IGREJAS ORGÂNICAS -
MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA:
O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA”
LIVAN CHIROMA
IGREJAS ORGÂNICAS -
MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA:
O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA”
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
CDD 280
A dissertação de mestrado sob o título "IGREJAS ORGÂNICAS - MOBILIDADE E
RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA: O CASO DO ´CAMINHO DA GRAÇA´",
elaborada por LIVAN CHIROMA, foi apresentada e aprovada em 09 de Outubro de
2014, perante a banca examinadora composta por Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
(Presidente/UMESP), Prof. Dr. Paulo Ayres Mattos (Titular/UMESP) e Prof. Dr.
Ronaldo Rômulo Machado de Almeida (Titular/UNICAMP).
____________________________________________
____________________________________________
Sou grato à minha mãe Yasu Chiroma Veiga e ao meu pai, o qual não viu este texto
concluído por conta de seu falecimento em agosto de 2012. A Francisco Ferreira Veiga
(1936-2012) dedico este trabalho.
À Profa. Dr. Sandra Duarte e ao Prof. Dr. Nicanor Lopes, pelas colaborações na banca
de qualificação.
A Caio Fábio D´Araújo Filho, Carlos Bregantim, Ana D´Araújo, Marcelo Quintela,
Leonardo Silva, Gito Wendel, Wagner H. Silva e a todos das “Estações do Caminho”
Campinas, São Paulo e diversos colaboradores participantes de “Igrejas Orgânicas” e do
“Caminho da Graça” que generosamente foram solícitos aos meus questionamentos.
A Alex Fajardo, que me cedeu seu acervo pessoal das Revistas VINDE;
Aos amigos e amigas que sentiram minha ausência, obrigado pela compreensão.
À Dayana Façanha, pela amizade, paciência e incentivo por conta da produção desta
dissertação, nos momentos de incertezas e distância.
CHIROMA, Livan. Igrejas Orgânicas – mobilidade e reconfiguração religiosa: o caso
do “Caminho da Graça”, dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São
Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.
RESUMO
ABSTRACT
This text is the presentation of the results of a study on the rise of a movement here
conventionally called “Organic Church” (OC). For the present study, among hundreds
of groups met during the research period, “Caminho da Graça” (CdG), a community
founded by mid-2004 and currently numbering around seventy groups in Brazil and
abroad, was chosen as the object of analysis. The group was started by the (ex-) Rev.
Caio Fábio de Araújo, or simply Caio Fábio, backed by a message of “Evangelical
counterculture” or a “return to the Christian Church as it was in the New Testament.”
Although CdG categorically denies the OC label, we can fit them into the movement
observing the practices and discourse of the main leadership. The consolidation of Neo-
Pentecostalism, especially in the 1990s, is seen as the beginning of suspiciousness and
mass disappointment with the Evangelical, and above all the Neo-Pentecostal,
worldview. Thus, these alternative communities welcome dissidents “hurt” by these
contexts. It was therefore necessary, firstly, to understand the morphology of churches
in the original Christianity period, since one of these groups’ points of dispute is the
return to community experiences lived in the New Testament; secondly, to expose the
biographies of the main leaders of the movement; thirdly, to emphasize the conflicts and
motivations both within the church context and outside of it in order to understand the
exodus and the movement of believers towards a more thorough faith experience; and
lastly, to perform ethnographically-inspired participative observation in order to
conduct theoretical approaches.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 09
CAPÍTULO I – Cristianismo orgânico ou institucionalizado? ..................................... 15
1.1 Em busca das experiências fundantes ................................................................ 20
1.2 Algumas questões teóricas preliminares ............................................................ 23
1.3 Identidades e comunidade no cristianismo original: sombras e luzes ............... 29
1.3.1 Movimento de Jesus ............................................................................... 31
1.3.2 O surgimento das Ekklésias ................................................................... 37
1.3.3 O papel das redes familiares na expansão do cristianismo .................... 39
1.3.4 Conflitos na Igreja “primitiva” .............................................................. 46
1.4 O início de uma igreja segundo o modelo imperial ........................................... 49
As primeiras pesquisas que fiz sobre a religião começaram nos trabalhos para
conclusão dos cursos nas faculdades de Comunicação e depois na de Teologia. Em
ambos os casos tratei de temas que envolviam religião, sociedade e mercado numa
perspectiva sociológica. Na primeira, realizei pesquisas sobre o marketing religioso em
uma Igreja neopentecostal; na segunda fiz uma análise dos métodos de plantação de
igrejas em áreas urbanas, destacando-se a alteridade e os aspectos “transculturais”, que
normalmente são pensados nas missões evangélicas que se voltam a uma cultura
exótica. Porém, neste caso, salientamos que as metrópoles possuem seu próprio mundo
simbólico, que é traduzido pelo missionário ou pelo “plantador de igrejas” nas áreas
urbanas, estabelecendo sua própria tradução Na época da graduação li o livro Teatro,
templo e mercado de Leonildo Silveira Campos, que despertou interesse pelas pesquisas
no campo das Ciências da Religião e da Sociologia.
1
Apesar de outras nomenclaturas, como “Igreja nos Lares”, Igreja Simples”, “Igreja doméstica”, “Igreja
não denominacional”, neste trabalho usaremos a expressão “Igreja Orgânica” ou “IO”.
9
congregar em suas igrejas, sobretudo os mais jovens, demonstrando, com isso, um
“desânimo religioso”.
O aspecto que mais chamou atenção foi o recrudescimento dos “evangélicos não
determinados”, ou seja, aqueles que se afirmam cristãos, mas optam por não se
estabelecerem em uma denominação específica. Seria isso um sintoma do fenômeno do
“desigrejamento”? Neste sentido, análise de Campos 4 é oportuna:
2
“Rebanho virtual” e o individualismo religioso. Entrevista especial com Leonildo Silveira Campos.
<www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512839-rebanho-virtual-e-o-individualismo-religioso-entrevista-
especial-com-leonildo-silveira-campos> Acessado em 29/08/2014.
3
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1508201102.htm>. Acessado em 20/08/2014.
4
Idem.
10
Ora, a categoria dos “evangélicos não determinados” é uma vertente sobre a qual os
especialistas estão ainda por desvendar suas tramas, levantando diversas hipóteses
(TEIXEIRA & MENEZES: 2012). Por conseguinte, é oportuno lembrar da pesquisa de
Regina Novais 5 que não relaciona a aversão dos indivíduos às religiões
institucionalizadas ao ateísmo ou no agnosticismo; ou seja, segundo Novais, há um tipo
de fé que “circula”, porém desvinculada de uma agência. Seriam estes religiosos
“circuláveis” praticantes de algum tipo de culto ou formato congregacional particular?
5
"Os jovens "sem religião": ventos secularizantes, "espírito de época" e novos sincretismos. Notas
preliminares".www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000300020. Acessado
em 28/08/2014.
6
"Cresce o movimento de cristãos que ´pulam o sermão´, adoram em pequenos grupos em seus lares"
[tradução livre do autor]. <www.foxnews.com/us/2010/07/21/growing-movement-christians-skip-
sermon-worship-small-groups-home>. Acessado em 20/11/2013.
7
Idem. Tradução livre do autor.
11
ethos anti institucional; sentimento anticlerical; lideranças leigas; reuniões nos lares e
em locais “não sagrados”; um profundo discursos de retorno ao “Cristianismo
primitivo”.
Nossa análise de campo foi realizada em Campinas, uma cidade do interior de São
Paulo, junto a grupo com cerca de 30 pessoas, de Junho de 2013 até Fevereiro de
2014. 8Além disso, realizamos pesquisas na “Estação da Graça” em São Paulo-Capital, e
ainda em uma outra, ainda em fase de “implantação”. Para cumprir nosso objetivo de
análise também acompanhamos a mídia social e assistimos incontáveis vídeos no
Youtube e na “Vem e Vê TV” 9, a mídia do “Caminho da Graça”. Adicionamos também
anotações no caderno de campo e conversas informais com seus principais expoentes;
esta análise é seguramente uma fotografia, pois o movimento está em constante
remodelagem.
No que tange à temática desta pesquisa, não foram encontrados temas similares
nos diretórios e bancos de dados de teses e dissertações da Capes que tomassem como
objeto de pesquisa essas duas linhas que se entrecruzam em nossa abordagem principal,
a “Igreja Orgânica” e o “Caminho da Graça”. Ponderamos que a realidade da “Igreja
Orgânica” no Brasil ainda é desconhecida, não havendo reflexões acadêmicas sobre
uma de suas expressões “Caminho da Graça” apesar da proeminência midiática de seu
líder, Caio Fábio D´Araújo Filho, particularmente nos anos de 1980 e 1990 e, em
tempos recentes, via web. Mas será que o fenômeno “igreja orgânica” existe no Brasil?
Ou em outras palavras, o fenômeno tem densidade significante para uma dissertação de
mestrado? Nós apontamos uma resposta afirmativa. Pois nos EUA e Europa,
pesquisadores já tem tentado registrar academicamente tal movimento há mais de duas
décadas, principalmente entre organizações confessionais e missionárias. Seminários e
8
O período foi intermitente, devido as dinâmicas do grupo e do pesquisador.
9
Web TV de Caio Fábio. www.vemevetv.com.br
12
centros de pesquisa da religião já registram investigação sobre o tema. Por exemplo a
tese defendida no Fuller Theological Seminary por Jares James Looney, City harvest: a
study os organic church planting in a global city, no Instituto de Estudos Interculturais
é um exemplo. Porém, esses têm um tom de catequese, ou de elucidar sociologicamente
o fenômeno a fim de captura-lo para fins estratégicos e missionários.
13
messiânico – carismático Jesus até a adoção de religião cristã pela suposta conversão do
Imperador Constantino. Assim, neste bloco caracterizaremos o período reivindicado
pelas “Igreja Orgânicas” como sendo o período original de intensa “harmonia e coesão”
na comunidade dos discípulos de Jesus.
14
CAPÍTULO I
15
experiências religiosas equivalentes às que teriam sido vivenciadas pelos cristãos do
primeiro século também conhecido como período “pré-constantiniano” 10. É o que
pretendemos analisar neste primeiro capítulo.
10
Verificar ANEXO I.
16
aperfeiçoariam, à luz da teoria da evolução, elaborada por Charles Darwin. No
evolucionismo spenceriano as sociedades caminham em direção à um “organismo
social” cada vez mais harmônico. Assim, aos poucos, sociedades ditas “primitivas”
seriam substituídas por outras, com maior aperfeiçoamento técnico-científico. A
premissa partilhava do pensamento das luzes, em que homem místico era substituído
pelo homem científico. No entanto, as crises no início do século XX, seguida das duas
grandes guerras, colocou em cheque o espírito evolucionista.
“Ora, assim como o corpo é uma unidade, embora tenha muitos membros, e
todos os membros, mesmo sendo muitos, formam um só corpo, assim também
com respeito a Cristo. [...] O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos.
Se o pé disser: ´Porque não sou mão, não pertenço ao corpo´, nem por isso deixa
de fazer parte do corpo. E se o ouvido disser: ´Porque não sou olho, não pertenço
ao corpo´, nem por isso deixa de fazer parte do corpo. Se todo o corpo fosse
olho, onde estaria a audição? Se todo o corpo fosse ouvido, onde estaria o
olfato? De fato, Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua
vontade. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Assim, há
muitos membros, mas um só corpo. (1Co 12,1-20)
17
Neste texto Paulo expõe a ideia de que há uma interdependência no “corpo de
Cristo”, fazendo uma analogia direta aos sistemas biológicos. O apóstolo faz uso de
outras metáforas, mas encontramos nesta perícope a mensagem de que os diversos
membros da comunidade cristã estabelecida em Roma compreendessem que
participavam de uma comunidade onde se faz necessário o uso do “dom” de cada um;
também, todos são importantes, “não há menos, nem maior”. Ademais Paulo estava
desejoso em explicar que eles faziam parte de uma comunidade global, a ekklésia, a
universal.
11
Atos dos apóstolos 4,42.
12
Encontramos outras significativas contribuições dos clássicos. Max Weber (1864-1920), em busca das
causalidades para a “racionalização” do mundo, procurando em diversas sociedades fatores que poderiam
eclodir no capitalismo, faz interessantes abordagens em sua “Sociologia da Religião”. Destacamos
também Peter Ludwig Berger (1929-), na obra “O Dossel Sagrado”, dedica alguns parágrafos à análise
das raízes da religião cristã, encontrando as vertentes mais primitivas da secularização na transição da
religiosidade “primitiva”, ou tribal, para uma religiosidade organizada e monoteísta.
18
categoria “eu”. Neste ensaio, o autor almeja reconstruir uma genealogia histórica das
perspectivas na “noção de pessoa” em diversas culturas com diferentes noções de
indivíduo/coletividade. No subcapítulo “A pessoa cristã”, o antropólogo afirma que:
“Nossa própria noção de pessoa humana é ainda fundamentalmente a noção cristã”,
Mauss (p. 392). Para isso ele toma como base a Epístola aos Gálatas 3.38: “Já não sois,
um frente ao outro, nem judeu, nem grego, nem escravo, nem livre, nem homem, nem
mulher, pois todos sois um, em Jesus Cristo”. Maus afirma que esta unidade (Cristo e a
humanidade em uma só substância), misteriosamente similar a duas outras substâncias,
a trindade e as duas naturezas de Cristo, deu origem a uma noção de pessoa como
“substância racional indivisível, individual”: segundo Mauss “a passagem da noção de
pessoa, homem investido de um estado, à noção de homem simplesmente, de pessoa
humana”.
Uma segunda citação a ser feita parte de Friedrich Engels (1895). Engels parte
de seu interesse pela ordem política ao observar a religião cristão original.
Evidentemente compartilha com Marx a visão materialista e ateia do fenômeno
religioso. Engels privilegia a importância do cristianismo de origem na construção
histórica da sociedade ocidental. Diante da clássica assertiva sobre o caráter
entorpecedor da religião, poderíamos perguntar: houve colaboração dele à reflexão
dedicada ao Cristianismo Primitivo? Encontramos no ensaio Contribuição para a
História do Cristianismo Primitivo (ENGELS,1895) a seguinte observação: “Desde o
início, a diferença manifesta-se gritante entre este cristianismo e a religião universal de
Constantino formulada pelo concílio de Nicéia”. Seu esforço é estabelecer o paralelismo
estrutural entre o cristianismo original e o socialismo moderno; assim comentado por
Lowy (1998): “a lembrança do primeiro cristianismo está presente em todos os
movimentos populares e revolucionários”. Para Engels (1895), “o movimento [cristão]
recrutara a maioria de seus primeiros adeptos entre os escravos do Império Romano. Ao
substituir as diversas religiões nacionais, locais e tribais dos escravos, destruídas pelo
império Romano, o cristianismo foi a “primeira religião universal possível”. A tentativa
de Engels estava em fornecer autoridade e transferir a mística cristã para as causas
trabalhistas-marxistas. Dentro desta teoria, é na relação do comunismo e do
“Cristianismo primitivo” que se percebe um grande suspiro por igualdade social em
ambientes ideológicos aparentemente antagônicos. Para Engels e Marx alcança-se o
19
comunismo pela revolução do proletariado, enquanto no cristianismo pelo víeis sócio-
religioso.
20
recorre ao termo “tempo forte”, referindo-se ao momento histórico onde o prodigioso se
manifestou plenamente. Assim, ao mesmo tempo que o “mito vivo” revela ao indivíduo
sua origem e lugar existencial-social, ele reitera a necessidade da reverificação da
partícula ígnea para a manutenção do presente. Portanto a chave de leitura proposta por
Eliade ajuda no entendimento da mancha histórica cultural produzida tanto no
“Cristianismo primitivo” como também na noção de um “tempo forte” universal dos
cristãos.
Eric Hobsbawn (2008), por sua vez nos lembra que muitas tradições que
parecem antigas são, na verdade, narrativas recentes inventadas com o objetivo de
imprimir continuidade em relação ao passado. Isto é, são tentativas de tornar imutáveis
alguns aspectos da vida social em contraste às constantes mutações que um sistema
social pode sofrer no mundo moderno.
13
Entendida aqui como o estudo da organização da igreja e suas morfologias.
21
em completa harmonia e coesão entre os indivíduos? Quais resistências sócio-políticas
os cristãos do primeiro século encontrariam com o avanço da religião no mundo
mediterrâneo? Qual a morfologia das comunidades emergentes quanto à identidade de
seus sujeitos e quanto às redes sociais familiares?
Cabe nesta discussão inicial relembrar o que afirma Cecília Loreto Mariz, sobre
a viabilidade do ideário do “Cristianismo primitivo” aplicado por ela ao tempo presente
no estudo das Novas Comunidades Católicas 14. Assim se expressa Mariz:
14
A renovação carismática, a partir dos anos 1970, especialmente em meados dos anos 1980, fizera-se
notar pela retomada de um ideário de vida comunitária ao redor da categoria nativa do "carisma". Além
disso, as Novas Comunidades Católicas rapidamente ganharam destaque ao implementar na liturgia
católica os cultos com ampla ênfase musical e espontaneidade; a exemplo do processo que acompanhou
os protestantes na mesma época, fizeram brotar no seio da ICAR, as performances midiáticas e uma
profunda inclinação para a vida comunal. (CARRANZA, 2009)
15
“O ideário das novas comunidades é o ideário comunitário do “Cristianismo primitivo”.
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2793&secao=307>
. Acessado em 10/10/2013.
22
1.2 Algumas questões teóricas preliminares
Este primeiro capítulo, sendo uma pesquisa realizada no campo das Ciências da
Religião, caracteriza-se, portanto, pela interdisciplinaridade. Por isso, como método de
pesquisa, é necessário realizar uma acurada verificação multidisciplinar dentro do
território comum formado pelas disciplinas e campos de estudos necessários para
organizar este debate de abertura sobre o cristianismo original, buscando construir um
todo coerente. Neste momento assumimos uma direção alternativa, mas não
concorrente, da proposta metodológica assumida no início da dissertação, na qual
apresentamos nossas referências teóricas gerais. Convém dizer ainda que debruçar-se
sobre a História e a Sociologia do “Cristianismo primitivo” é, antes de tudo, deparar-se
com processos históricos complexos diante dos quais requer acessar uma caixa de
ferramentas envolvendo análise nas áreas de literatura, sociologia, arqueologia,
antropologia, teologia. Os estatutos e limites das disciplinas e as latitudes
metodológicas 16, para que esta tentativa seja razoável e ganhe densidade empírica,
move-nos para estabelecer certas limitações e demarcações necessárias, que convergem
nas formas possíveis de uma análise da história e cultura antiga.
23
Pode-se ainda perguntar: quais são os documentos e historiografias nos quais
podem-se enquadrar nossos esforços? Seguiremos Chevitarese (2005, p.9), que ao
dissertar sobre as fontes disponíveis da vida de Jesus de Nazaré e do cristianismo antigo,
enumera “os manuscritos do Novo Testamento; as escavações arqueológicas; as
descobertas de Qumran (manuscritos do Mar Morto) e de Nag Hammadi, no Egito,
escritos judaicos e no segundo caso escritos gnósticos; e os testemunhos de fora do
ambiente judaico-cristão”.. Chevitarese afirma que “a história se faz com documentos”.
Ela pode ser acessada através do testemunho de documentações, materiais ou não-
materiais, tudo de que se pode inferir algo, são fontes de informações historiografias.
