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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

JEAN DE LÉRY E A ESCRITA DA HISTÓRIA


Uma heterologia calvinista

Christian Brially de Medeiros

São Bernardo do Campo, setembro de 2012


UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

JEAN DE LÉRY E A ESCRITA DA HISTÓRIA


Uma heterologia calvinista

Christian Brially de Medeiros

Prof.º Dr. Lauri Emílio Wirth

Tese apresentada em cumprimento parcial


às exigências do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião,
Faculdade de Humanidades e Direito, para
obtenção do Título de Doutor em Ciências
da Religião.

São Bernardo do Campo, setembro de 2012


A tese de doutorado sob o título “Jean de Léry e a Escrita da História: uma heterologia
calvinista”, elaborada por Christian Brially de Medeiros foi apresentada e aprovada em 19 de
outubro de 2012, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth
(Presidente/UMESP), Claudio de Oliveira Ribeiro (Titular/UMESP), Etienne Alfred Higuet
(Titular/UMESP), Hermisten Maia Pereira da Costa (Titular/MACKENZIE) e Lyndon de
Araújo Santos (Titular/UFMA).

____________________________________
Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth
Orientador e Presidente da Banca Examinadora

____________________________________
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Ciências da Religião


Área de Concentração: Teologia e História
Linha de Pesquisa: História e Narrativa da Experiência Religiosa
DEDICATÓRIA

À minha esposa Kaliane Medeiros pelo


companheirismo, dedicação e pelas
privações da minha presença sofridos
nestes meses de labuta.

4
AGRADECIMENTOS

Ao Deus que nos criou à Sua imagem e semelhança.

À minha esposa Kaliane Medeiros, sem o seu apoio, incentivo e orações este percurso
não teria sido possível.

Ao Rev. Dr. Hermisten Maia Pereira da Costa, amigo e mestre, responsável pela
minha iniciação nos estudos teológicos calvinistas. Devo-lhe todo o conhecimento que
possuo da teologia do reformador João Calvino, sem a qual não seria possível a presente
pesquisa.

Ao Rev. Dr. Wilson Santana Silva, amigo e mestre, incentivador constante de meu
crescimento acadêmico. Devo-lhe o impulso inicial para estudar a obra de Jean de Léry, uma
conversa em 14 de março de 2006 me apontou a lacuna existente nos estudos sobre a França
Antártica no Brasil.

Ao Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. Lugar onde


fui formado, minha casa, um verdadeiro divisor de águas em minha vida espiritual e
intelectual.

À Universidade Presbiteriana Mackenzie pela oportunidade de conviver com uma


grande diversidade de campos do saber e pessoas, uma verdadeira heterologia vivenciada na
prática acadêmica e social.

À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela


concessão da bolsa de estudos que possibilitou a presente pesquisa.

Ao Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth pela orientação desta pesquisa, pelos apontamentos,
problematizações e correções.

À banca de qualificação e de defesa pelos apontamentos.


5
À Igreja Presbiteriana do Brasil calvinista, meu lugar social, onde nasci
espiritualmente e cresci no conhecimento do Senhor Deus Criador.

Ao Presbitério do Oesteriograndense – PROR pelo apoio constante, desde meu envio


ao Seminário JMC até o presente momento. Na pessoa do Rev. José Airton de Andrade e do
Rev. Marcos Severo do Amorim, agradeço a todos.

À Igreja Presbiteriana de Mossoró, minha primeira igreja, lugar dos primeiros passos
na vida cristã, pelo estímulo à fidelidade mesmo a despeito dos embates que travou.

À Igreja Presbiteriana Betel, em particular aos seus pastores e presbíteros pelo


incentivo e apoio aos estudos. E aos vários irmãos que sempre me apoiaram nestes anos de
pesquisa.

À todos os meus familiares e amigos conterrâneos, que mesmo morando distantes, me


acompanharam em oração nesta empreitada.

6
MEDEIROS, Christian Brially Tavares de. Jean de Léry e a Escrita da História: uma
heterologia calvinista. Tese. São Bernardo do Campo: Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, 2012.

RESUMO

A inauguração de um olhar humano do índio tupinambá, eis o que encontramos em Jean de


Léry (1534-1611), um teólogo e missionário huguenote que aporta em terras brasileiras no
século XVI com o propósito de auxiliar na implantação de uma colônia francesa e de pregar o
evangelho, tanto aos franceses que aqui estavam, quanto aos índios tupinambás. O viajante
em sua obra História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América
apresenta um olhar humano do Outro que, além disto, também se apresenta como uma
possibilidade de compreensão do mesmo. Os motivos que constroem esta perspectiva é o que
analisamos neste trabalho, a partir do conceito de heterologia proposto por Michel de Certeau.
Nossa tese afirma que esta hermenêutica do Outro em Jean de Léry é determinada pelo
sistema de pensamento teológico calvinista. A circularidade hermenêutica do viajante francês
está condicionada a Escritura Sagrada, dela parte, a ela retorna. A heterologia proposta por
Jean de Léry se constitui em uma ciência do Outro construída a partir do sistema de
pensamento teológico calvinista.

PALAVRAS-CHAVE: Jean de Léry, João Calvino, Heterologia, História do Protestantismo.

7
MEDEIROS, Christian Brially Tavares de. Jean de Léry and the Writing of History: a
Calvinist heterology. Thesis. São Bernardo do Campo: Postgraduate Program in Religion
Sciences of the Methodist University of São Paulo, 2012.

ABSTRACT

The inauguration of a human eye the tupinamba Indian, here's what we found in Jean de Léry
(1534-1611), a Huguenot theologian and missionary who brings in Brazilian lands in the
sixteenth century with the purpose of assisting in the establishment of a French colony and
preach the gospel, so that the French were here, as the Indians. The traveler in his History of a
Voyage made to the Land of Brazil, otherwise called America presents a human gaze of the
Other that, moreover, it also presents itself as an opportunity to understand the same. The
reasons that build this perspective is analyzed in this work, from concept heterology proposed
by Michel de Certeau. Our thesis states that this hermeneutics of the Other in Jean de Léry is
determined by the system of Calvinist theological thought. The circularity of hermeneutics
French traveler is subject to Scripture, her part, she returns. The heterology proposed by Jean
de Léry constitutes a science Other built from the Calvinist theological system of thought.

KEY WORDS: Jean de Léry, John Calvin, Heterology, History of Protestantism.

8
MEDEIROS, Christian Brially Tavares de. Jean de Léry et l'écriture de l'histoire: Une
hétérologie calviniste. Thèse. São Bernardo do Campo: Programme d'Études Supérieures en
Sciences des Religions, Université Méthodiste de São Paulo, 2012.

RÉSUMÉ

L'inauguration d'un regard humain sur les indiens Tououpinambaoults, voici ce que nous
avons trouvé chez Jean de Léry (1534-1611), théologien et missionnaire huguenot qui
débarque dans les terres brésiliennes au XVIe siècle dans le but d'aider à l'établissement d'une
colonie française et de prêcher l'Évangile, tout autant aux Français déjá établis qu‟aux
Indiens. Le voyageur, dans son Histoire d'un voyage faict en la terre du Brésil, aussi appelée
Amérique, apporte un regard humain sur l'Autre, qui se présente aussi comme une possibilité
de comprendre le Même. Les raisons qui appuient ce point de vue sont analysées dans ce
travail, sur la base du concept d‟hétérologie proposé par Michel de Certeau. Cette thèse
soutient que l'herméneutique de l'Autre chez Jean de Léry est déterminée par le système de la
pensée théologique calviniste. La circularité herméneutique du voyageur français se soumet à
l'Écriture, part d‟elle et y retourne. L‟hétérologie proposée par Jean de Léry se constitue
comme science de l‟Autre élaborée à partir du système de pensée théologique calviniste.

MOTS-CLÉS: Jean de Léry, Jean Calvin, Hétérologie, Histoire du Protestantisme.

9
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

CAPÍTULO PRIMEIRO 25

LENDO JEAN DE LÉRY 25

1.1 – UM NOVO TIPO DE HOMEM 25


1.1.1 – O OUTRO DO MESMO 27
1.1.2 – TOPOGRAFIA DO CALVINISMO 31
1.2 – JEAN DE LÉRY E A CIÊNCIA DO OUTRO 52
1.2.1 – A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA 55
1.2.2 – A ETNOLOGIA DE JEAN DE LÉRY 61
1.2.3 – JEAN DE LÉRY E MICHEL DE CERTEAU: A RELAÇÃO O EU E O OUTRO 66
1.2.4 – UMA HERMENÊUTICA DO OUTRO: CERTEAU APREENDE LÉRY 73
1.2.5 – JEAN DE LÉRY: UMA DESCRIÇÃO DO OUTRO 84

CAPÍTULO SEGUNDO 89

O LUGAR HISTÓRICO DE JEAN DE LÉRY 89

2.1 – A REFORMA PROTESTANTE E O HUMANISMO 93


2 – O REFORMADOR GENEBRINO 103
3 – A FRANÇA DO SÉCULO XVI 113
4 – A FRANÇA ANTÁRTICA 127

CAPÍTULO TERCEIRO 152

A VALORAÇÃO DO OUTRO EM JEAN DE LÉRY 152

10
3.1 – O LUGAR SOCIAL DO MESMO 154
3.2 – A PRÁTICA IMAGÉTICA 172
3.2 – A ESCRITA DO OUTRO COMO REFERENCIAL 195

CAPÍTULO QUARTO 206

A HERMENÊUTICA RELIGIOSA DO OUTRO EM JEAN DE LÉRY 206

4.1 – AS FRONTEIRAS DA CIRCULARIDADE 207


4.2 – A ANTROPOFAGIA RITUAL 225
4.3 – EVIDÊNCIAS DA POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO 239
4.3.1 – MOTIVAÇÕES MISSIONÁRIAS 240
4.3.2 – A RELIGIÃO TUPINAMBÁ 247
4.3.4 – A ESCRITA EVANGELIZADORA 255

CONSIDERAÇÕES FINAIS 262

BIBLIOGRAFIA 267

11
INDÍCE DE FIGURAS

FIGURA 1 _______________________________________________________________ 76
FIGURA 2 ______________________________________________________________ 177
FIGURA 3 ______________________________________________________________ 181
FIGURA 4 ______________________________________________________________ 183
FIGURA 5 ______________________________________________________________ 185
FIGURA 6 ______________________________________________________________ 187

12
INDÍCE DE TABELAS

TABELA 1 _______________________________________________________________ 74

13
INTRODUÇÃO

Jean de Léry (1534-1611) – pastor, missionário e escritor francês –, nasceu em La


Margelle, na França, como filho “de uma família modesta convertida à Reforma”.1 Quando
ainda jovem (“nada se sabe de sua primeira infância”2), contando 18 anos, o huguenote foi
para Genebra estudar teologia sob a orientação do reformador João Calvino (1509-1564). O
vice-almirante Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571), em carta, solicitou a Calvino o
envio de protestantes à França Antártica (ou huguenotes, como assim eram denominados os
protestantes na França no século XVI). Gaffarel aponta que Villegagnon, “o vice-rei da
„França Antártica‟ escreveu diretamente a Calvino, seu antigo condiscípulo na Universidade
de Paris, comunicando-lhe seus projetos”; como implicação deste pedido, “Calvino acolheu
com carinho a imprevista solicitação”.3

Léry é então incumbido –, não sozinho, ao todo são quatorze calvinistas enviados ao
Brasil4 – da responsabilidade de promover a fé reformada na colônia francesa na Baía de
Guanabara, no entanto, ele não vem como ministro ordenado, por ainda não ter concluído os

1
Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique Biloghi, Guy le Thiec, Histoire et Dictionnaire des Guerres
de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998, p. 1031.
2
Paul Gaffarel, Notícia Biográfica in Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, Belo Horizonte/São Paulo,
Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 19.
3
Paul Gaffarel, Notícia Biográfica in Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, Belo Horizonte/São Paulo,
Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 20-21. Ainda em nota Gaffarel afirma que “o original desta carta encontra-se na
Biblioteca de Genebra”. Já Schalkwijk em nota explicativa afirma: “A carta-pedido original não se preservou,
mas o resultado mostra a intenção”. Frans Leonard Schalkwijk, O Brasil na Correspondência de Calvino in
Fides Reformata IX, N.º 1, São Paulo, Mackenzie, 2004. Cp. Frank Lestringant, Le Huguenot et Le Sauvage:
L‟Amérique et la controverse colonial, en France, au temps des Guerres de Religion (1555-1589), Genéve,
Droz, 2004, p. 53; Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil, tomo primeiro, 5.ª ed., São Paulo,
Edições Melhoramentos, 1956, p. 286; Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza
em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 99; José
Gonçalves Salvador, Vozes da História, São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP, 2001, p. 158.
4
Olivier Reverdin, Quatorze Calvinistes chez les Topinambous: histoire d‟une mission genevoise au Brésil
(1556-1558), Genéve/Paris, Droz/Minard, 1957.
14
seus estudos teológicos, mas como sapateiro. Chegou ao Brasil em 1557. Após oito meses da
sua chegada em terras brasileiras, foi expulso da colônia juntamente com os outros
protestantes por Villegagnon, acusados de heresia contra a Igreja Católica. Após cerca de dois
meses convivendo mais intensamente com os índios tupinambás, conseguiu com grandes
dificuldades retornar à França. A sua experiência de viagem, a relação com Villegagnon, a
perseguição e morte dos mártires, a rápida decadência da França Antártica, além do período
em terras brasileiras, resultou em um profícuo relato onde encontramos as primeiras
descrições da fauna e flora brasileiras, bem como uma vívida descrição de seus primeiros
habitantes, sua cultura, sua religião, suas práticas, usos e costumes. A obra História de uma
Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América se constitui em uma riquíssima
contribuição aos estudos sobre os primeiros habitantes brasileiros, a natureza aqui encontrada
ainda intacta, perfazendo a nossa própria história em suas estruturas fundantes.

Ressaltamos o fato de que Jean de Léry quando se depara com os índios tupinambás
em seu estado de completa nudez, por exemplo, não é tomado por repulsa, mas por surpresa e
admiração; reconhece uma religiosidade nos tupinambás; relata a guerra entre as tribos
indígenas com imparcialidade; descreve o índio como ser humano. Deste modo, compreende
o Outro dentro do seu próprio sistema de vida, por assim dizer, ou em outras palavras segundo
a visão de mundo do próprio habitante do Novo Mundo. Léry reflete o pensamento de sua
época, o lugar social que determina e autoriza o seu discurso. Mas que pensamento é este que
não impõe sobre o indígena uma conceituação dominadora e que não tem uma pretensão de
subjugar? Esta tese sustenta que a resposta para o olhar diferenciado e valorativo que Jean de
Léry expressa pelo Outro, o índio tupinambá, está fundamentado no sistema de pensamento
teológico do reformador João Calvino, que se constitui central para o viajante na construção
do seu lugar social que se expressa como a visão de mundo que determinará suas
interpretações e ações em terras brasileiras. Portanto, o relato de viagem de Jean de Léry é
definido em sua semântica pela teologia de Calvino que fabrica a estrutura de pensamento que
o domina e se externaliza neste encontro com o Outro.

O poder da palavra em fazer transcender as imagens vívidas de um tempo perdido,


trazendo-as ao nosso tempo presente, a supressão da clivagem, se constitui em um ponto de
partida primordial para a compreensão da formação da civilização brasileira. Temos diante
dos olhos uma narrativa inovadora na própria forma de construção do texto que motivou e,
ainda motiva, a construção de uma perspectiva sobre o Brasil em uma viagem historiográfica

15
que chega até a presente época. Encontra-se em Léry uma forma de escrita não somente
inovadora, mas além disto, representativa da época da qual ele fazia parte, um momento de
rupturas e transições, um período de transposição de fronteiras. Léry, deste modo, demonstra
um ponto de partida moderno para a construção textual e a narrativa sobre o Novo Mundo
caracterizado pela fidedignidade do relato, segundo categorias científicas, em contrapartida às
utopias e visões paradisíacas, características tão comuns ao tempo do medievo, que
determinaram outros relatos de viagem neste mesmo período.

Em resumo, nossa tese concebe que Jean de Léry, é um representante da teologia


calvinista no Brasil do século XVI, e este lugar social, que lhe confere autoridade e sentido, é
determinante para a construção de sua visão do Outro que se caracteriza pelo respeito e
valorização do ser humano, e além disto, pelo desejo de conversão deste índio à religião
reformada.

O huguenote francês Jean de Léry apresenta um olhar humano do índio tupinambá e


externaliza a importância do mundo onde este vive, portanto, reconhece o valor do índio
como um ser que deve ser compreendido dentro de sua própria estrutura social e cultural, e
não como inferior ao europeu supostamente civilizado, no entanto, capaz de ações terríveis
por motivações egoístas. Nossa hipótese surge a partir do fato de Léry ser discípulo do
reformador João Calvino, um humanista bíblico. Assim, segue-se que Léry também é
defensor das mesmas concepções teológicas que interpretam o mundo como criação de Deus e
o homem como imagem e semelhança do Criador. Desta feita, o índio tupinambá é digno de
valor, pois reflete a beleza de Deus.

Léry é um homem de sua época, um humanista renascentista, no entanto, a sua


teologia calvinista é essencialmente determinante na estruturação do seu pensamento, da sua
mentalidade observável e expressada no seu relato de viagem ao Brasil quinhentista. Esta
construção calvinista é a base fundante do que Certeau chamou de heterologia, a ciência do
Outro que fora proposta a partir do relato de Jean de Léry. Esta interpretação do Outro
somente é possível em Jean de Léry pela sua estrutura de mentalidade calvinista, desta feita,
sem considerar esta estrutura não é possível compreender a construção semântica fabricada
pelo huguenote.

Nossa hipótese norteadora da presente pesquisa consiste no fato de que o olhar


valorativo, isto é, de respeito, apreço e admiração pelo índio tupinambá apresentado por Jean
16
de Léry em sua obra História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, é movido e determinado por sua teologia calvinista que dialoga com o humanismo
renascentista, no entanto, está circunscrita aos limites da Escritura Sagrada, o que possibilita a
criação da ciência do Outro. Este é o lugar social onde o discurso de Léry adquire sentido,
perfazendo deste modo, a chave de leitura da sua operação historiográfica.

O estudo da obra História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, de Jean de Léry e da produção deste trabalho justifica-se primeiramente por se tratar
do Brasil, da sua história e da beleza da terra, e mais ainda, esta história e esta beleza
pertencem aos brasileiros, portanto, o amor que este francês quinhentista dispensa à nossa
terra deve sim nos mover a estudá-lo, isto por si só já seria um elemento de motivação à
análise desta obra. Além disto, o autor versa sobre o Brasil, país onde vivemos e construímos
os nossos valores materiais, éticos e religiosos, portanto, precisamos conhecer mais as nossas
raízes. Além disto, Jean de Léry aponta um modelo de relação social com o diferente que não
exige a renúncia de seus próprios princípios e valores, o fundamentalismo se representa de
formas e modos diversos. Também apresenta a realidade da impossibilidade, proposta
ingênua, de que é possível ser isento nas análises; contrariamente em Léry a circunscrição a
um lugar é o que lhe conferiu um olhar respeitoso pelo Outro.

Esta obra, além de possuir uma enorme contribuição histórica, também se revela como
um referencial da etnografia, apesar de anterior a tal ciência. O estilo da sua narrativa, sua
religiosidade e sua razoável relatividade também se constituem em elementos a serem
investigados com satisfação e empenho. Podemos observar a importância da obra de Jean de
Léry ao lermos alguns autores reconhecidamente aclamados como grandes estudiosos em suas
respectivas áreas de pesquisa. Observemos.

Nelson Werneck Sodré já atestara a importância de ler o relato do francês Jean de Léry
como via imprescindível à compreensão da História do Brasil, quando em 1960 laçou um guia
bibliográfico de leitura essencial a este propósito chamado: O que se deve ler para conhecer o
Brasil, onde sobre nosso autor em análise afirma:

Jean de Léry nasceu em 1534. De origem humilde, simples sapateiro,


ascendeu com grande esforço no campo dos conhecimentos. Veio ao
Brasil em 1557, colaborar com Villegagnon regressando no ano
seguinte. Seu livro apareceu em 1578, em La Rochelle. Já em 1580,
em Genebra, aparecia a segunda edição; a terceira é de 1585, a quarta
de 1594, a quinta de 1599, a sexta de 1600. (...) Léry faleceu em 1611.
17
Seu livro tem valor etnográfico, histórico e até musical.5

A importância da obra de Jean de Léry para o estudo da História do Brasil é


inquestionável, pois, além de Nelson Werneck Sodré citado acima, outros intelectuais
brasileiros e estrangeiros confirmam a importância singular desta obra.

O historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) assevera: “Jean de Léry,


borgonhês, a cuja pena devemos um importante livro acerca desta expedição, com muitas
notícias sobre a etnografia dos índios, livro que só mais de vinte anos depois se imprimiu”.6

Massaud Moisés, catedrático de literatura, em sua História da Literatura Brasileira ao


tratar sobre as literaturas de viagens, afirma:

Guiando-se tão-somente pelos dados etnográficos e linguísticos que


recolheu, Thévet acabou por se comprometer como informante das
terras do Brasil, a ponto de Léry, no prefácio à sua Viagem, não
titubear em asseverar que vai “demonstrar que [Thévet] foi um
refinado mentiroso e um imprudente caluniador”, num tom agressivo
que não esmorece até as linhas finais do epílogo. O calvinista opõe-se
diametralmente ao franciscano: idoneidade intelectual, espírito crítico,
simpatia pelo aborígene (que o leva mesmo a desapreciar certos
aspectos da vida europeia, sobretudo no tocante ao comércio
matrimonial), argúcia na observação, sensatez, liberdade no exame
dos fatos, larga diversificação de pontos observados, e, acima de tudo,
um estilo límpido e corrente, vivo e saltitante, que se acompanha com
agrado. Por fim, Léry encerra interesse histórico e etnográfico, mas
ultrapassa o âmbito estrito da literatura brasileira.7

Outro testemunho da importância desta obra encontramos com o sociólogo e um dos


maiores historiadores brasileiros, Gilberto Freyre (1900-1987), que se refere a Léry como
“simples homem de bom senso”8 e, como “um dos dois mais seguros cronistas que

5
Nelson Werneck Sodré, O Que se Deve Ler para Conhecer o Brasil, 7ª. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
1997, p. 330.
6
Francisco Adolfo de Varnhagem, História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de
Portugal, Tomo Primeiro. 6ª. ed. São Paulo: Melhoramento, 1956, p. 287.
7
Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira: das origens ao romantismo, vol. 1, 7.ª ed., São Paulo,
Cultrix, 2001, p. 57. No parágrafo imediatamente anterior expõe: “Dois cronistas conheceu o malogrado sonho
da França Antártica: o frade André Thévet, autor de Les Singularitez de la France Antarctique, autrement
nommée Amérique, et de plusieurs terres et isles... (1558), e o calvinista Jean de Léry, autor duma Histoire d‟um
voyage faict em la terre du Brésil, autremment dite Amérique... (1578), conhecida entre nós pelo título de
Viagem à Terra do Brasil. Ambos acompanharam Villegagnon durante a sua estada no Rio de Janeiro, e em
razão de divergências religiosas e do talento literário de cada um, legaram testemunhos contrapostos. Thévet,
espírito crédulo e enfartado de literatura grego-latina, viu preconceituosamente a realidade brasileira, numa
atitude polêmica e incompreensiva para com o indígena e os fatos ocorridos à sua volta”. Massaud Moisés,
História da Literatura Brasileira: das origens ao romantismo, vol. 1, 7.ª ed., São Paulo, Cultrix, 2001, 56-57.
8
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal, 51ª. ed. revista, São Paulo, Global, 2006, p. 448.
18
escreveram sobre o Brasil do século XVI”.9 Além disto, aponta:

Para o conhecimento da história social do Brasil não há talvez fonte de


informação mais segura que os livros de viagem de estrangeiros –
impondo-se, entretanto, muita discriminação entre os autores
superficiais ou viciados por preconceitos – os Thévet, os Expilly, os
Debadie – e os bons e honestos da marca de Léry, Hans Staden,
Koster, Saint-Hilaire, Rendu, Spix, Martius, Burton, Tollenare,
Gardner, Mawe, Maria Graham, Kidder, Fletcher.10

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss ao descrever suas andanças pelo Brasil, quando
se encontrava na Guanabara relata sua experiência:

O Rio é mordido por sua baía até o coração; desembarca-se em pleno


centro, como se a outra metade, nova Ys, já tivesse sido devorada
pelas ondas. E em certo sentido é verdade, pois a primeira cidade,
simples forte, ficava nessa ilhota rochosa que havia pouco o navio
roçava e que continua a ter o nome do fundador: Villegaignon. Ando
pela avenida Rio Branco onde outrora erguiam-se as aldeias
tupinambá, mas carrego no bolso Jean de Léry, breviário do
etnólogo.11

À frente Strauss, ainda em Tristes Trópicos, chama a obra de Léry de “obra-prima da


literatura etnográfica”.12 Ana Lúcia Vieira corrobora a opinião supra ao afirmar que Jean de
Léry é o “primeiro etnógrafo do Brasil”.13 Além disto, Vieira propõe outra função à obra,
quando expõe:

Na verdade, o texto em questão convida-nos à descoberta dos


Tupinambás, mas também dos Europeus, pois muitas vezes é
construída uma imagem em filigrana a partir da descrição do nativo
brasileiro, parecendo-nos que a descrição dos costumes indígenas não
é mais do que uma estratégia retórica para denunciar a hipocrisia, a
ambição e a cobiça europeias, assumindo, portanto, a narrativa lériana,
à semelhança da cardiniana, uma função de crítica social.14

Seguindo Freyre e Sodré, ressaltamos que a obra História de uma Viagem Feita à
Terra do Brasil de Jean de Léry é imprescindível para o conhecimento da historiografia do

9
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal, 51ª. ed. revista, São Paulo, Global, 2006, p. 245. O outro cronista que Freyre se refere é Gabriel
Soares de Sousa (1540-1591).
10
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal, 51ª. ed. revista, São Paulo, Global, 2006, p. 47. Itálico e negrito meu.
11
Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 77. Itálico e negrito meu.
12
Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 79. Grifo meu.
13
Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry e de
Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008, p. 93-94.
14
Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry e de
Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008, p. 127-128.
19
Brasil, pois para brasileiros tal empreitada se constitui, por um lado honra em se estudar a sua
própria história, por outro, responsabilidade em compreender suas próprias origens, desta
feita, uma conclusão será sempre inevitável: quão rica e bela é a história do povo brasileiro,
ou seja, nossa própria história.

O objetivo central desta pesquisa consiste em mostrar como a teologia de João Calvino
foi determinante para o olhar valorativo de Jean de Léry registrado em sua História de uma
Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, portanto, olhar este caracterizado
por respeito, apreço e admiração pelo índio tupinambá constituindo assim uma ciência do
Outro. Quatro objetivos específicos estarão em foco nesta pesquisa que serão atingidos nos
capítulos da tese. No primeiro capítulo descreveremos as ferramentas teóricas que nortearão
o andamento do trabalho. Tomamos como ponto de partida de nossa construção escriturística
a tese de Emile Léonard, onde consideraremos Jean de Léry como um novo tipo de homem: o
reformado. Em seguida o alvo é apresentação da heterologia de Michel de Certeau como
interlocutor da obra de Léry que nos possibilita a compreensão da interpretação valorativa
encontrada na obra, além de evidenciar os pontos de contato com o protestantismo reformado
de Calvino e sua teologia humanista-bíblica. No segundo capítulo, objetivamos situar o autor
e a obra no seu contexto histórico e ideológico, a reconstrução do lugar social através de uma
compreensão panorâmica da Reforma Protestante do século XVI, da França das guerras de
religião, do reformador genebrino João Calvino e das relações que se constituíram em torno
da França Antártica. Considerando que um discurso somente pode ser entendido dentro do
seu arcabouço de construção primário, objetivamos reconstruir o ambiente de produção da
obra que determinada o seu sentido interpretativo do Outro, pois, Jean de Léry é um
representante do seu lugar social. No terceiro capítulo, apresentaremos a partir da própria
obra de Jean de Léry como ele constrói a valorização do Outro, para tanto, dois focos são
centrais: o uso que o viajante faz das representações imagéticas carregadas pela ótica
representativa do calvinismo no contexto do humanismo renascentista, evidenciando a
descrição e a defesa do índio como ser humano, e em seguida, mostraremos como o Outro é
utilizado como um espelho e parâmetro de interpretação, pois em diversos momentos do
relato o índio tupinambá e suas práticas são tomados como referencial interpretativo do
europeu e suas ações no Século XVI. Por fim, no último capítulo objetivamos apresentar esta
valorização relativista do outro através da interpretação que Jean de Léry faz da antropofagia
ritual como religiosidade tupinambá com admiração, e também discordância, no entanto, sem
ser depreciativo. Além disto, apresentaremos a possibilidade de conversão ao protestantismo
20
reformado defendida pelo huguenote, evidenciado diretamente em seu discurso pela
apreensão da palavra que confere voz ao tupinambá, pois a apreensão linguística é
característica essencial na Reforma Protestante do século XVI, portanto, pleitear a
possibilidade de conversão se apresenta como uma valorização do Outro.

O referencial teórico por excelência que nos valeremos para a construção de nosso
pressuposto norteador é a tese do historiador Emile G. Léonard que afirma ser Calvino o
fundador de uma nova civilização e de um novo tipo de homem, o reformado; além de
iniciador de um novo tempo, o moderno; apontando que uma das características essenciais
deste é a valorização do ser humano por excelência. Entendemos ser este o fio condutor para
a compreensão das mentalidades existentes na obra História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, de Jean de Léry que apresenta um olhar respeitoso do
índio tupinambá, produzindo uma interpretação das práticas e valores apresentados pelos
habitantes no Brasil do Século XVI como uma expressão deste homem moderno e humanista,
acima de tudo calvinista.

Nosso parâmetro de análise será a abordagem proposta pelo historiador Michel de


Certeau em sua “A Escrita da História”, intitulada “Etno-grafia: a oralidade ou o espaço do
outro: Léry” por entendê-la como ferramenta essencial para a compreensão deste homem
calvinista que é Jean de Léry. Para Certeau, em Léry temos uma heterologia, ciência do
Outro, ou um discurso do Outro, e além de tudo sobre o Outro, atingindo o nível onde o Outro
fala. Assim, Jean de Léry apresenta um “ponto de partida moderno”, “assegura uma
transição”, mesmo que “suponha tradição medieval de utopias e de expectativas onde já se
esboçava o lugar que o “bom selvagem” virá preencher”.15

A preocupação e a atenção dada à relação do eu com o outro possivelmente é uma


característica que expressa algo de caráter existencial no sistema metodológico em Certeau.
A lição de escrita em Léry apresenta-se como uma interpretação, uma hermenêutica do Outro
e, sobretudo de si mesmo. Deste modo pretendemos nos valer das conclusões teóricas
propostas por Certeau para nos conduzir em nossa pesquisa. A principal obra de Certeau para
esta pesquisa é de fato a Escrita da História, no entanto, outras obras são de suma
importância, pois conduzem à compreensão das relações acerca do encontro com o Outro nos

15
Michel de Certeau, A Escrita da História, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 214.
21
mais diversos níveis, que sejam: História e Psicanalise, El Lugar del Outro: história religiosa
y mística, A Invenção do Cotidiano e A Cultura no Plural, entre outras.

De modo mais abrangente pretendemos nos concentrar nos estudos historiográficos


situados na observação das ideias, desta feita nosso objeto em análise por excelência são as
estruturas de pensamento, os modos de pensar socialmente constituídos nas suas mais
diversas relações. Temos em conta a relação existente entre as teses da teologia calvinista e a
hermenêutica do Outro em Jean de Léry como elemento fundante. Entendemos que esta
perspectiva dá conta de compreender as mentalidades norteadoras e formativas das estruturas
de pensamento que determinam a sensibilidade de Léry diante do Outro, assim, temos como
objeto o cotidiano que se expressa na obra, mesmo que no século XVI. Tencionamos explorar
as ações que aproximam os homens mesmo a despeito da distância geográfica e étnica que
encontramos neste relato de viagem. A abordagem adotada segue a perspectiva da História
Cultural em uma intersecção com a História Intelectual, ou mais apropriadamente, segundo a
ótica da História Social das Ideias, para levar a efeito esta pesquisa, privilegiando as formas
de pensar e consequentemente os modos de agir dos personagens em análise, aos quais
nortearam suas práticas por suas formas de pensar, e, além disto, contribuíram para a
produção de mundos sociais que não ficaram circunscritos aos seus próprios limites espaciais
e temporais.16 Além da ênfase nas relações sociais em busca da compreensão do homem
social situado em seu ambiente histórico e ideológico, ou seja, rastrear a relação entre os
sujeitos sociais e suas ideias; o pensamento em conexão com a sua dimensão social.

No entanto, é apropriado lembrarmos as palavras do historiador americano, Robert


Darnton:

Para visitar os mortos, o historiador precisa de algo além de


metodologia, algo como um salto de fé ou uma suspensão da dúvida.
Não importa quão céticos possamos ser quanto à vida futura, mas só
podemos sentir humanidade em relação a todas as vidas passadas.
Não que eu esteja defendendo o misticismo ou o culto aos ancestrais.
Tampouco estou questionando a validade da semiótica e da
narratologia. Tenho certeza de que precisamos pensar seriamente

16
Vd. Francisco Falcon, História das Ideias in Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas, Domínios da
História: ensaios de teoria e metodologia, Rio de Janeiro, Elsevier, 1997, p. 91-125; Ronaldo Vainfas, Históra
das Mentalidades e História Cultural in Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas, Domínios da História:
ensaios de teoria e metodologia, Rio de Janeiro, Elsevier, 1997, p. 127-162.
22
sobre o que fazemos, ao tentarmos explicar a vida e a morte no
passado.17

Este trabalho é fruto de uma pesquisa histórico-qualitativa com uma fundamentação


dialética evidenciada na diversidade de perspectivas visualizadas nas escolhas bibliográficas
que contemplam diversas matizes da produção intelectual. Para conduzir a efeito a aludida
pesquisa como parte deste processo, procederemos a um estudo da história que permeia a
narrativa de Jean de Léry sobre a sua viagem ao Brasil quinhentista e os desenvolvimentos,
históricos, teológicos e filosóficos relacionados, não deixando de perceber o tempo, o lugar,
as contingências e circunstâncias em que o pensamento forma-se.

O escopo da pesquisa se constitui iminentemente de pesquisa teórica, para tanto se fará


um levantamento bibliográfico referente ao estudo em pauta. Procuraremos nos ater aos
textos clássicos, ou seja, obras primárias quando possível. O texto padrão a ser utilizado será:
História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, de Jean de Léry
publicado em 2009 pela Fundação Darcy Ribeiro por julgarmos ser uma edição com elevado
padrão de fidelidade em sua tradução e apresentação. No entanto, não deixaremos de
consultar a Histoire D'Un Voyage En Terre De Bresil de Jean de Léry editado pelo
especialista Frank Lestringant. Contudo, não deixaremos de considerar a edição mais
utilizada nas últimas três décadas em nosso país para o estudo desta obra: Viagem à Terra do
Brasil, publicado pela Editora Itatiaia conjuntamente com a Editora da Universidade de São
Paulo em 1980, com tradução e notas por Sérgio Milliet. Quando no decorrer da
argumentação, faremos afirmações sobre Léry que, por não serem centrais em nossos
objetivos específicos, fundamentaremos a partir de citações diretas do texto em nota de
rodapé para não interferirmos na fluidez do texto. Todas as traduções de obras citadas em
outras línguas são de minha autoria.

Uma nota explicativa importante deve ser considerada com atenção para que
equívocos não ocorram na interpretação deste trabalho. Apesar de usarmos o termo, que por
vezes soa como abrangente, “teologia calvinista” e que pode ser utilizado para descrever todo
o posterior desenvolvimento da teologia do reformador genebrino ao longo de cinco séculos
de história da teologia protestante, nós usaremos este termo no presente trabalho de um modo
restrito, objetivando identificar apenas o pensamento teológico de João Calvino, única e tão

17
Robert Darnton, O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução, São Paulo, Companhia das Letras, 2010,
p. 18-19.
23
somente, o que foi produzido a partir de sua própria pena, ou seja, apenas o sistema teológico
do reformador de Genebra.18

18
“Calvino (…) bem poderia ser o nome de uma doutrina: um sistema organizado de ideias que parecem existir
independentemente do seu criador. Desde o surgimento da Institución, em 1536, somente é possivel falar de
calvinismo”. Michael Walzer, La Revolución de los Santos: studio sobre los orígenes de la política radical,
Buenos Aires, Katz, 2008, p. 37; “A característica mais eminente dos Institutos é seu equilíbrio. Constitui
engano fundamental supor que se trate de um livro que ensina o „Calvinismo‟ e que o „Calvinismo‟ seja o
mesmo que a doutrina da predestinação. É verdade que Calvino acreditava que Deus „escolhia‟ aqueles que
pretendia salvar. Santo Tomás de Aquino também. Também é verdade que, por ser pastor e pregador, Calvino
acreditava (e com outros calvinistas) que essa doutrina era útil e deveria ser ensinada e aplicada. No entanto, ela
não era central às realizações de Calvino como teólogo sistemático. O tomo I dos Institutos começa falando em
Deus: „Que significa conhecer Deus‟; o tomo II trata do conhecimento de Deus em Cristo, e o III da forma pela
qual obtemos a salvação. Somente ao chegarmos ao capítulo 21 do terceiro tomo (capítulo 56 da obra total) é
que encontramos „Da Eleição Eterna, pela qual Deus Predestinou Alguns à Salvação, e Outros à Destruição‟, e é
um dos capítulos mais curtos, com cerca de cinco mil palavras. No tomo IV, passamos ao que se pode chamar
teologia aplicada: a Igreja, os sacramentos, a disciplina, e finalmente, mas não menos importante, o governo
civil, tema ao qual Calvino dedicou 14 mil palavras”. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva,
2006, p. 117.
24
CAPÍTULO PRIMEIRO
LENDO JEAN DE LÉRY

Os que consideram Calvino somente um


teólogo não conhecem bem a extensão de
seu gênio. A redação de nossos sábios
editos, da qual participou ativamente,
honra-o tanto quanto sua Instituição.
Qualquer que seja a revolução que o
tempo possa trazer a nosso culto,
enquanto o amor à pátria e à liberdade não
se extinguir entre nós, jamais a memória
desse grande homem deixará de ser
abençoada. (Jean-Jacques Rousseau).19
Confrontados, como somos hoje, por uma
sociedade desorientada onde o sentido da
solidariedade humana e da
responsabilidade social se enfraquece
mais e mais, sentimos chegado o tempo
de redescobrir o ensino de Calvino sobre
o humanismo cristão que, fundado sobre o
humanismo de Deus, pressupõe uma
sociedade onde o homem age na
qualidade de responsável perante Deus e
responsável por seus irmãos. (W.A.
Visser‟t Hooft).20

1.1 – Um novo tipo de homem

O escopo basilar deste capítulo consiste em demonstrar que o viajante francês Jean de
Léry externaliza em sua escrita a realidade da existência de um novo tipo de homem que

19
Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 64.
“Foi a Reforma do refugiado Calvino que fez dela [Genebra] a cidade de Rousseau, da Liga das Nações e hoje
em dia sede de numerosas organizações internacionais que, às vezes, são úteis”. Patrick Collinson, A Reforma,
Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 108.
20
André Biéler, O Humanismo Social de Calvino, São Paulo, Oikoumene, 1970, p. 08.
25
surge no século XVI, ele mesmo se constitui em uma prova indelével desta inovação na
história da humanidade.21 Certamente este homem novo surge como um resultado lógico de
um processo histórico dinâmico e constantemente em construção, contudo, defendemos, que
este fora moldado determinantemente pela estrutura de pensamento calvinista que desemboca
na produção deste ser humano completamente consciente de sua própria humanidade e de
suas potencialidades. Não poderíamos olvidar da possibilidade concreta de dialogarmos com
um dos principais intelectuais da historiografia religiosa do século passado, o francês Michel
de Certeau, que será nossa bússola e nosso astrolábio nesta viagem ao Outro, o passado, no
século XVI do huguenote francês em terras ameríndias e ao próprio Jean de Léry, embarcados
em sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América
prosseguiremos.

Deste modo, defendemos que se apresenta em Jean de Léry uma forma de escrita
historiográfica não somente inovadora, mas acima de tudo representativa da época da qual
fazia parte, ou seja, a Reforma Protestante22 de cunho calvinista, e o Renascimento. Léry
desta feita nos apresenta um ponto de partida moderno, podemos assim dizer, para a
construção textual e narrativa sobre o Novo Mundo e seus habitantes, na medida em que
busca a fidedignidade do relato que se caracteriza pela veracidade, em contra partida às
utopias e visões do maravilhoso, tão características de seu tempo. Contudo, Léry não está
posto no vácuo da história, é um homem do seu tempo, e o seu tempo “supunha tradição
medieval de utopias e expectativas em que já se esboçava o lugar que o “„bom selvagem‟ virá
preencher”.23 Todavia, Jean de Léry nos apresenta um ponto de partida moderno, mesmo
vivendo em um período de transição.

