande suspiro por igualdade social em
ambientes ideológicos aparentemente antagônicos. Para Engels e Marx alcança-se o

19
comunismo pela revolução do proletariado, enquanto no cristianismo pelo víeis sócio-
religioso.

1.1 Em busca das experiências fundantes

O cristianismo, como todo sistema de crença, tem uma história. Requerer o


primado legítimo desta herança religiosa é um recurso recorrente de seus derivados
movimentos. Isso é perceptível quando há dissidências e disputa pela linhagem mais
“pura”. Assumir a proximidade dos sentimentos e pensamento dos fundadores é uma
tentativa de assegurar uma purificação da mensagem do grupo. Sendo assim, toda
religião é construída a partir de uma mobilização da memória coletiva.

Mircea Eliade (1972) também contribui, a nosso ver, na compreensão do


potencial dos processos de reconstrução da memória afetiva-religiosa que gravitam em
torno de seus elementos fundantes. Tomemos desse autor o conceito de “mito vivo”.
Este pode ser localizado em centelhas das narrativas eclodidas no evento sagrado
fundador da religião e em suas origens. Essa centelha instituínte tem a potência de criar
padrões de condutas, pilares institucionais e emocionais supratemporais que tem o
potencial de reatualizar o momento primordial (ou o Tempo Sagrado) das experiências
fundantes. Estas reatualizações são fundamentais para a manutenção do habitus de cada
religião. Apreende-se, através desta sua trajetória social, a rotinização do ritos e mitos
que fundamentam as religiosidades e suas formas, como uma habitus. Para Bourdieu
(1992, p.191) o habitus pode ser representado como “sistema de disposições
socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes,
constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias
características de um grupo de agentes”.

Para Eliade: (1972, p.47) “O homem religioso sente necessidade de mergulhar


por vezes nesse Tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o Tempo Sagrado que torna
possível o tempo ordinário”. Rememorar o Tempo Sagrado garante vivacidade ao grupo
religioso. Por conseguinte, através desta recordação dos elementos primordiais, é
possível reintegra-los ao cotidiano intramundano como se o mito estivesse lá nos
antepassados, mas também aqui e agora, através de uma substância mística. Eliade

20
recorre ao termo “tempo forte”, referindo-se ao momento histórico onde o prodigioso se
manifestou plenamente. Assim, ao mesmo tempo que o “mito vivo” revela ao indivíduo
sua origem e lugar existencial-social, ele reitera a necessidade da reverificação da
partícula ígnea para a manutenção do presente. Portanto a chave de leitura proposta por
Eliade ajuda no entendimento da mancha histórica cultural produzida tanto no
“Cristianismo primitivo” como também na noção de um “tempo forte” universal dos
cristãos.

Eric Hobsbawn (2008), por sua vez nos lembra que muitas tradições que
parecem antigas são, na verdade, narrativas recentes inventadas com o objetivo de
imprimir continuidade em relação ao passado. Isto é, são tentativas de tornar imutáveis
alguns aspectos da vida social em contraste às constantes mutações que um sistema
social pode sofrer no mundo moderno.

“Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histórico apropriado. [...] É o contraste entre as constantes
mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira
imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWN,
2008, p. 9-10).

Assim podemos estabelecer que, para uma análise minimamente equilibrada, é


necessário observar o cristianismo como um fenômeno histórico. Eduardo Hoornaert
(1995) elucida esta questão ao propor que a religião cristã, para muitos devotos e
“convictos”, pode ser entendida como uma realidade “meta-histórica”, idealizada e
naturalizada como a religião definitiva, para além da concretude de um fenômeno que
subjaz em um tempo histórico. Hoornaert, ao observar o cristianismo como “uma
realidade histórica, formada por um processo histórico específico”, acentua que nossas
opções metodológicas não são coincidentes com a teologia ou à uma certa tentativa de
“catecismo”, recorrentes em pesquisa originadas em instituições confessionais.

Desta forma, é nossa intenção analisar a configuração das comunidades cristãs


originais a partir de sua eclesiologia 13. Cabem aqui algumas perguntas: Será que, de
fato, os cristãos originais estariam comprometidos com o bem-estar da coletividade e

13
Entendida aqui como o estudo da organização da igreja e suas morfologias.

21
em completa harmonia e coesão entre os indivíduos? Quais resistências sócio-políticas
os cristãos do primeiro século encontrariam com o avanço da religião no mundo
mediterrâneo? Qual a morfologia das comunidades emergentes quanto à identidade de
seus sujeitos e quanto às redes sociais familiares?

Para atingir tais objetivos consideramos ser importante retomar a trajetória da


família nas sociedades judaica, romana e cristã, levantando dados sobre o modelo de
interação entre família, sociedade e igreja cristã, isto é, acompanhando o núcleo familiar
do ponto de vista sociológico. Com isso verificaremos as alterações eclesiológicas da
insurgente religião cristã espalhada em comunidades bem distintas umas das outras e
com notadas diferenças político-teológicas. Nesse contexto ganha importância a
afirmação de que a Igreja neste período de sua história experimentava um estágio
romântico. Estaria correta a proposta de Justo González de que “é um erro comum entre
muitas pessoas idealizar a igreja do Novo testamento” (GONZÁLEZ, p.32)? Por isso,
no decorrer do texto, procuraremos iluminar conflitos étnicos-religioso, mutações de
crenças, hibridizações de cosmovisões inerentes aos vários cristianismos ao redor do
líder messiânico–carismático Jesus.

Cabe nesta discussão inicial relembrar o que afirma Cecília Loreto Mariz, sobre
a viabilidade do ideário do “Cristianismo primitivo” aplicado por ela ao tempo presente
no estudo das Novas Comunidades Católicas 14. Assim se expressa Mariz:

“Acho difícil responder a essa pergunta, se de fato as novas comunidades


conseguem viver esse ideário, porque projeto e discurso podem ser diferentes da
realidade cotidiana, e me parece muito difícil fazer uma análise de uma realidade
que terminaria por ser um julgamento: estaria ela sendo cristã como quer
mesmo? Se elas conseguem viver esse ideário cristão de fato? Não sei, mas sem
dúvida o ideário das novas comunidades é o ideário comunitário do cristianismo
primitivo. Creio que isso também explica seu forte apelo para tantos.” 15

14
A renovação carismática, a partir dos anos 1970, especialmente em meados dos anos 1980, fizera-se
notar pela retomada de um ideário de vida comunitária ao redor da categoria nativa do "carisma". Além
disso, as Novas Comunidades Católicas rapidamente ganharam destaque ao implementar na liturgia
católica os cultos com ampla ênfase musical e espontaneidade; a exemplo do processo que acompanhou
os protestantes na mesma época, fizeram brotar no seio da ICAR, as performances midiáticas e uma
profunda inclinação para a vida comunal. (CARRANZA, 2009)
15
“O ideário das novas comunidades é o ideário comunitário do “Cristianismo primitivo”.
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2793&secao=307>
. Acessado em 10/10/2013.

22
1.2 Algumas questões teóricas preliminares

Este primeiro capítulo, sendo uma pesquisa realizada no campo das Ciências da
Religião, caracteriza-se, portanto, pela interdisciplinaridade. Por isso, como método de
pesquisa, é necessário realizar uma acurada verificação multidisciplinar dentro do
território comum formado pelas disciplinas e campos de estudos necessários para
organizar este debate de abertura sobre o cristianismo original, buscando construir um
todo coerente. Neste momento assumimos uma direção alternativa, mas não
concorrente, da proposta metodológica assumida no início da dissertação, na qual
apresentamos nossas referências teóricas gerais. Convém dizer ainda que debruçar-se
sobre a História e a Sociologia do “Cristianismo primitivo” é, antes de tudo, deparar-se
com processos históricos complexos diante dos quais requer acessar uma caixa de
ferramentas envolvendo análise nas áreas de literatura, sociologia, arqueologia,
antropologia, teologia. Os estatutos e limites das disciplinas e as latitudes
metodológicas 16, para que esta tentativa seja razoável e ganhe densidade empírica,
move-nos para estabelecer certas limitações e demarcações necessárias, que convergem
nas formas possíveis de uma análise da história e cultura antiga.

Segundo Howard Clark Kee (1983, p 10), o primeiro a empreender um trabalho


sério na reconstituição do cristianismo das origens através da análise crítica das fontes
foi Ferdinad Christian Baur (1792-1869). Kee afirma que o primeiro estudo de Baur
tomou como objeto uma suposta unidade comunitária radical no seio da religião cristã.
Por meio da análise dos partidos existentes na igreja de Corinto - o partido paulino
liberto da lei e o partido petrino judaizante - verificou-se a existência de “conflitos e
contrastes de opinião desde os tempos mais remotos que o historiador pode traçar”
(KEE:10). O autor ainda destaca as importantes contribuições no final do século XIX e
no início do século XX dos teólogos Adolf Von Harnack (1851 -1930) e Rudolf
Bultmann (1884-1976). Harnack, teólogo e historiador do cristianismo pretendeu
abstrair todas as infiltrações na religião cristão primitiva a fim de iluminar o que seria o
cerne, a essência de um cristianismo. Já os estudos do teólogo Bultmann são
reconhecidos pelo processo de desmitologização das narrativas canônicas, sendo um dos
principais fomentadores para o amadurecimento da teologia liberal.

23
Pode-se ainda perguntar: quais são os documentos e historiografias nos quais
podem-se enquadrar nossos esforços? Seguiremos Chevitarese (2005, p.9), que ao
dissertar sobre as fontes disponíveis da vida de Jesus de Nazaré e do cristianismo antigo,
enumera “os manuscritos do Novo Testamento; as escavações arqueológicas; as
descobertas de Qumran (manuscritos do Mar Morto) e de Nag Hammadi, no Egito,
escritos judaicos e no segundo caso escritos gnósticos; e os testemunhos de fora do
ambiente judaico-cristão”.. Chevitarese afirma que “a história se faz com documentos”.
Ela pode ser acessada através do testemunho de documentações, materiais ou não-
materiais, tudo de que se pode inferir algo, são fontes de informações historiografias.
Chevitarese também ressalta que nos tempos das primeiras comunidades cristãs
a maioria das pessoas era analfabeta e os livros, rolos de papiros, nada práticos para a
leitura. Poucos dominavam a escrita. Os antigos decoravam longas passagens,
recorrendo a uma tradição oral. Além disso, o historiador destaca a subjetividade da
memória. Recordamos aquilo que atende aos próprios interesses. Memorizamos certas
passagens e suprimimos outras. Por conseguinte, fatos mais exotizados, como os
milagres bíblicos, seriam motivo de maior vitalidade neste processo de recepção,
memória e descrição. Logo os textos traduzem também um problema da alteridade
discursiva; um enaltecimento das perspectivas do próprio enunciador em relação aos
seus destinatários (CHEVITARESE, 2005, p. 9-14).
Por isso, optamos por realizar a nossa pesquisa por meio da análise dos textos
canônicos e de fontes subjacentes, às quais acrescentamos a análise de diversos
debatedores. Nosso percurso bibliográfico foi traçado a partir das próprias demandas e
perguntas surgidas no decorrer da pesquisa. Sobre os textos canônicos, Pedro Paulo A.
Funari (2006, p.12) afirma que

“Os pesquisadores têm se voltado, de forma interdisciplinar, para o estudo do


momento central de origem e formação desse movimento social e religioso que
continua mais atual do que nunca. Essas pesquisas bebem na tradição
multissecular de exegese dos textos bíblicos, mas buscam instrumentos de
análise na teoria social, que permitam entende como se deu a constituição das
identidades cristãs”

Antes de prosseguir propomos conceituar “Cristianismo primitivo”. Para fins de


análise, compreendemos que é um período que vai do nascimento de Jesus (ano seis
antes da Era Comum) até meados da suposta conversão do Imperador Constantino, em

24
312 E. C. Embora haja diversas tendências quanto ao assunto, optamos por este corte.
Por sua vez, este período pode ser divido em três partes: a) “Movimento de Jesus” - do
nascimento de Jesus Cristo, até sua crucificação. b) “Era Apostólica” (Ano 34-100),
morte de Jesus até a morte dos primeiros apóstolos. Período marcado pela propagção
geográfica do cristianismo para fora da palestina, sobretudo nas províncias romanas
através da atuação dos Apóstolos c) “Cristianismo pós-apostólico” (anos 100 até
meados do ano 300), período inicial da progressiva institucionalização do Cristianismo.

Além disso, é preciso frisar algo mais sobre o “Cristianismo primitivo”.


Podemos delimita-lo como um fato histórico. Porém, para além desta delimitação
possível, gostaríamos de ressaltar sua representação como um “espírito”, tal qual propôs
Max Weber em sua “Ética protestante...”, uma “conduta de vida”, uma entidade capaz
de organizar metodicamente o mundo, capilarizando-se na cultura e que, em um
determinado momento de seu desenvolvimento, divorcia-se dos significados de sua
causa primária. O que queremos propor não é comparar o “Cristianismo primitivo” ao
protestantismo de ascese intramundana, como propôs Weber, mas tão somente utilizar
sua originalidade vernacular e sugerir o “Cristianismo original” como uma Zeitgeist, em
suma, o conjunto de “climas emocionais”. Resumidamente, o “Cristianismo primitivo”
como um horizonte de afetos perseguidos por todas dissidências ou um “espírito” de
gradientes múltiplos, mas que subjaz toda tentativa de encontrar-se com o fenômeno
causal da gênese cristã, no mito original.

A esta altura nos reportamos a uma pergunta de Paul Marie Veyne (1995): a
história “não faz os fatos reviverem”? Como localizar o cristianismo antigo em sua
amplitude, marcados por inúmeras agências e conflitos, continuidades e rupturas,
diversidade autoral e circulações étnico - culturais? Ainda, como suspeitar o
supracitado cristianismo original, avaliando-o através de suas documentações e fontes,
uma vez que a história, ainda conforme Veyne (1995), afirma que o ofício do
observador - historiador não é “puro”, é realizado a partir dos próprios projetos e
edições, olhares e perspectivas, tomando decisões de descrição e interpretação durante
seu percurso de análise, privilegiando tramas em detrimento de outras e assim construir
um tipo de literatura que contenha insights e subjetividades cotejadas diante de uma
série documental.

Concordando com Pedro Paulo A. Funari (1995), para quem os objetos de


estudo antigo, como documentos, vestígios materiais, artísticos e arqueológicos, são

25
construções complexas da realidade e podem ser acessados pela análise do discurso,
introduzidos pela moderna semiótica, pois os mesmos tem autoria, públicos e objetos
específicos, vozes polifônicas e devem ser analisados de múltiplas maneiras, diante de
diferentes paradigmas e disciplinas.

Porém, as pesquisas com fontes históricas nem sempre valorizaram tais “vozes
polifônicas”. Para Paulo Celso Micelli (1999) até o início do século XX a disciplina
“História” era elaborada a partir de relatos de “grandes fatos” em que personagens
históricos tornavam-se verdadeiros heróis do passado. Neste viés, eventos tornavam-se
magistrais e, a partir de sua documentação, “oficialmente verdadeiros”. Os fatos,
descritos a partir de um documento oficial era considerado de indubitável verdade, com
influências positivistas que tentavam mostrar os fatos, reconstruindo uma realidade tal
qual realmente aconteceu enaltecendo feitos heroicos e magistrais, o que se considera
ser uma “história dos vencedores”. Portanto, diante do historicismo positivista, a
história sempre será o registro dos reis, papas, generais e bispos, datas importantes e
nacionais, eventos históricos que causaram grandes rupturas.

Este contexto não torna possível a dialogia, a polifonia de vozes e diferentes


tramas que compõem uma análise histórica que acolhe réstias, coleta detalhes para
compor sua tapeçaria que privilegia texturas e interlocutores diversos e subalternos.
Aguçados às casualidades e histórias cotidianas, surge uma nova geração de
historiadores constituídos ao redor do periódico Annales d'histoire économique et
sociales: A Escola de Annales. Nos anos de 1920, época da crise de 1929 e das duas
grandes guerras mundiais quando a utilização de pesquisas enviesados positivamente
que tomavam por base os grandes processos e minimizava as entrelinhas da vida,
privilegiando as grandes estruturas e desconsiderando os interlocutores-sujeitos ou as
“micro histórias”; correndo-se o risco de aviltar a vida humana. A partir desse escopo a
tarefa do historiador se torna a de mergulhar como protagonista em diferentes ritmos,
interlocutores e escalas. Sobre isso regista Micelli (1999, p. 31): “Uma sociedade com
os seus tipos humanos, os seus hábitos e as suas ações, na sua originalidade mais
irredutível e, ao mesmo tempo, mais cotidiana; a naturalidade desse quadro, que não
ofusca nenhuma abstração”.

Roger Chartier (1994, p. 8) propõe a seguinte questão: “Qual é a distância entre


o autor na sua origem e neste seu ponto de chegada?” As percepções do social estão
inseridas em um jogo de estratégias e práticas que impõe a construção de uma

26
“autoridade” em seus enunciados, considerando os pequenos geradores de classificação
e de percepção, próprios de cada grupo ou meio, incorporados sob a forma de categorias
mentais e de representações coletivas nas demarcações da organização social. Nos
estatutos da história cultural esta intenção de identificar como uma realidade social é
construída, pensada e descrita.

Deve-se observar que as representações do mundo que tendem a ser


universalistas não são neutras, representam o projeto dos interlocutores que as
enunciam, conforme já escreveu Chartier (1994, p. 17-18). De igual modo, Eliane
Moura da Silva (1997, p.7) contribui também, dentro da perspectiva da História
Cultural, onde o domínio, segundo a historiadora, recai sobre a análise de um quadro
dos fenômenos religiosos múltiplos, onde se pretende ressaltar as construções de
identidades fluídas e memórias coletivas. Logo “para estudar os fenômenos religiosos,
o historiador deve sempre estar atento ao uso e sentidos dos termos que em
determinadas situações geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos etc.”.

Para Pedro Paulo A. Funari (2010), apenas a partir da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) houve um questionamento em relação à homogeneidade social propalada
desde o fim do século XVII, quando os nascentes estudos sociais enfatizavam uma
coesão social, a luz de uma racionalidade positivistas, e as ciências humanas
procuravam entender a sociedade como um organismo coeso. As crises sociais eram
encaradas como anomalias nos estudos de Émile Durkheim (1858-1917). “A crise moral
e política dos anos sessenta estimulou vasta manifestação de busca de identidade social”
(KEE, p. 14) e os movimentos pelo direito das minorias (emancipação feminina, direitos
dos jovens, levantes contra a guerra do Vietnã) expuseram o “projeto de sociedade
monolítica (FUNARI, 2010, p.11) e evidenciaram um interesse pelas sociedades em
outras escalas e diversidades. Com a implosão dos antigos contextos que conferiam
homogeneidade às identidades, Funari (FUNARI, 2010, p. 13) lança um olhar
apontando para alguns aspectos metodológicos de importância na discussão do assunto:

“A partir da década de 1960, a partir também das pesquisas empíricas de campo,


foi possível detectar a fluidez das identidades, nos indivíduos e nos
agrupamentos humanos. Essa perene mudança foi atribuída a diversos fatores,
desde interesses materiais e imateriais e objetos, como fatores psicológicos ou
simbólicos. De qualquer forma, as identidades passaram a ser consideradas
sempre no plural e em constante mutação. Esse movimento afetou, de forma
decisiva, o estudo do mundo antigo, que ainda era muito marcado pelos modelos
normativos e pela analogia direta entre o antigo e o moderno”.

27
Por isso, ainda segundo Funari (2010, p. 218), “as fontes escritas partem sempre
de um ponto de vista que reflete interesses de classe, de grupo, de ideologia, de modo
que são construções altamente subjetivas e enviesadas” e aborda a inserção de um
estudo da cultura material (no caso, arqueológica) para entrecruzar interesses e desta
maneira fornecer mais informações sobre o mundo em que viveu Jesus. Respondendo à
pergunta de “como a arqueologia [pode] interagir com temas ligados à fé e ás crenças?”
(2010, p. 225) O autor remete à “arqueologia bíblica” que inverteu o papel de “serva do
texto bíblico” para contribuir de maneira ativa para a compreensão do funcionamento
das redes da antiguidade e não tão somente legitimar as conclusões dos exegetas.

Como notamos, os estatutos e limites das teorias e as latitudes metodológicas


nos leva a estabelecer as fronteiras e as demarcações de variadas disciplinas que
convergem nas formas possíveis de análise da história e cultura antiga que para Gerd
Theissen (2009, p. 11) está : “a fim de descobrir o que movia os primeiro cristãos no
mais íntimo de seu ser, é preciso perscrutar por inteiro a vida deles e inserir suas
afirmações teológicas em contextos semiótico, social, psíquico e histórico que não são
imediatos ´teológicos´”.

Por conseguinte, concordamos com Wayne A. Meeks (1992, p. 15), quando


afirma o “uso [...] a teoria aos poucos, à medida que vai sendo necessário e onde
convém”. Para o sociólogo a sociedade é encarada como um processo, onde as culturas
são criadas continuamente através de interações por meio de símbolos no campo das
experiências. A religião é parte integrante deste tecido, e como uma subcultura participa
da construção desta rede de significados. E procuramos estar próximos
metodologicamente à Clifford Geertz (2008) quando considera a cultura como um
“tecido de significados”, interpretados através de uma “descrição densa” e cujos
entrelaçamentos dá sentido ao mundo. Desta forma, atentos ao modo como os cristãos
agiam, analisaremos ecleticamente, selecionando formatos da caixa de ferramentas.

Desta forma, um dos aportes que este exercício oferece à pesquisa é de


desenvolver um debate de história das religiões comparadas privilegiando a “micro
história” e as tramas e redes formadas pelos indivíduos. Pretendemos, ao desenrolar da
análise, compreender o arco histórico-social no cotejo de faces diferentes da mesma
moeda, por um lado, a religião marginal (“de margem”) do incipiente “Cristianismo

28
primitivo” e, de outro, seu horizonte contemporâneo, quando a religião cristã, em suas
várias vertentes, assume o posto de produtora sócio religiosa majoritária no mundo
ocidental. Conforme propõem Filoramo e Roda (1997, p. 7):

“Conclui-se pela necessidade de uma história por assim dizer comparada, isto é,
que inscreva em seu próprio código a tensão a comparar, continuamente o fluir
das instituições, das práticas e das crenças cristãs com as contemporâneas
instituições, práticas e crenças pagãs, a fim de evidenciar melhor, pela
comparação, continuidades e diferenças, empréstimos e especificidades”.

1.3 - Identidades e comunidade no cristianismo original: sombras e luzes

O problema que diz respeito à origem e a evolução da organização igreja é um


dos mais controvertidos e difíceis da história eclesiástica. Deste modo, é para a
organização igreja que devemos nos voltar para compreender como, em seus períodos
originais, modelavam-se as identidades cristãs primitivas. As contribuições de
pesquisadores contemporâneos continuam a depurar as ingenuidades das narrativas
predominantes até o passado recente, purgando uma perspectiva cândida do germe do
cristianismo.

Como em toda pesquisa histórica faz-se necessário delimitar o método e o


período a ser analisado antes de se aprofundar na questão. Retomamos este ponto para
uma última fase, de ajustes finos. Seria falso afirmar a existência de um único
movimento “puro”, sem considerar que o Movimento de Jesus foi sucedido por vários
outros movimentos, com diversos nomes e práticas. Podemos citar alguns: paulino,
judaico, gnóstico, monástico, cenobítico, entre outros. Afinal, quando falamos do
“Cristianismo primitivo”, estamos falando de qual cristianismo? Cada qual com suas
ênfases e paradigmas, acreditavam trazer consigo a mensagem de Jesus. Daí a proposta
de colocar nome a este subtítulo de “sombras” e “luzes”.

Diante desta questão seguiremos os critérios propostos por Gerd Thiessen em


“A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do “Cristianismo primitivo” (2009). Seu
método é o da “plausibilidade contextual” e fazemos uso dele como categoria
epistemológica para nossas indagações. Lançaremos mão do sistema formulado por
Theissen, pois “nos dá a chave para ler a história de Jesus”. Através do processo
metodológico proposto pelo autor, torna-se possível a leitura de Jesus e seus

29
coadjuvantes em seu tempo, assumindo os lugares dentro de variados ambientes e em
diferentes comunidades de interpretação conforme sugere Sean Freyne (2008, p. 12).
Esse autor sustenta que a teoria de Theissen, sobre a “plausibilidade” permite pensar o
objeto e as narrativas conflituosas dentro de um quadro maior, em consonância com o
contexto cultural de seu tempo. O método de Thiessen se aproxima das considerações
de Wayne A. Meeks (1996) quanto ao estreitamento metodológico e com a definição de
que a religião é um “sistema cultural de sinais” formulado por Clifford Geertz (2008, p.
65-91).

Outro aspecto norteador deste empreendimento é a proposta de Leonildo


Silveira Campos (1997, p. 170), ao assinalar que os estudos sociológicos permitem aos
pesquisadores verificarem “como foram criadas e sobrepostas as camadas de
interpretação produzidas pelos cristãos daquela época, na vivência diária da mensagem,
originalmente anunciada por Jesus de Nazaré”. Por isso, as pregações de Jesus, os
evangelhos, os processos de canonização, foram organizados de acordo com processos
comunicacionais/políticos complexos, seguindo o fluxo de institucionalização das
comunidades originais, tornando nebuloso o horizonte para a captura de um tipo ideal
de “Cristianismo primitivo”:

A complexidade dos cristãos do primeiro século, exteriorizada nesses e em


outros episódios de negação da sociedade organizada, nos impede de encararmos
com seriedade as várias tentativas de ´volta a igreja primitiva´, existentes em
todos os grupos cismáticos, inclusive nos pentecostais. É preciso que
reconheçamos que “Igreja Primitiva´ é apenas um tipo ideal recriado muito mais
a partir da imaginação do que de evidências históricas. Daí a violência
apologética à verdade dos fatos, a reconstrução feita por alguns grupos [...] de
um ponto de referência idealizado, ao qual que, entre outros pecados, estaria o
de ter abandonado a ênfase carismática e a centralidade do Espírito Santo. Esta
reconstrução [...] só é possível se abandonarmos dezenove séculos de cultura
cristã[...] e a constituição da igreja cristã como movimento e instituição”
(CAMPOS, 1997, p. 169)

Nesse sentido, é importante pensarmos no Movimento de Jesus dotado de um


programa de insurgência religiosa, inserido em uma sociedade já penetrada por diversas
religiões. A personagem principal deste momento é seguramente Jesus: o profeta
carismático nômade, que junto ao seu núcleo inicial de seguidores, operava sinais e
milagres como comunicação da proximidade do Reino de Deus. No entanto, os textos

30
canônicos sugerem pouca sistematização neste grupo inicial de discípulos, assim como
poucas as atividades que podem ser consideradas como institucionais neste conjunto
inicial. Realizam-se refeições e atividades cotidianas em conjunto, impondo-se somente
dois sacramentos, o batismo e a ceia, Já em um segundo momento seria interessante
recompor o cristianismo “pós pascal” em expansão, analisado em sua composição
básica: as redes familiares (judaicas, romanas e gregas que se convertiam) e o
surgimento destas igrejas domésticas na cidade. Diante da fértil atuação dos apóstolos
progressivamente estas congregações ganhavam um certo padrão e uma certa
homogeneidade teológica, isto é, eles se institucionalizavam. Esta já não era a situação
no século IV quando do surgimento de um cristianismo institucionalizado conforme o
modelo do império.

1.3.1 - Movimento de Jesus

Como eram os processos de interação no chamado Cristianismo de origem? Para


John Drane (1985, p. 10), a igreja “começou com a vida [...] de Jesus de Nazaré” (p.
10). Assim, embora moldada por diversas tendências e, sobretudo, controvérsias em
relação à autoridade das fontes e as metodologias empregadas, o início do cristianismo
inexoravelmente se assenta nas figuras de Jesus e sua comunidade germinal de
discípulos.

Theissen & Merz (2004, p. 21-33) destacam cinco fases na pesquisa sobre a vida
de Jesus: 1) “Os impulsos críticos para a questão do Jesus histórico” por H. S. Reimarus
(1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-1874). Reimarus foi pioneiro na
interpretação da literatura da “religião da razão”. Seu ponto de partida foi a premissa de
que a pregação de Jesus só pode ser compreendida dentro de seu contexto histórico.
Strauss, discípulo de F. C. Baus e F. W. Hegel, aplicou aos evangelhos o conceito de
mito. 2) A fase da pesquisa “liberal” sobre a vida de Jesus, cujo representante maior foi
Heinrich Julius Holtzmann (1822-1910). Holzmann evidenciou a crítica literária sobre
as fontes mais antigas sobre Jesus (O evangelho de Marcos e a fonte Q). 3) “o colapso
da pesquisa sobre a vida de Jesus”, na virada para o séc. XX, enfraqueceu-se o
liberalismo teológico; 4) “A nova ´pergunta´ pelo Jesus histórico”, desenvolvida dentre
os discípulos de Bultmann, quando “no lugar da reconstrução crítico literária das fontes

31
mais antigas na ‘antiga’ pesquisa da vida de Jesus da teologia liberal, entra em cena a
metodologia da comparação que emprega a história das religiões e a história da
tradição: ´o critério da diferença´” (p. 26); e por fim, a quinta fase 5) A third quest, temo
cunhado por T. Wright/S. Neil. Ainda Chevitarese & Funari (2012) mostram como
diversas escolas e movimentos tangenciaram as pesquisas acerca da figura de Jesus,
sobretudo com os influxos do movimento europeu que privilegiava o uso da razão, a
erudição e a ordenação da natureza para encontrar a verdade, dentro do espírito do
iluminismo.

É digno de nota situar o Movimento de Jesus a partir dos clássicos da Sociologia


da Religião. Tomando-se por base o carisma, um conceito chave forjado por Max
Weber (1864-1920) e desenvolvido por Pierre Bourdieu (1992), podemos inferir sobre a
tensão entre “profeta” e “sacerdote” já presente no ministério de Jesus. Estes termos
weberianos permitem a clivagem do messias cristão como o tipo carismático. Basta
seguir a tendência do messias à dissidência e a desordem e a maneira como Jesus reagiu
contra a classe religiosa operante em sua sociedade; foi criado no seio do judaísmo e de
lá insurgiu como um pregador carismático do “Reino de Deus”. A sua pregação soava
como uma mensagem subversiva aos ouvidos habituados às observações das leis
judaicas e subordinação ao governo romano. Como taumaturgo, Jesus de Nazaré
expulsou demônios, curou enfermos e os relatos iluminam seus feitos miraculosos que
alimentaram a fé de inúmeras gerações, rompendo com a ordem estabelecida em seu
tempo. Para Guy Bonneau (2003, p. 9) “Em várias religiões, é o profeta que traz em si o
carisma”, e que “Weber definiu o profeta como um indivíduo carismático, que se
insurge contra a estrutura religiosa estabelecida, com a finalidade de provocar eventuais
mudanças ou então de fundar uma entidade nova e diferente, nela reunindo os
simpatizantes de sua nova ideologia” (p. 9).

Segundo Howard Clark Kee (1983) o tipo ideal weberiano profeta “ético” é o
tipo carismático mais apropriado para nossas intenções. Assim, para Weber este líder
encontra-se imbuído da convicção de uma vocação particular, e é confiante que suas
ações estão em harmonia com as do divino. “A potência de sua habilidade carismática
manifesta-se nos dons especiais que possui (como curar ou a capacidade de prever) e na
eficácia de sua pregação” (KEE, 1992, p.48)

Tomando como base a metáfora weberiana, se por um lado o sacerdote faz a


manutenção do status quo, cabe ao profeta carismático fazer implodir a estrutura

32
tradicional. Weber auxilia a fundamentar a constante tensão presente no Novo
Testamento - em um polo o cristianismo de Jesus de Nazaré, caraterizado pela ruptura
com os dogmas reguladores e subversor dos sistemas; e por outro, segundo o autor, o
processo de rotinização deste carisma, quando a novidade efervescente tende a se
estabelecer e perde a vitalidade. Neste momento se estabelecem normas e rotinas, por
meio da “rotinização do carisma”. Para P. L. Berger e T. Luckmann (1973, p. 79): “A
instituição ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos
de atores. [...] qualquer uma dessas tipificações é uma instituição. O que deve ser
acentuado é a reciprocidade [entre os atores] das tipificações”.

Dito isto, antes de prosseguir, é importante munir-nos de um breve esboço


biográfico acerca de Jesus, esboçando sua vida e atuação.

Pouco se sabe sobre o Jesus da história e o que sabemos dele é por meio de
relatos “hagiográficos”. Porém o que conhecemos sobre a práxis cotidiana de Jesus
junto a sua comunidade de discípulos (“dos 12”)? Gunther Bornkamm (2005, p .100)
sustenta que os “evangelhos falam muito mais de suas pregações, de suas discussões
com os adversários, de suas curas e da ajuda que ele presta aos que sofrem [...] o povo
corre a ele, os discípulos seguem, mas também seus inimigos entram em ação e se
multiplicam”. Por conseguinte, é uma tarefa difícil estabelecer como de fato era o dia a
dia do rabi Jesus, uma vez que a tradição oral do conteúdo religioso tende a enaltecer
fatos cotidianos e privilegiar atos extraordinários. No entanto, podemos arriscar a
construção de certo cenário.

Gerhard Lohfink (2011) propõe uma divisão da comunidade inicial do


“carismático” nazareno, em dois diferentes segmentos de discípulos. Primeiro os
“estáticos”, aqueles que acolheram sua mensagem, no entanto permaneciam em suas
aldeias aguardando o reino vindouro. Neste grupo podemos incluir José de Arimatéia
(Mc 5,43), também recordar Zaqueu, que prometeu restituir aqueles aos quais causou
dano financeiro quadruplamente (Lc 19,8) e doar metade de seus bens aos necessitados
e, ainda citar, Lázaro (denominado amigo de Jesus) (Jo 11,1) que permanece em
Betânia.