Chevitarese também ressalta que nos tempos das primeiras comunidades cristãs
a maioria das pessoas era analfabeta e os livros, rolos de papiros, nada práticos para a
leitura. Poucos dominavam a escrita. Os antigos decoravam longas passagens,
recorrendo a uma tradição oral. Além disso, o historiador destaca a subjetividade da
memória. Recordamos aquilo que atende aos próprios interesses. Memorizamos certas
passagens e suprimimos outras. Por conseguinte, fatos mais exotizados, como os
milagres bíblicos, seriam motivo de maior vitalidade neste processo de recepção,
memória e descrição. Logo os textos traduzem também um problema da alteridade
discursiva; um enaltecimento das perspectivas do próprio enunciador em relação aos
seus destinatários (CHEVITARESE, 2005, p. 9-14).
Por isso, optamos por realizar a nossa pesquisa por meio da análise dos textos
canônicos e de fontes subjacentes, às quais acrescentamos a análise de diversos
debatedores. Nosso percurso bibliográfico foi traçado a partir das próprias demandas e
perguntas surgidas no decorrer da pesquisa. Sobre os textos canônicos, Pedro Paulo A.
Funari (2006, p.12) afirma que
24
312 E. C. Embora haja diversas tendências quanto ao assunto, optamos por este corte.
Por sua vez, este período pode ser divido em três partes: a) “Movimento de Jesus” - do
nascimento de Jesus Cristo, até sua crucificação. b) “Era Apostólica” (Ano 34-100),
morte de Jesus até a morte dos primeiros apóstolos. Período marcado pela propagção
geográfica do cristianismo para fora da palestina, sobretudo nas províncias romanas
através da atuação dos Apóstolos c) “Cristianismo pós-apostólico” (anos 100 até
meados do ano 300), período inicial da progressiva institucionalização do Cristianismo.
A esta altura nos reportamos a uma pergunta de Paul Marie Veyne (1995): a
história “não faz os fatos reviverem”? Como localizar o cristianismo antigo em sua
amplitude, marcados por inúmeras agências e conflitos, continuidades e rupturas,
diversidade autoral e circulações étnico - culturais? Ainda, como suspeitar o
supracitado cristianismo original, avaliando-o através de suas documentações e fontes,
uma vez que a história, ainda conforme Veyne (1995), afirma que o ofício do
observador - historiador não é “puro”, é realizado a partir dos próprios projetos e
edições, olhares e perspectivas, tomando decisões de descrição e interpretação durante
seu percurso de análise, privilegiando tramas em detrimento de outras e assim construir
um tipo de literatura que contenha insights e subjetividades cotejadas diante de uma
série documental.
25
construções complexas da realidade e podem ser acessados pela análise do discurso,
introduzidos pela moderna semiótica, pois os mesmos tem autoria, públicos e objetos
específicos, vozes polifônicas e devem ser analisados de múltiplas maneiras, diante de
diferentes paradigmas e disciplinas.
Porém, as pesquisas com fontes históricas nem sempre valorizaram tais “vozes
polifônicas”. Para Paulo Celso Micelli (1999) até o início do século XX a disciplina
“História” era elaborada a partir de relatos de “grandes fatos” em que personagens
históricos tornavam-se verdadeiros heróis do passado. Neste viés, eventos tornavam-se
magistrais e, a partir de sua documentação, “oficialmente verdadeiros”. Os fatos,
descritos a partir de um documento oficial era considerado de indubitável verdade, com
influências positivistas que tentavam mostrar os fatos, reconstruindo uma realidade tal
qual realmente aconteceu enaltecendo feitos heroicos e magistrais, o que se considera
ser uma “história dos vencedores”. Portanto, diante do historicismo positivista, a
história sempre será o registro dos reis, papas, generais e bispos, datas importantes e
nacionais, eventos históricos que causaram grandes rupturas.
26
“autoridade” em seus enunciados, considerando os pequenos geradores de classificação
e de percepção, próprios de cada grupo ou meio, incorporados sob a forma de categorias
mentais e de representações coletivas nas demarcações da organização social. Nos
estatutos da história cultural esta intenção de identificar como uma realidade social é
construída, pensada e descrita.
Para Pedro Paulo A. Funari (2010), apenas a partir da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) houve um questionamento em relação à homogeneidade social propalada
desde o fim do século XVII, quando os nascentes estudos sociais enfatizavam uma
coesão social, a luz de uma racionalidade positivistas, e as ciências humanas
procuravam entender a sociedade como um organismo coeso. As crises sociais eram
encaradas como anomalias nos estudos de Émile Durkheim (1858-1917). “A crise moral
e política dos anos sessenta estimulou vasta manifestação de busca de identidade social”
(KEE, p. 14) e os movimentos pelo direito das minorias (emancipação feminina, direitos
dos jovens, levantes contra a guerra do Vietnã) expuseram o “projeto de sociedade
monolítica (FUNARI, 2010, p.11) e evidenciaram um interesse pelas sociedades em
outras escalas e diversidades. Com a implosão dos antigos contextos que conferiam
homogeneidade às identidades, Funari (FUNARI, 2010, p. 13) lança um olhar
apontando para alguns aspectos metodológicos de importância na discussão do assunto:
27
Por isso, ainda segundo Funari (2010, p. 218), “as fontes escritas partem sempre
de um ponto de vista que reflete interesses de classe, de grupo, de ideologia, de modo
que são construções altamente subjetivas e enviesadas” e aborda a inserção de um
estudo da cultura material (no caso, arqueológica) para entrecruzar interesses e desta
maneira fornecer mais informações sobre o mundo em que viveu Jesus. Respondendo à
pergunta de “como a arqueologia [pode] interagir com temas ligados à fé e ás crenças?”
(2010, p. 225) O autor remete à “arqueologia bíblica” que inverteu o papel de “serva do
texto bíblico” para contribuir de maneira ativa para a compreensão do funcionamento
das redes da antiguidade e não tão somente legitimar as conclusões dos exegetas.
28
primitivo” e, de outro, seu horizonte contemporâneo, quando a religião cristã, em suas
várias vertentes, assume o posto de produtora sócio religiosa majoritária no mundo
ocidental. Conforme propõem Filoramo e Roda (1997, p. 7):
“Conclui-se pela necessidade de uma história por assim dizer comparada, isto é,
que inscreva em seu próprio código a tensão a comparar, continuamente o fluir
das instituições, das práticas e das crenças cristãs com as contemporâneas
instituições, práticas e crenças pagãs, a fim de evidenciar melhor, pela
comparação, continuidades e diferenças, empréstimos e especificidades”.
29
coadjuvantes em seu tempo, assumindo os lugares dentro de variados ambientes e em
diferentes comunidades de interpretação conforme sugere Sean Freyne (2008, p. 12).
Esse autor sustenta que a teoria de Theissen, sobre a “plausibilidade” permite pensar o
objeto e as narrativas conflituosas dentro de um quadro maior, em consonância com o
contexto cultural de seu tempo. O método de Thiessen se aproxima das considerações
de Wayne A. Meeks (1996) quanto ao estreitamento metodológico e com a definição de
que a religião é um “sistema cultural de sinais” formulado por Clifford Geertz (2008, p.
65-91).
30
canônicos sugerem pouca sistematização neste grupo inicial de discípulos, assim como
poucas as atividades que podem ser consideradas como institucionais neste conjunto
inicial. Realizam-se refeições e atividades cotidianas em conjunto, impondo-se somente
dois sacramentos, o batismo e a ceia, Já em um segundo momento seria interessante
recompor o cristianismo “pós pascal” em expansão, analisado em sua composição
básica: as redes familiares (judaicas, romanas e gregas que se convertiam) e o
surgimento destas igrejas domésticas na cidade. Diante da fértil atuação dos apóstolos
progressivamente estas congregações ganhavam um certo padrão e uma certa
homogeneidade teológica, isto é, eles se institucionalizavam. Esta já não era a situação
no século IV quando do surgimento de um cristianismo institucionalizado conforme o
modelo do império.
Theissen & Merz (2004, p. 21-33) destacam cinco fases na pesquisa sobre a vida
de Jesus: 1) “Os impulsos críticos para a questão do Jesus histórico” por H. S. Reimarus
(1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-1874). Reimarus foi pioneiro na
interpretação da literatura da “religião da razão”. Seu ponto de partida foi a premissa de
que a pregação de Jesus só pode ser compreendida dentro de seu contexto histórico.
Strauss, discípulo de F. C. Baus e F. W. Hegel, aplicou aos evangelhos o conceito de
mito. 2) A fase da pesquisa “liberal” sobre a vida de Jesus, cujo representante maior foi
Heinrich Julius Holtzmann (1822-1910). Holzmann evidenciou a crítica literária sobre
as fontes mais antigas sobre Jesus (O evangelho de Marcos e a fonte Q). 3) “o colapso
da pesquisa sobre a vida de Jesus”, na virada para o séc. XX, enfraqueceu-se o
liberalismo teológico; 4) “A nova ´pergunta´ pelo Jesus histórico”, desenvolvida dentre
os discípulos de Bultmann, quando “no lugar da reconstrução crítico literária das fontes
31
mais antigas na ‘antiga’ pesquisa da vida de Jesus da teologia liberal, entra em cena a
metodologia da comparação que emprega a história das religiões e a história da
tradição: ´o critério da diferença´” (p. 26); e por fim, a quinta fase 5) A third quest, temo
cunhado por T. Wright/S. Neil. Ainda Chevitarese & Funari (2012) mostram como
diversas escolas e movimentos tangenciaram as pesquisas acerca da figura de Jesus,
sobretudo com os influxos do movimento europeu que privilegiava o uso da razão, a
erudição e a ordenação da natureza para encontrar a verdade, dentro do espírito do
iluminismo.
Segundo Howard Clark Kee (1983) o tipo ideal weberiano profeta “ético” é o
tipo carismático mais apropriado para nossas intenções. Assim, para Weber este líder
encontra-se imbuído da convicção de uma vocação particular, e é confiante que suas
ações estão em harmonia com as do divino. “A potência de sua habilidade carismática
manifesta-se nos dons especiais que possui (como curar ou a capacidade de prever) e na
eficácia de sua pregação” (KEE, 1992, p.48)
32
tradicional. Weber auxilia a fundamentar a constante tensão presente no Novo
Testamento - em um polo o cristianismo de Jesus de Nazaré, caraterizado pela ruptura
com os dogmas reguladores e subversor dos sistemas; e por outro, segundo o autor, o
processo de rotinização deste carisma, quando a novidade efervescente tende a se
estabelecer e perde a vitalidade. Neste momento se estabelecem normas e rotinas, por
meio da “rotinização do carisma”. Para P. L. Berger e T. Luckmann (1973, p. 79): “A
instituição ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos
de atores. [...] qualquer uma dessas tipificações é uma instituição. O que deve ser
acentuado é a reciprocidade [entre os atores] das tipificações”.
Pouco se sabe sobre o Jesus da história e o que sabemos dele é por meio de
relatos “hagiográficos”. Porém o que conhecemos sobre a práxis cotidiana de Jesus
junto a sua comunidade de discípulos (“dos 12”)? Gunther Bornkamm (2005, p .100)
sustenta que os “evangelhos falam muito mais de suas pregações, de suas discussões
com os adversários, de suas curas e da ajuda que ele presta aos que sofrem [...] o povo
corre a ele, os discípulos seguem, mas também seus inimigos entram em ação e se
multiplicam”. Por conseguinte, é uma tarefa difícil estabelecer como de fato era o dia a
dia do rabi Jesus, uma vez que a tradição oral do conteúdo religioso tende a enaltecer
fatos cotidianos e privilegiar atos extraordinários. No entanto, podemos arriscar a
construção de certo cenário.
33
exercia certa responsabilidade 17 e tutela pessoal. Seus alunos-discípulos se
diferenciavam da relação entre os alunos dos rabinos, estes interessados em aprender da
Lei; os discípulos de Jesus o seguiam porque compreenderam que o Reino estava
próximo e assimilavam uma mensagem mais prática. Eles deixavam suas profissões e
famílias (Lc 9,59; Mc 1,16-20). Para Lohfunk (2001, p. 57), “Jesus exige, portanto, dos
seus discípulos a renúncia decidida à própria família [...] em vez de sua família e de
todas as ligações de sangue e amizade entra a comunhão de vida com Jesus”.
Neste grupo inicial estavam Maria, mãe de Jesus, os apóstolos Pedro, Tiago e
João, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago (filho de Alfeu), Simão (Zelote) e Judas
(filho de Tiago) e Matias substituto Judas, que se suicidou. Como dito acima, esta
agremiação inicial era reconhecida como os do “O Caminho”, ou o Grupos dos 12.
Estavam convencidos de que tinham uma mensagem que todo o Israel devia ouvir”.
Jerusalém era o centro da autoridade do judaísmo e a mensagem deveria ser difundida a
todos. Jesus levou uma vida itinerante junto a estes seguidores. Abrigavam e
alimentavam-se nas aldeias, em que permaneciam por pequenos prazos. Era
acompanhado, além dos doze Galileus, por um círculo de pessoas que o admiravam e
desejavam sua pregação e atos mágicos. Este seu nomadismo era recusado por alguns,
que, como dissemos, preferiam permanecer em suas cidadelas (aparentemente, após sua
morte, o estilo “nômade” ficou restrito aos apóstolos e profetas. (SKARSAUNE,145).
17
Verificando Mc 2.24 - “Vê! como fazem ele o que não é permitido fazer no sábado?”, percebemos que
“aos olhos de seus vigiais, é responsável por seus discípulos, assim como os doutores da lei são
responsáveis por seus alunos” para Lohfinkk, (2011, p. 57)
34
cerimoniais.
35
sociedade. Não indicou oficiais para exercerem autoridade sobre os membros de
tal organização. Credo algum prescreveu para ela. Nenhum código de regras lhe
fora imposto. Não prescreveu ordens ou formas de culto. [...]. Deixou a igreja
livre para escolher as formas de organização e de culto, afirmações de crença,
métodos e trabalho, etc.“
36
anterior.
O debate proposto por Stegemann & Stegemann (2004, p. 298) sobre o conceito
da ekklésia no protocristianismo, destaca duas tendências quanto ao seu significado. Em
primeiro lugar ekklésia é uma “reunião efetiva”. Neste conteúdo semântico, a
37
linguagem neotestamentária está vinculada ao sistema de linguagem comum judaica,
“não religiosa”, cujo significado é simplesmente uma “assembleia política dos cidadãos
com direito a voto (somente homens) de uma cidade”; tanto no conceito extra bíblico
pela comunidade judaica e pagã como na interpretação bíblica, ekklésia significa o ato
de “reunir-se”. Assim, ainda segundo os autores, as ekklésias na experiência social
“primitiva”, incluindo em outras regiões da Ásia menor e Grécia (onde circulavam as
cartas de Paulo), o vocábulo era entendido como sendo uma “reunião”. O segundo
conceito para ekklésia é o de “comunidade”. O conceito também pode designar pessoas
sob a verve de uma identidade, implicando um grupo com determinada pertença,
reunidas ou não. Portanto, para Stegemann & Stegemann (2004, p. 299-300) “[ekklésia]
sugere que a comunidade crente em Cristo pode ser entendida como um tipo de
comunidade doméstica ou família [...] predominante estabelecidas em ambiente citadino
que registrava uma comensalidade entre diferentes: judeus e gentios, entre os membros
judaicos e não judaicos”.
Meeks (1992, p. 121-122) também aponta para o fato de que nas epístolas
paulinas, comunidades específicas são traduzidas como “a assembleia na casa do
fulano”. Desta forma, outros grupos de ekklésias foram fundados em residências
particulares, como Aristóbulo e de Narciso (Romanos 16.10). Por sua vez, o livro de
Romanos, no novo testamento, nos capítulos 16 e14, apresenta uma lista extensa:
Assíncrito, Flegante, Hermes, Pátrobas e Hermas, Filólogo, Júlia, Nereu e sua irmã,
Cloé (1 Coríntios 1.11) e na casa de César (Filipenses 4.22). Algumas casas eram bem
amplas; e o conceito de família, como veremos adiante, incluía não só a família
consanguínea, mas também os escravos e funcionários em geral. A “célula básica” do
movimento cristão era as ekklésias do mundo grego-romano.
Além disso, como sustenta Meeks (1992, p. 122), em determinados encontros,
várias destas “assembleias” se serviam de uma só residência para realizar seus encontros
distritais (1Coríntios 16.15s; Romanos 16.23). As ekklésias ainda se reuniam a céu
aberto ou em salas alugadas (At 20.7, 19,9: scholé/schola). Seguramente poderia haver
diversas dessas ekklésias em cada cidade. Consequentemente, não é incomum encontrar
abordagens sore os cultos dos primeiros cristãos configurados a partir de Ekklésias,
reuniões predominantemente domésticas. Logo este formato tem raízes em seu
horizonte cultural. O culto doméstico não era um elemento diferenciador para os
38
cristãos originais, pois era muito comum a prática de devoção às outras divindades ao
redor do lar.
39
uma construção sócio histórica não como um produto “sagrado”. (KIPPENBERG,1988,
p. 14-29)
Feito este breve excurso sobre a categoria “família”, retornemos ao eixo
principal desta apresentação. Na família israelita a solidariedade familiar é bastante
forte, sendo do tipo patriarcal, pois o pai goza de toda autoridade. “O cabeça da família
era espelho do rei” (BRANICK,1994, p. 37). Aliás, era assim também na família
romana. Porém as famílias conectam-se às outras e todas juntas se ligam a uma
complexa rede de convertidos em cada cidade, formando uma rede de solidariedade que
compunha a “ekklésia da cidade”, unidade maior da “ekklésia” como vocábulo referente
à congregação de uma única casa.
Para Marie-Françoise Baslez (in Alain Corbin, 2009, p.29-34) a via associativa é
um fator marcante das sociedades do oriente romano na época apostólica. O
desenvolvimento familiar (ou do “oikos”, no grego) insere o núcleo doméstico em toda
sorte de redes de sociabilidade, formando redes de profissionais e de ajuda mútua, em
associações, grêmios e coletivos esportivos e culturais. As redes de convívio eram de
suma importância para a subsistência diária. Baslez (2009, p.30) nos informa que “a
maneira como os cristãos desenvolveram estruturas de ajuda mútua impressionou seus
contemporâneos, [...] dando ao cristianismo sua primeira visibilidade, na falta de
imagens e monumentos”. O núcleo germinal desta rede certamente era a comunidade
doméstica, ainda segundo, pois “os cristãos se organizavam [...] em pequenas
comunidades muito personalizadas. De seis, dez, doze indivíduos, estrutura que subsiste
na época [...] nos séculos II e III”.
Para Baslez (2009, p. 29) a missão paulina estava baseada nas casas e grupos
familiares. Para isso Baslez usa os seguintes termos:
“A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como
uma penetração por capilaridade, que utiliza todas as redes da cidade antiga,
funcionando esta última como uma imbricação de comunidades, da menor – que
é a família – à maior – que é a cidade. A célula-tronco da missão é a ´casa´, a
oikos, ao mesmo tempo comunidade familiar e comunidade de atividade,
exploração agrícola, fábrica ou loja. Ao contrário da família nuclear moderna, a
oikos antiga reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças,
escravos e líberos em grande número nas famílias de elite: sua composição
transcende as divisões da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e
mulheres, livres e não livres. Os cristãos de uma cidade se reúnem seja por
oikos, seja na residência mais espaçosa de um homem ilustre, que convida seus
40
vizinhos e amigos. Esta prática continuou durante dois séculos. Em Roma como
em Doura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos identificáveis no
tecido urbano, em meados do século II, resultam da reforma de grandes
residências: são ´casas-igrejas´”
41
Ora, as reuniões domésticas, mesmo sendo um expediente usado por judeus e
helenistas em muitos lugares, não sendo, portanto, uma exclusividade do cristianismo,
reforçava a atuação das redes sociais de solidariedade, “comunhão” e pertencimento de
forma muito intensa. Neste ponto, devemos reiterar a indagação: é possível comparar o
programa do cristianismo antigo, como suas redes compostas de igrejas familiares-
domésticas e o contexto atual dos grupos ditos “orgânicos” contemporâneos, levando
em consideração as transformações axiais dos sistemas sociais durante os últimos 20
séculos e a construção do conceito de família ocidental? Esta questão será debatida
posteriormente.