21
“Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa
estendê-las, capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma
investigação”. Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 45.
22
“Todas aquelas outras reformas somente são chamadas “reformas” devido a sua suposta relação e semelhança
com elementos da verdadeira reforma. Se não tivesse havido a Reforma, a palavra jamais teria sido usada para
indicar o que aconteceu no século X, ou no século XII, ou no século XVIII, ou indicar aquilo que alguns de
nossos desconstrutores sugere que esteja sempre acontecendo”. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro,
Objetiva, 2006, p. 28.
23
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 225.
26
1.1.1 – O Outro do mesmo

Na obra História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América,24
Jean de Léry olha o índio tupinambá com respeito, apreço e até mesmo admiração, faz uma
interpretação relativista25 das práticas e valores apresentados pelos habitantes no Brasil do
Século XVI. Léry não deixar de reconhecer a humanidade dos índios, pelo contrário, a exalta
a tal ponto de apresentá-los como parâmetro de análise comparativa para a compreensão do
europeu, por isso, em diversos momentos louva o comportamento do índio como mais
humano que o do europeu, principalmente quanto aos motivos da guerra e obtenção de
riquezas materiais. Até mesmo quando critica a religião tupinambá não o faz com desprezo,
mas humaniza o índio colocando-o no mesmo patamar de humanidade que o europeu, assim
sendo, a chave para a compreensão de suas interpretações está no lugar teológico de onde fala,
o estado do calvinista. A prova clara deste apreço está na possibilidade de conversão que
Léry claramente advoga, exposta constantemente em seu relato e mais explicitamente na
tentativa de apreensão da língua tupi em um diálogo com um ancião o qual ocupa lugar
privilegiado na obra.26

24
“Na carta atribuída a Vespúcio, conhecida como Mundus Novus, ele relata a experiência direta do navegador
que se aventura no espaço aberto e contempla maravilhado “coisas jamais pensadas”. Nem Vespúcio tinha
ideias muito claras a respeito das terras a que chegara, nem os geógrafos punham-se de acordo sobre a realidade
geográfica dos lugares. O que podia então ensejar um mapa ou uma palavra! O nome América seria adotado
pelo cartógrafo alemão Martin Waldssemuller, ao construir um novo planisfério no qual inclui a terra
recentemente encontrada, com base nas viagens do cosmógrafo florentino. Propõe chamá-la América em 1507.
O nome do lugar nasce, assim, da suposição de terra firme e de continente habitado, com evidências de fato
novo, querendo-se superar o âmbito lendário, instaurado pela suposição de ilhas e passagens. Além do Atlântico
tudo era lenda e, por isso, o testemunho dos viajantes passa a adquirir foros de verdade, e as imagens que se
suscita são todas como evidências”. Ana Maria de Moraes Belluzzo, A Imaginação do Desconhecido in Tânia
Maria Tavares Bessone, Tereza Aline P. Queiroz (orgd.), América Latina: imagens, imaginação e imaginário,
São Paulo, EDUSP, 1997, p. 325-326.
25
Este conceito de relatividade na interpretação de Léry, ou seja, entender o índio dentro de seu próprio sistema
cultural e não eurocêntrico, é enfatiza pelos seguintes autores: Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de
Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry e de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa,
Colibri, 2008; Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André
João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003.
26
Vd. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 245-268. Cp. “O esforço em aprender a língua indígena, que se materializou
em um Colóquio em língua brasílica (tupi-guarani) ao final do relato, permitiu ao missionário reformado a
capacidade de aproximação com o outro pela apropriação do seu universo discursivo. (...) Na Reforma
protestante a questão da língua torna-se crucial na relação entre o sagrado e o profano, em que a palavra escrita
passa a ser a ponte com Deus. Embasado nessa necessária relação, Léry fará a observação “científica” sobre o
índio e sua língua, buscando apreender a configuração física, os costumes, a natureza e a linguagem”. Wilton
Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard
Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 119, 120. Cp. Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de
27
Consideremos a análise fundamentada em Frank Lestringant, especialista em literatura
dos viajantes franceses, feita pelo professor de literatura comparada, César Braga-Pinto sobre
as diferença de escrita entre Jean de Léry e André de Thevet:

Como sugeriu Frank Lestringant, o texto de Léry é fundamentalmente


distinto do de Thevet, no sentido de que neste a personalidade do autor
está fragmentada, enquanto no primeiro a personalidade do autor
tende a se tornar cada vez mais presente e consistente. Lestringant
conclui, talvez com certo exagero, que “a invenção da noção de pessoa
é a novidade fundamental que descobrimos na obra de Léry”.
Entretanto, o que parece singular no relato de Léry não é apenas a
construção da “noção de pessoa”, mas a sólida tematização do “eu”
diante da realidade externa que descreve. Tudo em sua narrativa é
uma demonstração de seu caráter, visto que cada momento de auto-
reflexão serve para legitimar a verdade de sua narrativa acerca do
Novo Mundo. (...) Ao afirmar a responsabilidade sobre suas próprias
palavras, Léry coloca-se em oposição a todos os enganadores e
corruptos, entre eles Thevet, com seus relatos falaciosos, e
Villegagnon, com suas falsas promessas.27

Jean de Léry demostra desta feita, uma visão diferente de André Thevet – compatriota
e companheiro de empreitada com respeito à França Antártica, mesmo que não tenham vivido
juntos na Guanabara –, que segundo a interpretação de Vainfas “é francamente detrator do
índio”28, contrariamente à esta perspectiva, Jean de Léry não enxerga o índio de modo
depreciativo, mas sim valorativo.29 Laura de Mello e Souza não deixar de pontuar de modo

Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry e de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa,
Colibri, 2008, p. 117-119.
27
César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brasil Colonial (1500-
1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 128.
28
Ronaldo Vainfas, A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995, p. 55.
29
“Dois cronistas conheceu o malogrado sonho da França Antártica: o frade André Thévet, autor de Les
Singularitez de la France Antarctique, autrement nommée Amérique, et de plusieurs terres et isles... (1558), e o
calvinista Jean de Léry, autor duma Histoire d‟um voyage faict em la terre du Brésil, autremment dite
Amérique... (1578), conhecida entre nós pelo título de Viagem à Terra do Brasil. Ambos acompanharam
Villegagnon durante a sua estada no Rio de Janeiro, e em razão de divergências religiosas e do talento literário
de cada um, legaram testemunhos contrapostos. Thévet, espírito crédulo e enfartado de literatura grego-latina,
viu preconceituosamente a realidade brasileira, numa atitude polêmica e incompreensiva para com o indígena e
os fatos ocorridos à sua volta”. Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira: das origens ao romantismo,
vol. 1, 7.ª ed., São Paulo, Cultrix, 2001, 56-57. “No decorrer de todo o relato de Thevet há referências
constantes à África e à Ásia, bem como aos turcos e aos árabes, algumas vezes englobados como “maometanos”.
Em geral são comparações de caráter depreciativo, visando ora a desmerecer o indígena brasileiro, ora a
valorizá-lo em relação aos outros infiéis”. Carmen Lícia Palazzo, Entre Mitos, Utopias e Razão: os olhares
franceses sobre o Brasil (Séculos XVI a XVIII), Porto Alegre, EDIPUCRS, 2002, p. 67. “Para Thevet, os
indígenas se tornariam mais civilizados e humanos se convivessem com os cristãos. (...) O huguenote Léry foi
um grande defensor dos povos indígenas, opondo-se a Thevet. (...) Quanto ao ritual antropofágico, apesar de
[Léry] reprova-lo, não deixa de ser coerente em relação ao ato simbólico, em que os nativos comiam a carne do
inimigo para absorver suas virtudes. E vai mais longe, acusando a sociedade europeia de praticar “semelhantes
barbaridades”, referindo-se ao massacre contra os protestantes na Noite de São Bartolomeu, na França, no ano de
1572. (...) Léry logrou compreender o significado simbólico do universo cultural das sociedades indígenas; sem
28
enfático seu apreço pela obra de Léry em detrimentos de outros relatos próximos: “por
transcender a descrição etnográfica e usar a antropofagia como elemento de reflexão sobre a
história da Europa, tomo aqui um outro escrito, mais célebre e mais complexo do que os de
Staden e Thevet: a História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, de Jean de Léry”.30 Para
Jeanneret, Thevet representa um método envelhecido que demonstra uma visão unitária com o
objetivo de perpetuação de um modelo tradicional já ultrapassado; enquanto “a atitude de
Léry testemunha um movimento, simultâneo, de ruptura. Independente dos sistemas prévios,
liberta dos mecanismos da semelhança, ela participa de uma exigência científica nova, que
busca captar a identidade própria das coisas”.31

Nas palavras do próprio André de Thevet encontramos o seu olhar interpretativo do


Outro quando descreve quem são os habitantes da América em sua obra As Singularidades da
França Antártica:

Além dos cristãos que aí se estabeleceram depois da chegada de


Américo Vespúcio, esta região era e ainda é habitada por
estranhíssimos povos selvagens, sem fé, lei, religião e nem civilização
alguma, vivendo antes como animais irracionais, assim como os fez a
natureza, alimentando-se de raízes, andando sempre nus tantos os
homens quanto as mulheres, à espera do dia em que o contato com os
cristãos lhes extirpe esta brutalidade, por isso que devemos louvar
afetuosamente ao Criador por ter permitido que possuíssemos uma
idéia mais clara das coisas, não deixando que fôssemos assim brutais
como estes pobres americanos.32

O historiador Carlos Steigleder inserido no âmbito da Nova História Cultural realiza


uma análise da interpretação de Hans Staden, André de Thevet e Jean de Léry sobre o índio
brasileiro e sua religiosidade de um modo muito significativo. Tal apreciação nós iremos
considerar rapidamente agora por julgarmos a sua pertinência relevante à nossa pesquisa.
Defende Steigleder que Thevet apresenta os índios como tímidos e frígidos em contra partida
ao europeu que é corajoso e destemido, visando comprovar a superioridade europeia sobre o
indígena. Thevet interpreta que os índios deveriam ser semelhantes aos negros por viverem
em condições climáticas semelhantes, o principal fator de diferenciação em relação ao

nada prejulgar, ele não teve tanta dificuldade em penetrar na realidade do outro”. Rosa Belluzzo, Nem Garfo
Nem Faca: a mesa com os cronistas e viajantes, São Paulo, Senac, 2010, p. 69-70.
30
Laura de Mello e Souza, Os Novos Mundos e o Velho Mundo: confrontos e inter-relações in Maria Ligia
Coelho Prado, Diana Gonçalvez Vidal (org.), À Margem dos 500 anos: reflexões irreverentes, São Paulo,
EDUSP, 2002, p. 159.
31
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literatura
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 112.
32
André Thevet, As Singularidades da França Antártica, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1978, p.
98.
29
europeu é a nudez. Para Steigleder, Thevet traduz o indígena como um animal, uma fera
selvagem, atribuindo-lhes barbárie e selvageria como características marcantes ao serem
descritos como incapazes de escolher aquilo que é bom, além disto, são também desprovidos
de razão e de conhecimento, por esse motivo são selvagens. Portanto, os índios não são
humanos em sua inteireza, mas somente na aparência; possuem corpo humano, mas essência
animalesca. No relato de Thevet, segundo Steigleder, a animalização do índio se constitui em
uma interpretação frequente em sua obra. No entanto, quando Steigleder explora o texto de
Jean de Léry, suas conclusões são diametralmente opostas, corroborando nossa perspectiva.
Observemos em detalhes:

Léry enaltece as qualidades, as virtude, do índio e contribui para a


construção do mito do “bom selvagem”. (...) Outra característica
importante que Léry destaca, considerando que a civilização européia
era eminentemente religiosa, cristã, é que os “índios pouco se
preocupam com as coisas deste mundo”. Léry procura aproximar o
modo de vida do índio com o do verdadeiro cristão. Léry, ainda,
aproveita para fazer crítica interna da civilização européia mediante a
descrição idealizada que faz dos índios e a comparação que estabelece
entre eles e os europeus. Se os índios vivem mais e melhor é porque
não conhecem a “desconfiança e a avareza, os processos e intrigas, a
inveja e a ambição”, tão comuns na Europa Quinhentista.
Os relatos de Staden, Thevet e Léry refletem a formação de
estereótipos diferentes em relação ao índio. O imaginário quinhentista
dividiu-se entre inferiorização (Staden e Thevet) e o enaltecimento
(Léry) do índio. De qualquer forma, este imaginário implica a criação
e a projeção de estereótipos para explicar e solucionar a questão
indígena.33

Diante destas sucintas pontuações no que concerne às diferenças interpretativas entres


os viajantes, a questão que sobressai espontaneamente está relacionada ao porquê da “visão-
encontro do outro”34, esta interpretação do tupinambá, ser caracteristicamente apreciativa e
valorativa do humano em Jean de Léry? Naturalmente após este questionamento central não
podemos deixar de interrogar como se constitui esta visão interpretativa do Outro? Sigamos
na tarefa de responder a tais questões.

33
Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade, São
Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 60-64.
34
Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry e de
Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008, p. 13.
30
1.1.2 – Topografia do calvinismo

O pressuposto motivador do olhar valorativo do tupinambá apresentado por Jean de


Léry é claramente perceptível quando consideramos a sua visão de mundo, isto é, sua teologia
calvinista em seu contexto histórico humanista renascentista. Devemos lembrar que todo
discurso possui uma dimensão ideológica que relaciona aspectos e características do texto
com o contexto da sua produção e deste modo conduz a uma construção de sentido do próprio
texto. Para Antonio Gramsci (1891-1937) a ideologia é “uma concepção de mundo que se
manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as
manifestações da vida intelectual e coletiva”.35 Desta feita podemos entender a ideologia ou
visão de mundo como um “sistema de vida” segundo sugeria Abraham Kuyper36 (1837-1920)
como a melhor descrição do termo alemão “weltanschauung”37, conforme usado
primeiramente por Immanuel Kant (1724-1804) e depois amplamente utilizado pelo idealismo
e pelo romantismo alemão. O lugar social em que se inscreve o sujeito e a partir de onde ele
fala é fator determinante para a compreensão da produção de sentido deste texto. A visão de
mundo de Léry foi determinada pelos conceitos calvinistas quanto ao homem e o mundo onde
este vive, compreendia o mundo como criação de Deus, portanto, desta feita, tanto o homem
(seja habitante do Novo Mundo ou europeu), quanto à sua essência deveriam ser interpretados
segundo a importância e o propósito estabelecidos e determinados pelo seu Criador, Deus. A
visão que possui do índio tupinambá é movida pelo conceito apreendido de seu mestre, João
Calvino (1509-1564) tendo em vista que se encontrava em preparação teológica para a
ordenação ao pastorado, paralisada apenas momentaneamente para esta empreitada
missionária no Novo Mundo. Para Calvino o homem foi criado à imagem e semelhança de
Deus, tema bíblico que desenvolve nas suas Institutas da Religião Cristã. Trabalhamos com

35
Antonio Gramsci, Concepção Dialética da História, 9ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p. 16.
36
Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2002. Abraham Kuyper (1837-1920), teólogo,
fundador da Universidade Livre de Amsterdã (1880) e primeiro ministro da Holanda (1901-1905), apresentou o
sistema calvinista como um sistema de vida que possui uma visão de mundo própria com respeito a três aspectos
relacionais distintos: 1) a relação do homem com Deus (dimensão religiosa); 2) a relação do homem com o
homem (dimensão social); 3) a relação do homem com o mundo (dimensão cultural).
37
“O órgão da Weltanschauung é um ato de visão (Anschauung), que se volta para a totalidade da realidade
concreta; (...) um olhar sobre o mundo; um olhar contemplativo sobre a totalidade concreta do mundo”. Rosino
Gibellini, A Teologia do Século XX, 2.ª ed., São Paulo, Loyola, 2002, p. 219. “Se a religião é uma „construção
do mundo‟, a Reforma pode ser vista como uma reconstrução do mundo, mesmo porque nela, em sua vertente
calvinista, estava imbricada uma nova Weltanschauung compreendendo desde a percepção moderna do
indivíduo até a percepção moderna do universo cósmico que iria se completar com Newton”. Klaas Woortmann,
Religião e Ciência no Renascimento, Brasília, UnB, 1997, p. 54.
31
o pressuposto de que a visão de mundo calvinista é determinante para a constituição do
sentido como pretendido por Jean de Léry em sua História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, ou seja, a sua visão do Outro, a sua heterologia, é
construída a partir do sistema de pensamento calvinista.38 Para Certeau, que consideraremos
em maiores detalhes à frente, o lugar social do sujeito determina as chaves semânticas para a
interpretação da escrita historiográfica. Genebra é o lugar social que determina as relações
interpretativas no relato de Léry, assim Certeau expõe.39

Considerando o objetivo essencial que consiste em atingirmos maior profundidade no


conhecimento do lugar social a partir de onde fala o sujeito Jean de Léry, tomamos como
ponto de partida norteador a tese de Emile G. Léonard (historiador francês das mentalidades
especialista em história do protestantismo; teve presença influente no Brasil), em sua Histoire
Générale du Protestantisme40, que apresenta Calvino como o pai de uma nova civilização e de
um novo tipo de homem, o reformado41, além de considerar que uma das principais
características deste novo homem reformado é a valorização do ser humano, seguiremos
pleiteando a tese de que Jean de Léry é membro desta nova civilização, um reformado por
excelência, o que explica seu apreço pelos habitantes do novo mundo em distinção de outros
europeus que aqui estiveram no mesmo período.42

A tese proposta por Emile Léonard é norteadora da presente pesquisa, pois nos
possibilita a compreensão do lugar social do viajante francês ao Brasil do século XVI e o seu
consequente relato de viagem. Para o historiador francês, Calvino “depois da libertação das

38
“A compreensão da doutrina calvinista é fundamental para penetrarmos no universo simbólico de Jean de
Léry, um dos cronistas estudados neste trabalho. Calvinista convicto, Léry vem para o Brasil na expectativa de
auxiliar no estabelecimento do “verdadeiro” Cristianismo na região dos Trópicos, edificando um refúgio para os
crentes perseguidos na Europa”. Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o
índio e sua religiosidade, São Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 22.
39
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 240.
40
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 258, 306-309.
41
Devo esta perspectiva a Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino: o humanista subordinado ao Deus
da Palavra – a proposito dos 490 anos de seu nascimento, Fides Reformata IV, N.º 2, São Paulo: Mackenzie,
1999, p. 15. Observemos outros autores que seguem a tese de Léonard: Jean Boisset, História do
Protestantismo, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1971, p. 63; Gerald R. McDermott, The Great
Theologians: a brief guide, Downers Grove-IL, InterVarsity Press, 2010, p. 97; Giorgio Tourn, Jean Calvin: le
réformateur de Genève, Lyon, Editions Olivetan, 2008, p. 119; Daniel Mercure, Jan Spurk, Le Travail dans
L´Histoire de La Pensée Occidentale, Les Presses de l‟Université Laval, Québec, 2003, p., 68; Bernard Cottret,
Calvino, la fuerza e la fragilidade, Madrid, Editorial Complutense, 2002, p. 176.
42
Cp. Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade,
São Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 64.
32
almas”43 das amarras do catolicismo opressivo escravista, se torna o responsável pela
“fundação de uma civilização”.44 Em seguida tacitamente afirma: “Estava reservado ao
francês e ao jurista Calvino o criar mais que uma nova teologia, um homem novo e um mundo
novo. Esta é a obra que predomina e que nos apresenta a motivação do seu autor. E também é
ela [realizada] não somente em Genebra senão na totalidade de sua extensão através do
mundo e dos séculos”.45 À frente, continua Léonard após descrever a influência política do
reformador, aponta que “o maior êxito de Calvino consiste, sem apreensão, que ele forjou em
Genebra um novo tipo de homem, o “reformado”, e em Genebra esboçou o que viria chegar a
ser a civilização moderna”.46 Por fim, Léonard enfatiza que uma das razões de tão ampla
influência exercida pelo reformador genebrino esteve intimamente ligado ao fato de “não
haver feito acepção de pessoas”47, a valorização do ser humano que fora criado à imagem e
semelhança de Deus, fora uma premissa norteadora da ação influenciadora do reformador de
Genebra para a construção do mundo moderno.

Léonard desenvolve em maiores detalhes a sua tese com respeito ao reformador


genebrino na sequência do capítulo intitulado Calvin, Fondateur d‟une Civilisation.48 Começa

43
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 258.
44
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 258.
45
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 258. Todorov afirma: “Em suma: o homem moderno, incubado por Calvino,
Descartes e Rousseau, e posto no mundo pela Revolução, não conhece nada que seja exterior a ele mesmo. Nem
acima dele (um ser superior), nem além (seres semelhantes); ele está condenado a permanecer em si mesmo”; e
continua: “O preço da liberdade é, portanto, duplo. De um lado, o homem moderno está destinado a se tornar
uma “individualista”, no sentido corrente do termo: a só preocupar-se consigo mesmo, a ignorar os laços que o
prendem aos outros homens”. Tzvetan Todorov, Jardim Imperfeito: o pensamento humanista na França, São
Paulo, EDUSP, 2005, p. 22. Obviamente não é possível culpar quem quer que seja pelo que gerações posteriores
irão fazer com suas propostas iniciais, tão pouco seria possível a estes citados prever as distorções e deturpações
que pensadores farão no futuro com suas ideias que no tempo onde foram formuladas eram inovadoras e
benéficas para a sociedade, penso eu. Observemos ainda: “O termo calvinismo está associado ao movimento
implementado por João Calvino, seu maior líder e articulador do movimento reformado. Ele mesmo, como um
humanista, rejeitou aquilo que era o coração da idéia de personalidade do Renascimento, a idéia de que o homem
é a fonte criadora de seus próprios valores e, portanto, no fundo incapaz de pecar. Era estranho à mente de
Calvino o pensamento de que as artes e as ciências podiam estar livres da religião. Para ele, diferentemente do
que ocorria com outros líderes da Reforma, não existia dicotomia básica entre o Evangelho e o mundo, entre o
Evangelho e a cultura. Para Calvino, toda a vida, inclusive aquilo que é chamado livremente de cultura, era
teônoma, isto é, tem a sua razão de ser enquanto sujeita a Deus e à Sua lei”. Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do
Nascimento, Educar, Curar, Salvar: uma ilha de civilização no Brasil tropical, Maceió-AL, EDUFAL, 2007, p.
52.
46
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 307.
47
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 307.
48
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 258-309.
33
a apresentar maiores detalhes do agente histórico, tomando como ponto de partida a descrição
do homem Calvino, sua vida e seu pensamento religioso. Afirma que Calvino faz parte da
segunda geração de reformadores, portanto, “não tinha que criar o protestantismo, senão
consolidá-lo e organizá-lo”.49 Ordem e organização, aspectos centrais na estrutura de
mentalidade do reformador que se mostraram determinantes nesta visão de mundo que viria a
influenciar sobremaneira os seus seguidores na construção de mundo moderno. Apresenta
ainda Léonard, alguns por menores da vida pessoal do reformador e descreve o seu percurso
formativo intelectual, eminentemente humanista50, porque, entende que este aspecto se
constitui em uma característica essencial para a compreensão da influência fundante de
Calvino na construção da modernidade. Léonard em conclusão ao tema da conversão de
Calvino, relata: “o símbolo adotado mais tarde (um coração em uma mão estendida oferecido
a Deus) e o lema Prompte et sincere, bem expressa, não somente pelo seu próprio
comportamento neste momento capital, mas também o que é exigido dos seus seguidores:
uma vez reconhecida a verdade deve-se segui-la sem hesitação (prompte) e
incondicionalmente (sincere). Postura ativista que caracterizou a Igreja e a civilização que
dela procederam”.51 Enfatiza que a experiência e o pensamento religioso de Calvino se
constituem para o historiador e para o leitor leigo o aspecto mais essencial da inesgotável
atividade do reformador. A sua obra magna, A Instituição da Religião Cristã, foi escrita
diante da intersecção experiência e ação, visualizada na dedicatória da obra ao rei Francisco I
da França.52 Calvino propõe dois objetivos para a vida do cristão, honrar a Deus e servi-lo,
uma perspectiva teocêntrica e social que o reformador evidencia em seus escritos e acima de
tudo em suas práticas. A construção teológica de Calvino é apresentada como algo que
responde aos anseios do ser humano, principalmente no que concerne à ideia de um Deus que
é acessível por meio da Palavra e mediado por Jesus Cristo, uma necessidade existencial
humana.

Segundo Léonard, Calvino considerava a sua obra eclesiástica, política e social em


Genebra o seu principal legado, para tanto cita as Ordenanças Eclesiásticas53 como exemplo

49
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 259.
50
Vd. François Wendel, Calvin et l‟Humanisme, Paris, Presses Universitaires de France, 1976; Jean Boisset,
Sagesse et Sainteté dans la Pensée de Jean Calvin, Paris, Presses Universitaires de France, 1959.
51
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 260.
52
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, Tomo 1, São Paulo, UNESP, 2008, p. 13-33.
53
João Calvino, Ordenanças Eclesiásticas in Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: textos escolhidos, São
Paulo, Pendão Real, 2008, p. 180-200. “No próprio dia de seu regresso [a Genebra em 1541,] Calvino pediu aos
34
de sua dedicação e influência na vida pública da cidade que ira afetar a toda a Europa com seu
sistema de governo. Na sua Histoire Générale du Protestantisme, Léonard aponta:

O consistório havia se tornado o conselho diretor da Igreja que ele


desejava que estivesse perfeitamente unido em torno dos seus
pastores. O sistema político que gozava de sua preferência, se
realizou com uma aristocracia de notáveis chefes piedosos e um povo
que fora ganho cada vez mais para o Evangelho, todos confirmados
nestes sentimentos pelos emigrantes franceses. Igreja e poder
colaboravam de bom grado para a realização do reino de Deus,
seguindo as diretrizes que ensinava Calvino, e que lhe sucederá,
depois de morto, Theodore Beza, seu incansável continuador. Este
[propósito] foi particularmente bem sucedido, tanto eclesiasticamente
quanto secularmente, que [Calvino] pediu ao morrer que não
mudassem nada. Por causa do ponto de vista do trabalho realizado em
Genebra é que se deve apreciar o duro e incansável esforço de
Calvino.54

Entende Léonard que a ênfase em ordem e organização é uma característica singular


em Calvino, uma vez que a desordem não provém de Deus.55 Este aspecto do reformador é o
reflexo de sua formação em artes, no humanismo, em letras antigas e direito. 56 Aponta
Léonard que: “a importância que [Calvino] deu à organização e à administração é outra
característica do mundo moderno”.57 Calvino é descrito como um ativista em oposição ao
quietismo medieval que ainda se fazia predominante no século XVI. Outro aspecto
importante enfatizado por Léonard é o conceito de vocação conforme proposto por Calvino,
uma das características centrais de sua ética, que se estende além das fronteiras eclesiásticas e
atinge as esferas do secular. Na Idade Média o homem diante do trabalho deveria ser
polivalente, uma espécie de faz tudo, no entanto, Calvino motivado pela sua teologia da

notáveis da cidade que a igreja fosse „posta em ordem‟. O resultado por ele negociado durante os poucos meses
seguintes foi a constituição religiosa chamada Ordonnances Ecclésiastiques, documento de importância seminal
e modelo a ser seguido por toda a Europa calvinista. Definia o ministério normativo de pastores, doutores,
conselheiros e diáconos, além de suas funções; dispunha sobre reuniões semanais de uma companhia de
pastores; advogava o que veio a tornar-se a Academia de Genebra, e instituía o consistório, uma reunião de
sacerdotes e conselheiros que supervisionaria a frequência à igreja e a moral”. Patrick Collinson, A Reforma,
Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 112-113; cp. Felipe Fernández-Armesto, Derek Wilson, Reforma: o
Cristianismo e o mundo 1500-2000, Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 182-183.
54
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 307.
55
Cp. Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo, Loyola, 2005, p. 176-
177.
56
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 269. Boorstin afirma: “Calvino, com um notável talento tanto para o dogma
quanto para a organização – da teoria e da prática do protestantismo – fez da igreja, que pouco antes adotara a
Reforma em sua Genebra, um modelo de cristianismo protestante através da Europa e no Novo Mundo”. Daniel
J. Boorstin, Os Investigadores, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 151. Vd. Jean Boisset, Sagesse et
Sainteté dans la Pensée de Jean Calvin, Paris, Presses Universitaires de France, 1959.
57
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 308.
35
vocação, “com seu amor pela ordem, não podia aceitar o topa-tudo”58 e conclui Léonard:
“uma das grandes leis do mundo moderno foi e ainda é a especialização. Por isso, Calvino,
tem sido, no domínio econômico, a origem do mundo moderno”.59

Esta perspectiva norteadora de nosso estudo a partir da tese de Emile Léonard, ainda
encontra outro suporte fidedigno de aceitação em Lucien Febvre, também historiador das
mentalidades, criador da cadeira de História da Reforma e do Protestantismo na Escola
Francesa de Altos Estudos.60 Febvre em “Esboço de um Retrato de João Calvino”, palestra
pronunciada em uma conferência organizada em 1949 na Universidade Presbiteriana
Mackenzie pelo Instituto de Cultura Religiosa61, texto que mais tarde faria parte de uma obra
mais abrangente sobre as características da religião europeia no século XVI62, assevera:

O essencial, sem dúvida, é outra coisa – se é verdade que talvez a


grande obra de Calvino não foi redigir livros, pronunciar sermões,
formular e defender dogmas. Foi „educar homens‟. Calvino criou,
formou, moldou um tipo humano que se pode ou não gostar, com o
qual se pode ou não sentir afinidades: como ele é, se constitui como
um dos fermentos do nosso mundo, e não somente de nossa França.
Calvino criou um tipo humano, o calvinista.63

No final de seu texto, ao falar sobre o legado e a lembrança de Calvino, afirmando que
este não se resume em uma epígrafe em uma sepultura, escreve: “Calvino não construiu um
sepulcro de pedras mortas. Construiu ele mesmo com pedras vivas, como disse nosso velho
Rabelais, „são homens‟”.64

Febvre apresenta um Calvino “cuja repercussão foi universal”65, “que possuía todas as
características essenciais da idiossincrasia francesa. A sobriedade. A moderação. Uma
lógica imperiosa e soberana. Um sentido crítico alerta e temível. Sobre tudo o dom de saber

58
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 309.
59
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 309.
60
Emile G. Léonard, O Protestantismo Brasileiro, 3.ª ed., São Paulo, ASTE, 2002, p. 19.
61
Carlos Guilherme Mota, Ecos da Historiografia Francesa no Brasil: apontamentos e desapontamentos in
Leyla Perrone-Moisés (org.), Do Positivismo à Desconstrução: idéias francesas na América, São Paulo,
EDUSP, 2004, p. 150.
62
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968. Vd. tb.
Lucien Febvre, O Problema da Incredulidade no Século XVI: a religião de Rabelais, São Paulo, Companhia das
Letras, 2009.
63
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 263.
64
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 267.
Cottret diz ser este um belo comentário sobre Calvino. Bernard Cottret, Calvin, a biography, Grand Rapids-MI,
Eerdmans, 2000, p. 13.
65
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 252.
36
escolher”.66 E continua: “quando falava, quando escrevia, seu objetivo não era dizer tudo
confusamente, sem esquecer nada do que estava pensando. Seu objetivo era expressar o
essencial, e somente o essencial, e expressá-lo com precisão, com claridade, boa ordem e boa
lógica”.67 Para Febvre um homem com capacidade de escolha, lucidez e análise como
Calvino foi essencial para a Reforma em uma Europa completamente coberta de ruinas e
incertezas existenciais e espirituais. Assim descreve Febvre as características reinantes no
século XVI, para logo em sequência apresentar a solução dos problemas: “engano, confusão,
desamparo. Foi então quando surgiu um homem. E apareceu um livro. O homem: João
Calvino. O livro: A Instituição da Religião Cristã”.68 Mostra que Calvino não decidiu por si
mesmo ser o reformador genebrino, mas foi conduzido por experiências diversas em uma
sucessão de fatores múltiplos, e somente ao considerar estes elementos pode-se entender
como se forja “um condutor de homens”.69 Assim, apresenta os meios providentes na gênese
do reformador: formação acadêmica humanista e experiência religiosa. Enfatiza: “a obra de
Calvino é um oceano”70, “uma doutrina clara, lógica, coerente, perfeitamente ordenada por
um mestre”.71 Febvre identifica um homem que tem sua agenda de vida determinada única e
tão somente pela obediência ao seu Deus; submissão à vontade suprema de Deus, eis a
motivação por excelência do reformador. Febvre apresenta a doutrina da predestinação em
Calvino como o grande fator motivador de mudança em todos os níveis, pois, esta doutrina
confere segurança em um mundo desesperado no século XVI, e conclui: “doutrina de rara e
profunda psicologia, a partir de nosso ângulo que nada tem de dogmático, que é de historiador
e não de teólogo. A predestinação, a peça final do edifício, a coroação. O último toque da
alma de um homem que não trai. Que não teme. Que se mostra fiel, sem medo, até a
morte”.72 Ordem, lógica, coerência, capacidade crítica, segurança e firmeza, elementos
essenciais para organizar a sociedade, a cultura, as ciências e o mundo modernos que virão
nos séculos subsequentes. Eis a influência de Calvino como fundamento de uma civilização.
Sociedade esta que tem em Jean de Léry um dos seus inúmeros cidadãos conscientes de seus
deveres e claramente prontos a colocar em prática os princípios bíblicos segundo a teologia
calvinista aponta, aos quais terão a tarefa de construir o mundo moderno.

66
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 253-
254.
67
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 254.
68
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 256.
69
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 257.
70
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 263.
71
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 263.
72
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 267.
37
Certamente não podemos advogar isenção do historiador quanto ao seu objeto de
estudo, mas contrariamente, devemos prudentemente apontar estudiosos das mais diversas
matrizes ideológicas e dos mais diversos campos do saber, quanto a perspectiva que possuíam
acerca do reformador genebrino.73 Ricardo Cerni, seguindo a mesma linha interpretativa de
Léonard e Febvre, afirma que: “Calvino pode figurar como um dos fundadores do método e
da organização que tanto caracterizam a nossa atual civilização e isso de modo algum é
negativo”.74 Daniel Boorstin, historiador judeu, ratifica que “foi Calvino quem forneceu um
modo de organização de igrejas que abriu caminho para o moderno mundo ocidental de
democracia, federalismo e governo representativo”.75 Observemos também as palavras do
historiador católico Daniel-Rops sobre o reformador:

Poucos homens, no entanto, deixaram sobre a terra um rastro tão


profundo. Quem poderá apagar a sua grandeza? Semeou grandes
idéias, realizou grandes coisas e determinou grandes acontecimentos.
A história não teria sido tal como foi se ele não tivesse vivido,
pensado e agido com a sua vontade implacável. (...) Calvino pertence
incontestavelmente ao pequeníssimo grupo de mestres que, no
decorrer dos séculos, moldaram com as suas mãos o destino do
mundo.76

Mircea Eliade, historiador das religiões, segue a mesma lógica interpretativa ao


reconhecer a influência do reformador genebrino na construção das mentalidades ocidentais a
partir da Reforma Protestante na Europa do século XVI, assim assevera:

Quanto a Calvino, não somente contribuiu, mais que Lutero, para o


progresso social e político de sua Igreja, como também demonstrou,
com seu exemplo, a função e a importância teológicas da atividade
política. Na verdade, ele antecipou a série de teologias políticas em
voga na segunda metade do século XX: teologia do trabalho, teologia
da libertação, teologia do anti-colonialismo etc. Nessa perspectiva, a
história religiosa da Europa ocidental depois do século XVI passa a
ser parte integrante da história política, social, econômica e cultural do
continente.77

73
Sobre a impossibilidade de isenção do historiador e a sua consequente limitação provocada por sua pertença a
um lugar ideológico que determina sua análise, iremos tratar no decorrer deste mesmo capítulo quando
considerarmos em maiores detalhes sobre o modelo historiográfico proposto por Michel de Certeau.
74
Ricardo Cerni, Historia del Protestantismo, Edinburgh, El Estandarte de la Verdad, 1992, p. 57.
75
Daniel J. Boorstin, Os Investigadores, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 151. À frente ainda
expõe: “a forma presbiteriana de direção da igreja, da qual Calvino foi o fundador, estava muito presente no
espírito das modernas instituições políticas representativas ocidentais” (p. 154).
76
Daniel-Rops, A Igreja da Renascença e da Reforma, I. A Reforma Protestante, São Paulo, Quadrante, 1996, p.
421.
77
Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas: de Maomé à Idade das Reformas, vol. III, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 2011, p. 233.
38
O historiador anglicano V.H.H. Green também enfatiza a capacidade de organização
que João Calvino possuía, desta feita como o sistematizador da Reforma, e influenciador dos
sistemas políticos e filosóficos que servem de estrutura fundante para o Ocidente, observemos
com atenção:

O calvinismo cristalizou a Reforma. Lutero e Zuínglio tinham


modificado radicalmente a antiga religião, mas, para além do vigoroso
realce dado à Palavra de Deus, as crenças reformadas careciam duma
autoridade precisa, duma direcção organizada e duma filosofia lógica.
João Calvino deu-lhes tudo isso e mais ainda. Ele foi um daqueles
raros caracteres em que o pensamento e a acção se conjugam e que, se
chegam a deixar marca, gravam-na profundamente na história. A
influência que ele exerceu desde a cidade de Genebra, que
praticamente governou a partir de 1541 até à sua morte, em 1564,
espalhou-se pela Europa inteira e mais tarde pela América.78

André Biéler chama Calvino de “profeta da era industrial”, em uma obra que versa
sobre a ética do reformador.79 O historiador da Sorbonne, Denis Crouzet, fala da edificação
de uma nova humanidade a partir de Calvino.80 Pierre Pierrard, outro historiador católico,
também defende a mesma tese sustentada por Léonard, quando afirma de Calvino, “pode-se
dizer que fora o fundador de uma civilização”.81 Esta tese também é sustentada, ainda que
não se concentre neste tópico em seus pormenores, por Tzvetan Todorov quando analisa o
humanismo na França.82 Para Todorov, o principal aspecto desta modernidade que surge a
partir de Calvino diz respeito ao conceito de individualidade, ou seja, valorização do
indivíduo por excelência.83 Assim, como no humanismo o homem passa a ser a “medida de

78
V.H.H. Green, Renascimento e Reforma, Lisboa, Dom Quixote, 1984, p. 187.
79
André Biéler, Calvin, profete de l‟ere industrielle, Genève, Labor et Fides, 1964.
80
Denis Crouzet, Calvino, Barcelona, Ariel, 2001, p. 157-203.
81
Pierre Pierrard, História da Igreja, São Paulo, Paulinas, 1982, p. 177. No contexto da Academia de Genebra,
afirma Pierrard que Calvino influenciou a toda a Europa (p. 175). Outro historiador católico expõe sobre
Calvino: “Seu epistolário, todavia (mais de 4.000 cartas conhecidas!), nos mostra um homem afetuoso e
sociável, de rica sensibilidade e fiel aos seus amigos, enquanto suas obras revelam a vasta gama de seus
interesses, da literatura clássica à economia, ao direito e à política. Talvez seja esse o segredo da influência
mundial que ele veio a exercer, apesar da saúde precária, do ingente trabalho que o sobrecarregava e das grandes
preocupações que o oprimiam. Calvino é, sem dúvida, um extraordinário organizador e um forte temperamento
de chefe”. Giacomo Martina, História da Igreja de Lutero a nossos dias, Vol. I – O período da Reforma, 3.ª ed.,
São Paulo, Loyola, 2008, p. 148.
82
Tzvetan Todorov, Jardim Imperfeito: o pensamento humanista na França, São Paulo, EDUSP, 2005, p. 22.
83
Afirma Eliade: “Calvino é geralmente considerado o menos original dos grandes teólogos da Reforma, pois já,
desde o enrijecimento dogmático do Lutero da última fase, a criatividade teológica perde sua primazia nas
Igrejas reformadas. O que importa é a organização da liberdade individual e a reforma das instituições sociais, a
começar pela instrução pública. Lutero havia revelado – e ilustrara esse princípio com sua própria vida – a
importância do indivíduo criador. Mais do que a “dignidade do homem” exaltada pelos humanistas, a liberdade
do indivíduo de rejeitar qualquer outra autoridade a não ser Deus tornou possível – mediante um lento processo
de dessacralização – “o mundo moderno”, tal como aparece na época das Luzes e ganha contornos precisos com
a Revolução Francesa e o triunfo da ciência e tecnologia”. Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias
Religiosas: de Maomé à Idade das Reformas, vol. III, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2011, p. 233.
39
todas as coisas” e a chave de leitura do mundo, do mesmo modo Léry usa o índio como chave
de leitura, reconhecendo sua humanidade, no entanto, sempre subordinado e limitado pela
Escritura Sagrada, a Palavra de Deus.84

Uma das características mais determinantes na produção de sentido, unidade e herança


histórica em uma civilização é a sua linguagem, Léry sabe muito bem disto, prova que
percebe a importância de registrar a língua tupi, e deste modo, concede ao índio tupinambá
uma história e uma voz.85 Esta ação do viajante francês em terras brasileiras é reflexo da
influência do reformador em seu sistema de pensamento que se externaliza em seu relato de
viagem. Observemos, deste modo, a presença marcante da teologia de João Calvino no
campo da escrita. Calvino é descrito por Olivier Millet, professor de literatura francesa da
Université de Bâlle, como o inaugurador da prosa do francês moderno86; Patrick Collinson,
professor de história moderna na Universidade de Cambridge, o apresenta como o fundador
do francês literário do futuro87 e aponta que as Institutas marcam “o advento literário do
idioma francês moderno”88, além de considerá-la o “livro com o qual [Calvino] iria

84
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 221-260. “Devemos
considerar que a perspectiva francesa não é, basicamente, diferente da lusitana, no que concerne ao pragmatismo
e ao cientificismo dos relatos, em que a “experiência” e o “vivido” são constantemente reivindicados como
status de verdade, mas que, em Léry, são limitados pela recusa em negar o texto bíblico”. Wilton Carlos Lima
da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis
Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 122.
85
Cp. Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 120-123.
86
Olivier Millet (ed.), Jean Calvin: Œvre Choisies, Paris, Éditions Gallimard, 1995, p. 08. Afirmação
corroborada por Willemart: “Organizador religioso, mas também grande escritor, Calvino foi, de um certo modo,
fundador da prosa francesa com a Institution e seus tratados”. Philippe Willemart, A Idade Média e a
Renascença na Literatura Francesa, São Paulo, Annablume, 2000, p. 43. Cp. Arthur Tilley, The Literature of
the French Renaissance, vol. I, Cambridge, Cambridge University Press, 1904, p. 224-238; Jean Delisle, Judith
Woodsworth, Les Traductiers dans l‟Histoire, Ottawa, Les Presses de l‟Universitté d‟Ottawa, 1995, p. 52-53;
Jean François La Harpe, Cours de Littérature Ancienne et Moderne, vol. III, Paris, Libraries-Éditeurs, 1840, p.
597; Françoise Bonali-Fiquet, Introducion in Jean Calvin, Lettres à Monsieur et à Madame de Falais, Textes
Littéraires Français, Geneva, Librairie Droz, 1991, p. 13; Émile Faguet, Seizième Siècle: études littéraires, Paris,
Société Française, 1898, p. 127-197.
87
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 58. “[Calvino] teve aulas com Mathurin
Cordier, que aperfeiçoou os dotes linguísticos do homem que faria no idioma francês o que Lutero estava já
fazendo em alemão e Tyndale em inglês”. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 109.
88
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 111. Ainda aponta Collinson: “Calvino
publicou tanto em francês quanto em latim, pois visava sempre a sorte da Reforma em sua terra natal, e em
algumas de suas obras em latim intitulou-se porta-voz da causa geral da Reforma, o que fez com eficiência. Mas
Calvino pode ser considerado autor de um só livro, ou pelo menos de um livro que sobrepujou todos os demais,
seus Institutos, e vale a pena investigar de que tipo de livro se tratava, tanto na arquitetura quanto no conteúdo.
Institutio significava „instrução‟, e era originalmente uma espécie de catecismo, com seis modestos capítulos na
primeira edição de 1536, mas também um manifesto, que continha uma dedicatória ao rei Francisco I que dizia:
„Este é o nosso objetivo‟. A edição de 1539 foi mais extensão, com 17 capítulos. (...) Em suas versões finais
(latim 1559, francês 1560), os Institutos se tornaram verdadeira summa, com oitenta capítulos dispostos em
quatro tomos, adaptados à estrutura do Credo dos Apóstolos”. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro,
Objetiva, 2006, p. 116-117.
40
transformar o mundo”89; para Faguet, Calvino é “o maior escritor do século XVI”90; Mircea
Eliade, historiador das religiões, afirma que a Instituição da Religião Cristã, obra-prima de
Calvino, fora “notável por sua perfeição literária”91; para Cottret a obra principal de Calvino,
juntamente com os Ensaios de Montaigne, inaugura a formação da identidade literária
francesa92; Durant afirma que “a forma deste trabalho constitui uma das mais expressivas
produções de que há registro na literatura francesa”93; Delumeau aponta sobre as Institutas:
“será a primeira grande síntese religiosa escrita em francês, e é um monumento da literatura
francesa”94; Ladurie se refere à obra como um “livro magistral”95; e Michelet a intitula de
“enciclopédia teológica”, apontando que Calvino foi ousado em escrever em francês, uma
língua nova, e isto “trinta anos antes de Montaigne”.96 Otto Maria Carpeaux, enfatiza que o
“brilhante” prefácio das Institutas de Calvino “desafiam a admiração dos eruditos”.97 O
especialista em literatura francesa, Roberto Alvin Corrêa, defende que João Calvino “vertendo
para o francês a sua própria obra, Instituição Cristã, conferiu à língua como que nova
dignidade”.98 Deparamo-nos ainda com o pedagogo italiano Franco Cambi que apresenta
Calvino como o “antecipador do mundo moderno”99 e ao descrever a Academia de Genebra
afirma “que pode ser considerada a obra-prima de Calvino na sua qualidade de organizador de

89
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 110.
90
Émile Faguet, Seizième Siècle: études littéraires, Paris, Société Française, 1898, p. 188.
91
Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas: de Maomé à Idade das Reformas, vol. III, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2011, p. 232. “... o livro que logo se tornaria a declaração mais significativa do
protestantismo contida num único texto, as Institutas da religião cristã”. Carter Lindberg, As Reformas na
Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 302. Cp. Jean Castarède, Les Grands Auteurs de la Littérature
Française, Paris, Studyrama, 2004, p. 43; Wendy Ayres-Benett, A History of the French Language Through
Texts, London, Routledge, 1996, p. 153-156.
92
Bernard Cottret, Calvino, la fuerza e la fragilidade, Madrid, Editorial Complutense, 2002, p. 307.
93
Will Durant, A Reforma: história da civilização européia de Wyclif a Calvino: 1300-1564, 3a., Rio de Janeiro,
Record, 2002, p. 384.
94
Jean Delumeau, De Religiões e de Homens, São Paulo, Loyola, 2000, p. 233.
95
Emmanuel Le Roy Ladurie, O Mendigo e o Professor: a saga da família Platter no século XVI, Tomo I, Rio
de Janeiro, 1999, p. 152. “Mas, em maior número do que todas estas obras, avultam os textos de Calvino: 256
edições, de 1550 a 1564, das quais 160 em Genebra. A Instituição cristã é, então, só por si, objecto de vinte e
cinco edições, nove em latim e dezasseis em francês, a maior parte das quais provém dos prelos genebrinos”.
Lucien Febvre, Henri-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, p.
402.
96
Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 79.
97
Otto Maria Carpeaux, Reflexo e Realidade, Rio de Janeiro, Fontana, 1976, p. 27. Cp. Eni Pulcinelli Orlandi,
Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas, Cortez/UNICAMP, 1990, p.
105. “Esta carta é uma obra-prima de um advogado de defesa em favor da causa do protestantismo francês e
manifestou claramente aos protestantes em toda parte a capacidade de liderança de Calvino”. Carter Lindberg,
As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 303.
98
Roberto Alvim Corrêa, Notas Sobre o Ensaio Literário na França in Província de São Pedro, vol. 9, Rio de
Janeiro/Porto Alegre/ São Paulo, Editora Globo, 1947, p. 85.
99
Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo, UNESP, 1999, p. 252.
41
cultura”.100 Este foi o lugar de formação acadêmica de Jean de Léry no seu curso de teologia
que fora interrompido, e mais tarde retomado, por causa de sua viagem ao Brasil. Descreve
Shaw: “A influência de Calvino se espalhou por toda a Europa. Na época de sua morte, ele
havia se tornado o líder internacional da Reforma e uma das figuras mais importantes na
formação do pensamento do mundo moderno”.101 Tais afirmações também servem para
confirmar a tese de Léornard como plausível e amplamente aceita por estudiosos de uma
gama diversa de matizes ideológicas e campos de estudo distintos, conforme já apontáramos
inicialmente. Eis a influência estruturadora do sistema de pensamento encontrado em Jean de
Léry, em especial a importância da escrita como construtora de valorização daquilo que
pertence ao humano.