O segundo grupo de discípulos são os itinerantes. Ainda segundo Lohfunk


(2001, p. 56-57), “bem mais delimitado”. São os mais próximos e sobre os quais Jesus

33
exercia certa responsabilidade 17 e tutela pessoal. Seus alunos-discípulos se
diferenciavam da relação entre os alunos dos rabinos, estes interessados em aprender da
Lei; os discípulos de Jesus o seguiam porque compreenderam que o Reino estava
próximo e assimilavam uma mensagem mais prática. Eles deixavam suas profissões e
famílias (Lc 9,59; Mc 1,16-20). Para Lohfunk (2001, p. 57), “Jesus exige, portanto, dos
seus discípulos a renúncia decidida à própria família [...] em vez de sua família e de
todas as ligações de sangue e amizade entra a comunhão de vida com Jesus”.

Neste grupo inicial estavam Maria, mãe de Jesus, os apóstolos Pedro, Tiago e
João, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago (filho de Alfeu), Simão (Zelote) e Judas
(filho de Tiago) e Matias substituto Judas, que se suicidou. Como dito acima, esta
agremiação inicial era reconhecida como os do “O Caminho”, ou o Grupos dos 12.
Estavam convencidos de que tinham uma mensagem que todo o Israel devia ouvir”.
Jerusalém era o centro da autoridade do judaísmo e a mensagem deveria ser difundida a
todos. Jesus levou uma vida itinerante junto a estes seguidores. Abrigavam e
alimentavam-se nas aldeias, em que permaneciam por pequenos prazos. Era
acompanhado, além dos doze Galileus, por um círculo de pessoas que o admiravam e
desejavam sua pregação e atos mágicos. Este seu nomadismo era recusado por alguns,
que, como dissemos, preferiam permanecer em suas cidadelas (aparentemente, após sua
morte, o estilo “nômade” ficou restrito aos apóstolos e profetas. (SKARSAUNE,145).

A análise das fontes aponta para a existência de um “Movimento de Jesus” que


não se deixa condicionar pelas circunstâncias religiosas de sua sociedade. Nas tensões
da sociedade em que vive, dominada por religiosos tradicionalistas vinculados a vários
tipos de dominações estrangeiras, políticas, dogmáticas e ideológicas, Jesus surge como
um homem livre, sem reconhecer os limites impostos pela sua própria cultura religiosa.
Isso implicava em nutrir em seus seguidores experiências religiosas outsiders, que não
constavam no cardápio do senso comum religioso de seus contemporâneos. Estas
experiências vividas pelos discípulos foram fundamentais para consolidar o posterior
grupo carismático e extático dentro das comunidades paulinas. Desta forma, as
narrativas de Jesus apontam que o líder messiânico valorizava a vida interior,
apregoando a ideia de piedade e não uma religiosidade de obras meritórias e de religião

17
Verificando Mc 2.24 - “Vê! como fazem ele o que não é permitido fazer no sábado?”, percebemos que
“aos olhos de seus vigiais, é responsável por seus discípulos, assim como os doutores da lei são
responsáveis por seus alunos” para Lohfinkk, (2011, p. 57)

34
cerimoniais.

O insurgente profeta não se limita às regras dos fariseus: omite os rituais


purificatórios e tradições excludentes como a cura ao sábado, não da atenção as
prescrições religiosas (Mc 1,29; 3,1-7a); não respeitar os preceitos sobre o puro e o
impuro nas prescrições alimentares (Mc 7,1-23); colocar-se contra a lei religiosa que
proibia caminhar com pessoas de má fama, relacionava-se com prostitutas, cobradores
de impostos e categorias marginalizadas, como no caso das mulheres que também o
seguiam.

Jesus também ironiza a necessidade dos dirigentes religiosos-políticos de


sobressair-se em solenidades exageradas e na exploração dos mais fracos: chama-os de
“bandidos” (Mt 21,13), denunciando-os, quanto a sua hipocrisia. Ainda diz a
preferência de Deus pelas prostitutas aos sacerdotes saduceus (Mt 21,28-32). Quanto às
autoridades civis, Jesus não se amedrontava frente a Pilatos ou de Herodes (Lc 13,31s;
Lc 23,6-9), conforme Juan Mateo & Fernando Camacho (1992, p. 63-76).
As pesquisas de Mateo e Camacho (1992, p. 69) revelam que Jesus “nunca
aparece nos evangelhos participando de atividades no templo”, a não ser quando
participando de festas e utilizando-as como espaço público de pregação. Jesus muda o
conceito da relação do espaço do sagrado, propondo novas liturgias. Suas críticas ao
próprio culto voltam-se ao fato de que nestes rituais eram realizadas atividades
esplendorosas, sustentadas pelos impostos religiosos e donativos dos fiei - sublinhando
o contraste entre os sacrifícios oficiais e a pobreza/opressão do povo sob domínio
romano. Apesar de frequentar a sinagoga, seu objetivo era iluminar novas perspectivas
religiosas aos seus frequentadores. Diante de um doutrinamento farisaico, o culto, para
o messias Jesus, não requeria espaços sagrados (João 4,21): “O culto e a própria vida
animada em amor” (MATEOS & CAMACHO,1992, p. 69).

A luz do que já foi exposto podemos notar a antinormatização de suas práticas e


contextos, era importante para Jesus deixar uma sociedade minimamente constituída por
seus seguidores com determinado grau de princípios régios. Desta forma, ao invés de
sistemas teológicos sofisticados, sugeriu aos seus seguidores os ritos mais simples: o
batismo e a ceia. Para Robert Hastings Nichols (1997, p. 21-22):

“Ele não modelou qualquer organização ou plano de governo para esta

35
sociedade. Não indicou oficiais para exercerem autoridade sobre os membros de
tal organização. Credo algum prescreveu para ela. Nenhum código de regras lhe
fora imposto. Não prescreveu ordens ou formas de culto. [...]. Deixou a igreja
livre para escolher as formas de organização e de culto, afirmações de crença,
métodos e trabalho, etc.“

Com essa afirmação Nichols (1997) nos leva a compreender as experiências da


comunidade inicial como ontologicamente vinculadas ao líder Jesus. Como ele não
sugeriu qualquer padrão sistematizador para seu primevo grupo, após sua morte este
novo grupo basicamente era vitalizado pela sua memória viva, um “jeito de viver” em
que ele mesmo permanecia latente na comunidade, na vida cotidiana, no modo de
conduzir esta coletividade como lhes parecerem mais apropriado.

Desta forma, para manter certa homogeneidade doutrinária que distinguisse a


Igreja de Jesus dos demais movimentos coetâneos, surgia aos primeiros cristãos a
necessidade de definir fronteiras. Em resposta a esta lacuna, despontava a atuação
emergente dos tutores teológicos, função certamente logo ocupada pelos apóstolos.
Assim, do efervescente grupo de seguidores de Jesus, a Era Apostólica foi marcada por
conflitos e tensões no processo de sistematização das igrejas que emergiam no
Mediterrâneo. Para Campos (1997, p. 247): “Com a desaparecimento da primeira
geração de fiéis cristãos, surgiu a necessidade de sistematizar as narrativas”. Assim,
concordando com a análise de Peter Ludwig Berger & Thomas Luckmann (1973, p. 77).
Para Berger & Luckmann, o movimento inicial se petrifica no decorrer do processo para
que suas próprias fronteiras e identidade religiosa fossem estabelecidas, assim sendo
“toda atividade humana está sujeita ao hábito, toda ação freqüentemente repetida torna-
se moldada em um padrão, que pode em seguida ser reproduzida com economia de
esforço”.

No próximo passo, notaremos um arco do Movimento de Jesus até os limiares da


institucionalização definitiva da religião cristã (“constantinização”), imbricando as
diversas comunidades emergentes no mediterrâneo. Apesar de heterogêneo, veremos
que compartilhavam certos sentimentos comuns (por exemplo, a esperança escatológica
da volta do messias). No entanto, com a expansão progressiva daquilo que
posteriormente viria a ser considerado o “cristianismo”, estes novos grupos nasciam
híbridos, com cores regionais e interpenetrados religiosamente a medida que indivíduos
advindos de outras crenças traziam ao nascente cristianismo resquícios de sua devoção

36
anterior.

Neste ínterim, como veremos mais adiante, o movimento cristão se expande


impulsionado pelo vigor das viagens missionárias do apóstolo Paulo, contando com a
hospitalidade de redes familiares espalhadas pelo interior do império. Paulo atuou
capilarmente no ambiente urbano, em diversas cidades, culturas e entornos filosóficos.
Iniciada a perseguição aos cristãos, o cristianismo dilata-se para além de Jerusalém em
várias cidades - Éfeso, Corínto, Antioquia, etc. Sobre este aspecto, Wilisson Walker
observa que: (1967, p. 67)

“Um dos problemas mais controvertidos e difíceis da história eclesiástica é o que


diz respeito a origem e a evolução da organização da Igreja. Isso se deve ao
número reduzido de provas de que dispomos. É provável que o desenvolvimento
da organização tenha sido diferente nas diversas localidades. As congregações
cristãs não tinham todas as instituições de forma idêntica”.

1.3.2 - O surgimento das Ekklésias

Para Ekkehard W. Stegemann e Wolfgang Stegemann (2004) os cristãos iniciais


se reuniam em pequenos grupos autodenominados ekklésias, uma palavra grega
utilizada para representar “comunidades domésticas e para todos os crentes em Cristo”.
Nesse texto, Stegemann & Stegemann (2004, p. 297) registrou que Ekklésia é:

“Comunidade, reunião comunitária, igreja [...] no centro de uma história social


deve estar a construção de ekklésias como uma grandeza social ou empírica, em
que determinadas pessoas se reuniam, mas que também tinha vínculos
comunitários que iam além das reuniões concretas”.

Segundo esses autores, estas reuniões aconteciam “predominantemente em casas


particulares”, porque “não existia um prédio com função sacral propriamente dito
(igreja)”. É por meio de Stegemann & Stegemann (2004, p. 132-133) que podemos
deduzir que o número de membros estava em conformidade com a capacidade física de
cada residência, estimando-se uma quantidade modesta de membros em cada
comunidade.

O debate proposto por Stegemann & Stegemann (2004, p. 298) sobre o conceito
da ekklésia no protocristianismo, destaca duas tendências quanto ao seu significado. Em
primeiro lugar ekklésia é uma “reunião efetiva”. Neste conteúdo semântico, a

37
linguagem neotestamentária está vinculada ao sistema de linguagem comum judaica,
“não religiosa”, cujo significado é simplesmente uma “assembleia política dos cidadãos
com direito a voto (somente homens) de uma cidade”; tanto no conceito extra bíblico
pela comunidade judaica e pagã como na interpretação bíblica, ekklésia significa o ato
de “reunir-se”. Assim, ainda segundo os autores, as ekklésias na experiência social
“primitiva”, incluindo em outras regiões da Ásia menor e Grécia (onde circulavam as
cartas de Paulo), o vocábulo era entendido como sendo uma “reunião”. O segundo
conceito para ekklésia é o de “comunidade”. O conceito também pode designar pessoas
sob a verve de uma identidade, implicando um grupo com determinada pertença,
reunidas ou não. Portanto, para Stegemann & Stegemann (2004, p. 299-300) “[ekklésia]
sugere que a comunidade crente em Cristo pode ser entendida como um tipo de
comunidade doméstica ou família [...] predominante estabelecidas em ambiente citadino
que registrava uma comensalidade entre diferentes: judeus e gentios, entre os membros
judaicos e não judaicos”.

Meeks (1992, p. 121-122) também aponta para o fato de que nas epístolas
paulinas, comunidades específicas são traduzidas como “a assembleia na casa do
fulano”. Desta forma, outros grupos de ekklésias foram fundados em residências
particulares, como Aristóbulo e de Narciso (Romanos 16.10). Por sua vez, o livro de
Romanos, no novo testamento, nos capítulos 16 e14, apresenta uma lista extensa:
Assíncrito, Flegante, Hermes, Pátrobas e Hermas, Filólogo, Júlia, Nereu e sua irmã,
Cloé (1 Coríntios 1.11) e na casa de César (Filipenses 4.22). Algumas casas eram bem
amplas; e o conceito de família, como veremos adiante, incluía não só a família
consanguínea, mas também os escravos e funcionários em geral. A “célula básica” do
movimento cristão era as ekklésias do mundo grego-romano.
Além disso, como sustenta Meeks (1992, p. 122), em determinados encontros,
várias destas “assembleias” se serviam de uma só residência para realizar seus encontros
distritais (1Coríntios 16.15s; Romanos 16.23). As ekklésias ainda se reuniam a céu
aberto ou em salas alugadas (At 20.7, 19,9: scholé/schola). Seguramente poderia haver
diversas dessas ekklésias em cada cidade. Consequentemente, não é incomum encontrar
abordagens sore os cultos dos primeiros cristãos configurados a partir de Ekklésias,
reuniões predominantemente domésticas. Logo este formato tem raízes em seu
horizonte cultural. O culto doméstico não era um elemento diferenciador para os

38
cristãos originais, pois era muito comum a prática de devoção às outras divindades ao
redor do lar.

1.3.3 – O papel das redes familiares na expansão do cristianismo

Nas sociedades antigas, assim como na antiga Palestina, “família” tinha um


papel e um significado bem diferente do que entendemos na sociedade contemporânea.
O núcleo familiar representava uma rede de segurança para o indivíduo. Nos entornos
das populações que circulavam no Mediterrâneo antigo resistia-se ao processo de
atomização no qual a pessoa-indivíduo era a unidade mínima da sociedade. Até porque
o indivíduo e a família faziam parte de um tecido social mais amplo. As famílias
compunham a unidade mínima dos grupos de pertencimento da composição social,
sendo que a cidade ou aldeamento representava uma escala mais ampla, ou expandida,
da família, conforme John Paul Meier (1994, p. 312).
A esta altura julgamos ser necessário uma breve fundamentação de ordem
antropológica sobre o sistema de parentesco judaico. Notemos ser ele um produto
histórico-cultural e por isso não deve ser encarado como a-histórico ou “divinizado”. O
tema do parentesco em geral é caro a Antropologia desde os seus primórdios, sobretudo
as análises clássicas relacionadas às sociedades “ditas” primitivas. Lewis Henry Morgan
(1974) iniciou seus estudos de desnaturalização dos sistemas de parentescos em sua
pesquisa pioneira nos primórdios da Antropologia. Morgan (1974) realizou sua
“etnografia” entre os Iroqueses, grupo de nativos norte-americanos da região dos
Grande Lagos. Sua análise etnológica elucidou a superação da centralidade dos sistemas
de parentescos que privilegiava somente a perspectiva europeia de família. Notamos que
em sua publicação A sociedade antiga (1877) a hipótese de que outras formas de
vínculos configurados “parentesco” poderiam ser constituídas através de indivíduos de
famílias diferentes - não consanguíneas - compondo grupos com outras relações e
lógicas internas.
Já Claude Lévi-Strauss (1982) interpretou os sistemas de parentescos partindo
da exogamia. Suas anotações ressaltavam a circulação das esposas entre os homens de
uma comunidade. Esta rotatividade auxiliava na construção dos laços de
relacionamentos entre os grupos. Ora, tanto Morgan quanto o estruturalista Lévi-Strauss
possibilitaram uma nova forma de pensar a família judaico-cristã, apresentando-a como

39
uma construção sócio histórica não como um produto “sagrado”. (KIPPENBERG,1988,
p. 14-29)
Feito este breve excurso sobre a categoria “família”, retornemos ao eixo
principal desta apresentação. Na família israelita a solidariedade familiar é bastante
forte, sendo do tipo patriarcal, pois o pai goza de toda autoridade. “O cabeça da família
era espelho do rei” (BRANICK,1994, p. 37). Aliás, era assim também na família
romana. Porém as famílias conectam-se às outras e todas juntas se ligam a uma
complexa rede de convertidos em cada cidade, formando uma rede de solidariedade que
compunha a “ekklésia da cidade”, unidade maior da “ekklésia” como vocábulo referente
à congregação de uma única casa.
Para Marie-Françoise Baslez (in Alain Corbin, 2009, p.29-34) a via associativa é
um fator marcante das sociedades do oriente romano na época apostólica. O
desenvolvimento familiar (ou do “oikos”, no grego) insere o núcleo doméstico em toda
sorte de redes de sociabilidade, formando redes de profissionais e de ajuda mútua, em
associações, grêmios e coletivos esportivos e culturais. As redes de convívio eram de
suma importância para a subsistência diária. Baslez (2009, p.30) nos informa que “a
maneira como os cristãos desenvolveram estruturas de ajuda mútua impressionou seus
contemporâneos, [...] dando ao cristianismo sua primeira visibilidade, na falta de
imagens e monumentos”. O núcleo germinal desta rede certamente era a comunidade
doméstica, ainda segundo, pois “os cristãos se organizavam [...] em pequenas
comunidades muito personalizadas. De seis, dez, doze indivíduos, estrutura que subsiste
na época [...] nos séculos II e III”.

Para Baslez (2009, p. 29) a missão paulina estava baseada nas casas e grupos
familiares. Para isso Baslez usa os seguintes termos:

“A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como
uma penetração por capilaridade, que utiliza todas as redes da cidade antiga,
funcionando esta última como uma imbricação de comunidades, da menor – que
é a família – à maior – que é a cidade. A célula-tronco da missão é a ´casa´, a
oikos, ao mesmo tempo comunidade familiar e comunidade de atividade,
exploração agrícola, fábrica ou loja. Ao contrário da família nuclear moderna, a
oikos antiga reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças,
escravos e líberos em grande número nas famílias de elite: sua composição
transcende as divisões da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e
mulheres, livres e não livres. Os cristãos de uma cidade se reúnem seja por
oikos, seja na residência mais espaçosa de um homem ilustre, que convida seus

40
vizinhos e amigos. Esta prática continuou durante dois séculos. Em Roma como
em Doura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos identificáveis no
tecido urbano, em meados do século II, resultam da reforma de grandes
residências: são ´casas-igrejas´”

A despeito do exposto acima, é importante avançar mais um pouco incorporando


a colaboração de outros pesquisadores a composição de um panorama mais amplo sobre
o enlace entre família e religião. Para perscrutar a relação que ao nosso ver existe entre
a tradição da família israelita e o crescimento do cristianismo no período inicial de sua
história, recorremos a Vincent Branick (1994) e sua reconhecida obra A igreja
doméstica nos escritos de Paulo, em que o autor salienta que “os cristãos mais
primitivos reuniam-se em casas particulares. Para eles o lar com seu ambiente familiar
era a Igreja” (BRANICK,1994, p. 11), concordando com Meeks (1992, p.121) ao
registrar que “Os lugares de reuniões dos grupos paulinos e, provavelmente de outros
grupos cristãos primitivos, eram casas particulares”. Branick (1994, p.124-127) ainda
nos ajuda a consolidar nosso argumento quanto a sequência de citações extraídas do
capítulo “Formação da Ekklésia”, no qual ele elucida o auto grau de comprometimento
e intimidade desfrutadas pelos participantes dos grupos originais. Pois ali ocorriam as
interações “face a face eram possíveis e estimuladas” [...] “os estudantes de associações
privadas geralmente concordam em afirmar que suas metas primordiais eram o
companheirismo e a convivência [...] por outro lado, os grupos de cristãos eram muito
mais inclusivos em termos de estratificação social e de certas categorias sociais”. Ainda,
para fins de nossa pesquisa, concordamos com sua observação e questão abaixo
levantada por Meeks (1992, p. 124):

“A centralidade da casa tem implicação posterior para a maneira como


concebemos a missão paulina: ela mostra como são inadequadas nossas
concepções individualistas modernas de evangelização e conversão. Se a casa
existente era a célula básica da missão, então deduzimos que os motivos básicos
para alguém integrar uma ekklésia provavelmente variaria de um membro para o
outro. Quando uma casa se convertia ao cristianismo mais ou menos em bloco,
nem todos os que adotavam as novas práticas faziam-na com o mesmo grau de
compreensão e de participação. A solidariedade social deveria ser mais
importante para persuadir alguns membros a serem batizados do que o seriam a
compressão ou as convicções sobre crenças específicas”

41
Ora, as reuniões domésticas, mesmo sendo um expediente usado por judeus e
helenistas em muitos lugares, não sendo, portanto, uma exclusividade do cristianismo,
reforçava a atuação das redes sociais de solidariedade, “comunhão” e pertencimento de
forma muito intensa. Neste ponto, devemos reiterar a indagação: é possível comparar o
programa do cristianismo antigo, como suas redes compostas de igrejas familiares-
domésticas e o contexto atual dos grupos ditos “orgânicos” contemporâneos, levando
em consideração as transformações axiais dos sistemas sociais durante os últimos 20
séculos e a construção do conceito de família ocidental? Esta questão será debatida
posteriormente.
O corte das primeiras décadas, senão séculos, mediante o uso de da categoria
analítica “Cristianismo primitivo”, permite-nos observar que na constituição das
famílias, tanto a família israelita, quando a romana e a helênica, era comanda por
pessoas de gênero masculino. O homem era a cabeça do lar, tinha a primazia no espaço
doméstico e também na sociedade, excluindo-se, é claro, a situação dos homens que
estavam em escravidão
Podemos ainda focalizar essa visão acompanhado a argumentação de Carlos
Jeremias Klein (2007) no que tange ao chamado “Cristianismo primitivo”. Vejamos que
para Klein (2007, p.27-33); os capítulos 1º a 7º do livro de Atos trata da 1) comunidade
de Jerusalém, presidida por Pedro, neste contexto, as narrativas bíblicas relatam a morte
de Estevão (At 7). A seguir teria havido entre 4 e 43 e. c. Tiago, irmão de Jesus teria
sido morto este ao mando de Herodes. 2) Igrejas da Samaria e Galileia já no capítulo 9
de Atos (v, 31) há referência da existência de uma comunidade cristã em Samaria, sem
maiores detalhes; 3) Comunidade cristãs gentílicas – plantadas pela evangelização de
um etíope por Felipe (At 9-10); 3) Igrejas da Missão Paulina – sobre esta missão temos
como fonte o livro de Atos. Somam-se três “viagens missionárias” de Paulo, para
expandir o “Reino de Deus”, se afirmando apóstolo entre os gentis. Na primeira viagem
organiza comunidade cristãs em Chipre, Perga, Antioquia da Psídia, Icônico, Derbe e
Listra (At 13-14), neste momento Paulo é acompanhado por Barnabé. Em sua segunda
viagem, na companhia de Silas, visitando outros centros importantes e na terceira
empreitada: Filipos, Éfeso, Atenas e Corinto. 4) a missão palestinense; que deu origem
as comunidades do Egito e aramaicas e por fim 5) a missão petrina; liga-se a expansão
da igreja nas regiões de Bitínia, da Capadócia e da Galácia.
Podemos também recorrer a alguns casos específicos salientados por Branik
(1994, p. 58-97) no estudo já citado de colaboradores diretos e indiretos de Paulo, em

42
cujo lares se reuniam ekklésias regularmente. De Éfeso, Paulo saúda, em carta, Aquila e
Pricila (ou Prisca) sediados na cidade de Corinto “enviam-vos efusivas saudações no
Senhor Áquila e Priscila com a igreja que se reúne na casa deles” (1Coríntios 16,19),
anos mais tarde o casal se encontra em Roma e mais uma vez recebe o amparo do
apóstolo “saudai Priscila e Áquila [...] e também a Igreja que se reúne da casa deles”
(Romanos 16,35). O casal seria, mais tarde, responsável pela organização de uma
comunidade em Éfeso (1Coríntios 16,19) e também Roma (Romanos 16,3). A casa
deles é descrita por Apolo como local de ensinamento cristão (At 18,26). Filemon e
Ápia também são citados como hospedeiros de um grupo de irmãos e irmãs (“a igreja
que está em sua casa” – Fl 2). Na lista aparece Tício Justo, “um temente ao Senhor” (At
18,7), que receberá Paulo após a estadia na casa de Prisca. Crispo, um líder na sinagoga
é outro que abraça a mensagem de Paulo com toda sua família (At 18,8). Já Acaia,
primeiro batizado por Paulo na cidade de Corinto, é responsável pela conversão de
Estéfanas e sua família (1Co 1,16). Entre outros muitos exemplos (Gaio, Erasto, Febe,
Andrônico e Junia. Finalmente citamos Ninfas, que é saudada na carta aos Colossenses:
“[...] saudações são os [...] exemplos nos quais Paulo fala explicitamente sobre igrejas
domésticas: assembleias de cristãos que eram formadas dentro e ao redor de famílias
particulares”
Para Branick (1994), Paulo elegeu como metodologia evangelizadora a escolha
de famílias proeminentes e entusiastas à mensagem do evangelho para criar sua base
operacional nas grandes cidades. Seu método inicial era recorrer à evangelização nas
Sinagogas, mas vemos que este programa teve pouco sucesso. Por isso, em um segundo
momento, Paulo recorria às famílias de Israel, já aclimatadas as mensagens messiânicas.

A menção de conversões de famílias inteiras (“Cornélio com toda sua casa”,


Crispo, com “toda sua casa”, verificar 1Co 1,16, At 16,13-34;17-2-9;18-1-11) é uma
alusão à Pater famílias 18, onde o homem-pai, líder doméstico, normalmente composto
por sua esposa, filhos e escravos etc. se convertia, resultando na “conversão” de todos
seus subordinados. Evidentemente podemos supor um gradiente de convicções e
engajamento pessoal desta rede familiar, diante do fato da pressão social sobre estes
indivíduos para a “conversão”. Nem todos abraçavam a fé do “cabeça da casa” de igual
modo (BRANICK,1994, p 16-19).

18
Talvez Lídia (Atos 16:14) seja uma exceção. Poderia esta personagem encabeçar um grupo doméstico.

43
As redes centralizadas nas famílias eram fundamentais para o sucesso das
viagens de Paulo. Pois o apóstolo dependia da boa acolhida generosa como ponto chave
para sua missão caracterizada pela mobilidade e ousadia. A hospitalidade garantia a
Paulo não só um apoio material, mas um sinal afetivo que sua mensagem era
compartilhada para aqueles que o recebiam. “A família era a base de operações. A
chave para a missão era ser aceito por uma família [...] A igreja doméstica funcionava,
portanto, como núcleo da comunidade cristã” (Branick,1994, p. 18-19). O cabeça do lar
assegurava segurança espiritual e era autoridade para aquele grupo. Ao receber Paulo e
Silas, Jasão responsabilizou-se pela fiança deles e teve problemas por recebe-los (At
17,6-9). A supremacia da figura masculina com autoridade da Pater Família é muito
importante para entendermos os períodos posteriores, quando a igreja é desvinculada do
espaço doméstico e os líderes vindouros levaram a figura de “Pais” (p.e. “Pais da
Igreja”). (Branik,1994, p. 20)
Por outro lado há alguns cuidados que devem ser tomados quando traduzimos os
termos do vocabulário de Paulo relativo à família. Os temos oikos, oikia, traduzidos
como “casa, lar, família”, dependia da recepção à cultura à qual ele se reportava.
“Considerando as raízes helênicas ou judaicas, o conceito de oikos é consideravelmente
mais abrangente do que nosso conceito de família” (Branick,1994, p. 36). Então qual
seria o conceito a que Paulo se referia? Além da família imediata, temos que considerar
nesta compreensão de “família” também os agregados: parentes independentes,
escravos, trabalhadores contratados, inquilinos, entre outros. “Cícero define domus ou
família através de um relacionamento de dependência, não de parentesco [grifo meu].
De fato a família era constituída pelas relações recíprocas de proteção e subordinação”.
A partir do século II já encontramos maior sistematização dos grupos cristãos; e
também o surgimento dos primeiros locais destinados exclusivamente para o culto
cristão.
Portanto pudemos notar como era o contexto das famílias e suas redes nos
entornos do cristianismo das origens e a centralidade dela no processo de expansão do
cristianismo, pelo grau e sistemas de parentesco que engendravam um profundo grau de
convívio entre os pares religiosos; logo potencializava a transmissão religiosa
intradoméstica, sendo que a igreja, à época, formava-se ao redor de redes de cristãos,
que por sua vez reuniam-se em casas, ou em casas expandidas.

44
1.3.4 - Conflitos na Igreja “primitiva”

Os primeiro discípulos e apóstolos são as figuras principais que atuam nas redes
de igrejas familiares que iremos aqui discutir. Desprivilegiados da presença do líder,
nutrem-se pela força herdada através do convívio com Jesus e a presença de seu
“Espírito encorajador”. Alain Corbim (2009, p. 18-19), em um trecho de sua obra,
colabora para compreendermos este período nascente: “Jesus não é o fundador do
cristianismo como religião independente. [De seus discípulos surge] [...] um movimento
de origens proféticas”.
Porém, não são grandezas equivalentes o grupo de discípulos de Jesus no âmbito
de seu tempo e as comunidades de origem judaica na Palestina, originadas pela
pregação de seus discípulos imediatos, como Tiago, Pedro e Paulo. Em um ambiente
anterior, Jesus é um pregador-itinerante e taumaturgo que, insurgente ao sistema
religioso-político de sua época é julgado, condenado e morto. Por conseguinte, temos
um novo tempo, “pós-pascoal”; sem a presença do messias emerge o novo desafio em
expandir a mensagem de Cristo: “Ide por todo mundo e pregai o evangelho”, epilogo
encontrado no livro de Marcos como característica universal da fé cristã, logo é preciso
propagar a “todas as nações”.
Para Philippe Tourault (1996, p. 27), após a morte de Jesus, as igrejas primitivas
atravessaram por momentos difíceis em sua relação com a sociedade tanto quanto na
relação dos próprios cristãos. Os embates iniciais, ao redor do anúncio do redentor
como substituição à velha aliança custou a vida de Estevão, o primeiro mártir da Igreja
Cristã. O apedrejamento, denunciado no texto de Lucas (Atos 7) e a morte de Tiago, o
Maior, irmão de João, a partir de uma solicitação de Agripa I, revela como a
comunidade não cristã interagia os “do caminho”. Diversas suspeitas recaiam sobre os
primeiros discípulos. As acusações eram diversas, podemos destacar as relacionadas ao
canibalismo (afirmavam “comer o corpo de Cristo”) e da prática do incesto (por se
tratarem mutuamente como “irmãos” e “irmãs”).
A “Igreja primitiva” já enfrentava resistência das autoridades nacionais desde
seu nascimento. Como exemplo, vejamos uma narrativa de resistência ao conteúdo da
pregação, em Atos capítulo 5. O sinédrio decidiu prender os 12, pois pregavam a
ressureição de Cristo no próprio monte do Templo “a montanha do senhor” (At. 3.11-
26; 5.12,21-26,42), doutrina estranha aos sistemas judaicos. Porém, sem maiores

45
acusações e com a familiaridade e apego dos apóstolos as tradições antigas, não houve
como mantê-los encarcerados.
Os conflitos no templo foram os primeiros enfrentamentos políticos que
marcaram a impetuosidade da Igreja primitiva em Jerusalém. As autoridades locais
resistiam a ideia de permitirem que pescadores Galileus, crentes na ressureição de Jesus,
pregassem no “Monte do Senhor”. Esta resistência vinha dos principais sacerdotes
Saduceus, que negavam a ressurreição dos mortos (Mt. 22.23-33;At. 23.6-9).
É essencial a afirmação acima, pois esta impetuosidade define a vibrante
segunda onda no decorrer da história dos primórdios do cristianismo, a Era Apostólica.
Podemos, logo de início, dispensar a ideia que este agrupamento é pacífico e
harmonioso, logo um “comunismo” celestial. Na próxima seção discutiremos com mais
atenção a premissa que elege o cristianismo original como um tipo ideal atemporal para
todos os demais cristianismos, porque, supostamente em seu interior, não haveria
conflitos agudos. Exige cautela do pesquisador a leitura social do capítulo 4 do livro de
Atos, em especial, dos versículos 32 ao 35:

“Da multidão dos que criam, era um só o coração e uma só a alma, e ninguém
dizia que coisa alguma das que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes
eram comuns. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da
ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois não
havia entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam terras ou
casas, vendendo-as, traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés
dos apóstolos. E se repartia a qualquer um que tivesse necessidade”. (Atos 4, 32-
35, versão João Ferreira de Almeida)

O versículo acima sugere o clima de docilidade atribuído aos primeiros cristãos.


Segundo Lucas, os primeiros conflitos na igreja de Jerusalém foram enfrentados sem
grandes dificuldades pelos discípulos. A substituição de Judas por Matias, para compor
o colegiado dos doze, logo na introdução do Livro de Atos, foi realizada de modo
natural (At 1,26).
Podemos dizer que, se contarmos apenas com a leitura do Livro dos Atos dos
Apóstolos, podemos ter a impressão de que a “Igreja primitiva” experimentou uma
existência pacífica – quase um sistema social de total equilíbrio relacional–emocional.
A escrita de Lucas, a quem se atribuí a autoria do livro, destaca um espírito de
concordância entre as várias seções da igreja. Porém se somarmos a leitura do livro de

46
Atos às cartas de Paulo, nos são reveladas situações de divergências profundas,
antagonismos, que complementam o relato de Lucas (Drane, 1985, p. 58).
Dito de outra forma, ao contrário do que poderíamos esperar dos indivíduos
convertidos do paganismo, as epístolas de Paulo nos revelam um povo que estava longe
de ser perfeito. Atentemos para a citação de Howard Clark Kee (1983, p.80) elucidando
as disputas e divergências no seio desta “Igreja primitiva”: “a pintura idealizada de uma
comunidade unificada da aliança não corresponde, infelizmente, de todo à situação
empírica do cristianismo das origens. Tensões e conflitos emergem das cartas de
Paulo”.

Ora, a presença de “pagãos” na comunidade cristã, a partir do ano 30, é motivo


de enfrentamentos entre as diferentes tendências que perpassam as igrejas deste período
apostólico. Podemos resumir a controvérsia entre as opiniões de Paulo e Pedro sobre a
inclusão dos gentios no seio da igreja, e, particularmente, sobre a imposição da
circuncisão aos não judeus convertidos. De fato, tal divergência perpassará diversos
momentos da missão cristã e pode ser assim resumida: a consideração da salvação
somente pela graça do messias (Paulo), assim como a Lei conjunta à salvação (Pedro).
Para Kee (1983, p. 100):

“O tema do grau de abertura da comunidade cristã foi precisamente a causa do


conflito entre o vacilante Pedro e o decidido Paulo em Gl 1,2. O mesmo
problema das relações entre a pertença à antiga e à nova comunidade emerge em
2Cor 11,22, onde Paulo responde, com amargo sarcasmo, àqueles que o
desafiaram a apresentar suas credenciais de apóstolo”.