O corte das primeiras décadas, senão séculos, mediante o uso de da categoria
analítica “Cristianismo primitivo”, permite-nos observar que na constituição das
famílias, tanto a família israelita, quando a romana e a helênica, era comanda por
pessoas de gênero masculino. O homem era a cabeça do lar, tinha a primazia no espaço
doméstico e também na sociedade, excluindo-se, é claro, a situação dos homens que
estavam em escravidão
Podemos ainda focalizar essa visão acompanhado a argumentação de Carlos
Jeremias Klein (2007) no que tange ao chamado “Cristianismo primitivo”. Vejamos que
para Klein (2007, p.27-33); os capítulos 1º a 7º do livro de Atos trata da 1) comunidade
de Jerusalém, presidida por Pedro, neste contexto, as narrativas bíblicas relatam a morte
de Estevão (At 7). A seguir teria havido entre 4 e 43 e. c. Tiago, irmão de Jesus teria
sido morto este ao mando de Herodes. 2) Igrejas da Samaria e Galileia já no capítulo 9
de Atos (v, 31) há referência da existência de uma comunidade cristã em Samaria, sem
maiores detalhes; 3) Comunidade cristãs gentílicas – plantadas pela evangelização de
um etíope por Felipe (At 9-10); 3) Igrejas da Missão Paulina – sobre esta missão temos
como fonte o livro de Atos. Somam-se três “viagens missionárias” de Paulo, para
expandir o “Reino de Deus”, se afirmando apóstolo entre os gentis. Na primeira viagem
organiza comunidade cristãs em Chipre, Perga, Antioquia da Psídia, Icônico, Derbe e
Listra (At 13-14), neste momento Paulo é acompanhado por Barnabé. Em sua segunda
viagem, na companhia de Silas, visitando outros centros importantes e na terceira
empreitada: Filipos, Éfeso, Atenas e Corinto. 4) a missão palestinense; que deu origem
as comunidades do Egito e aramaicas e por fim 5) a missão petrina; liga-se a expansão
da igreja nas regiões de Bitínia, da Capadócia e da Galácia.
Podemos também recorrer a alguns casos específicos salientados por Branik
(1994, p. 58-97) no estudo já citado de colaboradores diretos e indiretos de Paulo, em
42
cujo lares se reuniam ekklésias regularmente. De Éfeso, Paulo saúda, em carta, Aquila e
Pricila (ou Prisca) sediados na cidade de Corinto “enviam-vos efusivas saudações no
Senhor Áquila e Priscila com a igreja que se reúne na casa deles” (1Coríntios 16,19),
anos mais tarde o casal se encontra em Roma e mais uma vez recebe o amparo do
apóstolo “saudai Priscila e Áquila [...] e também a Igreja que se reúne da casa deles”
(Romanos 16,35). O casal seria, mais tarde, responsável pela organização de uma
comunidade em Éfeso (1Coríntios 16,19) e também Roma (Romanos 16,3). A casa
deles é descrita por Apolo como local de ensinamento cristão (At 18,26). Filemon e
Ápia também são citados como hospedeiros de um grupo de irmãos e irmãs (“a igreja
que está em sua casa” – Fl 2). Na lista aparece Tício Justo, “um temente ao Senhor” (At
18,7), que receberá Paulo após a estadia na casa de Prisca. Crispo, um líder na sinagoga
é outro que abraça a mensagem de Paulo com toda sua família (At 18,8). Já Acaia,
primeiro batizado por Paulo na cidade de Corinto, é responsável pela conversão de
Estéfanas e sua família (1Co 1,16). Entre outros muitos exemplos (Gaio, Erasto, Febe,
Andrônico e Junia. Finalmente citamos Ninfas, que é saudada na carta aos Colossenses:
“[...] saudações são os [...] exemplos nos quais Paulo fala explicitamente sobre igrejas
domésticas: assembleias de cristãos que eram formadas dentro e ao redor de famílias
particulares”
Para Branick (1994), Paulo elegeu como metodologia evangelizadora a escolha
de famílias proeminentes e entusiastas à mensagem do evangelho para criar sua base
operacional nas grandes cidades. Seu método inicial era recorrer à evangelização nas
Sinagogas, mas vemos que este programa teve pouco sucesso. Por isso, em um segundo
momento, Paulo recorria às famílias de Israel, já aclimatadas as mensagens messiânicas.
18
Talvez Lídia (Atos 16:14) seja uma exceção. Poderia esta personagem encabeçar um grupo doméstico.
43
As redes centralizadas nas famílias eram fundamentais para o sucesso das
viagens de Paulo. Pois o apóstolo dependia da boa acolhida generosa como ponto chave
para sua missão caracterizada pela mobilidade e ousadia. A hospitalidade garantia a
Paulo não só um apoio material, mas um sinal afetivo que sua mensagem era
compartilhada para aqueles que o recebiam. “A família era a base de operações. A
chave para a missão era ser aceito por uma família [...] A igreja doméstica funcionava,
portanto, como núcleo da comunidade cristã” (Branick,1994, p. 18-19). O cabeça do lar
assegurava segurança espiritual e era autoridade para aquele grupo. Ao receber Paulo e
Silas, Jasão responsabilizou-se pela fiança deles e teve problemas por recebe-los (At
17,6-9). A supremacia da figura masculina com autoridade da Pater Família é muito
importante para entendermos os períodos posteriores, quando a igreja é desvinculada do
espaço doméstico e os líderes vindouros levaram a figura de “Pais” (p.e. “Pais da
Igreja”). (Branik,1994, p. 20)
Por outro lado há alguns cuidados que devem ser tomados quando traduzimos os
termos do vocabulário de Paulo relativo à família. Os temos oikos, oikia, traduzidos
como “casa, lar, família”, dependia da recepção à cultura à qual ele se reportava.
“Considerando as raízes helênicas ou judaicas, o conceito de oikos é consideravelmente
mais abrangente do que nosso conceito de família” (Branick,1994, p. 36). Então qual
seria o conceito a que Paulo se referia? Além da família imediata, temos que considerar
nesta compreensão de “família” também os agregados: parentes independentes,
escravos, trabalhadores contratados, inquilinos, entre outros. “Cícero define domus ou
família através de um relacionamento de dependência, não de parentesco [grifo meu].
De fato a família era constituída pelas relações recíprocas de proteção e subordinação”.
A partir do século II já encontramos maior sistematização dos grupos cristãos; e
também o surgimento dos primeiros locais destinados exclusivamente para o culto
cristão.
Portanto pudemos notar como era o contexto das famílias e suas redes nos
entornos do cristianismo das origens e a centralidade dela no processo de expansão do
cristianismo, pelo grau e sistemas de parentesco que engendravam um profundo grau de
convívio entre os pares religiosos; logo potencializava a transmissão religiosa
intradoméstica, sendo que a igreja, à época, formava-se ao redor de redes de cristãos,
que por sua vez reuniam-se em casas, ou em casas expandidas.
44
1.3.4 - Conflitos na Igreja “primitiva”
Os primeiro discípulos e apóstolos são as figuras principais que atuam nas redes
de igrejas familiares que iremos aqui discutir. Desprivilegiados da presença do líder,
nutrem-se pela força herdada através do convívio com Jesus e a presença de seu
“Espírito encorajador”. Alain Corbim (2009, p. 18-19), em um trecho de sua obra,
colabora para compreendermos este período nascente: “Jesus não é o fundador do
cristianismo como religião independente. [De seus discípulos surge] [...] um movimento
de origens proféticas”.
Porém, não são grandezas equivalentes o grupo de discípulos de Jesus no âmbito
de seu tempo e as comunidades de origem judaica na Palestina, originadas pela
pregação de seus discípulos imediatos, como Tiago, Pedro e Paulo. Em um ambiente
anterior, Jesus é um pregador-itinerante e taumaturgo que, insurgente ao sistema
religioso-político de sua época é julgado, condenado e morto. Por conseguinte, temos
um novo tempo, “pós-pascoal”; sem a presença do messias emerge o novo desafio em
expandir a mensagem de Cristo: “Ide por todo mundo e pregai o evangelho”, epilogo
encontrado no livro de Marcos como característica universal da fé cristã, logo é preciso
propagar a “todas as nações”.
Para Philippe Tourault (1996, p. 27), após a morte de Jesus, as igrejas primitivas
atravessaram por momentos difíceis em sua relação com a sociedade tanto quanto na
relação dos próprios cristãos. Os embates iniciais, ao redor do anúncio do redentor
como substituição à velha aliança custou a vida de Estevão, o primeiro mártir da Igreja
Cristã. O apedrejamento, denunciado no texto de Lucas (Atos 7) e a morte de Tiago, o
Maior, irmão de João, a partir de uma solicitação de Agripa I, revela como a
comunidade não cristã interagia os “do caminho”. Diversas suspeitas recaiam sobre os
primeiros discípulos. As acusações eram diversas, podemos destacar as relacionadas ao
canibalismo (afirmavam “comer o corpo de Cristo”) e da prática do incesto (por se
tratarem mutuamente como “irmãos” e “irmãs”).
A “Igreja primitiva” já enfrentava resistência das autoridades nacionais desde
seu nascimento. Como exemplo, vejamos uma narrativa de resistência ao conteúdo da
pregação, em Atos capítulo 5. O sinédrio decidiu prender os 12, pois pregavam a
ressureição de Cristo no próprio monte do Templo “a montanha do senhor” (At. 3.11-
26; 5.12,21-26,42), doutrina estranha aos sistemas judaicos. Porém, sem maiores
45
acusações e com a familiaridade e apego dos apóstolos as tradições antigas, não houve
como mantê-los encarcerados.
Os conflitos no templo foram os primeiros enfrentamentos políticos que
marcaram a impetuosidade da Igreja primitiva em Jerusalém. As autoridades locais
resistiam a ideia de permitirem que pescadores Galileus, crentes na ressureição de Jesus,
pregassem no “Monte do Senhor”. Esta resistência vinha dos principais sacerdotes
Saduceus, que negavam a ressurreição dos mortos (Mt. 22.23-33;At. 23.6-9).
É essencial a afirmação acima, pois esta impetuosidade define a vibrante
segunda onda no decorrer da história dos primórdios do cristianismo, a Era Apostólica.
Podemos, logo de início, dispensar a ideia que este agrupamento é pacífico e
harmonioso, logo um “comunismo” celestial. Na próxima seção discutiremos com mais
atenção a premissa que elege o cristianismo original como um tipo ideal atemporal para
todos os demais cristianismos, porque, supostamente em seu interior, não haveria
conflitos agudos. Exige cautela do pesquisador a leitura social do capítulo 4 do livro de
Atos, em especial, dos versículos 32 ao 35:
“Da multidão dos que criam, era um só o coração e uma só a alma, e ninguém
dizia que coisa alguma das que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes
eram comuns. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da
ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois não
havia entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam terras ou
casas, vendendo-as, traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés
dos apóstolos. E se repartia a qualquer um que tivesse necessidade”. (Atos 4, 32-
35, versão João Ferreira de Almeida)
46
Atos às cartas de Paulo, nos são reveladas situações de divergências profundas,
antagonismos, que complementam o relato de Lucas (Drane, 1985, p. 58).
Dito de outra forma, ao contrário do que poderíamos esperar dos indivíduos
convertidos do paganismo, as epístolas de Paulo nos revelam um povo que estava longe
de ser perfeito. Atentemos para a citação de Howard Clark Kee (1983, p.80) elucidando
as disputas e divergências no seio desta “Igreja primitiva”: “a pintura idealizada de uma
comunidade unificada da aliança não corresponde, infelizmente, de todo à situação
empírica do cristianismo das origens. Tensões e conflitos emergem das cartas de
Paulo”.
47
congregação. O apóstolo precisa emitir sua autoridade apostólica, “emitindo regras
sobre a imagem pública da igreja [...], baseado na submissão aos superiores [..] evitar
conflitos com as autoridades civis, bem com a cuidadosa administração financeira”
(Kee:1983, p. 82) para balizar as comunidades das influências dos extáticos.
Para Kee (1983, p. 82), este é outro ponto conflitante: a efusão dos dons
carismáticos nas comunidades originais. “Paulo acha que estes dons são problemáticos
ou até mesmo embaraçosos”, afirma o pesquisador. A prerrogativa de Paulo em 1Co
14,20-33, “Deus não é Deus da desordem mas de paz”, iluminam o desejo do apóstolo
para que os dons carismáticos devam ser administrados de maneira ordeira; e ainda
salienta que o exercício de alguns deles é um culto ao ego (1Co 14,4). Paulo ainda
“cutuca” seus leitores, afirmando que não haveria muitos sábios na igreja estabelecida
em Corinto (1Co 1,26), e também muitos “nobres e poderosos”, Thiessen sugeri que
“eles constituíam uma minoria dominante” (Thiessen apud Kee,1983, p. 83). Apesar da
igreja inicial contemplar em sua “membresia” uma diversidade étnica (não sem os
conflitos supracitados), o que nos aparenta, segundo a apreciação de Thiessen, que os
mais abastados poderiam incitar também uma estratificação socioeconômica.
Longe de configurarem uma “unidade”, o cristianismo foi progressivamente
convergindo para uma das “grandes religiões”. Tomou forma ao longo dos séculos II e
III, e se dá através da formação de estatutos que qualificavam o que eram as heresias e
dogmas, expulsando às margens outras vertentes como os judaizantes (basilidianos,
ebionitas, elcasaítas, etc.), os gnosticizantes (basilidianos, valentianos, etc.), marcionitas
(seguidores de Marcião), e Montanistas (Montano), etc. Depois de vinte anos ou menos
após a crucificação, a maioria dos centros importantes em torno do mediterrâneo já
comportavam um grupo de seguidores de Jesus. Os textos bíblicos demonstram a
existência de cristãos em Roma, Corinto, Éfeso, Filipos, Antioquia, entre outros. O
império romano foi cristianizado em três séculos.
Portanto, as controvérsias iniciais, sobretudo no interior das comunidades sob a
tutela de Paulo fundamentam brevemente a ruptura com o ensejo universal em
classificar o “Cristianismo primitivo” como uma “Shangri-lá”.
48
1.4 - O início de uma igreja segundo o modelo imperial
19
Lembrando as letras gregas chi (x) e rho (p), a duas primeiras letras da palavra Christos.
49
Maxêncio, a partir dos sinais e dos sonhos premonitórios, havia um clima favorável para
a unificação do império caso de sua adesão ao cristianismo.
20
Verificar anexo II
50
motivo de punição. Em 392, os imperadores Teodósio, Arcádio e Honório proíbem
todas as práticas pagãs. (KLEIN:2007, p. 79-81).
51
CAPÍTULO II
“IGREJA ORGÂNICA”: TEORIA E TÉCNICA
52
“convencional” na Europa e América do Norte no século XX, tal como analisaremos
adiante, na literatura selecionada.
21
Portanto não nos surpreende quando uma Igreja Batista histórica – a Igreja Batista Água Branca (SP) -
afirma-se uma “uma comunidade que deseja ser uma igreja para quem não gosta de igreja e para pessoas
de quem quando uma igreja não gosta.” <http://ibab.com.br/blog/post/esse-sonho-tambem-e-meu/>.
Acessado em 10/10/2013. Ou a ramificação musical de uma denominação conhecida produz um CD para
“para inspirar momentos de adoração em grupos pequenos e reuniões nos lares”
<http://www.loja.vineyardmusic.com.br/comprar-cd-adorando-em-casa-vol-1-quebrantado>. Acessado
em 10/10/2013.
53
(DYCK,2010), para citar apenas alguns exemplos. Algumas dessas publicações tem por
função orientar cristãos “desviados” para que retornem ao convívio de uma igreja local,
outras, pelo contrário, criticam o cristianismo institucionalizado.
Outro ponto que vale ressaltar é que a “Igreja Orgânica” não é uma “Igreja em
Células”. Estas ainda mantêm vínculos com uma igreja sede que exerce domínio e
controle sobre o grupo. A “Igreja em Células”, apesar de valorizar os relacionamentos e
também criticar severamente a instituições, mantém em sua dinâmica interna uma série
de processos de treinamentos, sistematizações formais de liderança
(NEIGHBOUR:2001). A IO também não é uma reunião católica conhecida por novena.
Talvez uma boa comparação seja a comunidade eclesial de base, as famosas CEBs, da
Igreja Católica Romana, que praticava reflexão bíblica dentro de uma hermenêutica
popular.
No que tange à temática desta pesquisa, não foram encontrados temas similares
nos diretórios e bancos de dados de teses e dissertações da Capes que tomasse como
objetivo de pesquisa nossas duas linhas que se entrecruzam para atingir nosso objetivo
principal, a “igreja orgânica” e o “Caminho da Graça”. Ponderamos que a realidade da
“Igreja Orgânica” no Brasil ainda é desconhecida, não havendo reflexões acadêmicas
sobre uma de suas expressões o “Caminho da Graça” apesar da proeminência midiática
de seu líder, Caio Fábio D´Araújo Filho, particularmente nos anos de 1980 e 1990. Mas
será que o fenômeno “igreja orgânica” existe no Brasil? Se sim, qual é seu impacto
sobre a expressões tradicionais de fé neste país? De que forma podemos classificar um
grupo orgânico?
54
Nos EUA e Europa, pesquisadores já têm tentado registrar academicamente tal
movimento há mais de duas décadas, principalmente entre organizações confessionais e
missionárias. Seminários e centros de pesquisa da religião já registram estudos sobre o
tema. A tese defendida no Fuller Theological Seminary por Jares James Looney, City
harvest: a study os organic church planting in a global city, no Insituto de Estudos
Interculturais, é um exemplo. No entanto, as análises têm um tom de catequese, ou da
tentativa elucidar sociologicamente o fenômeno a fim de captura-lo para fins
estratégicos e missionários.
Não é à toa que cada comunidade local recebe o nome de “Estação da Graça”.
Perfaz, portanto, dezenas de pequenas destas “Estações da Graça” o movimento
“Caminho da Graça” em todos os estados do Brasil. Batiza-las de “Estações” implica
em admitir a livre circulação de fiéis em seu interior, sem obrigatoriedade de
permanecer, a metáfora é de uma estação de trem, onde os passageiros vão e vem,
formando um organismo vivo e pulsante 22.
22
Verificaremos estes fatos no próximo capítulo.
55
perspectiva dos estudos de Hervieu-Léger (2008, p. 57) em sua obra de referência O
Peregrino e o convertido - Religião em movimento, quando afirma:
“Não faço mais parte, definitivamente, nem em número, nem em gênero e nem
em grau, do importado movimento ´GOSPEL´! [...] O termo ´Gospel´ tem uma
conotação mercadológica baseada na fama, na grana e na idolatria de artistas,
bandas, gravadoras, formatos musicais, mensagens positivistas, entre outras
distorções que variam conforme a conveniência dos tempos e dos ´bolsos´ dos
brasileiros, cristãos ou não! Só quero, assim como qualquer músico que busca a
excelência, fazer o melhor que posso com aquilo que tenho, de forma honesta e
verdadeira, dormir com a consciência tranquila de que cumpro a missão que
23
“Tempo de partir”. <http://www.ricardogondim.com.br/estudos/tempo-de-partir/>.
Acessado em 10/10/2013.
24
“Ed. René Kivitz – Está insuportável (desabafo de Caio Fábio)”
<https://www.youtube.com/watch?v=T_Pp8MoMZRQ#t=368>. Acessado em 10/10/2013
25
“Ed René Kivitz - Não quero mais ser evangélico (desabafo de Ariovaldo Ramos) “.