A influência do sistema de pensamento calvinista não finda no campos das letras, mas
ainda apresenta parâmetros norteadores para as ciências das mais diversas vertentes. Calvino
também determinou com extrema maestria as estruturas que possibilitaram a construção e/ou
o desenvolvimento de outros campos do conhecimento humano, as ciências naturais, por
exemplo. Este sistema científico influenciado pelo reformador será vital para a compreensão
interpretativa que Jean de Léry terá do mundo e do Outro quando em terras do Brasil. O
princípio de acomodação de linguagem, aplicado à Escritura Sagrada será central neste
propósito de desenvolvimento da ciência empírica moderna. Conforme atesta Karen
Armstrong:

Lutero separou a religião da política porque repudiava os métodos


coercivos da Igreja Católica Romana, que usara o Estado para impor
suas próprias normas e sua ortodoxia. Calvino não partilhava essa
visão de um mundo sem Deus. Como Zwingli, acreditava que os
cristãos deviam expressar sua fé participando da vida política e social,
e não recolhendo-se a um mosteiro. Ajudou a batizar a emergente
ética do trabalho capitalista, proclamando que o trabalho é uma
vocação sagrada, e não, como os medievais pensavam, um castigo
divino para o pecado. Ao contrário de Lutero, não estava
desencantado com o mundo natural. Achava possível ver Deus em
sua criação e recomendava o estudo da astronomia, da geografia e da
biologia. Tinha bons cientistas entre seus seguidores. Não via
contradição entre a ciência e as Escrituras. Em sua opinião a Bíblia

100
Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo, UNESP, 1999, p. 252. “Em 1536, chamado por Guilherme
Farel em Genebra, ele modela uma comunidade humana tendo como base a religião evangélica. Genebra torna-
se o centro de formação dos pastores que serão enviados para todas as comunidades francesas e que permitirão a
unidade da Igreja Evangélica Reformada”. Philippe Willemart, A Idade Média e a Renascença na Literatura
Francesa, São Paulo, Annablume, 2000, p. 42.
101
Mark Shaw, Lições de Mestre: 10 insights para a edificação da igreja local, São Paulo, Mundo Cristão,
2004, p. 53. Cp. Louis Dumont, O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio
de Janeiro, Rocco, 1985, p. 63.
42
não fornece informações literais sobre geografia ou cosmologia, mas
tenta exprimir uma verdade inefável em termos que os limitados seres
humanos possam entender. A linguagem bíblica é infantil – uma
simplificação deliberada de uma verdade complexa demais para ser
articulada de outro modo.102

Do mesmo modo que a hermenêutica de Calvino contribuiu para a formação da


ciência moderna, especificamente as ciências naturais103 com o seu conceito de acomodação
de linguagem, a teologia bíblica de Calvino influenciou o desenvolvimento das ciências
humanas104 – “Calvino era um genuíno humanista, estando profundamente interessado pelo
ser humano”105 –, e consequentemente a antropologia também será influenciada pela sua
estrutura de pensamento, deste modo afirmamos tacitamente, o que será comprovado no
decorrer deste trabalho, que Jean de Léry é exemplo desta abrangência influenciadora do
pensamento teológico calvinista no campo da antropologia como estabelecedora de suas
estruturas fundantes.106 Quanto à relação do reformador genebrino com o humanismo
devemos observar a ressalva feita por Jean Boisset: “Do ponto de vista do método, o
humanismo afirma, em geral, a confiança na natureza humana: Calvino proclama a confiança

102
Karen Armstrong, Em Nome de Deus: o fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo, São
Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 87. Cp. Raïssa Cavalcanti, O Retorno do Sagrado, São Paulo, Cultrix,
2000.
103
Vd. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, UnB, 1988, p. 152-161;
Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo, Loyola, 2005, p. 23-25;
Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino, 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo,
Cultura Cristã, 2009, p. 367-393.
104
Vd. Willian R. Stevenson Jr., Calvin and Political Issues in Donald K. McKim (ed.), The Cambridge
Companion to John Calvin, Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 173-187; Jürgen Moltmann, La
Ética del Calvinismo in Leopoldo Cervantes-Ortiz (ed.), Juan Calvino: su vida y obra a 500 años de su
nascimiento, Barcelona, CLIE, 2009, p. 257-258; André Biéler, El Dinero y la Propriedad in Leopoldo
Cervantes-Ortiz (ed.), Juan Calvino: su vida y obra a 500 años de su nascimiento, Barcelona, CLIE, 2009, p.
259-282; Karl Barth, El Gobierno y la Política in Leopoldo Cervantes-Ortiz (ed.), Juan Calvino: su vida y obra
a 500 años de su nascimiento, Barcelona, CLIE, 2009, p. 283-291; Aristómeno Porras, Calvino y la Cultura
Occidental in Leopoldo Cervantes-Ortiz (ed.), Juan Calvino: su vida y obra a 500 años de su nascimiento,
Barcelona, CLIE, 2009, p. 395-401; J.C. Coetzee, Calvino y la Educacion in Leopoldo Cervantes-Ortiz (ed.),
Juan Calvino: su vida y obra a 500 años de su nascimiento, Barcelona, CLIE, 2009, p. 402-420; Hermisten Maia
Pereira da Costa, João Calvino, 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo, Cultura Cristã,
2009, p. 325-393; André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo, Cultura Cristã, 1999; André Biéler,
O Humanismo Social de Calvino, São Paulo, Oikoumene, 1970; André Biéler, O Pensamento Econômico e
Social de Calvino, Casa Editora Presbiteriana, 1990; Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo,
Cultura Cristã, 2004, p. 203-294; Henry R. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo, Cultura
Cristã, 2010, p. 105-138; R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo, Perspectiva,
1971, p. 109-134; Eric Voegelin, A Nova Ciência Política, 2.ª ed., Brasília, UnB, 1982, p. 101-117; Quentin
Skinner, As Fundações do Pensamento Político Moderno, São Paulo, Companhia das Letras, 1996; Johannes
Althusius, Política, Rio de Janeiro, Topbooks, 2003; Jean Bodin, Os Seis Livros da República, São Paulo, Ícone,
2011; Dale K. Van Kley, The Religious Origins of the French Revolution: from Calvin to the Civil Constitution,
1560-1791, New Haven, Yale University Press, 1996.
105
Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino, 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo,
Cultura Cristã, 2009, p. 389.
106
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 245-250.
43
no único criador da natureza humana”107 e ainda assegura que “Calvino foi um dos mais
autênticos representantes do Humanismo, lembrando do homem em seu extraordinário vigor
de pensamento e expressão, a essência do Evangelho”.108

O principal ponto de contato de influência do pensamento de Calvino nas ciências


humanas diz respeito à sua construção doutrinária acerca do homem, em especial ao conceito
bíblico de imagem de Deus no homem que reconhecia o valor natural do ser humano como
derivado do Criador.109 Para Calvino a imagem de Deus no homem não fora perdida quando
do pecado, esta foi deformada pela queda, mas não foi perdida, ou seja, todo ser humano
ainda é, e continua a ser imagem e semelhança de Deus.110 Deste modo, Calvino enfatizou a
importância e o valor do ser humano,111 no entanto, devemos ressaltar que para Calvino o
valor que o homem possui é uma derivação do próprio Deus e não algo intrinsecamente
existente no homem que o confira autonomia independente do Criador. Expõe Calvino nas
suas Institutas da Religião Cristã:

Quase toda a suma de nossa sabedoria, que deve ser considerada


verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes: o conhecimento de
Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como são unidas entre si por
muitos laços, não é fácil discernir qual precede e gera a outra. Pois,

107
Jean Boisset, Sagesse et Sainteté dans la Pensée de Jean Calvin, Paris, Presses Universitaires de France,
1959, p. 317.
108
Jean Boisset, Sagesse et Sainteté dans la Pensée de Jean Calvin, Paris, Presses Universitaires de France,
1959, p. 318.
109
Louis Dumont, O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro,
Rocco, 1985, p. 63. Cp. Tzvetan Todorov, Os Inimigos Íntimos da Democracia, São Paulo, Companhia das
Letras, 2012, p. 28-38.
110
“Não há dúvida de que, quando caiu de sua dignidade, Adão foi afastado de Deus por causa de tal fraqueza;
embora a imagem de Deus não fosse absolutamente esvaziada e destruída, ainda assim se corrompeu de tal
maneira que não restou senão uma horrenda deformidade. Por isso, o começo da recuperação da salvação está
na restauração que alcançamos por meio de Cristo, o qual, por essa razão, é chamado Segundo Adão”. João
Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.4. Na obra de 1537, Instrução na Fé ao
comentar sobre o mandamento “Não Matarás”, afirma Calvino: “Aqui somos proibidos de toda violência e
injúria e, de modo geral, de qualquer ofensa que possa ferir o corpo do nosso próximo. Pois se lembrarmos que
o homem foi feito à imagem de Deus, devemos considerá-lo como santo e sagrado, de tal forma que ele não
possa ser violado sem que também nele seja violada a imagem de Deus”. João Calvino, Instrução na Fé in
Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: textos escolhidos, São Paulo, Pendão Real, 2008, p. 53. “É preciso
agora falar da criação do homem, não só porque é, entre as obras de Deus, a espécie mais nobre e mais
admirável, tanto de sua justiça quanto de sua sabedoria e bondade, mas porque, como dissemos no início, Ele
não pode ser apreendido plena e solidamente por nós a não ser pela apreensão de nós mesmos”. João Calvino, A
Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.1.
111
Faber em um contexto de discussão e análise acerca dos sacramentos afirma: “Como humanista, Calvino
atenta para a maneira como algo se torna importante para as pessoas. Descreve Deus praticamente como um
retórico que deseja alcançar o ser humano de todas as maneiras...”. Eva-Maria Faber, Doutrina Católica dos
Sacramentos, Rio de Janeiro, Loyola, 2008, p. 61. Erickson e Murphy em sua História da Teoria Antropológica
afirmam: “João Calvino (1509-1564), o teólogo francês, é considerado um profeta, tendo uma nova visão da vida
humana”. Paul A. Erickson, Liam D. Murphy, A History of Anthropological Theory, 3.ª ed., Ontário, University
of Toronto, 2008, p. 84.
44
em primeiro lugar, ninguém pode olhar para si sem que volte
imediatamente seus sentidos para Deus, no qual vive e se move,
porque não há dúvida acerca de que não provenham de nós as
qualidades pelas quais nos sobressaímos. Pelo contrário, é certo que
não sejamos senão a subsistência no Deus uno. (...) Por isso, o
reconhecimento de si não apenas instiga qualquer um a buscar a Deus,
mas ainda como que o conduz pela mão para reencontrá-lo. Consta,
pelo contrário, que o homem jamais chega a um conhecimento puro de
si sem que, antes, contemple a face de Deus, e, dessa visão, desça para
a inspeção de si mesmo.112

E ainda, Calvino no prefácio ao Novo Testamento em 1535 aponta: “Deus, o criador


muito perfeito e excelente obreiro de todas as coisas, além de suas criaturas nas quais já havia
mostrado mais que admirável, ainda havia formado o homem como uma obra-prima cuja
excelência singular pôde-se contemplar. Pois ele o havia formado à sua imagem e
semelhança (Gn 1.26), de tal maneira que a luz de sua glória reluzia claramente nele”.113

Defendemos que esta influência ocorre porque Calvino apresenta uma interpretação
diferente daquela que por vezes fora utilizada para validar a superioridade do Velho Mundo
em relação às Américas114, o dito eurocentrismo115, pois alguns defendiam que a imagem de
Deus no homem não era uma realidade presente em todos os seres humanos, mas apenas e tão
somente nos cristãos, gerando graus de humanidade e valorização, não somente entre o ser
humano de um modo geral, mas também especificamente entre os próprios cristãos, assim
mais santidade por parte do cristão implicaria mais reflexo da imagem de Deus nele, a
transposição deste conceito de “cristão” reflexo da imagem de Deus, portanto, valorativo,
como equivalente a “europeu” foi natural, dai a lógica eurocêntrica prevalecer e sua
interpretação pejorativa do habitante do Novo Mundo ser algo habitual nas interpretações
provindas de alguns, dentre eles André de Thevet.116 Em sentido oposto, encontramos em

112
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.1.1-2.
113
João Calvino, Primeiro Prefácio – Novo Testamento (1535): epístola a todos os que amam a Jesus Cristo e
seu Evangelho in Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo, Pendão Real, 2008,
p. 14.
114
Cp. Roberto Gambini, Espelho Índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena, Rio de Janeiro, Espaço &
Tempo, 1988; Ronald Raminelli, Imagens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1996; Marina Massimi; Miguel Mahfoud; Paulo José Carvalho da Silva; Silvia Helena
Sarti Avanci, Navegadores, Colonos, Missionários na Terra de Santa Cruz: um estudo psicológico da
correspondência epistolar, São Paulo, Loyola, 1997.
115
“Por falta de uma expressão mais adequada, vamos chamar este sentiment que o europeu do século XVI tem
de pertencimento a uma cultura bem definida e „superior‟ de eurocentrismo. O eurocentrismo projeta-se
nitidamente sobre a visão européia da religiosidade indígena. É parte integrante do imaginário quinhetista”.
Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade, São Luiz-
MA, EDUFMA, 2010, p. 83-84.
116
“Ao resumir Polidoro Virgílio no início de uma descrição baseada na mesma filosofia das origens, Hacket
mostra uma aguda compreensão da aposta ideológica do livro de Thevet. O que ele percebe, de Polidoro
45
Jean de Léry uma chave de leitura nova para o encontro com o Outro, que se dá a partir de
uma ótica calvinista, pois, ao seguir esta perspectiva relativista e valorativa estabelece as
bases da antropologia moderna, segundo proposta de Claude Levi-Strauss.117

No entanto, devemos salientar que o conceito de relatividade aqui tomado de Silva118


aplicado a Léry, não deve ser entendido como uma realidade essencialmente absoluta, mas
apenas como uma perspectiva que dá conta de entender e interpretar o índio dentro de seu
próprio sistema cultural, pois, estritamente falando, o pensamento de Jean de Léry não é
relativista, mas sim, determinado por sua ótica calvinista, ou seja, seu referencial é sempre a
Escritura Sagrada como Palavra revelada do próprio Deus. Em tempo, o conceito de valor do
ser humano é derivado e determinado pelo Criador. A partir daí surge esta antropologia que
será influente desde a modernidade até o tempo presente. Influência perceptível pela série de

Virgílio a este último, não é a filiação direta, bastante clara, mas uma comunidade de preocupações, uma conduta
análoga que recorre à comparação das tradições culturais de diversos povos para tentar extrair um modelo geral e
assentar sobre este a superioridade da Europa cristã.
Ao empreender uma arqueologia da Europa por intermédio da América, valoriza-se menos um progresso
contínuo de uma a outra do que uma ruptura fundamental e determinante entre duas eras: a de antes e a de depois
da Revelação. Os Tupi não tiveram acesso, até o presente, à era da Redenção. Estão separados da Verdade, o
que se exprime de maneira muito concreta por seu manifesto despojamento e sua evidente barbárie. A nudez e o
canibalismo são sinais tangíveis dessa separação, mas também o desconhecimento de técnicas elementares como
o cultivo da terra com o arado, a fundição do ferro e a forjadura dos metais, a arte equestre, as armas de fogo.
A partir de então, o selvagem vai servir de contraste ao cristão da Europa, o qual, por pouco que respeite os
mandamentos, conta com a fortuna de sua eleição divina e da certeza da Redenção. O catálogo dos inventores
corroboraria então um pensamento hierárquico, realçando nessa medida o privilégio reservado à cristandade
sobre o resto do mundo”. Frank Lestringant, À Espera do Outro in Adauto Novaes (org.), A Outra Margem do
Ocidente, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 38-39. “As Índias Ocidentais são habitadas por povos que
apresentam grande diversidade tanto de costumes quanto de religiões. Boa parte da população presta obediência
ao Preste João, adotando, consequentemente o Cristianismo. Os restantes, ou são maometanos (como já
dissemos atrás quando falamos da Etiópia), ou são idólatras”. André Thevet, As Singularidades da França
Antártica, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1978, p. 82.
117
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss ao descrever suas andanças pelo Brasil, quando se encontra na
Guanabara relata sua experiência: “Ando pela avenida Rio Branco onde outrora erguiam-se as aldeias
tupinambá, mas carrego no bolso Jean de Léry, breviário do etnólogo” Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos,
São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 77. À frente Strauss chama a obra de Léry de “obra-prima da
literatura etnográfica”. Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 79.
Cp. Dorothea Voegeli Passetti, Lévi-Strauss: Antropologia e Arte, São Paulo, EDUSP/EDUC, 2008, p. 230-231;
Maria Cândida Ferreira de Almeida, Tornar-se Outro: o topos canibal na literatura brasileira, São Paulo,
Annablume, 2002, p. 222; Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e
escritas de Jean de Léry e de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008, p. 93-94; Wilton
Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard
Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 111. “Este autor protestantista parece, assim, querer mostrar que as
culturas indígenas, apesar do choque aparente provocado pela entrada em contacto com valores desconhecidos
dos Europeus, não são manifestações imediatamente inferiores à sua cultura pessoal. Assim, do ponto de vista
do eixo praxiológico, o autor calvinista revela uma aproximação total e, consequente, adesão relativamente ao
nativo brasileiro”. Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e escritas de
Jean de Léry e de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008, p. 128.
118
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003.
46
edições que a obra de Léry terá desde a sua primeira publicação em 1578.119 Frank
Lestringant afirma que Jean de Léry escreveu “o primeiro ensaio de antropologia digno deste
nome publicado na França”.120

Consideramos que a influência de Calvino em Jean de Léry é perceptivelmente


relacionada à presente análise em quatro campos distintos que sejam, a epistemologia de
Calvino fundamentada no relacionamento entre o conhecimento de Deus e conhecimento do
homem, a antropologia teológica que se expressa pela valorização do ser humano como criado
à imagem e semelhança do Criador, a hermenêutica bíblica evidenciada como limitador da
circularidade interpretativa das práticas tupinambás e a importância da palavra escrita como
expressão de valoração do humano, por fim, o sistema ético de respeito e consideração pelo
humano que entendemos perpassar as estruturas de pensamento que se apresentam em Jean de
Léry. Os três primeiros tópicos de influência, a epistemologia, a antropologia e a
hermenêutica, consideraremos em capítulos posteriores devido à sua especificidade de
ingerência na mentalidade de Léry conforme podemos visualizar em seu relato. Desta feita,
por hora, intentamos compreender em linhas gerais, de um modo sucinto, a ética de Calvino
que se expressa norteadora do relacionamento de Jean de Léry com os índios tupinambás,
concebendo esta ética como um pressuposto fundante em seu sistema valorativo.

Nos escritos do reformador do século XVI João Calvino (1509-1564) encontramos


alguns princípios éticos que são essenciais à compreensão do seu pensamento social. Estes
estão relacionados à vocação e ao trabalho, ao uso do dinheiro e a função da poupança, e um
conceito muito característico do reformador, a frugalidade. Esta construção ética nos
possibilita a compreensão abrangente dos fatores motivadores e norteadores da abordagem de
Jean de Léry em sua obra. Todos estes aspectos da ética de Calvino possuem amplas e
importantes implicações sociais, e acima de tudo humanas e solidárias que não serão
contempladas na presente análise por se constituírem à margem de nosso recorte temático.
Ao desenvolvermos este tema, precisamos situar e tornar evidente o apreço que Calvino
possuía pelo ser humano, desta feita, a ética calvinista de valorização do humano é apreendida

119
“La Rochelle, 1578; Rouen, idem; e depois Génève, 1580, La Rochelle, 1585; e Paris, 1586”. Francisco
Adolfo de Varnhagem, História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de Portugal, Tomo
Primeiro, 6ª. ed., São Paulo, Melhoramentos, 1956, p. 287.
120
Frank Lestringant, Préface: Léry ou le rire de l‟indien in Jean de Léry, Histoire D'Un Voyage En Terre De
Brésil, 2ª. ed., Paris, Bliothéque Classique, 1994, p. 29. Cp. Laura de Mello e Souza, Os Novos Mundos e o
Velho Mundo: confrontos e inter-relações in Maria Ligia Coelho Prado, Diana Gonçalvez Vidal (org.), À
Margem dos 500 anos: reflexões irreverentes, São Paulo, EDUSP, 2002, p. 159.
47
e claramente evidenciada por Jean de Léry em sua obra. Segundo Braga-Pinto: “A escritura
da Viagem à Terra do Brasil faz assim um apelo duplo, tanto à verdade quanto à ética”121 e
continua: “aquilo que Michel de Certeau chamou de “ética da fala de Montaigne” pode ser
entendido, no caso de Léry, como a dupla representação que o relato faz da experiência, que
aparece como autotransformação e também como testemunho”.122

Calvino apresenta uma perspectiva muito positiva de apreço pelo trabalho, tomando-o
como uma resposta à vocação dada por Deus ao indivíduo, que o capacita a realizar uma
tarefa que se traduz em um trabalho digno em resposta a essa dádiva, se constituindo em uma
vida de louvor e adoração ao próprio Deus.123 Calvino mostra como se deve viver e fazer uso
dos recursos que se possui, apresentando a vocação como uma regra que precisa ser seguida,
assim, é necessário ter em mente a vocação como uma regra de vida ordenada pelo Senhor. 124
Como consequência natural da vocação, apresenta Calvino qual deve ser a perspectiva correta
diante do trabalho: “Daí nascerá um exímio consolo: que, contanto que obedeças deste modo
a tua vocação, não há nenhuma obra tão humilde e tão baixa que não resplandeça diante de
Deus e que não seja por Ele considerada preciosíssima”.125 Também afirma em outro lugar:
“Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não
há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante
ante os olhos de Deus”.126 É exatamente esta consciência de vocação que irá mover Léry no
seu impulso em viajar ao Brasil, e também se constituirá em sustentáculo diante das
dificuldades que sofrerá tanto na própria viagem, quanto na sua estadia na América e seu
retorno. A vocação de Léry era uma vocação pastoral e missionária, deste modo, o seu
desejo na efetivação da França Antártica era pregar o Evangelho nas terras brasileiras.127

A vocação, ou habilidade para realização de uma obra, além do próprio trabalho em si


e o seu resultado devem ser sempre tomados como uma dádiva divina, o homem não pode
jamais julgar-se autossuficiente, portanto, a dependência de Deus deve permanecer como

121
César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brail Colonial (1500-
1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 127.
122
César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brail Colonial (1500-
1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 128-129.
123
“É deveras certo que devemos a Deus não somente uma parte, mas tudo o que temos e somos”. João Calvino,
Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
124
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.6, São Paulo, UNESP, 2009.
125
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.6, São Paulo, UNESP, 2009.
126
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
127
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 76-78.
48
centro vital que norteia e fortalece o homem. Léry expressa este princípio quando no início
de sua viagem ao Brasil encontra-se diante das tormentas constantes que acometem a
embarcação, apresentando-se um mar arrebatador e violento onde as ondas varriam o convés
do navio, a ação de Léry é orar o Salmo 107 que ensina sobre a súplica confiante do
livramento do Senhor diante das angústias vividas. Expressão de confiança e dependência de
Deus demonstrada em todo o seu percurso de vida.128

Um dos aspectos constantes no pensamento de Calvino diz respeito à moderação como


uma perspectiva com vistas a evitar erros e extremismos. Outro elemento evidente quando
lemos o relato de Jean de Léry sobre a alimentação que tiverem na viagem e o limitado
suprimento no Forte de Coligny concedido por Villegagnon, tema a ser considerado em
maiores pormenores no capítulo seguinte sobre a chegada ao Brasil. Esta moderação acaba
por evidenciar não somente as relações físicas, mas se constitui em uma marca que norteia o
seu próprio sistema hermenêutico, como atesta Jeanneret, quando afirma que “Léry não é um
homem de julgamentos absolutos nem de posições extremas”.129 Moderação, uma qualidade
constante que se observa em Jean de Léry que fora herdade do reformador genebrino.

Calvino apresenta o auxílio ao próximo como um culto a Deus, uma vez que todos os
bens que possuímos, quer sejam tangíveis ou não, são dádivas do Senhor com o objetivo
tácito de servir uns aos outros. O faz ao comentar o texto de Hebreus 13.16 “mas não vos
esqueçais de fazer o bem”, ensina que “sejam quais forem os benefícios que façamos pelos
homens, Deus os considera como feitos a ele próprio, e lhes imprime o título de sacrifício”,
continua, “se porventura queremos oferecer sacrifício a Deus, então devemos invocar seu
Nome, fazer conhecida sua munificência através de ações de graças e fazer o bem aos nossos
irmãos”, e por fim, “a esse ensino adiciona-se uma exortação, com o propósito de estimular-
nos sensivelmente à expressão de benevolência para com nosso próximo. Não é uma honra
trivial o fato de Deus considerar o bem que fazemos aos homens como sacrifício oferecido a
ele próprio, e o fato de valorizar tanto nossas obras, as quais não possuem dignidade em si
mesmas, que as denomina de santas. Portanto, onde nosso amor não se manifesta, não só
despojamos as pessoas de seus direitos, mas também a Deus mesmo, o qual solenemente

128
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 81.
129
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literature
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 104.
49
dedicou a si o que ordenou fosse feito em favor dos homens”.130 Assim o fator de primaz
impulso por parte de um calvinista em sua ação, está intrinsecamente associado ao culto a
Deus, contudo, aqui especificamente, Calvino enfatiza o amor benevolente e operoso
realizado pelo crente ao próximo como um sacrifício de louvor que é apresentado ao próprio
Deus. Este é o impulso ético que move Jean de Léry, seu interesse em terras brasileiras é
cultuar a Deus, o seu olhar e suas ações valorativas com respeito aos índios tupinambás
devem ser entendidos em conformidade com este fator motivador, pois, amar o tupinambá é
idêntico a amar a Deus. Enfatiza Calvino: “O amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém
pode viver exclusivamente para si mesmo e negligenciar o próximo. Todos nós temos de
devotar-nos à ação de suprir as necessidades do próximo”.131 Léry tem em mente a
necessidade de tornar conhecida a verdadeira religião, segundo assim expressa, aos
tupinambás, porque esta é uma necessidade que visualiza nos índios, portanto, não poderia
eximir-se da tarefa que apresentar-lhes o Evangelho para que tenham o conhecimento da
verdade.

Para Calvino todas as dádivas que o homem recebe de Deus devem ter um uso social
em benefício do próximo. Pois, “temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos
e cada um dos favores do Senhor com os demais, pois isto é a única coisa que os legitima.
Todas as bênçãos de que gozamos são depósitos divinos que temos recebido com a condição
de distribuí-los aos demais. Não podemos imaginar uma incumbência mais apropriada a uma
sugestão mais poderosa que esta”.132 O grande fator motivador para auxílio e ajuda ao
próximo está no fato de que este foi criado e é imagem e semelhança do Criador. Uma vez
que “o bem que fazermos aos homens” Deus considera “como sacrifício oferecido a ele
próprio”.133 Este é o calvinismo de Jean de Léry que o norteara em sua hermenêutica do
Outro que se visualiza no relato de viagem.

Diante do que podemos observar quanto à ética de Calvino é manifesto o apreço pelo
ser humano conforme apresentado pelo reformador. Nossa tese, a qual entendemos
comprovar-se histórica e literalmente, é que tais conceitos não somente influenciaram, mas
acima de tudo, determinaram a mentalidade de Jean de Léry que se expressa em
relacionamento vívido quando se depara com os índios tupinambás. Deste modo, Jean de

130
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394, 395.
131
João Calvino, Exposição de Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 146.
132
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
133
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394.
50
Léry é um representante do calvinismo influenciado pelo humanismo renascentista, no
entanto, circunscrito aos limites da interpretação da Escritura Sagrada. Este lugar social
produz a visão de mundo que encontramos no relato de viagem História de uma Viagem feita
à Terra do Brasil, também chamada América, explicando assim sua valorização diferenciada
pelo índio tupinambá em terras do Brasil do século XVI.

51
A escrita faz a história. (...) O outro é o
fantasma da historiografia. O objeto que
ela busca, que ela honra e que ela sepulta.
(...) ...este projeto contraditório pretende
“compreender” e esconder com o
“sentido” a alteridade deste estranho ou, o
que vem a ser a mesma coisa, acalmar os
mortos que ainda frequentam o presente e
oferecer-lhes túmulos escriturários.
(Michel de Certeau).134
A escrita histórica tem um papel de rito
funerário. Instrumento de exorcismo da
morte, ela introduz no próprio coração de
seu discurso e permite a uma sociedade
situar-se simbolicamente dotando-se de
uma linguagem sobre o passado.
(François Dosse).135

1.2 – Jean de Léry e a Ciência do Outro

Pensar as relações humanas se constitui em uma atividade deveras essencial em


qualquer período da história, além de ser admiravelmente sublime em todas as sociedades.
Uma ciência que vislumbre este objetivo cumpre a sua função de pertença social fecunda e
reveladora das responsabilidades produtoras deste saber. Deste modo, nos concentraremos na
apresentação do instrumental teórico conforme proposto pelo erudito Michel de Certeau que
irá nortear a produção da presente pesquisa. Obviamente há uma grande diversidade de
possibilidades para a análise deste objeto, e que partilham igual valor ao escolhido, no
entanto, entendemos que a análise de Certeau, denominada por ele de heterologia, ou a
ciência do Outro, é capital para o estudo da obra de Jean de Léry, acompanhando a
perspectiva de Laura de Mello e Souza.136 Portanto, ao seguirmos uma das características
centrais do espírito renascentista de retornar às fontes primárias, optamos pelo autor
frequentemente citado, e também utilizado como o referencial por excelência por
praticamente todos aqueles que desejam estudar a História de uma Viagem feita à Terra do

134
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 232, 16.
135
François Dosse, O Império do Sentido: a humanização das Ciências Humanas, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p.
324.
136
Laura de Mello e Souza, Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII, São Paulo,
Companhia das Letras, 1993, p. 25.
52
Brasil, também chamada América, mesmo que o façam sucintamente, mas, sem contudo,
deixar de recomendar o trabalho de Certeau como ponto de partida por excelência para a
compreensão de Jean de Léry.137 Reconhecemos, como não poderia deixar de fazê-lo, que a
teoria da heterologia criada por Certeau é aplicável também em toda a literatura de viagem de
um modo geral, contudo, este sistema teórico é construído a partir do relato de Léry, o que
evidencia o apreço do historiador jesuíta pelo pastor huguenote do século XVI ao tomá-lo
como mestre de escrita histórica nos limites fronteiriços existente entre a história e a
etnologia. Nas palavras do historiador Ronaldo Vainfas encontramos uma maior explicitação
desta tese:

Foi com originalidade que Michel de Certeau viu na literatura de


viagem quinhentista (e diria, mais amplamente, nas representações
européias sobre o Novo Mundo) o esboçar de um saber etnológico, os
primeiros passos de uma disciplina que, fundada em 1836, se dedicara
a investigar, reconhecendo-o como diferente, o Outro cultural.
Certeau denominou essa proto-etnologia quinhentista de heterologia,
limiar de um saber e de um olhar antropológico na cultura européia,
ciente das dificuldades com que se depara o historiador

137
A título de exemplo eis alguns autores, alguns dispensam maiores apresentações, que de algum modo se
valem do construto teórico produzido por Certeau: Lestringant remete ao texto de Certeau sobre Léry por
diversas vezes em sua obra: Frank Lestringant, Le Huguenot et Le Sauvage: L‟Amérique et la controverse
colonial, en France, au temps des Guerres de Religion (1555-1589), Genéve, Droz, 2004; e Lestringant também
dedica um capítulo à análise pormenorizada da teoria de Certeau em: Frank Lestringant, Jean de Léry ou
l‟invention du sauvage. Essai sur l‟Histoire d‟um voyage faict em la terre du Brésil, Paris, Honoré Champion
Éditeur, 1999. Vd. Também: François Dosse, Michel de Certeau: el caminhante herido, México, Universidad
Iberoamericana, 2003. Cp. Rodrigo Turin, A “Obscura História” Indígena: o discurso etnográfico no IHGB
(1840-1870) in Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Estudos Sobre a Escrita da História, Rio de Janeiro,
7Letras, 2006, p. 86-113; Bem Highmore, Michel de Certeau: analysing culture, London, Continuum, 2006;
Eder Silveira, Tupi or not Tupi: nação e nacionalidade em José de Alencar e Oswald de Andrade, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 2009, p. 74; Eneida Maria de Souza, Wander Melo Miranda, Navegar é Preciso, Viver: escritos
para Silvano Santiago, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1997, p. 280; Andrea Daher, O Brasil Francês: as
singularidades da França equinocial, 1612-1615, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007; César Braga-
Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brasil Colonial (1500-1700), São
Paulo, Edusp, 2003; Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry,
André João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 150, 303, 312; Frank Lestringant, O
Conquistador e o Fim dos Tempos in Adauto Novaes (org.), Tempo e História, São Paulo, Companhia das
Letras, 1992, p. 411-422; Alexandre Belmonte, Mundo Novo e Paraíso Terrestre: o “transe” dos viajantes na
conquista da América in Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos, América Latina: identidades em construção, das
sociedades tradicionais à globalização, Rio de Janeiro, 7Letras, 2008, p. 13-39; Stephen Greenblatt, Possessões
Maravilhosas: o deslumbramento do novo mundo, São Paulo, EDUSP, 1996, p. 27, 36; Adone Agnolin, O
Apetite da Antropologia: o saber antropofágico do saber antropológico: alteridade e identidade no caso
tupinambá, São Paulo, Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 68; Adone Agnolin, Jesuítas e Selvagens: a
negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc. XVI-XVII), Associação Editorial
Humanitas, 2007, p. 435; João Adolfo Hansen, A Escrita da Conversão in Lúcia Helena Costigan (org.),
Diálogos da Conversão, Campinas-SP, UNICAMP, 2005, p. 43; Flora Süssekind, O Brasil Não é Longe Daqui:
o narrador, a viagem, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 131-132; Fábio B. Josgrilberg, Michel de
Certeau: a „teologia da diferença” e a missão cristã, Caminhando, vol. 7, N.º 2, Faculdade de Teologia
Metodista, São Bernardo do Campo-SP, 2002; dentre outros textos mais que poderiam figurar nesta sucinta
relação, o que no entanto, não deixar de tornar perceptível a importância de Certeau para o estudo de nosso
objeto de pesquisa.
53
contemporâneo, quer para extrair dos escritos europeus a informação
histórico-etnográfica desejada, quer para examinar o pensamento de
homens dilacerados e céticos.138

O erudito francês Michel de Certeau dedica especificamente um capítulo à Jean de


Léry na sua obra magna sobre epistemologia histórica, A Escrita da História.139 Vemos
Certeau transitando em diversos campos do saber humano, seja psicanálise, seja a história,
seja a teologia, ou as ciências sociais em geral, uma prova extra da propriedade de sua teoria
para dar conta de analisar o texto do huguenote francês, uma vez que este focaliza o humano
indígena em sua heterogeneidade cultural. Além de tudo é largamente reconhecido o caráter
inovador de suas teses sobre o cotidiano e a pertinência dos seus escritos. Esta obra se
constitui em elemento de suma importância para o corpus diretivo do estudo do relato de
viagem de Jean de Léry.