Para um grupo socialmente tão diverso da “Igreja primitiva”, conseguir unidade


entre as comunidades paulinas e as comunidades plantadas por outros líderes
carismáticos, exigia mais do que meramente um ajustamento social. As comunidades
não paulinas, bem como aquelas sustentadas por carismáticos ambulantes parecem ser a
raiz do conflito inicial (KEE,1983, p. 81). Os extáticos se situavam na tradição de Jesus,
já descrita em outra seção deste capítulo, andarilhos-taumaturgos, hospedando-se
conforme lhes eram propostos os caminhos. Estes aspectos mágicos-itinerantes não se
harmonizavam com o perfil das congregações organizadas por Paulo nas cidades.
Na ordenação sociológica referente ao universo paulino (onde é necessária
“decência e ordem” - 1Cor 14,40), logo no início das comunidades de origem, os
movimentos espontâneos e carismáticos parecem criar polos distintos no ethos de cada

47
congregação. O apóstolo precisa emitir sua autoridade apostólica, “emitindo regras
sobre a imagem pública da igreja [...], baseado na submissão aos superiores [..] evitar
conflitos com as autoridades civis, bem com a cuidadosa administração financeira”
(Kee:1983, p. 82) para balizar as comunidades das influências dos extáticos.
Para Kee (1983, p. 82), este é outro ponto conflitante: a efusão dos dons
carismáticos nas comunidades originais. “Paulo acha que estes dons são problemáticos
ou até mesmo embaraçosos”, afirma o pesquisador. A prerrogativa de Paulo em 1Co
14,20-33, “Deus não é Deus da desordem mas de paz”, iluminam o desejo do apóstolo
para que os dons carismáticos devam ser administrados de maneira ordeira; e ainda
salienta que o exercício de alguns deles é um culto ao ego (1Co 14,4). Paulo ainda
“cutuca” seus leitores, afirmando que não haveria muitos sábios na igreja estabelecida
em Corinto (1Co 1,26), e também muitos “nobres e poderosos”, Thiessen sugeri que
“eles constituíam uma minoria dominante” (Thiessen apud Kee,1983, p. 83). Apesar da
igreja inicial contemplar em sua “membresia” uma diversidade étnica (não sem os
conflitos supracitados), o que nos aparenta, segundo a apreciação de Thiessen, que os
mais abastados poderiam incitar também uma estratificação socioeconômica.
Longe de configurarem uma “unidade”, o cristianismo foi progressivamente
convergindo para uma das “grandes religiões”. Tomou forma ao longo dos séculos II e
III, e se dá através da formação de estatutos que qualificavam o que eram as heresias e
dogmas, expulsando às margens outras vertentes como os judaizantes (basilidianos,
ebionitas, elcasaítas, etc.), os gnosticizantes (basilidianos, valentianos, etc.), marcionitas
(seguidores de Marcião), e Montanistas (Montano), etc. Depois de vinte anos ou menos
após a crucificação, a maioria dos centros importantes em torno do mediterrâneo já
comportavam um grupo de seguidores de Jesus. Os textos bíblicos demonstram a
existência de cristãos em Roma, Corinto, Éfeso, Filipos, Antioquia, entre outros. O
império romano foi cristianizado em três séculos.
Portanto, as controvérsias iniciais, sobretudo no interior das comunidades sob a
tutela de Paulo fundamentam brevemente a ruptura com o ensejo universal em
classificar o “Cristianismo primitivo” como uma “Shangri-lá”.

48
1.4 - O início de uma igreja segundo o modelo imperial

Voltamos ao contexto do império romano, a esta altura já bastante extenso e com


um sistema de governo baseado em quatro imperadores. Diocleciano, anos antes, havia
estabelecido um tipo de poder quádruplo, a tetrarquia, com dois imperadores no Oriente
e dois no Ocidente, devido as grandes extensões do império. Os deuses de proteção nos
primeiros momentos deste novo sistema era Júpiter e Hércules; estas “filiações”
colaboravam a divinizar o poder dos imperadores. (RAMALHO, pg. 159)

Em 303, Diocleciano decreta um mandato indicando que fossem destruídos os


locais de cultos dos cristãos, suas literaturas e para que fossem enviados à tortura, prisão
e morte aqueles que negassem as imposições Romanas. Aqueles que negassem a fé
cristã, sairiam ilesos. Não é difícil notar que esta perseguição aos cristãos elaborada
pelos Imperadores da Tetrarquia estava imbricada com o sistema sagrado oficial,
baseado em nos deuses Júpiter e Hércules. Era indispensável a todos os imperados uma
filiação divina. Por isso, desde Aureliano (imperador de 270 – 275) o culto a Apolo ou
Sol Invictus se reproduzia entre o governo romano. A proteção de um deus era
indispensável aos imperadores que consideravam legitimar seu poder e vitórias bélicas a
partir de sua filiação ao sobrenatural.

Constantino (280-337) regeu o império desde 311 no ocidente e 324, no oriente


quando derrotou Licínio. Construiu Constantinopla para onde transferiu a capital do
império. Sua suporta conversão ao cristianismo foi progressiva. Consta da narrativa
folclórica a ocasião da volta da batalha da ponte Mílvio em Outubro de 312, junto às
tropas de Roma em direção a Maxêncio, seu opositor, aspirante ao trono que se
aproveitando da morte de Constâncio, pai de Constantino. Diante do processo de
ascensão de Constantino ao trono, Mílvio insurgiu-se como pretendente ao status de
imperador. Quanto ao relato de sua conversão, consta a narrativa no caminho ao embate
contra Mílvio, Constantino olhou para o céu e viu uma luz com os dizeres: “Com isto
vencerás”, mais tarde Cristo apareceu à ele em um sonho portando o sinal de uma cruz
inclinada 19. Prontamente o imperador aplicou este sinal aos escudos de seu exército,
seguindo as orientações no sonho e venceu a batalha. Após vencer a batalha contra

19
Lembrando as letras gregas chi (x) e rho (p), a duas primeiras letras da palavra Christos.

49
Maxêncio, a partir dos sinais e dos sonhos premonitórios, havia um clima favorável para
a unificação do império caso de sua adesão ao cristianismo.

Para Corbin (2009) Constantino parece, a princípio, ser mais um monoteísta,


crendo em um Deus único, não necessariamente cristão, contudo em clara oposição ao
politeísmo da teatrarquia. Sua nova mística é romana-cristã, emergindo um deus único o
Sol invictus 20, que aparece na cunhagem de suas moedas, depois de 308 E. C. Não se
deve dizer que foi uma conversão súbita. Seu principal biógrafo, Eusébio de Cesaréia,
revela que inspirado por essas vivências, verdadeiras ou mitológicas, e, pelo fato de que,
segundo a estimativa de Frank Stark (2006), Cristo já era adorado por miríades de
seguidores e não poderia ser facilmente destruído, Constantino recorreu à oficialização
de um deus fora do panteão romano.

Sua conversão é um denominador comum que tanto garantirá a unidade do


império, com o reconhecimento de um deus único, quanto legitimará seu poder. Sua
abertura gradual é expressa pelo Édito de Milão, que dá liberdade de culto e uma
inclinação monoteísta. A manobra consistia em abraçar a segurança de um deus único e
supremo e não mais pelos deuses da tetrarquia. (CORBIN,2009, p. 50)

A Igreja, depois de séculos como movimento contra cultural, agora legitimada


pelo poder do império, recebe favores de Constantino, doações em dinheiro, terrenos,
palácios, isenção de impostos, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Em
troca, seu envolvimento com assuntos relacionados administração do império é cada vez
mais intenso. Constantino era o mestre da política e do poder. Habilmente constrói uma
segunda religião, mantendo seu título de pontífice maximus, mas indiscutivelmente cede
ao cristianismo uma posição de privilégio. Em sua religião romana–cristã, juntou a
águia de seu estandarte ao lábaro, símbolo cristão.

Constantino foi o pioneiro a dar total abertura a liberdade religiosa entre os


cristãos perseguidos. A adesão definitiva da religião cristã como a oficial do império
Romano é cercada de diversas reviravoltas políticas, mas sabemos que foi
definitivamente realizada pelo imperador Teodósio em 27 de fevereiro de 380, com o
edito de Tessalônica. A partir daí prática do paganismo e de outras religiões passa a ser

20
Verificar anexo II

50
motivo de punição. Em 392, os imperadores Teodósio, Arcádio e Honório proíbem
todas as práticas pagãs. (KLEIN:2007, p. 79-81).

Ora, quando da oficialização definitiva do cristianismo, já haviam se passado


quatro séculos desde o nascimento de Jesus. O Movimento de Jesus, nômade e
carismático, sofre incontáveis sobreposições. Por fim, percebemos como o binômio “fé”
e “império” evidencia-se na clivagem do invictus imperador com a religião cristão. O
incipiente movimento já se flexibilizou a ponto e a “ponto a ponto”, após três séculos de
mesclagens, concílios e diversificação das comunidades em cada cidade, que nos é
impossível capturar a rede de igrejas familiares ou distritais e a diversidades de estilos
litúrgicos e teológicos que por elas circulam. O que sabemos é que com Constantino é
que se inicia uma religião imperialista e que o seguinte capítulo desta história é a “Era
das Basílicas”. Portanto, das casas às basílicas; dos líderes familiares dotados de “dons
de liderança” a uma liderança forjada pelo estilo Romano de liderar, do Deus-
manjedoura ao Deus-Sol imperial.

Através deste processo, a igreja cristã passou de um movimento marginal e


censurado para se tornar, passo a passo, num processo de longa duração, a instituição
mais poderosa do Ocidente Medieval.

No próximo capítulo veremos a constituição de um movimento que pretende ser


uma restauração destes padrões no Novo Testamento ou conhecido como “Igreja
primitiva” no mundo contemporâneo, as “Igrejas Orgânicas”.

51
CAPÍTULO II
“IGREJA ORGÂNICA”: TEORIA E TÉCNICA

O que é e como as “igrejas orgânicas” são pensadas na produção cultural de seus


principais teóricos? Este capítulo pretende responder a essas questões. Nele, dois
objetivos são focados: 10) A formulação de uma tipologia específica para estes grupos;
2º) Descreve-las baseando-se na literatura de seus principais interlocutores.

Antes, um adendo. Desde os primórdios do cristianismo grupos dissidentes


como os de Montano (montanismo), elaboraram sistemas de apropriação particular do
cristianismo, e, caminhando por rotas alternativas ao fluxo central cristão desenvolvido
na história, reivindicaram o primado sobre a herança do cristianismo. O maior exemplo
disso foi a Reforma Protestante, que produziu um profundo questionamento da
instituição cristã então majoritária, a igreja Católica, chamando a atenção para si, como
um revival autêntico. Também podemos citar os grupos restauracionistas, dos quais
surgiram, entre outros, a Congregação Cristã do Brasil, Adventistas e Testemunhas de
Jeová. No entanto o que interessa para esta análise é a atuação dos grupos surgidos a
partir do abatimento gerado pelo declínio e desconfianças em relação ao cristianismo

52
“convencional” na Europa e América do Norte no século XX, tal como analisaremos
adiante, na literatura selecionada.

Também é importante verificar a construção da imagem pública e dos discursos


dos principais expoentes do movimento. A descrição de suas trajetórias e da dissidência
das denominações tradicionais colaborará na análise do panorama do êxodo
institucional em direção às expressões informais do Protestantismo europeu, norte-
americano e brasileiro. Acrescenta-se seus esforços para a construção midiática que
denominadas aqui como expressões de uma “contra-cultura” evangélica, que se
expressa na frase exemplar - “Jesus sim, Igreja não”. Este conflito religioso, a partir da
observação de uma tendência de não associação e a rejeição de vínculos fortes com as
denominações religiosas, faz emergir uma cultura mercadológica que propõe capturar o
sentimento e envolver os atores num processo de descomplexificação do emaranhando
que poderia ter se transformado o cristianismo. Desta forma, incorpora-se ao mercado
religioso mais um segmento: o dos desafeitos ao cristianismo institucional e que
valorizam expressões mais autênticas 21.

Como exemplo disso podemos citar uma produção cultural voltada a um


Cristianismo “descompromissado”. No mercado literário, por exemplo, acumulam-se
livros que abordam a questão, tais como: Eles gostam de Jesus, mas não da igreja
(KINBALL,2007), Os Sem-Igreja (BOMILCAR,2012), Descrentes (KINNAMAN &
LYONS,2012), Dissidentes da igreja – entendendo e defendendo a igreja
(CORRÊA,2012), Igreja? Tô fora! (AGRESTE,2009), Gente cansada de igreja
(AZEVEDO,2010), Porque você não quer ir à igreja? (JACOBSEN &
COLEMAN,2009), Alma sobrevivente: sou cristão apesar da igreja (YANCEY,2004),
A Cabana (YOUNG,2008). No mercado norte americano, artigos sobre este tema são
facilmente encontrados, tais como: Lost and Found: The Younger Unchurched and the
Churches that Reach (STETZER,2009), You Lost Me: Why Young Christians Are
Leaving Church...and Rethinking Faith (KINNAMAN,2011), Generation Ex-Christian:
Why Young Adults Are Leaving the Faith… and How to Bring Them Back

21
Portanto não nos surpreende quando uma Igreja Batista histórica – a Igreja Batista Água Branca (SP) -
afirma-se uma “uma comunidade que deseja ser uma igreja para quem não gosta de igreja e para pessoas
de quem quando uma igreja não gosta.” <http://ibab.com.br/blog/post/esse-sonho-tambem-e-meu/>.
Acessado em 10/10/2013. Ou a ramificação musical de uma denominação conhecida produz um CD para
“para inspirar momentos de adoração em grupos pequenos e reuniões nos lares”
<http://www.loja.vineyardmusic.com.br/comprar-cd-adorando-em-casa-vol-1-quebrantado>. Acessado
em 10/10/2013.

53
(DYCK,2010), para citar apenas alguns exemplos. Algumas dessas publicações tem por
função orientar cristãos “desviados” para que retornem ao convívio de uma igreja local,
outras, pelo contrário, criticam o cristianismo institucionalizado.

Antes de adentrar nesses sub-itens, faz-se necessário ressaltar que as “igrejas


orgânicas” não formam um movimento homogêneo no Brasil. Por isso não procuramos
capturar uma experiência uniforme e nem poderíamos, porque não há um centro ou um
ider. Trata-se de um movimento de margem que dialoga com diversos tipos de
experiências heterogêneas, porém conserva certos traços que o identificam como uma
“igreja orgânica”, como tipo ideal. Temos encontrado em nossas pesquisas versões
pentecostais, conservadoras e fundamentalistas de comunidade que se reúnem em
espaços não convencionais e com viés anticlerical e diversos grupos emancipados. O
movimento também pode formar certos aglomerados em torno de pensamentos e
lideranças, no entendo, uma das principais características do movimento é a
independência de cada grupo.

Outro ponto que vale ressaltar é que a “Igreja Orgânica” não é uma “Igreja em
Células”. Estas ainda mantêm vínculos com uma igreja sede que exerce domínio e
controle sobre o grupo. A “Igreja em Células”, apesar de valorizar os relacionamentos e
também criticar severamente a instituições, mantém em sua dinâmica interna uma série
de processos de treinamentos, sistematizações formais de liderança
(NEIGHBOUR:2001). A IO também não é uma reunião católica conhecida por novena.
Talvez uma boa comparação seja a comunidade eclesial de base, as famosas CEBs, da
Igreja Católica Romana, que praticava reflexão bíblica dentro de uma hermenêutica
popular.

No que tange à temática desta pesquisa, não foram encontrados temas similares
nos diretórios e bancos de dados de teses e dissertações da Capes que tomasse como
objetivo de pesquisa nossas duas linhas que se entrecruzam para atingir nosso objetivo
principal, a “igreja orgânica” e o “Caminho da Graça”. Ponderamos que a realidade da
“Igreja Orgânica” no Brasil ainda é desconhecida, não havendo reflexões acadêmicas
sobre uma de suas expressões o “Caminho da Graça” apesar da proeminência midiática
de seu líder, Caio Fábio D´Araújo Filho, particularmente nos anos de 1980 e 1990. Mas
será que o fenômeno “igreja orgânica” existe no Brasil? Se sim, qual é seu impacto
sobre a expressões tradicionais de fé neste país? De que forma podemos classificar um
grupo orgânico?

54
Nos EUA e Europa, pesquisadores já têm tentado registrar academicamente tal
movimento há mais de duas décadas, principalmente entre organizações confessionais e
missionárias. Seminários e centros de pesquisa da religião já registram estudos sobre o
tema. A tese defendida no Fuller Theological Seminary por Jares James Looney, City
harvest: a study os organic church planting in a global city, no Insituto de Estudos
Interculturais, é um exemplo. No entanto, as análises têm um tom de catequese, ou da
tentativa elucidar sociologicamente o fenômeno a fim de captura-lo para fins
estratégicos e missionários.

Assim, diante de tantas expressões livres encontradas, a delimitação para a


pesquisa que empreendemos encontra-se no fato do perfil de nosso objeto de análise, o
Caminho da Graça, liderado e fundado por Caio Fábio D´Araújo, entre as dezenas de
comunidades “informais” espalhadas pelo Brasil, sustenta um tipo particular de
pertencimento, mobilidade, liderança leiga, práticas e lógicas de seus aplicativos
espirituais, que torna viável uma análise empírica.

Não é à toa que cada comunidade local recebe o nome de “Estação da Graça”.
Perfaz, portanto, dezenas de pequenas destas “Estações da Graça” o movimento
“Caminho da Graça” em todos os estados do Brasil. Batiza-las de “Estações” implica
em admitir a livre circulação de fiéis em seu interior, sem obrigatoriedade de
permanecer, a metáfora é de uma estação de trem, onde os passageiros vão e vem,
formando um organismo vivo e pulsante 22.

2.1-Igrejas orgânicas como construtoras de uma realidade “livre

A Igreja Orgânica não é uma denominação. É uma forma de pertencer. E um


pertencimento muitas vezes transitório e capilarizado em grupos extremamente
customizados, que celebram a “liberdade e autenticidade em Jesus”. Diversas vezes,
durante nossas observações em campo, as mensagens, falas e canções apontavam para o
enaltecimento de um sentimento de liberdade que não era encontrada nas chamadas
“Igrejas Institucionais”. Portanto nos são caras as contribuições da pesquisadora
francesa Danièle Hervieu-Léger (2008). A “Igreja Orgânica” indica condizer com a

22
Verificaremos estes fatos no próximo capítulo.

55
perspectiva dos estudos de Hervieu-Léger (2008, p. 57) em sua obra de referência O
Peregrino e o convertido - Religião em movimento, quando afirma:

“em matéria religiosa, como o tudo o mais na vida social, o desenvolvimento do


processo de pulverização individualista produz paradoxalmente a multiplicação
de pequenas comunidades fundadas nas afinidades sociais, culturais e espirituais
de seus membros”.

Por conseguinte, apesar da gramática religiosa do “Caminho da Graça”


aproximar-se das formas gerais dos protestantes, os discursos de seus líderes
paradoxalmente renegam o estreitamento com os arraiais evangélicos, seguindo uma
tendência de formadores cristãos de opinião afirmarem-se como “ex-evangélicos”.
Acumulam-se líderes e personalidades públicas reconhecidas neste meio que se auto-
declaram dessa forma. O pastor de origem assembleiana Ricardo Gondim afirmou que
“Agora sinto necessidade de distanciar-me do Movimento Evangélico”. 23 O pastor
batista Ed Renê Kivitz, por sua vez, em palestra proferida na Igreja Batista Água
Branca, leu e endossou dois artigos sobre seu abandono ao universo evangélico. “Está
insuportável”, de Caio Fábio D ´Araújo 24 e “Não quero mais ser evangélico”, assinado
pelo pastor da Comunidade Cristã Reformada, Ariovaldo Ramos 25. No primeiro, em
forma de desabafo, D´Araújo diz que “é insuportável ver descarados convites para que
[se] faça novos sacrifícios e que dê dinheiro aos sacerdotes do engano e da ganância.
[...] Ver o estelionato feito no nome de Jesus. É insuportável ver o povo levado debaixo
para o julgo da lei”. Na mesma onda, o músico cristão João Alexandre também afirmou
não mais coadunar-se ao movimento gospel:

“Não faço mais parte, definitivamente, nem em número, nem em gênero e nem
em grau, do importado movimento ´GOSPEL´! [...] O termo ´Gospel´ tem uma
conotação mercadológica baseada na fama, na grana e na idolatria de artistas,
bandas, gravadoras, formatos musicais, mensagens positivistas, entre outras
distorções que variam conforme a conveniência dos tempos e dos ´bolsos´ dos
brasileiros, cristãos ou não! Só quero, assim como qualquer músico que busca a
excelência, fazer o melhor que posso com aquilo que tenho, de forma honesta e
verdadeira, dormir com a consciência tranquila de que cumpro a missão que

23
“Tempo de partir”. <http://www.ricardogondim.com.br/estudos/tempo-de-partir/>.
Acessado em 10/10/2013.
24
“Ed. René Kivitz – Está insuportável (desabafo de Caio Fábio)”
<https://www.youtube.com/watch?v=T_Pp8MoMZRQ#t=368>. Acessado em 10/10/2013
25
“Ed René Kivitz - Não quero mais ser evangélico (desabafo de Ariovaldo Ramos) “.
<https://www.youtube.com/watch?v=KHmXXWLQSIo>. Acessado em 10/10/2013.

56
Deus me deu (de cantar sempre a Verdade!) e agradecer todos os dias a Ele por
aqueles que me deixam fazer parte de seus ouvidos e de suas existências!”. 26

Este “espírito” de “contracultura evangélica” tem sido capturado em diferentes


planos. Podemos ainda citar o movimento O $how tem que parar – pela ética na igreja
evangélica brasileira 27. O movimento criado por “Vera” desenvolve ações e
intervenções públicas contra os “vendilhões do tempo”, tais com a “contra marcha para
Jesus”, protestos em eventos gospel como a Expo-Cristã, a qual denominam Expo-
Mamon 28. Segundo o site oficial, o $how tem que parar:

“É um movimento de cristãos indignados com os atuais vendilhões do templo,


que vendem um falso evangelho de facilidades e enriquecem com isso.
Buscamos à volta ao Evangelho puro e simples, sem extorsões financeiras, sem
gnosticismo e amuletos gospel, sem artistas gospel, sem “papas” locais.
Buscamos o retorno da Igreja ao foco em Cristo e não no crescimento de cada
denominação. Não somos nenhuma organização, somos apenas pessoas sem
títulos ou honrarias eclesiais que não aceitam o que estão fazendo com o
Evangelho de Cristo, e que se conhecem através de visitas a blogs apologéticos.
A Marcha pela Ética Evangélica Brasileira pretende ser um movimento de
indignados, durante a próxima Marcha para Jesus. Nosso protesto será
silencioso, através de camisetas, faixas e banners com mensagens contra a
corrupção da igreja brasileira”. 29

Nestes casos, a contestação referente aos escândalos evangélicos 30 e, não


obstante, o soerguimento de uma mensagem, como veremos, “anti igreja”, sugere novos

26
Perfil pessoal de João Alexandre no Facebook.
<https://www.facebook.com/joao.alexandre.102?fref=ts>. Acessado em 03/03/2014.

27
<http://estrangeira.wordpress.com/retrospectiva-do-evangelho-puro-e-simples/>. Acessado em
10/08/2013.
28
deus do dinheiro ou da ganância, segundo a cosmologia da bíblica.
29
http://estrangeira.wordpress.com/2009/10/11/como-fazer-as-camisetas-para-a-marcha-para-gezuiz/.
Acessado em 09/11/2013.
30
O livro da jornalista Marília César (2009), Feridos em nome de Deus, revela bem esta questão. Eis um
depoimento encontrado no site de venda do livro: “"Este livro é um perfeito Raio-X da igreja brasileira, e
do mal que o movimento pentecostal trouxe ao evangelicalismo (falo com propriedade pois nasci e vivi
durante 28 dentro da Assembleia de Deus). Também sofri com abusos dentro da igreja, o que me fez
desistir do sistema religioso, mas não de Deus. A abordagem da autora é bem sincera a uma realidade que
muitas vezes tem sido ignorada pela liderança eclesiástica dos dias atuais, até mesmo pelo fato de as
lideranças serem as maiores culpadas pelos abusos. Parabéns pela coragem de expor a ferida da igreja!"”.
< http://www.mundocristao.com.br/produtosdet.asp?cod_produto=10660> . Acessado em 10/09/2013.

57
movimentos dentro do campo religioso brasileiro. Para onde “escapam” os
descontentes?

Na tentativa de elucidar este “samba do teólogo doido”, na expressão de Gedeon


Alencar 31, a sugestão de Clara Mafra (2013), que, em sua intuição sociológica propõe a
substituição do paradigma do “Mapa das Religiões do Brasil” pela metáfora do campo
religioso como um “holograma”, vem a calhar. Mafra refere-se aos resultados do censo
do IBGE de 2010 ao elencar a possibilidade da metáfora, sugerindo proveitosas
análises. Será que o método cunhado pelo órgão federal em uma única questão sobre a
religião do respondente dá conta de oferecer “uma fotografia” do perfil sócio-religioso
brasileiro e elucidar escolhas que muitas vezes se sobrepõem? Quando Mafra (2013)
propõe “Quais as linhas de força, os ancoradouros e os fluxos no campo das religiões no
Brasil?”, alega que um mapa apresenta topografias unidimensionais "com fronteiras que
ocasionalmente se sobrepõem”.

Portanto, a sugestão de Mafra (2013, p. 13-25) pelo holograma tenta evidenciar


as "unidades em constante movimento, com ramificações chegando a ordens
inimagináveis de extensões e nós. Se focarmos na metáfora do holograma, seremos
conduzidos a fazer operação mais ousadas e flexíveis com os números do que as que
temos realizado até o presente momento”. Lembramos que Mafra, neste artigo, trata dos
números censitários sobre os aspectos religiosos da população brasileira e, sobretudo, da
categoria “religião evangélica não determinada”.

“O nosso holograma tende a se formado por muitas versões de cristianismos


com focos de outras religiosidades, que continuam a se constituir mutuamente e
no contraste com a nossa versão de secularismo. Apenas chamar a atenção que,
nas últimas décadas, a capacidade dos evangélicos de criar malhas institucionais
sem centros ou com múltiplos centros, com ênfase na subjetividade e na
capacidade de auto gestão, coloca-os à frente na dinâmica social” (p. 22)

Uma das hipóteses de Mafra é um “efeito IURD”. A pesquisadora ressalta a


influência cultural do empreendimento de Edir Macedo sobre o universo
neopentecostal, dando novos significados aos lações de pertencimento eclesiástico

31
"Aborto. Assunto sério, virou um "samba do teólogo doido". Entrevista especial com Gedeon Freire de
Alencar". <www.ihu.unisinos.br/entrevistas/37253-aborto-assunto-serio-virou-um-samba-do-teologo-
doido-entrevista-especial-com-gedeon-freire-de-alencar>. Acessado em 02/02/2013.

58
dentro de todo o campo neopentecostal. A igreja Universal do Reino de Deus tem seu
público flutuante, que usufrui de seus serviços, como “Fogueira Santa”, “Love School”
etc, conforme a pauta e necessidade do dia. Inversamente a maioria das Igrejas
Históricas e Pentecostais, que supostamente proporcionam um grau de coesão “forte”
entre seus membros, através de sistema de filiação formal, este “efeito IURD” seria a
normatização da rotatividade dos frequentadores neopentecostais em suas “igrejas
clones” (Campos:2012). Conforme a hipótese, grande parte dos “não determinados” são
frequentadores esporádicos de igrejas, que estabelecem “vínculos fracos” e calibram
suas necessidades espirituais ao longo de várias denominações, de acordo com a
demanda do dia (financeira, cura, ensino, agradecimento). Circular pelo mercado de
bens religioso, em diversas denominações, sem contudo, comprometer-se com nenhuma
delas. Desta forma, tais crentes “passeadores” (Hervieu-Léger), quando abordados pelo
agente do Censo do IBGE, acabam se auto declarando não pertencente à nenhuma
denominação específica.

Leonildo Silveira Campos (2012) analisa a questão, complementando que:


“talvez esses evangélicos não determinados sejam uma expressão dos ‘desigrejados’ que
nos EUA ou Europa são muitos, nestes tempos de individualismo e de formação de um
“rebanho virtual’ levaria ao respondente afirmar-se apenas ‘evangélico’, porém sem
determinar uma igreja específica”. (CAMPOS,2012). Já José Wellington dos Santos
(2013), empreendeu pesquisa que procurou capturar o que motiva os sujeitos a professar
uma fé sem vínculo com qualquer instituição religiosa entre os “sem religião”, porém
ainda “crentes” que se afirmam evangélicos. Sua pesquisa qualitativa entre a juventude
tentou traçar um panorama do fenômeno acima descrito por Campos, o “desigrejado”
estaria em um estado de emancipação e autonomia religiosa, não necessariamente
tornar-se-ia um ateu ou agnóstico.

Ronaldo R. M. de Almeida e Paula Monteiro (2001), elegendo o trânsito


32
religioso como categoria analítica para compreende as circulações existentes entre os
diferentes credos e a circuitos dos fiéis nas mais variadas denominações de metrópole,

32
Para Almeida & Monteiro (2001) o “trânsito religioso” é: “Esse macro-processo de contínua síntese e
diferenciação é o fenômeno que aqui nos interessa descrever. A literatura especializada convencionou
denominá-lo, por economia, de trânsito religioso. Esta noção aponta, pelo menos, para um duplo
movimento: em primeiro lugar, para a circulação de pessoas pelas diversas instituições religiosas, descrita
pelas análises sociológicas e demográficas; em segundo lugar, para a metamorfose das práticas e crenças
relaboradas nesse processo de justaposições, no tempo e no espaço, de diversas pertenças religiosas,
objeto preferencial dos estudos antropológicos.”

59
afirmam que: “ocorreu também a multiplicação das alternativas religiosas, encontrando
sua expressão máxima entre os evangélicos, cuja fragmentação institucional é estrutural
ao seu próprio movimento de expansão. Nesse processo sempre renovado de divisão por
"cissiparidade", as denominações continuamente dão origem a novos grupos”. Passados
13 anos da publicação da reconhecida pesquisa sobre “O trânsito religioso no Brasil”,
Almeida e Rogério Barbosa (2014, p. 311-327) retorna à questão da fragmentação,
reforçando a hipótese de desafeição institucional, assim como a inclinação de cada vez
maior à atomização das experiências religiosas protestantes:

“1 em 4 evangélicos não se identifica com nenhuma instituição especificamente


[...] eles adotam um conjunto de crenças sem o engajamento moral, afetivo e
rotineiro com uma comunidade. Eles transitam entre as alternativas e tendem a
calibrar sua religiosidade com mais ou menos música, milagres, ajuda mútua,
moralidade, reflexão teológica, entre outros. Assim, já não é mais norma
coincidirem no mesmo fiel a identidade, o pertencimento, o comportamento e a
doutrina de uma igreja evangélica. Essa identificação mais ampliada com o
universo evangélico permite uma circulação interdenominacional e, por
conseguinte, a criação de vínculos fracos com uma comunidade religiosa
específica” (ALMEIDA & BARBOSA in TEIXEIRA & MENEZES, 2014, p.
324)

Embora não afirmando que os participantes de “Igrejas Orgânicas” representem


um número significativo entre os “não determinados” e ainda que, os frequentadores de
uma “Estação do Caminho”, durante uma pesquisa do IBGE não possa ter respondido “-
sou do Caminho da Graça”, não é inoportuna a pergunta sobre se o recrudescimento dos
“Evangélico não determinados”, que, segundo os dados do IBGE 2010, foram de 700
mil pessoas para mais de 8 milhões, de 3,8% para 23,9%, reflete também o aumento das
práticas alternativas da fé cristã, sobretudo o modelo da “Igreja Orgânica”, que, de tão
customizadas e capilarizadas, se tornam invisíveis ao censo, conforme sua atual
metodologia para o aferimento deste tipo de pertença. Nesse caso, seria um problema
para o pesquisador da religião apoiar-se nos dados quantitativos do IBGE, levando em
consideração que suas amostras obscurecem subjetividades e pormenorizações sobre o
comportamento religiosos, diante da pergunta “qual é sua religião?”

Para Marcelo Camurça (2006, p.45), “A partir dos anos 90 pode-se constatar que
as pesquisas quantitativas ganharam definitivamente um lugar nas Ciências Sociais que

60
se ocupam do fenômeno religioso no Brasil”. As ciências humanas encontraram nos
dados estatísticos, uma forma mais apurada de analisar a sociedade. Desta forma a
pesquisa na Sociologia e Antropologia da religião ganharam novas perspectivas
metodológicas complementares aliadas as pesquisas de campo.

Para Almeida 33, a relação analítica entre dados censitários aliado à observação
etnográfica ajuda a “compreender o sistema religioso na escala da metrópole”. Desta
forma, a sobreposição de escalas quantitativas e qualitativas e etnográficas favorece a
qualidade da análise porque “mesmo se fosse possível realizar etnografias da cidade
inteira, seria difícil ter uma visão global do problema [...] Todo método é insuficiente”.
Acerca do arsenal das ciências humanas, o antropólogo ainda afirma: “A combinação de
vários deles, no entanto, é uma forma de suprir suas limitações e aproximar-se de uma
completude”. 34

Reforçando a reflexão acerca da multiplicação dos grupos religiosos no Brasil,


as respostas para a pergunta “Qual sua religião ou culto?”, ultrapassaram os limites de
avaliação técnica dos dados, foram coletadas cerca de 35 mil possibilidades no Censo
2000, dado a efervescia do campo religioso brasileiro. Como realizar a gestão desta
complexidade de entrelinhas estatística? O Instituto de Estudos da Religião - ISER
atuou como consultoria e compilou, após “eliminar repetições e erros de
denominações”, 500 tipos de respostas, que “devidamente reagrupadas e enxutas
redundaram sua tipologia de 144 categorias. (CAMURÇA, 2006; MAFRA,2004;
JACOB,2004). Em oposição à tese da “diversidade religiosa brasileira”, estas categorias
subjacentes representam três blocos majoritários: 1) Catolicismo, “religião majoritária
no país”; 2) Evangélicos e os nomeados 3) “Sem Religião”. Para Jacob, (JACOB,2006,
p.10) “O recenseamento de 2000 distingue cerca de quinze igrejas pentecostais
diferentes, mas seu número é sem dúvida maior, o que explica as inevitáveis categoriais,
como “evangélica não determinada”, “evangélica sem vínculo institucional”, “outros
evangélicos”, etc.”.