<https://www.youtube.com/watch?v=KHmXXWLQSIo>. Acessado em 10/10/2013.
56
Deus me deu (de cantar sempre a Verdade!) e agradecer todos os dias a Ele por
aqueles que me deixam fazer parte de seus ouvidos e de suas existências!”. 26
26
Perfil pessoal de João Alexandre no Facebook.
<https://www.facebook.com/joao.alexandre.102?fref=ts>. Acessado em 03/03/2014.
27
<http://estrangeira.wordpress.com/retrospectiva-do-evangelho-puro-e-simples/>. Acessado em
10/08/2013.
28
deus do dinheiro ou da ganância, segundo a cosmologia da bíblica.
29
http://estrangeira.wordpress.com/2009/10/11/como-fazer-as-camisetas-para-a-marcha-para-gezuiz/.
Acessado em 09/11/2013.
30
O livro da jornalista Marília César (2009), Feridos em nome de Deus, revela bem esta questão. Eis um
depoimento encontrado no site de venda do livro: “"Este livro é um perfeito Raio-X da igreja brasileira, e
do mal que o movimento pentecostal trouxe ao evangelicalismo (falo com propriedade pois nasci e vivi
durante 28 dentro da Assembleia de Deus). Também sofri com abusos dentro da igreja, o que me fez
desistir do sistema religioso, mas não de Deus. A abordagem da autora é bem sincera a uma realidade que
muitas vezes tem sido ignorada pela liderança eclesiástica dos dias atuais, até mesmo pelo fato de as
lideranças serem as maiores culpadas pelos abusos. Parabéns pela coragem de expor a ferida da igreja!"”.
< http://www.mundocristao.com.br/produtosdet.asp?cod_produto=10660> . Acessado em 10/09/2013.
57
movimentos dentro do campo religioso brasileiro. Para onde “escapam” os
descontentes?
31
"Aborto. Assunto sério, virou um "samba do teólogo doido". Entrevista especial com Gedeon Freire de
Alencar". <www.ihu.unisinos.br/entrevistas/37253-aborto-assunto-serio-virou-um-samba-do-teologo-
doido-entrevista-especial-com-gedeon-freire-de-alencar>. Acessado em 02/02/2013.
58
dentro de todo o campo neopentecostal. A igreja Universal do Reino de Deus tem seu
público flutuante, que usufrui de seus serviços, como “Fogueira Santa”, “Love School”
etc, conforme a pauta e necessidade do dia. Inversamente a maioria das Igrejas
Históricas e Pentecostais, que supostamente proporcionam um grau de coesão “forte”
entre seus membros, através de sistema de filiação formal, este “efeito IURD” seria a
normatização da rotatividade dos frequentadores neopentecostais em suas “igrejas
clones” (Campos:2012). Conforme a hipótese, grande parte dos “não determinados” são
frequentadores esporádicos de igrejas, que estabelecem “vínculos fracos” e calibram
suas necessidades espirituais ao longo de várias denominações, de acordo com a
demanda do dia (financeira, cura, ensino, agradecimento). Circular pelo mercado de
bens religioso, em diversas denominações, sem contudo, comprometer-se com nenhuma
delas. Desta forma, tais crentes “passeadores” (Hervieu-Léger), quando abordados pelo
agente do Censo do IBGE, acabam se auto declarando não pertencente à nenhuma
denominação específica.
32
Para Almeida & Monteiro (2001) o “trânsito religioso” é: “Esse macro-processo de contínua síntese e
diferenciação é o fenômeno que aqui nos interessa descrever. A literatura especializada convencionou
denominá-lo, por economia, de trânsito religioso. Esta noção aponta, pelo menos, para um duplo
movimento: em primeiro lugar, para a circulação de pessoas pelas diversas instituições religiosas, descrita
pelas análises sociológicas e demográficas; em segundo lugar, para a metamorfose das práticas e crenças
relaboradas nesse processo de justaposições, no tempo e no espaço, de diversas pertenças religiosas,
objeto preferencial dos estudos antropológicos.”
59
afirmam que: “ocorreu também a multiplicação das alternativas religiosas, encontrando
sua expressão máxima entre os evangélicos, cuja fragmentação institucional é estrutural
ao seu próprio movimento de expansão. Nesse processo sempre renovado de divisão por
"cissiparidade", as denominações continuamente dão origem a novos grupos”. Passados
13 anos da publicação da reconhecida pesquisa sobre “O trânsito religioso no Brasil”,
Almeida e Rogério Barbosa (2014, p. 311-327) retorna à questão da fragmentação,
reforçando a hipótese de desafeição institucional, assim como a inclinação de cada vez
maior à atomização das experiências religiosas protestantes:
Para Marcelo Camurça (2006, p.45), “A partir dos anos 90 pode-se constatar que
as pesquisas quantitativas ganharam definitivamente um lugar nas Ciências Sociais que
60
se ocupam do fenômeno religioso no Brasil”. As ciências humanas encontraram nos
dados estatísticos, uma forma mais apurada de analisar a sociedade. Desta forma a
pesquisa na Sociologia e Antropologia da religião ganharam novas perspectivas
metodológicas complementares aliadas as pesquisas de campo.
Para Almeida 33, a relação analítica entre dados censitários aliado à observação
etnográfica ajuda a “compreender o sistema religioso na escala da metrópole”. Desta
forma, a sobreposição de escalas quantitativas e qualitativas e etnográficas favorece a
qualidade da análise porque “mesmo se fosse possível realizar etnografias da cidade
inteira, seria difícil ter uma visão global do problema [...] Todo método é insuficiente”.
Acerca do arsenal das ciências humanas, o antropólogo ainda afirma: “A combinação de
vários deles, no entanto, é uma forma de suprir suas limitações e aproximar-se de uma
completude”. 34
61
disso, podemos sugerir várias hipóteses para o monumental recrudescimento dos
declarados “Sem vínculos” e “Não determinados”. Elas aparecem em várias análises
têm surgindo de reconhecidos pesquisadores a partir dos dados do censo 2010
(TEIXEIRA & MENEZES,2013).
62
estão ilesos à tribulação das agências geradoras de autoridade no mundo moderno,
plural e (dito) secularizado.
O Censo pretende ser “um retrato de corpo inteiro do país com o perfil da
população e as características de seus domicílios, ou seja, ele nos diz como somos, onde
estamos e como vivemos”. Na categoria religião, esbarramos com uma série de
subjetividades sobre as quais o Censo auxilia a identificar, de fato, certas tendências. No
entanto, as publicações censitárias são insuficientes para compreender fenômenos
complexos ou subjetivos, como no caso dos “Evangélicos Sem Vínculos” ou os “Sem
Religião”. Estes exprimem uma sociedade que sustém os direitos de livre manifestação
de fé e liberdade de escolha religiosa. Certas questões de expressão do divino não são
capturadas pelos surveys religiosos.
63
emaranhado de opções ministeriais”. Em pesquisa realizada junto a 270 igrejas
brasileiras, Muzio sugere os principais formatos acolhidos pelas igrejas brasileiras, por
ele denominados “Novos Modelos Eclesiais”. Alguns deles são modelos de gestão
empresarial adaptados aos contextos eclesiais. Muzio enumera seis deles: A “Igreja em
Células”; “Igreja com propósitos”; “Rede Ministerial”; “DNI - Desenvolvimento
Natural da Igreja”; “Igrejas Emergentes”; e, por fim, as “Igrejas nos Lares”.
Para Muzio, o modelo das “Igrejas nos lares” figura entre os mais acolhidos nas
experiências religiosas dentro do campo protestante, mas salienta que uma igreja na
casa pode ser um estado embrionário de uma igreja local tradicional e não
necessariamente uma “Igreja Orgânica”. Sobre este ponto Muzio (2010, p. 154-157)
ainda afirma que “Uma grande parte das 200 mil igrejas brasileiras não foi plantada com
estratégias elaboradas [...] ao contrário, a abertura de milhares de congregações ´fundo
de quintal´ [...] da periferia urbana e cidades do interior foi realizada por gente simples”.
Com essas palavras, Muzio ilumina a simpatia já intrínseca no espirito do
protestantismo brasileiro às reuniões domésticas, sobretudo no seio do pentecostalismo,
quando um evangelista não remunerado e formado “no forno” da ação prática atua na
periferia dos grandes centros, sobretudo em residências e “puxadinhos” adaptados para
os cultos pentecostais. Muzio então conclui que este modelo é o de menor custo e
“promove uma forte comunhão a partir dos relacionamentos comunitários e familiares”,
além de evidenciar o crescimento das reuniões que não contam com templos e oficiais
religiosos em diversas regiões da Ásia e no continente Africano, pela “sua
informalidade, liberdade, ausência de estruturas, simplicidade, baixo custo financeiro e
o uso de liderança informal e leiga”. A estes pontos ele acrescenta que não pode deixar
de notar que estas estruturas sócio-religiosas acumulam forte tendência a dissidências e
ao surgimento de novas denominações, pelos laços frouxos e pela falta de formalização
da institucionalização de seus membros.
64
suas mídias sociais. Em uma segunda fase, a análise nos fornecera elementos empíricos
para a construção de ‘tipos ideais’ de indivíduos que se declaram afins às “Igrejas
Orgânicas”.
37
Um delas foi o grupo "Igrejas Orgânicas / Organic Churches", com cerca de 1.700 membro.
<https://www.facebook.com/groups/1464550993778819/?fref=ts>. Acessado em 07/07/2014.
38
<http://frankviola.org/about/>. Acessado em 10/10/2013. Tradução livre do autor.
39
Sua crítica se concentra no universo protestante, segundo a nota de rodapé 7, de sua publicação
“Cristianismo Pagão” (2005). “Este livro enfoca as práticas cristãs protestantes. Seu alcance principal é “a
igreja hoje” do Protestantismo em vez da “alta igreja” como as denominações Anglicanas, Episcopais, e
um tipo de Luteranos. O livro abrange as práticas da “alta Igreja” Católica apenas de passagem.”
65
Pagan Christianity?: Exploring the Roots of Our Church Practices (2005), traduzido no
Brasil como Cristianismo Pagão (VIOLA, BARNA:2008), escrito em parceria com
George Barna. A missão de vida de Viola é “ajudar os seguidores de Jesus a conhecer o
seu Senhor com mais intensidade e ganhar novas perspectivas sobre temas antigos ou
ignorados” 40
“A maioria dos cristãos sabe que algo está errado com o cristianismo
contemporâneo. Eles querem se libertar da tirania do status quo. As duas
alternativas que dominam a cultura cristã, hoje, é a complacência espiritual, de
um lado e a religiosidade baseada no desempenho do outro. O cristianismo
moderno tem 10 milhas de largura e uma polegada de profundidade” 41.
40
Idem;
41
Idem
42
É preciso ressaltar que as últimas publicações do autor dizem respeito a “vida devocional”.
66
pensadores ligados à “Igreja Emergente” e a “Igreja Missional”. 43 Também adicionam-
se centenas de posts e podscast em seu blog 44.
Após sua conversão, Viola optou por não frequentar um seminário. Formou-se
em Psicologia na University of South Florida. Apesar de seu autodidatismo, é autor
reverenciado por muitas personalidades do meio teológico. Sua formação autodidata
teológica foi realizada através de estudos particulares, mentorias e sob a influência da
literatura de intelectuais cristãos como A.W. Tozer, Charles Spurgeon, G. Campbell
Morgan, Watchman Nee e sua principal influência, o teólogo Theodore Austin-Sparks
(1888-1971) 45.
Viola afirma que frequentou igrejas e organizações eclesiásticas por trinta anos
antes de tomar “a decisão de deixar a igreja institucional” (VIOLA,2008, p. 09), em
1988. Seu descontentamento em relação ao “sistema religioso institucional” é
parcialmente expresso em um trecho da publicação eletrônica “Reimaginando a igreja -
43
O Portal norte americano Patheos <http://www.patheos.com>, desde sua fundação, em 2008, tem se
tornado uma importante mídia acerca da religiosidade e espiritualidade mundiais. De linha ecumênica,
sem vínculo à nenhuma religião particular. Diversos autores “de margem”, relacionados a Igreja
Emergente, ao Cristianismo progressista, Teologia Queer, entre outros, hospedam suas páginas
particulares neste Portal.
44
De sua autoria encontramos as publicações em inglês: Living by the Indwelling Life of Christ (2014),
When the Pages Are Blank: How to Bring the Bible Back to Life (2013),When the Pages Are Blank: How
to Bring the Bible Back to Life (2013), Rethink the will of god (2013), Straight talk to pastor (2013),
God's Favorite Place on Earth (2013), Pagan Christianity?: Exploring the Roots of Our Church (2012),
Beyond Evangelical (2012), Jesus: A Theography Hardcover (2012) by Leonard Sweet, Revise Us Again:
Living from a Renewed Christian (2011), Jesus Manifesto: Restoring the Supremacy and Sovereignty of
Jesus Christ (2010), Finding Organic Church: A Comprehensive Guide to Starting and Sustaining
Authentic Christian Communities (2009), From Eternity to Here: Rediscovering the Ageless Purpose of
God (2009), Reimagining Church: Pursuing the Dream of Organic Christianity (2008), The Untold Story
of the New Testament Church: An Extraordinary Guide to Understanding the New Testament (2005),
Consta em seu site pessoal 100 podcast (programas para se ouvir em IPod) com duração de 30 minutos
cada, com cerca de 900 mil audições.
44
Em português temos “Cristianismo Pagão?” (2009), “da eternidade até aqui”, “Reimaginando a igreja
45
<http://frankviola.org/2014/05/28/heroes/> Acessado em 02/08/2014.
67
para quem busca mais do que simplesmente um grupo religiosos” 46. Em primeiro lugar,
não encontrava satisfação nos “cultos dominicais” onde se sentia “dolorosamente
entediado”. Além disso, não via crescimento substancial nos frequentadores dos cultos
religiosos.
Em seus escritos, Viola não deixa dúvidas quanto a seu descontentamento com o
“cristianismo institucional”. Para ele cristianismo estaria na mesma linhagem que o
paganismo e, além deste fato, sofreu diversas “influências humanas”. Em segundo ele,
Após sua dissidência, aos 24 anos, Viola iniciou um grupo de estudos bíblicos
na cidade de Brandon. O encontro, voltado aos jovens universitários daquela cidade,
logo cresceu com a adesão daqueles que se simpatizavam com sua mensagem. Nesta
primeira experimentação como comunidade informal, relata que ali não havia liturgia,
não havia clero, que escreviam suas próprias canções. Este grupo inicial chegou a
alcançar cerca de 50 estudantes. Porém, em meados dos anos de 1990, ele mudou seu
foco, de “grupo doméstico” para o conceito de “Igrejas orgânicas”. Desta forma, além
de convocar cristãos a participarem de seus estudos, Viola também tinha o objetivo de
treiná-los para que pudessem liderar outras igrejas orgânicas autônomas, porém sem um
vínculo hierárquico centralizada em sua pessoa ou neste grupo inicial.
46
O título original, em inglês não possui o sub título dado pela editora brasileira. O nome original é:
“Reimagining the church” (2008)
47
Blog pessoal do Autor. <http://www.patheos.com/blogs/frankviola/frankviolabrandon/>.
68
“Eu já não estava satisfeito com a assistir a performance. Nesta reunião
orgânica, comecei a querer partilhar com os meus irmãos e irmãs que eu
tinha visto do Senhor. Em vez de ser passivo, agora eu pensei que era
fácil de funcionar e contribuir. Cada uma de nossas reuniões era livre
para ser diferente. Às vezes a gente cantava por horas. Às vezes, os
crentes estavam a rebentar pelas costuras de compartilhar o que Jesus
tinha feito em suas vidas naquela semana. Às vezes a gente reverenciado
grandiosidade do Senhor em silêncio. Ninguém tinha a dizer-nos para
fazer essas coisas. O Espírito estava se movendo dessa maneira e eles
simplesmente aconteceu espontaneamente. Muitas vezes comemos juntos
como uma família. Às vezes nós compartilhamos escrituras com o outro.
Outras vezes, promulgada cenas e histórias da Bíblia que lançar luz sobre
Cristo. Nós nos encontramos por toda a semana. No período da manhã,
os irmãos iria encontrar um outro irmão ou dois, e as irmãs se reuniam
com as irmãs. E gostaríamos de buscar o Senhor em oração e contemplar
as Escrituras juntos. Gostaríamos de começar o nosso dia com Cristo. À
noite, alguns dos membros abriria suas casas e compartilhar Cristo
durante o jantar. Tivemos irmãos e irmãs reuniões onde iríamos decidir
coletivamente sobre questões relacionadas com a igreja. E gostaríamos
de compartilhar responsabilidades para cuidar uns dos outros. Se não
houvesse necessidades prementes, teríamos apenas cantar ao Senhor e
buscar Sua presença junto. Se houvesse um membro em necessidade,
poderíamos pensar em maneiras de ajudá-los. Às vezes nós apenas
planejar meios de ajudar uns aos outros para se divertir. Às vezes, as
pessoas só iria tomar conta para os pais e dar-lhes uma noite para fora na
cidade. Às vezes, quando um dos irmãos, ou irmãs, partiu em uma longa
viagem, toda a igreja iria aparecer no aeroporto para recebê-los. E nós
teríamos uma reunião da igreja em pleno aeroporto”. (“Jennifer” 48)
69
estabelecidas´,´igrejas tipo-basílicas´, ´igrejas-tradicionais´,´igreja organizadas´,
[...]´igrejas contemporâneas´ ,´igrejas-audiência´, [...] igrejas baseadas em programas´.
(VIOLA,2009, p. 15).
Viola também salienta que sua apropriação do termo “instituição” não é similar
à utilização no universo da Sociologia em geral para descrever qualquer padrão humano
rotinizado. O autor faz uso estreito do termo para expressar o seu sentimento sobre a
falibilidade da “igreja ocidental de modelo basilical”, na qual os entraves burocráticos
operam em primazia aos contratos humanos e relacionamentos de seus membros. Em
outras palavras, sua crítica à “instituição” recai na oposição da primazia da igreja como
elemento jurídico, físico (templos-basílica), culto-show e burocratizada, quando estes
equipamentos sócio-técnicos se sobrepõem à experiência popular diretamente com o
divino, vivenciados em na coletividade em seu sentido stricto, emancipada de um
agente regulador.
“Estas igrejas são construídas sobre programas e rituais mais do que sobre
relacionamentos. Elas são organizações altamente estruturadas, tipicamente
centradas em seu edifício, lideradas por profissionais separados para tal
(´ministros e ´pastores´), os quais são ajudados por voluntários (leigos). Elas
requerem edifícios, pessoal salários e a administração. Na igreja institucional, os
membros assistem por uma ou duas vezes na semana uma performance religiosa
conduzida principalmente pelo pastor e depois se retiram para suas casas onde
individualmente vivem suas vidas cristãs”.
70
crescer a um ritmo rápido. Um quinto da população dos Estados Unidos - e um terço
dos adultos com menos de 30 – [...] são religiosos não afiliados”. 49
Assim, em sua obra mais conhecida, Cristianismo Pagão? Frank Viola faz uma
intensa revisão de cunho histórico para encontrar a gênese de vários costumes das
“Igrejas institucionais”. Seu objetivo é fazer uma engenharia inversa dos costumes, para
poder implodi-los, alegando que a sobreposição cultural se deu porque o cristianismo
alterou a sua essência ao longo de 20 séculos.