No capítulo intitulado “„Etno-grafia‟ a oralidade ou o espaço do outro: Léry”,


Certeau apresenta conceitos como o da alteridade correlacionada às ideias de natureza e
cultura. Apresenta uma análise da relação que Léry faz entre a “escrita histórica” e a
“oralidade etnológica” considerando que esta apresenta um ponto de partida “moderno” no
seu relato de viagem. Desta feita, atinge o ponto mais elevado, pelo menos para o tema em
questão, aplica ao relato de Jean de Léry, o conceito dos mais caros à sua estrutura
metodológica histórica, a heterologia ou a hermenêutica do Outro, se constituindo em um
grande programa historiográfico partícipe de sua jornada pessoal ao longo de sua vida em
busca de respostas aos seus anseios existenciais. Com Certeau encontramos um parâmetro
norteador para levar a efeito concreto a realização da operação historiográfica da obra do
protestante francês Jean de Léry.140

138
Ronaldo Vainfas, A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995, p. 24.
139
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 221-260; Michel de
Certeau, Heterologies: discourse on the other, Minnesota, The University of Minnesota Press, 1986.
140
Cp. Frank Lestringant, Jean de Léry ou l‟invention du sauvage. Essai sur l‟Histoire d‟um voyage faict em la
terre du Brésil, Paris, Honoré Champion Éditeur, 1999; Perla Chinchilla Pawling, Michel de Certeau: um
pensador de la diferencia, Ciudad de México, Universidad Iberoamericana, 2009; Jeremy Ahearne, Michel de
Certeau: interpretation and its other, California, Stanford University Press, 1995; Eduardo Gusmão de Quadros,
O Triunfo da Diferença: Michel de Certeau e a história do religioso, Estudos de Religião, Ano XX, N.º 31,
Dezembro de 2006, São Bernardo do Campo-SP, Metodista, p. 74-87.
54
1.2.1 – A operação historiográfica

Antes de nos atermos especificamente à heterologia, é necessário um sucinto


panorama sobre o fazer historiográfico proposto por Michel de Certeau, porque acima de
tudo, a ciência do Outro está essencialmente posta na sua relação histórica. 141 Para tanto
devemos salientar que a alteridade é uma constante no pensamento historiográfico, o passado
é o Outro do presente, portanto, a perspectiva da alteridade é essencial no ser historiador. A
história aponta para o encontro com o Outro que possibilita a compreensão do eu no presente.
Certeau apresenta a história como uma operação historiográfica caracterizada pela sua
triplicidade: um lugar social, uma prática e uma escrita. Nesta tríade encontramos a produção
de sentido que o discurso histórico fabrica. Este fabricar não é algo criado do nada sem
qualquer objetividade real, no entanto, com isto quer enfatizar, não as fontes do historiador,
mas principalmente o produto escriturístico que o historiador fabrica a partir destes
documentos como permeado de sentido interpretativo determinado pelo lugar social do
historiador. Observemos Certeau:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira


necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um
lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão etc.), procedimentos
de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma
literatura). É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e
que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”,
“enquanto prática”. Nessa perspectiva, gostaria de mostrar que a
operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de
práticas “científicas” e de uma escrita. Essa análise das premissas,
das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos precisos às leis
silenciosas que organizam o espaço produzido como texto. A escrita
histórica se constrói em função de uma instituição cuja organização
parece inverter: com efeito, obedece a regras próprias que exigem ser
examinadas por elas mesmas.142

Certeau questiona a função da narrativa e da escrita da história segundo uma


influência linguística. Para ele todo historiador tem como objetivo final a escrita, desta feita a
história se materializa por meio da escrita comprometida com o real, portanto, o historiador é
uma testemunha de sua vivencia empírica. É neste sentido que Léry é descrito como um
historiador por Certeau, porquanto o huguenote é uma testemunha real daquilo que relata,

141
Para maiores detalhes sobre a epistemologia da história proposta por Certeau vide a primeira parte da obra A
Escrita da História (Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 3-114).
142
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 46-47.
55
experiência produzida por todas as portas de acesso do sensorial vivido, segundo expressa
Jean de Léry no capítulo primeiro sobre os motivos da viagem: “Minha intenção e meu
objetivo serão apenas contar o que fiz, vi, ouvi e observei, quer no mar, nas viagens de ida e
volta, quer entre os selvagens americanos com os quais convivi durante aproximadamente um
ano”.143 Como afirma Certeau, “a possibilidade de fazer reviver ou de „ressuscitar‟ um
passado”144, eis o propósito de Léry. O objetivo central de Léry é pôr em cena diante dos
olhos do leitor as coisas como de fato são, a realidade, com respeito a terra e os habitantes e
toda a sua experiência de viagem.

O discurso histórico aponta para fora com a intenção de apresentar o real, contudo
possuindo abrangência limitada, já que o discurso é essencialmente incapaz de descrever este
Outro em sua integralidade. No entanto, mesmo diante da realidade do limite, devemos
pressupor que não temos a impossibilidade historiográfica da fidelidade do relato, mesmo
diante desta realidade, a pesquisa historiográfica deve ser dirigida pelo impulso norteador da
fidelidade do olhar interpretativo. Uma questão epistemológica relevante deve ser posta, a
verdade existe e o seu conhecimento é uma possibilidade concreta, no entanto, não podemos
apreendê-la em sua totalidade. Jean de Léry demonstra esta fidelidade na narrativa quando
aponta constantemente as fontes de sua escrita, seja o seu próprio olhar real, sejam os diálogos
com os tupinambás, sejam as referências constantes dos autores e obras que lhe serviram de
parâmetro de interpretação. O historiador para ser coerente com sua arte de fazer deve
inevitavelmente estar comprometido com a verdade, o gênero historiográfico é uma
interpretação narrativa fundamentada no real. O historiador que não se constrói como tal, sem
ter como alvo a verdade, não é digno desta atividade. Vive uma espécie de esquizofrenia
intelectual, quiçá, existencial. Deve, talvez, ser contado não entre os historiadores, mas como
parte de um outro local social, sua vocação talvez esteja relacionada às criações do
imaginário. Não é por acaso que Léry intitulou a sua obra de Histoire, porque esta possuía o
sentido basilar de investigação da realidade em um primeiro momento, e a partir desta
acepção, o passo seguinte é o sentido de narrativa ou relato histórico, seu significado sempre
esteve fundamentado no conceito de realidade verdadeira, nunca jamais, como o fruto da
imaginação dos escritores.145

143
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 75.
144
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 27.
145
Verbete “Histoire” in Dictionnaire de L'Académie française (portail.atilf.fr, acesso em 04 de julho de 2012).
56
O historiador transita constantemente em uma dupla realidade, a escrita em si mesma e
a vivência empírica, ou seja, uma mescla entre a teoria e a prática. Impõe-se a interpretação
historiográfica como uma produção social institucional, esta em Léry é o sistema de
pensamento apreendido do reformador João Calvino, portanto, a história é produzida na
escrita segundo regras institucionais que condicional e autorizam a representação linguística
da história. A compreensão da escrita da história depende inevitavelmente do conhecimento
analítico da instituição que determina a construção de sentido da narrativa do historiador.
Esta instituição é um lugar de circulação de ideias e também um campo de poder que produz
um paradoxo, tanto possibilita a construção e dá sentido ao discurso, quanto estabelece os
seus limites semânticos desta construção historiográfica. As instituições possibilitam o
discurso, contudo, também o limitam. Apesar disso, esta se constitui uma realidade universal
inevitável na prática historiográfica de qualquer historiador. Assim, o historiador quando
escreve revela não somente o seu objeto de análise, além disto, igualmente revela a si mesmo
e o lugar de produção que confere sentido à sua fala, seja escrita, seja oral. Como implicação
lógica, o lugar a partir de onde o sujeito fala é determinante para a compreensão do discurso,
porque este sujeito não é um ser individual, pelo contrário, em certa medida ele se constitui
socialmente, é influenciado em sua estrutura de pensamento, nos seus códigos hermenêuticos
interpretativos que se materializam no seu discurso. Portanto, a operação historiográfica,
segundo Certeau, é uma fabricação semântica que não está autoevidente no passado, é
produzida nesta construção historiográfica, desta feita, a escrita da história é produção de
sentido.

A voz que irrompe encontrando o seu espaço em uma institucionalização burocrática,


opressiva e limitadora na realidade das relações eurocêntricas com o Outro foi um dos
grandes interesses de Certeau, é exatamente neste sentido, que encontramos a razão do seu
apreço por Jean de Léry, porque este cria o lugar onde o tupinambá tem direito à fala através
das estratégias escriturísticas na produção de sentido de seu discurso na sua operação
historiográfica evidenciada em sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América. Certeau se reconhece em Léry, visto que encontra nele o mesmo
deslumbramento apreciativo pelo Outro. Portanto, é neste diálogo com o Outro que faz Léry
pensar a sua própria realidade europeia, o tupinambá é, desta feita, um espelho146 que lhe

146
Calvino na sua Dedicatória no Comentário ao livro dos Salmos aponta sobre o rei Davi: “Ao ler os exemplos
de sua fé, paciência, fervor, zelo e integridade, tal ato arrancou de mim, inevitavelmente, incontáveis gemidos e
suspiros, por ver que estou mui longe de chegar-me a ele; não obstante, tendo sido de imenso benefício poder eu
57
permite interpretar e entender a si mesmo, nesta perspectiva reflete o pensamento de Calvino
sobre o homem como fonte de conhecimento147, expressão da consciência de Jean de Léry em
olhar o índio como um ser humano. A tomada da palavra que Léry possibilita ao tupinambá,
obviamente em alguma medida é limitadora e impositiva, ou podemos falar de uma espécie de
colonização do Outro.148 Contudo, não podemos ser ingênuos e pensar em completa isenção e
neutralidade de Léry, ou quem quer que seja que tenha vivido relações semelhantes na
história, quiçá outras quaisquer; tão pouco seria possível advogar autonomia essencial na
construção das mentalidades de qualquer povo, mesmo do próprio europeu.149 Lembra
Certeau que “a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo (social)
e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe, seja à maneira do
lugar particular de onde se fala, seja à maneira do objeto outro (passado, morto) do qual se
fala”.150 Deste modo, a palavra dada ao índio, também se constitui em possibilidade de
superação desta mesma palavra, porque toda operação historiográfica produz “construção e
erosão”.151 De fato, há uma colonização linguística, podemos assim dizer, contudo, em que
momento histórico não encontramos estas mesmas relações?! Percebemos esta realidade
quando nos deparamos com o título do capítulo XVII da obra de Léry: “Sobre o que podemos
chamar leis e polícia civil entre os selvagens; o modo humano com que tratam os visitantes
amigos; e os prantos e discursos festivos das mulheres por ocasião das boas-vindas”. No
entanto, a própria Europa tem marcada a sua própria história gramatical, em grande parte pela
ação dos reformadores que se valeram de construções literárias que os antecederam. Certeau
defende que o historiador “„civiliza‟ a natureza – o que sempre significa que a „coloniza‟ e
altera”.152 Conceber a história como momentos estanques de simples superação e ruptura com

olhar para ele como num espelho, tanto nos primórdios de minha vocação como ao longo do curso de minha
função, tanto que eu sei com toda certeza que todos os inúmeros exemplos de sofrimentos por que passou o rei
Davi me foram exibidos por Deus como um exemplo a ser imitado”. João Calvino, O Livro dos Salmos, vol. 1,
São Paulo, Paracletos, 1999, p. 37. Cp. François Hartog, O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação
do outro, Belo Horizonte, UFMG, 1999.
147
Temática desenvolvida em detalhes no capítulo 4 “A Hermenêutica Religiosa do Outro em Jean de Léry”.
148
“Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e
problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num
momento dado; representa o papel de um censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos,
políticos) na análise. Sem dúvida, essa combinação entre permissão e interdição é o ponto cego da pesquisa
histórica e a razão pela qual ela não é compatível com qualquer coisa”. Michel de Certeau, A Escrita da
História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 63.
149
Cp. Roger Chartier, A História ou a Leitura do Tempo, Belo Horizonte, Autêntica, 2009, p. 16.
150
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 63.
151
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 107.
152
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 68. “Uma obra „histórica‟
participa do movimento através do qual uma sociedade modificou sua relação com a natureza, transformando o
natural em utilitário (por exemplo, a floresta em exploração), ou em estético (por exemplo, a montanha em
58
os tempos que a antecedem é não somente impróprio, mas extremamente ingênuo. Somente o
Deus bíblico-cristão foi capaz de criar tudo a partir do nada. Julgar que seja possível uma
construção histórica sem que se valha dos produtos que a antecedem é pleitear o absurdo da
autonomia dos sujeitos históricos. Vale considerar por outro lado, que a negação se constitui
em realidade na afirmação das mais contundentes que poderíamos fazer, uma tentativa em vão
de ocultar o que está patentemente notório aos olhos. Deste modo, para Certeau, a história
deve ser analisada como um processo que socialmente constrói o seu sistema semântico.
Expõe Certeau:

De parte a parte, a história permanece configurada pelo sistema no


qual se elabora. Hoje como ontem, é determinada por uma fabricação
localizada em tal ou qual ponto desse sistema. Também a
consideração desse lugar, no qual se produz, é a única que permite ao
saber historiográfico escapar da inconsciência de uma classe que se
desconheceria a si própria, como classe, nas relações de produção, e
que, por isso, desconheceria a sociedade onde está inserida. A
articulação da historia com um lugar é a condição de uma análise da
sociedade. (...)
Levar a sério o seu lugar não é ainda explicar a história. Mas é a
condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária
(ou “edificante”), nem atópica (sem pertinência). Sendo a denegação
da particularidade do lugar o próprio princípio do discurso ideológico,
ela exclui toda teoria. Bem do que isso, instalando o discurso em um
não-lugar, proíbe e história de falar da sociedade e da morte, quer
dizer, proíbe-a de ser a história.153

A escrita historiográfica coloca em cena aquilo que está ausente, decifrando os


símbolos nos rastros históricos deixados pelo Outro, objetivando interpretá-los e através
destes vislumbrar a possibilidade da autocompreensão. A história é “fundada sobre o corte
entre um passado, que é seu objeto, e um presente, que é o lugar de sua prática, a história não
para de encontrar o presente no seu objeto e o passado nas suas práticas”. 154 Por outro lado se
a escrita revela, ela também oculta; se ela faz nascer, também sepulta. Esta operação é a
evidência de uma ausência, onde o Outro é o objeto que é colocado em evidência. A
hermenêutica do Outro cria o espaço para o Outro através da produção de sentido no discurso
histórico, pois “não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um
corpo social e com uma instituição de saber”.155 Assim, o lugar social onde a escrita é
produzida cria a possibilidade do discurso sobre o Outro e principalmente autoriza a sua

paisagem), ou fazendo uma instituição social passar de um estatuto para outro (por exemplo, a igreja convertida
em museu)”. Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 68.
153
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 64.
154
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 27.
155
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 89.
59
existência. De modo que, “é a relação de cada discurso com a morte que o torna possível”156,
ausência e evidência, um paradoxo inevitável ao ofício de historiador. Como consequência,
Jean de Léry ao enterrar o morto, o passado, possibilita a construção do futuro e a
compreensão do presente, confere uma história ao índio tupinambá. Contudo, lembremos que
a escrita da história é um jazigo onde os mortos são sepultados, contudo, ainda permanece a
arte fúnebre que encanta os vivos e os impulsiona à ação no presente.157

A escrita da história surge como uma criação que se articula entre o lugar social e as
práticas adotadas pelo historiador nesta operação que produz o espaço do Outro como o ator
principal. Contudo, esta escrita além de lhe dar voz, também é o seu sepulcro. Lembremos
que a prática historiográfica para Certeau diz respeito aos métodos e procedimentos adotados
pelo historiador para a construção escriturística que tem por alvo a criação de sentidos do
Outro. “„Fazer história‟ é uma prática”.158 Portanto, a operação historiográfica é a
materialização escrita do morto, o Outro. Consequentemente, a operação historiográfica é a
articulação existente entre os três elementos propostos por Certeau, o lugar social que autoriza
o discurso, as práticas que se constituem em procedimentos pragmáticos que se externalizam
na própria escrita da história. Podemos afirmar que a palavra, a linguagem e a escrita são os
aspectos centrais da construção intelectual de Michel de Certeau no que concerne à
historiográfia.

Para Certeau a história deve ser pensada nas relações paradoxais entre natureza e
cultura, identidade e alteridade, discurso e realidade, linguagem e vivido, o mesmo e o Outro.
A história opera e se articula nesta fronteira dicotômica para a produção de sentido. 159 É
exatamente neste duplo que se constitui em um espelho que Jean de Léry organiza a relação
entre etnologia e história (oralidade/escrita; espacialidade/temporalidade;
alteridade/identidade; inconsciência/consciência). Portanto, ocorre a retenção e o
arquivamento, onde o tupinambá fala, criando Léry, uma hermenêutica do Outro que se
apresenta como uma circularidade, que viaja do mesmo ao Outro, retornando a si mesmo,

156
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 41-42.
157
“O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto. O objeto que nele circula não é senão
o ausente, enquanto o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e os seus leitores, quer dizer, entre
presentes. A coisa comunicada opera a comunicação de um grupo consigo mesmo pelo remetimento ao terceiro
ausente que é o seu passado. O morto é a figura objetiva de uma troca entre vivos. Ele é o enunciado do
discurso que o transporta como um objeto, mas em função de uma interlocução remetida para fora do discurso,
no não dito”. Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 41.
158
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 64.
159
“É nessa fronteira mutável, entre o dado e o criado, e finalmente entre a natureza e a cultura, que ocorre a
pesquisa”. Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 65.
60
objetivando a tradução da realidade tupinambá segundo as categorias ocidentais, evidenciando
um lugar de saber, o calvinismo, que possibilita a sua operação historiográfica escriturística.

1.2.2 – A Etnologia de Jean de Léry

A etnologia (ou o estudo dos povos ou grupos sociais e suas respectivas culturas
dentro de seu próprio contexto tradicional) ou uma hermenêutica do Outro (heterologia),
segundo Certeau está organizada e fundamentada como campo científico que possui quatro
características basilares para o discurso constituído como ciência, que sejam:

1 – A Oralidade;

2 – A Espacialidade;

3 – A Alteridade;

4 – A Inconsciência.

Por oralidade, aponta Michel de Certeau, “a comunicação própria da sociedade


selvagem ou primitiva, ou tradicional”.160 A espacialidade também pode ser apresentada
como um “quadro sincrônico de um sistema sem história”.161 A alteridade como “a diferença
que apresenta um corte cultural”.162 E por fim a inconsciência é o “estatuto de fenômenos
coletivos referidos a uma significação que lhes é estranha e que não é dada senão a um saber
vindo de algures”.163

No entanto, para Certeau em Léry estes elementos darão lugar à construção da


história, porque a oralidade não consegue sobreviver ao tempo, se não for escrita ela se perde,
é necessária a escrita para revelar a fala. Eis a estrutura etnográfica histórica proposta por
Certeau a partir de Jean de Léry:

160
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 221.
161
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 221.
162
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 221.
163
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 221.
61
1 – A Escrita;

2 – A Temporalidade;

3 – A Identidade;

4 – A Consciência.

A etnografia tem como tarefa articular estas noções ou leis em uma forma escrita de
modo a organizar o espaço pertencente ao Outro dentro de um quadro que privilegie a
fidelidade da oralidade. No entanto, é necessário ter a percepção de que isto gera noções
diametralmente opostas na sua construção. Ei-las: a escrita, a temporalidade, a identidade e a
consciência, conforme Certeau assim expõe. Deste modo evidencia o paralelo e a diferença
entre a oralidade e a escrita, por assim dizer, ou mais precisamente entre a etnologia e a
história.

Com estes conceitos-chave em mente, Certeau propõe que Jean de Léry produz de um
modo evidente, uma dialética entre cultura e natureza. “A contraposição natureza/cultura
constitui-se, portanto, na relação invertida alteridade (natural) versus identidade
(tribal/cultural), que diz respeito ao primeiro pólo, contrário a uma identidade (cultural)
versus uma alteridade (degeneração cultural), que caracteriza o pólo da cultura (européia)”.164
Assim, a lição de escrita de Léry apresenta-se como uma interpretação (hermenêutica) do
Outro e, sobretudo de si mesmo.

Nas palavras de Certeau vemos exatamente a tensão existente entre os limites da


oralidade e da escrita, este Outro, da etnologia ou da história não importa, é descrito segundo
as categorias semânticas existentes no lugar social do Eu Mesmo, o modus operandi da
representação linguística, a escrita da história, portanto, é determinado pelas pistas deixadas
no percurso do Outro, que são apenas vestígios que permitem o sepultamento do Outro
quando da escrita:

Conotada pela oralidade e por um inconsciente, esta “diferença”


recorta uma extensão, objeto da atividade científica: a linguagem oral
espera, para falar, que uma escrita a percorra e saiba o que ela diz.
Sobre este espaço de continentes e oceanos oferecidos,

164
Adone Agnolin, O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e
identidade no caso tupinambá, São Paulo, Associação Editoral Humanitas, 2005, p. 142.
62
antecipadamente, às operações da escrita, se esboçam os itinerários
dos viajantes, cujos vestígios vão ressaltar da história. Desde que se
trate de escritos, a investigação não tem mas necessidade de colocar
um implícito – uma “natureza inconsciente” – sob os fenômenos. A
história é homogênea nos documentos da atividade ocidental. Atribui-
lhes uma “consciência” que pode reconhecer. Desenvolvimento na
continuidade das marcas deixadas pelos processos escriturários:
contenta-se em organizá-los, quando compõe um único texto através
dos milhares de fragmentos escritos, onde já se exprime o trabalho que
constrói (faz) o tempo e que lhe dá consciência através de um retorno
sobre si mesma.
Desta configuração complexa retenho, inicialmente, dois termos.
Interrogo-me sobre o alcance desta palavra instituída no lugar do
outro e destinada a ser escutada de uma forma diferente da que fala.
Este espaço da diferença questiona um funcionamento da palavra nas
nossas sociedades da escrita – problema muito amplo, mas que torna
perceptível a articulação da história e da etnologia no conjunto das
ciências humanas.165

A relação paradoxal perdura em uma “dizima periódica”, sem fim. A palavra dada ao
Outro no seu próprio lugar social é impositiva, por ser fatalmente determinada pela
construção semântica do Eu, contudo, paradoxalmente está aberta à possibilidade de encontrar
o seu próprio espaço neste lugar instituído através de suas artimanhas para gerar o seu sentido
esriturístico adequado às suas necessidades existenciais, no entanto, sem jamais perder as
influências das construções que se constituem na fundação deste seu sistema de escrita
histórica. O ser humano caracteriza pela criativa não é um consumidor passivo dos produtos
culturais aos quais é exposto, mas acima de tudo, reconstrói e resignifica tudo quanto recebe
como herança, a linguagem é dinâmica.

Percebemos que Certeau não deixa de entender as diferenças e os problemas existentes


quanto à escrita do oral, suas aproximações e seus distanciamentos, suas alianças e seus
divórcios. Observemos quando explicitamente apresenta o seu intuito ao desenvolver o seu
tema neste capítulo que hora nos serve de ponto de partida “„Etno-grafia‟ a oralidade ou o
espaço do outro: Léry”:

Atravessar a história e a etnologia com algumas questões, eis aí todo o


meu propósito. Mesmo a este título não se poderia considerar a
palavra e a escrita como elementos estáveis dos quais bastaria analisar
as alianças ou os divórcios. Trata-se de categorias que constituem
sistema dentro de conjuntos sucessivos. As posições respectivas do
escrito e do oral se determinam mutuamente. Suas combinações, que

165
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 222-223.
63
mudam os termos, tanto quanto as suas relações, inscrevem-se numa
sequência de configurações históricas.166

Concomitantemente compreende Michel de Certeau que é por meio da escrita que


podemos ter acesso ao oral, no entanto, é preciso ter ferramentas adequadas que determinem o
nosso ato de crer nos relatos históricos. Desta feita, é necessário ter como pressuposto
metodológico ler um texto ciente de que este se encontra inserido num contexto determinado
e também é fruto deste lugar social que o determina e que é por ele determinado em sua
construção histórica. Ou seja, os textos são produzidos com vistas à compreensão de um
grupo determinado ao qual é destinado, segundo uma conformidade aos códigos linguísticos
relacionados ao autor que produz o texto. No caso do relato de viagem de Jean de Léry, como
em todos, os receptores e os leitores são determinantes não somente na produção de sentido,
mas, acima de tudo, na própria escrita do relato, pois, quando explica Léry já no prefácio o
motivo da demora em publicar a sua narrativa, ainda que oralmente descrevesse sua
experiência, afirma que aqueles que ouviam os relatos “julgavam que tais coisas mereciam ser
preservadas do esquecimento”.167

Deste modo nos deparamos com a importância vital de compreendermos todo o


contexto social e as estruturas de pensamento aos quais Jean de Léry está circunscrito para
que a tarefa de compreensão de seu relato de viagem seja alcançada sem imposição de
estruturas indevidas por parte de leitores do século XXI, contudo, jamais iremos nos
desvencilhar de nosso construto semântico que determina nosso sistema hermenêutico da
realidade. Precisamos invariavelmente viajar histórica e intelectualmente ao século XVI
através das pistas e rastros deixados pelos sujeitos, na tentativa de reconstruirmos o mapa
náutico que nos apontará o caminho a ser navegado, no entanto, por vezes nos valeremos
apenas de uma bússola em meio às ausências de sentidos nos mares historiográficos bravios.
Afinal de contas, o historiador é um viajante que transita pelos limites fronteiriços dos
saberes, levando outros em sua companhia. Assim afirma Certeau:

Este uso novo é o que eu observo nos textos – histórias de viagens e


quadros etnográficos. Isto significa, evidentemente, permanecer no
campo da narração. Prender-se também ao que o escrito diz da
palavra. Mesmo que sejam o produto de pesquisas, de observações e
de práticas estes textos permanecem relatos que um meio se conta.
Não se pode identificar estas “lendas” científicas com a organização

166
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 223.
167
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 57.
64
das práticas. Mas indicando a um grupo de letrados o que “devem
ler”, recompondo as representações que eles se dão, estas “lendas”
simbolizam as alterações provocadas numa cultura pelo seu encontro
com uma outra. As experiências novas de uma sociedade não
desvelam sua “verdade” através de uma transparência destes textos:
são aí transformadas segundo as leis de uma representação científica
própria da época. Desta maneira os textos revelam uma “ciência dos
sonhos”; formam “discursos sobre o outro”, a propósito dos quais se
pode perguntar o que se conta aí, nesta região literária sempre
decalada com relação ao que se produz de diferente.168

Para Michel de Certeau é inevitável que a escrita seja condicionante, no entanto, ela
não dá conta de expressar em sua totalidade o real. Esta escrita é delimitada em sua realidade
semântica segundo categorias científicas que produzem o sentido próprio à interpretação deste
texto segundo um lugar social específico. Apesar disso, existem os não-ditos no texto, as
lacunas silenciosas que permitem a expansão da operação historiográfica. Deste modo,
evidencia-se que Léry é um sujeito de sua época – aliás, todos nós o somos – que escreve seu
relato condicionado aos elementos que compõe o seu sistema linguístico calvinista, seu lugar
social, que é construído a partir da ótica do humanismo renascentista, considerando as
ferramentas de interpretação utilizadas pela Reforma Protestante, tendo como foco prioritário
a compreensão da verdade objetiva. Para a epistemologia reformada, a verdade é acessível ao
homem por meio de uma circularidade, conhecendo a Deus conhece-se ao homem, contudo o
conhecimento total da verdade não é advogado, as lacunas sempre existirão. A Reforma
rompe com o sistema interpretativo escolástico caracterizado pelo esquema quádruplo de
sentido169 e adota as técnicas filológicas e textuais humanistas que privilegiam o sentido
literal do texto como o único sentido possível e verdadeiro; é o que Jean de Léry faz quando
se depara com o índio e sua cultura, ou seja, descrever literalmente a sua visão por julgar estar
aí a verdade a ser apresentada.170

168
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 223-224.
169
“A distinção entre o sentido literal ou histórico das Escrituras, de um lado, e o sentido spiritual ou alegórico
mais profundo, de outro, acabou por ser aceita pela Igreja durante os primeiros séculos da Idade Média. O
método aceito pela Igreja para a interpretação bíblica, nessa época, era conhecido em geral pelo nome de
Quadriga, ou do „sentido quadruple das Escrituras‟. A origem desse método é a distinção entre os sentidos
literal e spiritual. Acreditava-se, então, que as Escrituras possuíam quatro sentidos diferentes. Além do sentido
literal havia outros três: o alegórico, que definia aquilo no que os cristãos deveriam crer; o tropológico ou moral,
que determinava o que os cristãos deveriam fazer; e o analógico, voltado para mostrar o que deveriam esperar”.
Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo, Loyola, 2005, p. 17.
170
Alister E. McGrath, As Origens Intelectuais da Reforma, São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 151-167.
Especificamente sobre a hermenêutica de Calvino ver Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino, 500 anos:
introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo, Cultura Cristã, 2009, p. 65-133.
65
1.2.3 – Jean de Léry e Michel de Certeau: a relação o eu e o Outro

Michel de Certeau entende que Jean de Léry propõe uma dialética entre os elementos
supostamente paradoxais, que sejam, natureza e cultura.171 Contudo, é a partir da tensão dos
limites fronteiriços destas realidades constantes que temos o surgimento da heterologia, a
ciência do Outro, que se constitui na prática como um discurso do Outro, e além de tudo,
sobre o Outro, atingindo o nível onde possibilita ao Outro a fala. A heterologia cria o espaço
social onde a articulação linguística do Outro ganha sentido, é a tomada da palavra que
concede ao Outro a voz que não possuía anteriormente. É importante salientar que esta
ciência do Outro sempre lida e joga com dois lugares distantes e distintos que são
aproximados por esta ciência que acaba por transformar a ambos os lugares
concomitantemente. Esta abordagem é caracterizada por um olhar apreciativo quanto aos
aspectos que faltam ao outro lugar em relação ao seu lugar de origem. A heterologia é o meio
do caminho, o ponto de ligação, e o contato entre estes dois lugares, o retorno do Eu para o
Mesmo mediado pelo Outro.

Cristina Pompa enfatiza esta característica da mediação como uma busca do eu através
do encontro com o Outro, vejamos:

No que diz respeito aos índios da terra de Santa Cruz, a famosa análise
de Michel de Certeau (1982), da Histoire d‟um Voyage fait em La
Terre Du Brésil, de Jean de Léry, mostra como a representação
histórica se transforma em mise-em-scène literária pela prática da
escrita historiográfica. A narrativa é uma viagem em busca do Eu,
cujo produto final é a invenção do Selvagem. Na véspera dos tempos
modernos, as descrições de Léry inauguram uma série de quadros
análogos aos que os relatos de viagem irão apresentar durante quatro
séculos.172

Certeau defende que Léry apresenta uma etnografia, ou poderíamos também definir
como o expressar daquilo que se fala (etno) por meio da escrita que revela e preserva a fala

171
Cp. “A acepção corrente do termo “etnocentrismo” indica uma atitude coletiva que apresenta dois aspectos
complementares entre si: o desprezo por todas as formas culturais (religiosas, sociais, estéticas etc.) que
divergem daquelas vigentes em uma determinada sociedade e, simultaneamente, a identificação do sistema
cultural próprio desta última com a Cultura em sentido absoluto. Em outras palavras, o etnocentrismo consiste
na negação da diversidade; negação que induz a relegar para a esfera da natureza o culturalmente alheio e que
chega ao ponto de gerar comportamentos inspirados na intolerância”. Marcello Massenzio, A História das
Religiões na Cultura Moderna, São Paulo, Hedra, 2005, p. 41.
172
Cristina Pompa, Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial, Bauru-SP,
EDUSC, 2003, p. 36. (negritos meus).
66
(grafia). Encontramos aqui uma tensão entre a escrita (cultura civilizada) e a oralidade (a voz
do Outro). Para a etnologia a oralidade não sobrevive ao tempo, portanto, se não for escrita se
perde, assim, a escrita é preservadora, além de reveladora. Para a Reforma Protestante a
palavra escrita é de essencial importância, porque por meio dela é que o homem tem
conhecimento das verdades sobre Deus contidas nas Escrituras Sagradas, elemento partícipe
da consciência missionária de Léry que evidenciaremos em capítulo próprio onde trataremos
sobre a hermenêutica religiosa do Outro. Além disto, esta grafia que preserva o oral, garante
ao índio o privilégio de ter uma história que se materializa e temporaliza a partir a escrita. Por
conseguinte, Jean de Léry possibilita ao índio a sua memoria social e o direito à sua própria
fala dentro de um esquema científico de representação.173 Expõe Certeau:

A questão proposta aos trabalhos etnológicos – o que supõe esta


escrita sobre a oralidade? – se repete naquela que me fazem trazer à
luz e que vem de mais longe do que eu. Minha análise vai e vem entre
estas duas variantes da mesma relação estrutural: os textos que ela
estuda e os que ela produz. Através desta bilocação, sustenta o
problema sem resolvê-lo, quer dizer, sem poder sair da
“circunscrição”. Pelo menos assim se manifesta uma das regras do
sistema que se constitui como “ocidental” e “moderno”: a operação
escrituraria que produz, preserva, cultiva “verdades” não-perecíveis,
articula-se num rumor de palavras diluídas tão logo enunciadas, e,
portanto, perdidas para sempre. Uma “perda” irreparável é o vestígio
destas palavras nos textos dos quais são objeto. É assim que se parece
escrever uma relação com o outro.174

Certeau não advoga oposição entre oralidade e escrita, tão pouco, uma exclusão. São
na verdade conceitos pares que andam de mãos dadas; diferenças que não são
necessariamente excludências. A proposta de Certeau não implica em um engessamento, mas
sim, uma dinâmica de configurações e posições relacionadas ao contexto social da operação
escriturística. Para Certeau, a função e o poder da escrita etnográfica estão em estabelecer um
lugar social para objetos e identidades, ou seja, fazer a história a partir daquilo que surge do
recorte cultural seguindo as quatro características para o discurso etnográfico/heterológico: a
oralidade, a espacialidade, a alteridade e a inconsciência. Desta feita, a escrita historiográfica
penetra o espaço e usa o tempo em oposição à palavra oral que não atinge uma longa
distância, seja geográfica seja temporal que em sua essência não possui a capacidade de reter
o passado, pois...

173
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 120-121.
174
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 225.
67
...a esta escrita que invade o espaço e capitaliza o tempo opõe-se a
palavra que não vai longe e que não retém. Sob o primeiro aspecto ela
não deixa o lugar de sua produção. Dito de outra maneira, o
significante não é destacável do corpo individual ou coletivo. Não é,
portanto, exportável. A palavra é, aqui, o corpo que significa. O
enunciado não se separa nem do ato social da enunciação nem de uma
presença que se dá, se gasta ou se perde na nominação. Não existe
escrita senão onde o significante pode ser isolado da presença.175

A escrita historiográfica é o grande viajante ao final de tudo, é ela, e somente ela, que
tem a possibilidade de transpor o Atlântico e chegar até a Europa, transpor os séculos e
desembarcar no presente. Em certa medida, esta historiografia é limitada pelo seu próprio
sistema interpretativo condicionante, e paradoxalmente poderíamos dizer que a escrita ganha
alguma liberdade. Enfatiza Certeau:

Aqui o elemento decisivo é a posse ou a privação de um instrumento


capaz, ao mesmo tempo, de “reter as coisas em sua pureza” (...) e de
se estender “até o fim do mundo”. Combinando o poder de reter o
passado (enquanto que a “fábula” selvagem esquece e perde a origem)
e o de superar indefinidamente a distância (enquanto que a “voz”
selvagem está limitada ao círculo evanescente de seu auditório), a
escrita faz a história. Por um lado ela acumula, estoca os “segredos”
da parte de cá, não perde nada, conserva-os intactos. É arquivo. Por
outro lado ela “declara”, avança “até o fim do mundo” para os
destinatários e segundo os objetivos que lhe agradam – e isto “sem
sair de um lugar”, sem que se desloque o centro de suas ações, sem
que ele se altere nos seus progressos. Ela tem na mão a “espada” que
prolonga o gesto mas não modifica o sujeito. Sob este ponto de vista
repete e difunde seus protótipos”.176

A conclusão de Orlandi é deveras pertinente para observarmos neste ponto de nossa


análise, ao apontar a prática da escrita historiográfica de Jean de Léry como uma expressar de
lugar social, o calvinismo. Observemos a descrição:

É no modo de observação – de descrição e de compreensão do índio e


da sua cultura – que Léry atesta a sua abordagem mais “científica”:
conhecer profundamente a língua, não ficar satisfeito em saber
somente o necessário para se comunicar (conhecimento prático).
Tudo isso o torna menos sensível ao preconceito face à língua dos
índios e face à sua cultura.
A questão da língua, na Reforma, como nós dissemos, torna-se uma
questão crucial na relação entre o sagrado e o profano, estando o
problema da relação sujeito com o saber ligado ao problema do
domínio da língua.
É daí, pois, que deriva o caráter de cientificidade que Jean de Léry dá
às suas observações sobre o índio e sua língua, sendo então parte de

175
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 233.
176
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 232.
68
suas convicções e de suas práticas religiosas. A forma científica de
mostrá-lo é a explicitação das regras da gramática da língua dos
índios.177

Certeau ainda enfatiza a importância da escrita em preservar a verdade, e classifica


esta propriedade ao fato de Léry ser calvinista em contraponto ao problema da oralidade em
acrescentar ao longo do tempo informações equivocadas quanto aos fatos que pretende relatar.
Mais uma vez vemos evidenciada a relação que se estabelece entre a veracidade objetiva e o
sistema hermenêutico da Reforma Protestante que se externaliza no relato de viagem de Jean
de Léry, mostrando mais uma vez, que o determinante na produção de sentido deste relato é o
seu lugar social, ou seja, o calvinismo, em especial sua estrutura de mentalidade quanto à
hermenêutica bíblica que se estende ao restante das práticas vividas pelos sujeitos
reformados.178 Evidentemente expressão, em alguma medida, da cientificidade humanista,
considerando que a Reforma também se utilizou das ferramentas de análise exegética
desenvolvidas no período. Observemos Certeau:

Para que a escrita funcione de longe é necessário que ela, à distância,


mantenha intacta a sua relação com o lugar de produção. Para Léry
(nisto ele permanece a testemunha da teologia bíblica reformada), a
escrita supõe uma transmissão fiel da origem, um estar-lá do Começo
que atravessa, indene, os avatares de gerações e de sociedades mortais.
Ela mesma é corpo de verdade, portanto isolável do corpo eclesial ou
comunitário. Este objeto verdadeiro transporta do passado para o
presente os enunciados que produziu “sem sair de seu lugar”, uma
enunciação principal e fundadora. É um mundo, não mais natural mas
literário, onde se repete o poder de um autor longínquo (ausente). Ao
cosmos religioso – criatura significando o criador –, o texto parece já
se substituir, mas miniaturizando-o para fazer dele, em benefício do
homem, um instrumento fiel e móvel num espaço ilimitado. A palavra
se encontra numa posição bem diferente. Ela não “guarda”. É este o
seu segundo aspecto.179

177
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: velho e novo mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/UNICAMP, 1990, p. 95-96.
178
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 234.
179
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 233. “Através disto, em
Jean de Léry, transparece o bom calvinista. Ele prefere a carta a um texto eclesial; o texto à voz de uma
presença; a origem relatada pela escrita à experiência ilocutória de uma comunicação fugidia. Mas já desloca a
teologia que o inspira. Ele a laiciza. Na verdade, a natureza ainda é para ele um signo ao qual responde
cantando o salmo 104 enquanto viaja sob as árvores em festa: esta “palavra” o concilia o “coração alegre”, com
os murmúrios da floresta e as vozes do Tupi. Ela reúne seu encantamento ao som da “balada” comunitária. O
que existe de religioso na sua Histoire se refere ao aspecto quase estático e “profético” da palavra selvagem, mas
se dissocia do trabalho conotado pela escrita. Uma escritura já parece ter lugar. Da enunciação festiva, poética,
efêmera, se distingue o trabalho de conservar, verificar e de conquistar. Um querer está investido nela.
Transforma discretamente as categorias cristãs que lhe servem de linguagem. A eleição eclesial se transforma
num privilégio ocidental; a revelação original numa preocupação científica de conter a verdade das coisas; a
evangelização num empreendimento de expansão e de retorno a si. A escrita designa uma operação conforme a
69
A oralidade tem os seus limites, abrange diretamente apenas os ouvintes primários, e
permite a estes, movidos pela esperteza ou ingenuidade, macular o sentido original do falante
inicial. De fato, este é o elemento levantado por Michel de Certeau, que potencializa a
problemática da oralidade por um lado, e de outro, evidencia a importância da escrita, do
registro dos fatos que Jean de Léry empreende ao dar ao tupinambá uma história, portanto, é a
escrita que faz a história. Observemos Certeau:

A propósito de uma tradição oral dos tupi concernente ao dilúvio que


teria afogado “todos os homens do mundo, exceto seus avós, que se
salvaram sobre as mais altas árvores de seu país”, Léry observa que
“estando privados de toda espécie de escrita lhes é penoso reter as
coisas em sua pureza; eles acrescentaram a esta fábula, como os
poetas, que seus avós se salvaram sobre as árvores”. Graças ao padrão
escriturário, Léry sabe medir o que a oralidade acrescenta às coisas, e
sabe o que as coisas foram, ele é historiador. Pelo contrário a palavra
contém o costume que “transforma a verdade em mentira”. Mais
fundamentalmente ela é fábula (de fari, falar). Portanto a fábula é a
deriva – adjunção, desvio e divertimento, heresia e poesia do presente
com relação à “pureza” da lei primitiva.180

Por meio desta operação escriturística, Jean de Léry apresenta um “ponto de partida
moderno”, que promove desta feita, uma transição, mesmo que “suponha tradição medieval
de utopias e de expectativas onde já se esboçava o lugar que o “bom selvagem” virá
preencher”.181 Conforme afirma Le Goff, citador por Certeau: “A Idade Média prepara
também tudo aquilo que é necessário para o acolhimento de um “bom selvagem”: um
milenarismo que espera um retorno à idade de ouro; a convicção de que o progresso histórico,
se ele existe, se faz a golpes de re-nascimentos, de retornos a um primitivismo inocente”.182
A experiência de viagem e o consequente relato de Léry sobre os tupinambás em terras do
Brasil, fazem Certeau chamar sua aventura de “peregrinação às avessas”, pois “bem longe de
encontrar o corpo referencial de uma ortodoxia (a cidade santa, o túmulo, a basílica), o
itinerário parte do centro para as margens, na busca de um espaço onde encontrar um solo;

um centro: as partidas e os remetimentos permanecem sob a dependência do querer impessoal que nela se
desenvolve e ao qual retornam. A multiplicidade dos procedimentos onde se inscrevem as “declarações” deste
querer constrói o espaço de uma ocupação pelo mesmo, que se estende sem se alterar. Organizações
escriturárias: comercial, científica, colonizadora. Os “caminhos da escrita” combinam o plural dos itinerários e o
singular de um lugar de produção”. Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense,
2011, p. 234-235.
180
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 233-234.
181
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 225.
182
Jacques Le Goff, L‟historien et l‟homme cotidien in L‟Historien entre l‟ethnologue et Le futurologue,
Mouton, 1973, p. 240 apud Michel de Certeau, A Escrita da História, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 2002, p. 236.
70
pretende construir aí a linguagem de uma convicção nova (reformada)”. 183 A implicação
desta peregrinação é a invenção do selvagem. Entretanto, em Léry não temos um selvagem
retratado de maneira pejorativa e inferiorizada em relação ao europeu, o que encontramos é a
figura valorativa do selvagem como ser humano.184 Portanto, desta feita, “em Jean de Léry
transparece o bom calvinista”185 que opta pela “carta a um texto eclesial; o texto à voz de uma
presença; a origem relatada pela escrita à experiência ilocutória de uma comunicação
fugidia”.186

Expondo a presente temática de modo direto e claro afirma François Dosse:

Da ida e volta de Jean de Léry, protestante calvinista que partiu de


Genebra e descobriu os tupinambás da baía do Rio de Janeiro antes de
voltar para seu ponto de partida, existe no interior desse relato de
viagem fez uma descoberta essencial, a do selvagem. É essa intrusão
e o uso que Léry faz dela que interessa Certeau, colocando-a no centro
de um relato etnológico. Ele a percebe como um percurso circular de
um lado e de outro de uma visão binária entre o mundo selvagem e o
mundo civilizado, para finalmente se complexificar ao final de uma
fratura interna do discurso que termina por diferenciar dois mundos
opostos: “À bipolaridade inicial, perigosa e cética (verdade aquém,
erro além) substitui-se um esquema circular construído sobre o
triângulo de três referências” que são Genebra como ponto de partida
e de retorno, confrontada a essa natureza estranha e a essa humanidade

183
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 226.
184
Cp. “A diversidade humana é infinita: se quero observá-la, por onde começar? Digamos, para entrar na
matéria, que é preciso distinguir entre duas perspectivas (conexas entre si). Na primeira, a diversidade é a dos
próprios seres humanos; aí o que se quer saber é se formamos uma única ou várias espécies (no século XVIII o
debate se formulava em termos de “monogênese” e “poligênese”); e, supondo uma só espécie, qual o alcance das
diferenças entre os grupos humanos. Em outros termos, o problema da unidade e da diversidade humanas.
Quanto à segunda perspectiva, ela desloca o centro da atenção para a questão dos valores: existem valores
universais, e portanto uma possibilidade de levar os julgamentos para além das fronteiras, ou todos os valores
são relativos (a um lugar, a um momento da história, ou mesmo à identidade dos indivíduos)? E caso se admita
uma escala universal de valores, qual a sua extensão, o que engloba, o que exclui? O problema da unidade e da
diversidade se transforma então no problema do universal e do relativo; e é por ele que começarei esta
exploração.
A opção universalista pode se encarnar em diversas figuras. O etnocentrismo merece ser posto à frente, pois é a
mais comum dentre elas. Na acepção dada aqui a esse termo, consiste em, de maneira indevida, erigir em
valores universais os valores próprios à sociedade a que pertenço. O etnocêntrico é, por assim dizer, a caricatura
natural do universalista: este, em sua aspiração ao universal, parte de um particular, que se empenha em
generalizar; e tal particular deve forçosamente lhe ser familiar, quer dizer, na prática, encontrar-se em sua
cultura. A única diferença – mas, evidentemente, decisiva – é que o etnocêntrico segue a linha do menor esforço
e procede de maneira não crítica; crê que seus valores são os valores e isso lhe basta; nunca busca
verdadeiramente prová-lo. O universalista não-etnocêntrico (pode-se pelo menos tentar imaginar um) buscaria
fundar na razão a preferência que sente por certos valores em detrimento de outros; seria particularmente
vigilante a respeito daquilo que, embora lhe pareça universal, encontra-se em sua própria tradição; e estaria
disposto a abandonar o que lhe é familiar e a abraçar uma solução observada num país estrangeiro, ou encontrada
por dedução”. Tzvetan Todorov, Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1993, p. 21-22.
185
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 234.
186
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 234.
71
exemplar onde a alteridade do novo mundo se vê cindida por um lado
em um exotismo e por outro lado em uma esperança ética, segundo os
votos e a expressão fornecidos por Jean de Léry. Essa alteridade, esse
trabalho do outro no interior da escrita ocidental se abre para uma
“hermenêutica do outro. Ele transporta para o novo mundo o aparelho
exegético cristão”. Jean de Léry já pratica essa hermenêutica
substituindo pela linguagem teológica, que é a sua quando ele deixa
Genebra, a atividade tradutora de seu ponto de chegada.187

Também é necessário enfatizar que a motivação colonialista do missionário


protestante francês não pode ser identificada com as motivações relacionadas à mera
exploração de uma colônia como frequentemente ocorreu nas Américas por parte de alguns
dos portugueses e espanhóis.188 Desta feita, defendemos que o intuito primordial da ocupação
francesa na Guanabara não possuía o propósito do estabelecimento de uma colônia onde a
exploração dos recursos naturais fosse o objetivo determinante das práticas, mas opostamente,
destinava-se à fundação de uma colônia francesa onde os sujeitos possuíssem acima de tudo
liberdade religiosa. Tal liberdade não existia na França do século XVI, prova disto é o
massacre na noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, onde encontramos o marco
de uma perseguição sistematicamente brutal por parte da casa real e a partir de então cerca de
cem mil huguenotes foram mortos, contudo, este massacre é apenas um ponto histórico de
transição que evidencia as instabilidades politicas anteriores que se expressavam pela
intolerância religiosa, tendo os reformados como os maiores alvos desta opressão. Portanto, a
força motriz por parte de Léry e também dos demais huguenotes em terras do Brasil não
possuía um caráter extrativista e mercantilista, mas sim, de respeito à terra que desejavam
fosse o seu lar e também um olhar positivo e apreciativo dos habitantes naturais. Além de
pressupor possibilidade de conversão dos tupinambás à religião reformada, exposta
constantemente em seu relato e mais explicitamente na tentativa de apreensão da língua tupi
em um diálogo com um ancião transcrito na sua obra. Encontramos, portanto, uma evidência
a mais para um relato objetivo e fidedigno e não depreciativo. Claramente há o desejo de
honestidade e respeito para com o Outro, sentimentos de Jean de Léry no século XVI e de
Michel de Certeau no século passado, evidências mostradas anteriormente que caracterizam o
fazer historiográfico.