Assim, observando o mecanismo de atuação do IBGE podemos afirmar que um


grande problema a ser discutido é que o Censo não captura as trajetórias e os percursos
percorridos pelos atores religiosos que circulam entre diversas experiências. Diante
33
"Combinação de métodos favorece pesquisa em ciências humanas".
<www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/v1/divercidade/numero18/impressa/2.html>. Acessado em
04/10/2013.
34
Idem.

61
disso, podemos sugerir várias hipóteses para o monumental recrudescimento dos
declarados “Sem vínculos” e “Não determinados”. Elas aparecem em várias análises
têm surgindo de reconhecidos pesquisadores a partir dos dados do censo 2010
(TEIXEIRA & MENEZES,2013).

Os sujeitos religiosos questionados podem, através de auto avaliação,


declararem-se “Sem religião” ou “Sem vínculo” por diversos motivos, até pela falta de
tempo para frequentar igrejas cultos e templos. Desta maneira, certos sujeitos mantêm
sua crença e valores religiosos antecedentes e continuam simbolicamente ligados a
determinados troncos religiosos e teológicos confirmando com isso “a existência de
35
pessoas em redefinição de identidade”.

Já aqueles que declararam alheios à religião no Censo 2000, na versão censitária


2010 podem ter encontrado acolhida em determinada religião, mudando-se sua
identidade religiosa. 36 Estes indivíduos podem também se declarar frequentadores de
determinada igreja cujo nome não conste nos sistemas eletrônicos do survey nacional. A
situação torna-se ainda mais intricada quando os sujeitos, pertencentes a uma “Igreja
Orgânica”, são arguidos pelo censo. Este é um fenômeno relativamente novo e pouco
pesquisado, sua presença é difícil de ser visualizada em macro escala. Como
compreender a extensão e as informações qualitativas dos participantes destas
alternativas de fé? Mafra (2013, p. 154) afirma que, “O fenômeno religioso está tão
complexo e fugido, que as decisões e melhoras técnicas permitem, apenas, defensiva e
grosseiramente, [produziu] um retrato rascunhado do fenômeno”. É necessário um
mergulho nos dados censitários, trabalhar em escala e com outros arsenais sociológicos
para esta pesquisa.

Sobre os problemas na captura dos dados censitários, assim afirma Lísias


Nogueira Negrão (2008, p. 123-124) “perde assim uma das características mais
originais deste campo, a duplicidade ou mesmo a multiplicidade de crenças e de
participações, além da dinâmica dos percursos e trajetórias realizados” quando as
pesquisas quantitativas “confinam” os resultados a uma única vivência religiosa. Negrão
ainda afirma que os principais “troncos religiosos” do campo religioso brasileiro
representam o “repositório das tradições e fonte de capital sagrado” (2008), porém não
35
“A (re)construção da identidade religiosa inclui dupla ou tripla pertença”.
<www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511249-estamos-falando-de-re-construcao-de-identidade-religiosa-
entrevista-especial-com-silvia-fernandes>. Acessado em 10/10/2013.
36
Idem.

62
estão ilesos à tribulação das agências geradoras de autoridade no mundo moderno,
plural e (dito) secularizado.

O Censo pretende ser “um retrato de corpo inteiro do país com o perfil da
população e as características de seus domicílios, ou seja, ele nos diz como somos, onde
estamos e como vivemos”. Na categoria religião, esbarramos com uma série de
subjetividades sobre as quais o Censo auxilia a identificar, de fato, certas tendências. No
entanto, as publicações censitárias são insuficientes para compreender fenômenos
complexos ou subjetivos, como no caso dos “Evangélicos Sem Vínculos” ou os “Sem
Religião”. Estes exprimem uma sociedade que sustém os direitos de livre manifestação
de fé e liberdade de escolha religiosa. Certas questões de expressão do divino não são
capturadas pelos surveys religiosos.

Negrão em sua pesquisa que utilizou formulários direcionados a 1064


domicílios na capital paulista, identificou que 38% dos sujeitos respondentes eram
“mutantes [transitaram entre determinadas religiões] ou não exclusivos [praticam mais
de um tipo de culto ou frequência à mais de um templo]”. Nesse mergulho em grupos
focais de “mutantes religiosos”, o pesquisador pode identificar certas tendências: 1)
Parte dos sujeitos retorna a seus grupos de origem; porém não sem antes permanecer em
um “estágio intermediário” de desfiliação e conflitos em relação à sua confissão
religiosa; 2) Suas constatações levam a crer que “a tendência geral é a de não haver
adesões rápidas nem definitivas a uma determinada membresia e ao simbólico a ela
referido”, com isso ele leva em consideração que “há adesões que tendem a ser
graduais, mas nunca definitivas”, permanecendo a tendência das vivências múltiplas em
intenções em outros campos simbólicos; 3) no Protestantismo a adesão é mais rápida,
seja o sujeito advindo do Catolicismo ou de vivências privadas de fé. Neste último caso:
“assume-se tanto o novo grupo como seu universo simbólico simultânea e
abruptamente”. Podemos concluir esta parte da discussão retornando à questão inicial de
Novaes (2004), afirmando que existe “necessidade de novas abordagens e técnicas de
pesquisa”. Daí o desafio de se elaborar pesquisas sobre novas formas de pertença
religiosa, focalizadas em como os grupos e indivíduos desinstitucionalizados se
reagrupam.

Desta forma, para o pesquisador da Serviço Para a Evangelização da América


Latina - SEPAL, Rubens Muzio (2010, p.127), “as estruturas eclesiais são mais
complexas, nos dias de hoje. Temos pacotes organizacionais muito complicados, um

63
emaranhado de opções ministeriais”. Em pesquisa realizada junto a 270 igrejas
brasileiras, Muzio sugere os principais formatos acolhidos pelas igrejas brasileiras, por
ele denominados “Novos Modelos Eclesiais”. Alguns deles são modelos de gestão
empresarial adaptados aos contextos eclesiais. Muzio enumera seis deles: A “Igreja em
Células”; “Igreja com propósitos”; “Rede Ministerial”; “DNI - Desenvolvimento
Natural da Igreja”; “Igrejas Emergentes”; e, por fim, as “Igrejas nos Lares”.

Para Muzio, o modelo das “Igrejas nos lares” figura entre os mais acolhidos nas
experiências religiosas dentro do campo protestante, mas salienta que uma igreja na
casa pode ser um estado embrionário de uma igreja local tradicional e não
necessariamente uma “Igreja Orgânica”. Sobre este ponto Muzio (2010, p. 154-157)
ainda afirma que “Uma grande parte das 200 mil igrejas brasileiras não foi plantada com
estratégias elaboradas [...] ao contrário, a abertura de milhares de congregações ´fundo
de quintal´ [...] da periferia urbana e cidades do interior foi realizada por gente simples”.
Com essas palavras, Muzio ilumina a simpatia já intrínseca no espirito do
protestantismo brasileiro às reuniões domésticas, sobretudo no seio do pentecostalismo,
quando um evangelista não remunerado e formado “no forno” da ação prática atua na
periferia dos grandes centros, sobretudo em residências e “puxadinhos” adaptados para
os cultos pentecostais. Muzio então conclui que este modelo é o de menor custo e
“promove uma forte comunhão a partir dos relacionamentos comunitários e familiares”,
além de evidenciar o crescimento das reuniões que não contam com templos e oficiais
religiosos em diversas regiões da Ásia e no continente Africano, pela “sua
informalidade, liberdade, ausência de estruturas, simplicidade, baixo custo financeiro e
o uso de liderança informal e leiga”. A estes pontos ele acrescenta que não pode deixar
de notar que estas estruturas sócio-religiosas acumulam forte tendência a dissidências e
ao surgimento de novas denominações, pelos laços frouxos e pela falta de formalização
da institucionalização de seus membros.

Retornando ao nosso objetivo central, pautamo-nos na compreensão da


existência de alguns indivíduos, cuja experiência humana é desprovida de uma estrutura
religiosa rígida, ou então afirmam-se cristãos, porém se reconhecem desencantados com
o sistema religioso vigente. Para tornar evidente esse ponto, pretendemos analisar a
produção midiática cultural da liderança dos movimentos que fomentam a dissidência
religiosa e a proposta de uma “Nova igreja”. Recorremos a sua produção textual e
imagéticas, tais como textos em formato de livros, PDF´s ou seus posts capturados em

64
suas mídias sociais. Em uma segunda fase, a análise nos fornecera elementos empíricos
para a construção de ‘tipos ideais’ de indivíduos que se declaram afins às “Igrejas
Orgânicas”.

2.2. Análise dos produtores culturais

Da seleção da produção cultural crítica, destacamos três autores. O critério para


a definição do trio foi a circulação de seus conteúdos, observado tanto durante o campo,
quanto na observação de grupos virtuais 37 e páginas no Facebook dedicadas ao tema.
Desta forma destacamos os norte-americanos Frank Viola (1964) e Neil Cole (1960) e o
Alemão Wolfgang Simson.

2.2.1 - Frank Viola e a denúncia do “Cristianismo Pagão”.

Um dos grandes expoentes é o autor e conferencista Frank Viola. A sua marca é


a constatação dos desvios sócio históricos da igreja evangélica contemporânea,
classificando-a como “pagã”. Sua produção textual procura averiguar o percurso da
construção histórica da igreja cristã, desde o cristianismo primitivo.

Propomos uma análise de sua produção a fim de explorar os sentidos de suas


mensagens - Quais são, segundo Viola, os desvirtuamentos da igreja contemporânea e
como este autor pode ser articulado à demanda de um espaço religioso em constante
circulação?

Viola é autor e conferencista 38, cristão norte-americano, conhecido pela temática


de contestação dos modelos eclesiológicos convencionais 39. É reconhecido com um dos
principais expoentes do movimento das Igrejas Orgânicas, após a publicação do livro

37
Um delas foi o grupo "Igrejas Orgânicas / Organic Churches", com cerca de 1.700 membro.
<https://www.facebook.com/groups/1464550993778819/?fref=ts>. Acessado em 07/07/2014.
38
<http://frankviola.org/about/>. Acessado em 10/10/2013. Tradução livre do autor.
39
Sua crítica se concentra no universo protestante, segundo a nota de rodapé 7, de sua publicação
“Cristianismo Pagão” (2005). “Este livro enfoca as práticas cristãs protestantes. Seu alcance principal é “a
igreja hoje” do Protestantismo em vez da “alta igreja” como as denominações Anglicanas, Episcopais, e
um tipo de Luteranos. O livro abrange as práticas da “alta Igreja” Católica apenas de passagem.”

65
Pagan Christianity?: Exploring the Roots of Our Church Practices (2005), traduzido no
Brasil como Cristianismo Pagão (VIOLA, BARNA:2008), escrito em parceria com
George Barna. A missão de vida de Viola é “ajudar os seguidores de Jesus a conhecer o
seu Senhor com mais intensidade e ganhar novas perspectivas sobre temas antigos ou
ignorados” 40

Viola não deixa dúvidas quanto a sua posição em relação ao “cristianismo


institucional”:

“A maioria dos cristãos sabe que algo está errado com o cristianismo
contemporâneo. Eles querem se libertar da tirania do status quo. As duas
alternativas que dominam a cultura cristã, hoje, é a complacência espiritual, de
um lado e a religiosidade baseada no desempenho do outro. O cristianismo
moderno tem 10 milhas de largura e uma polegada de profundidade” 41.

O livro de Viola é um bem sucedido bestseller. No site Amazon, “Pagan


Christianity?” figura na sétima posição entre o mais vendido na categoria
“eclesiologia”, 23º na categoria “Ritual” e 76º na abrangente categoria “Christianity”.
Sua primeira publicação em inglês foi aos seus 41 anos em 2005, pela editora norte
americana Destiny Image. Depois, outras editoras se interessaram por suas obras, como
as gigantes Thomas Nelson e a Zondervan, Tyndale, David C. Cook, and Baker House.
A construção de sua imagem pública está vinculada ao desmonte das igrejas que atuam
sob um sistema gerencial e mercadológico e a acusação de uma construção histórica na
qual os sentidos originais do cristianismo foram adulterados 42. Entre livros seus
impressos, contabilizam-se 18 livros publicados em inglês (muitos deles traduzidos em
diversos idiomas). Também é a notória sua produção no espaço web. Seu Blog
particular é hospedado no prestigioso portal religioso Patheos, ao lado de outros

40
Idem;
41
Idem
42
É preciso ressaltar que as últimas publicações do autor dizem respeito a “vida devocional”.

66
pensadores ligados à “Igreja Emergente” e a “Igreja Missional”. 43 Também adicionam-
se centenas de posts e podscast em seu blog 44.

A construção de sua imagem pública é vinculada ao desmonte das igrejas que


atuam sob um sistema gerencial e mercadológico, e também pela acusação de uma
construção histórica em que os sentidos originais do cristianismo foram adulterados. A
abordagem de sua produção relaciona-se à uma profunda revisão do cerne das próprias
práticas das igrejas locais, bem como a contestação dos modelos eclesiásticos
formulados ao longo da história do cristianismo, alegando que, com o passar do tempo,
a religião cristã perdeu sua essência principal.

Após sua conversão, Viola optou por não frequentar um seminário. Formou-se
em Psicologia na University of South Florida. Apesar de seu autodidatismo, é autor
reverenciado por muitas personalidades do meio teológico. Sua formação autodidata
teológica foi realizada através de estudos particulares, mentorias e sob a influência da
literatura de intelectuais cristãos como A.W. Tozer, Charles Spurgeon, G. Campbell
Morgan, Watchman Nee e sua principal influência, o teólogo Theodore Austin-Sparks
(1888-1971) 45.

Viola afirma que frequentou igrejas e organizações eclesiásticas por trinta anos
antes de tomar “a decisão de deixar a igreja institucional” (VIOLA,2008, p. 09), em
1988. Seu descontentamento em relação ao “sistema religioso institucional” é
parcialmente expresso em um trecho da publicação eletrônica “Reimaginando a igreja -

43
O Portal norte americano Patheos <http://www.patheos.com>, desde sua fundação, em 2008, tem se
tornado uma importante mídia acerca da religiosidade e espiritualidade mundiais. De linha ecumênica,
sem vínculo à nenhuma religião particular. Diversos autores “de margem”, relacionados a Igreja
Emergente, ao Cristianismo progressista, Teologia Queer, entre outros, hospedam suas páginas
particulares neste Portal.
44
De sua autoria encontramos as publicações em inglês: Living by the Indwelling Life of Christ (2014),
When the Pages Are Blank: How to Bring the Bible Back to Life (2013),When the Pages Are Blank: How
to Bring the Bible Back to Life (2013), Rethink the will of god (2013), Straight talk to pastor (2013),
God's Favorite Place on Earth (2013), Pagan Christianity?: Exploring the Roots of Our Church (2012),
Beyond Evangelical (2012), Jesus: A Theography Hardcover (2012) by Leonard Sweet, Revise Us Again:
Living from a Renewed Christian (2011), Jesus Manifesto: Restoring the Supremacy and Sovereignty of
Jesus Christ (2010), Finding Organic Church: A Comprehensive Guide to Starting and Sustaining
Authentic Christian Communities (2009), From Eternity to Here: Rediscovering the Ageless Purpose of
God (2009), Reimagining Church: Pursuing the Dream of Organic Christianity (2008), The Untold Story
of the New Testament Church: An Extraordinary Guide to Understanding the New Testament (2005),
Consta em seu site pessoal 100 podcast (programas para se ouvir em IPod) com duração de 30 minutos
cada, com cerca de 900 mil audições.
44
Em português temos “Cristianismo Pagão?” (2009), “da eternidade até aqui”, “Reimaginando a igreja
45
<http://frankviola.org/2014/05/28/heroes/> Acessado em 02/08/2014.

67
para quem busca mais do que simplesmente um grupo religiosos” 46. Em primeiro lugar,
não encontrava satisfação nos “cultos dominicais” onde se sentia “dolorosamente
entediado”. Além disso, não via crescimento substancial nos frequentadores dos cultos
religiosos.

Em seus escritos, Viola não deixa dúvidas quanto a seu descontentamento com o
“cristianismo institucional”. Para ele cristianismo estaria na mesma linhagem que o
paganismo e, além deste fato, sofreu diversas “influências humanas”. Em segundo ele,

“Devido a isso, algo de mim ansiava profundamente por uma experiência de


igreja que e aproximasse mais a respeito do que eu lia no Novo Testamento. E
em nenhuma das igrejas tradicionais que frequentava parecia que eu poderia
encontrar isso. Sua convicção de que a igreja contemporânea havia se afastado
de suas raízes bíblicas levaram-no a decisão de “romper com a igreja
institucional [quando ele passou a se reunir] com um grupo de cristãos de
maneira orgânica”. (VIOLA,2008, p.9)

Após sua dissidência, aos 24 anos, Viola iniciou um grupo de estudos bíblicos
na cidade de Brandon. O encontro, voltado aos jovens universitários daquela cidade,
logo cresceu com a adesão daqueles que se simpatizavam com sua mensagem. Nesta
primeira experimentação como comunidade informal, relata que ali não havia liturgia,
não havia clero, que escreviam suas próprias canções. Este grupo inicial chegou a
alcançar cerca de 50 estudantes. Porém, em meados dos anos de 1990, ele mudou seu
foco, de “grupo doméstico” para o conceito de “Igrejas orgânicas”. Desta forma, além
de convocar cristãos a participarem de seus estudos, Viola também tinha o objetivo de
treiná-los para que pudessem liderar outras igrejas orgânicas autônomas, porém sem um
vínculo hierárquico centralizada em sua pessoa ou neste grupo inicial.

Reproduzimos aqui o testemunho de um jovem participante de seu grupo,


extraído do Blog pessoal de Viola 47, que engloba as experiências informais destes
primeiros grupos em Brandon:

46
O título original, em inglês não possui o sub título dado pela editora brasileira. O nome original é:
“Reimagining the church” (2008)
47
Blog pessoal do Autor. <http://www.patheos.com/blogs/frankviola/frankviolabrandon/>.

68
“Eu já não estava satisfeito com a assistir a performance. Nesta reunião
orgânica, comecei a querer partilhar com os meus irmãos e irmãs que eu
tinha visto do Senhor. Em vez de ser passivo, agora eu pensei que era
fácil de funcionar e contribuir. Cada uma de nossas reuniões era livre
para ser diferente. Às vezes a gente cantava por horas. Às vezes, os
crentes estavam a rebentar pelas costuras de compartilhar o que Jesus
tinha feito em suas vidas naquela semana. Às vezes a gente reverenciado
grandiosidade do Senhor em silêncio. Ninguém tinha a dizer-nos para
fazer essas coisas. O Espírito estava se movendo dessa maneira e eles
simplesmente aconteceu espontaneamente. Muitas vezes comemos juntos
como uma família. Às vezes nós compartilhamos escrituras com o outro.
Outras vezes, promulgada cenas e histórias da Bíblia que lançar luz sobre
Cristo. Nós nos encontramos por toda a semana. No período da manhã,
os irmãos iria encontrar um outro irmão ou dois, e as irmãs se reuniam
com as irmãs. E gostaríamos de buscar o Senhor em oração e contemplar
as Escrituras juntos. Gostaríamos de começar o nosso dia com Cristo. À
noite, alguns dos membros abriria suas casas e compartilhar Cristo
durante o jantar. Tivemos irmãos e irmãs reuniões onde iríamos decidir
coletivamente sobre questões relacionadas com a igreja. E gostaríamos
de compartilhar responsabilidades para cuidar uns dos outros. Se não
houvesse necessidades prementes, teríamos apenas cantar ao Senhor e
buscar Sua presença junto. Se houvesse um membro em necessidade,
poderíamos pensar em maneiras de ajudá-los. Às vezes nós apenas
planejar meios de ajudar uns aos outros para se divertir. Às vezes, as
pessoas só iria tomar conta para os pais e dar-lhes uma noite para fora na
cidade. Às vezes, quando um dos irmãos, ou irmãs, partiu em uma longa
viagem, toda a igreja iria aparecer no aeroporto para recebê-los. E nós
teríamos uma reunião da igreja em pleno aeroporto”. (“Jennifer” 48)

Em 1995, Viola muda novamente sua abordagem, deixando sua congregação


local para se concentrar em encontros de “Igrejas Orgânicas” e “missionais” no estado
da Flórida-EUA, mentoriando outros grupos e formando redes destas congregações.
Fica evidente na produção biográfica de Viola que o espectro de segmentação visa
atingir os unchurched ou os descontentes com a “igreja institucional”, termo que, para
Viola, significa “igreja com as quais a maioria das pessoas tem familiaridade
atualmente” (VIOLA,2009, p. 15). A concepção de Viola acerca de “Igreja
Institucional” é especialmente importante para se compreender o conflito entre modelo
“orgânico” em relação aos modelos formais ornados de prédios, pastores oficiais,
liderança formalizada, formato de auditório e, é claro, dízimos. Para abrir nosso
espectro acerca do vocábulo e definir o ambiente filológico do termo, tomemos o que
ele afirma: “eu poderia com a mesma familiaridade denomina-las, ´igreja
48
http://www.patheos.com/blogs/frankviola/frankviolabrandon/

69
estabelecidas´,´igrejas tipo-basílicas´, ´igrejas-tradicionais´,´igreja organizadas´,
[...]´igrejas contemporâneas´ ,´igrejas-audiência´, [...] igrejas baseadas em programas´.
(VIOLA,2009, p. 15).

Viola também salienta que sua apropriação do termo “instituição” não é similar
à utilização no universo da Sociologia em geral para descrever qualquer padrão humano
rotinizado. O autor faz uso estreito do termo para expressar o seu sentimento sobre a
falibilidade da “igreja ocidental de modelo basilical”, na qual os entraves burocráticos
operam em primazia aos contratos humanos e relacionamentos de seus membros. Em
outras palavras, sua crítica à “instituição” recai na oposição da primazia da igreja como
elemento jurídico, físico (templos-basílica), culto-show e burocratizada, quando estes
equipamentos sócio-técnicos se sobrepõem à experiência popular diretamente com o
divino, vivenciados em na coletividade em seu sentido stricto, emancipada de um
agente regulador.

Para Viola (2009, p.16):

“Estas igrejas são construídas sobre programas e rituais mais do que sobre
relacionamentos. Elas são organizações altamente estruturadas, tipicamente
centradas em seu edifício, lideradas por profissionais separados para tal
(´ministros e ´pastores´), os quais são ajudados por voluntários (leigos). Elas
requerem edifícios, pessoal salários e a administração. Na igreja institucional, os
membros assistem por uma ou duas vezes na semana uma performance religiosa
conduzida principalmente pelo pastor e depois se retiram para suas casas onde
individualmente vivem suas vidas cristãs”.

A afirmação acima é um protesto de Viola (2006, p. 7) sobre a forma


contemporânea de como os cristãos têm “feito” a igreja desde os primeiros séculos.
Logo no prefácio de seu texto, encontramos a radicalidade explícita:” A igreja
institucional moderna não tem qualquer direito bíblico nem histórico para continuar
existindo”. Por outro lado, sua ênfase e apelo literário encontraram solo fértil no EUA,
com a dada tendência existente naquele país da não frequência a denominações
tradicionais. Em pesquisa realizada em 2012 o PEW Research Center identificou que
“O número de americanos que não se identificam com nenhuma religião continua a

70
crescer a um ritmo rápido. Um quinto da população dos Estados Unidos - e um terço
dos adultos com menos de 30 – [...] são religiosos não afiliados”. 49

Assim, em sua obra mais conhecida, Cristianismo Pagão? Frank Viola faz uma
intensa revisão de cunho histórico para encontrar a gênese de vários costumes das
“Igrejas institucionais”. Seu objetivo é fazer uma engenharia inversa dos costumes, para
poder implodi-los, alegando que a sobreposição cultural se deu porque o cristianismo
alterou a sua essência ao longo de 20 séculos.

2.2.2 - Neil Cole - plantando a fé onde a vida acontece

Nosso segundo expoente é Neil Cole, plantador de igrejas e pastor norte


americano, fundador e diretor do Church Multiplication Association - CMA,
organização que treina e incentiva a multiplicação de “Igrejas Orgânicas” ao redor do
mundo. Cole foi pastor de uma igreja no interior da Califórnia durante 8 anos. No
sétimo ano de seu ministério enfrentou diversos infortúnios, ataques de amigos pessoais
e também profundos questionamentos em relação ao tipo de ministério que desenvolvia.
Em meio a esta crise, que originou uma posterior reviravolta em seu ministério, Cole é
diagnosticado com depressão quimicamente induzida, seria o “começo de algo novo”
(COLE, 2007, p. 48).

Cole decide por uma nova abordagem em suas atividades. Desta forma ele e sua
família foram são comissionados para atuar em Long Beach, Califórnia, em um projeto
para alcançar jovens em crise, plantando novas igrejas batizadas de Awakining Chapels,
espaços onde pregava em diálogo com a cultural pós-moderna. Concomintantemente a
estas atividades, Cole concebeu e fundou a organização CMA. No seu entender era
necessário fundar não apenas uma única “Igreja Orgânica”, mas um movimento de
plantação de igrejas. Desta forma a Church Multiplication Association ofereceria
suporte e pesquisas relacionadas à sua tarefa de evangelização eficiente.

Cole afirma que antes de iniciar sua empreitada como plantador e mentor de
plantadores de igrejas orgânicas foi convidado para dar consultoria a uma nova igreja.

49
"´Nones´ on the Rise". <www.pewforum.org/2012/10/09/nones-on-the-rise/>. Acessado em
10/07/2013.

71
Ao entrevistar os membros para conhecer a raiz dos problemas daquela comunidade,
notou que a principal preocupação dos fiéis girava em torno de assuntos burocráticos,
tais como o desejo de terem um estatuto, regimentos, compra de terreno para a sede e,
assim, serem “uma igreja de verdade”. Esta consultoria, segundo o autor, foi um dos
momentos em que teve insights acerca da não existência de uma rede de solidariedade
em muitas igrejas americanas, pois os cultos tornaram-se “shows” e as comunidades
“auditórios”.

As Aweking Chapels foram muito bem sucedidas. Cole não pensou em alugar
um espaço maior. Sua estratégia foi treinar seus discípulos para iniciarem outras igrejas
com o mesmo molde, que conservasse a unidade e “comunhão” dos cristãos e cuja
energia não fosse desperdiçada com a elaboração de programas e construções de
prédios. Dez igrejas foram iniciadas no primeiro ano; 18 em seu segundo ano; e 52
igrejas orgânicas no terceiro ano. No ano de 2002 eram iniciadas 2 igrejas por semana.
O crescimento exponencial veio em 2004, quando cerca de 400 igrejas já haviam sido
iniciadas como suporte da CMA. Cole (2009, p.54) conta que “estas igrejas começaram
bem pequenas (com uma média de 15 pessoas) e simples. O termo ´igreja simples´
começou a se popularizar porque dávamos valor a uma vida simples, seguindo o nosso
Senhor, e fugíamos das complexidades das igrejas tradicionais”. Para Cole (2009, p.54):

“A igreja convencional tem-se tornado tão complicada e difícil de levar que


apenas um profissional difícil de ser encontrado consegue fazer isso toda
semana. [...] [logo] A igreja não é um culto semanal, mas a família de Deus; o
que ela tem feito atualmente é o oposto do objeto para qual foi criada. Quando
uma igreja é muito complicada, sua função é tirada das mãos dos cristãos
comuns e colocada nas mãos de alguns profissionais talentosos. O resultado é
uma igreja passiva, onde membros agem mais como expectadores do que
agentes poderosos do Reino”

A partir da experiência com a CMA, Cole (2009, p. 49) afirma que:


“descobrimos maneiras de iniciar igrejas saudáveis e que poderiam se reproduzir. Essas
novas igrejas eram pequenas, e a maioria se encontravam em casas”. Conforme sua
narrativa dos fatos, denominou-as “Igrejas Orgânicas”, para “dar ênfase à natureza
saudável e à naturalidade da multiplicação que queríamos tanto ver”.

72
O termo “Igreja Orgânica” for se tornando popular e chegou ao Brasil a partir de
2007 com a publicação de um livro de Cole, intitulado Igreja Orgânica - plantando a fé
onde a vida acontece (2007). A opção por esta palavra, segundo Cole, veio por dois
motivos. O termo “igrejas caseiras” na América no Norte está correlacionado a um
grupo de pessoas insatisfeitas com a igreja institucional. Em segundo lugar, evitou-se
usar o termo “igrejas caseiras” porque não gostaria de alinhar seu movimento a um
espaço físico específico: a residência. Os grupos orgânicos poderiam se encontrar em
qualquer lugar. “Estas Igrejas Orgânicas brotavam onde quer que a semente tivesse sido
plantada”, como em “lanchonetes, campi universitários, escritórios, casas. Acredito que
a igreja deve ser plantada em todos os lugares em que haja vida acontecendo”,
acrescenta Cole.

Segundo Cole (2007, p. 51), o movimento tem se desenvolvido em 32 estados


norte americanos e em 23 países, até 2007, através da CMA. “Rapidamente igreja
orgânicas começaram a aparecer por todos os Estados Unidos e pelo mundo”.

2.2.3 - Simson Wolfgang - “casas que transformam o mundo”

Simson Wolfgang cresceu em Stuttgart, Alemanha, trabalhou com motorista de


taxi e assistente social. Estudou teologia no Free Evangelical Theological Academy
(Basel, Switzerland). O autor é conhecido no Brasil através do livro “Casas que
transformam o mundo - Igreja nos lares” (WOFGANG,2008). Alinhado com os
expoentes citados acima, o pensamento de Wolfgang assenta-se sobre o aumento do
“grau de insatisfação com a ´igreja como a conhecemos´” (WOLFGANG, 2008, p. 27).
De onde partiria este grau de insatisfação? Wolfgang refere-se à decepção de pessoas
que “entraram com lágrimas de alegria pela porta da frente das igrejas e que
desaparecem novamente pela porta dos fundos com lágrimas de decepção”. Conforme o
autor, esta decepção se reflete na pesquisa entre jovens em Amsterdã realizadas nos
anos 1990, onde 100% dos respondentes afirmaram crer em Deus, porém 99% deles
mostraram-se desinteressados em frequentar uma igreja cristã. Walfgang ainda refere-se
a outra pesquisa, desta vez realizada em Madras pelo Theological College (Madras-
Índia), que revelou que na cidade de 8 milhões de habitantes havia 200 mil crentes não
institucionais. A argumentação de grande parte deles para a não frequência recaia sobre

73
a própria igreja: “argumentam que [se] sentem atraídos por Jesus, mas sentem repulsa
da Igreja”. (p. 28). Wolgang (2008, p. 36) também elenca uma pesquisa elaborada por
John Campbell na Escócia, cuja conclusão foi a de que “uma das maiores barreiras para
crer em Deus é a própria Igreja”.

Para Wolfgang existe uma necessidade nos tempos atuais de uma “terceira
reforma”. Na primeira reforma, empreendida por Martinho Lutero no século XVI, a
“graça” foi novamente posta como pilar central na doutrina protestante. A segunda
reforma deu-se em meados dos séculos VXII e XVIII, quando movimentos pietistas
redescobriram a espiritualidade fervorosa em Deus, o que deu impulso aos movimentos
avivalistas e missionários da época. Finalmente a Terceira Reforma, como formula o
autor, seria uma reforma na estrutura, na eclesiologia. A necessidade para esta
reorganização da maneira de ser igreja cristã dar-se-ia por alguns motivos enumerados
pelo autor, que nos auxiliaram a compreender a centralidade de seu protesto.

Ao contrário da tendência das mega-igrejas, tais grupos, segundo Wolfgang


(2008, p. 142), precisam manter-se pequenos para assegurar sua fluidez e convívio
autêntico. Seguindo sua argumentação, existe uma “linha invisível entre o cristianismo
organizado e o orgânico”. 41). A partir de estudos sociológicos, o autor afirma que um
grupo pode contar no máximo 20 pessoas para manter um relacionamento informal e
harmonioso. Quando esta quantidade é ultrapassada o grupo passa a se auto
regulamentar e os relacionamentos tornam-se “artificiais”. Desta forma, é importante
manter o grupo abaixo deste número de integrantes para que se possa garantir um estilo
informal e um espírito familiar. Para Wolfgang (2008, p. 42), quando se ultrapassa a
“barreira dos 20”:

“O grupo deixa de funcionar organicamente e começa a requerer que se torne


formal e organizado. [...] em decorrência um grupo no lar que passa de cerca de
20 pessoas perde sua atração original, muda seu sistema de valores e
subitamente funciona de acordo com leis completamente diferentes. Perde sua
própria vida, que era espontânea e informal. [...] subitamente ele requer
liderança, uma mão forte”.

Similar ao pensamento de Viola e Cole, Wolfgang também aponta para a


petrificação do modelo atual: “vivemos hoje quase 1.700 anos depois que este

74
desenvolvimento teve início. [..] Muitos de nós carregam consigo um monumental
lastro histórico de ´carga eclesiástica´”. O lastro histórico ao qual Wolfgang se refere
são os acúmulos culturais que soterraram o “Movimento de Jesus”. Estes acúmulos
tornaram o cristianismo uma religião híbrida, sobretudo após a suposta conversão do
imperador Constantino que deflagrou o processo de tornar o movimento de discípulos
de Jesus uma religião política estatal. Assim, seu protesto, em consonância com os
demais autores, revela a insatisfação de parte dos evangélicos norte-americanos, que,
como vimos, também refle em determinados “protestos” no campo religioso brasileiro,
quanto ao pertencimento às igrejas institucionais. Também revela a busca espiritual de
nossos interlocutores por experiências mais familiares, íntimas e profundas com Deus,
longe dos “cultos shows”, representados pelas megaigrejas americanas.