Cole decide por uma nova abordagem em suas atividades. Desta forma ele e sua
família foram são comissionados para atuar em Long Beach, Califórnia, em um projeto
para alcançar jovens em crise, plantando novas igrejas batizadas de Awakining Chapels,
espaços onde pregava em diálogo com a cultural pós-moderna. Concomintantemente a
estas atividades, Cole concebeu e fundou a organização CMA. No seu entender era
necessário fundar não apenas uma única “Igreja Orgânica”, mas um movimento de
plantação de igrejas. Desta forma a Church Multiplication Association ofereceria
suporte e pesquisas relacionadas à sua tarefa de evangelização eficiente.
Cole afirma que antes de iniciar sua empreitada como plantador e mentor de
plantadores de igrejas orgânicas foi convidado para dar consultoria a uma nova igreja.
49
"´Nones´ on the Rise". <www.pewforum.org/2012/10/09/nones-on-the-rise/>. Acessado em
10/07/2013.
71
Ao entrevistar os membros para conhecer a raiz dos problemas daquela comunidade,
notou que a principal preocupação dos fiéis girava em torno de assuntos burocráticos,
tais como o desejo de terem um estatuto, regimentos, compra de terreno para a sede e,
assim, serem “uma igreja de verdade”. Esta consultoria, segundo o autor, foi um dos
momentos em que teve insights acerca da não existência de uma rede de solidariedade
em muitas igrejas americanas, pois os cultos tornaram-se “shows” e as comunidades
“auditórios”.
As Aweking Chapels foram muito bem sucedidas. Cole não pensou em alugar
um espaço maior. Sua estratégia foi treinar seus discípulos para iniciarem outras igrejas
com o mesmo molde, que conservasse a unidade e “comunhão” dos cristãos e cuja
energia não fosse desperdiçada com a elaboração de programas e construções de
prédios. Dez igrejas foram iniciadas no primeiro ano; 18 em seu segundo ano; e 52
igrejas orgânicas no terceiro ano. No ano de 2002 eram iniciadas 2 igrejas por semana.
O crescimento exponencial veio em 2004, quando cerca de 400 igrejas já haviam sido
iniciadas como suporte da CMA. Cole (2009, p.54) conta que “estas igrejas começaram
bem pequenas (com uma média de 15 pessoas) e simples. O termo ´igreja simples´
começou a se popularizar porque dávamos valor a uma vida simples, seguindo o nosso
Senhor, e fugíamos das complexidades das igrejas tradicionais”. Para Cole (2009, p.54):
72
O termo “Igreja Orgânica” for se tornando popular e chegou ao Brasil a partir de
2007 com a publicação de um livro de Cole, intitulado Igreja Orgânica - plantando a fé
onde a vida acontece (2007). A opção por esta palavra, segundo Cole, veio por dois
motivos. O termo “igrejas caseiras” na América no Norte está correlacionado a um
grupo de pessoas insatisfeitas com a igreja institucional. Em segundo lugar, evitou-se
usar o termo “igrejas caseiras” porque não gostaria de alinhar seu movimento a um
espaço físico específico: a residência. Os grupos orgânicos poderiam se encontrar em
qualquer lugar. “Estas Igrejas Orgânicas brotavam onde quer que a semente tivesse sido
plantada”, como em “lanchonetes, campi universitários, escritórios, casas. Acredito que
a igreja deve ser plantada em todos os lugares em que haja vida acontecendo”,
acrescenta Cole.
73
a própria igreja: “argumentam que [se] sentem atraídos por Jesus, mas sentem repulsa
da Igreja”. (p. 28). Wolgang (2008, p. 36) também elenca uma pesquisa elaborada por
John Campbell na Escócia, cuja conclusão foi a de que “uma das maiores barreiras para
crer em Deus é a própria Igreja”.
Para Wolfgang existe uma necessidade nos tempos atuais de uma “terceira
reforma”. Na primeira reforma, empreendida por Martinho Lutero no século XVI, a
“graça” foi novamente posta como pilar central na doutrina protestante. A segunda
reforma deu-se em meados dos séculos VXII e XVIII, quando movimentos pietistas
redescobriram a espiritualidade fervorosa em Deus, o que deu impulso aos movimentos
avivalistas e missionários da época. Finalmente a Terceira Reforma, como formula o
autor, seria uma reforma na estrutura, na eclesiologia. A necessidade para esta
reorganização da maneira de ser igreja cristã dar-se-ia por alguns motivos enumerados
pelo autor, que nos auxiliaram a compreender a centralidade de seu protesto.
74
desenvolvimento teve início. [..] Muitos de nós carregam consigo um monumental
lastro histórico de ´carga eclesiástica´”. O lastro histórico ao qual Wolfgang se refere
são os acúmulos culturais que soterraram o “Movimento de Jesus”. Estes acúmulos
tornaram o cristianismo uma religião híbrida, sobretudo após a suposta conversão do
imperador Constantino que deflagrou o processo de tornar o movimento de discípulos
de Jesus uma religião política estatal. Assim, seu protesto, em consonância com os
demais autores, revela a insatisfação de parte dos evangélicos norte-americanos, que,
como vimos, também refle em determinados “protestos” no campo religioso brasileiro,
quanto ao pertencimento às igrejas institucionais. Também revela a busca espiritual de
nossos interlocutores por experiências mais familiares, íntimas e profundas com Deus,
longe dos “cultos shows”, representados pelas megaigrejas americanas.
Fica a pergunta, segundo Wolfgang: o que são? O que fazem e como funcionam
as Igrejas Orgânicas? A partir de sua experiência o autor elege quatro pontos
fundamentais que servem de arcabouço para suas comunidades: 1) Refeições conjuntas;
2) Ensinamento Dinâmico; 3) Partilha de Benção materiais e espirituais e; 4) Oração
comunitária;
75
Igreja Institucional Igreja Orgânica
Tarefa mais importante Fazer boas pregações, visitas orientar cristãos a assumirem
às casas, oferecer um pessoalmente o serviço
programa completo pastoral
76
Missão Enviar missionários Igreja envia a si própria
especiais como unidade multiplicável
77
CAPÍTULO III
78
das identidades religiosas dos indivíduos, proporcionando uma intensa busca por
agrupamentos mais “autênticos”, menos “rígidos”, com mais “liberdade” e menos
“hipocrisia”. Ademais, há um convencimento, no entender de seus participantes, de que
tais grupos aproximam-se ao ideal de igreja estabelecido no cristianismo original. Para
esta pesquisa, usamos o termo “Igreja Orgânica” para designar este tipo de micro
comunidades religiosas cristãs e não denominacionais.
50
CAVANCANTI, Robinson. As chamadas “seitas” protestantes. <
http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/276/as-chamadas-seitas-protestantes>. Acessado em
10/10/2013.
51
<http://www.caiofabio.net/caiofabio.asp>. Acessado em 10/10/2013.
79
empreendimentos. Seus congressos, sempre segmentados para “pastores e líderes”,
“juventude”, “empresários”, “casais”, aglomeravam milhares de evangélicos. Ademais,
a “Fábrica da Esperança” (ONG fundada em 1994) implementada na favela do Acari,
tornou-se conhecida nacionalmente, sendo, na época, uma das maiores organizações
não-governamentais da América Latina.
52
“Caio Fábio abre o peito sobre a queda de peito aberto”. < http://youtu.be/ytDqvg925uI>. Acessado em
10/10/2014.
80
começa a ganhar simpatia de miríades de evangélicos feridos e decepcionadas com as
“igrejas evangélicas institucionais”, sobretudo após o advento da consolidação do
movimento neopentecostal 53. Em 2002, recebe uma “revelação” através de um
“profeta”. A suposta profecia antevia sua restauração, assim como a de seu ministério, e
ainda, segundo a premonição, ele voltaria a alcançar milhões com sua nova mensagem.
Outro momento a ser destacado é o “pós 2002”, quando Caio Fábio lançou seu site
(www.caiofabio.com), dando início a uma nova etapa pública, com esse “portal dos
54
invisíveis”, conforme suas próprias palavras. É nessa fase online de suas atividades
que surge o “Caminho da Graça”, assim como a formulação definitiva de uma
perspectiva que apresentava um “cristianismo de contracultura”.
53
Paulo Romeiro (2005), sustenta a tese de que nos últimos anos, com a multiplicação das igrejas
neopentecostais e seu discurso messiânico, esse contingente de desiludidos tem crescido em progressão
geométrica”.
54
“A semente, o site, você e eu. | O portal dos invisíveis. - www.caiofabio.net”. <
http://youtu.be/NN9BMWphfok> . Acessado em 06/06/2014.
81
Podemos observar também estar presente na cultura brasileira a necessidade de
interlocutores que se sobressaiam como “mitos”. Kátia Mendonça (2002, p.14), ao
dissertar sobre o “mito do herói” no “imaginário” brasileiro sustenta que:
55
“Pregue a nova geração!”. <http://youtu.be/CYlNeTE1im4>. Acessado em 10/10/2013.
82
3.1.1 - Do Amazonas ao Rio de Janeiro
Caio Fábio tinha dois anos quando em 1957 seu pai deixa o emprego público
para dedicar-se a um escritório de advocacia próprio. Com o sucesso desta empreitada,
em 1958 cria a “Colimpa S.A”, exploradora de ouro na região do Parauari. Notório
empreendedor, em 1961, Caio pai abre uma nova empresa, a “Compaina”, exploradora
de borracha e castanhas. Sua família ganha destaque na sociedade amazonense da
época. Fonseca (2003, p. 227) lembra que Caio Filho vem de uma família de boa
situação financeira, “filho de um industrial e advogado de sucesso, sócio do [ex]
senador Bernardo Cabral, e neto do governador do Estado do Amazonas na década de
1940”. Porém, com o advento do golpe de 1964, “perdem quase tudo”.
D´Araújo Filho sustenta que foi seu pai que mais o influenciou neste mundo até
os dias de hoje (D´Araújo, 1995, p. 11). D´Araújo pai foi católico até os 26 anos quando
decidiu se tornar agnóstico. Contudo, lendo a Bíblia “de cabo a rabo”, adquiriu uma
nova visão e se converteu sozinho na cozinha de seu apartamento, em Niterói,
“entregando sua vida a Jesus”. Não disse nada a ninguém sobre o ocorrido. No Natal do
mesmo ano, aceitou o convite de participar de um culto em uma Igreja Presbiteriana.
56
Publicada aos seus 42 anos, best seller na época.
83
Durante o evento e através da pregação do reverendo Antônio Elias, decidiu tornar
pública sua conversão. “Com os pés na igreja, seu progresso espiritual foi rápido” e
gradualmente foi perdendo o interesse pela advocacia, pois “não conseguia mais
mentir”. (D´Araújo, 1995, p. 60).
Caio Fábio D´Araújo pai, depois de ler o livro Apóstolo dos pés sangrentos57
decidiu viver a proposta mística do autor indiano e passou a praticar jejuns e orações.
Segundo Caio Fábio Filho, “de alguma forma, aqueles exercícios espirituais deram a
papai novas dimensões sobre o sagrado”. D´Araújo afirma que a nova espiritualidade de
seu pai era cada vez mais intensa e, entre os anos de 1967 e 1970, o exercício do direito
misturava-se com a evangelização e expulsão de demônios de seus clientes, quando um
senso de dever e vocação tomou conta de sua mente. “Eu começava em sonhos me
vendo no interior do Amazonas do rio Purus, de onde sou originário, e me via naquele
rio falando do amor de Deus, em Cristo Jesus. Estas coisas foram se arrumando em meu
coração. Esta coisa se acentuou e fui sentido automaticamente na profissão de
advogado” 58 (D´Araújo, 1995, p. 87-89).
84
Porém D´Araújo Filho, levava uma vida de bon vivant arruaceiro. Segundo
Fonseca (2003, p. 228), “envolve-se com drogas, álcool, brigas na rua, assumindo
práticas promíscuas em sua vida cotidiana”. Zuenir Ventura (VENTURA in D´Araújo)
destaca que Caio Filho, em sua juventude “era um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto
que amava ´alucinadamente as mulheres e fumava maconha e cheirava cocaína no
mesmo ritmo que dirigia sua moto – mais que uma alma perdida, era a promessa de um
cafajeste”.
Após uma conturbada estadia no Rio de Janeiro, D´Araújo Filho estava de volta
a Manaus. Experimentava uma relação conflituosa com a religião e também com a
figura do pai, que, após tornar-se pastor, passou a ser opressor e rígido diante da postura
liberal do filho. Nesse contexto, desencadeou-se em Caio Filho um processo de
profunda crise existencial em relação à sua vida desregrada e repleta de excessos que
levava. Diante de tantos infortúnios e desencantos com o mundo, crises e desesperos,
sexo e solidão, Caio Filho inicia seu processo de convencimento de que poderia ter uma
vida mais equilibrada se aderisse ao cristianismo.
Após este episódio Caio Filho (1997, p. 193) muda sua vida para sempre:
“dentro de mim havia um permanente desassossego. Dia e noite eu me via pregando
para as multidões”. No ano de 1974, sua mente foi tomada pela ideia de que a pregação
do Evangelho seria sua grande vocação. Quando falava em público parecia estar
“experimentando fortíssimas formas de prazer existencial”, além disso, passou a notar
85
seu poder de comunicação em atrair a atenção das pessoas com sua retórica. “E esses
dois sinais me pareciam divinos”.
“todas [as pessoas] me conheciam como uma pessoa que tinha uma história mais
maluca e agora estava falando de Cristo. Era uma coisa bem chocante. A
segunda razão era porque era um caminho novo, não existia no Amazonas
nenhum programa evangélico de televisão (entrevista de D´ARAÚJO in
FONSECA:2003, p. 228).
59
Em 1978 o programa Jesus, a esperança das gerações é re-batizado para Pare e Pense.
86
Além dos esforços acima, ele precisava propor uma monografia acerca da
“salvação dos pagãos fora da religião”, apresentada a uma banca dia 6 de janeiro de
1977. Nesse texto Caio Fábio Filho defendia a hipótese de que, embora a Igreja seja
uma “agência da graça divina no mundo”, ela não é detentora exclusiva da “graça
divina”. Apesar dessa tese ser entendida como “liberal” ou “universalista” nos meios
calvinistas, Caio foi aprovado, após “dois dias de discussão”, não sem grades debates
empreendidos entre seus examinadores. Será que deveriam aprovar Caio, diante de tanto
ousadia teológica? Diante do seu ministério já proeminente na cidade, recebeu a
aprovação. Sua idade era de 21 anos, quatro após sua conversão.
Naquela altura sua atuação no rádio também era intensa. Ele possuía um
“genuíno marketing cristão”. Seu programa de rádio chegou a receber 1.800 ligações
por dia. Para saturar a sua cidade com a pregação do evangelho, fez parceria com a
Mocidade para Cristo – MPC e a Aliança Bíblica Universitária - ABU, demonstrando
sua inclinação para o evangelho social e para visão progressista da atuação da igreja
evangélica. Contudo “o volume de coisas era tão grande, que às vezes me enrolava todo
pelo caminho”. Segundo suas próprias observações, era necessário “haver uma estrutura
que pairasse acima das bandeiras evangélicas, de modo que pudesse servir a todos, [por
isso] criamos aquilo que no meio se chama de Missão, e que do lado de fora se
convencionou chamar de ONG cristã. Assim nasceu a Visão Nacional de Evangelização
[VINDE]”.
A VINDE veio para dar suporte às cerca de 300 cartas que seu programa recebia
por semana, e 1.500 telefonemas por dia que seu programa atendia. Ela foi fundada sem
vínculo denominacional para não “confinar aquilo tudo a apenas uma comunidade
evangélica”, no caso a igreja Protestante do Brasil. Mesmo não podendo comprovar a
60
O “evangelicalismo” é uma vertente cristã que tem origem na Grã-Bretanha, no anglicanismo, com
forte consciência social e política.
87
amplitude das narrativas construídas por Caio, Fonseca conclui que Caio Fábio se dizia
ser “uma pessoa extremamente conhecida na cidade” e que suas cruzadas de
evangelização “só eram menores do que as decisões dos jogos de futebol”.
Em 1981 as viagens de Caio recomeçaram, o que fez com que ele se distanciasse
de seu rebanho local, gerando insatisfações. Qual seria então a vocação de D´Araújo?
Um pastor local ou um pregador itinerante? Durante o ano de 1982 ele alega ter
palestrado para cerca de meio milhão de pessoas. Diante da multiplicação de suas
viagens e do descontentamento de alas de membros da Igreja Betânia, tudo isso somado
ao fato da descoberta de um problema cardíaco em 1984, Caio decide deixar o
ministério pastoral de uma igreja local, em janeiro de 1985, citando John Wesley e sua
conhecida frase: “o mundo é minha paróquia”. (D´ARÁUJO, 2003, p. 282).
Para D´Araújo (2003, p. 288), os anos seguintes foram marcados por sucessivas
viagens e exposição em mídias por todo o Brasil. Segundo ele, as pessoas diziam: “você
é uma unanimidade nacional”. Porém, como consta em sua biografia, ele sempre era
enaltecido por possuir um “espírito amazonense” selvagem e não domesticável.
D´Araújo registra ainda que seu nome era conhecido em todo país, fosse pelos livros
88
cristãos que escrevia, [...] “fosse pelo fato que minha presença era obrigatória em
qualquer coisa de peso que fosse acontecer no meio evangélico. Eu, entretanto, sentia
saudades do Amazonas, pois, sem querer e de modo imperceptível a igreja havia me
domesticado”. Afirma que recebia centenas de convites por ano para pregar, porém isso
não lhe trazia satisfação.
D´Araújo (1995, p.290) sustentava ainda que sua alma empreendedora estava
inquieta. Desta forma, criou uma editora para publicar seus livros e lançou a pioneira
televisão via satélite do Brasil, a VINDE SAT, que oferecia um curso bíblico,
transmitido durante duas horas por semana, ao vivo, e ainda contava com interações via
telefone. Porém, em 1987,
“sentiu a necessidade de aprimorar seu inglês. E a VINDE contava com uma boa
equipe: Henrique Ziller era o diretor executivo [...], Tissiane Cavalcante era o
homem do marketing. E Cristina Christiano [...] secretária. Além disso eu tinha
três amigos que estavam dispostos a financiar parte de meus estudos e pagar a
folha de pagamento dos vinte funcionários que tínhamos na época”.
89
Fonseca (2003, p. 232) afirma que, segundo o pastor Ariovaldo Ramos,
D´Araújo foi para os EUA cooptado por uma bolsa concedida pelo evangelista Leighton
Ford 61. Segundo Ariovaldo, a estadia de Caio Fábio na América do Norte proporcionou
uma mudança de seu discurso e prática com o convívio com Leighton Ford e Billy
Graham Ministries e “outros ministérios cristãos personalistas”. Aqui observamos
novamente Ariovaldo Ramos em depoimento registrado por Fonseca (2003, p. 232)
“O Caio até 87 era um cara assumidamente de esquerda. Com aquela visão que
nós temos que mudar, promover justiça neste país, a situação tem que mudar, a
igreja tem que se engajar... e a TV era vista como grande difusora dessas ideias
e acima de tudo uma evangelização que fosse ao mesmo tempo carismática,
consistente e que desse perfeitamente, para o cara que tivesse ouvindo, a ideia de
que o evangelho era algo que não cabia uns estereótipos que até então os crentes
sofriam, que o Evangelho era uma coisa profunda, que Jesus Cristo era o
verdadeiro caminho e aceita-lo era a coisa mais inteligente a fazer”.