187
François Dosse, História e Ciências Sociais, Bauru-SP, EDUSC, 2004, p. 207-208.
188
Encontramos na obra de Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, várias referências, tanto às motivações missionárias, quanto à possibilidade de conversão do tupinambá
ao protestantismo reformado que trataremos em capítulo específico.
72
1.2.4 – Uma hermenêutica do outro: Certeau apreende Léry

Certeau apresenta uma descrição esclarecedora da estrutura essencial da qual Léry se


utiliza para escrever sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, mostrando “uma forma circular ao movimento que ia de cima (ici, a França) para
baixo (là-bas, os Tupi). Transforma a viagem em um ciclo. Trás de là-bas, como objeto
literário, o selvagem que o permite retornar ao ponto de partida. O relato produz um retorno,
de si para si, pela mediação do outro”.189 Aqui de um modo evidente, é apresentado por
Certeau, um olhar antropológico que evidencia “uma revelação assombrada pelo seu Outro”,
como afirma Laura de Mello e Souza.190 Deste modo, o Outro converte-se em um espelho
que lhe concede a oportunidade de entender a si mesmo e ao seu próprio povo, o índio é,
portanto, o referencial interpretativo nesta circularidade hermenêutica. Jean de Léry é o ponto
de contato entre dois mundos, possibilitando a interpretação de ambos ao mesmo tempo.191

A análise de Frank Lestringant é esclarecedora quanto ao conceito de heterologia


conforme fora proposto por Michel de Certeau, vejamos:

Com “Dos Canibais”, Montaigne inventa o que Michel de Certeau


chamou de “heterologia”, isto é, um discurso do outro, que é ao
mesmo tempo discurso sobre o outro e discurso em que o outro fala.
Na base da operação etnográfica, a heterologia é uma “arte de jogar
com dois lugares”, um modo de estimar num lugar o que falta no
outro. A heterologia provê um espaço intermediário, um palco
reversível, em que a última palavra não pertence necessariamente ao
sujeito primeiro do discurso, e a crítica não poupa o enunciador, ele
mesmo atingido por ricochete. Ora, a declamação é, em essência, uma
heterologia. Ocupa um intervalo, fabrica um afastamento, em que o
risco do efeito bumerangue da palavra livre é plenamente assumido.192

Jean de Léry é na verdade um homem de dois mundos que não é mais habitante de

189
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 227-228.
190
Laura de Mello e Souza, Inferno Atlântico: demonologia e colonização séculos XVI-XVIII, São Paulo,
Companhia das Letras, 1993, p. 25.
191
Cp. François Dosse, Michel de Certeau: le marcheur blessé, Paris, La Découverte, 2002, p. 578.
192
Frank Lestringant, O Brasil de Montaigne, Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2006, v. 49, n.º 2, p.
527. Outra obra chave para a compreensão de Léry é escrita pelo professor da Universidade Paris IV – Sorbonne
e especialista em literatura francesa no período dos descobrimentos do século XVI Frank Lestringant (Frank
Lestringant, Le Huguenot et Le Sauvage: L‟Amérique et la controverse colonial, en France, au temps des
Guerres de Religion (1555-1589), Genéve, Droz, 2004.). Nesta obra o autor descreve como a França Antártica
sucumbiu internamente, tendo como causa principal as disputas religiosas. Também faz uma apresentação do
modo como a experiência francesa no Brasil se processou, além da sua repercussão na França, considerando a
intima relação com as guerras religiosas ocorridas no século XVI.
73
nenhum deles, talvez um terceiro algo seja a sua verdadeira pátria após a experiência de
viagem ou alguém que tem parte de si em um lugar e outra parte habitando outro. A estrutura
proposta por Michel de Certeau da História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América, ilustra a circularidade hermenêutica de Jean de Léry, evidenciando-se na
organização dos capítulos que foram cronologicamente organizados na obra do viajante
francês.193 Observemos:

Tabela 1

ESTRUTURA DOS CAPÍTULOS

VIAGEM AO BRASIL ANÁLISE DA VIAGEM DE RETORNO


SOCIEDADE
TUPINAMBÁ
I – Sobre o motivo e ocasião XIV – Sobre a guerra, o XXI – Sobre nossa partida da
que nos levou a empreender combate, a bravura e as terra do Brasil, dita América;
esta longínqua viagem à terra armas dos selvagens; e os naufrágios e outros
do Brasil; XV – Sobre o tratamento que primeiros perigos de que
II – Sobre o embarque no os americanos dão a seus escapamos no mar em nosso
porto de Honfleur, na prisioneiros de guerra e as regresso;
Normandia, as tormentas, cerimônias que observam, XXII – Sobre a fome
encontros, abordagens de tanto ao matá-los quanto ao extrema, a tormenta e outros
navios, primeiras terras e comê-los; perigos de que Deus nos
ilhas que encontramos; XVI – Sobre o que pode salvou na volta para a França.
III – Sobre bonitos, chamar religião entre os
albacoras, dourados, selvagens americanos; e
golfinhos, peixes-voadores e sobre os erros em que estes
outros de muitas espécies que são mantidos por certos
vimos e apanhamos na zona trapaceiros chamados
tórrida; Caraíbes; e a grande
IV – Sobre o Equador ou ignorância de Deus em que

193
“Poder-se-ia seguir detalhadamente a curva descrita pelo relato em torno de seu eixo vertical. Num primeiro
momento, ele progride para a alteridade: inicialmente, a viagem para a terra longínqua (cap. I-V). Este
movimento recebe sua pontuação última com o canto-êxtase em louvor a Deus (fim do capítulo XIII). O poema
(o salmo 104) abre um ponto de fuga para a alteridade fora do mundo, inefável. Nesse ponto começa, com a
análise da sociedade tupi (XIV-XIX), um segundo momento: este parte do mais estranho (a guerra, cap. XIV; a
antropofagia, cap. XV) para nele desvendar progressivamente um modelo social (“leis da polícia”, cap. XVIII:
terapêuticas, saúde, culto dos mortos, cap. XIX). Passado então o corte oceano, o relato pode conduzir este
selvagem civilizado até Genebra pela rota do retorno (cap. XXI-XXII)”. Michel de Certeau, A Escrita da
História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 239.
74
linha equinocial; e das estão imersos;
tempestades, inconstâncias XVII – Sobre o que podemos
dos ventos, chuva infecta, chamar leis e polícia civil
calores, sede e outros entre os selvagens; o modo
incômodos que tivemos e humano com que tratam os
suportamos nessas paragens; visitantes amigos; e os
V – Sobre o descobrimento e prantos e discursos festivos
primeira vista que tivemos da das mulheres por ocasião das
Índia Ocidental ou terra do boas-vindas;
Brasil, bem como de seus XVIII – Sobre o que
habitantes selvagens e do que podemos chamar leis e
mais nos aconteceu até o polícia civil entre os
trópico de Capricórnio; selvagens; o modo humano
VI – Sobre o desembarque no com que tratam os visitantes
forte Coligny na terra do amigos; e os prantos e
Brasil, a acolhida que nos fez discursos festivos das
Villegagnon e o mulheres por ocasião das
comportamento deste, tanto boas-vindas;
em relação à religião quanto XIX – Sobre como os
a outras partes de seu selvagens se tratam em suas
governo nesse país; doenças; sobre seus funerais,
VII – Descrição do rio suas sepulturas, e os grandes
Ganabara, também choros que fazem por seus
denominado de Janeiro na mortos;
América; da ilha de Coligny XX – Colóquio entre as
e do forte nela edificado; e gentes do país;
outras ilhas da redondeza;
VIII – Sobre a índole, força,
estatura, nudez, disposição e
ornatos de corpo dos homens
e mulheres selvagens
brasileiros, habitantes da
América, entre os quais
permaneci quase um ano;
IX – Sobre as grandes raízes
e o milho graúdo com que os
selvagens fazem farinhas, que
comem em vez de pão; e de
sua bebida que chama de
Caou-in;
X – Sobre os animais, as
caças, grandes lagartos,
serpentes e outros animais
monstruosos da América;
XI – Sobre a variedade de
aves da América, todas
diferentes das nossas; e
também sobre os grandes
morcegos, abelhas,
mosquitos e outros vermes
75
singulares desse país;
XII – Sobre alguns peixes
mais comuns entre os
selvagens da América e o
modo de pesca destes;
XIII – Sobre as árvores,
ervas, raízes e frutos
deliciosos que a terra do
Brasil produz;

Esta perspectiva da circularidade metodológica se torna nítida quando nos deparamos


com o gráfico explicativo proposto por Michel Certeau194, o qual nos serve como um resumo
visual da circularidade hermenêutica evidente em Jean de Léry, onde o seu lugar social, é
proeminentemente manifesto:

Figura 1

195

Podemos perceber visualmente a centralidade determinante do lugar social, Genebra,


para as construções escriturísticas de Jean de Léry. Este lugar caracterizado pelo sistema
estrutural de pensamento calvinista tanto determina quanto estabelece o arcabouço semântico
que torna a descrição inteligível. Esta lacuna aparente que surge como um não-dito é na
verdade o pressuposto que se possibilita uma construção organizacional, Genebra irrompe

194
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 240.
195
Michel de Certeau, A Escrita da História, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 222.
76
estruturante perpassando todo o arcabouço interpretativo existente na História de uma Viagem
feita à Terra do Brasil, também chamada América, este é exatamente o elemento que
pretendemos estudar, o qual defendemos ser, especificamente, a teologia calvinista a
referência por excelência na construção de sentido na historiografia do viajante francês.

Para François Dosse, Jean de Léry em suas idas e vindas, na escala de viagem
Genebra/Rio/Genebra, a partir do lugar social do calvinista acaba por descobrir o selvagem,
tornando-se eixo central do relato etnológico ao perceber a circularidade do caminhar
interpretativo, binário, entre natureza e cultura, lacuna evidente em seu relato. 196 Dosse
desenvolve também o tema da hermenêutica do Outro em Certeau enfatizando que a
alteridade proposta por Certeau, a partir de Léry, se estrutura como uma construção do Outro
de um modo interino à própria escritura ocidental, constituindo-se em uma hermenêutica do
Outro. Desta feita, segundo Dosse, Léry inaugura este procedimento quando efetivamente
traduz o Outro a partir de sua posição teológica calvinista.197 Portanto, como defende
Certeau, não é possível interpretar o discurso histórico sem a delimitação do lugar social do
historiador, o viajante francês não foge à tese. Aplicando diretamente a Léry, enfatizamos

196
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 140.
197
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 140-141. Especificamente sobre a obra A Escrita da
História afirma Dosse:
“Em 1975, aparece o livro fundamental de Michel de Certeau, A escritura da história, que também insiste, como
o título indica, sobre a prática histórica como prática de escritura. Certeau demonstra em que aspectos a história
advém, ao mesmo tempo, de uma escritura performativa no ato de fazer história e de uma escritura em espelho
no fato de contar histórias. Isso coloca, de chofre, o gênero histórico em tensão entre uma versão científica e
uma versão ficcional. O relato histórico desempenha o papel de rito de enterro, exorcizando a morte,
introduzindo-a no interior do discurso. Ele tem função simbólica, permitindo a uma sociedade situar-se dando,
em sua própria linguagem, um passado que abre um espaço singular para o presente: „Marcar um passado é dar
lugar para a morte, mas também redistribuir o espaço dos possíveis‟ (...). Certeau compara essa função à do
gênero literário e musical em voga no século 17, denominado de “Túmulo”, à medida que a escritura histórica só
fala do passado para enterrá-lo, no duplo sentido de honrá-lo e de eliminá-lo.
Se a história é, antes de tudo, relato, ela é também, segundo Certeau, uma prática que se refere ao lugar da
enunciação, a uma técnica de saber ligada à instituição histórica: “É abstrata, em história, qualquer doutrina que
recuse sua relação com a sociedade [...] O discurso científico que não fala de sua relação com o corpo social não
saberia articular uma prática. Ele cessa de ser científico. Essa é uma questão central para o historiador. Essa
relação com o corpo social é, precisamente, o objeto da história” (...). Levar em conta o lugar da operação
historiográfica abre um vasto campo: aquele da investigação historiográfica para reconstituir, cada vez, o
discurso histórico na contemporaneidade de sua produção. Michel de Certeau, apreendendo o discurso histórico
em sua tensão entre ciência e ficção, é particularmente sensível ao fato de que ele é relativo a um lugar particular
de enunciação e mediatizado pela técnica que faz dele uma prática institucionalizada, referente a uma
comunidade de pesquisadores: “Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, importa analisar como a
história funciona nessa sociedade” (...). A prática histórica é correlativa à estrutura da sociedade que desenha as
condições de um dizer que não seja nem legendário, nem utópico, nem desprovido de pertinência.
A questão central, colocada por Michel de Certeau, é da leitura dos textos do passado e, nesse sentido, todo seu
itinerário de pesquisador fá-lo passar pelos três estratos de análise de documentos que ele consegue pensar em
conjunto e não como exclusivo uns aos outros: a colocação a distância, objetivadora das fontes; a elucidação de
sua lógica estrutural interna; e a retomada de sentido na hermenêutica do outro”. (François Dosse, A História,
Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 136-138).
77
que não é possível compreender corretamente o relato de viagem sem situá-lo nas relações
intrinsecamente construídas da teologia de Calvino que lhe é determinante na construção
semântica de sua linguagem.

Ainda sobre a operação historiográfica, continua Dosse, a partir da expressão de


Certeau, dizendo que “é uma operação complexa, um misto que torna caduco qualquer
objetivismo, o que não quer dizer que ela rompa com o horizonte que, desde sempre, constitui
a idéia de um contrato de verdade a revelar”.198 Afirma que Certeau retoma “o discurso
histórico em sua tensão entre ciência e ficção”199 e ele “era particularmente sensível ao fato de
que ele é relativo a um lugar particular de enunciação e mediado pela técnica que faz dele
uma prática institucionalizada, vinculada a uma comunidade de pesquisadores”.200 Portanto
“a prática historiadora é (...) correlativa à estrutura da sociedade que desenha as condições de
um dizer que não seja nem legendário nem utópico, nem desprovido de pertinência”.201

François Dosse também reconhece em Michel de Certeau sua tese da dupla função da
escrita da história, exaltar e preservar os fatos históricos de uma sociedade pelas épocas, mas
também, a propriedade de enterrar o passado, vejamos:

Michel de Certeau tinha, desde 1957, ressaltado o fato de que a


história também é escritura, duplamente: performativa, como o evoca
o próprio título da trilogia, Fazer história, aparecida em 1974, sob a
direção de Pierre Nora e Jacques Le Goff; e escritura como espelho do
real. A escritura historiadora desempenha o papel de rito de enterro.
Instrumento de exorcismo da morte, ela o introduz no centro de seu
discurso e permite, simbolicamente, que uma sociedade se situe,
equipando-se de uma linguagem sobre o passado. O discurso histórico
nos fala do passado para enterrá-lo. Ele tem, segundo Michel de
Certeau, a função de túmulo, no duplo sentido de honrar os mortos e
participar de sua eliminação da cena dos vivos. A revisitação histórica
tem, portanto, essa função de abrir para o presente um espaço próprio,
marcando o passado para redistribuir o espaço dos possíveis. A
prática historiadora é, por princípio, aberta a novas interpretações, a
um diálogo sobre o passado aberto sobre o futuro, a ponto que se fala,
cada vez mais, de “futuro do passado”. Ela não pode, portanto,
deixar-se encerrar em uma objetivação fechada sobre ela mesma. 202

Este rito fúnebre participa de um duplo aspecto, a morte da morte e a abertura para a
compreensão do presente que impulsiona a construção do futuro. A história como escrita

198
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 85.
199
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 86.
200
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 86.
201
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 86.
202
François Dosse, A História, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p. 86-87.
78
interpretativa se constrói com recortes e escolhas, os mortos são honrados na mesma
proporção com a qual algo dele é esquecido, crueldade inevitável ao historiador. No entanto,
a operação historiográfica tem por alvo, então, possibilitar ao presente um lugar próprio onde
os horizontes são expandidos, dar um lugar para a construção do futuro. Enfatiza Dosse: “A
prática histórica é assim por princípio aberta a novas interpretações, a um diálogo sobre o
passado aberto para o futuro, a ponto de se falar cada vez mais em “futuro do passado”. A
história não pode então se deixar encerrar numa objetivação fechada sobre si mesmo”.203

A preocupação e a atenção dada à relação do Eu com o Outro possivelmente podem


ser descritas como uma característica que expressa algo do caráter existencial no sistema
metodológico em Certeau. Esta preocupação também é enfatizada por Chartier:

De uma experiência à outra, a distância não é tão grande quanto


poderia parecer. Para ele, a história continua sendo, de todas as
ciências humanas, a que tem mais condições, por herança ou por
programa, de representar a diferença, de pôr em cena a alteridade. Por
isso, ela retém algo desta busca da palavra do Outro, que foi a paixão,
até a desesperança, dos cristãos antigos dos quais Michel de Certeau
se fizera o historiador; algo, também, deste encontro com a estranheza,
proporcionada a cada vez pela descoberta de novos mundos, do Brasil
à Califórnia.204

A importância do Outro está evidenciada no que Certeau mesmo denominou de


heterologia, a ênfase no Outro como um discurso que precisa ser lido e interpretado.
Enfaticamente apontamos que o Outro é o próprio discurso. A valorização do Outro como
fonte de conhecimento é caráter central na perspectiva certeauniana, porquanto, conhecer o
Outro é o caminho, por excelência, para conhecer a si mesmo. De certo modo Certeau
demonstra uma aproximação com a epistemologia calvinista que entende uma circularidade, o
conhecimento de Deus pelo conhecimento do próprio homem e vice-versa. Não haveria
nenhum absurdo ou novidade em perceber tal relação, considerando o já anteriormente
exposto quanto a atuação da visão de mundo teológica de Calvino na construção do
pensamento moderno em diversas frentes das mentalidades estruturantes do Ocidente e a tese
de Certeau da inteligibilidade fundar-se nas relações heterológicas, então teríamos, ainda que
distantes no tempo, aquele influenciando o sistema estruturante da mentalidade deste, mesmo
que não lhe fosse perceptível.

203
François Dosse, O Império do Sentido: a humanização das Ciências Humanas, Bauru-SP, EDUSC, 2003, p.
324-325.
204
Roger Chartier, À Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietude, Porto Alegre, UFRGS, 2002, p.
151.
79
Vejamos atentamente a análise de Michel de Certeau:

Uma estrutura própria da cultura ocidental moderna está,


evidentemente, indicada nesta historiografia: a inteligibilidade se
instaura numa relação com o outro; se desloca (ou “progride”)
modificando aquilo de que faz seu “outro” – o selvagem, o passado, o
povo, o louco, a criança, o terceiro mundo. Através dessas variantes,
heterônomas entre si – etnologia, história, psiquiatria, pedagogia, etc.
– se desdobra uma problemática articulando um saber-dizer a respeito
daquilo que o outro cala, e garantindo o trabalho interpretativo de uma
ciência (“humana”), através da fronteira que o distingue de uma região
que o espera para ser conhecida. (...) O corpo é um código à espera de
ser decifrado. (...) Uma mutação análoga se produz quando a tradição,
corpo vivido, se desdobra diante da curiosidade erudita em um corpus
de textos. Uma medicina e uma historiografia modernas nascem
quase simultaneamente da clivagem entre um sujeito supostamente
letrado, e um objeto supostamente escrito numa linguagem que não se
conhece, mas que deve ser descodificada. Estas duas “heterologias”
(discursos sobre o outro) se construíram em função da separação entre
o saber que contém o discurso e o corpo mudo que o sustenta.205

É exatamente nessa relação com o Outro, acima descrita por Certeau, que a escrita
surge como uma operação historiográfica. Essa escrita que se constitui essencialmente como
uma interpretação onde a voz surge no interstício do silêncio, o não-dito do Outro que anseia
ser decifrado. Portanto, é neste lugar fronteiriço que a história atua na produção de sentido,
um duplo entre o real e o vivido. O corpo que precisa ser interpretado e decodificado segundo
as categorias do lugar social do sujeito historiador, do viajante no caso. Esta é a fabricação
histórica produzida por Jean de Léry quando converte este corpo real empiricamente
permeado em texto escrito que emerge como imanente e transcendente, ao mesmo tempo que
cria a história escrita.

A lição de escrita em Jean de Léry apresenta-se como uma interpretação, uma


hermenêutica do Outro, possibilitando, sobretudo, uma interpretação de si mesmo, conforme
atesta César Braga-Pinto ao mostrar que a viagem hermenêutica circular empreendida por
Léry produz um conhecimento fruto do distanciamento do Eu de si mesmo, sabendo que este
Eu já não permanece mais o mesmo quando do início de sua jornada. Tal movimento que vai
de cima, a França, para baixo, o tupinambá, gera um corte que separa, contudo, é costurado

205
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 16-17. “Enquanto que o
romance deve, pouco a pouco, preencher os predicados do nome próprio que ele coloca no seu início (...), a
historiografia já o recebe preenchido (...) e se contenta em operar um trabalho com uma linguagem referencial.
Mas esta condição externa de um saber do outro, ou de uma heterologia, tem como corolário a possibilidade para
o discurso de ser ele mesmo um equivalente de uma semiótica, uma metalinguagem de línguas naturais, logo, um
texto que supõe e manifesta a transcritibilidade de codificações diferentes”. Michel de Certeau, A Escrita da
História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 102.
80
pela superação do Eu que vivencia aquilo que narra. Desta feita, a escrita também se
movimenta entre a alteridade e a compreensão do Outro, uma hermenêutica, correlacionando
natureza e cultura em sua interpretação. O retorno à Europa apresenta-se como uma nova
viagem que tem como destino final o próprio Eu, entretanto, este Eu ainda é aquele da
memória, anterior à primeira empreitada. Assim sendo, Jean de Léry vive a própria narrativa,
é não somente um mero observador, mas também, um protagonista da história, intérprete e
objeto a ser interpretado. Desta feita, uma ruptura ocorre inevitavelmente com o mesmo.206
Conforme enfatiza Braga-Pinto:

Uma vez que Léry se coloca na narrativa – como observador e


protagonista, e também como intérprete e objeto de interpretação –, a
ruptura representada por essa narrativa de viagem constitui uma
historicização e, portanto, um estilhaçamento do sujeito que fala. Por
outro lado, o novo encontro com o “eu” do qual o autor parte requer a
reorganização da experiência, isto é, do “lá”, que agora se tornou
ponto de partida de uma outra viagem. Assim o autor deve explicar
não quem ele é, mas quem ele se tornou “lá”. A interpretação entre a
viagem externa e a interna, a partida e o retorno, a descoberta do outro
e a revelação do eu faz de toda a narrativa um exercício de
interpretação e auto-interpretação que tanto constitui como é
constituído pelo sujeito do conhecimento.
A circularidade da viagem, em última análise, produz uma atitude
mais ampla de releitura, não apenas do “eu” individual, mas do
contexto do qual o autor parte, representado como um encontro
etnográfico e auto-biográfico com a origem. Mais para o fim da
narrativa, o ponto de partida original que deveria assegurar a
estabilidade do “aqui” (a Europa) não está mais disponível como um
texto transparente, mas, em vez disso, torna-se um lugar tanto de
memória quanto de alteridade, isto é, um texto estrangeiro que pede
uma tradução lingüística. Ao associar a estranheza dos rituais tupi –
que agora estão historicizados – com sua lembrança de experiências
prévias e familiares, Léry tanto assimila o outro quanto exotiza a si
mesmo.207

Movimento análogo ao daquele sujeito hipotético que nasceu em um dado lugar, mas
passou a habitar outro, contudo, retorna vez ou outra ao primeiro. Este movimento transforma
o sujeito viajante, já não é mais parte daquilo que deixou um dia, tão pouco não se sente
completamente pertencente ao novo lugar de habitação. As variações de sua pronúncia o
denunciam frequentemente. Não mais pertence nem a um, nem a outro lugar. Não reconhece
mais sua pertença de lugar social, precisa viajar agora ao encontro de si mesmo. Jean de Léry

206
César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brasil colonial (1500-
1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 130-132.
207
César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brasil colonial (1500-
1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 130-132.
81
retorna à Europa, no entanto, uma parte sua fica no Brasil. A pergunta que surge diante desta
evidência de transformação de Léry diz respeito à amplitude desta mudança. No entanto,
podemos afirmar que não se trata de uma mudança de essência, para tanto, lembremos que o
seu relato é escrito vinte anos após sua experiência, de modo que, o seu lugar social
permanece o mesmo, evidenciado em seu próprio relato quando busca a fidelidade deste, a
veracidade dos fatos e a interpretação literal, expressões do sistema de pensamento teológico
calvinista fundado a partir de uma hermenêutica que privilegia a Escritura como fonte
inerrante e toda suficiente tanto para a construção teológica, quanto determinante das relações
éticas concretas. Segundo Certeau, Jean de Léry desloca e laiciza a sua teologia208, contudo,
esta modificação não é uma alteração estrutural, mas apenas a transposição do teórico para
sua aplicabilidade prática no real e concretização na existência vivida, todavia, este
deslocamento já fora promovido pela Reforma Protestante quando prega o sacerdócio
universal de todos os crentes, por exemplo.209 Michel Jeanneret é enfático ao afirmar que
Léry “filia-se, sobretudo às lições da religião cristã, que permanece para ele uma referência
absoluta”, além de ser dirigido em suas práticas interpretativas “por seu zelo calvinista” 210 e
possuir um posição ortodoxa, “teologicamente fundamentada”211 e conclui: “o calvinismo de
Léry é marcado também por sua fidelidade à Bíblia”. 212 Para Lestringant, Jean de Léry pode
ser descrito como um “calvinista rigoroso”.213 Portanto, podemos concluir que a mudança
que ocorre em Jean de Léry não é uma mudança de paradigma hermenêutico ou existencial,
mas tão somente um passo além no próprio programa de desenvolvimento do calvinismo
como sistema estruturado de pensamento, a aplicação prática das teses teológicas.

De fato, estamos diante de um paradoxo que todo elemento simbólico carrega


inerentemente, o de revelar e encobrir, fazer nascer e morrer ao mesmo tempo. Certeau
208
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 234.
209
Jeremy Ahearne, Michel de Certeau, interpretation and its other, Cambridge, Polity Press, p. 69; Frank
Lestingant, Corps Mystique, Corps Sauvage, Michel de Certeau, Lecteur de Jean de Léry in Jean de Léry ou
L‟invention du Sauvage, essai sur l‟Histoire d‟un voyage faict en la terre du Bresil, 2.a ed., Paris, Éditions
Champion, 2005, p. 251-260; neste artigo Lestringant discute a controvérsia da Eucaristia entre protestantes e
católicos na França Antártica como um reflexo da mesma discussão que ocorre na França, contudo, o ponto que
nos importa no momento é o fato do autor posicionar Léry como uma calvinista convicto que se externaliza deste
modo pela sua postura escrita.
210
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literature
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 104.
211
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literature
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 104.
212
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literature
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 105.
213
Frank Lestingant, Corps Mystique, Corps Sauvage, Michel de Certeau, Lecteur de Jean de Léry in Jean de
Léry ou L‟invention du Sauvage, essai sur l‟Histoire d‟un voyage faict en la terre du Bresil, 2.a ed., Paris,
Éditions Champion, 2005.
82
percebe isto com maestria. Se por um lado a escrita possibilita uma história ao povo
tupinambá, memória autorizada, por outro lado, esta voz autorizada é inevitavelmente
eurocentralizada em alguma medida, circunscrita a regras e estruturas de interpretação
gramaticais que lhe foram impostas. Contudo, a tomada da palavra é possível, bem como sua
superação, porque não há consumidores passíveis. Certeau tem razão, o Outro é honrado e
sepultado na mesma medida. Porém, lembremos, esta cultura que é construída habita o lugar
social de poder instituído como o modo de manutenção da estrutura, privilegiando o discurso
estratégico com vistas a imposição e ao controle, no entanto, de um modo altamente criativo
há o irromper da cultura do plural provindo do corpo que reage àquilo que lhe é
“teoricamente” imposto, contudo, capaz de produzir toda uma riqueza que se traduz num
produto cultural vívido e singular, portanto, plural.214

No edifício certeauniano temos óculos que nos permitem enxergar a criatividade


encontrada nas relações do cotidiano, do simples, do comum e, consequentemente, a sua
fascinante beleza. Desta feita, tal perspectiva promove a valorização das artimanhas, das
malandragens, ou como Certeau propõe, as táticas, que encontram as brechas existentes no
lugar próprio, alargando-as e produzindo espaço próprio, fugindo o sujeito do lugar sem ar,
sufocante, rumo ao campo aberto, ventilado e ensolarado da produção de sentido do e no
cotidiano. Os índios tupinambás são presentados com tal liberdade pela escrita da história do
viajante francês.

Com Certeau aprendemos que o cotidiano, presente ou passado, é intrinsecamente


formado de elementos singularmente maravilhosos que se irrompem na sutileza e
“simplicidade” do dia-a-dia formando toda uma gama de construções culturais altamente
complexas e, antes de tudo, belas e fascinantes. Mas somente é perceptível àqueles que
retiram a venda preconceituosa dos olhos, ou, poderíamos também dizer, àqueles que se
libertam das amarras ideológicas que lhes foram impostas pelo poder das estratégias que
aprisionam em determinado lugar de poder. Jean de Léry é exemplo claro desta libertação
interpretativa, a teologia calvinista lhe possibilitou este olhar diferenciado.

A história é inventada e produzida a partir da escrita, dos usos que o historiador faz, no
caso do viajante Jean de Léry, do modo como lida com o “produto” cultural que lhe é
“oferecido” na sociedade tupinambá. No entanto, os usos que os consumidores fazem de tudo

214
Michel de Certeau, A Cultura no Plural, 4.ª ed., Campinas-SP, Papirus, 2005.
83
quanto lhes é imposto não se dá de um modo passivo e disciplinado, mas, compõem-se de
inúmeras combinações de operações com uma lógica própria, ou seja, a história é inventada
com uma diversidade de interpretações do real. Certeau também enfatiza a importância da
recepção e do “uso” que os “consumidores” produzem, lembrando que não são apenas meros
“expectadores”, pois, transformam o “produto” que lhes é imposto por um grupo através do
poder de uma interpretação impositiva da realidade que reflete a estrutura social dominante,
apesar disso, também viabiliza a existência e manutenção este lugar de poder. Assim, o
historiador é igualmente um usuário ativo, não há uma estagnação, tão pouco uma simples
reprodução de sentido, mas sim, deslocamento, desvio, “digestão” onde se usa o que se julga
útil e descarta-se o restante, uma re-significação própria do sujeito, seja no campo da
linguagem, da religião, da história, etc.215

Enfim, todo o aparato teórico de Certeau nos traz uma lição, dentre várias obviamente,
que julgo ser de suprema importância: ter disposição de observar e valorizar, sem repulsa, o
imprevisto e o ordinário das relações sociais do cotidiano concedendo-lhe a atenção e a
importância merecidas para que se constituam em conhecimento da realidade que nos cerca,
não somente do real, mas acima, de tudo de si mesmo. O Outro que explica o mesmo.

1.2.5 – Jean de Léry: uma descrição do Outro

Diante dos aspectos até aqui evidenciados pela perspectiva de Certeau, torna-se de
extrema importância apresentar a escrita que provenha diretamente do próprio Jean de Léry
como fonte primária e objeto da presente análise, com o propósito de exemplificar tais
evidências quanto as possibilidades da abordagem metodológica esboçada anteriormente.
Esta atividade será contemplada mais detalhadamente nos capítulos três e quatro, nos quais,
nos concentraremos objetivamente na escrita da história etnográfica produzida pelo viajante
Jean de Léry. Devemos, contudo, enfatizar que segundo Michel de Certeau estes aspectos
presentemente levantados são características evidenciadas em toda a obra História de uma
Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América e não somente em parte desta
como destacaremos aqui somente a título de amostragem prática.

215
Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer, 9.ª ed., Petrópolis-RJ, 1994.
84
As primeiras impressões de Jean de Léry, sobre os tupinambás, já nos apresentam a
sua análise interpretativa que servirá de parâmetro para a comparação que efetua com a
Europa e os europeus, tomando o lugar e os sujeitos do Novo Mundo como referenciais de
interpretação. A força do seu poder de argumentação consiste no fato concreto de ser
testemunha ocular do relato que apresenta verbalizado em sua obra. Concentra-se em demolir
o conceito preexistente que os habitantes do Novo Mundo são animalescos, também enfatiza,
estes não são acometidos das mesmas mazelas que os europeus o são, os tupinambás possuem
a longevidade da existência na terra, são fortes, robustos e dispostos ao trabalho. E acima de
tudo, possuem uma vida caracterizada pela frugalidade, não se preocupando com as coisas
deste mundo.216

No final do capítulo VIII do seu relato, intitulado “Sobre a índole, força, estatura,
nudez, disposição e ornatos de corpo dos homens e mulheres selvagens brasileiros,
habitantes da América, entre os quais permaneci quase um ano”, onde descreve suas
primeiras impressões sobre os habitantes do Novo Mundo, Léry revela outro momento que
exemplifica o aspecto de sua circularidade hermenêutica, como fora proposto por Certeau, na
interpretação, sem, contudo, deixar de evidenciar o lugar social de onde fala, o calvinismo.
Ao descrever a nudez indígena responde ao possível questionamento desta provocar a lascívia
e a luxúria, afirmando que mesmo apesar da beleza das índias tal não ocorre, além de, em
contra partida defender que o estilo de vida consumista das europeias causa maiores males
pecaminosos. No entanto, mostra um equilíbrio fundado na Escritura Sagrada segundo uma
interpretação calvinista, pois deixa claro que não aprova a nudez a partir de uma análise do
caso da queda em Adão e Eva. Jean de Léry expõe que o seu compromisso interpretativo não
é com o mesmo ou o Outro, mas acima de tudo com a Escritura Sagrada e o seu Deus, pois, é
segundo a vontade deste que o homem viva de modo modesto, descente e honesto e não por
vaidade e mundanismo.217

A interpretação que Jean de Léry apresenta do ritual antropofágico tupinambá no


capítulo XV, “Sobre o tratamento que os americanos dão a seus prisioneiros de guerra e
cerimônias que observam, tanto ao matá-los quanto ao comê-los”, também se constitui em
mais um exemplo desta circularidade interpretativa. Nosso viajante é enfático, quando desde

216
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 128, 129, 133, 135.
217
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 138.
85
o início do relato sobre a antropofagia, já determina o padrão circular de compreensão com a
ressalva de que na Europa ocorrem barbaridades semelhantes, quiçá mais cruéis, e, contudo,
mesmo a despeito de sua discordância com a prática indígena não deixa de perceber que há
uma lógica na antropofagia ritual dos tupinambás, no entanto, os europeus cometem
atrocidades em extremo muito mais desumano. Outra vez é a Escritura Sagrada que serve de
parâmetro para determinar a interpretação. Assim, aponta Léry para o fato que ilustra a
selvageria brutal e animalesca evidenciada na Noite de São Bartolomeu na França. Reitera
enfaticamente, os europeus são mais bárbaros que os tupinambás. E por fim conclui Léry:

Portanto, não abominemos demasiado a crueldade dos selvagens


antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não
mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações
inimigas de que têm vingança a tomar; elas mergulharam no sangue de
seus parentes, vizinhos e compatriotas. Não é preciso ir à América,
nem mesmo sair de nosso país, para ver coisas assim monstruosas.218

Não há redundância alguma em enfaticamente afirmarmos que a obra de Jean de Léry


apresenta-se de um modo grandemente inspirador a Michel de Certeau. Para tanto a obra de
Jean de Léry penetra a história e também a etnologia valendo-se do levantar de questões
extremamente pertinentes quanto à relação que existe entre a palavra e a escrita. A
sensibilidade evidente de Certeau o faz enxergar que nesta relação há um sistema organizado
de conjuntos sucessivos, não como elementos estáveis de contatos e distanciamentos, mas
posicionamentos entre o oral e o escrito que são determinados mutuamente e inscritos em uma
sequência organizacional histórica a qual definiu como operação historiográfica. Além disso,
defende objetivamente que esta escrita deve ser lida segundo chaves linguísticas as quais são
determinadas histórica e socialmente, o lugar social dos sujeitos, deste modo, Certeau
consegue perceber as mudanças ocorridas numa cultura através do encontro com o Outro com
vistas ao objetivo de escrever a história.

No cerne fronteiriço do limite encontrado na dialética natureza/cultura surge então a


heterologia, a ciência do Outro que busca ouvir honestamente, na medida do possível, o
discurso do Outro. Esta ciência possui como perspectiva, um olhar apreciativo, talvez
realista, do Outro. Uma viagem em busca do Eu através do Outro é a mais importante viagem
realizada por Jean de Léry em sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América. A partir deste ponto a etnografia passa a ser a revelação e a preservação

218
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 202.
86
do oral por meio da escrita que se estende através dos tempos. Como conclui tacitamente
Michel de Certeau: a palavra é “o corpo que significa”219 e “a escrita faz a história”.220

Michel de Certeau apresenta Jean de Léry como um historiador que se utiliza de uma
metodologia moderna na sua construção escriturística. Um método historiográfico circular,
um relato do lá que produz um retorno para o aqui, o lugar de onde fala o viajante historiador,
e, enfim, uma viagem de si para si mesmo pela mediação do Outro. Certeau reconhece o que
denominou heterologia em Léry como uma estrutura de conhecimento que produz uma
operação escriturária construída no movimento de distanciamento e retorno do lócus original.
Salientando que movido Léry pela honestidade e hombridade quando do movimento de
retorno a este lócus original já está moldado pelo olhar que surge na ocasião da perspectiva
do distanciamento, não uma alteração de sua essência calvinista, mas o desenvolvimento
prático e aplicativo do seu lugar social, uma ação que não ficou limitada somente ao viajante,
mas também a todos os discípulos subsequentes do reformador genebrino. A lição de escrita
que encontramos tanto em Jean de Léry quanto em Michel de Certeau é caracterizada pelo
respeito ao Outro, a alteridade, uma fonte de aprendizagem mútua.