Fica a pergunta, segundo Wolfgang: o que são? O que fazem e como funcionam
as Igrejas Orgânicas? A partir de sua experiência o autor elege quatro pontos
fundamentais que servem de arcabouço para suas comunidades: 1) Refeições conjuntas;
2) Ensinamento Dinâmico; 3) Partilha de Benção materiais e espirituais e; 4) Oração
comunitária;

Para Wolfgang (2008, p. 95-96), uma Igreja no Lar é:

“Vida comunitária e cristãos conduzidas por força sobrenatural em casas bem


normais. É um estilo de vida redimido, vivido em situações concretas. É o
caminho orgânico pelo qual os cristãos seguem Jesus conjuntamente no
cotidiano. Pelo fato de mais pertencerem a si próprios, os redimidos adotam
consistentemente um estio de vida comunitário. [...]Neste sentido as igrejas nos
lares são o leito e a morte do egoísmo - e por consequência, o lugar de
nascimento da comunidade eclesial. A verdadeira comunhão começa quando
termina o individualismo. [...] Igreja no lar significa que o corpo de Cristo se
reúne em casas e que se compreende como pessoas convertidas umas às outras.
[...] Em muitos sentidos uma igreja no lar constituí uma família extensa
espiritual, na qual se partilha a vida de modo espontâneo e orgânico e onde de
fato se está em casa numa rede de relacionamentos saudáveis. A vida cotidiana
das igrejas nos lares não requer mais organização, burocracia e cerimônias do
que as famílias extensas comuns”.
Para elucidar a polaridade existente entre Igrejas Institucionais (aos quais
Wolfgang denomina de “Igrejas Tradicional de Pastores”) e a “Igreja Orgânica”
(chamadas em sua obra de “Igrejas no lar do Novo Testamento”), vale a pena conferir
uma tabela formulada por Wolfgang, que para nossos fins tipológicos é bastante
esclarecedora:

75
Igreja Institucional Igreja Orgânica

Local Reúnem-se em recintos Qualquer lugar


eclesiásticos

Financiamento Dízimo, oferta Partilha-se o que possui

Estilo de vida Individual Comunitário

Evangelização Campanhas, ações, “fazer discípulos”


programas de especialistas naturalmente entre vizinhos;
eclesiásticos multiplica-se por si

Lema “Tragam mais pessoas para a “Levem a igreja até as


igreja!” pessoas!”

Tamanho Grupo grande e apessoal Grupos pequenos com


relacionamentos estreitos

Estilo de ensino Estático, centrado na Dinâmico, estilo de pergunta


pregação e respostas

Centro O culto na igreja A vida cotidiana

Tarefa mais importante Fazer boas pregações, visitas orientar cristãos a assumirem
às casas, oferecer um pessoalmente o serviço
programa completo pastoral

Palavra-Chave “Torna-se membros” “ide e fazer discípulos”

Serviço Caráter de apresentação, Centrado na formação,


impressionar os outros confere poder a todos.

76
Missão Enviar missionários Igreja envia a si própria
especiais como unidade multiplicável

Concluindo, podemos eleger algumas definições. As igrejas orgânicas podem


também receber outros nomes como “Igreja nos Lares”, Igreja Simples”, “Igreja
doméstica”, “Igreja não denominacional”, “Simplesmente Igreja”, “Igrejas da cidade”.
Porém, independentemente do nome, o que nos interessa é atentar à experiência cristã
comunitária, feita fora dos espaços considerados sagrados pela maioria das religiões,
com tendências anti clericais e que valorizam a rede de solidariedade formada pela
comunidade religiosa. O termo corresponde à um grupo de cerca de 8 aos 20 cristãos
que reúnem-se regularmente ou espontaneamente em residências ou locais poucos
usuais para reuniões eclesiais, tais como bares, cafés, locais públicos. Estes
agrupamentos possuem traços distintivos: 1º) Não há um clero estabelecido, todos os
fiéis são emponderados, isto é, capazes de participar ativamente no grupo e nas esferas
de liderança. 2º) Durante seus encontros, não há condução litúrgica refinada ou
profissionalizada, as igrejas orgânicas encorajam a que todos os fiéis participem
ativamente sem considerar ninguém como pertencente a uma “classe privilegiada”. 3º)
Também são conduzidos por um sistema de liderança descentralizada e livre, criando
um sistema de autonomia dos indivíduos para auto gerirem os próprios grupos
emancipados. O trânsito religioso que há - de “igrejas Institucionais” para uma “Igreja
Orgânica” é outra forte marca. Também, em alguns casos, redes de igrejas são
estabelecidas nas cidades, “redes apostólicas ou de supervisão”. (VIOLA, 2009; COLE,
2005, SIMSON, 2001; WRIGHT, 1997; CHAMBERS, 1997; LOONEY, 2010; DALE,
2002).

77
CAPÍTULO III

CAMINHO DA GRAÇA: TRAJETÓRIA DE UMA IGREJA ORGÂNICA

O “indivíduo moderno, no que se refere à religião, poder crer sem pertencer”


(HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 156)

Este terceiro capítulo analisa o movimento Caminho da Graça (CdG), que, ao


meu entender, oferece um bom exemplo de “Igreja Orgânica”. Divide-se em duas
partes. Na primeira, é levantado o histórico de seu fundador, Caio Fábio de Araújo
Filho, ou simplesmente Caio Fabio. A partir da observação de sua trajetória é possível
construir uma percepção privilegiada dos deslocamentos do campo religioso brasileiro
no último quarto do século XX. Deste modo, é possível levantar algumas hipóteses
acerca do surgimento das “Igrejas Orgânicas” contemporâneas, categoria na qual
incluímos o CdG. A segunda parte será dedicada a pesquisar a história do CdG com
suas “Estações da Graça”, procurando também levantar hipóteses sobre seu perfil sócio-
religioso à luz dos estudos da Sociologia da Religião.

Para o pesquisador, confirmado através do período meses em observação


participativa, o “Caminho da Graça” é um movimento ligado ao recrudescimento do
descontentamento recente dos cristãos protestantes ao “universo evangélico”. Este
descontentamento, como veremos no transcorrer do capítulo, colabora para a liquefação

78
das identidades religiosas dos indivíduos, proporcionando uma intensa busca por
agrupamentos mais “autênticos”, menos “rígidos”, com mais “liberdade” e menos
“hipocrisia”. Ademais, há um convencimento, no entender de seus participantes, de que
tais grupos aproximam-se ao ideal de igreja estabelecido no cristianismo original. Para
esta pesquisa, usamos o termo “Igreja Orgânica” para designar este tipo de micro
comunidades religiosas cristãs e não denominacionais.

Podemos dizer que a história do movimento o “Caminho da Graça” está ligada


diretamente à trajetória e biografia de seu principal líder e fundador, Caio Fábio
D´Araújo Filho (1955). Para Robinson Cavalcanti (in D´ARAÚJO, 2005, p. 05) “Não se
pode pretender escrever a história do cristianismo brasileiro do século XX e XXI sem
referência a esse personagem”. Cavalcanti, talvez com certo exagero, denomina as
décadas de 1980-90 como a “Era Caio Fábio” 50, devido à marcante articulação de
D´Araújo dentro do cenário evangélico e da sociedade civil brasileira. Entretanto, talvez
Cavalcanti tenha alguma razão, pois durante os anos 1980-90, dificilmente alguma
liderança protestante do país alcançou tão ampla aceitação fora da instituição e, por não
ficar presa aos seus quadros, projetou-se nacionalmente como articulador na sociedade
civil. Portanto descrever parte da trajetória de Caio Fábio D´Araújo é também buscar
uma tentativa de revisar o processo de mudanças sócio-religiosas que se deram no
Brasil, a partir dos anos de 1990.

Para compreendermos a dimensão da sua figura pública observaremos alguns


fatos que tornaram D´Araújo, personagem peculiar no campo religioso brasileiro
naquela década. Seu maior empreendimento foi realizado em 1978, com a fundação da
Visão Nacional de Evangelização - VINDE, “missão que por muito tempo serviu de
apoio ao seu ministério de evangelização, tendo realizado através da VINDE,
congressos e cruzadas -por todo o Brasil”, afirma Cavalcanti. 51 A VINDE catapultou
um holding de empreendimentos voltados prioritariamente para a comunicação, sendo
um “guarda-chuva” que abrangia a VINDE Sat e VINDE TV, pioneiras nas TV’s via
satélite e por assinatura no segmento evangélico, a revista VINDE, principal canal de
promoção para todos os seus eventos, viagens, promoções, ativismos sociais, e outros

50
CAVANCANTI, Robinson. As chamadas “seitas” protestantes. <
http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/276/as-chamadas-seitas-protestantes>. Acessado em
10/10/2013.

51
<http://www.caiofabio.net/caiofabio.asp>. Acessado em 10/10/2013.

79
empreendimentos. Seus congressos, sempre segmentados para “pastores e líderes”,
“juventude”, “empresários”, “casais”, aglomeravam milhares de evangélicos. Ademais,
a “Fábrica da Esperança” (ONG fundada em 1994) implementada na favela do Acari,
tornou-se conhecida nacionalmente, sendo, na época, uma das maiores organizações
não-governamentais da América Latina.

Talvez seu mais ambicioso projeto seja a Associação Evangélica Brasileira -


AEVB, constituída em 1991 com o intuito de reunir os evangélicos dentro de um
ambiente associativo onde poderiam minimamente sintonizar seus propósitos e
percepções teológicas. Estas atividades projetavam Caio Fabio para ocupar um lugar
estratégico no evangelicalismo brasileiro. Para Paul Freston (1995, p.12) "a projeção
nacional de Caio Fábio veio somente em 1994, com entrevistas e extensas reportagens
nas principais revistas semanais e jornais diários e nas redes de televisão, bem como a
introdução de um ´pastor ético´, assim como referências à Fábrica da Esperança em
novela da Globo".

Alexandre Brasil (2003, p. 223-242) destaca a atuação de Caio, da VINDE e de


seu conglomerado de empresas midiáticas. Para atingir os seus objetivos de pesquisa,
Fonseca identifica quatro momentos na história de Caio Fábio: o início de seu
ministério em Manaus (1974-1980); o desenvolvimento de sua presença junto à mídia
radiofônica e televisiva; e sua mudança para o Rio de Janeiro, “com a consolidação de
sua liderança entre os ´evangélicos de esquerda´” (1980-1987), período em que,
segundo Fonseca, “se aproxima com um público melhor situado economicamente”,
após o período de residência nos Estados Unidos. Finalmente entre 1993-1998,
D´Araújo se torna uma “significativa figura na sociedade civil organizada”. Já os anos
de 1998 e 1999 foram marcados pela sua chamada “queda” 52, fazendo-o entrar em
novas dinâmicas, quando acusado da tentativa da divulgação do “Dossiê Cayman” e de
crises pessoais que o levaram a uma reviravolta em sua performance pública e na vida
pessoal.

Ainda é possível frisar dois períodos importantes na trajetória de D´Araújo:


(2000-2002) no qual D´Araújo se torna persona non grata entre os evangélicos, por
conta de infortúnios em sua vida pessoal; de reclusão nos Estados Unidos e intensa
recomposição de sua abordagem espiritual; torna-se outsider ao universo evangélico e

52
“Caio Fábio abre o peito sobre a queda de peito aberto”. < http://youtu.be/ytDqvg925uI>. Acessado em
10/10/2014.

80
começa a ganhar simpatia de miríades de evangélicos feridos e decepcionadas com as
“igrejas evangélicas institucionais”, sobretudo após o advento da consolidação do
movimento neopentecostal 53. Em 2002, recebe uma “revelação” através de um
“profeta”. A suposta profecia antevia sua restauração, assim como a de seu ministério, e
ainda, segundo a premonição, ele voltaria a alcançar milhões com sua nova mensagem.
Outro momento a ser destacado é o “pós 2002”, quando Caio Fábio lançou seu site
(www.caiofabio.com), dando início a uma nova etapa pública, com esse “portal dos
54
invisíveis”, conforme suas próprias palavras. É nessa fase online de suas atividades
que surge o “Caminho da Graça”, assim como a formulação definitiva de uma
perspectiva que apresentava um “cristianismo de contracultura”.

3.1 - O fundador: Biografia, trajetória e peregrinações

Antes de apresentarmos mais observações sobre a trajetória de Caio Fabio, de


reverendo presbiteriano a mentor de uma antítese da “igreja evangélica institucional”
que se tornou o “Caminho da Graça”, é importante lembrar o que Carlo Ginzburg (1989,
p. 175-176) afirma a respeito das pesquisas no gênero “biografia”. Segundo o autor, “As
linhas se convergem para o nome e que dela partem, compondo uma espécie de teia de
malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo
está inserido”. De igual modo, os indivíduos só podem ser compreendidos aliados a uma
rede que os liga de maneira interdependente dentro de seu espaço social, de tal forma
que a sociedade é composta por tramas interligadas entre sujeitos e agências. Desta
forma, é possível realizar leituras de uma sociedade através de análise de trajetórias
individuais. Ressaltando que não podemos tratar de maneira desassociada indivíduos e
sociedade, pois, os aspectos biográficos constroem uma rede de relações. Sendo assim,
mergulhar em experiências individuais permite alcançar espectros mais gerais da
dinâmica cultural dos indivíduos. Desta forma, vagorosamente emerge uma biografia,
seja embora inevitavelmente fragmentada, e a rede de relações que a circunscreve”.

53
Paulo Romeiro (2005), sustenta a tese de que nos últimos anos, com a multiplicação das igrejas
neopentecostais e seu discurso messiânico, esse contingente de desiludidos tem crescido em progressão
geométrica”.
54
“A semente, o site, você e eu. | O portal dos invisíveis. - www.caiofabio.net”. <
http://youtu.be/NN9BMWphfok> . Acessado em 06/06/2014.

81
Podemos observar também estar presente na cultura brasileira a necessidade de
interlocutores que se sobressaiam como “mitos”. Kátia Mendonça (2002, p.14), ao
dissertar sobre o “mito do herói” no “imaginário” brasileiro sustenta que:

“na modernidade, o desencantamento do mundo, como previsto por Max Weber,


na realidade resultou em um processo na qual o mito, despojado de seu carácter
sagrado, submete-se a esfera da racionalidade, se mercantiliza, sendo consumido
com volúpia por uma sociedade na qual os indivíduos, com seus laços coletivos
rompidos”.

Sendo assim, é inevitável, segundo Mendonça, que as personalidades míticas


ataviem-se à recepção coletiva fetichizada de suas mensagens. Ainda, seguindo nossa
argumentação ressaltamos Joseph Campbell (1997, p. 66), que afirma fazer parte
integrante da experiência humana a convocação para uma jornada heroica destinada a
uma proeza física ou existencial. Campbell chama essa jornada de “ciclo do herói”. Seu
primeiro estágio se “denomina ‘o chamado da aventura’; isso quer dizer que o destino
convoca o herói e desloca seu ‘centro da gravidade’ - do seio da sociedade, para uma
região desconhecida”. Logo, para Mendonça e Campbell, há que se considerar que
diante de narrativas biográficas atavia-se uma convocação a uma jornada convincente,
na qual o “herói” é vocacionado e consagrado.

Posta estas referências podemos acentuar quatro dessas passagens da vida de


Caio Fábio que podemos considerar “mística-fundantes”. Em sua juventude: 1) Aos
dois dias de nascimento seu pai, ateu à época, dedica-o a Deus; 2) aos 18 anos uma
sucuri, em visão “espiritual”, enforca-o, fato que o leva D´Araújo à conversão ao
cristianismo; já em sua maturidade veremos mais duas destas passagens: 3) Num sonho
profético, em 1998, uma voz lhe diz: "Pregue para essa nova geração" 55 e 4) Um
“sensitivo” cego, profetiza à Caio Fabio haver em sua história um “portal”, um “portão
dos invisíveis” por onde passariam milhões de pessoas.

55
“Pregue a nova geração!”. <http://youtu.be/CYlNeTE1im4>. Acessado em 10/10/2013.

82
3.1.1 - Do Amazonas ao Rio de Janeiro

Caio Fábio D´Araújo Filho nasceu em Manaus em 15/03/1955, primogênito de


Lacy Silva e de Caio Fábio de D´Araújo. Houve, diante da escolha de seu nome, uma
dúvida: se chamaria Hugo ou Caio? Pela tradição de batizar o primogênito com o nome
do pai, ficou Caio. Seu pai, à época, trabalhava como servidor da justiça, desde 1951,
quando foi aprovado em um concurso público, escolhendo atuar profissionalmente em
sua cidade natal, Canutama-AM, onde D´Araújo Filho passou a maior parte de sua
infância e juventude.

É interessante sublinhar em sua trajetória a “consagração a Deus”, narrada, não


sem certa dramaticidade, em sua autobiografia Confissão do Pastor (D´ARAÚJO, 1995,
p. 15-16) 56. Sua dedicação foi celebrada por seu pai, que mesmo agnóstico (porém com
a alma “totalmente impregnada pela ideia do sagrado”), toma-lhe nos braços e profere a
seguinte oração: “Eu te dedico meu filho, meu primogênito e peço que faças dele um
homem de Deus, um sacerdote [...] Por isso, sem saber porque Te peço, por favor, Deus,
faze dele um pastor”.

Caio Fábio tinha dois anos quando em 1957 seu pai deixa o emprego público
para dedicar-se a um escritório de advocacia próprio. Com o sucesso desta empreitada,
em 1958 cria a “Colimpa S.A”, exploradora de ouro na região do Parauari. Notório
empreendedor, em 1961, Caio pai abre uma nova empresa, a “Compaina”, exploradora
de borracha e castanhas. Sua família ganha destaque na sociedade amazonense da
época. Fonseca (2003, p. 227) lembra que Caio Filho vem de uma família de boa
situação financeira, “filho de um industrial e advogado de sucesso, sócio do [ex]
senador Bernardo Cabral, e neto do governador do Estado do Amazonas na década de
1940”. Porém, com o advento do golpe de 1964, “perdem quase tudo”.

D´Araújo Filho sustenta que foi seu pai que mais o influenciou neste mundo até
os dias de hoje (D´Araújo, 1995, p. 11). D´Araújo pai foi católico até os 26 anos quando
decidiu se tornar agnóstico. Contudo, lendo a Bíblia “de cabo a rabo”, adquiriu uma
nova visão e se converteu sozinho na cozinha de seu apartamento, em Niterói,
“entregando sua vida a Jesus”. Não disse nada a ninguém sobre o ocorrido. No Natal do
mesmo ano, aceitou o convite de participar de um culto em uma Igreja Presbiteriana.
56
Publicada aos seus 42 anos, best seller na época.

83
Durante o evento e através da pregação do reverendo Antônio Elias, decidiu tornar
pública sua conversão. “Com os pés na igreja, seu progresso espiritual foi rápido” e
gradualmente foi perdendo o interesse pela advocacia, pois “não conseguia mais
mentir”. (D´Araújo, 1995, p. 60).

Caio Fábio D´Araújo pai, depois de ler o livro Apóstolo dos pés sangrentos57
decidiu viver a proposta mística do autor indiano e passou a praticar jejuns e orações.
Segundo Caio Fábio Filho, “de alguma forma, aqueles exercícios espirituais deram a
papai novas dimensões sobre o sagrado”. D´Araújo afirma que a nova espiritualidade de
seu pai era cada vez mais intensa e, entre os anos de 1967 e 1970, o exercício do direito
misturava-se com a evangelização e expulsão de demônios de seus clientes, quando um
senso de dever e vocação tomou conta de sua mente. “Eu começava em sonhos me
vendo no interior do Amazonas do rio Purus, de onde sou originário, e me via naquele
rio falando do amor de Deus, em Cristo Jesus. Estas coisas foram se arrumando em meu
coração. Esta coisa se acentuou e fui sentido automaticamente na profissão de
advogado” 58 (D´Araújo, 1995, p. 87-89).

Desta forma D´Araújo pai, aos 45 anos, sentiu-se vocacionado à evangelização


dos povos ribeirinhos. Estava impelido em retornar a sua terra natal para ser missionário
entre seus conterrâneos. Obstinado e convencido de que deveria voltar a Manaus,
encontrou entraves burocráticos da igreja institucional presbiteriana, pelo fato de que
não tinha passado por um seminário e ordenação. Não desejando passar pelo protocolo
de quatro anos em um seminário “naquela altura da vida”, deu o veredicto: “já havia
decidido ir por conta própria”. Por conseguinte, os pastores locais decidiram enquadra-
lo em um artigo da constituição Presbiteriana que permitia a consagração de ministro de
“vocação tardia”, sem seminário. Foi o que aconteceu. Cumprida a exigência posta pelo
Presbitério da escrita de uma tese, D´Araújo pai recebeu sua ordenação em 10/01/71.
Em março daquele ano sua família já estava novamente em Manaus (D´Araújo, 1995,
p.108), desenvolvendo seu ministério junto à população ribeirinha. Desenvolto, Caio
Fábio pai em pouco tempo já alcançava projeção e outros postos na liderança
presbiteriana da cidade.
57
“Biografia de um indiano de família nobre, da seita sik, que sofreu perseguições, prisões e privações
por ter-se convertido ao Evangelho. Mas seu desejo de evangelizar era superior a qualquer obstáculo,
mesmo com os pés sangrando.”, resenha do livro de Bonaerges Ribeiro. < http://www.cpad.com.br/o-
apostolo-dos-pes-sangrentos/p#.U_pWG_ldWSo>. Acessado em 10/10/2013.
58
“Caio Fábio (pai) Breve histórico”. <https://www.youtube.com/watch?v=E6IC4F-XeVk>. Acessado
em 10/10/2013.

84
Porém D´Araújo Filho, levava uma vida de bon vivant arruaceiro. Segundo
Fonseca (2003, p. 228), “envolve-se com drogas, álcool, brigas na rua, assumindo
práticas promíscuas em sua vida cotidiana”. Zuenir Ventura (VENTURA in D´Araújo)
destaca que Caio Filho, em sua juventude “era um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto
que amava ´alucinadamente as mulheres e fumava maconha e cheirava cocaína no
mesmo ritmo que dirigia sua moto – mais que uma alma perdida, era a promessa de um
cafajeste”.

Após uma conturbada estadia no Rio de Janeiro, D´Araújo Filho estava de volta
a Manaus. Experimentava uma relação conflituosa com a religião e também com a
figura do pai, que, após tornar-se pastor, passou a ser opressor e rígido diante da postura
liberal do filho. Nesse contexto, desencadeou-se em Caio Filho um processo de
profunda crise existencial em relação à sua vida desregrada e repleta de excessos que
levava. Diante de tantos infortúnios e desencantos com o mundo, crises e desesperos,
sexo e solidão, Caio Filho inicia seu processo de convencimento de que poderia ter uma
vida mais equilibrada se aderisse ao cristianismo.

Desta forma, a conversão em 1973 é apresentada como um importante momento


na biografia de D´Araújo. Assim relata-nos a sua autobiografia: Aos 18 anos, em vias
de suicidar-se devido aos infortúnios acima descritos, já namorando Alda, sua primeira
mulher, Caio Filho tem uma visão espiritual, que assim ele relata: “uma cobra grande
como uma sucuri me arrochando, enquanto também mordia meu braço esquerdo e
inoculava em mim um veneno mortal. E súbito pensei que não era algo material”. Tal
“espírito imundo” foi expulso por seu pai, que proferiu as seguintes palavras, diante do
possível demoníaco em Caio: “não gerei filhos para serem morada de demônios”. Após
este episódio, Caio fica sereno, vai até um igarapé e se “auto batiza”, seu relato
continua. “Quando voltei à trilha, havia um sentimento de novidade de vida dentro de
mim [...] aquele Caio que fumava maconha, cheirava pó e outras coisas morreu ontem e
eu acabei de sepulta-lo num igarapézinho [...] ele não quer saber mais de maluquices”
(D´ARAÚJO, 1997, p. 181-185)

Após este episódio Caio Filho (1997, p. 193) muda sua vida para sempre:
“dentro de mim havia um permanente desassossego. Dia e noite eu me via pregando
para as multidões”. No ano de 1974, sua mente foi tomada pela ideia de que a pregação
do Evangelho seria sua grande vocação. Quando falava em público parecia estar
“experimentando fortíssimas formas de prazer existencial”, além disso, passou a notar

85
seu poder de comunicação em atrair a atenção das pessoas com sua retórica. “E esses
dois sinais me pareciam divinos”.

A partir desta conversão a trajetória biográfica de D´Araújo ganha outra direção,


pois de jovem desvairado ele se torna um pastor de almas. Nos meses que se seguem ele
inicia um vibrante movimento de evangelização entre os jovens e hippies de Manaus. O
carisma demonstrado atraia a atenção dos moradores da cidade. Após um ano de sua
conversão inicia-se sua escalada midiática. O dono da Rede Amazônica de Televisão,
Filipe Dau, ofereceu a Caio um programa semanal aos domingos, com trinta minutos de
duração. (D´ARAÚJO, 1997, p. 194-200). O programa Jesus, a esperança das
gerações 59 era veinculado das seis e meia às sete da noite, ao vivo. Caio Fabio comenta
que o programa teve grande repercussão porque

“todas [as pessoas] me conheciam como uma pessoa que tinha uma história mais
maluca e agora estava falando de Cristo. Era uma coisa bem chocante. A
segunda razão era porque era um caminho novo, não existia no Amazonas
nenhum programa evangélico de televisão (entrevista de D´ARAÚJO in
FONSECA:2003, p. 228).

Fonseca (2003, p. 228) ainda destaca que suas cruzadas evangelísticas em


Manaus chamavam a atenção de grandes massas. Contudo podemos notar que desde o
início de seu ministério, D´Araújo resistia a certas pressões para institucionalizar seu
“espírito” amazonense selvático e arredio, avesso aos scripts da igreja Presbiteriana. No
entanto, no início de 1975 na reunião do Presbitério de Manaus, observando sua plena
atuação vocacional, decidiu dar-lhe uma oportunidade para pleitear uma ordenação
pastoral formal. A questão da ordenação de Caio Filho, que não cursara faculdade
teológica, foi decidida em uma reunião conciliar que lhe exigiu um acompanhamento
durante três anos, mais a leitura de uma bibliografia própria de um seminário teológico
da Igreja. Porém, sobre este fato, Caio alega que “na verdade nunca tivera qualquer tipo
de fé na instituição religiosa. Sabia que ela era útil apenas para manter a tradição da fé,
mas que era completamente inútil quanto a produzir amor e compaixão no coração das
pessoas” (D´ARAÚJO, 1997, p. 146).

59
Em 1978 o programa Jesus, a esperança das gerações é re-batizado para Pare e Pense.

86
Além dos esforços acima, ele precisava propor uma monografia acerca da
“salvação dos pagãos fora da religião”, apresentada a uma banca dia 6 de janeiro de
1977. Nesse texto Caio Fábio Filho defendia a hipótese de que, embora a Igreja seja
uma “agência da graça divina no mundo”, ela não é detentora exclusiva da “graça
divina”. Apesar dessa tese ser entendida como “liberal” ou “universalista” nos meios
calvinistas, Caio foi aprovado, após “dois dias de discussão”, não sem grades debates
empreendidos entre seus examinadores. Será que deveriam aprovar Caio, diante de tanto
ousadia teológica? Diante do seu ministério já proeminente na cidade, recebeu a
aprovação. Sua idade era de 21 anos, quatro após sua conversão.

Naquela altura sua atuação no rádio também era intensa. Ele possuía um
“genuíno marketing cristão”. Seu programa de rádio chegou a receber 1.800 ligações
por dia. Para saturar a sua cidade com a pregação do evangelho, fez parceria com a
Mocidade para Cristo – MPC e a Aliança Bíblica Universitária - ABU, demonstrando
sua inclinação para o evangelho social e para visão progressista da atuação da igreja
evangélica. Contudo “o volume de coisas era tão grande, que às vezes me enrolava todo
pelo caminho”. Segundo suas próprias observações, era necessário “haver uma estrutura
que pairasse acima das bandeiras evangélicas, de modo que pudesse servir a todos, [por
isso] criamos aquilo que no meio se chama de Missão, e que do lado de fora se
convencionou chamar de ONG cristã. Assim nasceu a Visão Nacional de Evangelização
[VINDE]”.

Em sua escalda, em 1982, Caio Fábio Filho fez o encerramento do II Congresso


Brasileiro de Evangelização - CBE, quando foi aclamado e lançado para o cenário
evangélico nacional apontado com um porta-voz de uma espécie de movimento
paralelo. Justamente porque ele agia à revelia das denominações religiosas, porém
alinhado aos evangelicalistas 60. Em 1985, D´Araújo é o preletor principal do congresso
do Serviço para a Evangelização da América Latina - SEPAL, outro grande congresso
valorizado no Brasil, o que aumentou a sua influência no meio dos evangélicos.

A VINDE veio para dar suporte às cerca de 300 cartas que seu programa recebia
por semana, e 1.500 telefonemas por dia que seu programa atendia. Ela foi fundada sem
vínculo denominacional para não “confinar aquilo tudo a apenas uma comunidade
evangélica”, no caso a igreja Protestante do Brasil. Mesmo não podendo comprovar a

60
O “evangelicalismo” é uma vertente cristã que tem origem na Grã-Bretanha, no anglicanismo, com
forte consciência social e política.

87
amplitude das narrativas construídas por Caio, Fonseca conclui que Caio Fábio se dizia
ser “uma pessoa extremamente conhecida na cidade” e que suas cruzadas de
evangelização “só eram menores do que as decisões dos jogos de futebol”.

3.1.2 - No Rio de Janeiro uma nova fase: “A era Caio Fábio”

Devido ao rápido desenvolvimento da VINDE e de suas viagens constantes,


D´Araújo muda-se para o Rio de Janeiro, sustentado por colaborações financeiras
voluntárias de 30 amigos, dizia nada ganhar com a VINDE. Com esses recursos
levantados ele consegue reunir o sustento financiamento para sua família e alugar um
espaço para seu programa no SBT, que ia ao ar todos os domingos de manhã. Nessa
mesma época, o reverendo Antônio Elias, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil - IPB,
o convida para sucede-lo na Igreja Betânia (Niterói). Assumida a liderança dessa igreja,
em pouco tempo ela já contava com três cultos por domingo. Segundo Fonseca (2003,
p. 231), “a permanência de Caio no Rio de Janeiro marca o início de um processo em
que ele se torna uma das principais lideranças evangélicas do Brasil, deixando de ser a
´figura pública´ de Manaus” para ganhar uma projeção nacional e internacional no meio
evangélico.

Em 1981 as viagens de Caio recomeçaram, o que fez com que ele se distanciasse
de seu rebanho local, gerando insatisfações. Qual seria então a vocação de D´Araújo?
Um pastor local ou um pregador itinerante? Durante o ano de 1982 ele alega ter
palestrado para cerca de meio milhão de pessoas. Diante da multiplicação de suas
viagens e do descontentamento de alas de membros da Igreja Betânia, tudo isso somado
ao fato da descoberta de um problema cardíaco em 1984, Caio decide deixar o
ministério pastoral de uma igreja local, em janeiro de 1985, citando John Wesley e sua
conhecida frase: “o mundo é minha paróquia”. (D´ARÁUJO, 2003, p. 282).

Para D´Araújo (2003, p. 288), os anos seguintes foram marcados por sucessivas
viagens e exposição em mídias por todo o Brasil. Segundo ele, as pessoas diziam: “você
é uma unanimidade nacional”. Porém, como consta em sua biografia, ele sempre era
enaltecido por possuir um “espírito amazonense” selvagem e não domesticável.
D´Araújo registra ainda que seu nome era conhecido em todo país, fosse pelos livros

88
cristãos que escrevia, [...] “fosse pelo fato que minha presença era obrigatória em
qualquer coisa de peso que fosse acontecer no meio evangélico. Eu, entretanto, sentia
saudades do Amazonas, pois, sem querer e de modo imperceptível a igreja havia me
domesticado”. Afirma que recebia centenas de convites por ano para pregar, porém isso
não lhe trazia satisfação.

D´Araújo (1995, p.290) sustentava ainda que sua alma empreendedora estava
inquieta. Desta forma, criou uma editora para publicar seus livros e lançou a pioneira
televisão via satélite do Brasil, a VINDE SAT, que oferecia um curso bíblico,
transmitido durante duas horas por semana, ao vivo, e ainda contava com interações via
telefone. Porém, em 1987,

“sentiu a necessidade de aprimorar seu inglês. E a VINDE contava com uma boa
equipe: Henrique Ziller era o diretor executivo [...], Tissiane Cavalcante era o
homem do marketing. E Cristina Christiano [...] secretária. Além disso eu tinha
três amigos que estavam dispostos a financiar parte de meus estudos e pagar a
folha de pagamento dos vinte funcionários que tínhamos na época”.