Fonseca ressalta (2003, p. 233) que após o período nos EUA, Caio Fábio retorna
com “novos e claros objetivos”. Antes seu modelo de gestão e liderança era informal,
como uma “comunidade”, então passam a “existi[r] setores, gravatas, divisões e
divisórias cargos de chefia e um presidente quase que inacessível”. Porém, conforme
Ramos (via Fonseca, 2003, p. 235): “dos quinze funcionários de 1990, em 1994 eram
duzentos, chegando a quatrocentos em 1997”. A partir daquele momento, “Agora era
uma mensagem bem Lausanne 62, bem evangelical... Caio agora fala com uma
linguagem mais empresarial e menos social”, Fonseca conclui, reafirmando que este
novo cenário atinge novas frentes e classes mais altas. Segundo Caio Fábio
(D´ARAÚJO, p. 292), quando retornou dos EUA formulou três objetivos:
“1) Incrementar as ações da Vinde e fazê-la crescer para ser a maior organização
paraeclesiástica e não governamental do país, no meio evangélico. Sobretudo,
queria transforma-la em uma grande geradora de informação entre os cristãos;
61
Ligado ao ministério Billy Graham e ao Lausanne Moviment, fomentador do evangelho social e
também dos debates em torno da teologia da “Missão Integral”.
62
A referência é a do "Pacto de Laussane", que, em um dos seus principais eixos teológicos uma
conclamação acerca da "A Responsabilidade Social Cristã". <www.lausanne.org/pt/pt/1662-
covenant.html>. Acessado em 13/10/2013.
90
2) Usar o capital relacional que eu tinha desenvolvido em toda nação para
promover a criação de uma entidade que representasse os evangélicos
preocupados com a ética e, se possível, envolver o máximo possível de líderes e
igrejas, tentando ser maioria;
3) Envolver-me o máximo possível com iniciativas de natureza social e assim
demonstrar a séria preocupação dos cristãos com a coletividade”.
91
preocupados com as “novidades teológicas” da IURD. Estes incrementos imprimiam
dúvidas sobre se tal igreja era, de fato, uma igreja evangélica, uma seita, um teatro ou
um mercado, utilizando as metáforas de Campos (1997). D´Araújo (1997, p. 299) assim
exprime suas preocupações:
“Edir tinha criado a Igreja Universal do Reino de Deus — IURD, que era uma
espécie de síntese entre várias químicas religiosas. Havia de tudo um pouco: um
grito de guerra (Jesus Cristo é o Senhor!) e um fervor na ação (Vamos ganhar o
mundo para Jesus!), que eram genuinamente evangélicos; combinados a uma
teologia católico-medieval (Deus não faz nada de graça, sem sacrifício, e o
dinheiro é a moeda de troca entre o homem e as bênçãos divinas) e a uma
simbologia afro-ameríndia, com farta utilização de elementos mágicos das
religiões populares, tais como sal grosso, ramo de arruda, óleo sagrado,
caminhos físicos pavimentados com sal, que abençoam aqueles que por eles
caminham, e o oferecimento de dezenas de outros objetos feitos santos, que iam
desde o estilingue de Davi até uma lavagem das mãos com o sangue de Cristo
numa bacia. Todas essas coisas eram consideradas por eles como pontos de
contato entre a pregação da Universal e a necessidade mística dos brasileiros. Do
ponto de vista meramente marketeiro, era fantástico, mas visto sob o ponto de
vista dos conteúdos da fé evangélica, era um escândalo de promiscuidade
doutrinária”.
“Olha, cada um pesca com o que tem e como sabe. Você pesca com camarão.
Fala bem, é preparado e ganha gente preparada. Outro pesca com pão. Outro
com minhoca. E tem peixe que só gosta de minhoca. E tem outros que pescam
como eu, com fezes. Tem gente que só gosta do que eu ofereço. O povo que eu
quero não vai te ouvir. É gente que ninguém quer. Eu quero. É o pessoal que eu
consigo pescar do meu jeito, com as coisas que eu ofereço — ele falou quase
como se estivesse filosofando sobre algo absolutamente novo. — Mas você não
acha que dizendo que cada um dá o que tem e o que as pessoas querem, você
está dizendo que o evangelho não tem conteúdo? E que a gente pode adulterar a
mensagem como quiser pra [sic] atender aos gostos deste mundo? É isso que
você tá dizendo? — indaguei sem querer ser rude, mas achando crucial a
92
resposta dele. Afinal, era a primeira vez que eu ouvia um líder religioso
ocidental confessar com sinceridade e honestidade que os fins justificavam os
meios. Muitos agiam segundo a mesma filosofia, mas maquiavam muito bem
suas ações. Macedo, entretanto, era honesto em suas convicções e não tentava
me iludir a respeito. — Eu não tenho paciência pra filosofia. Aqui a gente não tá
querendo pensar muito nessas coisas. A Nova Vida parou porque ficou com
essas perguntas todas. O negócio é ganhar gente. Também não gosto desse
negócio de Escola Bíblica Dominical e nem de seminário. Teologia tira a garra
do obreiro. Eu não tenho essas coisas na Universal — declarou e já foi logo
pegando o telefone e dizendo que “o pessoal” poderia entrar. — Eu queria que
vocês conhecessem o Caio Fábio — disse para Renato Suhett, Didini e
Gonçalves, que acabavam de entrar. Conversamos generalidades por mais uns
trinta minutos”.
O trecho citado não deixa dúvidas sobre as fórmulas praticadas pela IURD para
“ganhar gente”, evitando filosofias alongadas e teologias complexas. O segredo está na
oferta e na demanda; e pescar o “peixe”, conforme o que o “peixe” quer.
Tais controvérsias tem seu ápice com a prisão de Edir Macedo em 24 de maio.
Para o jornal Folha de São Paulo a principal acusação “é a de que o bispo teria
adquirido grande patrimônio graças à sua atividade à frente da Igreja Universal”. (Folha
de S. Paulo, 17/09/1995). Em suas memórias, Macedo (2012, p. 26) afirma ter sido
acusado de ser charlatão, curandeiro e estelionatário e que essas acusações não faziam
sentido, pois Jesus, e várias outras personagens da bíblia, curavam os enfermos. Anos
mais tarde, Macedo (2012, p. 13) atribuiria sua prisão à perseguição desencadeada pela
Igreja Católica.
93
“Era um tempo de ataques a Igreja Universal, a mim e a minha família. Desde
que o trabalho começou a crescer, entramos na mira. O clero romano mandava e
desmandava no Brasil, mais do que nos dias de hoje. Eram políticos de prestígio,
empresários da elite econômica e social, intelectuais, juízes, desembargadores e
outras autoridades do poder judiciário que tomavam decisões sob a influência do
alto comando católico. A Cúria não admitia o surgimento de um povo livre da
escravidão religiosa impostas por eles. Mas eu nunca olhei para isso. Minha
missão sempre foi dum só: pregar a verdade do Evangelho a todos que sofrem.
Antes mesma da compra da Rede Record, em novembro de 1989, já havíamos
sido vítimas de diversos tipos de abuso. A polícia tinha invadido meu
apartamento, os escritórios da Igreja e as empresas relacionadas que existiam
para a opor o trabalho evangelístico. Sabia que as perseguições jamais teriam
ponto-final, mas nunca imaginei que essas agressões terminariam em prisão. O
meu nome foi surrado por anos”
94
Ora, tudo o que tenho dito até aqui não tem a finalidade de defender a IURD,
que nem é associada à AEVB. Nossa intenção é mostrar apenas três aspectos
básicos da atual situação de perseguição que sofre a Igreja Universal:
D´Araújo então sentencia, e sugere que a Universal passe por uma auditoria
interna e pare de atacar os cultos afro brasileiros. A AEVB se pronuncia nestes termos:
95
Porém, certas inquietações de ordem intima começam a emergir na história de
D´Araújo, que culminam em uma relação extra conjugal, sob o clima do envolvimento
da elaboração do “Dossiê Cayman”. Tal Dossiê, segundo a segundo o jornal A Folha de
São Paulo de 12/12/2011, seria um "conjunto de papéis forjados para implicar tucanos
com supostas movimentações financeiras no exterior." 63
63
"Collor recebeu dossiê Cayman, afirma PF". <www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/14416-collor-
recebeu-dossie-cayman-afirma-pf.shtml>. Acessado em 10/09/2013.
96
3.2.1-A VINDE na televisão
“Não é você que muda o canal, é o canal que muda você”. O projeto da VINDE
TV configurou-se como o primeiro canal evangélico por assinatura do país, levado ao ar
no dia 23/12/96. Foi resultado de uma parceria entre a Vinde e a NET Brasil, que à
época tinha cerca de um milhão de assinantes. D´Araújo já dirigia e apresentava o
programa Pare & Pense, que ia ao ar aos sábados, pela Rede Manchete. Porém, com
esta nova possiblidade midiática, alcançaria uma programação de 24 horas no ar. No
período que se seguiu ao seu lançamento, cerca de quatro horas eram realizadas ao vivo.
A inauguração do canal contou com uma plateia de convidados, entre eles o reverendo
Guilhermino Cunha, na época presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana
do Brasil, Ariovaldo Ramos, Darcy Dusilek e Josué Rodrigues, nomes então em
destaque no meio evangélico (Revista VINDE, ano II, n. 15, Junho de 1997, p. 22).
Cerca de 100 funcionários estavam empregados no projeto que era dirigido pelo
filho de D´Araújo, Davi D´Araújo. Um dos carros chefes da programação era o “ao vivo
com Caio” que ia ao ar toda quarta-feira, às 22h, com reprises aos domingos, 13h30. O
programa era feito em formato de talk show convencional, no qual o reverendo reunia
convidados para debater temas diversos. Havia também o programa Acústico,
transmitido de segunda a sexta, das 9h30 às 10h, apresentado pelo músico Josué
Rodrigues, então pastor da Igreja Presbiteriana Betânia, que fora Igreja de Caio Fábio.
O público jovem também era contemplado com o programa Zapeando, “versão gospel
do Programa Livre, do Serginho Groisman”. (Revista VINDE, ano II, n. 19, Junho de
1997, p. 68).
97
6h – Palavra do Pastor (5 15h – Classi vinde 21h35 – Caio Fábio ao vivo
min,)
9h30 -Espaço Aberto 16h30 Ela disse – Ele disse 24h – independentes
98
3.2.2-VINDE Revista
A ideia inicial era fazer uma revista com formato “secular”, entrecortada com
notícias e matérias voltadas ao meio cristão. De fato, acessando o acervo das revistas
VINDE, nota-se em suas páginas que os mais variados assuntos se faziam presentes,
desde notas culturais, esportivas, variedades e musical 65. Duas frentes editoriais também
são presentes na publicação: 1) informações acerca dos trabalhos de Caio Fábio e
notícias relacionadas ao seu ministério. 2) Seu forte engajamento com a política carioca
dos anos de 1990.
64
“Vozes do passado: acerca da Revista
VINDE”.<http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=03166>. Acessado em 28/08/2014.
65
Não podemos deixar de notar duas grandes áreas cobertas pelas cerca de 80 revistas que pudemos
analisar, do ano I ao ano IV.
66
Não encontramos a data da aquisição da revista pelo grupo Bom Pastor.
67
“Entrevista com Pr. Caio Fábio para a CH | Parte 1”.
https://www.youtube.com/watch?v=eLZhFtM5YC8. Acessado em 10/07/2013.
99
Porém a sua história começou em 1992, quando, a propósito de um conflito entre
diferentes facções que dominavam áreas diversas, a favela foi invadida por um bando
rival e 22 pessoas que se encontravam na porta de um bar e que estavam dormindo
dentro de uma casa foram mortas. Nenhum bandido foi morto, somente trabalhadores.
Maria Lucia Montes destaca que (2012, p. 79) “A casa, pertencente a uma família de
evangélicos, onde haviam sido baleadas seis pessoas, entre as quais duas crianças, fora
comprada, por intermédio do pastor Caio Fábio, e depois reconstruída para se tornar a
Casa da Paz”. Nesse local passou a funcionar um centro de saúde, uma biblioteca,
cursos de arte e computação. O projeto foi liderado por um morador local, Caio Ferraz.
Atualmente neste espaço funciona o AfroReggea 68.
68
Idem.
69
Revista VINDE, Ano II, n 22, Setembro de 1997. P. 60.
100
Em 23/11/95, a Fábrica foi objeto de investigação, sendo invadida por policias
militares que buscavam bandidos. Suspeitava-se de que havia gente escondida nas
dependências da Fábrica. Pouco menos de duas horas depois, os policiai encontraram
quase dois quilos de cocaína e certa quantidade de maconha escondidos em uma
cadeira. Dois dos funcionários da Fábrica receberam voz de prisão, sob a alegação de
estarem obstruindo o trabalho policial. Os funcionários alegavam não dar permissão
para a entrada na Fábrica sem autorização prévia da direção. Aquele episódio ganhou
repercussão nacional, pelo fato de o projeto social estar associado ao nome de Caio
Fabio. Porém, em maio de 1997, os vigiais foram inocentados, por falta de provas,
conforme a Revista VINDE (ano II, n. 20, julho de 1997) .
Ainda quanto a este episódio a edição de número três da Revista VINDE em seu
editorial “Reage Fábrica”, procurava apaziguar a situação envolvendo a Fábrica e o
tráfico de drogas. Jorge Antônio Barros assina a “epístola da redação” que alega que o
governador Marcello Alencar aproveitou-se da situação para sequestrar moralmente
Caio Faio. Diante disso, “a reação incompreensível do governador deixou ao menos
uma coisa boa: pela primeira vez, evangélicos aderiram a um ato público pela cidadania.
Uma ira santa em favor da Fábrica da Esperança ou levou ao ´Reage Rio´ que, mesmo
com chuva, teve milhares de manifestantes no centro da cidade”. (Revista VINDE, ano
I, núm. 3, Janeiro de 1996, p. 3).
Charge de Chico Caruso: Caio, Betinho e Rubem César, em alusão ao “Reage Rio”.
(Revista VINDE, ano I, núm. Três, Janeiro de 1996).
101
A acusação de que Caio Fábio teria forjado a confecção do Dossiê e de que ele o
teria oferecido aos adversários dos políticos do PSDB a um preço exclusivo, em dólares,
foi usado na formulação de um processo na justiça, do qual ele acabou sendo
inocentado.
Talvez, por esse e outros motivos, após o ano de 1998, o projeto Fábrica da
Esperança entrou em declínio. Em 2000, “o prédio voltou para as mãos da Formitex,
que utilizou o imóvel para pagar dívidas com o Unibanco. Apenas um projeto continuou
funcionando até a última semana. Uma creche com cerca de 200 crianças, que foi
transferida para um prédio próximo ao local” 70.
Após 1994, Caio Fábio D´Araújo Filho não apresentava o vigor “manauara”.
Constam em sua biografia dois eventos cruciais que desabonaram sua figura diante dos
evangélicos, os quais lhe davam sustentação: O primeiro deles foi um relacionamento
extra conjugal, “pecado abjeto” entre os evangélicos. O segundo foi seu envolvimento
com o documento conhecido como “Dossiê Cayman”. Esse escândalo político estava
relacionado a uma série de documentos compilados com o objetivo de incriminar
candidatos tucanos nas eleições de 1994. Tais documentos acusavam Fernando
Henrique Cardoso, na época candidato à reeleição para a Presidência da República;
Mário Covas, governador de São Paulo; José Serra e Sérgio Motta, nomes de destaque
do PSDB. O suposto dossiê acusava os tucanos de crimes fiscais. Entretanto o suporto
dossiê foi para a política.
70
"Fábrica de Esperança" é implodida para dar lugar a hospital no Rio.
<www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u47792.shtml>. Acessado em 10/06/2013.
71
<https://www.facebook.com/caiofabio.vvtv/posts/381919638562579>. Acessado em 10/08/2014.
102
D´Araújo foi condenado a quatro anos de prisão, por crime de calúnia, sendo
recentemente inocentado. Toda essa trajetória de infortúnios levou Caio Fábio a uma
crise interior e, sobretudo, arranhou sua imagem de “pastor ético” construída durante os
anos 1980-90. Os evangélicos também não perdoariam o adultério, que é tido como
incompatível com a imagem de um pastor evangélico em todas as denominações.
Assim, a trajetória de Caio Fábio D´Araújo Filho e seu holding religioso chega
ao fim. Enquanto isso, ocorria um rearranjo global no campo religioso brasileiro,
preparando caminho para movimentos religiosos pendulares: entre os fenômenos de
massa estão as megachurches, e, de outro lado, a privatização e subjetivação da religião
em pequenos grupos ou de iniciativas individuais.
Essa incursão na trajetória biográfica de Caio Fabio parece não estar ligado a sua
atual situação de “guerrilheiro” contra as instituições religiosas. Porém, sua trajetória já
aponta para um novo cenário no campo religioso brasileiro, cuja mobilidade e fluidez
das identidades religiosas são proeminentes.
72
Conforme a Revista Veja de novembro de 1999, o valor da venda foi de quinhentos mil reais in "A
volta do pecador". <veja.abril.com.br/171199/p_168.html.> Acessado em 03/03/2014.
103
de seu lançamento, em 1999 para o grupo Força Editorial e depois para o grupo Bom
Pastor que mudou o nome da revista para Eclésia. 73
Vale a pena ressaltar que no início deste período houve um deslocamento sem
precedentes da imagem dos evangélicos no Brasil diante da sociedade geral. Para fins
de comparação, tomamos de Weber (2004) o tipo protestante calvinista do século
XVIII-XIX. Este protestante é o “bom pagador” (p. 42); disciplinado, correto e
trabalhando arduamente por ser “vocacionado”. Com a consolidação do
neopentecostalismo iurdiano e seus clones, que surgem no cenário nacional com seus
métodos heterodoxos de arrecadação de dinheiro, agressão a praticantes de culto afro,
compras milionárias e problemas fiscais, acabam por surgir desconfianças na população
em relação ao crescente movimento, e também, porque não dizer, uma desconfiança em
relação aos “evangélicos” em geral. Ainda mais depois da exibição de alguns vídeos, na
primeira metade dos anos de 1990, amplamente divulgados pela Rede Globo de
Televisão, nos quais Macedo contava uma montanha de dólares em um hotel e outro em
que ensinava seus pastores e bispos a persuadirem financeiramente suas ovelhas, “-ou
dá, ou desce”, era a frase emitida pelo bipo da Universal. Estes fatos descritos
73
"Vozes do passado: acerca da revista VINDE". www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=03166.
Acessado em 20/06/2014.
74
“Fortalecendo os nossos laços e reafirmando os nossos propósitos”.
https://web.archive.org/web/20030409205340/http://www.aevb.com.br/aevb10anos.htm. Acessado em
05/05/2014.
75
Em 30 de Novembro de 2010 é fundada uma nova tentativa de agrupar os evangélicos brasileiro, sob a
sigla de Aliança Cristã Evangélica Brasileira.
http://www.aliancaevangelica.org.br/index.php/template/institucional/nossa-historia>. Acessado em
10/09/2013.
104
compuseram umas das principais controvérsias religiosas nos anos de 1990. Para
Mariano (2004, p. 125) “durante toda a metade dos anos de 1990, a igreja [IURD] e
seus dirigentes estiveram no centro de intensas controvérsias, envolvendo os mais
diferentes agentes dos campos religiosos, empresarial, midiático, policial, jurídico e
político”.
Em Agosto de 2001, Caio Fábio volta à atividade pública, como pregador no Centro
Evangelístico Unido (CEU) e esporadicamente em outras igrejas, como a Union Church
e a Igreja Batista do Horto (ambas no Rio). Pouco a pouco vai retornando ao cenário
protestante. Em 2001, assume também alguns minutos no programa “E tudo mudou”,
exibido pela Bandeirantes e apresentado pelo velho amigo Washington de Sousa. Para
D´Araújo, mesmo após seu “terremoto” existencial”, “pregar é o que sei fazer, é meu
ministério. Para isto é que fui chamado, lá em Manaus, há quase 30 anos” 76.
76
Revista VINDE, ano VI, n. 62, Janeiro de 2001. P 38.