A presente pesquisa pretende ocupar-se prioritariamente da análise da visão


interpretativa do índio tupinambá realizada pelo huguenote francês Jean de Léry em sua obra
História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, a escolha desta
imagem valorativa do índio produzida pelo autor deu-se pelo seu olhar interpretativo de
caráter diferenciado em relação a outros europeus que estiverem em terras brasileiras no
século XVI, André de Thevet, por exemplo – conforme já apontamos anteriormente neste
mesmo capítulo –, inseridos no mesmo recorte histórico, a empreitada da França Antártica na
Baía da Guanabara no Brasil do Século XVI. Não é de nosso intento neste trabalho a
comparação com os olhares interpretativos do índio brasileiro realizados pelos autores que
estiveram no Brasil do Século VXI ao longo da pesquisa, ainda que esta perspectiva seja
plausível e valorativa historicamente, no entanto, julgamos ser tarefa para momento posterior
em outras pesquisas futuras. Contentamo-nos, para o momento, apenas no que já foi
considerado em termos comparativos para a compreensão da problemática envolvida quanto
ao olhar diferenciado do calvinista Jean de Léry. Considerando a necessidade metodológica,
não podemos deixar de analisar neste recorte histórico as relações com a Europa quinhentista

219
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 233.
220
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 232.
87
no que diz respeito ao período do Renascimento e da Reforma Protestante, em especial o
reformador genebrino João Calvino, mentor teológico de Jean de Léry, além de
contemplarmos o período que concerne às relações da Reforma Protestante na França do
século XVI, em especial as suas guerras de religião, e por fim, abordaremos a tentativa de
estabelecimento da França Antártica no Brasil do século XVI.221 Acompanhando a
perspectiva metodológica apresentada, pleiteamos que essencialmente o texto necessita de seu
contexto histórico e sua pertença de mentalidade para que sua compreensão seja em alguma
medida alcançada. Seguimos o que Michel de Certeau chamava de compreensão do lugar
social, como determinante da compreensão da interpretação da escrita da história. Sigamos
neste propósito.

221
“A compreensão da doutrina calvinista é fundamental para penetrarmos no universo simbólico de Jean de
Léry, um dos cronistas estudados neste trabalho. Calvinista convicto, Léry vem para o Brasil na expectativa de
auxiliar no estabelecimento do “verdadeiro” Cristianismo na região dos Trópicos, edificando um refúgio para os
crentes perseguidos na Europa”. Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o
índio e sua religiosidade, São Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 22.
88
CAPÍTULO SEGUNDO
O LUGAR HISTÓRICO DE JEAN DE LÉRY

A religião pode ser tanto benéfica quanto


prejudicial, e as melhores intenções
podem ser distorcidas. Mas a Reforma é
– e a Reforma foi – um movimento
espiritual: espiritual no sentido de
construir uma convulsão do espírito
humano; espiritual também no
fortalecimento dos vínculos que ligam os
indivíduos e a sociedade ao Espírito
Divino. A Reforma, através da renovação
da Igreja, é uma tentativa de alertar o
mundo. (Felipe Fernández-Armesto,
Derek Wilson).222
A questão das causas da reforma é
complexa. Para tentar resolvê-la é preciso
ir direto ao essencial. O Protestantismo
dá ênfase a três doutrinas principais: a
justificação pela fé, o sacerdócio
universal, a infalibilidade apenas da
Bíblia. Esta teologia respondia
certamente às necessidades religiosas do
tempo, sem o que ela não teria conhecido
o sucesso que foi o seu. (Jean
Delumeau).223

A escrita da história se constitui em uma operação historiográfica que tem como


objetivo a reconstrução da situação vivencial do Outro, aquele que está paradoxalmente
posicionado como ausente do presente, o qual é colocado em cena através de uma viagem de
retorno, utilizando-se como mapa os rastros deixados pelos atores da história, com o intuito de
restabelecer as chaves semânticas que possibilitam a interpretação dos fatos circunscritos ao
seu lugar social de origem, o qual autoriza e fundamenta a sua existência. Observamos, neste
trabalho, que o lugar social comumente entendido como o seu produto semântico, portanto,
um sistema de ideias, não surge em um vácuo etéreo, mas na verdade é determinado pelas

222
Felipe Fernández-Armesto, Derek Wilson, Reforma: o Cristianismo e o mundo 1500-2000, Rio de Janeiro,
Record, 1997, p. 11.
223
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 59.
89
situações da realidade dos sujeitos históricos condicionados às suas contingências situacionais
de vida. Assim, a própria pesquisa da história articula-se neste lugar social, produzindo a
circunscrição em um meio de construção elaborado segundo determinações específicas. Para
Certeau a escrita da história está “submetida a imposições”224 e “enraizada em privilégios”225,
portanto, é justamente “em função desse lugar que se instauram os métodos, que se delineia
uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se
organizam”.226 Por conseguinte, “toda interpretação histórica depende de um sistema de
referencia”227, constituindo-se em uma estrutura fundante, implícita na interpretação,
evidenciada nas escolhas objetivas, externalizadas na linguagem utilizada pelo historiador
como um sistema de pensamento que lhe antecede, constituindo-se deste modo em um
sistema de pensamento fundantemente estruturado. Considerando atentamente esta
necessidade aqui esboçada para a compreensão da escrita da história, tomaremos neste
capítulo, como foco de construção, a tarefa de reconstruir o contexto histórico condicionante
da experiência vivencial de Jean de Léry em suas mais diversas relações que produziram a sua
visão de mundo. Seguiremos esta andança através de uma espécie de viagem de retorno
historiograficamente determinada. Deste modo, pressupomos que o discurso de Jean de Léry
é, portanto, um discurso social, onde o autor opera uma ação na qual atua como um
representante, um porta-voz, consequentemente, analisar o corpo que simboliza é tarefa
essencial nesta empreitada interpretativa. Portanto, nos deparamos com uma sociedade
escriturística onde buscar o sentido das vozes perdidas é uma necessidade, pois, conforme
enfatiza Certeau, não existe “voz „pura‟, porque ela é sempre determinada por um sistema”.228
Em Léry o sistema que determina sua voz é o sistema teológico de pensamento calvinista,
assim a sua voz não pode ser ouvida se não for condicionada ao sistema escriturístico onde
surge, porque não é possível dissociar o escritor de sua realidade vivencial sem o custo de
uma interpretação equivocada do relato.229

No capítulo anterior já apontamos, seguindo Michel de Certeau, a centralidade

224
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 47.
225
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 47.
226
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 47.
227
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 48. “Um discurso
ideológico se ajusta a uma ordem social, da mesma forma como cada enunciado se produz em função das
silenciosas organizações do corpo. Que o discurso como tal obedeça a regras próprias, isso não o impede de
articular-se com aquilo que não diz – com o corpo, que fala à sua maneira”. Michel de Certeau, A Escrita da
História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 53.
228
Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano, 1. Artes de Fazer, 9.a ed., Petrópolis-RJ, 2003, p. 222.
229
Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano, 1. Artes de Fazer, 9.a ed., Petrópolis-RJ, 2003, p. 222.
90
determinante do lugar social, Genebra, que condiciona as construções escriturísticas de Jean
de Léry. Em conformidade com nossa tese, este lugar fora caracterizado pelo sistema
estrutural de pensamento calvinista, que tanto produz quanto autoriza as construções
semânticas que tornam o relato de viagem inteligível, porque estabelece os limites fronteiriços
da construção do relato historiográfico. Genebra, em outras palavras, a Reforma Protestante e
o próprio reformador genebrino João Calvino, surgem como a coluna vertebral que perpassa
toda a estrutura interpretativa contida na obra História de uma Viagem feita à Terra do Brasil,
também chamada América. Este elemento estruturante, conforme já advogamos, é
determinante na constituição do conceito de heterologia como uma ciência do Outro que fora
organização por Jean de Léry como uma aplicação prática a partir de seu sistema de
pensamento teológico calvinista.

O ambiente formador das mentalidades de Jean de Léry, desta feita, é o ambiente do


Outro religiosamente constituído. A Reforma Protestante, o reformador João Calvino, os
huguenotes e a França Antártica são o Outro, marginalizados pela Igreja Católica ou pelo
poder político instituído em vigência no século XVI. Assim sendo, Léry é o Outro no
ambiente do mesmo, portanto, ele é perseguido, posto à margem da sua sociedade e
desumanizado, consequentemente, é sabedor da situação vivencial do tupinambá em sua
relação com o humano, mesmo que este não tenha consciência da posição preconceituosa a
qual é posto pelo Velho Mundo. Deste modo, Léry quer propor o respeito ao tupinambá que
ele mesmo não encontra entre os seus próprios pares franceses ou mesmo entre os europeus de
um modo geral. Portanto, conhecer Léry como o Outro é lançar luzes sobre como ele enxerga
o índio, pois, ele tem conhecimento de causa quanto a ser posto à margem da existência
humana, consequentemente, o huguenote também é o espelho da realidade do tupinambá.
Seguir o percurso oposto, ou seja, não somente olhar o Outro para entender o mesmo, mas
olhar o mesmo para interpretar o Outro, eis nosso objetivo neste capítulo.230 Não há

230
“Trata-se, de fato, de traduzir uma diferença que tem como instrumento a figura da inversão: a alteridade
torna-se um anti-si-mesmo. Ora, se viajantes e utopistas abusam dessa figura, isso se deve ao fato de que tal
figura constrói uma alteridade „transparente‟. „O princípio de inversão é, portanto, uma maneira de transcrever a
alteridade, tornando-a fácil de apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida).
Entretanto, pode funcionar também como um princípio heurístico, permitindo compreender, considerar, dar
sentido a uma alteridade que, sem isso, permaneceria completamente opaca. A inversão é uma ficção que faz
„ver‟ e que faz compreender: trata-se de uma das figuras que concorrem para a elaboração de uma representação
do mundo‟”. Adone Agnolin, O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico:
alteridade e identidade no caso tupinambá, São Paulo, Associação Editoral Humanitas, 2005, p. 71; “Na
narrativa de Léry, a viagem é tanto motivo para se reavaliar a nação francesa quanto objeto de conhecimento. A
descrição do encontro com o Novo Mundo muitas vezes sugere que, ao menos inicialmente, assimilar a diferença
91
redundância, mas necessidade, enfatizar que a chave de leitura da obra de Jean de Léry é
condicionada pela sua situação histórica vivenciada nas suas relações intrinsecamente
relacionadas à sua concepção calvinista de mundo.

A Reforma Protestante como um movimento marginalizado em relação ao sistema de


pensamento em vigor – as estruturas da teologia católica em sua relação com o estado –,
constrói por meio da palavra o seu espaço. É a palavra que estrutura a Reforma, a sua
fundamentação na Escritura Sagrada, e é a palavra que a expande, a pregação da Palavra e os
textos escritos por ela produzidos ao longo do século XVI. Seguindo na mesma perspectiva,
também temos o filólogo de formação e prática, João Calvino, posto à margem por ser
protestante, mas, encontrando na palavra o sentido de sua existência vocacional ao construir o
seu espaço em um lugar instituído. É pela palavra, a Bíblia, que o reformador exalta o valor
do ser humano como imagem e semelhança de Deus, e, além disto, constrói o seu espaço
teológico que se expande por outras áreas do conhecimento humano por meio da escrita e da
pregação. E não somente isto, mas o próprio ser humano se constitui em uma escrita que
expressa a divindade, fonte de conhecimento. Deste modo, é natural Léry entender que é pela
palavra que se dá a construção valorativa do ser humano, consequentemente a sua etnologia se
articula pela escrita, o índio tupinambá é a palavra que comunica a realidade do Novo Mundo
ao Ocidente.

Desta feita, empreenderemos neste capítulo a reconstrução do lugar histórico de Jean


de Léry, a Reforma Protestante, uma sucinta biografia contextualizada do seu mestre João
Calvino, a França das guerras de religião e a própria França Antártica, tomando como fio
condutor a realidade de que o nosso viajante esteve no século XVI posto à margem da
instituição de controle e por meio da palavra encontrou o seu espaço, assim, a estratégia
utilizada por excelência neste contexto para construir o espaço próprio sempre foi, por
excelência, a escrita. Portanto, seguindo esta perspectiva podemos observar de modo claro
que a ação de Léry em dar voz ao índio é uma expressão de apreço por este ao querer dar-lhe
o seu espaço valorativo na humanidade. Prossigamos em nossa tarefa historiográfica,
contudo, devemos salientar que neste capítulo serão apontados apenas lampejos das relações
deste lugar histórico na construção do sistema de pensamento de Jean de Léry, pontos de
contato que ganharão aprofundamento detalhado nos capítulos subsequentes.

significa ser assimilado por ela”. César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e
assimilação no Brasil colonial (1500-1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 135.
92
2.1 – A Reforma Protestante e o Humanismo

O ponto de partida desta viagem de reconstrução do lugar social de Jean de Léry é o


período do século XVI, especificamente circunscrito à Reforma Protestante em sua relação
com o Renascimento na Europa durante os séculos XIV a XVI, que pode ser entendido em
certo sentido como uma construção histórica que irrompe como uma preparação intelectual
para a Reforma Protestante ao produzir um dos arcabouços estruturais necessários ao
desenvolvimento e à expansão do pensamento desta Reforma.231 Dentre as principais
influências renascentistas, podemos introdutoriamente citar, como uma das mais importantes,
é a volta ao estudo de línguas clássicas e antigas, o que possibilitou diversas traduções das
Sagradas Escrituras a partir dos originais grego e hebraico para as línguas vernáculas na
Europa. Lembremos que a Reforma Protestante possui o seu foco norteador principal e
determinante de sentido construído a partir da interpretação da Escritura Sagrada232, seja
como fonte para a pregação, seja como parâmetro diretor da ética prática dos seus seguidores.
Jean de Léry se valerá da Escritura, seja como o parâmetro norteador de sua interpretação do
Outro, seja como o limite da circularidade hermenêutica de sua heterologia quando registra as
suas interpretações em sua obra, expressando a sua relação tanto com os estudos filológicos,
quanto com o próprio João Calvino, um filólogo de formação. Conforme aponta Silva:

O relato de Léry permite não só a percepção da formação discursiva


renascentista, como a delimitação clara da forma como se constroem
múltiplas identidades que se aproximam e se opõem, num jogo de
similitudes e diferenciações, seja na forma de descrição da natureza e
das populações (com particular ênfase para a antropofagia) seja na
afirmação de percepções (europeu e índio, protestante e católico,
natureza como criação divina e como valor de troca, entre outras) e de
um relativismo não-usual no período.233

231
“O termo „Renascença‟ foi empregado pela primeira vez de forma proeminente pelo historiador francês Jules
Michelet em 1858, e gravado em bronze dois anos depois por Jacob Burckhardt, quando este publicou seu
grande livro A civilização da Renascença na Itália. O uso se firmou por ter-se revelado um modo conveniente
de descrever o período de transição entre a época medieval, quando a Europa era a „Cristandade‟, e o início da
Idade Moderna”. Paul Johnson, O Renascimento, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 11.
232
A tradutora de A Escrita da História de Certeau, explica o uso do termo na obra: “M. De Certeau explora ao
longo de toda a obra o duplo sentido que apresenta, em francês, a palavra écriture – escrita e escritura
(eventualmente Escritura, referindo-se ao texto da revelação judaico cristã)”. Prefácio à 2. a Edição in Michel de
Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. XI.
233
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, Editora UNESP, 2003, p. 20.
93
O Renascimento está posto, historicamente falando, em um momento de transição
entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna influenciando a situação vivencial
dos protagonistas da história em vários aspectos, relacionando-se à política, religião, filosofia,
ciência, arte e na cultural geral como um todo abrangente.234 Observamos em linhas gerais
alguns elementos temáticos constituintes nas mentalidades que irrompem neste período, que
sejam: antropocentrismo, racionalismo, humanismo e individualismo.235 O antropocentrismo
deste período foi uma reação ao teocentrismo da Idade Média como chave ideológica de
interpretação do mundo, agora a realidade seja de que ordem for, deve ser regulada e
interpretada tendo o homem como fiel da balança nas mais diversas relações existentes, ou
seja, tudo agora deve ser interpretado em sua inter-relação com o humano. O racionalismo
defende a tese de que há sempre uma causa inteligível que explica a origem de algo,
estabelece a proeminência e independência da razão do homem como meio por excelência
para a produção do conhecimento em detrimento de qualquer meio ou autoridade
revelacional, aqui já encontramos as bases do que mais tarde irá constituir o Iluminismo que
levará até as últimas consequências este princípio. O humanismo neste período tem uma
característica marcadamente relacionada ao interesse pelos textos clássicos da antiguidade,
principalmente gregos e latinos, no entanto, também se relaciona a uma valorização do
humano contrariamente ao desprezo metodológico existente na Idade Média. O
individualismo está mais voltado para um conceito político que enfatiza a liberdade do
indivíduo diante das suas relações sociais principalmente com o Estado, porque o indivíduo é
agora observado como uno e não somente como parte integrante de um grupo social onde suas
ideias e pensamentos somente possuem valor se estiverem em conformidade com o
estabelecido, está portanto, livre para pensar de modo contrário àquilo que é exposto pela
agenda normativa de seu tempo; uma reviravolta epistemológica. A Reforma e, portanto,
também Jean de Léry se valem destas estruturas, contudo, não perdem o seu foco fundante
que é o compromisso com o Deus bíblico-cristão conforme descrito nas Sagradas Escrituras.
Deste modo, a Reforma se vale de elementos que irromperam no período do Renascimento,
no entanto, o seu compromisso com a Escritura Sagrada também a fez romper com estas

234
Vd. Hélène Védrine, As Filosofias do Renascimento, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974; Paul
Johnson, O Renascimento, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001; Jacob Burckhardt, O Renascimento Italiano,
Lisboa/São Paulo, Editorial Presença/Martins Fontes, 1973; H.R. Trevor-Roper, Religião, Reforma e
Transformação Social, Lisboa/São Paulo, Editorial Presença/Martins Fontes, 1981; Hugh Trevor-Roper, A
Formação da Europa Cristã, Lisboa, Editorial Verbo, 1966; Agnes Heller, O Homem do Renascimento, Lisboa,
Editorial Presença, 1982; V.H.H. Green, Renascimento e Reforma, Lisboa, Dom Quixote, 1984.
235
Cp. Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade,
São Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 18; Louis Dumont, O Individualismo: uma perspectiva antropológica da
ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985.
94
estruturas, pois, a dignidade do homem está posta na realidade dele ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus, assim há uma aproximação na mesma medida em que há um
rompimento, valorização do homem, sem, contudo, entendê-lo como o referencial por
excelência de interpretação da realidade, este lugar cabe ao Deus bíblico-cristão, segundo o
pensamento reformado.236 Ter esta compreensão em mente é central para um adequado
entendimento do modo como Jean de Léry irá interpretar a humanidade do índio tupinambá
em seu relato de viagem.

Este é um período da história onde ocorre uma enorme profusão de elementos e


relações que contribuíram com a construção do contexto que determina a produção de sentido
da obra de Jean de Léry. Estes elementos potencializam novas explicações da realidade a
qual o homem moderno está inserido, pois, apresenta-lhe a possibilidade de interpretações que
não estejam condicionadas pelo sistema epistemológico dogmático vigente no período,
caracterizado pela imposição de uma interpretação única acerca da realidade, além de
limitadora de um exercício intelectual pensante, exigindo única e tão somente uma mera
reprodução de interpretações impositivas. Os elementos que permitem um descortinar de
novos olhares são as grandes descobertas que ocorreram no período, o desenvolvimento das
navegações, as grandes empreitadas marítimas, a proposição do heliocentrismo como
explicação do sistema solar por Copérnico, a efetivação da imprensa (1450) como meio
promotor de informação e conhecimento, por estes motivos as ideias poderiam agora ser
divulgadas com maior rapidez pela Europa do século XVI.237 Estas relações geraram na
mesma proporção uma mudança de mentalidades, além do desenvolvimento abundante de
muitas ideias em associação com o irromper de novas possibilidades de promoção e
pulverização destas descobertas que evidenciam o desejo natural do ser humano em conhecer,
a curiosidade pelas inovações ganha força nas motivações do homem do Renascimento. A
Reforma encontra o seu espaço para desenvolver-se com condições de um tempo ideal para a
sua aceitação por causa destas relações surgidas no processo das operações históricas
ocorridas neste período.238

236
Jean Boisset, Sagesse et Sainteté dans la Pensée de Jean Calvin, Paris, Presses Universitaires de France,
1959, p. 317-318.
237
Vd. Karen Armstrong, A Bíblia: uma biografia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007, p. 166-167; Hermisten
Maia Pereira da Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras, São Paulo, Cultura Cristã, 1998, p. 143-145.
238
Devemos salientar mais alguns elementos característicos que estão presentes neste período da história da
humanidade que em algum modo e grau colaboraram direta ou indiretamente para o surgimento e
estabelecimento da Reforma Protestante no século XVI e as consequentes estruturas de mentalidade que dela
derivam em seus personagens constituintes. Que sejam: a organização política em cidades-estados constituídas
95
Central neste contexto foi a presença do Humanismo, que pode ser entendido como a
filosofia do Renascimento, o modelo de construção intelectual, uma estrutura de pensamento.
Por vezes pensa-se neste período como uma completa e total aversão à religiosidade
característica do medievo, e, assim portanto, o Humanismo fora marcadamente antirreligioso;
erro crasso, pois contrariamente a este mito percebemos que na verdade ele proporcionou uma
maior preocupação com questões religiosas. Conforme atesta Jean Delumeau: “o humanismo,
afinal de contas, foi muito mais religioso que se afirmou durante muito tempo”239, mas
permanece a ressalva: “todavia, no conjunto, os humanistas foram espíritos religiosos, mas
independentes”.240 Timothy George assevera que: “talvez a contribuição mais positiva dos
eruditos humanistas à renovação religiosa do Século XVI tenha sido a série de edições críticas
da Bíblia e dos pais da igreja, amplamente disseminadas graças ao sucesso fenomenal da
imprensa”.241 Mas as evidências não param por ai, pois houve uma espécie de resgate dos
escritos, tanto filosóficos quanto teológicos, de Agostinho (354-430), conforme expõe
George:

O pai da igreja favorito de Erasmo era Jerônimo, mas a fonte patrística


mais influente para a teologia reformada sem dúvida foi Agostinho.
De fato, nos séculos imediatamente anteriores à Reforma, houve algo
como uma “renascença agostiniana”, gerada em parte por um
renovado interesse na teologia de Agostinho dentro da própria Ordem
Agostiniana e pela atração que Agostinho provocava nos primeiros
humanistas, tais como Petrarca, que foi atraído especialmente pelas
Confissões.242

Delumeau também sustenta a mesma linha de interpretação em que o Renascimento


teria contribuído beneficamente com a Reforma Protestante, na verdade para ele, o primeiro
promoveu o segundo tornando a teologia acessível e passível de inteligibilidade pelo povo.
Como implicação, a Reforma seguiu caminho oposto ao vigente na relação teologia/moral,
agora a lógica foi a restauração da teologia como o fundamento determinante da vida das

como repúblicas abertas e ecléticas; o desenvolvimento agrícola; a intensificação do comercio internacional no


Mediterrâneo, além de um crescente progresso financeiro na sociedade; um sistema social, em relação à Idade
Média, mais flexível possibilitando o surgimento de uma nova classe social de inquestionável importância no
momento: a burguesia; por fim no campo artístico o surgimento de um grande interesse e admiração por obras de
arte, seja pintura, arquitetura, escultura, etc..., promovendo o aparecimento da figura do mecenas.
239
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 79.
240
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 79. E continua à frente:
“Reencontrando a Escritura, limpando-a, à maneira de um quadro, das impurezas que a obscureciam, os
humanistas aspiravam a uma religião simples, vivida, evangélica, cujos dogmas deveriam ser pouco numerosos e
na qual deveria se procurar e achar a paz de espírito na imitação de Jesus. As cerimônias supersticiosas ou
farisaicas teriam que dar lugar a um culto próximo daquele da Igreja primitiva”. Jean Delumeau, Nascimento e
Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 81.
241
Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo, Vida Nova, 1993, p. 50.
242
Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo, Vida Nova, 1993, p. 50.
96
pessoas, a moralidade passou a ser norteada pela teologia.243 O sistema de pensamento
reformado passou a ser o centro fundante das ações daqueles que se converteram ao
protestantismo. Segundo Delumeau, o humanismo preparou o caminho para a Reforma
Protestante através de duas formas distintas: “contribuiu para aquele regresso à Bíblia que era
uma das aspirações de época; chamou a atenção para a religião interior, reduzindo a
importância da hierarquia, do culto dos santos e das cerimônias, ao mesmo tempo”.244 Estes
elementos, serão evidentes em Jean de Léry ao fazer uso da Bíblia como o seu referencial de
análise e interpretação em sua experiência vivida no Novo Mundo, sem contudo, deixar de
perceber-se como um protestante reformado, mesmo distante de estruturas hierarquizadas,
reflexo da religião interior defendida pela Reforma, o sacerdócio universal de todos os
crentes.

Assim, seguindo as ideias de Michel de Certeau, que defendia a história como um


processo, e que se estrutura nas mais diversas relações em sua construção, percebemos que o
Renascimento coloca em cena as condições intelectuais e vivenciais que se mostraram
necessárias para o surgimento da Reforma Protestante, que segundo Battista Mondin, filósofo
católico, ao falar sobre as causas desta, defende se tratar de um acontecimento divisor de
águas que marca o fim de um limite fronteiriço histórico ao mesmo tempo em que atua na
construção do irromper de outro. É um movimento que provoca uma transição de períodos ao
promover um novo modo de interpretar a realidade que se caracterizaria como moderno.
Enfatiza Mondin:

A Reforma protestante foi um acontecimento essencialmente


religioso, mas causou ao mesmo tempo profundas transformações
políticas, sociais, econômicas e culturais. Também no
desenvolvimento da filosofia a sua influência foi decisiva,
especialmente na filosofia alemã, mas também na francesa, inglesa,
americana, italiana, em uma palavra, em toda a filosofia moderna.
Isto justifica e exige um estudo bastante amplo e aprofundado sobre as
causas, os autores e os ideais da Reforma protestante.245

Para o economista suíço André Biéler, a Reforma Protestante deve ser entendida como
um movimento autônomo que fora dirigido pela “Palavra do Deus vivo”246, sendo em sua

243
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 128.
244
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 82.
245
Battista Mondin, Curso de Filosofia, vol. 2, São Paulo, Paulus, 1981, p.27.
246
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p.
66.
97
origem uma “força espiritual revolucionária”.247 Portanto, a Reforma foi um movimento
espiritual em sua essência e secundariamente social, além de tudo, os seus efeitos espirituais
superam em importância as influências sociais que produziu, assim “penetra ela
indistintamente em todos os meios, transpondo todas as barreiras sociais; ganha homens de
todas as condições, do povo, do campesinato e da burguesia, assim como os intelectuais, a
nobreza, o baixo e o alto clero, o regular e o secular”.248

Seguimos neste trabalho a mesma perspectiva adotada por Mondin e Biéler ao


defender que a Reforma Protestante foi um movimento eminentemente religioso em sua
essência e objetivo, no entanto, não podemos deixar de perceber o vasto campo de influência
social, político, científico etc..., promovido por ela, mas a sua origem é claramente teológica.
Tais influências do pensamento calvinista que determinaram a construção do mundo moderno
já foram apontadas no capítulo anterior. Devemos lembrar que interpretar a Reforma
Protestante efetuando um recorte simplesmente econômico, político ou social é perder de vista
o verdadeiro rastro que possibilita o estabelecimento do lugar social que os sujeitos do
período dispuseram para a construção de suas mentalidades. No entanto, se deixarmos de
lado as relações existentes entre economia, política ou outras quaisquer relações que em
algum grau influenciaram a construção teológica do período, estaremos construindo uma
escrita da história que não se compromete com a veracidade dos fatos reais. Desta feita, a
Reforma Protestante tem unicamente motivações teológicas e religiosas, contudo, faz parte de
um processo que tanto sofre influências das mais diversas vertentes do pensamento humano,
como também as influencia estruturalmente. Jean de Léry não foge às mesmas relações, pois
escreve uma obra que evidencia concepções modernas como uma transição valendo de
construtos intelectuais que o antecedem, no entanto, a sua construção semântica é
determinada pela sua mentalidade teológica calvinista.

Deve-se perceber que a Reforma Protestante possuía um caráter prático em sua ênfase
teológica ao tencionar promover em seus seguidores a transposição de suas teses do
intelectual e implícito ao vivencial real. Destaca Delumeau que a separação vital entre
reformados e católicos fora exatamente no âmbito da teologia, mas uma teologia que apontava
para uma prática vivenciada. A tarefa prioritária dos reformados “situava-se mais no plano da

247
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p.
66.
248
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p.
66, 67.
98
teologia do que no da moral”249, em oposição ao catolicismo que seguira a via oposta,
contudo, isto significa que na Reforma a compreensão era a de que a teologia deveria ser o
parâmetro determinante das ações humanas, portanto, primeiro a aceitação da teologia, que
depois transformaria em vida prática este conhecimento teológico. Léry é exemplo desta
estrutura de ação, primeiro a teologia, depois a vida em suas mais diversas relações humanas,
pois sua teologia calvinista se constitui no seu referencial de interpretação do mundo, o
sistema teológico é a chave de leitura, onde conteúdo e forma calvinistas são evidentes no
viajante francês. Em seguida exemplifica Delumeau a centralidade teológico-religiosa das
mentalidades impulsionadoras da Reforma Protestante, afirmando que esta não teve como
impulso central apenas um desejo incontrolável de reagir a qualquer sistema de venda de
indulgencias, mas sim, o ponto vital que levou Lutero a reagir contra a Igreja Católica foi a
descoberta silenciosa da doutrina da justificação somente pela fé que a ele revelou a falsa
segurança religiosa que os cristãos possuíam até então ao seguirem os ensinos do
catolicismo.250 Assim, Delumeau identifica a mentalidade determinante das ações que
construíram a Reforma Protestante como essencialmente de cunho religioso, e a partir deste
fundamento, todas as relações sociais foram reconfiguradas como um processo que se
desenrola. Deste modo, por implicação natural, é evidente que a historiografia de Jean de
Léry também se move fundado no mesmo programa, ou seja, uma concepção teológica que
conduziria à vida real ao estabelecer os limites do conhecimento empiricamente constituído
que se externaliza no relato de viagem.

O Cristianismo estava deixando de ser uma religião somente do clero que manobrava
através do medo os fiéis. O contexto da época se transformara, caracterizado por uma
civilização mais urbana do que aquela do medievo, gerando uma força mais coletiva do povo,
de pensamento mais livre e de difícil manipulação pelo clero. A consequência, podemos
observar nas palavras de Delumeau, ao defender que esta realidade “iria mais tarde levar os
reformadores protestantes a afirmar, como S. Pedro, o sacerdócio universal dos cristãos. Mas
já antes se multiplicavam as manifestações diversas e, por vezes, anárquicas de um
cristianismo de massas”.251 Um novo conceito de igreja surgia, “a assembleia invisível
daqueles que Deus escolheu; muito diferente, portanto, de uma Igreja visível puramente
humana, útil certamente, mas que se deve controlar, corrigir e adaptar. Aos olhos de Deus,

249
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 124.
250
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 125.
251
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 126.
99
252
todos os eleitos são iguais e o sacerdote não é mais do que o laico”. Para Delumeau, a
implicação disto na prática, fora que “deve rejeitar-se o mau pastor – quem sabe se ele faz
parte da Igreja invisível? –, recusar-lhe os dízimos que ele utiliza mal e dá-los aos pobres. O
ministro em estado de pecado não distribui correctamente os sacramentos”.253 Portanto, “os
reformadores do século XVI foram os herdeiros de toda uma corrente que, desde há quase
dois séculos, desvalorizava a hierarquia eclesiástica e o próprio sacerdote, e que, a pouco e
pouco, consolidava a dignidade cristã do laico”.254 São estes mesmos crentes laicos que
estenderam a influência da Reforma Protestante aos mais diversos cantões do saber e da
atividade vocacional humana. As mentalidades reformadas se ramificaram por meio dos
indivíduos em suas vidas cotidianas ao externalizarem sua fé no cotidiano. Jean de Léry não é
o único, mas apenas, um dentre vários reformados que traduzem sua consciência teológica
aplicando-a ao real vivenciado.

Neste contexto, a Reforma Protestante promoveu uma “tomada da palavra”, expressão


utilizada por Michel de Certeau255, o qual compreende que a fala “opera no campo de um
sistema linguístico; coloca em jogo uma apropriação, ou uma reapropriação, da língua por
locutores; instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece um contrato
com o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e de relações”. 256 Este saber discursivo
enunciado pela tomada da palavra produziu a construção de um sistema de pensamento
sustentado pela relação oral e escrita. A pregação da Escritura Sagrada é o corpus central
constituinte desta tomada que influenciará o método de escrita de Jean de Léry, além de
determinar a sua chave de leitura e o ato de possibilitar ao índio a sua própria voz através da
escrita da oralidade. Deste modo, no contexto religioso do século XVI houve uma situação
histórica que possibilitou uma renovação da importância concedida à pregação, tanto por parte
dos sacerdotes quanto dos religiosos, provavelmente o principal meio de difusão do
pensamento reformado por toda a Europa do século XVI e também em outras terras e tempos
além destes.257 Nesta mesma linha de pensamento, enfatiza Delumeau, “de um ponto de vista

252
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 129.
253
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 129.
254
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 129.
255
Michel de Certeau, La Prise de la Parole et Autres Écrits Politiques, Paris, Edition du Seuil, 1994.
256
Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano, 1. Artes de Fazer, 9.a ed., Petrópolis-RJ, 2003, p. 40.
257
Patrick Collinson aponta que na Reforma Protestantes, “o sermão era provavelmente o meio mais poderoso de
comunicação oral do alto para baixo”. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 194.
100
sociológico, não é de mais insistir na nova importância dada à pregação”.258 Atesta ainda
Delumeau:

Com efeito, a principal fraqueza da Igreja, no período que antecedeu a


Reforma, não consistia nos abusos financeiros da cúria romana, nem
no estilo de vida por vezes escandalosos dos altos dignitários
eclesiásticos, nem nos desregramentos de alguns monges, nem no
número certamente importante dos padres concubinários. Residia
antes na instrução religiosa demasiado medíocre e na insuficiente
formação dos pastores, muitas vezes incapazes de distribuir de forma
eficaz os sacramentos e de apresentar correctamente a mensagem
evangélica. Provavelmente, a Reforma nasceu desta profunda
diferença entre a mediocridade da oferta e a nova veemência da
procura.259

A pregação possuía um objeto de exposição, a Bíblia, que fora traduzida para diversos
idiomas, tornando-se assim acessível a todos e, possibilitando deste modo, um fundamento
seguro diante das incertezas frequentes do período.260 Como mostra Delumeau: “A Bíblia se
tornava assim o último recurso, mas também a rocha que as tempestades humanas não
submergiriam”.261 Os reformadores presentearam o povo da época com a possibilidade de
acesso à Bíblia em sua própria língua, suprindo deste modo a carência e a sede que o povo
possuía pela Palavra de Deus, a Escritura.262 Trazendo-lhes segurança e conforto em um
mundo tão deveras tomado pelo desespero existencial e espiritual.263 Mais uma vez
enfatizamos, é exatamente esta Bíblia lida segundo com o sistema hermenêutico calvinista

258
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 126.
259
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 127.
260
Aponta Calvino: “Porquanto Deus quer que sua Igreja seja edificada com base na genuína pregação de sua
Palavra, não com base em ficções humanas; de cuja sorte é também aquilo que não tem qualquer tendência para
a edificação, como, por exemplo, as questões especulativas [1 Tm 1.4], que comumente contribuem mais para a
ostentação, ou algum louco desejo, do que para a salvação dos homens”. João Calvino, Exposição de 1
Coríntios, 2ª. ed., São Paulo, Paracletos, 2003, p. 114.
261
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 76.
262
“Os Reformadores não “deram” portanto aos Cristãos os livros santos traduzidos em língua vulgar que a
Igreja lhes teria anteriormente recusado. Foi exatamente o contrário que aconteceu. As traduções da Bíblia
começavam a se difundir e excitavam precisamente por isso a sede que os fiéis tinham da Escritura. Do mesmo
modo, a carência era largamente superior à oferta. Podendo cada edição variar de 250 exemplares a 1.600,
teriam existido, em 1520, pouco mais ou menos 6.600 exemplares da Bíblia alemã em circulação, e 13.500 em
outras línguas, mas 120.000 saltérios e 100.000 livros do Novo Testamento. Era ainda muito pouco. Daí o
sucesso da Bíblia de Lutero propositadamente redigida num alemão acessível a todos”. Jean Delumeau,
Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 78.
263
A igreja colocava sob os ombros das pessoas uma carga cada vez mais excessiva como meio de merecimento
de um suposto perdão, obrigando-os a realizarem sempre mais boas obras com vistas a este fim. E
convenientemente estas se tornavam proporcionalmente insuficientes para dar-lhes o perdão tão almejado. O
produto de tudo isto era uma insatisfação religiosa na prática. Paul Tillich (1886-1965) é esclarecedor: “Sob tais
condições jamais alguém poderia saber se seria salvo, pois jamais se pode fazer o suficiente; ninguém podia
receber doses suficientes do tipo mágico da graça, nem realizar o número suficiente de méritos e de obras de
ascese. Como resultado desse estado de coisas havia muita ansiedade no final da Idade Média”. Paul Tillich,
História do Pensamento Cristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 210.
101
que será o fundamento determinante da interpretação de Jean de Léry, a fronteira limítrofe de
sua heterologia construída na experiência de viagem.

Estes são alguns elementos característicos que de certo modo e em algum grau
contribuíram direta ou indiretamente para o surgimento e estabelecimento da Reforma
Protestante no século XVI. A reconstrução destes rastros da história, ainda que sucintamente
colocados, nos servem para a percepção de que o século XVI fora um século marcado pela
instabilidade existencial e espiritual. Nesta complexidade humana a Reforma Protestante
trouxe uma porta de saída para estes anseios, produzindo uma esperança que motivou o
homem à vida, isto se constitui em uma descoberta interior, conduzindo agora, este homem
resolvido frente aos seus desesperos vivenciais a possibilidade de olhar para fora de si e
lançar-se a novas descobertas. Jean de Léry está envolto nesta construção de mentalidade que
lhe confere a possibilidade de pensar de um modo diferente daquele habitualmente instituído
pelas concepções católico-romanas que anteriormente determinavam o modo de raciocinar
sobre a realidade a qual os sujeitos estão inseridos. É possível pensar diferente do
programado, Léry é prova indelével desta realidade moderna.264

Para nos aproximarmos ao nosso personagem principal, Jean de Léry, precisamos nos
achegar especificamente ao seu mundo vivencial, primeiramente o seu principal
influenciador, o reformador genebrino João Calvino, em seguida a França das guerras de
religião do século XVI, e por fim, especificamente observarmos as relações ocorridas no
contexto da tentativa de estabelecimento da França Antártica.

264
“Nicolau Copérnico (1473-1543) via a ciência como “mais divina que humana”. Sua hipótese heliocêntrica
era tão radical que poucos seriam capazes de entendê-la: em vez de estar localizada no centro do Universo, a
Terra e os outros planetas giravam em torno do Sol; o mundo parecia estável, mas encontrava-se de fato em
rápido movimento. Galileu Galilei (1564-1642) testou a teoria copernicana empiricamente, observando os
planetas através do telescópio. Ele foi silenciado pela Inquisição e obrigado a se desdizer, mas seu
temperamento um tanto agressivo e provocativo também desempenhou um papel em sua condenação. De início,
católicos e protestantes não rejeitaram automaticamente a nova ciência. O papa aprovou a teoria de Copérnico
quando ela foi apresentada pela primeira vez no Vaticano, e os primeiros calvinistas e jesuítas eram uns e outros
entusiásticos cientistas. Alguns, porém, sentiam-se perturbados pelas novas teorias. Como conciliar a teoria de
Copérnico com uma leitura literal do Gênesis? Se, como Galileu sugeria, havia vida na Lua, como essas pessoas
poderiam descender de Adão? Como podiam as revoluções da Terra se harmonizar com a ascensão de Cristo ao
céu? A Escritura dizia que o céu e a Terra haviam sido criados para o benefício do homem, mas como podia ser
assim se a Terra era apenas mais um planeta girando em torno de uma estrela como outra qualquer? A antiga
exegese alegórica teria tornado muito mais fácil para os cristãos enfrentar seu mundo em mudança. Mas a
crescente ênfase no sentido literal da Escritura era o produto do início da modernidade: a tendência científica do
pensamento moderno inicial exigia que pessoas vissem a verdade como conformada às leis do mundo externo.
Não demoraria muito para que alguns cristãos concluíssem que, a menos que fosse histórica ou cientificamente
demonstrável, um livro não podia ser verdadeiro”. Karen Armstrong, A Bíblia: uma biografia, Rio de Janeiro,
Zahar, 2007, p. 166-167.
102
Calvino, foi, portanto, um humanista. E o
foi no seu mais alto grau porque, ao
conhecimento natural do homem pelo
próprio homem, acrescentou, sem
confundir, o conhecimento do homem que
Deus revela à sua criatura através de Jesus
Cristo. Não se tratava, pois, de dar as
costas ao humanismo e sim suplantá-lo
dando-lhe talvez as suas mais amplas
dimensões. De um conhecimento
puramente antropocêntrico, Calvino
queria passar ao conhecimento do homem
total, cujo centro se localiza no mistério
de Deus.
Enquanto a ciência da Idade Média foi a
teologia, o estudo de Deus, a da
Renascença foi o humanismo, o estudo do
homem. A ciência de Calvino, por sua
vez, é um humanismo teológico que inclui
a um tempo o estudo do homem e da
sociedade através do duplo conhecimento
do homem pelo homem, de um lado, e do
homem por Deus, de outro. (André
Biéler).265

2 – O Reformador Genebrino

Consideramos neste trabalho, seguindo Michel de Certeau, que o lugar social do


sujeito é determinante para a compreensão das estruturas semânticas contidas na escritura
historiográfica de qualquer texto. No caso de Jean de Léry o seu lugar social está
intimamente associado a um homem especificamente, o reformador João Calvino, proponente
de um sistema de pensamento bíblico-teológico que será decisivo na sua construção
interpretativa em seu relato de viagem. As mentalidades do viajante huguenote foram
construídas em diálogo com a teologia do reformador, o próprio Certeau identifica a
centralidade de Genebra na circularidade hermenêutica de Léry, como já observamos no
capítulo anterior. Deste modo, iremos sucintamente revisitar a formação vivencial do homem

265
André Biéler, O Humanismo Social de Calvino, Ediçoes Oikoume, 1970, p. 12-13.
103
João Calvino, pois, este aspecto segundo Léonard é fundante para o entendimento de sua
constituição humanista.266 Além disto, o pensamento humanista digerido pelo reformador é
determinante para a compreensão de Jean de Léry e consequentemente as estruturas
semânticas que nos conduzem em uma apropriada compreensão do seu relato de viagem. Do
mesmo modo que Calvino é parte de um corpo que se constituiu no entorno da escrita que
possibilita sua construção teológica, Léry também se insere neste percurso formativo no
sistema de pensamento que norteia sua prática historiográfica, ou seja, uma situação vivencial
circunscrita às realidades apresentadas nas páginas anteriores. A reconstrução historiográfica
do percurso formativo do reformador clarifica a natureza de questionamentos existenciais que
norteiam as práticas dos sujeitos. Jean de Léry não é um autor alienado de uma realidade,
mas sim, o diametralmente oposto, pois está circunscrito a um ambiente, é um representante
da teologia calvinista. A sociedade escriturística de Jean de Léry é a sociedade calvinista,
consequentemente, é de essencial importância esboçar o percurso vivencial de João Calvino
objetivando a compreensão do nosso autor em análise. Procuramos ouvir a voz de Léry,
contudo, primeiramente necessitamos ouvir a voz de Calvino dentro de seu lugar social que
produz a sociedade escriturística que autoriza e produz o discurso do reformador que já fora
apresentado como o fundador de uma civilização, ou seja, de uma sociedade moderna.