Em 1987, Caio Fábio Filho se mudou para os EUA (Passadena) onde se


matriculou no Fuller Theological Seminary (Passadena), período que vai de 1988 até
1990. No entanto, julgava o ambiente acadêmico muito “vagaroso”, de modo que se
decidiu por estudar por conta própria, paralelamente a seu mestrado, a vida de Jaques
Ellul, um dos preponentes de um cristianismo desistitucionalizado e anárquico, lendo 45
livros de seus livros. Também nesta época, segundo sua biografia, Caio Fábio admite o
desejo de conduzir seu ministério em direção à ação social mais efetiva e menos
“filosófica”. Queria fazer algo “forte na área social”, dizia, “o que eu quero é integrar a
fé aos temas da natureza social, entretanto sem aderir a teologia da libertação. Caso sua
escolha fosse ficar definitivamente na América do Norte, segundo alegavam “certos
amigos” do autor, Caio Fábio poderia se tornar um dos dez cristãos mais influentes do
mundo. Isso era uma tentação para que ele não retornasse ao Brasil. Porém, neste
período, ele é alertado por um de seus assessores de que “tem uns negócios esquisitos
acontecendo aqui. [...] um tal de Edir Macedo botando pra [sic] quebrar”. Além disso,
em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello confiscou a poupança de todos, o que
obrigou-o a retornar. (D´ARAÚJO, 1995, p. 292)

89
Fonseca (2003, p. 232) afirma que, segundo o pastor Ariovaldo Ramos,
D´Araújo foi para os EUA cooptado por uma bolsa concedida pelo evangelista Leighton
Ford 61. Segundo Ariovaldo, a estadia de Caio Fábio na América do Norte proporcionou
uma mudança de seu discurso e prática com o convívio com Leighton Ford e Billy
Graham Ministries e “outros ministérios cristãos personalistas”. Aqui observamos
novamente Ariovaldo Ramos em depoimento registrado por Fonseca (2003, p. 232)

“O Caio até 87 era um cara assumidamente de esquerda. Com aquela visão que
nós temos que mudar, promover justiça neste país, a situação tem que mudar, a
igreja tem que se engajar... e a TV era vista como grande difusora dessas ideias
e acima de tudo uma evangelização que fosse ao mesmo tempo carismática,
consistente e que desse perfeitamente, para o cara que tivesse ouvindo, a ideia de
que o evangelho era algo que não cabia uns estereótipos que até então os crentes
sofriam, que o Evangelho era uma coisa profunda, que Jesus Cristo era o
verdadeiro caminho e aceita-lo era a coisa mais inteligente a fazer”.

Fonseca ressalta (2003, p. 233) que após o período nos EUA, Caio Fábio retorna
com “novos e claros objetivos”. Antes seu modelo de gestão e liderança era informal,
como uma “comunidade”, então passam a “existi[r] setores, gravatas, divisões e
divisórias cargos de chefia e um presidente quase que inacessível”. Porém, conforme
Ramos (via Fonseca, 2003, p. 235): “dos quinze funcionários de 1990, em 1994 eram
duzentos, chegando a quatrocentos em 1997”. A partir daquele momento, “Agora era
uma mensagem bem Lausanne 62, bem evangelical... Caio agora fala com uma
linguagem mais empresarial e menos social”, Fonseca conclui, reafirmando que este
novo cenário atinge novas frentes e classes mais altas. Segundo Caio Fábio
(D´ARAÚJO, p. 292), quando retornou dos EUA formulou três objetivos:

“1) Incrementar as ações da Vinde e fazê-la crescer para ser a maior organização
paraeclesiástica e não governamental do país, no meio evangélico. Sobretudo,
queria transforma-la em uma grande geradora de informação entre os cristãos;

61
Ligado ao ministério Billy Graham e ao Lausanne Moviment, fomentador do evangelho social e
também dos debates em torno da teologia da “Missão Integral”.
62
A referência é a do "Pacto de Laussane", que, em um dos seus principais eixos teológicos uma
conclamação acerca da "A Responsabilidade Social Cristã". <www.lausanne.org/pt/pt/1662-
covenant.html>. Acessado em 13/10/2013.

90
2) Usar o capital relacional que eu tinha desenvolvido em toda nação para
promover a criação de uma entidade que representasse os evangélicos
preocupados com a ética e, se possível, envolver o máximo possível de líderes e
igrejas, tentando ser maioria;
3) Envolver-me o máximo possível com iniciativas de natureza social e assim
demonstrar a séria preocupação dos cristãos com a coletividade”.

A esta altura, a ciranda neopentecostal circulava e crescia livremente na sociedade


brasileira. Caio Fábio incumbido pela vocação da vigilância panóptica dos espaços
evangélicos. A Igreja Universal do Reino de Deus, já há duas décadas, inferia no campo
religioso brasileiro, porém com suas estratégias de fagocitose religiosa avançava fileiras
e fazia escola. A compra da TV Record em 1989, pela Igreja Universal do Reino de
Deus transformou Caio Fábio em adversário de Edir Macedo. Para Zuenir Ventura
(VENTURA, 1998, p. 245), apesar desse “sucesso pastoral, o presbiteriano Caio Fábio
se impressionava com a avassaladora expansão da concorrência pentecostal, responsável
já por 70% da massa evangélica”.

3.1.3-Controvérsias – Associação Evangélica Brasileira (AEVB) x Igreja Universal


do Reino de Deus (IURD)

Pierre Bourdieu se refere ao campo religioso como um espaço de batalha entre


concorrentes que disputam o seu controle. Essa “luta” é bem perceptível no conflito
entre a AEVB e a IURD, feita por meio da competição entre suas duas lideranças: Caio
Fábio de um lado e Edir Macedo de outro. Para Paul Freston (1995, p. 11): “Se o Bispo
Edir Macedo fora a encarnação principal da imagem negativa que a mídia circulou a
partir de 1987, o seu contraponto mais positivo veiculado a partir de 1994 é Caio Fábio
D´Araújo Filho, o presidente da Associação Evangélica Brasileira”. Caio Fábio,
segundo Freston, representou então a tentativa mais recente de aglutinação do campo
protestante. Todavia a tensão entre a AEVB e a Universal iniciou-se algum tempo antes.

Em 17/05/91 a fundação da AEVB foi oficializada. Para tanto, devido às críticas


na mídia, os escândalos relacionados à Igreja Universal do Reino de Deus fizeram
D´Araújo tentar uma “negociação” com Edir Macedo, fundador da IURD. No decorrer
da sua estadia nos EUA, ele recebia notícias de pastores e líderes brasileiros

91
preocupados com as “novidades teológicas” da IURD. Estes incrementos imprimiam
dúvidas sobre se tal igreja era, de fato, uma igreja evangélica, uma seita, um teatro ou
um mercado, utilizando as metáforas de Campos (1997). D´Araújo (1997, p. 299) assim
exprime suas preocupações:

“Edir tinha criado a Igreja Universal do Reino de Deus — IURD, que era uma
espécie de síntese entre várias químicas religiosas. Havia de tudo um pouco: um
grito de guerra (Jesus Cristo é o Senhor!) e um fervor na ação (Vamos ganhar o
mundo para Jesus!), que eram genuinamente evangélicos; combinados a uma
teologia católico-medieval (Deus não faz nada de graça, sem sacrifício, e o
dinheiro é a moeda de troca entre o homem e as bênçãos divinas) e a uma
simbologia afro-ameríndia, com farta utilização de elementos mágicos das
religiões populares, tais como sal grosso, ramo de arruda, óleo sagrado,
caminhos físicos pavimentados com sal, que abençoam aqueles que por eles
caminham, e o oferecimento de dezenas de outros objetos feitos santos, que iam
desde o estilingue de Davi até uma lavagem das mãos com o sangue de Cristo
numa bacia. Todas essas coisas eram consideradas por eles como pontos de
contato entre a pregação da Universal e a necessidade mística dos brasileiros. Do
ponto de vista meramente marketeiro, era fantástico, mas visto sob o ponto de
vista dos conteúdos da fé evangélica, era um escândalo de promiscuidade
doutrinária”.

Em uma reunião realizada na recém adquirida TV Record, D´Araújo foi ao


encontro de Edir Macedo para de alguma forma tentar compreender suas intenções.
Outro objetivo deste encontro era tentar aproximar a Universal da AEVB, na tentativa
de convencer a igreja de Edir assinar a carta de propósito da associação. Edir concordou
e enviou os bispos Laprovita Vieira e Ronaldo Didini ao encontro. Durante a reunião
encontro, Macedo emite a seguinte opinião sobre as práticas da Universal (D´ARAÚJO,
1997, p. 301):

“Olha, cada um pesca com o que tem e como sabe. Você pesca com camarão.
Fala bem, é preparado e ganha gente preparada. Outro pesca com pão. Outro
com minhoca. E tem peixe que só gosta de minhoca. E tem outros que pescam
como eu, com fezes. Tem gente que só gosta do que eu ofereço. O povo que eu
quero não vai te ouvir. É gente que ninguém quer. Eu quero. É o pessoal que eu
consigo pescar do meu jeito, com as coisas que eu ofereço — ele falou quase
como se estivesse filosofando sobre algo absolutamente novo. — Mas você não
acha que dizendo que cada um dá o que tem e o que as pessoas querem, você
está dizendo que o evangelho não tem conteúdo? E que a gente pode adulterar a
mensagem como quiser pra [sic] atender aos gostos deste mundo? É isso que
você tá dizendo? — indaguei sem querer ser rude, mas achando crucial a

92
resposta dele. Afinal, era a primeira vez que eu ouvia um líder religioso
ocidental confessar com sinceridade e honestidade que os fins justificavam os
meios. Muitos agiam segundo a mesma filosofia, mas maquiavam muito bem
suas ações. Macedo, entretanto, era honesto em suas convicções e não tentava
me iludir a respeito. — Eu não tenho paciência pra filosofia. Aqui a gente não tá
querendo pensar muito nessas coisas. A Nova Vida parou porque ficou com
essas perguntas todas. O negócio é ganhar gente. Também não gosto desse
negócio de Escola Bíblica Dominical e nem de seminário. Teologia tira a garra
do obreiro. Eu não tenho essas coisas na Universal — declarou e já foi logo
pegando o telefone e dizendo que “o pessoal” poderia entrar. — Eu queria que
vocês conhecessem o Caio Fábio — disse para Renato Suhett, Didini e
Gonçalves, que acabavam de entrar. Conversamos generalidades por mais uns
trinta minutos”.

O trecho citado não deixa dúvidas sobre as fórmulas praticadas pela IURD para
“ganhar gente”, evitando filosofias alongadas e teologias complexas. O segredo está na
oferta e na demanda; e pescar o “peixe”, conforme o que o “peixe” quer.

A presença de representantes da IURD no ato de fundação da AEVB no dia 17


de maio criou um mal estar entre as diversas denominações representadas naquele
encontro além de confundir as agências de notícias: afinal, a Universal, que a esta altura
já estava atrelada a escândalos de ordem financeiras e com a evidente criação de um
singular sincretismo, filiar-se-ia à organização de Caio? Conforme ALMEIDA (2009, p.
112) “o culto da Universal [...] expressa de certa maneira essa dinâmica ao sintetizar e
cristalizar, num ritual, o diálogo baseado no conflito entre um desdobramento do
pentecostalismo e as religiões afro-brasileiras –tudo isso operando no contexto plural
das crenças existentes no país”. Apresentando este perfil apresentado por Almeida, a
IURD constaria nos quadros da recém criada Aliança?

Tais controvérsias tem seu ápice com a prisão de Edir Macedo em 24 de maio.
Para o jornal Folha de São Paulo a principal acusação “é a de que o bispo teria
adquirido grande patrimônio graças à sua atividade à frente da Igreja Universal”. (Folha
de S. Paulo, 17/09/1995). Em suas memórias, Macedo (2012, p. 26) afirma ter sido
acusado de ser charlatão, curandeiro e estelionatário e que essas acusações não faziam
sentido, pois Jesus, e várias outras personagens da bíblia, curavam os enfermos. Anos
mais tarde, Macedo (2012, p. 13) atribuiria sua prisão à perseguição desencadeada pela
Igreja Católica.

93
“Era um tempo de ataques a Igreja Universal, a mim e a minha família. Desde
que o trabalho começou a crescer, entramos na mira. O clero romano mandava e
desmandava no Brasil, mais do que nos dias de hoje. Eram políticos de prestígio,
empresários da elite econômica e social, intelectuais, juízes, desembargadores e
outras autoridades do poder judiciário que tomavam decisões sob a influência do
alto comando católico. A Cúria não admitia o surgimento de um povo livre da
escravidão religiosa impostas por eles. Mas eu nunca olhei para isso. Minha
missão sempre foi dum só: pregar a verdade do Evangelho a todos que sofrem.
Antes mesma da compra da Rede Record, em novembro de 1989, já havíamos
sido vítimas de diversos tipos de abuso. A polícia tinha invadido meu
apartamento, os escritórios da Igreja e as empresas relacionadas que existiam
para a opor o trabalho evangelístico. Sabia que as perseguições jamais teriam
ponto-final, mas nunca imaginei que essas agressões terminariam em prisão. O
meu nome foi surrado por anos”

Um momento de maior aproximação entre a AEVB e a IURD se deu nesse


contexto. A comunidade evangélica estava intrigada com a prisão de Macedo,
subentendendo que o argumento utilizado para a reclusão de Macedo, poderia criar um
antecedente para desmobilizar o campo evangélico de uma maneira geral. Para Carlos
Tadeu Siepierski (SIEPIERSKI, 2012, p. 123), cerca de “duzentos pastores protestaram
na Assembleia Legislativa de São Paulo, pontuando que a prisão fora manipulada por
grupos ligados à área de comunicações que a propriedade da Record estava ameaçando,
e a setores religiosos, que teriam seus membros captados pelo discurso na Universal”.

D´Araújo (D´ARAÚJO:1997, p. 309) e a AEVB tomou partido em favor de


Macedo, pois, em seu entendimento, as acusações do ministério público poderiam
abranger qualquer fenômeno ou movimento religioso:

“Qual é a diferença entre o misticismo dos fiéis da Igreja Universal do Reino de


Deus e o daqueles que vão às procissões de Aparecida ou do Círio de Nazaré?
Qual é a diferença entre as empresas do Vaticano (compradas também com
dinheiro do povo) e as empresas da Igreja Universal do Reino de Deus? Qual é a
diferença entre uma santa de gesso que chora e os alegados milagres de cura da
IURD? Qual é a diferença entre os milhões de dólares da Igreja Católica e os
milhões de dólares da IURD? Por acaso não são ambos dinheiro do povo? Por
acaso não é também dinheiro que resulta de doações movidas pela crença? Por
acaso não é também, muitas vezes, dinheiro usado para adquirir propriedades
cuja administração nem sempre está aberta a auditorias públicas e nem ao
gerenciamento dos fiéis?

94
Ora, tudo o que tenho dito até aqui não tem a finalidade de defender a IURD,
que nem é associada à AEVB. Nossa intenção é mostrar apenas três aspectos
básicos da atual situação de perseguição que sofre a Igreja Universal:

1. A prevalecerem tais critérios, o princípio de liberdade religiosa no Brasil


sofrerá ameaças terríveis. Especialmente quando se sabe que quem deflagrou a
acusação de charlatanismo, curandeirismo e estelionato contra a IURD foi uma
outra entidade religiosa (A Associação dos Umbandistas).

2. A prevalecerem tais critérios de julgamento, a fim de que houvesse justiça


prática e objetiva, todos os grupos religiosos do Brasil, incluindo a Igreja
Católica e todas as denominações evangélicas, deveriam ser processadas e seus
líderes levados às barras do tribunal, porque o que para uns é fé, para outros é
balela e charlatanismo.

3. Se a IURD e seu líder espiritual, Edir Macedo, são passíveis de alguma


punição da lei, tal punição deve acontecer nos níveis da justiça, e de acordo com
a Constituição, em áreas mensuráveis de modo prático: sua contabilidade, seu
patrimônio e seus impostos, e não nas áreas subjetivas, nas quais só Deus pode
fazer diferença entre o charlatão e o homem de Deus, entre o curandeiro e o
homem de fé ousada, entre o salafrário e o profeta.”

D´Araújo então sentencia, e sugere que a Universal passe por uma auditoria
interna e pare de atacar os cultos afro brasileiros. A AEVB se pronuncia nestes termos:

“A Associação Evangélica Brasileira se propõe a intervir neste caso, pedindo à


IURD que abra sua contabilidade a uma auditoria independente, contratada pela
AEVB, e que posteriormente venha a público trazer os resultados de tal
auditoria. Com isso se pretende que o caso da IURD e o bispo Edir Macedo
sejam julgados com os mesmos critérios objetivos com os quais a justiça
brasileira venha a julgar os muitos corruptos que encontram guarida à sombra do
poder.”

Mas a nosso ver, considerando a associação entre organização religiosa e


empresarial existente na IURD, concordando com Campos (1997): essa “sugestão”
jamais teria condições de prosperar. O período entre 1994 e 1998 marcado pelo declínio
do ministério de Caio Fábio. Foram anos turbulentos, com intensa interlocução política.

95
Porém, certas inquietações de ordem intima começam a emergir na história de
D´Araújo, que culminam em uma relação extra conjugal, sob o clima do envolvimento
da elaboração do “Dossiê Cayman”. Tal Dossiê, segundo a segundo o jornal A Folha de
São Paulo de 12/12/2011, seria um "conjunto de papéis forjados para implicar tucanos
com supostas movimentações financeiras no exterior." 63

3.2-Estrutura da Visão Nacional de Evangelização -VINDE

A partir de 1978, a VINDE tornou-se a principal difusora das mensagens de


D´Araújo. Pretendemos aqui, descrever suas principais atividades. Que relação
poderíamos estabelecer estre essas entidades e a trajetória de Caio Fábio? É isso que
pretendemos analisar. Em boletim de circulação oficial, “convergência” a ONG
religiosa assim se definia:

A visão Nacional de Evangelização – por trás deste nome existem milhões de


pessoas alcançadas pela mensagem do Evangelho. Apesar de todo seu
compromisso ético-social, a VINDE é, acima de tudo, uma missão que existe
para evangelizar. Por isso, desde sua fundação em 1978, a VINDE tem
promovido cruzadas por todo país. Do norte, nordeste, centro-oeste, sul e
sudoeste do Brasil recebemos constantemente inúmeros testemunhos de pessoas
que foram alcançadas pela Palavra de Deus através das Cruzadas Vinde. Alguns
destes testemunhos são fantásticos e nos motivam a seguir adiante. Jesus disse
que há alegria entre os anjos de Deus quando um pecador se arrepende. Agora,
imagine a alegria deles e nossa quando milhares de pessoas são alcançadas pela
Palavra de Deus através deste ministério. Só em 1995, foram 200 eventos
evangelísticos com uma audiência total de 300 mil pessoas. Alguns milhares
delas receberam a Cristo e começaram uma vida completamente nova!”

63
"Collor recebeu dossiê Cayman, afirma PF". <www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/14416-collor-
recebeu-dossie-cayman-afirma-pf.shtml>. Acessado em 10/09/2013.

96
3.2.1-A VINDE na televisão

“Não é você que muda o canal, é o canal que muda você”. O projeto da VINDE
TV configurou-se como o primeiro canal evangélico por assinatura do país, levado ao ar
no dia 23/12/96. Foi resultado de uma parceria entre a Vinde e a NET Brasil, que à
época tinha cerca de um milhão de assinantes. D´Araújo já dirigia e apresentava o
programa Pare & Pense, que ia ao ar aos sábados, pela Rede Manchete. Porém, com
esta nova possiblidade midiática, alcançaria uma programação de 24 horas no ar. No
período que se seguiu ao seu lançamento, cerca de quatro horas eram realizadas ao vivo.
A inauguração do canal contou com uma plateia de convidados, entre eles o reverendo
Guilhermino Cunha, na época presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana
do Brasil, Ariovaldo Ramos, Darcy Dusilek e Josué Rodrigues, nomes então em
destaque no meio evangélico (Revista VINDE, ano II, n. 15, Junho de 1997, p. 22).

Cerca de 100 funcionários estavam empregados no projeto que era dirigido pelo
filho de D´Araújo, Davi D´Araújo. Um dos carros chefes da programação era o “ao vivo
com Caio” que ia ao ar toda quarta-feira, às 22h, com reprises aos domingos, 13h30. O
programa era feito em formato de talk show convencional, no qual o reverendo reunia
convidados para debater temas diversos. Havia também o programa Acústico,
transmitido de segunda a sexta, das 9h30 às 10h, apresentado pelo músico Josué
Rodrigues, então pastor da Igreja Presbiteriana Betânia, que fora Igreja de Caio Fábio.
O público jovem também era contemplado com o programa Zapeando, “versão gospel
do Programa Livre, do Serginho Groisman”. (Revista VINDE, ano II, n. 19, Junho de
1997, p. 68).

Segundo Fonseca (1997, p. 225), a VINDE TV encerrou suas atividades em


maio de 2000. Antes da venda, foi controlada pela produtora Comunhão Cristã
Produções (CCP), pertencente aos pastores Arles Conde Marques e Marcos Camargo e
Silva, em 1999. Porém, por conta do o montante de suas dívidas o negócio foi desfeito.

O quadro abaixo mostra a programação da TV tal, de acordo com o que foi


publicado em 1997 . (Revista VINDE, ano II, núm. 15 – Janeiro/Fevereiro 1997).

97
6h – Palavra do Pastor (5 15h – Classi vinde 21h35 – Caio Fábio ao vivo
min,)

6h30 – Vinde TV Clássicos 15h05Vinde TV - replay 22h30 – VM Show

8h – Classi Vinde 16h – Espaço Esperto 23h30 Vinde TV –


Clássicos

9h30 -Espaço Aberto 16h30 Ela disse – Ele disse 24h – independentes

10h30 –Caio Fábio ao vivo 18h – VM Show 1h – Vinde Clássicos

12h – Classi Vinde 19h – TeleVinde 2h – Palavra do Pastor

12h30 – Figura, com Luiz 20h30 – Figura 2h05 - Independentes


Andreoli

13h30 – Tele Vinde 21h30 – Classi Vinde 2h30 – Vinde TV - replay

Um anúncio da VINDE TV nos oferece uma percepção acerca da maneira como


Caio Fábio Filho fazia TV:

(Revista VINDE, ano II, núm. 18 – Janeiro/Fevereiro 1997).

98
3.2.2-VINDE Revista

A Revista VINDE teve sua primeira versão impressa em Manaus, em 1976,


quando Caio Fábio D´Araújo lança um jornal como protótipo do que, mais tarde, tornar-
se-ia a publicação. O objetivo era “evangelizar as pessoas da cidade [...] especialmente
as que não gostavam de ir a um culto ou reunião”. Todavia, ele desejava que fosse algo
mais sofisticado. Já no início dos anos 1990 os ventos estavam favoráveis para a
realização da revista com maior envergadura quando D´Araújo afirma oferecer o
periódico à Editora Abril que aceitaram edita-la, via Editora Azul. Porém, já em vias de
fechar com a Abril, Domingo Alzugagay, da “Editora Três” lhe “fez uma boa proposta”
e firma a parceria com a VINDE para a publicação da revista 64.

A ideia inicial era fazer uma revista com formato “secular”, entrecortada com
notícias e matérias voltadas ao meio cristão. De fato, acessando o acervo das revistas
VINDE, nota-se em suas páginas que os mais variados assuntos se faziam presentes,
desde notas culturais, esportivas, variedades e musical 65. Duas frentes editoriais também
são presentes na publicação: 1) informações acerca dos trabalhos de Caio Fábio e
notícias relacionadas ao seu ministério. 2) Seu forte engajamento com a política carioca
dos anos de 1990.

A revista foi vendida ao grupo Bom Pastor 66 sendo depois descontinuada.

3.2.3-A VINDE na área de assistência social: A Fábrica da Esperança

A ONG cristã “Fábrica da Esperança” começou a funcionar em 17/12/1999. O


objetivo era oferecer cursos gratuitos, no complexo do Acari, habitado por 180 mil
pessoas, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Para D´Araújo 67, uma Fábrica de
Esperança seria uma extensão de seus ministérios que, já operavam desde 1980 sob a
plataforma operacional da VINDE.

64
“Vozes do passado: acerca da Revista
VINDE”.<http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=03166>. Acessado em 28/08/2014.
65
Não podemos deixar de notar duas grandes áreas cobertas pelas cerca de 80 revistas que pudemos
analisar, do ano I ao ano IV.
66
Não encontramos a data da aquisição da revista pelo grupo Bom Pastor.
67
“Entrevista com Pr. Caio Fábio para a CH | Parte 1”.
https://www.youtube.com/watch?v=eLZhFtM5YC8. Acessado em 10/07/2013.

99
Porém a sua história começou em 1992, quando, a propósito de um conflito entre
diferentes facções que dominavam áreas diversas, a favela foi invadida por um bando
rival e 22 pessoas que se encontravam na porta de um bar e que estavam dormindo
dentro de uma casa foram mortas. Nenhum bandido foi morto, somente trabalhadores.
Maria Lucia Montes destaca que (2012, p. 79) “A casa, pertencente a uma família de
evangélicos, onde haviam sido baleadas seis pessoas, entre as quais duas crianças, fora
comprada, por intermédio do pastor Caio Fábio, e depois reconstruída para se tornar a
Casa da Paz”. Nesse local passou a funcionar um centro de saúde, uma biblioteca,
cursos de arte e computação. O projeto foi liderado por um morador local, Caio Ferraz.
Atualmente neste espaço funciona o AfroReggea 68.

Outras duas chacinas sucederam aquele incidente, uma na Candelária e outra no


Acari. Foi neste contexto que Caio Fábio recebeu como comodato o espaço de uma
fábrica de fórmica de 55 mil metros quadrados aproximadamente, que fora incendiada
por um possível ato criminoso. O local, cercado por aproximadamente 30 favelas,
aguçou o interesse de Caio Fábio. Foi então, que ele recebeu o commodite e iniciou a
instalação de diversos projetos de cunho social. Seu primeiro parceiro foi a “Bhrama
Chopp”, fazendo marketing de seu guaraná.

Cerca de 66 projetos eram desenvolvidos na “Fábrica de Esperança”, atendendo


à cerca de 24 mil pessoas por dia. Entre os projetos, havia Escola de cinema; Escolas de
cabelereiros e manicure; atividades psicossociais com parceiros, entre os quais o
governo do estado do Rio de Janeiro e o Instituto Ayrton Senna. Até o governo do Rio
de Janeiro se interessou em instalar uma agência de empregos e tele-salas de aula 69.
Através dessas ações, conforme D´Araújo teria havido uma significativa diminuição da
criminalidade na comunidade.

Novos cursos se iniciavam e diversas parcerias eram estabelecidas. A Revista


VINDE (Abril de 1997), anunciava estarem “abertas as inscrições para o curso de
Liderança Cristã para as favelas [...] As aulas deveriam começar dia 9 de abril e entre os
temas abordados estarão Primeiros Socorros, Liderança, Relações com a mídia e
História das favelas, entre outros. O curso tem três meses com estágios nos morros
Dona Marta, em botafogo, Borel, na Tijuca, e em Parada de Lucas”

68
Idem.
69
Revista VINDE, Ano II, n 22, Setembro de 1997. P. 60.

100
Em 23/11/95, a Fábrica foi objeto de investigação, sendo invadida por policias
militares que buscavam bandidos. Suspeitava-se de que havia gente escondida nas
dependências da Fábrica. Pouco menos de duas horas depois, os policiai encontraram
quase dois quilos de cocaína e certa quantidade de maconha escondidos em uma
cadeira. Dois dos funcionários da Fábrica receberam voz de prisão, sob a alegação de
estarem obstruindo o trabalho policial. Os funcionários alegavam não dar permissão
para a entrada na Fábrica sem autorização prévia da direção. Aquele episódio ganhou
repercussão nacional, pelo fato de o projeto social estar associado ao nome de Caio
Fabio. Porém, em maio de 1997, os vigiais foram inocentados, por falta de provas,
conforme a Revista VINDE (ano II, n. 20, julho de 1997) .

Ainda quanto a este episódio a edição de número três da Revista VINDE em seu
editorial “Reage Fábrica”, procurava apaziguar a situação envolvendo a Fábrica e o
tráfico de drogas. Jorge Antônio Barros assina a “epístola da redação” que alega que o
governador Marcello Alencar aproveitou-se da situação para sequestrar moralmente
Caio Faio. Diante disso, “a reação incompreensível do governador deixou ao menos
uma coisa boa: pela primeira vez, evangélicos aderiram a um ato público pela cidadania.
Uma ira santa em favor da Fábrica da Esperança ou levou ao ´Reage Rio´ que, mesmo
com chuva, teve milhares de manifestantes no centro da cidade”. (Revista VINDE, ano
I, núm. 3, Janeiro de 1996, p. 3).

Charge de Chico Caruso: Caio, Betinho e Rubem César, em alusão ao “Reage Rio”.
(Revista VINDE, ano I, núm. Três, Janeiro de 1996).

101
A acusação de que Caio Fábio teria forjado a confecção do Dossiê e de que ele o
teria oferecido aos adversários dos políticos do PSDB a um preço exclusivo, em dólares,
foi usado na formulação de um processo na justiça, do qual ele acabou sendo
inocentado.

Talvez, por esse e outros motivos, após o ano de 1998, o projeto Fábrica da
Esperança entrou em declínio. Em 2000, “o prédio voltou para as mãos da Formitex,
que utilizou o imóvel para pagar dívidas com o Unibanco. Apenas um projeto continuou
funcionando até a última semana. Uma creche com cerca de 200 crianças, que foi
transferida para um prédio próximo ao local” 70.

Segundo Caio Fábio, “O fim da Fábrica foi responsabilidade de Garotinho, que,


em 99 me disse que o Estado assumiria tudo. Passei tudo para ele. Mas [...] outros
interesses e, pasmem, influências dos evangélicos que morcegavam o Garotinho foram
determinantes para demolir a Fábrica contra o desejo geral dos moradores.” 71 A
demolição daquele prédio aconteceu em 17/03/2002, para dar lugar ao Hospital Central
da Zona Norte.

3.3-A queda de Caio Fábio

Após 1994, Caio Fábio D´Araújo Filho não apresentava o vigor “manauara”.
Constam em sua biografia dois eventos cruciais que desabonaram sua figura diante dos
evangélicos, os quais lhe davam sustentação: O primeiro deles foi um relacionamento
extra conjugal, “pecado abjeto” entre os evangélicos. O segundo foi seu envolvimento
com o documento conhecido como “Dossiê Cayman”. Esse escândalo político estava
relacionado a uma série de documentos compilados com o objetivo de incriminar
candidatos tucanos nas eleições de 1994. Tais documentos acusavam Fernando
Henrique Cardoso, na época candidato à reeleição para a Presidência da República;
Mário Covas, governador de São Paulo; José Serra e Sérgio Motta, nomes de destaque
do PSDB. O suposto dossiê acusava os tucanos de crimes fiscais. Entretanto o suporto
dossiê foi para a política.

70
"Fábrica de Esperança" é implodida para dar lugar a hospital no Rio.
<www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u47792.shtml>. Acessado em 10/06/2013.
71
<https://www.facebook.com/caiofabio.vvtv/posts/381919638562579>. Acessado em 10/08/2014.

102
D´Araújo foi condenado a quatro anos de prisão, por crime de calúnia, sendo
recentemente inocentado. Toda essa trajetória de infortúnios levou Caio Fábio a uma
crise interior e, sobretudo, arranhou sua imagem de “pastor ético” construída durante os
anos 1980-90. Os evangélicos também não perdoariam o adultério, que é tido como
incompatível com a imagem de um pastor evangélico em todas as denominações.

Assim, a trajetória de Caio Fábio D´Araújo Filho e seu holding religioso chega
ao fim. Enquanto isso, ocorria um rearranjo global no campo religioso brasileiro,
preparando caminho para movimentos religiosos pendulares: entre os fenômenos de
massa estão as megachurches, e, de outro lado, a privatização e subjetivação da religião
em pequenos grupos ou de iniciativas individuais.

Essa incursão na trajetória biográfica de Caio Fabio parece não estar ligado a sua
atual situação de “guerrilheiro” contra as instituições religiosas. Porém, sua trajetória já
aponta para um novo cenário no campo religioso brasileiro, cuja mobilidade e fluidez
das identidades religiosas são proeminentes.

3.4-História do “Caminho da Graça”

Desencadeada pela acusação de seu envolvimento com o “Dossiê Cayman”, aliada a


particularidades de sua vida íntima, a crise leva D´Araújo, depois do agitado ano de
1998, a um período de afastamento do país, nos EUA, no ano de 1999. Em 2001 ele já
não contava com o status anterior; até porque a moral evangélica é rígida em relação à
prática do sexo fora do casamento. A VINDE foi esmagada pelo afastamento dos
patrocinadores e pela falta de empatia de seu público alvo, que era composto
praticamente por evangélicos e, que a esta altura, desconsiderava-o de suas fileiras. O
principal parceiro do holding, a D’Ávila Tour, responsável pelas viagens para Israel
com D´Araújo, afastou-se do grupo, pois os tours pela “terra santa” já não contavam
com sua presença. Ademais, a Revista VINDE foi vendida 72, depois de quase 10 anos

72
Conforme a Revista Veja de novembro de 1999, o valor da venda foi de quinhentos mil reais in "A
volta do pecador". <veja.abril.com.br/171199/p_168.html.> Acessado em 03/03/2014.

103
de seu lançamento, em 1999 para o grupo Força Editorial e depois para o grupo Bom
Pastor que mudou o nome da revista para Eclésia. 73

Já a AEVB, em meados de 2002, alterou seu nome para “Aliança Evangélica


Brasileira”. Porém, sem o carisma de seu principal convocador e apesar dos esforços em
conclamar os “evangélicos brasileiros” a “perseverar, para que nós possamos ter no dia
de amanhã uma AEVB forte, que sirva como sinal de instrumento de unidade
evangélica entre nós. Cremos [que] temos a necessidade de um mínimo de visibilidade
74
estruturada”, a associação perde vitalidade 75. Contudo, mesmo sem Caio Fábio, são
eleitas novas diretorias e executivos, como Ariovaldo Ramos, Carlos Bregantim, Dr.
Key Yuassa e Luiz Mattos, entre outros, afim de reergue-la. Os resultados, no entanto,
não foram satisfatórios. A quebra da imagem do “Pastor ético” (FRESTON, 1995,
p.11), emoldurada por Caio Fabio, provoca uma mudança axial em seu ministério, com
consequências para o grupo de evangélicos que o seguiam.