105
“igreja de perfil alternativo”, “uma igreja sem cara de igreja”, como dizia. Segundo a
revista Eclésia (Abril de 2002), D´Araújo “brinda os frequentadores do Café com Graça
com discursos teológicos densos, carregados de ilustrações e menções filosóficas sobre
os dramas e dilemas existenciais do ser humano”. 77
Regina Novaes (2013, p. 115) enfatiza ser este período em que vivemos no Brasil
como um momento marcado pela multiplicação das denominações e micro-
denominações, sobretudo pentecostais que “descatolizavam” o país potencializando um
léxico que antes não era tão evidente nas experiências religiosas, tais quais
“desconversão”, “desfiliação”, “desafeição”, “ser sem pertencer”, etc. Já o contexto
anterior, para Novaes:
Sobre esse tema temos ainda a observação de Carlos Rodrigues Brandão (2013, p.98),
que acrescenta o seguinte:
77
IBIDEM.
106
avalição de Ariovaldo Ramos, que pode ser comparada a um período marcado pela
“decepção com a graça” (in ROMERO, 2005, p.12-13):
“Diante deste quadro desanimador, [...] [a]o abordar um grupo cada vez mais
numeroso, formado pelas pessoas que se frustraram com as falsas promessas, [...]sua
longevidade pode ser compreendida pela justificação que o movimento
neopentecostal dá ao capitalismo e sua vertente mais moderna — o neoliberalismo.
Dinheiro é bênção e não maldição. Além de justificar o capital, o
neopentecostalismo justifica o individualismo — a bênção é para o que tem fé, ela é
inalienável e intransferível.
Voltando ao nosso relato, no ano de 2004, D´Araújo teve uma rápida passagem pela
IEC - Igreja Episcopal Carismática de Recife (PE), uma denominação dissidente da
Igreja Episcopal Anglicana. A notícia causou estranhamento face a todas as críticas
tecidas por ele contra o “sistema religioso” institucional. O ponto de contato entre Caio
Fábio Filho e a denominação é o próprio líder da IEC, bispo Paulo Garcia Ruiz. Na
Catedral Episcopal, D´Araújo pregava duas vezes por semana e a denominação
planejava até construir um novo templo com capacidade para duas mil pessoas em uma
área melhor localizada na cidade e que seria “erguida em um quarteirão inteiro” para
acolher o ministério de Caio Fábio. Quando indagado sobre compor os quadros
novamente em uma “igreja institucional”, após desferir discursos contra as
denominações, Caio Fábio afirmou: “Igreja é no que creio e sempre falarei. Até que a
78
Caderno de campo, observação do dia 11/08/2013.
107
´igreja´ reconheça que não tem sido Igreja”. 79 Assim, apesar de sua filiação a Igreja no
Recife, Caio Fábio afirmou continuar com a “comunidade alternativa”, o Café com
Graça, em Copacabana, que durou apenas 4 anos. Seu ministério em Recife ocorreu
durante o ano de 2004.
Em meados de 2004, Caio é convidado pelos amigos para uma série de pregações
em Brasília. Entusiasmado com a recepção de sua mensagem logo no primeiro encontro,
convida as cerca de 120 pessoas presentes no primeiro encontro a continuar. Desta
forma os encontros, agigantados, passam a ser no Hotel Fenice; depois no Centro
Educacional Maria Auxiliadora (CEMA) e finalmente, após alguns meses, no auditório
do Colégio La Salle 80.
Quem era o público de seus primeiros encontros? Caio Fabio nota que a maioria das
pessoas que os frequentavam eram aquelas machucadas pela religião 81, “aqui ninguém
se mete na vida de ninguém” 82, diz D´Araújo em uma pregação, coibindo o vilipêndio
entre irmãos por conta do período sensível que muitos experimentavam. Com o sucesso
e aceitação de sua pregação, D´Araújo e sua família mudam-se definitivamente para
Brasília, hoje sua cidade.
Nessa mesma época, em entrevista ao site Teologia Brasileira, D´Araújo está mais
desinibido para expor suas críticas ao cristianismo contemporâneo. Segundo a nota
abaixo, o cristianismo hoje seria um sistema completamente corrompido. Logo,
precisaria não de uma nova reforma, mas de uma “revolução”. Caio Fábio em uma
entrevista, dada a Ricardo Muniz, afirma que: 83
79
Revista Eclésia, ano IX, n. 98, Janeiro de 2001. P 12-13.
80
"Quem é Caio Fábio e o Caminho da Graça? 4/4".
<https://www.youtube.com/watch?v=7djqMTc2gPo> Acessado em 09/10/2013.
81
"Quem é Caio Fábio e o Caminho da Graça? 3/4".
<https://www.youtube.com/watch?v=Pmuit9eoNO8> Acessado em 10/10/2013.
82
Idem.
83
“Entrevista: Caio Fábio quer revolução: por Ricardo Muniz”
<www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=02927> Acessado em 03/03/2014.
108
cristãos precisam saber é que Jesus não teve interesse em algo que se assemelhasse à
civilização cristã ou mesmo com a ‘Igreja’ como a conhecemos de 332 de nossa era
até hoje. O cristianismo já é uma perversão, transformando o Evangelho puro e
simples numa religião com dogmas, doutrinas, usos, costumes, tradições imutáveis,
moral própria e muita barganha com os homens. Pratica-se assim uma obra de
estelionato contra o Evangelho de Cristo. É difícil imaginar que Jesus tenha
qualquer coisa a ver com o que nós chamamos de Igreja, seja aquela que se abriga
no Vaticano, ou sejam aquelas que têm tantas sedes quantos pastores, bispos e
apóstolos megalomaníacos. O ensino de Jesus, inversamente, é caracterizado por
desinstalação, mobilidade, liberdade de aplicação sem legalismo, confiança do
Semeador no poder da semente-palavra, ênfase na igualdade de todos, denúncia dos
poderes religiosos e pertinência à vida. Na prática, isso significava a cura da mente,
do corpo e do espírito. Significava o anúncio da destruição do Templo como lugar
de Deus. Significava a beatificação de samaritanos e a demonização de religiosos
sem coração. A coragem revolucionária que o Evangelho demanda de cada geração
é aquela que se lança ao vento e caminha pela fé, e que se dispõe a se deixar
reinventar conforme o espírito do Evangelho, posto que ele não propõe uma
religião, mas o Caminho. Isso significa que cada nova geração tem que ter a
coragem de vestir o Pano Novo do Evangelho no seu tempo e beber o Vinho Novo
do Reino em odres novos. Na hora em que milhões que assim crerem passarem a
viver livres conforme o Evangelho, então, sem pai, sem mãe e sem fundador, a
revolução se estabelecerá, sem sede, sem geografia, sem dono, sem tutor e sem
reguladores da fé. Não creio em reformas. Creio, sim, numa Revolução do
Evangelho que só incluirá os cristãos se eles tiverem a coragem de desistir do
cristianismo e abraçar o risco de apenas andar conforme a revelação da Graça de
Deus em Cristo, conforme a Palavra do Evangelho. Tal fé é incompreensível pelas
mentes viciadas no cristianismo e é desinstaladora demais para aqueles que vivem
do negócio clerical cristão 84.
84
Idem.
85
A cyber religiosidade envolvida no “Caminho da Graça”, será analisada logo mais.
86
"CAIO FÁBIO - JESUS COMO CHAVE HERMENÊUTICA".
<https://www.youtube.com/watch?v=tNLMHMV_AOw>. Acessado em 10/10/2013.
109
experiência humana, experimentada supra-dogmaticamente. Evidentemente, suas
opções teológicas proporcionam reações das alas conservadoras, que valorizam somente
a hermenêutica da Bíblia como sendo a expressão do evangelho. Não iremos analisar a
teologia de D´Araújo, porém é preciso que se destaque sua teologia existencial, calcada
no espírito humano de encontro com o “espírito de Deus”, logo, de certa forma
incapturável. Em outras palavras, levando em consideração a hermenêutica “em Jesus”,
torna-se inviável a construção de dogmas, eclesiologias e padrões definidos, pois a
experiência humana é conflituosa como uma realidade subjetiva e particular, como
sustenta e demonstra Walter Salles (2009):
Para D´Araújo o site seria o “Portal dos Invisíveis”, 88 profetizado três anos antes,
quando ele visitava um sensitivo “profeta”. Na ocasião recebe a “revelação” que seria
criado um “portal” por onde passariam milhões de pessoas para encontrarem “bebida e
comida espiritual”. Sobre esse site, D´Araújo 89 argumenta que:
e
Em 2010, o domínio é substituído por outro, www.caiofabio.net
88
“A SEMENTE, O SITE, VOCÊ E EU!”. http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=04297
89
Ibidem.
110
“Quando joguei a primeira semente no chão do site, fui dormir e nada esperava.
Apenas julguei que o lugar da semente era no chão e não na minha mão. [...] Todos
os dias milhares de pessoas em todos os lugares acessam esse meio de Graça
simples e livre, e, por tal ato sincero, muitos têm provado o sentido de terem
encontrado o seu chão na vida. [...] E milhões de hits já estão passando por ele; e
milhões de pessoas por ele passarão!”.
Como fica evidenciado acima, sua nova mídia virtual começou a alcançar novos
espaços e, concomitantemente, a chamar atenção daqueles “órfãos” das mensagens e da
presença de D´Araújo no universo religioso, além de conquistar novos públicos com um
discurso de oposição à “Igreja Institucional”. Em pouco tempo o site alcançou milhões
de visitas já em sua primeira versão 90.
Assim, conforme Caio Fábio, o “Caminho da Graça” “não quer ser um movimento
religioso, quer ser um caminho de fé, de consciência, por isso é que tem milhares de
pessoas chamadas ´desigrejadas´ pelas igrejas, que estão todas dentro desse
movimento” 91 e acrescenta, sobre o risco deste “movimento” não ser também uma
denominação, ou correr o risco de se tornar uma denominação, afirmando que “Igreja
sou eu, Igreja é você. Igreja é impossível não haver. Igreja somos nós. Igreja é encontro.
Eu me encontrei aqui contigo, esse é um encontro-igreja” 92. O que o nosso sujeito-
objeto elabora é um blend teológico do conceito denominado “sacerdócio universal” e
uma “eclesiologia” horizontalizada e, principalmente, descentralizada que seria próxima
as “redes de igrejas” paulinas ao cristianismo original do qual os núcleos
institucionalizados de resistência.
“Até 1998 eu fiquei 33 anos rodando o Brasil, indo presencialmente aos lugares.
Mas eu tinha um objetivo. Eu achava que a comunidade evangélica era alienada
como era, imbecilizada, marionetada, massa de manobra como era, abjeta como era,
porque faltava instrução. Faltava ensino. Aí eu fiquei trinta e tantos anos ensinando.
90
01ª parte - Entrevista Caio Fábio Biografia - Tema: Internet.
https://www.youtube.com/watch?v=yquYr1cYx64. Acessado em 10/10/2013.
91
"Transcrição da entrevista do Caio ao Danilo Gentili, no ´The Noite´".
www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=06433. Acessado em 10/07/2014.
92
Idem.
111
Dos Luteranos aos Neopentecostais. De um extremo ao outro. Criamos uma
organização, que era a Associação Evangélica Brasileira, pra ver se dava parâmetros
de saúde mental pro pessoal. Mas na realidade, eu descobri que ninguém quer isso,
pois desmonta o circo, a estrutura, a exploração... Instrução ajuda o povo a andar
com as próprias pernas. Instrução liberta. Instrução tira as dependências desses
gurus tiranos de sobre a cabeça das pessoas. Bom, durante 30 anos eles não tinham o
que dizer a meu respeito, não podiam me pegar por nada para me relativizar, até que
eu me divorciei. Quando eu me divorciei em 1998, era tudo que essa corja queria.
Eles não podiam me acusar de corrupção, de roubo, de exploração, de ênfase em
dinheiro, de nada disso. Mas pegaram nesse santo-do-pau-oco: "O Caio se
divorciou, logo, ele não tem mais nada a nos dizer”. 93
93
Id. Ibid.
94
No programa “Papo de Graça”, Caio Fábio ocasionalmente usa togas étnicas e batas similares as
indianas. O cenário é composto por vários elementos de sua própria casa, com destaque a um fogareiro
acesso, que fica ao centro da mesa do cenário principal. Intermitentemente ao seu programa, a trilha
sonora continua é a canção Panoramic do produtor musical inglês Atticus Ross, que dá um clima “zen”.
112
agudos ou crônicos, no nomos estabelecido na sua sociedade. Esses eventos
recebem agora “um lugar” no esquema das coisas, que é conseqüentemente
protegido da ameaça de desintegração caótica sempre implícita em tais eventos”.
95
Refiro-me ao neologismo digital “postar”, significa enviar uma mensagem eletrônica.
96
"Fui em um culto, dei meu tênis como oferta e meu pai quase me mandou pra fora de casa
descalço.".https://www.youtube.com/watch?v=46oLft5Tsjs&list=UUT2iDke9SuPfp0XO0rr8YSA,
Acessado em 27/08/2014.
113
Santo?" 97 e "Me afastei da igreja e não consigo mais frequentar nenhum lugar. E
agora?". 98
Assim como nos tempos “áureos” da VINDE, quando Caio sustentava diferentes
atividades, também encontramos no “Caminho da Graça” diversas frentes de ação,
articuladas através da mobilização da rede dos participantes das “Estação da Graça”.
Podemos citar o "Caminho Nações" que “sintetiza as iniciativas humanitárias do
Caminho da Graça entre as Nações”. 101 Entre as atividades do “Caminho Nações”
encontra-se o projeto “Pequeninos da Nigéria”, cujo objetivo é o resgate de crianças
acusadas de serem bruxas, por pastores neopentecostais na Nigéria e no Senegal 102; na
área social também podemos citar o “SOS Religar”, com atuação no sertão do Brasil.
Também podemos incluir nestas frentes de atividades do “Caminho” o “AlSakra”,
“Caminho consciência” e “Capelania do Caminho”.
97
"Vi várias curas no culto do Valdemiro. Isso é paranormalidade, indução ou Espírito Santo?".
https://www.youtube.com/watch?v=90WTQUD9uos. Acessado em 27/08/2014.
98
"Me afastei da igreja e não consigo mais frequentar nenhum lugar. E agora?".
https://www.youtube.com/watch?v=Usy7PhvrUQ0. Acessado em 27/08/2014.
99
www.vemevemtv.com.br. Acessado 20/05/2014.
100
< http://blogcaminho.blogspot.com.br/p/grupos-do-caminho.html>. Acessado em 14/10/2013.
101
< https://www.facebook.com/caminhonacoes.wn?fref=ts>. Acessado em 10/07/2014.
102
< http://www.caminhonacoes.com/>. Acessado em 10/07/2014.
114
Observado as atividades do “Caminho da Graça”, passamos para o próximo passo.
Nossa pesquisa de campo, de inspiração etnográfica participante, foi realizada entre
junho de 2013 até fevereiro de 2014 na “Estação da Graça”, em um Campinas, cidade
no interior de São Paulo, em um grupo com cerca de 30 pessoas; além disso realizamos
pesquisas na “Estação da Graça”, em São Paulo-Capital, e ainda em uma outra, ainda
em fase de “plantação”. Para cumprir o objetivo estabelecido, também acompanhamos
sua mídia social, e assistimos a incontáveis vídeos no youtube e a programas da “Vem e
Vê TV”; contamos também com anotações no caderno de campo e conversas informais
com seus principais expoentes; esta análise é seguramente uma fotografia, pois o
movimento está em constante remodelagem.
Nosso primeiro desafio foi delimitar o campo. Havia vários grupos de inspiração
“Orgânicas” ou “Simples” nas mídias sociais ou na busca no Google, em diversas
cidades e estilos. Procurávamos por um grupo cristão com perfil alternativo, no qual as
pessoas se encontrassem em residências ou locais alternativos, com tendência anti-
clerical, conforme convencionamos ser próprio da “Igreja Orgânica”. A esta altura já
havíamos decidido que a delimitação do tema seria o movimento “Caminho da Graça”
por já estarmos convencidos de que, pelo material midiático assistido e através de
conversas com seus frequentadores, tínhamos encontrado nosso “objeto”. Não foi difícil
encontrar via internet o endereço e os contatos da liderança da comunidade na cidade.
103
https://www.facebook.com/ocaminhodagraca/info. Acessado em 10/10/2013.
115
A despeito da formulação teológica acima disposta, supondo que o recenseador
indagasse sobre o pertencimento religioso dos frequentadores do “Caminho da Graça”,
eles poderiam auto “declararem-se” “evangélicos, porém o sub grupo ou a denominação
seria o “Caminho da Graça”, ou a “Estação do Caminho’? Ou apenas declarar-se-iam
cristão. Porém, com as afirmações de D´Araújo de que o cristianismo é o
desvirtuamento do Movimento de Jesus, fica incerto sabermos, de início, se tais grupos
das “Estações”, ou os “desigrejados”, perfazem as fileiras dos “evangélicos não
determinados”.
Jesus nunca quis fundar uma religião. Nada foi mais danoso para a
genuína fé do que terem-na feito tornar-se uma religião, entre as demais.
116
Seguir Jesus é aceitar um modo de ser, é assumir como vida as Suas
palavras, e é dar testemunho do Evangelho não como uma "estratégia de
evangelização", mas sim como a natural vocação da Vida em Cristo.
Portanto, se o que você aqui ler for algo que receba o testemunho interior
do Espírito Santo como sendo verdade conforme o espírito do Evangelho,
então, una-se àqueles que desejam apenas andar conforme o chamado
original dos "do Caminho", conforme o livro de Atos.” 104
Isso posto, contatamos a liderança via chat no Facebook, que me atendeu muito
bem, e estendeu o convite - de uma conversa virtual para uma visita presencial no
domingo. Assim procedi. O grupo da “Estação da Graça” de Campinas se reúne em uma
associação comercial, no centro da cidade. Ao chegar ao local de encontro, notei que
não havia placas de identificação na porta, e que se tratava da Estação por conta da
movimentação no hall de entrada. Soube que o grupo se encontrava em um lugar
público, alugado, e não nas residências, porque naquela altura, a quantidade de
“caminhantes” já extrapolava o limite da capacidade de realizar as reuniões nos lares
dos irmãos; logo, decidiram por alugar uma vez por semana um espaço comercial no
centro da cidade “para ficar perto para todos”, por R$ 80,00 mensais.
104
"O que é o Caminho?".<ocaminhodagraca.blogspot.com.br>. Acessado em 11/10/2013.
117
urbano. Na Antropologia religiosa habitual, o lugar do culto é fixo, porém, quanto ao
“Caminho da Graça”, o grupo reúne-se em um espaço de circulação pública não ornado
de elementos caracterizados como religiosos, tais como crucifixos, púlpitos,
confessionários, batistério, etc. Encontramos nas observações de campo, tão somente
uma sala de reunião, por assim dizer, “secularizada”, localizada dentro de uma
associação comercial. A forma como os sujeitos tramam suas relações pode estar
diretamente vinculada ao espaço em que estão inseridos, podendo constituir um
paradoxo produzir uma experiência com o sagrado em um espaço a ele não delimitado.
Marc Augé (2003) lança mão da ideia de “não lugares”, que mesmo não se
tratando uma discussão religiosa, entendemos ser perfeitamente aplicável para elucidar
a relação dos espaços na religiosidade urbana. Em sua análise, ele formula dois tipos: os
“lugares” e “não-lugares”. Os “lugares” são espaços definidos “duros”, os “não lugares”
são espaços de transitoriedade, de fluxo, com identidades múltiplas. Para Augé (2003, p.