Comecemos pelo início.267 O reformador genebrino nasceu em Noyon, região da


Picardia, França em 10 de julho de 1509. Seu pai, Gérard Calvin era advogado dos padres e
cônegos e também secretário do bispo e Procurador Geral da Catedral. Servia como um
conselheiro eclesiástico e secretário da diocese. Foi recebido como burguês em 1497, o que
lhe conferia direitos especiais, políticos e eclesiásticos.268 Sua mãe Jeanne Lefranc, provinha
de família burguesa, mulher piedosa, veio a falecer quando Calvino tinha cinco ou seis anos
de idade, fora responsável por levá-lo às procissões religiosas onde visitava os santuários e

266
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 269. Cp. François Wendel, Calvin et l‟Humanisme, Paris, Presses
Universitaires de France, 1976; François Wendel, Calvin: the origins and development of his religious thought,
London, The Fontana Library, 1963, p. 27-37; Pierre Chaunu, L‟Aventure de la Réforme: le monde de Jean
Calvin, Bruxelles, Éditions Complexe, 1991, p. 95-138.
267
Emile Doumergue, Jean Calvin: les homes et les choses de son temps, Lausanne, Georges Bridel & C.
Editeurs, 1899; Jean Moura, Paul Louvet, Calvin, Paris, Éditions Bernard Grasset, 1931; Jean Cardier, Calvin,
Paris, Presses Universitaires de France, 1966; Albert-Marie Schmidt, Jean Calvin et la tradition calvinienne,
Paris, Seuil, 1957; Pierre Bertrand, Survol de l‟Histoire de Genève, Genève, Labor et Fides, 1930; T.H.L. Parker,
John Calvin: a biography, London, Westminster John Knox Press, 1975; Éric Denimal, Calvino: o arauto de
Deus, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2009; Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique
Biloghi, Guy le Thiec, Histoire et Dictionnaire des Guerres de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998, p. 751-
754.
268
C.H. Irwin, Juan Calvino: su vida y su obra, Barcelona, CLIE, 1991, p. 15.
104
altares com o propósito de reverenciar as relíquias, e “orar” a Deus e aos santos, desta feita,
foi responsável pela sua educação no ensino da igreja que estava inserido, pelo menos durante
os primeiros anos de vida.269

Em 29 de maio de 1521, quando tinha apenas 12 anos, recebeu um benefício


eclesiástico cuja renda serviu-lhe de bolsa de estudos. Iniciou seus estudos em Paris, no
Collège de la Marche (humanidades e latim), tendo estudado latim com Mathurin Cordier, um
dos maiores mestres de latim de sua época; no Collège de Mont-Aigu estudou teologia,
gramática e filosofia. Concluiu o seu curso de Artes. Um desacordo entre o pai de Calvino e
o colegiado da Catedral o fez mudar de ideia e encaminhá-lo para a profissão de advogado,
onde teria melhores rendimentos financeiros. Assim, obedientemente, atende ao seu pai e
segue para o estudo do direito sem saber que esta formação lhe seria essencial no futuro como
sistematizador do pensamento reformado.270

Em 1528 foi estudar direito em Orleans e depois em Bourges, onde também mais tarde
estudou grego com Melchior Wolmar. Em 14 de fevereiro de 1532 recebeu o seu título de
Bacharel em Direito.271 Com a morte do pai, em 1531, voltou a Paris e dedicou-se à sua
verdadeira paixão – a literatura clássica. Eventualmente viajou a Orleans para concluir os
seus estudos em direito. No ano seguinte, 1532, publicou seu primeiro livro, um comentário
sobre o tratado de Sêneca, com título Sobre a Clemência (De Clementia), expressão de sua
relação com o humanismo renascentista. Ser um filólogo272 de formação demonstra o uso da
palavra como meio difusor de ideias, o que mais tarde será parte vital de sua ação como o
reformador que atuará por meio da escrita de livros e cartas, e pela oralidade da pregação da

269
Vicente Temudo Lessa, Calvino: sua vida e sua obra, São Paulo, CEP, s/d, p. 26; Ronald Wallace, Calvino,
Genebra e a Reforma, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 9; Pierre Chaunu, O Tempo das Reformas (1250-
1550), II. A Reforma Protestante, Lisboa, Edições 70, 2002, p. 201.
270
“Quando era bem pequeno, meu pai me destinou aos estudos de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que
a profissão jurídica comumente promovia aqueles que saíam em busca de riquezas, tal prospecto o induziu a
subitamente mudar seu propósito. E assim aconteceu de eu ser afastado do estudo de filosofia e encaminhado
aos estudos da jurisprudência. A essa atividade me diligenciei a aplicar-me com toda fidelidade, em obediência
a meu pai; mas Deus, pela secreta orientação de sua providencia, finalmente deu uma direção diferente ao meu
curso. Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às superstições do papado, para que pudesse
desvencilhar-se com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus, por um ato súbito de conversão,
subjulgou e trouxe minha mente a uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do
que se poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida. Tendo assim recebido alguma
experiência e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo tão intenso
de progredir nesse novo caminho que, embora não tivesse abandonado totalmente outros estudos, me ocupei
deles com menos ardor”. João Calvino, Comentário dos Salmos, vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p.38.
271
Pierre Chaunu, O Tempo das Reformas (1250-1550), II. A Reforma Protestante, Lisboa, Edições 70, 2002, p.
202.
272
Pierre Chaunu, O Tempo das Reformas (1250-1550), II. A Reforma Protestante, Lisboa, Edições 70, 2002, p.
202.
105
Palavra. A tomada da palavra é elemento chave para a construção da Reforma Protestante,
pois concede voz aos marginalizados da sociedade europeia do século XVI.

A sua conversão ao protestantismo reformado ocorreu provavelmente no período entre


1532 e 1534273, acredita-se que sob a influência do seu primo Robert Olivétan, ainda que não
isoladamente. As incertezas de estabelecer uma data precisa são provenientes do espírito
tímido do reformador e sua tendência à introspecção. Mesmo antes de sua conversão, Calvino
não era um jovem promíscuo, sê-lo seria uma tendência comum aos jovens da sua época.

Calvino foge de Paris sob a acusação de ser o coautor de um discurso proferido em


aula inaugural, feito por Nicholas Cop, o recente reitor da universidade, ocorrido em 01 de
novembro de 1533 na igreja dos Mathurins. Escrita e oralidade mais uma vez entram em cena
como veículos de propagação de ideias objetivando a construção de um lugar social. Em
1534 voltou à sua cidade natal, Noyon, e renunciou ao benefício eclesiástico que havia
recebido em 29 de maio de 1521. Neste período também escreveu o prefácio do Novo
Testamento que fora traduzido por Olivétan (1535).274

Calvino publicou a sua primeira edição das Institutas ou Tratado da Religião Cristã,
dedicadas ao rei Francisco I, em 1536. Na dedicatória desta obra, considerada um exemplo
por excelência275, Calvino fará uso da palavra entendendo-a como um meio privilegiado, uma
tática, para a produção do espaço calvinista no lugar opressivo e intolerante ocupado pelo
catolicismo francês. No verão, Guilherme Farel o convenceu a ajudá-lo na Genebra, que
acabara de abraçar a Reforma, implorando a Calvino para que ficasse na cidade e o ajudasse a
levar adiante a Reforma Protestante na Suíça. Calvino pretendia apenas escrever e estudar em
paz, acreditando que desta forma seria mais útil, não se julgando preparado para tal tarefa
conforme lhe fora proposta. Farel não hesitou em convencer a Calvino, instigando-o a
permanecer, proferindo assim a chamada “maldição de Deus sobre Calvino em palavras que

273
Sobre a discussão quanto à data da conversão de Calvino vd. Timothy George, Teologia dos Reformadores,
São Paulo, Vida Nova, 1993, p.171; Hermisten Maia Pereira da Costa, Calvino: O Humanista Subordinado ao
Deus da Palavra – A Propósito dos 490 anos de seu Nascimento in: Fides Reformata, Vol. IV, N.º 2, p. 159;
Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 14-15.
274
Cf. Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, 1993, p. 172; C.H. Irwin, Juan Calvino – su
vida y su obra, Barcelona, CLIE, 1991, p. 27.
275
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/Unicamp, 1990, p. 105-106.
106
ele nunca poderia esquecer”,276 então, “a partir daquele momento, o destino de Calvino estava
ligado ao de Genebra”.277

O ano de 1536 tem grande importância para Genebra no campo da educação 278, pois
Calvino redige um programa de governo para a cidade onde enfatiza a necessidade do
conhecimento, para tanto solicitava a criação de escolas na cidade. Apresentou um projeto
educacional gratuito para a cidade de Genebra, destinado tanto a meninos quanto a meninas;
aqui encontramos o início da “primeira escola primária, gratuita e obrigatória de toda a
Europa”.279 Entendia Calvino que o saber “era necessidade pública para assegurar boa
administração política, apoiar a igreja indefesa e manter a humanidade entre os homens”.280
Expressões do humanismo traduzido pela hermenêutica bíblica que mais tarde irá determinar
a construção de pensamento de Léry quando por meio da escrita tem em mente o objetivo de
dar voz e conhecimento de si mesmo ao índio tupinambá. Desta feita, a proposta de Léry é
evidenciar a humanidade do índio, aspectos que serão evidenciados no decorrer deste
trabalho.

Em abril de 1538 entra Calvino em conflito com as autoridades civis sobre questões
eclesiásticas, tais como: disciplina, confissão de fé, liturgia; sendo então expulso de Genebra.
Após ser expulso de Genebra foi para Basiléia, em pouco tempo mudou-se para Estrasburgo,
lugar para onde pretendia ir quando foi abordado por Farel, nesta cidade residia o reformador
Martin Bucer. Trabalhou como pastor (vários salmos foram metrificados para o francês,
tendo início o canto congregacional dos salmos, marca do culto reformado do período),
professor, conferencista, escritor e expositor das Sagradas Escrituras. Em Estrasburgo casou-
se com Idelette de Bure (†1549), viúva de um anabatista francês convertida à fé reformada
por meio do próprio Calvino. Também neste período escreveu uma nova edição das Institutas
(1539), o Comentário de Romanos (1539), a Resposta a Sadoleto (um bispo católico que
tentara ganhar Genebra de volta para Roma), entre outras obras. Permaneceu por cerca de três
anos nesta cidade que foram “os anos mais decisivos para seu desenvolvimento como

276
Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, 1993, p. 179. Cp. Ronald Wallace, Calvino,
Genebra e a Reforma, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 22.
277
Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, 1993, p. 180.
278
Para maiores detalhes quanto ao presente assunto ver: Gerald L. Gutek, Historical and Philosophical
Foundations of Education: a biographical introduction, 3.ª ed., New Jersey, Columbus, 2001, p. 84-97.
279
Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino – 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São
Paulo, Cultura Cristã, 2009, p. 334.
280
Lorenzo Luzuriaga, História da Educação e da Pedagogia, 11.ª ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p.
112.
107
reformador e teólogo”.281 Durante o período em Estrasburgo Calvino se relacionou com os
principais líderes da Reforma Protestante. Sempre a escrita permeando a atividade religiosa
do reformador com o intuito de produzir um lugar social longe da marginalidade em que fora
posto pelo sistema religioso intolerante, mormente em vigor com maior amplitude.

A pregação ocupava lugar de alta proeminência na prática pastoral do pregador João


Calvino. Claramente Comparato atesta o zelo pela pregação que Calvino possuía: “movido
pelo dever de pregar integralmente a Palavra do Senhor (...) Calvino permaneceu sempre
rigidamente apegado à ideia de que tudo, inclusive a própria fé, nos vem de Deus, pois desde
o pecado original nada de bom nos advém por nosso próprio mérito”. 282 O filósofo Régis
Debray também atesta esta verdade ao expor: “um prisioneiro da escrita como Calvino (250
mil palavras por ano, depois de 1550) jamais esquece de pregar para os simples, e sem
negligenciar as lições orais de exegese para os doutos. A edição, para ele, é apenas um
trampolim; cabe à Palavra altruísta, habitada pelo Espírito, indicar o bom caminho à
comunidade”.283 Este senso de importância da palavra escrita, é assumido por Jean de Léry
quando tem diante de si a possibilidade de traduzir a oralidade indígena em escrita
historiográfica, tanto uma indicação de sua concepção calvinista que aponta para um
humanismo bíblico, quanto apontando para a importância da conversão do indígena por meio
da Palavra, temas a serem abordados à frente. Sempre a palavra, oral ou escrita, ocupando
lugar de proeminência no cotidiano vivencial do reformador como o meio por excelência para
a construção do seu espaço.

Quando do retorno a Genebra, escreve as Ordenanças Eclesiásticas, expressão maior,


segundo Léonard, de sua organização que influenciará a construção do mundo moderno.284
Enfrentou Calvino muitas lutas com as autoridades e algumas famílias locais. Este escrito,
juntamente com o seu primeiro sermão ao retornar, é uma marca importante na sua tarefa
como reformador. No primeiro domingo, após o seu retorno do exílio em Estrasburgo, todos
esperavam que o reformador fosse proferir um ataque contra aqueles que o haviam expulsado
de Genebra, no entanto, começou a pregar exatamente do mesmo ponto da Bíblia onde havia

281
Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, 1993, p. 180.
282
Fábio Konder Comparato, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno, São Paulo, Companhia das
Letras, 2006, p. 177.
283
Régis Debray, Deus – um itinerário: material para a história do Eterno no Ocidente, São Paulo, Companhia
das Letras, 2004, p. 299.
284
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 307. Cp. Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique Biloghi, Guy le
Thiec, Histoire et Dictionnaire des Guerres de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998, p. 39-40.
108
parado três anos antes. Centralidade da pregação da Palavra na atividade pastoral do
285
reformador.

Estas Ordenanças diziam respeito a um plano detalhado para o estabelecimento da


ordem e do governo da igreja em Genebra apresentado ao Conselho da cidade e “exigiam o
estabelecimento dos quatro ofícios de pastor, doutor (professor), ancião e diácono, que
correspondiam a doutrina, educação, disciplina e serviço social”.286 O conselho de Genebra
aprovou o documento em 20 de novembro de 1541, no entanto, a grande luta de Calvino
sempre esteve associada ao cumprimento deste plano, que nem sempre veio acompanho de
sucesso. Em 27 de outubro de 1553 dá-se a execução de Miguel Serveto acusado de heresia e
queimado na fogueira. Com frequência este evento é tomado como um pretexto pelos
detratores da imagem de Calvino como um argumento com o fim de invalidar toda a
importância de sua teologia e deturpar a sua relevância histórica para a Reforma Protestante.
Esperanza Plata García, aponta: “Calvino tomou a iniciativa na prisão de Serveto, mas pouco
pode fazer quanto à maneira de conduzir o julgamento ou a sentença final deste, e muito
menos pelo espírito de intolerância da época”.287 Neste período trabalhou intensamente como
pastor, pregador, mestre, administrador e escritor; neste mesmo período dedica tempo à
produção dos seus comentários bíblicos. Além da pregação, oralidade, é a escrita que gera o
alcance abrangente das ideias calvinistas, prompte et sincere.

O campo de influência do pensamento de João Calvino não foi restrito ao ambiente


educacional em Genebra e na Europa, mas estende-se a outras áreas diversas da
intelectualidade humana a partir da Reforma Protestante do século XVI. A Academia de
Genebra foi inaugurada em 05 de junho de 1559, na igreja de Saint-Pierre, sob a direção de

285
Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, 1993, p.184-185.
286
Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, 1993, p. 184.
287
Esperanza Plata García, Calvino y el caso Servet in Leopoldo Cervantes-Ortiz (ed.), Juan Calvino, su vida y
obra a 500 años de su nascimento, Barcelona, CLIE, 2009, p. 336. À frente resume García: “1. Antes do
processo de Genebra, Serveto já havia sido julgado e condenado pelas autoridades católico-romanas. 2. O
veredicto final foi outorgado pelo Pequeno Conselho de Genebra e por recomendação de outras cidades da Suíça.
3. A influência que pôde ter Calvino diante do Pequeno Conselho foi mínima pelas polemicas que se levantaram
contra os “libertinos”. 4. O Código Justiniano prescreve a pena de morte pela negação da Trindade”. Esperanza
Plata García, Calvino y el caso Servet in Leopoldo Cervantes-Ortiz (ed.), Juan Calvino, su vida y obra a 500
años de su nascimento, Barcelona, CLIE, 2009, p. 339. Afirma sobre Serveto, Giacomo Martina, historiador da
igreja, católico: “Tendo fugido do cárcere da Inquisição em Lião, teve este a infeliz ideia de ir para Genebra,
onde foi logo reconhecido, preso e, por consenso de grande maioria, que considerava Calvino por demais
moderado, foi condenado a ser queimado vivo, por causa da tenacidade com que insistia em suas ideias”.
Giacomo Martina, História da Igreja de Lutero a Nossos Dias: I – O Período da Reforma, 3.ª ed., São Paulo,
Loyola, 2008, p. 152.
109
Beza288, possuía as cadeiras de grego, hebraico e filosofia. Neste ano foi lançada a última
edição das Institutas. Temos também a primeira reunião do sínodo da Igreja Reformada da
França. Compreende Giles que, “a Academia representa o ápice do sistema. (...) ...o êxito da
escola é imediato, a ponto de atrair alunos da França, da Inglaterra, da Holanda e da Escócia,
países em que serve de modelo”.289 Nas palavra de Pierre Bertrand: “ela será a primeira fonte
da Genebra intelectual”290; e ainda aponta que a própria cidade foi fundada sobre a Palavra de
Deus, grandemente ensinada, pois é por meio da palavra que as teses calvinistas ganham o seu
espaço.291 É exatamente neste ambiente que será formado o nosso viajante Jean de Léry, pois
na Academia se dará a sua formação teológica sob os cuidados de Calvino, influenciando-o
em seu sistema estrutural de pensamento, inserindo-o na sociedade escriturística que
autorizará a construção de sentido de seu relato de viagem.

Patrick Collinson nos instiga com duas perguntas: “Como Calvino conseguiu fazer o
que fez? Como foi que por volta de 1553 a magistratura civil já se tornara ainda mais zelosa
do que o próprio Calvino na decisão de “viver segundo o Evangelho?” Eis sua resposta: “A
resposta mais simples é sua capacidade de pregação no púlpito, que fez Genebra submeter-se
à vontade de Deus. Foi um ataque impiedoso aos ouvidos da cidade. Havia sermões diários,
e três aos domingos. A contribuição de Calvino foi de 260 sermões por ano”. 292 Continua
ainda Collinson: “o sermão era provavelmente o meio mais poderoso de comunicação oral do
alto para baixo”.293 Também afirma que “a Reforma prescreveu uma nova primazia dos
ouvidos sobre os olhos”.294 Calvino considerava a pregação “o incomparável tesouro da
Igreja”.295 Esta influência da pregação no ministério pastoral de Calvino se apresenta como
uma das maiores expressões da importância da Escritura Sagrada para o reformador e também
para Jean de Léry que irá utilizar-se do mesmo padrão para a sua construção interpretativa no
seu relato de viagem, pois é a escrita que determina a oralidade, é a teologia que estabelece a

288
“Ao apontar Beza como líder, ele escolheu um humanista conhecido internacionalmente e um homem das
letras que escrevia e amava poesia e já havia publicado uma peça. Beza pronunciou um discurso na cerimônia
inaugural em 5 de junho de 1559, apresentando uma história da educação no passado, referindo-se a como
Moisés aprendeu a sabedoria dos egípcios e congratulando o Concílio por propiciar que Genebra compartilhasse
da gloriosa obra de difusão de um conhecimento que estava livre de superstições”. Ronald Wallace, Calvino,
Genebra e a Reforma: um estudo sobre Calvino como um Reformador Social, Clérigo, Pastor e Teólogo, São
Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 89.
289
Thomas Ransom Giles, História da Educação, São Paulo, E.P.U., 1987, p. 126.
290
Pierre Bertrand, Survol de L‟Histoire de Genève, Genève, Labor et Fides, s/d, p. 62.
291
Pierre Bertrand, Survol de L‟Histoire de Genève, Genève, Labor et Fides, s/d, p. 62.
292
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 115.
293
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 194.
294
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 50.
295
Nicholas Wolterstorff, A Liturgia Reformada in Donald K. McKim (ed.), Grandes Temas da Tradição
Reformada, São Paulo, Pendão Real, 1998, p. 250.
110
vida real praticada. Diante disto, Léry tem em mente dar ao tupinambá a atemporalidade da
escrita frente à oralidade, com o objetivo de transcender os tempos e fazê-los conhecidos por
todos, mesmo a despeito da distância histórica e geográfica, do mesmo modo que a Escritura
Sagrada o fez.

Em 2 de fevereiro de 1564 Calvino dá sua última aula na Academia em Genebra sobre


o profeta Ezequiel e em 6 de fevereiro prega o seu último sermão versando sobre a harmonia
dos Evangelhos. Em 02 de abril de 1564 participa da Ceia de Páscoa, “embora muito
debilitado, fez-se transportar em uma cadeira até ao templo e assistiu à pregação inteira,
tomou a Ceia e, a despeito de sua respiração difícil, cantou o salmo com os outros, seu próprio
semblante mostrando bem quanto se regozijava ele em Deus com toda a assembléia”. 296 No
dia 27 de abril de 1564, Calvino chama em sua casa os principais líderes de Genebra, onde
“aconselhou os velhos a não invejarem os jovens de modo nenhum, e os jovens a não
desprezarem os velhos”.297 Em 28 de abril de 1564, Calvino chama os pastores de Genebra à
sua casa para despedir-se deles, faz um pedido para evitarem inovações e os encoraja dizendo:
“Deus servir-Se-á desta Igreja e mantê-la-á e vos asseguro que Deus a defenderá”.298 Em
seguida afirma tacitamente: “Quanto à minha doutrina, tenho ensinado com fidelidade e Deus
me concedeu a graça de escrever: o que eu fiz o mais fielmente que pude e não adulterei uma
única passagem da Escritura nem a deturpei conscientemente. E muito embora tivesse
realmente possibilidades de descobrir sentidos sutis, se me tivesse aplicado com subtileza,
empreendi tudo isso e me apliquei com simplicidade”.299 Seguindo-se à sua fala: “Despediu-
se, diz um assistente, com delicadeza de todos os irmãos que lhe apertaram a mão um por um,
todos se debulhando em lágrimas”.300 Falece Calvino em 27 de maio de 1564. Morreu o
reformador, mas não a Reforma, nem tão pouco os seus seguidores, Jean de Léry é um destes
que fala até o presente por meio de sua obra que evidencia um humanismo fundado sobre a
Escritura Sagrada que se expressa através da valorização e respeito pelo ser humano. Quanto
ao modelo de influência encontrado na estratégia do reformado, é evidente que a tomada da
palavra fora elemento central para a produção do lugar social que circunscreverá a construção
semântica do relato de Jean de Léry. É a palavra, oral e escrita, que construiu o lugar
vivencial do reformado, a sociedade calvinista, onde a liberdade de existência religiosa será

296
Theodoro de Beza, A Vida e a Morte de João Calvino, Campinas-SP, LPC, 2006, p. 86.
297
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 121.
298
J. Bonnet (ed.), Lettres de Jean Calvin, Paris, 1854, II, p. 576-579 Apud Jean Delumeau, Nascimento e
Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 121.
299
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 123.
300
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 123.
111
possível. Deste modo, Jean de Léry sabe que o procedimento para dar ao índio o seu lugar de
sentido e valorização é a escrita, segue, portanto, em conformidade com o movimento que já
experimentava, mesmo que ainda não na sua totalidade. Isto ficará evidente quando a seguir
reconstruirmos a realidade da intolerância religiosa vigente na França do século XVI.

112
La Rochelle parecia inexpugnável. Além
disso, o cardeal, independentemente do
que dissessem, sabia muito bem que o
horror do sangue derramado nesse
embate, em que franceses deviam lutar
contra franceses, significava um
retrocesso de sessenta anos na política, e o
cardeal era, nessa época, o que hoje
chamamos de um progressista. Com
efeito, a pilhagem de La Rochelle e o
assassinato de três ou quatro mil
huguenotes que se entregassem à morte
ainda evocariam, em 1628, o massacre de
São Bartolomeu, em 1572. E, como se
não bastasse, esse recurso extremo, o qual
o rei, bom católico, não rechaçava em
absoluto, vinha sempre rebentar contra
este argumento dos generais sitiantes: La
Rochelle não se renderá senão por meio
da fome. (Alexandre Dumas). 301

3 – A França do Século XVI

Seguiremos na tarefa de reconstruir o lugar social onde irrompe o relato


historiográfico de Jean de Léry, desta feita nos concentraremos na França das guerras de
religião.302 A Reforma Protestante na França do século XVI foi marcada por ações de grande
intolerância e violência sanguinária que produziram como lamentável implicação a morte de
milhares de huguenotes. A grande questão que surgiu juntamente com o protestantismo foi,
conforme observa Delumeau, se “seria possível ser de uma religião diferente da do príncipe e
assim mesmo conservar a plenitude dos direitos de cidadão? O debate em torno dessa questão

301
Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010, p. 534.
302
Vd. Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique Biloghi, Guy le Thiec, Histoire et Dictionnaire des
Guerres de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998; André Stegmann, Édits des Guerres de Religion, Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin, 1979; Odon Vallet, Petit Lexique des Guerres de Religion: d‟hier et
d‟aujoud‟hui, Paris, Albin Michel, 2004; Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-
Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008.
113
provocou na Europa ocidental, e principalmente na França, as guerras religiosas do século
XVI e da primeira metade do XVII”.303

Durante o reinado (1515-1547) de Francisco I (1494-1547) o sentimento de possível


tolerância religiosa poderia soar razoável devido ao seu interesse pelo Humanismo da
Renascença. Dentre suas principais ações que expressam este interesse, encontramos o
incentivo aos estudos de textos clássicos, eleitos com esta nomenclatura pelos renascentistas;
além da instituição da função do impressor real outorgando-lhe a responsabilidade da
impressão destes textos clássicos, até mesmo a Bíblia encontrava-se incluída na agenda de
produção das obras; e, por fim, a criação de uma classe de professores reais em Paris que
seriam responsáveis pela promoção dos novos conhecimentos. Por implicação natural, estas
ações de Francisco I acabaram por construir em certa medida o contexto propício para o
surgimento das mentalidades reformadas na França do século XVI.

Devemos considerar que Francisco I não possuía motivações suficientemente


concretas para apoiar a Reforma Protestante, porque o governante francês detinha o poder
sobre a igreja da França para a nomeação de bispos e a coleta de dízimos. Poder político e
fonte de renda faziam dirimir qualquer possível desejo da coroa francesa por algum tipo de
mudança na estrutura religiosa do país. Contudo, nem sempre Francisco I pensou desta
forma, pois a transitoriedade política de suas ações marcaram suas decisões pela pura e
simples conveniência dos seus próprios objetivos segundo lhe parecesse mais adequado.
Apoiou os príncipes protestantes alemães contra Carlos V e convidou um dos principais
reformadores alemães para um colóquio teológico em Paris.304 No entanto, tais ações
ocorreram ao mesmo tempo em que o rei francês executava huguenotes na fogueira.305

Pontuamos como aspecto fundamental, na construção estrutural das matrizes


influenciadoras da reforma francesa, o surgimento de um movimento proeminente que nasce
na França deste período, conhecido como o círculo de Meaux, que surgiu por influência do
bispo Guillaume Briçonnet (1470-1534).306 Dentre suas principais ênfases estava uma
piedade influenciada pelos escritos de Lutero e, pela leitura e pregação da Bíblia. Briçonnet
chamou para auxiliá-lo em sua empreitada o humanista Jacques Lefèvre d‟Etaples (1450-

303
Jean Delumeau, De Religiões e de Homens, São Paulo, Loyola, 2000, p. 104.
304
Jules Michilet, Histoire de France: Réforme, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 103-104.
305
Martin N. Dreher, A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma, Coleção História da Igreja, vol.
3, 4.ª ed., São Leopoldo-RS, Sinodal, 1996, p. 109.
306
Jules Michilet, Histoire de France: Réforme, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 127-128.
114
1536), contribuindo os seus escritos como um modelo para a interpretação bíblica na França.
Outra influência marcante esteve na pessoa da irmã do rei Francisco I, Margarida de
Angoulême (1492-1549), uma humanista de convicção com grande capacidade intelectual e
certa inclinação pela Reforma Protestante. Outro personagem importante para a Reforma
Protestante do século XVI na França e mais tarde em Genebra que se associou ao círculo foi
Guillaume Farel (1489-1565). Aquele Briçonnet inclinado à Reforma Protestante seguiu a
direção oposta quando o Parlamento de Paris em 1525, apontou o círculo de Meaux como
herético, chegando até mesmo a renegar as obras de Lutero que outrora tanto lhe
influenciaram. Muito provavelmente o círculo de Meaux foi tomado pelo medo da fogueira,
já que neste período alguns pregadores influenciados pela Reforma haviam sido condenados
como hereges e queimados neste mesmo ano de 1525.307 “Com exceção de Farel, os
reformadores de Meaux não tinham a mesma índole de Calvino. Sua real preocupação
dirigia-se a uma renovação e revitalização da autoridade episcopal, não à reforma da
Igreja”.308

A oscilação constante de Francisco I continuou, ora perseguidor dos reformados, ora


aparentemente moderado e condescendente com a Reforma quando era do seu interesse
alianças e acordos políticos com os príncipes alemães. O próprio Philipp Melanchthon (1497-
1560) chegou a ser convidado a visitar Paris para debater sobre a unidade da igreja, no
entanto, homens como Calvino e Farel precisaram deixar a França por causa das perseguições
sofridas. Devemos considerar que a realidade do contexto político da França quando da
chegada do movimento reformador diferia em muito daquele que se apresenta na Alemanha
de Lutero ou na Genebra de Calvino, no entanto, quando observamos a França deste período
percebemos ser a sua realidade traduzida em violenta e frequente perseguição aos protestantes
reformados. Outro fator de preponderância que influenciou marcadamente as relações de
intolerância na França, diz respeito à centralização da imprensa nas cidades de Paris e Lyon;
enquanto na Alemanha e em Genebra a descentralização do poder midiático possibilitou o
desenvolvimento da liberdade de expressão em várias localidades traduzindo-se neste período
em liberdade de expressão religiosa, mesmo que com suas relações políticas inevitáveis
pendessem para o sentido oposto.

307
Cp. Jules Michilet, Histoire de France: Réforme, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 258-259.
308
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 331.
115
Um fator de central importância para explicar a intolerância, a categorização dos
protestantes franceses como hereges309 e a sua consequente perseguição e morte foi a estrutura
do pensamento religioso constituído a partir da doutrina da justificação somente pela fé.
Deste modo o reformado defendia que somente Jesus Cristo é mediador entre ele e Deus,
desprezando teses centrais do catolicismo medieval como a dependência na intercessão da
Virgem Maria e dos Santos como meios de aproximação a Deus. Tal afastamento por parte
dos protestantes desembocou em um desprezo pela missa e pela eucaristia segundo o modelo
católico romano, implicando em um afastamento da própria igreja que se caracterizava como
uma desestabilização social para os governantes e para os interesses políticos do catolicismo
vigente. Esta postura dos reformadores em reprovar a missa acabava por atingir o cerne da
religiosidade do medievo provocando uma ruptura das estruturas sociais vigentes, dirimindo o
poder de influência do catolicismo, gerando a sua imediata reação, atacando os reformados ao
classificá-los como hereges e exigindo a sua condenação à morte para exterminar àqueles que
estavam abalando a organização da sociedade.

A heresia se constituía no período, em qualquer ação que contrariasse os interesses do


catolicismo, portanto, era apresentada como uma doença social cujo único remédio aplicável
era a extirpação do herege deste corpo social. A partir do pontificado do papa Gelásio I (420-
496) a Igreja Católica passou a defender com vigor o conceito dos dois poderes que governam
o mundo: um espiritual e o outro temporal.310 O poder temporal estava centralizado no
imperador e o espiritual nas mãos do papa. Em ambos sua fonte estava em Deus, e, portanto,
desobedecer tais poderes era o mesmo que desobedecer ao próprio Deus e arcar com as
consequências da infidelidade, contudo, o poder espiritual era superior, se aquele poderia
matar o corpo, este poderia matar a alma, pois, mediava a salvação eterna ao temporal. Esta
teoria ganhou corpo e influência na Idade Média e estava em pleno vigor no período da
Reforma Protestante. Deste modo, o herege era um marginal social, alguém que não somente

309
“A „heresia‟ era definida em termos de desafios à autoridade da igreja, da perspectiva daqueles que estavam
sendo desafiados. Assim, um relato puramente histórico do conceito de heresia na Idade Média deve definir a
ortodoxia em termos de ensinamentos papais e a heresia em termos de dissensão desses ensinamentos. A heresia
se tornou, cada vez mais, um conceito jurídico. Enquanto o período patrístico via a heresia como um desvio da
fé católica, os juristas dos séculos 12 e 13 conseguiram redefinir o conceito em termos de rejeição da autoridade
eclesiástica, especialmente da autoridade papal. De acordo com a argumentação de Robert Moore, a ampliação
da categoria de heresia constituiu um instrumento importante de controle social. A redefinição medieval da
heresia situa o cerne da mesma no questionamento do poder papal e não no desvio da ortodoxia cristã. A heresia
tornou-se o meio pelo qual a sociedade classificava as tensões endêmicas sob uma categoria conceitualmente
religiosa. Deixou de ser um conceito teológico e passou a ser definido legal ou sociologicamente”. Alister
McGrath, Origens Intelectuais da Reforma, São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 41.
310
Richard P. McBrien, Os Papas: os pontífices: de São Pedro a João Paulo II, 2.a ed., São Paulo, Loyola, 2004,
p. 84.
116
vivia como um contraventor da lei, mas, acima de tudo, era alguém que se portava contra o
próprio Deus, segundo o catolicismo. Portanto, a execução dos hereges se constituía em um
elemento litúrgico e ritualmente simbólico com o objetivo de apagar completamente a
memória do herege na face da terra com um efeito didático para aqueles que possivelmente
viessem a ter qualquer interesse por movimentos contrários à Igreja Católica. O objetivo era
frear o progresso constante do crescimento numérico dos huguenotes na França, no entanto, a
perseguição e a morte da fogueira produziram o contrário, pois, os huguenotes iam à morte
com uma convicção inabalada, e acabaram se tornando os verdadeiros mártires da Reforma
Protestante na França do século XVI.311 Conclui Lindberg:

As execuções, então, acabaram se tornando um teatro de martírio no


sentido original da palavra “mártir”, ou seja, “testemunha”. As
execuções reforçaram a convicção dos huguenotes de que sua fé
representava um retorno à fé da Igreja primitiva, quando surgiu o
ditado de que “o sangue dos mártires é a semente da Igreja”. Uma
“morte boa” como essa dava testemunho de uma fé genuína e,
consequentemente, impressionava pelo menos alguns dos
espectadores. Em seu sofrimento, os mártires calvinistas buscaram
coragem e legitimação em modelos veterotestamentários de um povo
eleito e perseguido.312

Também devemos ressaltar a importância da influência exercida por Calvino na


França, mesmo residindo em Genebra.313 O protestantismo francês necessitava de apoio e
sustentação que lhes foram concedidos pela Igreja Reformada de Genebra. Por solicitação de
famílias nobres francesas, Calvino enviou pastores reformados para dar assistência aos seus
conterrâneos ávidos pela pregação bíblica exposta pelos reformados. As perseguições se
intensificaram sob o reinado (1547-1559) de Henrique II (1519-1559) que não possuía
qualquer apreço pelo Humanismo Renascentista e tão pouco necessidade em estabelecer
alianças políticas com os protestantes alemães, consequentemente, implicando em uma
intolerante perseguição mais dura do que a que fora realizada sob o reinado de seu pai
Francisco I.314 Henrique II “publicou editos decretando duras punições para práticas heréticas
como comer carne durante a quaresma e participar de reuniões não autorizadas. Também
instituiu um tribunal especial para casos de heresia, denominado, de modo apropriado, de la

311
John H. Leith, A Tradição Reformada: uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo, Pendão Real,
1996, p. 299.
312
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 334-335.
313
Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinismo na França: 1533-1633 in W. Stanford Reid, Calvino e sua
Influência no Mundo Ocidental, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 87-109; Jules Michilet, Histoire
de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 78-89.
314
Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 116-
134.
117
chambre ardente, a câmara ardente”.315 Tal câmara, criada em 1549 no Parlamento de Paris,
com a função de investigar as heresias, possuía as seguintes determinações: “os delatores
ganhavam um terço dos bens dos hereges (estímulo para a calúnia); era proibido vender ou
possuir livros heréticos (estímulo para a intolerância); todo herege era passível de pena capital
(estímulo para a crueldade); e, finalmente, devia haver uma seleção dos juízes, arma
indispensável para o arsenal da tirania”.316

O clero da Igreja Católica alegava que sua autoridade estava sendo usurpada, não
como dissentimento, por causa do modo atroz com o qual os protestantes eram tratados, mas
porque sua soberania fora atingida. As penas aplicadas aos acusados de promover a heresia
reformada eram intensamente tirânicas e cruéis, chegando até mesmo a arrastá-los pelas ruas e
esquartejá-los ainda em vida.317 Desta feita, uma prática que frequentemente ocorria, dizia
respeito aos pastores genebrinos quando eram enviados à França como missionários, estes
assinavam documentos que transferiam suas propriedades para suas famílias, porque,
certamente ao entrarem naquele país para a atividade da pregação reformada não retornariam
com vida.318 O contexto de dura perseguição fora aplacado quando da repentina morte de
Henrique II que morreu devido a ferimentos gerados durante um combate em um torneio de
cavaleiros.