Vale a pena ressaltar que no início deste período houve um deslocamento sem
precedentes da imagem dos evangélicos no Brasil diante da sociedade geral. Para fins
de comparação, tomamos de Weber (2004) o tipo protestante calvinista do século
XVIII-XIX. Este protestante é o “bom pagador” (p. 42); disciplinado, correto e
trabalhando arduamente por ser “vocacionado”. Com a consolidação do
neopentecostalismo iurdiano e seus clones, que surgem no cenário nacional com seus
métodos heterodoxos de arrecadação de dinheiro, agressão a praticantes de culto afro,
compras milionárias e problemas fiscais, acabam por surgir desconfianças na população
em relação ao crescente movimento, e também, porque não dizer, uma desconfiança em
relação aos “evangélicos” em geral. Ainda mais depois da exibição de alguns vídeos, na
primeira metade dos anos de 1990, amplamente divulgados pela Rede Globo de
Televisão, nos quais Macedo contava uma montanha de dólares em um hotel e outro em
que ensinava seus pastores e bispos a persuadirem financeiramente suas ovelhas, “-ou
dá, ou desce”, era a frase emitida pelo bipo da Universal. Estes fatos descritos

73
"Vozes do passado: acerca da revista VINDE". www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=03166.
Acessado em 20/06/2014.
74
“Fortalecendo os nossos laços e reafirmando os nossos propósitos”.
https://web.archive.org/web/20030409205340/http://www.aevb.com.br/aevb10anos.htm. Acessado em
05/05/2014.
75
Em 30 de Novembro de 2010 é fundada uma nova tentativa de agrupar os evangélicos brasileiro, sob a
sigla de Aliança Cristã Evangélica Brasileira.
http://www.aliancaevangelica.org.br/index.php/template/institucional/nossa-historia>. Acessado em
10/09/2013.

104
compuseram umas das principais controvérsias religiosas nos anos de 1990. Para
Mariano (2004, p. 125) “durante toda a metade dos anos de 1990, a igreja [IURD] e
seus dirigentes estiveram no centro de intensas controvérsias, envolvendo os mais
diferentes agentes dos campos religiosos, empresarial, midiático, policial, jurídico e
político”.

Mesmo no campo político houve reflexos na relação políticos evangélicos (na


câmara federal) por causa do envolvimento deles com o chamado escândalo do
mensalão. Por outro lado, as formas de arrecadação de Igrejas como a IURD
começaram a também a provocar uma erosão na imagem dos evangélicos. Leonildo
Campos (2010) analisou efeitos dessa desmoralização na relação deputados evangélicos
na câmara federal.

Assim, se Caio Fábio em seu período “áureo” já criticava ferozmente a


institucionalização do Movimento de Jesus, com o seu retorno “guerrilheiro”
observamos que o protesto se acentua. Durante os anos 1980-90 já se podia encontrar
facilmente agudos questionamentos sobre a relevância social das “igrejas evangélicas”
em suas palestras e livros. Ainda notava-se em seu discurso um espírito “a la Wesley”,
por assim dizer, com sua reconhecida frase “o mundo é minha paróquia. (D´ARAUJO,
1987; D´ARAÚJO, 1998). Caio, nesta repaginação, torna mais explicito seu
descontentamento e protesto.

Em Agosto de 2001, Caio Fábio volta à atividade pública, como pregador no Centro
Evangelístico Unido (CEU) e esporadicamente em outras igrejas, como a Union Church
e a Igreja Batista do Horto (ambas no Rio). Pouco a pouco vai retornando ao cenário
protestante. Em 2001, assume também alguns minutos no programa “E tudo mudou”,
exibido pela Bandeirantes e apresentado pelo velho amigo Washington de Sousa. Para
D´Araújo, mesmo após seu “terremoto” existencial”, “pregar é o que sei fazer, é meu
ministério. Para isto é que fui chamado, lá em Manaus, há quase 30 anos” 76.

Em meados de 2000, D´Araújo inicia um encontro denominado “Café com Graça”


no bairro Copacabana na cidade do Rio de Janeiro. O evento basicamente girava ao
redor da sua pregação, reunindo cerca de 80 pessoas, em sua maioria de classe média
alta. O “Café” acontecia em um jardim de inverno, aos fundos da livraria “Razão
Cultural”. Os encontros aconteciam todas as quartas, sábados e domingos e era uma

76
Revista VINDE, ano VI, n. 62, Janeiro de 2001. P 38.

105
“igreja de perfil alternativo”, “uma igreja sem cara de igreja”, como dizia. Segundo a
revista Eclésia (Abril de 2002), D´Araújo “brinda os frequentadores do Café com Graça
com discursos teológicos densos, carregados de ilustrações e menções filosóficas sobre
os dramas e dilemas existenciais do ser humano”. 77

Regina Novaes (2013, p. 115) enfatiza ser este período em que vivemos no Brasil
como um momento marcado pela multiplicação das denominações e micro-
denominações, sobretudo pentecostais que “descatolizavam” o país potencializando um
léxico que antes não era tão evidente nas experiências religiosas, tais quais
“desconversão”, “desfiliação”, “desafeição”, “ser sem pertencer”, etc. Já o contexto
anterior, para Novaes:

“o catolicismo expressava a memória coletiva (religião dos brasileiros) e era a


referência mais importante para a conformação da territorialidade. Enquanto religião
dominante, o catolicismo subordinou – e não eliminou as possibilidades de
convivência desigual – as religiões de matrizes afro-brasileiras e mediúnicas. Só a
expansão do pentecostalismo foi marcada pela ruptura da conversão e pela marca de
exclusividade do pertencimento. No entanto, os jovens de hoje já foram socializados
em novo contexto. Diferentemente de seus avós e pais, que viviam em territórios
marcados pela presença dominante da Igreja Católica, os jovens de hoje já
cresceram em um momento de proliferação de outras igrejas nos espaços onde
vivem.

Sobre esse tema temos ainda a observação de Carlos Rodrigues Brandão (2013, p.98),
que acrescenta o seguinte:

“Até o advento das igrejas neopentecostais e, sobretudo, aquelas aferradas a uma


aguerrida ´teologia da prosperidade´ (´Deus´ não está preocupado com sua salvação
eterna, mas com o seu sucesso na vida enquanto estás vivo, aqui e agora´), o
catolicismo era entre nós quase que a única religião que estendia seu leque de
alternativas de pertença, afiliação e presença em celebrações [....]. Agora há
concorrentes. E com visíveis vantagens, pois bastante mais adequadas a cultos
teatrais – e não raro em teatros”.

Ainda debatendo este quadro, ressaltamos as pesquisas elaboradas por Paulo


Romeiro (2005) sobre os conflitos provocados pela ascensão neopentecostal. Segundo a

77
IBIDEM.

106
avalição de Ariovaldo Ramos, que pode ser comparada a um período marcado pela
“decepção com a graça” (in ROMERO, 2005, p.12-13):

“Diante deste quadro desanimador, [...] [a]o abordar um grupo cada vez mais
numeroso, formado pelas pessoas que se frustraram com as falsas promessas, [...]sua
longevidade pode ser compreendida pela justificação que o movimento
neopentecostal dá ao capitalismo e sua vertente mais moderna — o neoliberalismo.
Dinheiro é bênção e não maldição. Além de justificar o capital, o
neopentecostalismo justifica o individualismo — a bênção é para o que tem fé, ela é
inalienável e intransferível.

Em nossas observações participantes munimos dados que confirmam os achados


desses pesquisadores. Em uma delas “Paulo” (nome fictício - 50 anos) frequentador de
uma “Estação do Caminho”, afirma que: “a maioria das instituições usa o velho
testamento para atrair mais fieis, pregando prosperidade e na verdade deveria estar
pregando a salvação em cristo jesus. Eles usam um versículo do Velho Testamento para
pedir dizimo e ofertas... e na verdade vivemos no novo testamento onde nenhum
apostolo do senhor jesus falou incentive o povo dar o dizimo”. Já uma a qual chamamos
ficticiamente de “Roberta” (25), dissidente de uma igreja presbiteriana: “é que ela [a
igreja institucional] retira do cotidiano a espiritualidade, além de criar diferenças
hierárquicas entre as pessoas. Isso cria uma fé muito artificial.” 78

Voltando ao nosso relato, no ano de 2004, D´Araújo teve uma rápida passagem pela
IEC - Igreja Episcopal Carismática de Recife (PE), uma denominação dissidente da
Igreja Episcopal Anglicana. A notícia causou estranhamento face a todas as críticas
tecidas por ele contra o “sistema religioso” institucional. O ponto de contato entre Caio
Fábio Filho e a denominação é o próprio líder da IEC, bispo Paulo Garcia Ruiz. Na
Catedral Episcopal, D´Araújo pregava duas vezes por semana e a denominação
planejava até construir um novo templo com capacidade para duas mil pessoas em uma
área melhor localizada na cidade e que seria “erguida em um quarteirão inteiro” para
acolher o ministério de Caio Fábio. Quando indagado sobre compor os quadros
novamente em uma “igreja institucional”, após desferir discursos contra as
denominações, Caio Fábio afirmou: “Igreja é no que creio e sempre falarei. Até que a

78
Caderno de campo, observação do dia 11/08/2013.

107
´igreja´ reconheça que não tem sido Igreja”. 79 Assim, apesar de sua filiação a Igreja no
Recife, Caio Fábio afirmou continuar com a “comunidade alternativa”, o Café com
Graça, em Copacabana, que durou apenas 4 anos. Seu ministério em Recife ocorreu
durante o ano de 2004.

Em meados de 2004, Caio é convidado pelos amigos para uma série de pregações
em Brasília. Entusiasmado com a recepção de sua mensagem logo no primeiro encontro,
convida as cerca de 120 pessoas presentes no primeiro encontro a continuar. Desta
forma os encontros, agigantados, passam a ser no Hotel Fenice; depois no Centro
Educacional Maria Auxiliadora (CEMA) e finalmente, após alguns meses, no auditório
do Colégio La Salle 80.

Quem era o público de seus primeiros encontros? Caio Fabio nota que a maioria das
pessoas que os frequentavam eram aquelas machucadas pela religião 81, “aqui ninguém
se mete na vida de ninguém” 82, diz D´Araújo em uma pregação, coibindo o vilipêndio
entre irmãos por conta do período sensível que muitos experimentavam. Com o sucesso
e aceitação de sua pregação, D´Araújo e sua família mudam-se definitivamente para
Brasília, hoje sua cidade.

Nessa mesma época, em entrevista ao site Teologia Brasileira, D´Araújo está mais
desinibido para expor suas críticas ao cristianismo contemporâneo. Segundo a nota
abaixo, o cristianismo hoje seria um sistema completamente corrompido. Logo,
precisaria não de uma nova reforma, mas de uma “revolução”. Caio Fábio em uma
entrevista, dada a Ricardo Muniz, afirma que: 83

“Reformar o cristianismo nada muda, apenas se adia o comprometimento radical


que o Evangelho demanda. A própria Reforma Protestante foi um remendo de pano
novo em veste velha. E a tragédia embutida nisso é que o cristianismo, uma
tentativa vitoriosa do diabo de diminuir a loucura da pregação e o escândalo da
Cruz, manteve-se. O mundo não teve ainda a chance de conhecer o Evangelho
conforme as dinâmicas livres e libertadoras do Caminho, segundo as narrativas dos
evangelhos, nas quais o único convite que existe é para seguir a Jesus. O que os

79
Revista Eclésia, ano IX, n. 98, Janeiro de 2001. P 12-13.
80
"Quem é Caio Fábio e o Caminho da Graça? 4/4".
<https://www.youtube.com/watch?v=7djqMTc2gPo> Acessado em 09/10/2013.
81
"Quem é Caio Fábio e o Caminho da Graça? 3/4".
<https://www.youtube.com/watch?v=Pmuit9eoNO8> Acessado em 10/10/2013.
82
Idem.
83
“Entrevista: Caio Fábio quer revolução: por Ricardo Muniz”
<www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=02927> Acessado em 03/03/2014.

108
cristãos precisam saber é que Jesus não teve interesse em algo que se assemelhasse à
civilização cristã ou mesmo com a ‘Igreja’ como a conhecemos de 332 de nossa era
até hoje. O cristianismo já é uma perversão, transformando o Evangelho puro e
simples numa religião com dogmas, doutrinas, usos, costumes, tradições imutáveis,
moral própria e muita barganha com os homens. Pratica-se assim uma obra de
estelionato contra o Evangelho de Cristo. É difícil imaginar que Jesus tenha
qualquer coisa a ver com o que nós chamamos de Igreja, seja aquela que se abriga
no Vaticano, ou sejam aquelas que têm tantas sedes quantos pastores, bispos e
apóstolos megalomaníacos. O ensino de Jesus, inversamente, é caracterizado por
desinstalação, mobilidade, liberdade de aplicação sem legalismo, confiança do
Semeador no poder da semente-palavra, ênfase na igualdade de todos, denúncia dos
poderes religiosos e pertinência à vida. Na prática, isso significava a cura da mente,
do corpo e do espírito. Significava o anúncio da destruição do Templo como lugar
de Deus. Significava a beatificação de samaritanos e a demonização de religiosos
sem coração. A coragem revolucionária que o Evangelho demanda de cada geração
é aquela que se lança ao vento e caminha pela fé, e que se dispõe a se deixar
reinventar conforme o espírito do Evangelho, posto que ele não propõe uma
religião, mas o Caminho. Isso significa que cada nova geração tem que ter a
coragem de vestir o Pano Novo do Evangelho no seu tempo e beber o Vinho Novo
do Reino em odres novos. Na hora em que milhões que assim crerem passarem a
viver livres conforme o Evangelho, então, sem pai, sem mãe e sem fundador, a
revolução se estabelecerá, sem sede, sem geografia, sem dono, sem tutor e sem
reguladores da fé. Não creio em reformas. Creio, sim, numa Revolução do
Evangelho que só incluirá os cristãos se eles tiverem a coragem de desistir do
cristianismo e abraçar o risco de apenas andar conforme a revelação da Graça de
Deus em Cristo, conforme a Palavra do Evangelho. Tal fé é incompreensível pelas
mentes viciadas no cristianismo e é desinstaladora demais para aqueles que vivem
do negócio clerical cristão 84.

Ponderamos a hipótese, presente nessas citações, que seu discurso assemelha-se de


uma maneira geral, as técnicas e teorias que observamos no capítulo anterior, quando
procuramos sucintamente compreender as “Igrejas Orgânicas”. D´Araújo não se inibe
em alegar a perversão do cristianismo como fenômeno sócio histórico, dando a entender
que a “revolução” por ele proposta é superar as estruturas denominacionais sufocantes;
a imposição dos credos, os “pareceres humanos”.

Não é incomum, em seus textos ou suas falas no programa “Papo de Graça”, na


“Vem e Vê TV” 85, encontrar a afirmação de que “Jesus é seu horizonte
hermenêutico” 86. Esta afirmação nos leva ao entendimento de que seu desejo é uma
“teologia existencialista”, em que o evangelho de Jesus esteja ligado ontologicamente à

84
Idem.
85
A cyber religiosidade envolvida no “Caminho da Graça”, será analisada logo mais.
86
"CAIO FÁBIO - JESUS COMO CHAVE HERMENÊUTICA".
<https://www.youtube.com/watch?v=tNLMHMV_AOw>. Acessado em 10/10/2013.

109
experiência humana, experimentada supra-dogmaticamente. Evidentemente, suas
opções teológicas proporcionam reações das alas conservadoras, que valorizam somente
a hermenêutica da Bíblia como sendo a expressão do evangelho. Não iremos analisar a
teologia de D´Araújo, porém é preciso que se destaque sua teologia existencial, calcada
no espírito humano de encontro com o “espírito de Deus”, logo, de certa forma
incapturável. Em outras palavras, levando em consideração a hermenêutica “em Jesus”,
torna-se inviável a construção de dogmas, eclesiologias e padrões definidos, pois a
experiência humana é conflituosa como uma realidade subjetiva e particular, como
sustenta e demonstra Walter Salles (2009):

“No contexto cristão, se tomarmos emprestado a idéia [sic] de fusão de horizontes,


oriunda de Gadamer e desenvolvida por Ricoeur, podemos afirmar que a
hermenêutica de si promove a fusão do horizonte da vida do cristão com o horizonte
da vida de Jesus Cristo, unindo-se sob o mesmo horizonte hermenêutica e
antropologia, uma vez que no relacionamento com Jesus Cristo é o próprio ser do
fiel que está em questão, constituindo-se em passagem obrigatória para a construção
de uma identidade cristã”.

Dito isto, retornemos novamente à sua trajetória. Em 2003, o lançamento do site


www.caiofabio.com 87 marca indelevelmente sua fase atual. Em pesquisa participante,
uma das lideranças nacionais nos disse que: “O ´Caminho da Graça´ nasceu do site!”.
Ora, através desta declaração podemos notar a importância das experiências online para
a produção da religiosidade no caso do “Caminho da Graça”. É importante destacar que,
como sugere o próprio Caio Fábio, seu retorno à atividade se deu quando começou a
responder cartas e e-mails e a publica-los em seu site. O site foi doado por Robson,
proprietário da empresa “sitemais”, e conta com uma equipe reduzida e praticamente
voluntária que cuidava do design, atualizações e vendas de seus antigos livros.

Para D´Araújo o site seria o “Portal dos Invisíveis”, 88 profetizado três anos antes,
quando ele visitava um sensitivo “profeta”. Na ocasião recebe a “revelação” que seria
criado um “portal” por onde passariam milhões de pessoas para encontrarem “bebida e
comida espiritual”. Sobre esse site, D´Araújo 89 argumenta que:

e
Em 2010, o domínio é substituído por outro, www.caiofabio.net
88
“A SEMENTE, O SITE, VOCÊ E EU!”. http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=04297
89
Ibidem.

110
“Quando joguei a primeira semente no chão do site, fui dormir e nada esperava.
Apenas julguei que o lugar da semente era no chão e não na minha mão. [...] Todos
os dias milhares de pessoas em todos os lugares acessam esse meio de Graça
simples e livre, e, por tal ato sincero, muitos têm provado o sentido de terem
encontrado o seu chão na vida. [...] E milhões de hits já estão passando por ele; e
milhões de pessoas por ele passarão!”.

Como fica evidenciado acima, sua nova mídia virtual começou a alcançar novos
espaços e, concomitantemente, a chamar atenção daqueles “órfãos” das mensagens e da
presença de D´Araújo no universo religioso, além de conquistar novos públicos com um
discurso de oposição à “Igreja Institucional”. Em pouco tempo o site alcançou milhões
de visitas já em sua primeira versão 90.

Assim, conforme Caio Fábio, o “Caminho da Graça” “não quer ser um movimento
religioso, quer ser um caminho de fé, de consciência, por isso é que tem milhares de
pessoas chamadas ´desigrejadas´ pelas igrejas, que estão todas dentro desse
movimento” 91 e acrescenta, sobre o risco deste “movimento” não ser também uma
denominação, ou correr o risco de se tornar uma denominação, afirmando que “Igreja
sou eu, Igreja é você. Igreja é impossível não haver. Igreja somos nós. Igreja é encontro.
Eu me encontrei aqui contigo, esse é um encontro-igreja” 92. O que o nosso sujeito-
objeto elabora é um blend teológico do conceito denominado “sacerdócio universal” e
uma “eclesiologia” horizontalizada e, principalmente, descentralizada que seria próxima
as “redes de igrejas” paulinas ao cristianismo original do qual os núcleos
institucionalizados de resistência.

Em 24/06/2014, D´Araújo é entrevistado pelo programa The Noite, exibido pelo


Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). A fala inicial na entrevista, parece englobar sua
sentença final acerca de seu período de transição, da “era Caio Fabio”, para “pós Caio”
e o que, no entender dele, se transformou a “igreja evangélica”:

“Até 1998 eu fiquei 33 anos rodando o Brasil, indo presencialmente aos lugares.
Mas eu tinha um objetivo. Eu achava que a comunidade evangélica era alienada
como era, imbecilizada, marionetada, massa de manobra como era, abjeta como era,
porque faltava instrução. Faltava ensino. Aí eu fiquei trinta e tantos anos ensinando.
90
01ª parte - Entrevista Caio Fábio Biografia - Tema: Internet.
https://www.youtube.com/watch?v=yquYr1cYx64. Acessado em 10/10/2013.
91
"Transcrição da entrevista do Caio ao Danilo Gentili, no ´The Noite´".
www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=06433. Acessado em 10/07/2014.
92
Idem.

111
Dos Luteranos aos Neopentecostais. De um extremo ao outro. Criamos uma
organização, que era a Associação Evangélica Brasileira, pra ver se dava parâmetros
de saúde mental pro pessoal. Mas na realidade, eu descobri que ninguém quer isso,
pois desmonta o circo, a estrutura, a exploração... Instrução ajuda o povo a andar
com as próprias pernas. Instrução liberta. Instrução tira as dependências desses
gurus tiranos de sobre a cabeça das pessoas. Bom, durante 30 anos eles não tinham o
que dizer a meu respeito, não podiam me pegar por nada para me relativizar, até que
eu me divorciei. Quando eu me divorciei em 1998, era tudo que essa corja queria.
Eles não podiam me acusar de corrupção, de roubo, de exploração, de ênfase em
dinheiro, de nada disso. Mas pegaram nesse santo-do-pau-oco: "O Caio se
divorciou, logo, ele não tem mais nada a nos dizer”. 93

Logo, a este conjunto de ações ao redor de D´Araújo operando na realidade concreta


deu-se o nome de “Caminho da Graça”, em hipótese, amparado na premissa da
“religiosidade não religiosa”, podemos recorrer neste momento as análises de Collin
Campbell (1997) sobre uma possível orientalização do ocidente. Para André Luis Caes
(2009): “ao florescimento de uma concepção mística e imanentista da relação entre o ser
humano, a natureza e o divino, em contraposição ao enfoque materialista presente na
cultura ocidental”. Desta forma, abrem-se novas perspectivas para a formação de uma
“consciência global” com a integração mística de todos os humanos. Podemos perceber
em D´Araújo, sobretudo em seu programa diário uma evidente construção de imagem
que corresponde a de um “guru” pós-moderno. 94Para Peter Berger (1985, p. 70-71):

“A teodicéia afeta diretamente o indivíduo na sua vida concreta na sociedade.


Uma teodicéia plausível (que, é claro, requer uma estrutura de plausibilidade
apropriada) permite ao indivíduo integrar as experiências anômicas de sua
biografia no nomos socialmente estabelecido e o seu correlato subjetivo na sua
própria consciência. Essas experiências, por penosas que possam ser, ao menos
têm sentido agora em termos que são tanto social como subjetivamente
convincentes. É importante salientar que isto de modo algum significa
necessariamente que o indivíduo esteja agora feliz ou mesmo satisfeito ao passar
por tais experiências. Não é a felicidade que a teodicéia proporciona antes de
tudo, mas significado. E é provável [...] que, nas situações de imenso sofrimento,
a necessidade de significado é tão forte quanto a necessidade de felicidade, ou
talvez maior. [...] Os “ganhos” da teodicéia para a sociedade devem ser
entendidos de um modo análogo aos que são proporcionados ao indivíduo.
Coletividades inteiras adquirem a possibilidade de integrar eventos anômicos,

93
Id. Ibid.
94
No programa “Papo de Graça”, Caio Fábio ocasionalmente usa togas étnicas e batas similares as
indianas. O cenário é composto por vários elementos de sua própria casa, com destaque a um fogareiro
acesso, que fica ao centro da mesa do cenário principal. Intermitentemente ao seu programa, a trilha
sonora continua é a canção Panoramic do produtor musical inglês Atticus Ross, que dá um clima “zen”.

112
agudos ou crônicos, no nomos estabelecido na sua sociedade. Esses eventos
recebem agora “um lugar” no esquema das coisas, que é conseqüentemente
protegido da ameaça de desintegração caótica sempre implícita em tais eventos”.

3.5-Estações do Caminho – novo (não) lugares religiosos

As “Estações do Caminho” são agências religiosas iniciadas por Caio Fábio em


meados de 2005, após sua decisão de permanecer em Brasília e por conta de seu retorno
do período de “reclusão”. Com a repercussão da experiência bem sucedia naquela
cidade, surge a necessidade da implementação de “Estações” em outros estados. Tal
expansão das “Estações” está diretamente ligada à criação da TV online “Vem & Vê
TV” no ano de 2006, assim como ao início das transmissões 24h das mensagens de
D´Araújo via web. A “Vêm & Vê” foi incorporado ao site (“portal”) no mesmo ano.
Desta forma seu portal cresceu em visitas, tanto pelos visitantes que buscavam ler as
“cartas” respondidas por Caio Fábio, quanto, a partir da inserção da web TV, pelo
crescente interesse de novos expectadores por suas mensagens em vídeo.

O “carro chefe” da Vem e Vê TV é o programa “Papo de Graça”, transmitido ao


vivo de segunda a sexta, das dez horas da manhã até às 13 hora. O programa é divido
em três blocos, com cerca de uma hora cada. No primeiro terço, Caio Fábio comenta
vídeos variados, a maioria postados 95 por seu público em seu Facebook. Na segunda
parte, é realizada uma mensagem inspirativa, ou, em alguns episódios, são transmitidos
documentários curtos que recebem comentários do apresentador, após a exibição. No
último terço, Caio Fábio dedica-se a responder perguntas enviadas via chat. A leitura
destas mensagens, acompanhada por interações com toques humorísticos, fica a cargo
do segundo apresentador, Bráulio Nápoles. Nesta altura do programa, Caio reponde
questionamentos enviados por seus ouvintes tais como: “Fui em um culto, dei meu tênis
como oferta e meu pai quase me mandou pra fora de casa descalço." 96; ou então "Vi
várias curas no culto do Valdemiro. Isso é paranormalidade, indução ou Espírito

95
Refiro-me ao neologismo digital “postar”, significa enviar uma mensagem eletrônica.
96
"Fui em um culto, dei meu tênis como oferta e meu pai quase me mandou pra fora de casa
descalço.".https://www.youtube.com/watch?v=46oLft5Tsjs&list=UUT2iDke9SuPfp0XO0rr8YSA,
Acessado em 27/08/2014.

113
Santo?" 97 e "Me afastei da igreja e não consigo mais frequentar nenhum lugar. E
agora?". 98

A Vem & Vê TV conta com três canais que transmitem constantemente os


programas relacionados a Caio Fábio. No índice dos programas disponível no site,
encontramos: “O caminho da graça”, "No caminho", "Vem & Vê clássicos”, “Cabra
macho”, “Dribate”, apresentado por sua esposa, “Vem & Vê documentários”, “Vem &
Vê estudos bíblicos”, “Reflexões na Terra Santa”, Espaço das estações”, “O caminho do
discípulo”, “Pense Comigo” e “Caminho consciência”. 99

O programa “Papo de Graça” é “fatiado” em pedaços menores, disponibilizados do


Youtube, para facilitar a audiência dos usuários web que, normalmente estão habituados
com mensagens mais curtas e dinâmicas. Desta forma, fica fácil compartilhar seus
vídeos em suas mídias sociais. Assim, com a circulação da mensagem de Caio Fábio
muitos se afinaram com sua linha de pensamento, surgindo a necessidade pela
“plantação” de comunidade de afins ao ethos da “contra-cultura” evangélica.
Atualmente existem cerca de 70 Estações da Graça espalhadas em todas as regiões do
Brasil, e também no exterior. 100

Assim como nos tempos “áureos” da VINDE, quando Caio sustentava diferentes
atividades, também encontramos no “Caminho da Graça” diversas frentes de ação,
articuladas através da mobilização da rede dos participantes das “Estação da Graça”.
Podemos citar o "Caminho Nações" que “sintetiza as iniciativas humanitárias do
Caminho da Graça entre as Nações”. 101 Entre as atividades do “Caminho Nações”
encontra-se o projeto “Pequeninos da Nigéria”, cujo objetivo é o resgate de crianças
acusadas de serem bruxas, por pastores neopentecostais na Nigéria e no Senegal 102; na
área social também podemos citar o “SOS Religar”, com atuação no sertão do Brasil.
Também podemos incluir nestas frentes de atividades do “Caminho” o “AlSakra”,
“Caminho consciência” e “Capelania do Caminho”.

97
"Vi várias curas no culto do Valdemiro. Isso é paranormalidade, indução ou Espírito Santo?".
https://www.youtube.com/watch?v=90WTQUD9uos. Acessado em 27/08/2014.
98
"Me afastei da igreja e não consigo mais frequentar nenhum lugar. E agora?".
https://www.youtube.com/watch?v=Usy7PhvrUQ0. Acessado em 27/08/2014.
99
www.vemevemtv.com.br. Acessado 20/05/2014.
100
< http://blogcaminho.blogspot.com.br/p/grupos-do-caminho.html>. Acessado em 14/10/2013.
101
< https://www.facebook.com/caminhonacoes.wn?fref=ts>. Acessado em 10/07/2014.
102
< http://www.caminhonacoes.com/>. Acessado em 10/07/2014.

114
Observado as atividades do “Caminho da Graça”, passamos para o próximo passo.
Nossa pesquisa de campo, de inspiração etnográfica participante, foi realizada entre
junho de 2013 até fevereiro de 2014 na “Estação da Graça”, em um Campinas, cidade
no interior de São Paulo, em um grupo com cerca de 30 pessoas; além disso realizamos
pesquisas na “Estação da Graça”, em São Paulo-Capital, e ainda em uma outra, ainda
em fase de “plantação”. Para cumprir o objetivo estabelecido, também acompanhamos
sua mídia social, e assistimos a incontáveis vídeos no youtube e a programas da “Vem e
Vê TV”; contamos também com anotações no caderno de campo e conversas informais
com seus principais expoentes; esta análise é seguramente uma fotografia, pois o
movimento está em constante remodelagem.

Nosso primeiro desafio foi delimitar o campo. Havia vários grupos de inspiração
“Orgânicas” ou “Simples” nas mídias sociais ou na busca no Google, em diversas
cidades e estilos. Procurávamos por um grupo cristão com perfil alternativo, no qual as
pessoas se encontrassem em residências ou locais alternativos, com tendência anti-
clerical, conforme convencionamos ser próprio da “Igreja Orgânica”. A esta altura já
havíamos decidido que a delimitação do tema seria o movimento “Caminho da Graça”
por já estarmos convencidos de que, pelo material midiático assistido e através de
conversas com seus frequentadores, tínhamos encontrado nosso “objeto”. Não foi difícil
encontrar via internet o endereço e os contatos da liderança da comunidade na cidade.

No website deste grupo, encontra-se uma auto-definição, apresentada a seguir:

“Sobre - O ´Caminho da Graça´ no Brasil é um movimento que existe para


anunciar que ´Deus estava em Cristo, reconciliando consigo mesmo o mundo, e
não imputando aos homens as suas transgressões´.
Missão - Cremos que nossa missão na existência é o Amor, segundo os
ensinamentos de Jesus Cristo, Deus Encarnado. Não há evangelho sem amor, e o
amor implica em ações práticas para com o próximo.
Informação Geral - Temos Estações e grupos de contato em todo Brasil e fora do
Brasil. Se desejar saber se perto de você tem algum grupo se reunindo, informe-
se no link: http://blogcaminho.blogspot.com.br/p/grupos-do-caminho.html” 103

103
https://www.facebook.com/ocaminhodagraca/info. Acessado em 10/10/2013.

115
A despeito da formulação teológica acima disposta, supondo que o recenseador
indagasse sobre o pertencimento religioso dos frequentadores do “Caminho da Graça”,
eles poderiam auto “declararem-se” “evangélicos, porém o sub grupo ou a denominação
seria o “Caminho da Graça”, ou a “Estação do Caminho’? Ou apenas declarar-se-iam
cristão. Porém, com as afirmações de D´Araújo de que o cristianismo é o
desvirtuamento do Movimento de Jesus, fica incerto sabermos, de início, se tais grupos
das “Estações”, ou os “desigrejados”, perfazem as fileiras dos “evangélicos não
determinados”.

Assim, observando o conteúdo do blog “Estação do Caminho”, notamos que sua


descrição oficial se aproximava a um discurso legítimo das lideranças e também muito
próximo das questões levantadas na “Estação”:

“O Caminho é mais que um lugar ou um clube de iluminados. Trata-se de


um movimento de subversão do Reino de Deus na Terra. Por esta razão,
"o Caminho" é feito de gente chamada a assumir seu papel de sal que se
dissolve e some para poder salgar; de fermento que se imiscui na massa e
desaparece a fim de subverter; de pequena semente que se torna grande e
generosa árvore que a todos acolhe; de Casa do Pai para os filhos
Pródigos e também para os Irmãos Mais Velhos que se alegrarem com a
Graça do perdão; e um ambiente espiritual no qual até o "administrador
infiel" possa se consertar, e, assim, tentar fazer o melhor do que restou.

No Caminho todos são irmãos, e ninguém é juiz do outro. Assim,


ajudam-se, mas não se esmagam uns aos outros, posto que no Caminho
todos caem e levantam, todos se enfraquecem, mas não desanimam,
todos são humanos, e, com humanidade são tratados, conforme o Dogma
do Amor.

Desse modo, "os do Caminho" andam no mundo, no chão da terra, em


meio à sociedade humana; e isto sem fazer propaganda religiosa, mas,
antes e sobretudo, "sendo" povo de Deus entre os homens vivendo
mediante a "fé que atua pelo amor".

Jesus nunca quis fundar uma religião. Nada foi mais danoso para a
genuína fé do que terem-na feito tornar-se uma religião, entre as demais.

116
Seguir Jesus é aceitar um modo de ser, é assumir como vida as Suas
palavras, e é dar testemunho do Evangelho não como uma "estratégia de
evangelização", mas sim como a natural vocação da Vida em Cristo.

O "Caminho da Graça" é a simples busca de viver o Evangelho com tal


consciência entre os homens. Nada mais e nada menos do que isto!

Portanto, se o que você aqui ler for algo que receba o testemunho interior
do Espírito Santo como sendo verdade conforme o espírito do Evangelho,
então, una-se àqueles que desejam apenas andar conforme o chamado
original dos "do Caminho", conforme o livro de Atos.” 104

Isso posto, contatamos a liderança via chat no Facebook, que me atendeu muito
bem, e estendeu o convite - de uma conversa virtual para uma visita presencial no
domingo. Assim procedi. O grupo da “Estação da Graça” de Campinas se reúne em uma
associação comercial, no centro da cidade. Ao chegar ao local de encontro, notei que
não havia placas de identificação na porta, e que se tratava da Estação por conta da
movimentação no hall de entrada. Soube que o grupo se encontrava em um lugar
público, alugado, e não nas residências, porque naquela altura, a quantidade de
“caminhantes” já extrapolava o limite da capacidade de realizar as reuniões nos lares
dos irmãos; logo, decidiram por alugar uma vez por semana um espaço comercial no
centro da cidade “para ficar perto para todos”, por R$ 80,00 mensais.