98): “Na realidade concreta [...], os lugares e os espaços os lugares e os não-lugares
misturam-se, interpenetram-se. A possibilidade do não-lugar nunca está ausente de
qualquer lugar que seja. A volta ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares”.
É nesta interpenetração evidenciada por Augé que se pode situar os lugares de encontro
das “Estações do Caminho”, nenhum deles, pelo menos em nossas pesquisas, possui um
“lugar sagrado” para a realização de seus encontros. Os espaços de circulação pública
são “não lugares”, porém se transformam em “lugares” para que os aplicativos de fé de
seus sujeitos religiosos sobrevivam diante da secularização e da constante necessidade
de adaptação.
118
Porém, em uma espécie de gramática ritual, ao iniciar-se o encontro (ou “culto”)
a reverência mudava; após a oração inicial, o local é o espaço de culto: “onde estiverem
dois ou mais, lá eu estarei”, como afirma Jesus Cristo em Mateus 18,20. Em outro grupo
orgânico, na mesma cidade, os encontros acontecem em uma cafeteria, o grupo não tem
vínculos, nem um nome específico. Entre uma conversa e outra, realizam suas orações,
estudos da bíblia, tudo entre o vai e vem dos garçons e demais frequentadores do local.
Ressaltamos também grupos que operam a religiosidade cristã em locais “não
religiosos”, observados no grupo “Igreja Orgânica Brasil” (IOB). 105 Neste espaço
virtual, os “membros” disponibilizam fotos de seus encontros. É relevante ressaltar que
na maioria dos grupos “orgânicos” observados em diversos estados do Brasil na IOB, os
interlocutores se reúnem “com simplicidade” em residências ou locais “não sagrados”,
como cafeterias, pizzarias, praças, escolas. Nestes casos, a configuração espacial
normalmente conta com cadeiras ou sofás em rodas, revelando uma necessidade de
“falta de centro”, ou disposto em círculo para conferir ao grupo maior interação, sem a
tradicional disposição em um formato de auditório, encontrada na maioria das Igrejas.
Em cada encontro que participamos, notamos que não havia uma liturgia
estabelecida. Em algumas ocasiões o responsável pelas canções estava presente, em
105
< https://www.facebook.com/groups/1464550993778819/photos/>. Acessado em 20/08/2014.
119
outras não. Não era problema levar o encontro sem música ou sem “momento de
adoração”. Em conversa com um de seus líderes, fiquei sabendo que um dos músicos
gostaria de montar uma “banda fixa” para as liturgias do culto. Este líder não
concordou, porque preferia que o tal músico dedicasse o tempo no qual estivesse nas
reuniões investindo em relacionamentos e, quando se sentisse “inspirado”, poderia
conduzir alguns cânticos. Para acompanhar os cânticos às vezes distribuíam uma folha
contendo as letras das canções. No “Caminho da Graça” em São Paulo, conversando
com um dos líderes, soube que lá também não havia banda. “-Nem banda, nem nada”. O
líder me explicou que lá as coisas também funcionavam através dos “dons”, com
naturalidade. Não havia eleições para cargos, liderança formal, equipes, obreiros, etc.
Para o líder o que “importava era a vida” real, não os aparatos religiosos.
120
conteúdo ou alguma “palavra de inspiração”. Algumas vezes o “violeiro” não escolhia
as canções e solicitava que o grupo as sugerisse. Interessante destacar que, no repertório
musical da “Estação” pesquisada, também havia canções “seculares”: (a maioria de
MPB, das décadas de 80 e 90), canções de Almir Satter (“Tocando em frente”), Lulu
Santos (“Tudo bem”); Legião Urbana (“Pais e Filhos”); Roberto Carlos (“É precisa
saber viver”). Elas eram entoadas durante o “momento de louvor”, junto às outras
canções de cunho mais religioso.
“A gente faz da mesma forma que o Caio faz em Brasília e como aprendemos
com ele, usamos música que tem a ver com o Evangelho, caso haja alguma
canção que tem a ver com o momento em que estamos vivendo e sentido, nós
usaremos a música, independente das classificações. O que vai dizer se usaremos
ou não a canção e seu conteúdo e não está nesta bobeira desta divisão entre
música ´gospel´ e ´secular´, graças a Deus com o Caio e o Caminho da Graça,
encontramos um jeito de compartilharmos desta maneira”
Ora, uma das características apontadas por Prócoro Velasquez Filho (1990)
acerca da implementação do protestantismo no Brasil é que o convertido era
subordinado a uma vida santa, que significava opor-se a cultura brasileira (católica) e
adotar a cultura anglo saxã (do missionário “transcultural”). Daí a importante
colaboração de Antônio Gouvêa Mendonça (2008) sobre a inserção do protestantismo
no Brasil, assimilado através de canções religiosas americanas e europeias. Até
recentemente, antes da penetração da cultura dos “cânticos” nas igrejas evangélicas, tais
“hinos” estrangeiros eram entoados, ao passo que a musicalidade brasileira era
abominada.
Para Marina de Oliveira (2013, p.16), existe um movimento cultural cristão que
pretende valorizar a arte “para Deus, porém desprovida da gramática religiosa”,
admitindo que a transcendência cristã também pode ser alcançada pela beleza estética.
Segundo Oliveira, o “Hope Rock” ou o “Novo Movimento” segue esta premissa. As
106
As conversas com participantes dos encontros foram escritas em um caderno, que demos o nome de
caderno de campo.
121
bandas cristãs elencadas por Oliveira 107 costumam tocar canções de artistas não cristãos
da MPB:
“Diversas bandas têm produzido música que seja acessível a todos os públicos, e
mesmo sendo cristãos evangélicos, dispensam o rótulo do gospel, embora em
suas composições se perceba o extrato da filosofia cristã e temas relacionados à
fé, como a beleza da criação divina, a esperança de dias melhores, o amor ao
próximo. Este novo modo de fazer música tem sido chamado por uns de Hope
Rock, por outros de Novo Movimento, porém não se trata de um movimento que
tenha nome oficial e talvez nem seja essa a pretensão das bandas da cena. Mas
em comum, há o desejo de se cantar uma música que fale de esperança,
produzindo arte a partir de uma perspectiva cristã, mas deixando de lado o
proselitismo religioso.”
“A palavra pregada no Caminho da Graça” naquele dia até que foi boa. Nada a
discordar. E ouvir um irmão pregar, isento de terno, gravata foi algo positivo.
Nenhuma crítica nesse ponto. Mas e aí? Nos momentos dos louvores... Que tal
tocar um Raul Seixas? Na sequência um INXS? Depois Mariza Monte? Show
né? Mais show ainda é atribuir essas lindas canções à ação do Espírito Santo...
Rolou até um som do ´Nirvana´, e até um ateu se sentou à mesa para participar
da ceia. Na minha opinião o sistema orgânico pode se tornar tão herético, quanto
o sistema institucional”. (“Luiz”, 33 anos)
107
“Palavra Antiga”, “Crombie”, “Tanlan”, entre outras.
122
sucos colocados na mesa do centro. Após cerca de 30 minutos de “ceia” o encontro é
retomado. O CG São Paulo, Santos e a “sede” em Brasílias são as maiores “Estações do
Caminho”. Em São Paulo, cerca de 200 pessoas se reúnem por final de semana, em
Santos, cerca de 100 pessoas. Em Brasília, onde quem prega é Caio Fábio, o auditório,
sempre cheio, conta com de cerca de 500 lugares.
123
“A supervisão, identifica, testifica, coparticipa e se disponibiliza em alegria e
devoção as estações. Já tivemos vários grupos que se aproximavam com a
proposta de Caminhar conforme o evangelho, porém eram tudo....menos grupos
que se reuniam segundo esta proposta, conforme falei acima Neste caso,
supervisão serve para o acompanhamento dos grupos, dos mentores com escuta
pastoral, de orientação etc. Nosso compromisso é com a saúde do evangelho
entre os propostos grupo do Caminho da graça. Não é controle, é serviço
compromissado. Acontece da seguinte forma: Tem a supervisão geral do
movimento, no Brasil e fora dele. Eu estou supervisor geral, desde 2011. E
temos supervisores regionais, que são responsáveis por várias estações e estão
em contato com os mentores sempre colhendo informações. Eu faço reuniões
mensais com estes supervisores, que me informam sobre estas estações, e as
visitam quando possível. Eles me mantêm informada sobre tudo, não só nestas
reuniões, mas em contatos diretos e diários quando necessário. Além disso temos
encontros, tanto somente de supervisão, como de mentores e supervisão de 1 a 2
vezes por ano, dependendo da viabilidade. ” 108
Por outro lado, vale a pena atentar à expressão “estação”, utilizada para designar
estas comunidades. Nas palavras da própria liderança, o termo invoca um sentimento de
lugar transitório, como uma estação de trem, onde as pessoas vêm e vão. “Quem quer
109
vem, quem não quer não precisa vir”. É caro à sociologia da religião realizar suas
analises a partir da construção das identidades dos indivíduos circunscritos ao ethos
denominacional (pentecostal e a anomia; histórico e a racionalidade, etc). Ernest
Troeltsch (1987), reconhecido por sublinhar as tipologias “igreja” e “seita, sendo esta de
vínculos mais soltos e aquela de vínculos mais “rígidos”; em sua terceira tipologia, a
“mística”, encontramos um conceito chave que talvez possibilite uma melhor
compreensão deste “pertencimento”. Vejamos o que afirma Sérgio da Matta (2008):
108
Depoimento coletado via Skype, com supervisor do “Caminho da Graça”.
109
"Estação Salvador Centro - encontro dia
17.07.10".<https://www.youtube.com/watch?v=FhT6PFpZ7bw>. Acessado em 10/10/2013.
124
Logo, a presença de comunidades “orgânicas” ou as “Estações do Caminho”
reforçam a hipótese pós-moderna de transitoriedade e liquidez (Bauman) social 110, onde
as identidades se estabelecem não mais em “garagens”, mas em “estações” transitórias,
não sem antes experimentarem, neste momento transitório, um sentimento de pertença e
agregação. Conforme destaca Michel Maffesoli (2000, p. 43), que forjou o termo
“neotribalismo”, caracterizado pela “fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela
dispersão”, é no seio de um ajuntamento que podem ocorrer “condensações
instantâneas”, frágeis, porém no momento em que acontecem são profundamente
emocionais. É possível afirmar que cada um é ao mesmo tempo ator e espectador. A
concatenação de símbolos orgânicos dentro de uma sociedade, a natureza, a sociedade,
os grupos e as massas formam uma “nebulosa” cujo efeito é indubitável sobre a
construção do imaginário coletivo. É nesta característica da valorização de comunidade
de pequenas dimensões que queremos insistir. A estes ajuntamentos Maffesoli
denomina “união em pontilhado”, ou uma biografia religiosa escrita a lápis. Para
François Houtart (2002, p. 23)
110
Verificar também o conceito de “homem flexível” de Richard Sennet (1999).
125
congregações novas. [...] Evidentemente, o engajamento religioso significa
mais do que freqüentar os cultos semanais, pois muitos americanos envolvem-
se intensamente numa ampla variedade de outros grupos associados às igrejas,
tais como escolas dominicais, grupos de estudo da Bíblia, grupos de solteiros
etc. Na década de 1980, o movimento desses pequenos grupos pode ter
crescido muito, especialmente quando os líderes religiosos viram seu potencial
para revitalizar as congregações em declínio e de obter um crescimento rápido
de congregações novas.”
“Líquido moderno é uma sociedade em que as condições sob as quais age seus
membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a
consolidação, em hábitos e rotinas [...] as realizações individuais não podem
solidificar-se [...] em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em
condições de incertezas constantes”.
126
Concluindo, conforme Hervieu-Léger, temos um movimento religioso de
“peregrino” e “convertido”, com intensa recomposição e circulação simbólica em seu
habitus religioso. Se a religião por muito tempo foi analisada pelo fato de que
proporcionava coesão social (Durkheim), ou para solucionar condições de anomia entre
seus praticantes, proporcionando um ambiente de segurança existencial, com a “pós
modernidade”, a experiência religiosa fica cada vez mais capilarizadas, ao longo de
grupos cada vez mais pormenorizados. Podemos, como último apontamento, levar em
consideração o recrudescimento do incentivo do “empreendedorismo” no país,
substituindo uma carreira profissional estável pela capacidade dos indivíduos de
“construírem com suas próprias mãos” seu próprio negócio. Podemos aventar este fato
social e atrela-lo também à capacidade dos sujeitos de, descontentes com sua agência de
fé, “abrirem” seu próprio grupo, emancipados dos eixos das principais denominações,
ou recorrendo à linguagem empresarial, criando sua comunidade “à sua imagem e
semelhança”. 111
111
Notamos que muitos dos mentores do “Caminho” ou líderes de “Igrejas Orgânicas” em suas atividades
profissionais, exercem algum tipo de “empreendedorismo”: são concurseiros, comerciantes, profissionais
liberais, etc.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luz do que foi analisado podemos concluir que um novo horizonte se abre aos
pesquisadores acerca das recomposições dos dissidentes do universo evangélico, que
podem, em hipótese, fazer parte dos cerca de 9,3 milhões de “Evangélicos não
determinados” (Ponderamos que há muitas críticas em relação ao método de coleta do
IBGE no quesito “religião”). Os “desviados” podem desenvolver uma vida espiritual
solo, ou customizar sua fé em comunidades cada vez mais atomizadas, como mostram
os resultados da pesquisa. Portanto, podemos concluir que a possiblidade de
pertencimento religioso, experimentado nas frestas dos grandes eixos denominacionais,
amiúde, se entrecruzaram, produzindo novos percursos. Nos últimos anos,
especialmente, aceleraram-se os “trincametos” e as “múltiplas vias”, como demonstram
as amostras censitárias, apontando os números crescentes dos autodeclarados de
“múltiplas pertenças”, “Sem religião” e “evangélicos não determinados”.
128
romano, quando da conversão do Imperador Constantino. Os três séculos de
hibridizações, no qual se dá o “Cristianismo primitivo”, torna o processo de sua
reconstrução de tarefa de grande envergadura, para não dizer impossível, tornando-o um
tempo mítico e romanceado pelos cristãos das mais variadas épocas.
Frisamos ainda que a cultura das mega igrejas neopentecostais no Brasil, além
de arrebanhar vários fiéis pela porta da frente, enfrenta um outro fluxo, o da porta dos
fundos; em um movimento similar a uma porta giratória, retroalimentada pelos fiéis à
procura de respostas diversas. No entanto, como destacamos, incluímos a este fluxo,
uma sub-via: a da dissidência. Cada vez mais avantajadas, à medida que as práticas de
determinadas igrejas, de apóstolos, de correntes financeiras, “rosas ungidas”, tornam-se
“bizarras” e chocantes aos frequentadores. Por outro lado o impacto de igrejas
conservadoras e fundamentalistas, em uma sociedade que celebra a liberdade religiosa
plena, pode proporcionar um “desânimo religioso”, por conta das regras rígidas e das
vigilâncias morais de outros segmentos religiosos.
Por isso foi importante destacar as técnicas e teorias das “Igrejas Orgânicas”,
que ao mesmo tempo pretendem ser uma restauração da fé neotestamentária, mas
também, um espaço de “liberdade”, com menos “hipocrisia” e menos vigilância moral,
retomando um espírito familiar e associativo, que, conforme Robert Putnam (2000),
encontra-se em declínio nas sociedades ocidentais.
112
FERREIRA, Pedro P. "NTICs e socialidade contemporânea: uma entrevista".
<pedropeixotoferreira.wordpress.com/2014/04/06/ntics-e-socialidade-contemporanea-uma-entrevista>.
acessado em 10/08/2014.
129
sociedades contemporâneas: "nossos pequenos dispositivos de bolso são tão poderosos
que não apenas modificam o que fazemos, mas modificam quem somos." 113
113
TURKLE, Sherry, "Connected, but alone?". <www.ted.com/talks/sherry_turkle_alone_together#t-
151273>. Acessado em 10/10/2013.
114
Refiro-me do programa estilo talk-show The Noite, sua entrevista já soma quase um milhão de
exibições.
130
Concluímos afirmando a carência por mais pesquisas sobre este fecundo
panorama que aqui não se dá por terminado. O “Caminho da Graça”, tanto quanto o
fenômeno mais geral das igrejas não institucionais, exige outras tantas análises, pois no
nosso entender, segue como “tendência” dentro campo religioso evangélico brasileiro.
131
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139
ANEXO I - “Constantino o décimo terceiro apóstolo”
“Você que é cristão, fique sabendo de uma coisa: o que sobrou do evangelho, da fé em
Jesus, da fé puro e simples do cristianismo é um verniz de nada, basicamente nosso
arcabouço todo, nossas confissões de fé, nossas declarações doutrinárias, todas estas
coisas vêm do imperador Constantino e de seus bispos. Ele foi ungido o décimo terceiro
apóstolo de Jesus e basicamente dele vem a semente original que fomentou, a partir do
quarto século, todo este ´monstro´ que é o cristianismo mundial, que é um remanescente
do império romano, que encontrou um modo de inocular-se na antítese do próprio
império romano que era a fé em Jesus. A sutileza foi tão grande que eles pegaram um
elemento mais antitético em relação a que o império romano representado, e este
elemento passa a carregar o império romano. O império romano está vivo entre nós [...]
em nome de Constantino. E não somente na igreja Católica, mas na cristandade oriental
e ocidental, no próprio protestantismo, e no nosso meio da igreja Evangélica e de um
modo especial, você vê os perfis de Constantino, que poderíamos chamar de
´macedinhos´, os perfis estão presentes. [...] A grande subversão de Constantino, foi a
grande subversão que colocou [a igreja] em um caminho de infindas outras subversões
que chegaram até os nossos dias, com esta coisa que parece bruxaria, que carrega o
nome de Jesus, mas não tem nada a ver com o evangelho. Um documentário simples
como este [a fala de Caio foi antecedida por um documentário] e vê como a igreja é a
cara do cristianismo, neste sentido ela se manteve em coerência com este cristianismo e
totalmente divorciada do evangelho. Pra mim isso só tem que ser sepultado esquecido,
com muitos perdões à Deus: ´Senhor perdoa-nos por termos sido discípulo do
estelionato durante tantos anos, temos chamado de igreja este império de ambição, de
140
poder, de volúpia que corrompeu tudo o que havia de bom e de puro [grifo meu],
porque os bispos oprimidos até então, da noite para o dia viraram eminências no
império Romano. [...] ou a gente se converte, esquece esta porcaria toda e volta pro
evangelho puro e simples [...] Isso deve ser praticado como um zeramento [sic] com um
compromisso nosso com o que não é evangelho na história o que implica e reconhecer
esta história muito bem, para abandoná-la totalmente, com a consciência que é uma
história anti-evangelho. [...] É a história da grande meretriz, do falso profeta, é a história
dos anticristos que saíram se nosso meio, o pior inimigo do evangelho na Terra é o
cristianismo [grifo meu]. Este ´pacote´ é anti cristão, leva a alcunha de Jesus mas não
tem nada a ver com Jesus, o que a gente vê aí é o ´está escrito´ deturpado, eu estou
´metendo o pau´ nesta igreja de Constantino. Esta igreja que está ai [atualmente] é
irreformável. [...] O cristianismo é pra ser abandonado se alguém, de fato quiser fazer o
caminho simples de Jesus. [...] E nó voltamos à um período Constantiniano com poucas
outras vezes na história, e aqui no Brasil no estamos em franco processo Constantino
Macediano [uma referência ao fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir
Macedo], criando, já há algum tempo, o mesmo surto de poder, de domínio, de
controle”. (Constantino ou Jesus.
https://www.youtube.com/watch?v=fqsZyUTZalo&feature=kp. Acessado em
03/03/2014)
Anexo II
141