Esse grupo do ”Caminho da Graça”, reunido em um lugar central do munícipio,


estava localizado em um quadrilátero onde se encontram as igrejas centrais da cidade, as
Católicas sedes, as Batistas, Metodistas, Presbiterianas e outras da cidade. Por vezes,
nos momentos em que entrávamos ou saíamos dos encontros, percebíamos a
movimentação típica dos fiéis em direção aos seus cultos, ou deles retornando. No
entanto, o culto na “Estação” acontecia em um lugar neutro do “sagrado”.

Nas discussões antropológicas sobre a religião, a relação dos indivíduos com os


lugares religiosos tem um espaço privilegiado. As basílicas, os roteiros sagrados (como
as peregrinações em Juazeiro, o caminho de “Santiago”, entre outros), evidenciam a
relação sujeito-espaço como tema fulcral do debate sobre a religião no espaço público

104
"O que é o Caminho?".<ocaminhodagraca.blogspot.com.br>. Acessado em 11/10/2013.

117
urbano. Na Antropologia religiosa habitual, o lugar do culto é fixo, porém, quanto ao
“Caminho da Graça”, o grupo reúne-se em um espaço de circulação pública não ornado
de elementos caracterizados como religiosos, tais como crucifixos, púlpitos,
confessionários, batistério, etc. Encontramos nas observações de campo, tão somente
uma sala de reunião, por assim dizer, “secularizada”, localizada dentro de uma
associação comercial. A forma como os sujeitos tramam suas relações pode estar
diretamente vinculada ao espaço em que estão inseridos, podendo constituir um
paradoxo produzir uma experiência com o sagrado em um espaço a ele não delimitado.

Marc Augé (2003) lança mão da ideia de “não lugares”, que mesmo não se
tratando uma discussão religiosa, entendemos ser perfeitamente aplicável para elucidar
a relação dos espaços na religiosidade urbana. Em sua análise, ele formula dois tipos: os
“lugares” e “não-lugares”. Os “lugares” são espaços definidos “duros”, os “não lugares”
são espaços de transitoriedade, de fluxo, com identidades múltiplas. Para Augé (2003, p.
98): “Na realidade concreta [...], os lugares e os espaços os lugares e os não-lugares
misturam-se, interpenetram-se. A possibilidade do não-lugar nunca está ausente de
qualquer lugar que seja. A volta ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares”.
É nesta interpenetração evidenciada por Augé que se pode situar os lugares de encontro
das “Estações do Caminho”, nenhum deles, pelo menos em nossas pesquisas, possui um
“lugar sagrado” para a realização de seus encontros. Os espaços de circulação pública
são “não lugares”, porém se transformam em “lugares” para que os aplicativos de fé de
seus sujeitos religiosos sobrevivam diante da secularização e da constante necessidade
de adaptação.

A observação de Campos (2006, p. 163) colabora para elucidar a questão:

“A religiosidade volta a fazer parte da paisagem urbana e do convívio dos


cidadãos, tornando-se a cidade, novamente, um local em que ganham força
sistemas simbólicos até então tidos como definitivamente eliminados da vida
urbana... Por outro lado, é possível que esse renascimento do misticismo ou da
religião na cidade esteja ligado também à globalização ou à mundialização...
Como resultado desse processo, novas configurações religiosas tomam conta do
contexto urbano”

118
Porém, em uma espécie de gramática ritual, ao iniciar-se o encontro (ou “culto”)
a reverência mudava; após a oração inicial, o local é o espaço de culto: “onde estiverem
dois ou mais, lá eu estarei”, como afirma Jesus Cristo em Mateus 18,20. Em outro grupo
orgânico, na mesma cidade, os encontros acontecem em uma cafeteria, o grupo não tem
vínculos, nem um nome específico. Entre uma conversa e outra, realizam suas orações,
estudos da bíblia, tudo entre o vai e vem dos garçons e demais frequentadores do local.
Ressaltamos também grupos que operam a religiosidade cristã em locais “não
religiosos”, observados no grupo “Igreja Orgânica Brasil” (IOB). 105 Neste espaço
virtual, os “membros” disponibilizam fotos de seus encontros. É relevante ressaltar que
na maioria dos grupos “orgânicos” observados em diversos estados do Brasil na IOB, os
interlocutores se reúnem “com simplicidade” em residências ou locais “não sagrados”,
como cafeterias, pizzarias, praças, escolas. Nestes casos, a configuração espacial
normalmente conta com cadeiras ou sofás em rodas, revelando uma necessidade de
“falta de centro”, ou disposto em círculo para conferir ao grupo maior interação, sem a
tradicional disposição em um formato de auditório, encontrada na maioria das Igrejas.

O local do encontro do “Caminho da Graça – Estação Campinas”, onde


realizamos nossa observação principal, é uma sala de aula adaptada, alugada de um
centro comercial. As cadeiras da sala são rearranjadas em formato de círculo. Fora as
cadeiras, o lugar permanecia intacto, tal como usado cotidianamente. No lado esquerdo
havia uma lousa, o que me fez deduzir que lá poderiam funcionar cursos gratuitos
durante a semana. Antes de chegar nesta sala, havia um hall, com três poltronas, onde
os participantes interagem antes de iniciarem o culto, as 19h, e que, depois, ao final,
proporcionava ambiente para um momento de refeição comunitária, na qual cada
participante contibuia com um alimento/bebida. No total, os encontros duravam cerca
de 1 hora e 20 minutos.

Em alguns encontros o líder destacava algumas atividades sociais do “Caminho


da Graça” que necessitavam de suporte financeiro e orações, para mobilizar o grupo.
Assim, passava vídeos dessas atividades, tais como, por exemplo, o trabalho
desenvolvido na Nigéria, citado acima.

Em cada encontro que participamos, notamos que não havia uma liturgia
estabelecida. Em algumas ocasiões o responsável pelas canções estava presente, em

105
< https://www.facebook.com/groups/1464550993778819/photos/>. Acessado em 20/08/2014.

119
outras não. Não era problema levar o encontro sem música ou sem “momento de
adoração”. Em conversa com um de seus líderes, fiquei sabendo que um dos músicos
gostaria de montar uma “banda fixa” para as liturgias do culto. Este líder não
concordou, porque preferia que o tal músico dedicasse o tempo no qual estivesse nas
reuniões investindo em relacionamentos e, quando se sentisse “inspirado”, poderia
conduzir alguns cânticos. Para acompanhar os cânticos às vezes distribuíam uma folha
contendo as letras das canções. No “Caminho da Graça” em São Paulo, conversando
com um dos líderes, soube que lá também não havia banda. “-Nem banda, nem nada”. O
líder me explicou que lá as coisas também funcionavam através dos “dons”, com
naturalidade. Não havia eleições para cargos, liderança formal, equipes, obreiros, etc.
Para o líder o que “importava era a vida” real, não os aparatos religiosos.

É oportuno salientar um certo contraponto. Em tempos da “espetacularização da


fé”, em que os evangélicos estão fortemente influenciados pela lógica de mercado, após
a “explosão gospel” (CUNHA, 2007), no qual os cultos assentam-se em modelos
teatrais (CAMPOS, 1997), vale-me o que Guy Debord (1997) chama de “sociedade dos
espetáculos”. Debord demonstra que a redes de significados sociais passam por um
processo em que o cotidiano é experimentado através de uma acumulação de
espetáculos. A espetacularização cria um encantamento do fiel, a partir da
dramaticidade do culto, da eloquência pastoral, utilização de traquejos retóricos, música,
luzes, etc, tudo para gerar confiança (ou fidelização?), empatia e sensação de
estupefação religiosa. Assim Debord (1997, p. 14) conceitua o espetáculo: “uma relação
social entre pessoas, mediatizada por imagens”.

Seria possível pensar o desejo por comportamento religioso “simplificado”,


através do engajamento de certos setores da sociedade por uma busca de uma “vida
simples”, de “menos stress”, “minimalista”, que se opõe à sociedade de consumo, como
nos aponta Renata Silva (2012)? Se a sociedade em geral tem pautado pelos excessos do
consumo, inversamente é possível que certos sujeitos almejem menos tecnologia, menos
stress e mais relacionamentos e qualidade de vida. Poderíamos perceber um ethos, ou
pelo menos um buraco de fechadura para que possamos pensar a predileção pela
quietude e simplicidade religiosa.

Retomo a descrição da “Estação do Caminho. Os encontros iniciavam com


palavra de boas vindas do líder. Em seguida, normalmente o grupo entoava de três a
quatro músicas. Estas eram ocasionalmente intercaladas por uma explicação sobre seu

120
conteúdo ou alguma “palavra de inspiração”. Algumas vezes o “violeiro” não escolhia
as canções e solicitava que o grupo as sugerisse. Interessante destacar que, no repertório
musical da “Estação” pesquisada, também havia canções “seculares”: (a maioria de
MPB, das décadas de 80 e 90), canções de Almir Satter (“Tocando em frente”), Lulu
Santos (“Tudo bem”); Legião Urbana (“Pais e Filhos”); Roberto Carlos (“É precisa
saber viver”). Elas eram entoadas durante o “momento de louvor”, junto às outras
canções de cunho mais religioso.

Segundo um de seus líderes 106:

“A gente faz da mesma forma que o Caio faz em Brasília e como aprendemos
com ele, usamos música que tem a ver com o Evangelho, caso haja alguma
canção que tem a ver com o momento em que estamos vivendo e sentido, nós
usaremos a música, independente das classificações. O que vai dizer se usaremos
ou não a canção e seu conteúdo e não está nesta bobeira desta divisão entre
música ´gospel´ e ´secular´, graças a Deus com o Caio e o Caminho da Graça,
encontramos um jeito de compartilharmos desta maneira”

Ora, uma das características apontadas por Prócoro Velasquez Filho (1990)
acerca da implementação do protestantismo no Brasil é que o convertido era
subordinado a uma vida santa, que significava opor-se a cultura brasileira (católica) e
adotar a cultura anglo saxã (do missionário “transcultural”). Daí a importante
colaboração de Antônio Gouvêa Mendonça (2008) sobre a inserção do protestantismo
no Brasil, assimilado através de canções religiosas americanas e europeias. Até
recentemente, antes da penetração da cultura dos “cânticos” nas igrejas evangélicas, tais
“hinos” estrangeiros eram entoados, ao passo que a musicalidade brasileira era
abominada.

Para Marina de Oliveira (2013, p.16), existe um movimento cultural cristão que
pretende valorizar a arte “para Deus, porém desprovida da gramática religiosa”,
admitindo que a transcendência cristã também pode ser alcançada pela beleza estética.
Segundo Oliveira, o “Hope Rock” ou o “Novo Movimento” segue esta premissa. As

106
As conversas com participantes dos encontros foram escritas em um caderno, que demos o nome de
caderno de campo.

121
bandas cristãs elencadas por Oliveira 107 costumam tocar canções de artistas não cristãos
da MPB:

“Diversas bandas têm produzido música que seja acessível a todos os públicos, e
mesmo sendo cristãos evangélicos, dispensam o rótulo do gospel, embora em
suas composições se perceba o extrato da filosofia cristã e temas relacionados à
fé, como a beleza da criação divina, a esperança de dias melhores, o amor ao
próximo. Este novo modo de fazer música tem sido chamado por uns de Hope
Rock, por outros de Novo Movimento, porém não se trata de um movimento que
tenha nome oficial e talvez nem seja essa a pretensão das bandas da cena. Mas
em comum, há o desejo de se cantar uma música que fale de esperança,
produzindo arte a partir de uma perspectiva cristã, mas deixando de lado o
proselitismo religioso.”

Em visita a uma outra “Igreja Orgânica”, conversei com um participante, que já


visitara a “Estação do Caminho”, e que taxou esse movimento como herege, justamente
exatamente pelo contexto que descrevi acima, da utilização de música secular durante
os encontros. No dia em que este participante estava presente no encontro do “Caminho
da Graça”, entoaram uma música não cristã. Segundo este participante:

“A palavra pregada no Caminho da Graça” naquele dia até que foi boa. Nada a
discordar. E ouvir um irmão pregar, isento de terno, gravata foi algo positivo.
Nenhuma crítica nesse ponto. Mas e aí? Nos momentos dos louvores... Que tal
tocar um Raul Seixas? Na sequência um INXS? Depois Mariza Monte? Show
né? Mais show ainda é atribuir essas lindas canções à ação do Espírito Santo...
Rolou até um som do ´Nirvana´, e até um ateu se sentou à mesa para participar
da ceia. Na minha opinião o sistema orgânico pode se tornar tão herético, quanto
o sistema institucional”. (“Luiz”, 33 anos)

A Estação São Paulo também se reúne em um clube alugado, devido ao número


de frequentadores. Fica ao segundo andar de um salão comercial, sendo necessário subir
uma escada de cerca de 30 degraus para alcançar o local de culto. O salão possui uma
grande mesa ao centro onde todos ficam ao redor. Um detalhe interessante de sua
liturgia é que em todos os domingos, dia dos encontros, a reunião é interrompida no
meio, havendo um intervalo para cear. A “ceia”, neste caso, se compõe de lanches e

107
“Palavra Antiga”, “Crombie”, “Tanlan”, entre outras.

122
sucos colocados na mesa do centro. Após cerca de 30 minutos de “ceia” o encontro é
retomado. O CG São Paulo, Santos e a “sede” em Brasílias são as maiores “Estações do
Caminho”. Em São Paulo, cerca de 200 pessoas se reúnem por final de semana, em
Santos, cerca de 100 pessoas. Em Brasília, onde quem prega é Caio Fábio, o auditório,
sempre cheio, conta com de cerca de 500 lugares.

No caso do grupo em plantação que visitamos no interior de São Paulo, o


encontro era realizado em uma residência, com cerca de 12 pessoas. A mensagem foi
proferida pelo mentor daquela “Estação”. Em alguns momentos, o líder destacava que lá
não era com uma “Igreja Institucional” e há qualquer momento ele poderia ser
interrompido para perguntas e colaboração em sua reflexão. O mesmo observamos no
outro campo, no auditório alugado em Campinas. Já em São Paulo a pregação foi linear,
sem interrupções,, talvez devido ao número de pessoas presentes, que provavelmente
contribuiriam com muitas interações, caso fosse possível.

As “Estações do Caminho” são conduzidas por mentores “não ordenados”. Em


sua grande maioria trata-se de indivíduos com ímpeto de liderança, que se simpatizaram
com a mensagem de Caio Fábio. Também encontramos diversos ex-pastores
evangélicos que abdicaram de suas ordenações. Carlos Bregantim, mentor da Estação
São Paulo é clérigo full-time, porém não recebe salário do “Caminho da Graça”, seus
proventos advêm de outras fontes, assim como no caso do próprio Caio Fábio.
Diferentemente da maioria das denominações, os próprios mentores “não ordenados”
são os que partilham a ceia e realizam os batismos dos convertidos. Pude presenciar por
diversas vezes a realização do momento de “ceia do Senhor”, que na maioria das igrejas
evangélicas é “monopólio” do clero, ao passo que nas “Estações” são administradas
pelos próprios membros, com menor pompa.

Contudo, entre os mentores das “Estações do Caminho”, embora não exista um


governo, há, porém, uma “supervisão do caminho”. Os supervisores atuam
nacionalmente ou regionalmente, oferecendo suportes aos mentores de cada “Estação”.
A Supervisão é um “serviço”, como um “pastoreio”, tanto de escuta quanto de
orientação. O objetivo é oferecer suporte aos grupos que se reúnem sob a proposta do
“Caminho”. Conforme um de seus supervisores:

123
“A supervisão, identifica, testifica, coparticipa e se disponibiliza em alegria e
devoção as estações. Já tivemos vários grupos que se aproximavam com a
proposta de Caminhar conforme o evangelho, porém eram tudo....menos grupos
que se reuniam segundo esta proposta, conforme falei acima Neste caso,
supervisão serve para o acompanhamento dos grupos, dos mentores com escuta
pastoral, de orientação etc. Nosso compromisso é com a saúde do evangelho
entre os propostos grupo do Caminho da graça. Não é controle, é serviço
compromissado. Acontece da seguinte forma: Tem a supervisão geral do
movimento, no Brasil e fora dele. Eu estou supervisor geral, desde 2011. E
temos supervisores regionais, que são responsáveis por várias estações e estão
em contato com os mentores sempre colhendo informações. Eu faço reuniões
mensais com estes supervisores, que me informam sobre estas estações, e as
visitam quando possível. Eles me mantêm informada sobre tudo, não só nestas
reuniões, mas em contatos diretos e diários quando necessário. Além disso temos
encontros, tanto somente de supervisão, como de mentores e supervisão de 1 a 2
vezes por ano, dependendo da viabilidade. ” 108

Por outro lado, vale a pena atentar à expressão “estação”, utilizada para designar
estas comunidades. Nas palavras da própria liderança, o termo invoca um sentimento de
lugar transitório, como uma estação de trem, onde as pessoas vêm e vão. “Quem quer
109
vem, quem não quer não precisa vir”. É caro à sociologia da religião realizar suas
analises a partir da construção das identidades dos indivíduos circunscritos ao ethos
denominacional (pentecostal e a anomia; histórico e a racionalidade, etc). Ernest
Troeltsch (1987), reconhecido por sublinhar as tipologias “igreja” e “seita, sendo esta de
vínculos mais soltos e aquela de vínculos mais “rígidos”; em sua terceira tipologia, a
“mística”, encontramos um conceito chave que talvez possibilite uma melhor
compreensão deste “pertencimento”. Vejamos o que afirma Sérgio da Matta (2008):

“Com a crise dos modelos eclesiásticos tradicionais, o caminho pareceria estar


aberto para a terceira das manifestações sociológicas concretas do ideal cristão: a
mística. Não se trata, para Troeltsch, de uma simples religiosidade espontânea,
de uma ´mística sem forma nem conteúdo´. Trata-se de uma ´mística do Cristo´
supostamente capaz de unir indivíduos em torno de um culto”.

108
Depoimento coletado via Skype, com supervisor do “Caminho da Graça”.
109
"Estação Salvador Centro - encontro dia
17.07.10".<https://www.youtube.com/watch?v=FhT6PFpZ7bw>. Acessado em 10/10/2013.

124
Logo, a presença de comunidades “orgânicas” ou as “Estações do Caminho”
reforçam a hipótese pós-moderna de transitoriedade e liquidez (Bauman) social 110, onde
as identidades se estabelecem não mais em “garagens”, mas em “estações” transitórias,
não sem antes experimentarem, neste momento transitório, um sentimento de pertença e
agregação. Conforme destaca Michel Maffesoli (2000, p. 43), que forjou o termo
“neotribalismo”, caracterizado pela “fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela
dispersão”, é no seio de um ajuntamento que podem ocorrer “condensações
instantâneas”, frágeis, porém no momento em que acontecem são profundamente
emocionais. É possível afirmar que cada um é ao mesmo tempo ator e espectador. A
concatenação de símbolos orgânicos dentro de uma sociedade, a natureza, a sociedade,
os grupos e as massas formam uma “nebulosa” cujo efeito é indubitável sobre a
construção do imaginário coletivo. É nesta característica da valorização de comunidade
de pequenas dimensões que queremos insistir. A estes ajuntamentos Maffesoli
denomina “união em pontilhado”, ou uma biografia religiosa escrita a lápis. Para
François Houtart (2002, p. 23)

“O local, o imediato são o valor por excelência da dimensão religiosa. Adverte-


se que mesmo nas grandes religiões existe, hoje em dia, uma demanda de
identidade religiosa particular. Além disso, observa-se novos movimentos
religiosos que são ênfase à pequena comunidade. O resultado de tudo isso é que
as grandes instituições estão cada vez mais perdendo o sentido”

Robert D. Putnam (1995, p.8), ao analisar o declínio das organizações


associativas na América do Norte, afirma que os grupos reduzidos apresentam um
grande potencial diante da corrosão das organizações de grande vulto:

“Evidentemente, o engajamento religioso significa mais do que freqüentar os


cultos semanais, pois muitos americanos envolvem-se intensamente numa
ampla variedade de outros grupos associados às igrejas, tais como escolas
dominicais, grupos de estudo da Bíblia, grupos de solteiros etc. Na década de
1980, o movimento desses pequenos grupos pode ter crescido muito,
especialmente quando os líderes religiosos viram seu potencial para revitalizar
as congregações em declínio e de obter um crescimento rápido de

110
Verificar também o conceito de “homem flexível” de Richard Sennet (1999).

125
congregações novas. [...] Evidentemente, o engajamento religioso significa
mais do que freqüentar os cultos semanais, pois muitos americanos envolvem-
se intensamente numa ampla variedade de outros grupos associados às igrejas,
tais como escolas dominicais, grupos de estudo da Bíblia, grupos de solteiros
etc. Na década de 1980, o movimento desses pequenos grupos pode ter
crescido muito, especialmente quando os líderes religiosos viram seu potencial
para revitalizar as congregações em declínio e de obter um crescimento rápido
de congregações novas.”

Outro supervisor, em conversa disse, em conversa: “O Grupo, é só um abrigo,


um apoio pra quem precisa ser ajudado na sua caminhada pessoal”. Isso reforça
significativamente a hipótese de Grace Davie (1990), do “crer sem pertencer”, no cotejo
metodológico com nosso caso. Davie antevê, analisando a religião britânica o
desaparecimento progressivo dos laços religiosos fortes, assim como o surgimento de
vínculos precários e pertenças religiosas instáveis, como sugere a conhecida metáfora de
Zygmunt Bauman (2005, p. 17-20), da “vida líquida”:

“Líquido moderno é uma sociedade em que as condições sob as quais age seus
membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a
consolidação, em hábitos e rotinas [...] as realizações individuais não podem
solidificar-se [...] em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em
condições de incertezas constantes”.

Acerca do perfil dos frequentadores da “Estação” em São Paulo, um dos


mentores nos aponta o “fogo amigo”, como uma das principais causas para o “trânsito
religioso”. Ao ser questionado sobre o público de frequentadores, afirmou: “são
pessoas, é gente que de algum modo se ´desencantou´ ou se ´desencontrou´, gente que
´faliu´, gente que ´feriu´ ou que foi ´ferida´”. Outro líder fez esta outra afirmação: “Este
povo que a igreja institucional não acolhe, que as lideranças pastorais não acolhem, que
vão se deparando com suas próprias complexidades e falências pessoais drama, dores,
perdas, loucuras. A igreja tende a acolher os bons, os legais. Na pior nas hipóteses a
igreja abre os braços para que foi ofendido não para que ofendido, abre os braços para
foi ferido, não para que fere, o evangelho é também para os imperdoáveis”.

126
Concluindo, conforme Hervieu-Léger, temos um movimento religioso de
“peregrino” e “convertido”, com intensa recomposição e circulação simbólica em seu
habitus religioso. Se a religião por muito tempo foi analisada pelo fato de que
proporcionava coesão social (Durkheim), ou para solucionar condições de anomia entre
seus praticantes, proporcionando um ambiente de segurança existencial, com a “pós
modernidade”, a experiência religiosa fica cada vez mais capilarizadas, ao longo de
grupos cada vez mais pormenorizados. Podemos, como último apontamento, levar em
consideração o recrudescimento do incentivo do “empreendedorismo” no país,
substituindo uma carreira profissional estável pela capacidade dos indivíduos de
“construírem com suas próprias mãos” seu próprio negócio. Podemos aventar este fato
social e atrela-lo também à capacidade dos sujeitos de, descontentes com sua agência de
fé, “abrirem” seu próprio grupo, emancipados dos eixos das principais denominações,
ou recorrendo à linguagem empresarial, criando sua comunidade “à sua imagem e
semelhança”. 111

111
Notamos que muitos dos mentores do “Caminho” ou líderes de “Igrejas Orgânicas” em suas atividades
profissionais, exercem algum tipo de “empreendedorismo”: são concurseiros, comerciantes, profissionais
liberais, etc.

127
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luz do que foi analisado podemos concluir que um novo horizonte se abre aos
pesquisadores acerca das recomposições dos dissidentes do universo evangélico, que
podem, em hipótese, fazer parte dos cerca de 9,3 milhões de “Evangélicos não
determinados” (Ponderamos que há muitas críticas em relação ao método de coleta do
IBGE no quesito “religião”). Os “desviados” podem desenvolver uma vida espiritual
solo, ou customizar sua fé em comunidades cada vez mais atomizadas, como mostram
os resultados da pesquisa. Portanto, podemos concluir que a possiblidade de
pertencimento religioso, experimentado nas frestas dos grandes eixos denominacionais,
amiúde, se entrecruzaram, produzindo novos percursos. Nos últimos anos,
especialmente, aceleraram-se os “trincametos” e as “múltiplas vias”, como demonstram
as amostras censitárias, apontando os números crescentes dos autodeclarados de
“múltiplas pertenças”, “Sem religião” e “evangélicos não determinados”.

Interessante é que, desde o cristianismo original, notamos a hibridização da


religião cristã; desde o momento inicial, com Jesus Cristo e seus apóstolos, passando
pelo período apostólico, através da assimilação de diversas culturas que aderiram ao
eixo central do cristianismo, até a incorporação definitiva da religião cristã ao panteão

128
romano, quando da conversão do Imperador Constantino. Os três séculos de
hibridizações, no qual se dá o “Cristianismo primitivo”, torna o processo de sua
reconstrução de tarefa de grande envergadura, para não dizer impossível, tornando-o um
tempo mítico e romanceado pelos cristãos das mais variadas épocas.

Frisamos ainda que a cultura das mega igrejas neopentecostais no Brasil, além
de arrebanhar vários fiéis pela porta da frente, enfrenta um outro fluxo, o da porta dos
fundos; em um movimento similar a uma porta giratória, retroalimentada pelos fiéis à
procura de respostas diversas. No entanto, como destacamos, incluímos a este fluxo,
uma sub-via: a da dissidência. Cada vez mais avantajadas, à medida que as práticas de
determinadas igrejas, de apóstolos, de correntes financeiras, “rosas ungidas”, tornam-se
“bizarras” e chocantes aos frequentadores. Por outro lado o impacto de igrejas
conservadoras e fundamentalistas, em uma sociedade que celebra a liberdade religiosa
plena, pode proporcionar um “desânimo religioso”, por conta das regras rígidas e das
vigilâncias morais de outros segmentos religiosos.

Por isso foi importante destacar as técnicas e teorias das “Igrejas Orgânicas”,
que ao mesmo tempo pretendem ser uma restauração da fé neotestamentária, mas
também, um espaço de “liberdade”, com menos “hipocrisia” e menos vigilância moral,
retomando um espírito familiar e associativo, que, conforme Robert Putnam (2000),
encontra-se em declínio nas sociedades ocidentais.

Também, destacamos que a religiosidade em sociedade ocidentais anglo-saxãs,


marcadas pela aceleração da modernidade também sofrem a ingerência das experiências
online, o que acentua um trânsito religioso sem precedentes; através do vertiginoso
aumento das páginas, grupos e outras formas de pertencer que, conduto “não revela
exatamente um ´individualismo´, mas sim novas maneiras de se relacionar, que já não
dependem mais apenas do contato direto. Muitas vezes, em lugar de promover um
individualismo, a comunicação por celular potencializa as relações sociais” 112. Ainda, é
importante o que nos diz Sherry Turkle (2012), sobre a ação das experiências online,
sobretudo de mobiles, tablets e dispositivos de comunicação digital móveis nas

112
FERREIRA, Pedro P. "NTICs e socialidade contemporânea: uma entrevista".
<pedropeixotoferreira.wordpress.com/2014/04/06/ntics-e-socialidade-contemporanea-uma-entrevista>.
acessado em 10/08/2014.

129
sociedades contemporâneas: "nossos pequenos dispositivos de bolso são tão poderosos
que não apenas modificam o que fazemos, mas modificam quem somos." 113

A comunidade “Caminho da Graça” pretende ser um espaço para convivência de


fé cristã evangélica sem “ser religiosa”. Isso tem suas implicações. Nos estudos das
religiões os pesquisadores empenham-se em descrever os dogmas, padronizações e
declarações doutrinárias, como bem exemplificado por Rubem Alves (1979), citando
com tipo ideal o “Protestantismo de Reta Doutrina”. No contexto de nossa pesquisa, o
empenho foi relatar uma comunidade cujo “horizonte hermenêutico é Jesus”, entretanto
minimamente influenciada por teologias sistematizadas, e cujos encontros não seguiam
uma liturgia pré-formatada. Ora, as religiões em sua grande maioria, se constroem do
centro para fora, do “líder” para seus “seguidores”. Ponderamos que o movimento
gravita em torno de seu fundador, Caio Fábio. Porém, ele mesmo afirma que as
“Estações” são uma organização substituível e que podem, a qualquer momento, serem
substituídas por “algo novo”. Isto demonstra o desejo “pós-moderno” pela valorização
de sua “autenticidade”, “liberdade” e de circunscrever-se, sem medo do “castigo
divino”, em formas de coesão religiosa que constantemente estão se reatualizando, sem
a regulamentação de uma rigidez de conduta, que para Weber (2004) foi o propulsor do
Capitalismo, com a inserção do Protestantismo Pietista intra mundano, nos séculos XVI
e XVII.

A pesquisa aqui realizada possibilitou uma ampliação dos conceitos e da história


da igreja protestante recente, valorizando os novos fenômenos aqui descritos: o
aparecimento das “Igrejas Orgânicas”, dando plano de destaque ao movimento
“Caminho da Graça”, com suas comunidades locais as “Estações do Caminho”. Em
recente entrevista, Caio Fábio “retornou” à grande mídia, alcançando grande número de
views em programa de exibição nacional, 114 demonstrando a emergências da sociedade
por debates acerca da “contracultura” evangélica.

113
TURKLE, Sherry, "Connected, but alone?". <www.ted.com/talks/sherry_turkle_alone_together#t-
151273>. Acessado em 10/10/2013.

114
Refiro-me do programa estilo talk-show The Noite, sua entrevista já soma quase um milhão de
exibições.

130
Concluímos afirmando a carência por mais pesquisas sobre este fecundo
panorama que aqui não se dá por terminado. O “Caminho da Graça”, tanto quanto o
fenômeno mais geral das igrejas não institucionais, exige outras tantas análises, pois no
nosso entender, segue como “tendência” dentro campo religioso evangélico brasileiro.

131
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139
ANEXO I - “Constantino o décimo terceiro apóstolo”

(Transcrição de um trecho de longa duração de um Programa “Papo de Graça” da “Vem


e Vê TV”. A declaração engloba o parecer de D´Araújo acerca da constantinização da
igreja cristã que, segundo seu olhar, representa um desvio fundamente para que o
cristianismo apostólico perdesse suas cores originais. O pesquisador observou diversas
versões desta mesmo declaração, também nas observações participativas e nas análises
das postagens das mídias sociais, que acusam o “cristianismo ocidental” de ser uma
contaminação do movimento inicial de Jesus e seus apóstolos).

“Você que é cristão, fique sabendo de uma coisa: o que sobrou do evangelho, da fé em
Jesus, da fé puro e simples do cristianismo é um verniz de nada, basicamente nosso
arcabouço todo, nossas confissões de fé, nossas declarações doutrinárias, todas estas
coisas vêm do imperador Constantino e de seus bispos. Ele foi ungido o décimo terceiro
apóstolo de Jesus e basicamente dele vem a semente original que fomentou, a partir do
quarto século, todo este ´monstro´ que é o cristianismo mundial, que é um remanescente
do império romano, que encontrou um modo de inocular-se na antítese do próprio
império romano que era a fé em Jesus. A sutileza foi tão grande que eles pegaram um
elemento mais antitético em relação a que o império romano representado, e este
elemento passa a carregar o império romano. O império romano está vivo entre nós [...]
em nome de Constantino. E não somente na igreja Católica, mas na cristandade oriental
e ocidental, no próprio protestantismo, e no nosso meio da igreja Evangélica e de um
modo especial, você vê os perfis de Constantino, que poderíamos chamar de
´macedinhos´, os perfis estão presentes. [...] A grande subversão de Constantino, foi a
grande subversão que colocou [a igreja] em um caminho de infindas outras subversões
que chegaram até os nossos dias, com esta coisa que parece bruxaria, que carrega o
nome de Jesus, mas não tem nada a ver com o evangelho. Um documentário simples
como este [a fala de Caio foi antecedida por um documentário] e vê como a igreja é a
cara do cristianismo, neste sentido ela se manteve em coerência com este cristianismo e
totalmente divorciada do evangelho. Pra mim isso só tem que ser sepultado esquecido,
com muitos perdões à Deus: ´Senhor perdoa-nos por termos sido discípulo do
estelionato durante tantos anos, temos chamado de igreja este império de ambição, de

140
poder, de volúpia que corrompeu tudo o que havia de bom e de puro [grifo meu],
porque os bispos oprimidos até então, da noite para o dia viraram eminências no
império Romano. [...] ou a gente se converte, esquece esta porcaria toda e volta pro
evangelho puro e simples [...] Isso deve ser praticado como um zeramento [sic] com um
compromisso nosso com o que não é evangelho na história o que implica e reconhecer
esta história muito bem, para abandoná-la totalmente, com a consciência que é uma
história anti-evangelho. [...] É a história da grande meretriz, do falso profeta, é a história
dos anticristos que saíram se nosso meio, o pior inimigo do evangelho na Terra é o
cristianismo [grifo meu]. Este ´pacote´ é anti cristão, leva a alcunha de Jesus mas não
tem nada a ver com Jesus, o que a gente vê aí é o ´está escrito´ deturpado, eu estou
´metendo o pau´ nesta igreja de Constantino. Esta igreja que está ai [atualmente] é
irreformável. [...] O cristianismo é pra ser abandonado se alguém, de fato quiser fazer o
caminho simples de Jesus. [...] E nó voltamos à um período Constantiniano com poucas
outras vezes na história, e aqui no Brasil no estamos em franco processo Constantino
Macediano [uma referência ao fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir
Macedo], criando, já há algum tempo, o mesmo surto de poder, de domínio, de
controle”. (Constantino ou Jesus.
https://www.youtube.com/watch?v=fqsZyUTZalo&feature=kp. Acessado em
03/03/2014)

Anexo II

141

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