As ideias calvinistas atingiram diversas camadas da estrutura social francesa no século


XVI, tanto representantes de classes mais abastadas financeiramente, como artesãos,
comerciantes e banqueiros, quanto pessoas de classes sociais mais limitadas
economicamente.319 Em grande medida esta ampla influência esteve associada à prática da
ética calvinista que enfatizava os conceitos de vocação e uso social das riquezas, e também ao
modelo de pregação simples e acessível, bem como ao padrão do modo de culto reformado,
especialmente no que concerne à metrificação dos Salmos para o francês que possibilitava a

315
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 336.
316
André Maurois, História da França, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1950, p. 151.
317
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 337.
318
“Em 1567, Genebra tinha enviado pelo menos 120 pastores à França para organizer congregações, que, por
causa da perseguição, geralmente viviam uma existência clandestina. Não obstante isso, a Igreja Reformada
espalhou-se rapidamente por toda a França. Uma das chaves de seu sucesso foi o gênio organizacional que ela
tomou de empréstimo à Igreja genebrina de Calvino. O primeiro sínodo nacional da Igreja Reformada da
França reuniu-se em Paris em 1559. Ele apresentou uma confissão de fé, a Confissão Galicana, cujo primeiro
rascunho foi escrito por Calvino”. Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p.
337.
319
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p.
66, 67.
118
participação de todos os membros da Igreja Reformada no canto congregacional.320 Contudo,
a própria prática do cantar os Salmos metrificados se constituiu em um elemento
amalgamador estruturante, que produziu uma identidade resistente perpassando a todo o
protestantismo francês, gerando unidade e ímpeto diante das perseguições sofridas durante
este período de guerras de religião. Os Salmos metrificados foram cantados durante as lutas e
até mesmo quando eram queimados vivos na fogueira muitos entoavam estes mesmos Salmos
como uma afirmação de sua vívida fé e esperança futura. Tal ato se tornou tão deveras
marcante que transtornava os algozes, de modo que as autoridades incomodadas com tamanho
testemunho vívido de fé, buscaram impedi-los até mesmo cortando a língua dos condenados à
morte.321

Carlos IX subiu ao trono após uma série de divisões ocorridas na coroa francesa, no
entanto, o rei possuía apenas dez anos de idade quando veio ao trono, tornando-se sua mãe a
regente, contudo, implicando na implementação de um governo que trouxe benefícios para os
huguenotes322, mas, por um curto espaço de tempo. No exercício do governo da França,
Catarina contou com a assistência do seu chanceler Michel de l‟Hôpital (1507-1573)
promovendo uma política de moderação com respeito às questões religiosas de sua época,

320
“Calvino aboliu o coro medieval e enfatizou o canto congregacional. Hoje, é difícil recuperar a vibração do
culto na linguagem do povo, bem como uma nova experiência com o canto congregacional. Como já foi
demonstrado, Calvino preferia os salmos. Ao mesmo tempo que traduziu alguns do Saltério de 1539, ele se valia
dos grandes talentos poéticos de Clemente Marot e Teodoro Beza. Em 1539, o primeiro Saltério de Calvino
continha dezenove salmos. Teodoro Beza completou o Saltério por volta de 1562. Os salmos, postos em rima
francesa por Marot e Beza e musicados por Luis Bourgeois e Cláudio Goudimel, tornaram-se um dos livros mais
importantes da reforma. Tiveram muitas edições e foram traduzidos para o alemão, holandês, italiano, espanhol,
boêmio, polonês, latim, hebraico e ingles. Foram usados também por católicos romanos, luteranos e outros”.
John H. Leith, A Tradição Reformada: uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo, Pendão Real, 1996,
p. 299.
321
“O cântico dos salmos tornou-se essencial para a piedade calvinista. Os protestantes franceses, ao serem
levados para a prisão ou para a fogueira, cantavam salmos com tanta veemência que foi proibido por lei cantar
salmos e aqueles que persistiam tinham sua língua cortada. O salmos 68 era a Marselhesa huguenote”. John H.
Leith, A Tradição Reformada: uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo, Pendão Real, 1996, p. 299.
322
Sobre a origem e significado do nome huguenote, expõe Maurois: “Calvino expôs-lhes uma doutrina tão
francesa quanto a de Lutero era alemã. Filho de um procurador de Noyon, publicou em 1536 A Instituição
Cristã, e nesse mesmo ano foi para Genebra, cidade livre imperial, que tinha adotado a Reforma com suas
confederadas Friburgo e Berna (confederados: eidgenossen, donde derivou a palavra huguenotes)”. André
Maurois, História da França, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1950, p. 152. Já Davis mostra outra
origem: “O quanto os protestantes eram vistos como vasos da poluição é sugerido por uma crença popular a
respeito da origem do nome “huguenote”. Na cidade de Tours, le roi Huguet era o nome genérico para os
fantasmas que, em vez de passar seu tempo no purgatório, voltavam para bater portas, assombrar e magoar as
pessoas à noite. Os protestantes saíam à noite para seus lascivos conventículos, e assim os padres e o povo
começaram a chamá-los de huguenotes em Tours e depois em outros lugares. Os protestantes eram assim tão
sinistros como os espíritos dos mortos, os quais se tentava apaziguar em seus túmulos no Dia de Todos os
Santos”. Natalie Zemon Davis, Culturas do Povo: sociedade e cultura no início da França Moderna, 2.a ed.,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 133-134.
119
trazendo benefícios aos protestantes.323 Eis as principais medidas que foram tomadas:
“suspensão da perseguição; liberdade para Condé e outros prisioneiros huguenotes; permissão
para que os nobres huguenotes da corte organizassem seus cultos em separado; e designação
de novos tutores católicos, de tendência liberal, para o jovem rei”. 324 Um dos pontos mais
elevados do governo regencial de Catarina quanto à discussão religiosa esteve na convocação
para um debate teológico público entre protestantes e católicos, chamado de Colóquio de
Poissy realizado entre os meses de setembro e outubro de 1561, que fora arquitetado pelo
chanceler l‟Hôpital com o intuito de promover a unidade político-social na França.325 O tom
do discurso de abertura do Colóquio que fora pronunciado por l‟Hôpital era o da tolerância
religiosa através do diálogo mútuo entre as partes discordantes, no entanto, o primaz da
França o cardeal Tournon, apresentou um protesto com veemência, antes mesmo da entrada
dos huguenotes no recinto, que contrariava a própria essência do colóquio, argumentando que
os hereges deveriam ser julgados e não ouvidos como se estivem no mesmo nível de
igualdade dos católicos. Mesmo a despeito do protesto, o rei por influência de sua mãe,
ordenou a entrada dos huguenotes, concedendo-lhes o direito à palavra.326

A delegação huguenote era composta por onze ministros vindos de Genebra e vinte
leigos que representavam diversas igrejas calvinistas da França. A posição calvinista, no
Colóquio, teve como porta-voz Teodore Beza (1519-1605), nascido em uma família nobre da
Borgonha e possuidor de uma erudição singular. Devido às próprias perseguições aos
huguenotes na França teve que exilar-se por treze anos na Suíça, tornando-se um amigo muito
próximo de Calvino, além de professor de Bíblia na Academia de Genebra. Por Beza ser
proveniente de uma família de nível análogo aos seus ouvintes do Colóquio e por causa de sua
produção intelectual reconhecida, pôde desfrutar do direito de ser ouvido com algum nível de
respeito por parte dos dignatários reais e eclesiásticos. Beza começou o seu pronunciamento
com uma oração e de um modo natural todos os huguenotes se puseram de joelhos,
provocando a surpresa de todos os membros do Colóquio. A eloquência de Beza na discussão

323
“O novo rei, Carlos IX, tinha dez anos. Era totalmente um Valois, isto é, débil, amável, esteta e preguiçoso.
Dessa vez tornava-se necessária uma regência e Catarina de Medicis a conseguiu para si, ameaçando os Guises
com os Bourbons, e os Bourbons com os Guises, e concitando todos os partidos à pacificação. Sentindo-se sem
autoridade, ela sorria para os dois campos inimigos”. André Maurois, História da França, São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1950, p. 156.
324
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 342.
325
Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique Biloghi, Guy le Thiec, Histoire et Dictionnaire des Guerres
de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998, p. 1210.
326
Cp. Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p.
184-188.
120
de temas teológicos relacionados à Trindade e à Encarnação de Cristo chamou a atenção de
Catarina e até mesmo dos seus oponentes católicos. Tudo indicava que a possibilidade de um
acordo seria algo aparentemente possível, no entanto, quando Beza passou a discutir sobre a
presença de Cristo na Eucaristia, ficaram evidentes as diferenças que impossibilitariam um
acordo efetivo. Os representantes católicos não apresentaram argumentação capaz de refutar
a teologia calvinista, contudo, deixaram evidente que a proposta de conciliação tensionada por
Catarina não era possível de ser efetivada e apontaram que a solução católica estava no
Concílio de Trento327, que neste momento estava ocorrendo. No entanto, Catarina ainda
insistia na conciliação entre as partes ao manter no Colóquio os huguenotes Beza e
Coligny.328

O Colóquio de Poissy não conseguiu produzir um acordo teológico entre católicos e


huguenotes que poderia ter estabelecido a paz na França do século XVI, conforme fora
pretendido por Catarina, contudo, determinou e influenciou as estruturas de pensamento que
geraram um edito de tolerância no ano seguinte, em janeiro de 1562, concedendo algum grau
de liberdade aos huguenotes. Os protestantes franceses conquistaram o acesso à corte e a
liberdade de culto fora permitida, no entanto, somente na particularidade dos lares. Embora,
com tais decisões que apontavam para supostamente o futuro de uma França religiosamente
mais permissiva, na verdade este ambiente amigável não durou mais do que um mês. Quando
Catarina tomou ciência da insatisfação da família Guise com respeito à liberdade religiosa e a
hostilidade espanhola provocada pela condescendência aos huguenotes que o edito
possibilitou, a rainha movida por razões políticas retrocedeu em suas ações de tolerância
religiosa.329 Antônio de Bourbon (1518-1562), duque de Vendôme e rei de Navarra, pai de
Henrique IV (1553-1610) futuro rei da França, uma das forças huguenotes, resolveu mudar de
lado quando percebeu esta mudança no espírito político de seu país. Deste modo os
huguenotes foram perdendo sua força para levar a França ao protestantismo, no entanto, ainda

327
A resposta da Igreja Católica Apostólica Romana à Reforma Protestante é elaborada em termos de
declarações doutrinárias oficiais e ações enérgicas – por eles reconhecido – no 19.º Concílio Ecumênico
realizado na cidade italiana de Trento de 1545 a 1563. Algumas dificuldades permearam a realização deste.
Dentre elas, atrasos diversos na convocação por razões políticas, obrigando ao papa Paulo III (1534-1549) a
adiá-lo por várias vezes. Eram tantos os assuntos a serem tratados que levou cerca de dezoito anos para chegar
ao seu formato final, abarcando o papado de cinco papas diferentes, além de paralisações que forçaram a
realização de três períodos distintos em suas sessões. São eles: Sessões 1 a 10, 13 de dezembro de 1545 a 2 de
junho de 1547 (Paulo III); Sessões 11 a 16, 1 de maio de 1551 a 28 de abril de 1552 (Juliano III); Sessões 17 a
25, 17 de janeiro de 1562 a 4 de dezembro de 1563 (Pio IV).
328
André Maurois, História da França, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1950, p. 157.
329
Cp. Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p.
196-201.
121
permanecia como uma minoria religiosa que se reunia à revelia dos poderes políticos.
Francisco de Lorraine (1519-1563), duque de Guise, em primeiro de março de 1562 foi o
protagonista do chamado Massacre de Vassy, levando consigo cerca de duzentos homens
armados matando setenta huguenotes desarmados e deixando muitos feridos.330 Esta matança
se tornou um divisor de águas, instigando outros atos de carnificina contra os huguenotes,
potencializando as práticas intolerantes do período lastimável das guerras de religião na
França do século XVI. As perseguições e a consequente carnificina se intensificaram com os
sermões proferidos por parte dos católicos estimulando a participação popular na tentativa de
extermínio dos huguenotes.331 Estes sermões versavam sobre o tema da purificação da
heresia do meio da Igreja Católica, onde os hereges deveriam ser exterminados da sociedade e
da igreja332, mesmo diante dos editos reais de tolerância, culminando no deplorável Massacre
de São Bartolomeu333 (1572), que segundo Ribard foi “uma orgia de sangue”.334 Aponta
Delumeau: “Quanto à França, de acordo com Coligny, havia, em 1562, mais de 2150
comunidades reformadas que reuniam um quarto da população do reino. A partir dos anos
1560, os avanços do protestantismo foram mais lentos do que na época de Lutero e
debateram-se com uma defesa católica mais forte”.335

Um dos mais importantes representantes do protestantismo francês no período foi o


almirante Gaspar de Coligny (1519-1572) exercendo influência junto ao rei Carlos IX (1550-
1574), filho de Henrique II e Catarina de Medici (1519-1589).336 Coligny possuía livre
acesso à corte até o momento que antecede o Massacre de São Bartolomeu em 24 de agosto
de 1572. A história de Catarina foi marcada pela oscilação constante, uma hora pendia para o
protestantismo e outra para o catolicismo, contudo, o que nunca mudou foram suas pretensões
políticas, o seu lado da controvérsia permaneceu sempre o seu próprio lado. Quando Carlos
IX atingiu a maioridade, a influência de Coligny sobre ele continuava e na mesma proporção

330
Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 202-
208.
331
“Era, pois, todo um clima geral de agressividade e de rejeição aos reformados que se alastrava pelo reino,
clima este compartilhado por diversas camadas da população”. Carmen Lícia Palazzo, Entre Mitos, Utopias e
Razão: os olhares franceses sobre o Brasil (Séculos XVI a XVIII), Porto Alegre, EDIPUCRS, 2002, p. 55.
332
“O restabelecimento da Inquisição sob a forma de Santo Ofício, no ano de 1542, às vésperas, portanto, da
abertura dos trabalhos do Concílio de Trento, pode ser lembrado como uma manifestação desse mecanismo de
“pressão” utilizado pela Igreja para desencorajar a liberdade de pensamento, conter as “heresias” e liquidar os
inimigos reais ou potenciais”. Flávio Luizetto, Reformas Religiosas, 3.ª ed., São Paulo, Contexto, 1994, p. 54.
333
Jules Michilet, Histoire de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 218-
222.
334
André Ribard, História do Povo Francês, São Paulo, Editora Brasiliense, 1945, p. 109.
335
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 118.
336
Vd. Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique Biloghi, Guy le Thiec, Histoire et Dictionnaire des
Guerres de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998, p. 794-796.
122
a preocupação dos católicos de que o rei pendesse para o apoio aos Países Baixos de
orientação calvinista contra a ocupação da católica Espanha, assim Catarina, apreensiva com
o futuro de seu filho, começou a articular o afastamento de Coligny da corte. Com o auxílio
de Henrique de Guise começou a articular a morte de Coligny, chegando até mesmo à
contratação de um matador de elite para o serviço, no entanto, o almirante foi apenas ferido
nesta primeira tentativa, gerando uma completa desestabilização psicológica em Catarina,
pois, começaram a surgir comentários infundados de que Coligny juntamente com os
huguenotes estariam premeditando a morte dela e de seus filhos, associado a isto, a
possibilidade de perda de poder, moveu Catarina a convencer o rei Carlos IX a permitir a
execução dos huguenotes.337 A rainha revelou ao seu filho todo o complô que havia feito
contra Coligny, argumentando que estaria perdida caso seu filho não a ajudasse a ir até o final
com os planos para matá-lo, contudo, o seu real desejo fora o de exterminar todos os
huguenotes.338 Catarina alegava, segundo alguns supostos boatos que os huguenotes rebeldes
se insurgiriam contra o reino, deveriam ser completamente exterminados. A ação de
extermínio dos huguenotes deveria ser urgente, antes que, supostamente estivessem
preparados para atingir o rei, todavia, o principal interesse de Catarina era agir o rápido
suficiente para que ninguém tomasse conhecimento de sua tentativa de assassinar Coligny, e
deste modo, ela mesma ser executada em pagamento pelo crime cometido.339

As circunstâncias em torno do Massacre da Noite de São Bartolomeu tem como ponto


central um casamento que visava a reconciliação entre as partes envolvidas na disputa
teológico-política. Henrique de Navarra e Margarida de Valois, os nubentes. O casamento
ocorreu em 18 de agosto e as festividades se estenderiam por dias. Os portões de Paris foram
fechados sob as ordens de Carlos IX para que os huguenotes não entrassem na cidade. A
força militar real ficou posicionada estrategicamente. Um dos principais nomes que lideraram
o massacre foi Claude Marcel340, considerado um católico fanático e defensor dos Guise, que

337
“Catarina de Medicis tinha percebido o risco que corria conservando Coligny e continuando a dar o seu apoio
ao Partido protestante. Resolveu tomar a dianteira sobre o duque de Guise traindo os reformados. A noite de
São Bartolomeu em 1572, foi assim decidida por Catarina de Medicis e seu filho querido, o futuro Henrique III,
com o fito de fazer reconhecer por todos, tanto os príncipes quanto o povo e os comerciantes, “o rei e a sua
justiça”. O massacre foi uma orgia de sangue. Matou-se durante quinze dias em Paris e na província. O
almirante Coligny foi a primeira vítima. Carlos IX, cuja responsabilidade neste crime a história pens poder tirar,
morreu dois anos depois”. André Ribard, História do Povo Francês, São Paulo, Editora Brasiliense, 1945, p.
109.
338
André Maurois, História da França, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1950, p. 160.
339
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 348.
340
Vd. Arlette Jouanna, Jacqueline Boucher, Dominique Biloghi, Guy le Thiec, Histoire et Dictionnaire des
Guerres de Religion, Turin, Robert Laffont, 1998, p. 1071-1074.
123
em pessoa instruiu ao exército sobre as ordens do rei para matar a todos os huguenotes. Listas
com os nomes dos huguenotes foram fornecidas para sistematizar as mortes e deste modo
facilitar o extermínio. “Ao sinal dado pelo rei, os huguenotes, que de nada suspeitavam,
foram massacrados em suas camas, a começar pelo golpe final em Coligny, cujo corpo foi
jogado da janela de seus aposentos, mutilado e aviltado por dias a fio pelas turbas
católicas”.341

Expõe Delumeau que não bastava apenas matar os huguenotes, mas os algozes
intolerantes e violentos membros do exército real foram além: “Quantas vezes, durante a
Revolução Francesa, não se fez desfilar nas ruas, na ponta dos piques, a cabeça das vítimas!
Do mesmo modo, no dia de são Bartolomeu, Coligny morto foi castrado, decapitado, lançado
ao Sena, depois içado e pendurado pelas pernas no patíbulo do Montfaucon; inúmeros
protestantes, por ocasião do mesmo massacre, uma vez condenados à morte foram,
desnudados, arrastados pelas ruas, empurrados no rio”.342 E continua Delumeau a sua
descrição:

Catarina de Médicis fizera com que se decidisse pela execução de


certo número de chefes huguenotes. Mas o governo não tinha a
intenção de massacrar todos os reformados de Paris. Ora, o poder real
foi ultrapassado pela rebelião parisiense, que, apesar dos apelos à
calma por parte das autoridades, tomou de assalto as ruas da capital
durante quase cinco dias com seu cortejo de atrocidades: vítimas
desnudadas, arrastadas e lançadas ao Sena, mulheres grávidas
estripadas, cestos cheios de crianças despejados no rio etc., gestos que
se assemelham àqueles praticados no século XVI pelos tupinambás no
Brasil contra os prisioneiros de guerra, à exceção apenas do
canibalismo final.343

Esta comparação final também é realizada por Jean de Léry em sua História de uma
Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, a qual analisaremos à frente.
Delumeau em outra obra conclui: “Entre os fiéis de Cristo, o ódio estava ao rubro. Francisco
I deixou massacrar 3000 Valdenses no sul de França. Filipe II liquidou os protestantes de
Espanha em cinco grandes autos-de-fé. Cerca de 30.000 aderentes da Reforma foram vítimas,

341
Carter Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 349. Cp. Jules Michilet, Histoire
de France: Guerres de Religion, Sainte-Marguerite sur Mer, Équateurs, 2008, p. 309-318.
342
Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente: 1300-1800 uma cidade sitiada, São Paulo, Companhia das
Letras, 2009, p. 290.
343
Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente: 1300-1800 uma cidade sitiada, São Paulo, Companhia das
Letras, 2009, p. 273. Cp. Carmen Lícia Palazzo, Entre Mitos, Utopias e Razão: os olhares franceses sobre o
Brasil (Séculos XVI a XVIII), Porto Alegre, EDIPUCRS, 2002, p. 56; Sérgio Cardoso, Uma Fé, Um Rei, Uma
Lei: a crise da razão política na França das Guerras de Religião in Adauto Novaes (org.), A Crise da Razão,
São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 173-174.
124
em França, do massacre de S. Bartolomeu e das suas sequelas”.344 A interpretação de Davis é
pertinente, observemos:

Podemos ver essas multidões sendo inspiradas por tradições políticas e


morais que legitimam e até prescrevem sua violência. Podemos ver os
integrantes de levantes urbanos não como uma massa miserável,
instável e sem raízes, mas como homens e mulheres que
frequentemente têm uma certa posição em sua comunidade, que
podem ser artesãos ou algo melhor e que, mesmo quando pobres e não
qualificados, podem parecer respeitáveis para seus vizinhos de todos
os dias. Por último, podemos ver sua violência, não importa o quão
cruel ela seja, não como casual e sem limites, mas dirigida a alvos
definidos e escolhida dentre um repertório de punições e formas de
destruição tradicionais”.345

Giacomo Martina, historiador católico, interpreta este momento da história francesa


como uma luta de interesses da nobreza, e não somente como uma disputa de força entre
calvinistas e católicos. O massacre de São Bartolomeu teria sido então, motivado por uma
suposta reação dos calvinistas. O lamentável é a reação da cúria romana, pois, “Gregório
XIII, todavia, como seu núncio em Paris, viu no acontecimento um fato positivo, a derrota dos
heréticos e o retorno da França à unidade da fé, e celebrou o acontecimento com um Te
Deum, com uma medalha comemorativa e com uma bula”.346

Para o historiador inglês Peter Burke o massacre foi movido pelo fato dos huguenotes
aumentarem em força, provocando a mudança do governo, que passou da tolerância à
perseguição e extermínio.347 Catarina, quando possibilitou liberdade de culto aos huguenotes,
provocou a ira católica, em um plano popular, pois, o clima de intolerância se encontrava
mais violento nas classes mais baixas na população da França no século XVI. Os católicos se
sentiram traídos pelo governo e passaram se organizar. Em 1576 criaram a Liga Católica com
abrangência nacional com o objetivo de defender os seus interesses políticos. Neste contexto
expõe Burke:

Por que a maioria católica odiava a minoria protestante com tal


violência? As pessoas ainda não estavam acostumadas à diversidade
religiosa naquele período e se sentiam ameaçadas por ela. A maioria

344
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 121.
345
Natalie Zemon Davis, Culturas do Povo: sociedade e cultura no início da França Moderna, 2.a ed., Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 130-131. Cp. Natalie Zemon Davis, Culturas do Povo: sociedade e cultura no
início da França Moderna, 2.a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 137.
346
Giacomo Martina, História da Igreja de Lutero a nossos dias, Vol. II – A era do absolutismo, 2.ª ed., São
Paulo, Loyola, 2003, p. 174. Cp. Armesto, Derek Wilson, Reforma: o Cristianismo e o mundo 1500-2000, Rio
de Janeiro, Record, 1997, p. 316-322.
347
Peter Burke, Montaigne, São Paulo, Loyola, 2006, p. 47.
125
dos católicos franceses (embora não Montaigne) odiava e temia os
huguenotes como odiava e temia os judeus, os turcos e as bruxas (e
como os protestantes ingleses odiavam e temiam os “papistas”). O
massacre de São Bartolomeu foi uma tentativa de apaziguar a Deus e
purificar a comunidade mediante a destruição dos não-conformistas.348

Em muitos casos, a interpretação, tanto da Reforma Protestante, como já fora


analisada anteriormente, quanto a do próprio período das Guerras de Religião na França do
século XVI não pode ser reduzida a razões políticas e econômicas, mas, devemos salientar
que o cerne da motivação estava pautado em razões teológicas determinadas pela intolerância
segundo os parâmetros do catolicismo que entedia como hereges a todos quanto não se
submetiam aos ditames de suas leis e, portanto, passíveis de punição ao custo da própria vida.
Neste contexto, o huguenote, o calvinista era o Outro dentro do próprio Cristianismo, no
entanto, este Outro era motivo de perseguição pelos católicos, pois, por ser proveniente das
classes nobres ricas em sua grande maioria, se tornavam mais perigosos politicamente.349
Estas relações entre católicos e protestantes, em especial o modo como os católicos trataram
os calvinistas, determinaram em grande medida as interpretações de Jean de Léry em sua
obra, que analisaremos nos próximos capítulos. A França das guerras de religião foi o lugar
de partida rumo à França Antártica e a possibilidade de viver o Evangelho em liberdade e
pregá-lo aos índios tupinambás.

348
Peter Burke, Montaigne, São Paulo, Loyola, 2006, p. 47.
349
“O Calvinista era o Outro dentro do próprio cristianismo. Herético, porém não totalmente marginal, já que,
em várias cidades, detinha o poder político e se constituía na elite local. Mas as perseguições se davam em dois
níveis: incentivadas e mesmo coordenadas pela Corte quando era de seu interesse e executadas em larga escala
por uma população católica, que era facilmente manipulada pela nobreza na perseguição às heresias”. Carmen
Lícia Palazzo, Entre Mitos, Utopias e Razão: os olhares franceses sobre o Brasil (Séculos XVI a XVIII), Porto
Alegre, EDIPUCRS, 2002, p. 56.
126
O Rio é mordido por sua baía até o
coração; desembarca-se em pleno centro,
como se a outra metade, nova Ys, já
tivesse sido devorada pelas ondas. E em
certo sentido é verdade, pois a primeira
cidade, simples forte, ficava nessa ilhota
rochosa que havia pouco o navio roçava e
que continua a ter o nome do fundador:
Villegaignon. Ando pela avenida Rio
Branco onde outrora erguiam-se as aldeias
tupinambá, mas carrego no bolso Jean de
Léry, breviário do etnólogo. (Claude
Lévi-Strauss).350
Para o conhecimento da história social do
Brasil não há talvez fonte de informação
mais segura que os livros de viagem de
estrangeiros – impondo-se, entretanto,
muita discriminação entre os autores
superficiais ou viciados por preconceitos
– os Thévet, os Expilly, os Debadie – e os
bons e honestos da marca de Léry, Hans
Staden, Koster, Saint-Hilaire, Rendu,
Spix, Martius, Burton, Tollenare,
Gardner, Mawe, Maria Graham, Kidder,
Fletcher. (Gilberto Freyre).351

4 – A França Antártica

Seguindo em nosso propósito de reconstruir o lugar histórico social de Jean de Léry,


passaremos agora a considerar o ambiente diretamente ligado ao relato de viagem, ou seja, a
tentativa de estabelecimento da colônia francesa em terras brasileiras no século XVI. A
origem utópica da França Antártica reporta a uma festa brasileira ocorrida em Rouen, capital
normanda, em primeiro de outubro de 1550, realizada com o intuito de recepcionar o rei,
influenciando Henrique II (1519-1559), que após a sua triunfal entrada juntamente com sua
esposa Catarina de Médicis, os índios tupinambás trazidos do Brasil lhes foram apresentados

350
Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 77. Itálico e negrito meu.
351
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal, 51ª. ed. revista, São Paulo, Global, 2006, p. 47.
127
como verdadeiros troféus exóticos provenientes da América. Para esta festa brasileira352 que
os governantes de Rouen prepararam com a finalidade de chamar à atenção do rei, foram
construídas aldeias cenográficas às margens do rio Sena e cerca de trezentos atores, todo nus,
se apresentaram, entretanto, o maior espanto esteve no fato de que cinquenta destes
intérpretes, não eram nem franceses, tão pouco atores, mas verdadeiros índios tupinambás
provenientes do Brasil. No teatro armado ao ar livre eram representadas cenas do cotidiano
dos índios, como caça, alimentação, guerras, etc... todos devidamente paramentados, ou quase
nada paramentados, apenas pintados com urucum para disfarçar a sua nudez.

Relata Bonnichon que o fato foi registrado de imediato por meio de uma gravura, e
descreve em detalhes o evento: “duas galeotas deslizam pelo Sena, movidas por remadores
cujos escudos levam as armas de França e as do Grande Almirante Claude D‟Annebault,
enquanto uma chalupa tripulada por índios brasileiros, nus, se dirige a uma ilha arborizada do
rio, a qual simboliza a sua terra natal”.353 A encenação fora extremamente elaborada em seus
detalhes realistas:

Via-se também a derrubada do pau-brasil e sua troca, com os


marinheiros franceses, por machados, foices e cunhas de ferro; a
madeira, levada a um forte, era transportada depois em batéis até um
grande navio de duas gáveas ou cestos-de-gávea, fundeados ao largo,
empavesado com as armas de França e as bandeiras ao vento. O
navio, de pontes corridas, era guarnecido de artilharia, com sua fileira
de luzes de proa a popa, nas mesas das enxárcias e nas suas
portinholas ao longo do costado.
O auge da representação foi um combate simulado entre os
Tupinambás e seus inimigos; os marinheiros, que, devido às
numerosas viagens tinham traficado, e durante muito tempo residido
com os selvagens, não perdiam nada para estes em naturalidade,
durante sua representação.354

As relações culturais entre a França e o Brasil não tiveram seu início nesta festa, mas,
desde o início do século a presença francesa no litoral brasileiro já ocorria de um modo
constante, no entanto, o interesse era o pau-brasil que as naus francesas vinham buscar no
litoral brasileiro, sem qualquer tentativa de estabelecer alguma morada permanente, como a

352
Vd. Ferdinand Denis, Uma Festa Brasileira celebrada em Rouen em 1550, São Bernardo do Campo, Usinas
de Ideias/Bazar das Palavras, 2007.
353
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 403.
354
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 403-404.
128
encenação em Rouen bem expressou.355 Esta festa que marca e delimita as relações entre os
dois países ocorreu como uma expressão indelével do acúmulo de capital cultural adquirido
em poucos anos anteriores, contudo, “cristalizando o passado, anunciando as tentativas do
futuro, a festa de 1550 é como um sinal da mutação”356 que culminaria, em um primeiro
momento, com a França Antártica. Já no ano seguinte à festa brasileira, 1551, Henrique II
envia um piloto e o cartógrafo de Havre, chamado Le Testu ao Brasil com o intuito de fazer
um reconhecimento cartográfico a fim de coletar informações sobre os recursos locais com
vistas a uma futura exploração sistemática e possível estabelecimento francês nestas terras.
Por conseguinte, “Le Testu coligiu numerosas informações geográficas, etnográficas e
econômicas, que registrou numa coleção de cinquenta e seis cartas dedicadas ao Almirante
Coligny”.357 Observemos um pequeno fragmento do relato de Le Testu sobre o Brasil,
revelando uma das primeiras impressões que influenciaram aqueles que se aventuraram na
empreitada da França Antártica:

Esta peça é a demonstração de uma parte da América ou as regiões,


tanto do Brasil canibal quanto do reino da Prata, situadas na zona
tórrida sob o primeiro clima do antidia meroes e terminando no meio
do quatreisme, clima antidia rodou. Cercadas pela costa de setentrião
do oceano dos Canibais e das Antilhas, e na costa do oriente o grande
mar oceano. Todos os habitantes desta terra são selvagens, não tendo
conhecimento de Deus. Os que moram no cimo do equinócio são
malignos e malvados e comem carne humana. Os que habitam mais
distanciados do equinócio, estando mais no vale, são tratáveis. Todos
os ditos selvagens, tanto no monte quanto no vale, andam nus, tendo
suas casas cobertas de lascas de madeira e de folhas. Eles guerreiam
ordinariamente uns contra os outros, a saber os das montanhas contra
os da beira-mar. Esta região é fértil em milho e mandioca, que é uma
raiz branca da qual fazem a farinha para comer, pois não fazem pão.
Também há grandes nabos de gosto muito melhor do que os da
França, ananás, que é uma fruta deliciosa, e várias outras espécies de
frutas. Esta terra nutre também javalis, lobos, cervos, cotias, tatus e
várias espécies de feras, com um grande número de aves parecidas
com as da França. Papagaios de diversas plumagens. As mercadorias
desta terra são algodão, pau-brasil, pimentas e madeiras que servem
para a tintura com enormes vinhais das quais se fazem terços e cintos

355
Sobre a presença francesa em terras brasileiras na primeira metade do século XVI vide Philippe Bonnichon, A
França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério da Marinha, Serviço de
Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 404-420.
356
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 404.
357
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 423.
129
para as mulheres. Os citados habitantes são grandes pescadores de
peixe e muito bons atiradores de arco.358

A postura dos franceses, puramente dedicada ao escambo, principalmente pelo pau-


brasil, é modificada pela proposta de criação de uma expedição colonizadora do Brasil feita
pelo oficial naval Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) ao almirante Gaspar de
Coligny, a qual começava pela ocupação da ilha de Guanabara. Deste modo, Henrique II,
influenciado por Coligny, investiu em dois navios bem aparelhados e bem armados, ao custo
de dez mil francos destinados aos custos da viagem colonizadora, que Lopez e Mota
enfatizam que fora “destinada, em pleno trópico de Capricórnio, a tornar-se o espelho da
intolerância religiosa da metrópole”.359

A figura principal na criação da expedição, Villegagnon, se constitui em um


personagem paradoxal na história da França Antártica. Porque, por um lado, conforme
Hemming, “parecia idealmente qualificado para liderar uma expedição colonizadora. Era um
homem culto, que estudara teologia na Sorbonne na mesma época que Calvino. Era também
homem de ação”.360 Por outro lado, no comando da expedição, era considerado um homem
“truculento”361 e detentor de “uma personalidade complexa”362 e de “caráter extremado”.363
Em um momento parecia inclinado ao protestantismo, para logo em seguida mostrar-se como
um católico ferrenho.364 No entanto, descreve Bonnichon com propriedade sobre Villegagnon
afirmando se tratar de um homem...

358
Ferdinand Denis, Uma Festa Brasileira celebrada em Rouen em 1550, São Bernardo do Campo, Usinas de
Ideias/Bazar das Palavras, 2007, p. 85, 87.
359
Adriana Lopez, Carlos Guilherme Mota, História do Brasil: uma interpretação, São Paulo, Senac, 2008, p.
84.
360
John Hemming, Ouro Vermelho, São Paulo, Edusp, 2007, p. 189.
361
Adriana Lopez, Carlos Guilherme Mota, História do Brasil: uma interpretação, São Paulo, Senac, 2008, p.
84.
362
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 428. Ainda escreve
Bonicchon: “Perseguidor dos infiéis, faustoso mas cheio de rigor, temperamento íntegro, sua personalidade tinha
aspectos de Dom Quixote. O caráter extremado trouxe-lhe inimizades que o importunaram até ao delírio da
perseguição. Cavaleiro de Malta, difamou seu Grão-Mestre, Diretor dos trabalhos do Porto de Brest, iniciou
uma querela com o governador, em favor do qual o rei decidiu. Magoado profundamente, Villegagnon pensou
em expatriar-se. Humanista de talento e latinista, frequentou os Du Bellay, em Roma; homem de letras, colocou
sua pena a serviço de sua espada”. Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval
Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro,
1975, p. 428.
363
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 428.
364
“Villegagnon é frequentemente representado como figura dúbia, que obteve o apoio para sua aventura com os
calvinistas (por meio do almirante Coligny, um simpatizante dos huguenotes que se tornaria um eminente líder
do movimento protestante na França), e também com os católicos (com a ajuda do cardeal de Lorraine, líder do
130
...de fé ardente, inspirada nas meditações sobre as Escrituras e os
Antigos, tinha teologia, antes de tudo, sincretista, coroando uma
procura ansiosa, que o tornou „herético aos olhos dos jesuítas
portugueses‟ e „piedoso católico aos olhos dos jesuítas franceses‟, ao
sabor de suas sinceridades sucessivas; na época, embora acessível à
Reforma, não era militante do Protestantismo.365

O projeto da França Antártica se constituía na tentativa de organização de uma colônia


que deseja povoar e ocupar o território brasileiro, convergindo ideias e interesses
anteriormente surgidos. A expedição iniciou com um recrutamento deveras plural dos seus
integrantes, já que, os elementos constituíam-se de fidalgos tanto protestantes quanto
católicos, militares escoceses da guarda pessoal, artesões, agricultores e trabalhadores em
geral. O apelo público gerou a vinda de aventureiros e marginalizados da sociedade, e
possíveis prisioneiros, provavelmente alguns reformados, muitos dos quais estavam na prisão
acusados de heresia. A soma total foi de cerca de seiscentos homens. 366 Após a aprovação da
proposta expedicionária, os navios zarparam do porto de Havre de Grâce em 12 de julho de
1555, Villegagnon e sua comitiva chegaram ao Brasil em 10 de novembro de 1555. 367

Segundo Jean de Léry em sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil,
também chamada América, testemunha de muitos dos fatos, relata que Villegagnon se
encontrava contrariado com a situação na França e desejava um lugar onde pudesse servir a
Deus livremente segundo os princípios reformados:

Em 1555, um senhor Villegagnon, cavaleiro da Ordem de Malta,


também conhecida por Ordem de São João de Jerusalém, desgostoso
da França e também da Bretanha, onde então residia, manifestou a
vários personagens notáveis do reino o desejo extremo que de há
muito alimentava, não só de retirar-se para um país longínquo onde
pudesse, livre e limpamente, servir a Deus, de acordo com o
Evangelho reformado.368

Não somente isto, mas segundo Jean de Léry, desejava Villegagnon criar um refúgio
para os perseguidos pela intolerância religiosa na França. Argumentava o almirante de modo

clero católico na França)”. César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no
Brail Colonial (1500-1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 126.
365
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 428.
366
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 429.
367
Gilberto Ferrez, A França Antártica: a expulsão dos invasores in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II,
Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 448.
368
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 75.
131
extremamente elogioso descrevendo a beleza da terra com o intuito de conquistar aliados à
sua empreitada. Villegagnon neste momento se mostrava como uma pessoa cordata, e mais
ainda, como um verdadeiro adepto da fé reformada, provavelmente com o interesse de
conquistar seguidores. Obviamente, diante de tantas atrocidades que estavam ocorrendo na
França das guerras de religião, não seria difícil algum reformado acolher positivamente a
ideia da expedição, tendo em vista a possibilidade de tolerância religiosa diante de seus olhos
como uma realidade tão convincentemente oferecida pelo idealizador do projeto colonial.
Enfatiza Léry:

E desse modo, e com tão belo pretexto, conseguiu a boa vontade de


alguns fidalgos adeptos da Religião reformada e que, dotados dos
mesmos sentimentos que Villegagnon professava, desejavam
encontrar semelhante retiro. Entre estes figurava o finado senhor
Gaspar de Coligny, de feliz memória, almirante de França que, bem-
visto e acatado pelo rei Henrique II, então reinante, a este expôs que se
Villegagnon fizesse a viagem poderia descobrir muitas riquezas e
outras coisas de proveito para o reino. (...)
Antes de partir de França, Villegagnon prometeu a alguns honrados
personagens que o acompanhariam, fundar o puro serviço de Deus no
lugar em que se estabelecesse. Depois de contratar os marinheiros e
artesãos necessários, partiu em maio de 1555, chegando ao Brasil em
novembro, após muitas tormentas e toda espécie de dificuldades.369

Após cerca de três meses de viagem e muito sofrimento, especialmente o escorbuto e a


falta de água potável, Villegagnon juntamente com sua comitiva chega à Baía da Guanabara,
também chamada de Genèvre pelos franceses. A ilha de Serigipe, assim chamada pelos
tupinambás, que hoje leva o nome do Cavaleiro de Malta foi o lugar escolhido para fixarem-
se. Relata Léry:

Ali aportando, desembarcou e imediatamente se instalou em um


rochedo na embocadura de um braço de mar ou rio de água salgada a
que os indígenas chamavam Ganabara e que (como o descreverei
oportunamente) fica a 230 abaixo do Equador, quase à altura do
trópico de Capricórnio. Mas o mar daí o expulsou. Obrigado a
retirar-se, avançou quase uma légua em busca de terra e acabou por
acomodar-se numa ilha deserta. Depois de desembarcar sua artilharia
e demais bagagens, iniciou a construção de um forte, a fim de se
proteger tanto dos selvagens como dos portugueses que viajam para
aquele país e aí já possuem inúmeras fortalezas.370

369
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 76.
370
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 76.
132
Desde o início da implantação da França Antártica, o modelo de administração
adotado por Villegagnon fora excessivamente rígido, imprimindo extremo controle em todos
os aspectos da vida dos colonos, e ao impor cargas tão duras, os integrantes da empreitada
sucumbiram rapidamente. O desespero logo tomou conta de todos, visto que viviam de certo
modo limitados geograficamente tendo diante de si a imensidão das terras brasileiras, o clima
tropical que não estavam acostumados, penosos trabalhos que eram forçados a realizar, além
das doenças constantes a que foram acometidos; tudo esta situação abalou “o físico e o moral
dos colonos”.371 A interpretação de Bonnichon é enfática:

O mundo de Villegagnon reduzia-se àquela ilha. Era excelente sítio


militar, o único inconveniente sendo a falta de agua potável. Foi
construído um forte, trabalho de todos, inclusive dos indígenas.
Recebeu o nome de Coligny. As casas dos colonos foram construídas
em torno, ao estilo da terra. Uma vez entrincheirados nesta nova Ilha
de Malta, os colonos ali permaneceram enclausurados pelo chefe que,
temendo a degeneração dos costumes no contato com os indígenas,
implantou disciplina de ferro. Assim limitado, o empreendimento
colonial se destinava ao fracasso; a mentalidade obsidional do
Cavaleiro entravava sua ação no continente.372

A intransigência moralista de Villegagnon levou-o a perseguir aqueles que já


habitavam a tempos com as índias ou viessem posteriormente a viver maritalmente com elas.
Em 1556 coagiu um normando que já há cerca de sete anos viva com uma índia a regularizar
sua situação sob pena de morte, no entanto, o tal homem reagiu premeditando um levante
contra Villegagnon aliciando alguns membros da própria colônia e, juntamente com estes,
também alguns índios. Villegagnon conseguiu reprimir o levante, contudo, ficou encurralado
na ilha sem mantimentos e bebendo a água esverdeada da chuva de uma cisterna suja
existente no forte.

Villegagnon necessitava de homens, cerca de três a quatro mil, para conquistar o


território brasileiro, pois, em 1557 obrigado pela precariedade com a qual estava sujeito,

371
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 429.
372
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 429. “O estabelecimento não
poderia subsistir senão através do intercâmbio com as tribos indígenas; para isto, necessitaria ser constantemente
reaprovisionado com mercadorias vindas da França; do contrário, a força teria que ser empregada. Os habitantes
da ilha deviam contar de imediato com os indígenas e os franceses já estabelecidos no Brasil, vivendo nas tribos;
por falta de base sólida no continente, deviam morar no forte Coligny, pois havia sempre a ameaça de uma
ofensiva portuguesa, que poderia vir a agravar a situação”. Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão
in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da
Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 429.
133
enviou missões para averiguar a possibilidade de mudança de localização da colônia. Buscou,
então, o apoio dos reformados para levar à diante do seu projeto de ocupação. “Tendo sido os
protestantes os mais firmes sustentáculos de seu estado-maior, ele se dirigiu a Calvino para
obter novos quadros”,373 contudo, “a carta-pedido original não se preservou, mas o resultado
mostra a intenção”.374 Jean Crespin na obra História dos Mártires Perseguidos e Mortos pela
Verdade do Evangelho relata o contexto da solicitação de Villegagnon:

Na maior diligência que lhe foi possível, fez saber aos ministros da
cidade de Genebra a necessidade de pastores e ceifeiros onde ele
estava, tendo para ali se retirado somente para ouvir as leis e ordens de
Deus. E, como há muito tempo havia concebido uma santa opinião de
suas vidas e reformas da religião cristã, ele havia tido a audácia de
lhes pedir como irmãos, para lhe prestar socorro, favor, conselho e
ajuda, a fim de que eles participassem igualmente dos benefícios e da
lembrança durável da honra que poderia daí vir, prometendo fazer
muito boa e honesta acolhida àqueles que para lá fossem enviados,
tanto na viagem quanto no dito país. Ele pedia, com um ou dois
ministros, algumas pessoas de profissão, casadas ou não, de igual
conhecimento, mesmo mulheres e moças para povoar tal nova terra.
Pois previa que com grande dificuldade o país seria habitado por outro
modo.375

Registra Jean de Léry:

Fingindo sempre que ardia de zelo para adiantar o reinado de Jesus


Cristo e procurando persuadir com empenho a sua gente, ao serem
seus navios carregados de regresso à França, escreveu e mandou por
um deles um emissário a Genebra para requisitar ministros religiosos
que o ajudassem e socorressem, na medida do possível, nessa sua tão
santa empresa. E, no intuito de prosseguir com diligência na obra que
empreendera e desejava levar avante com todas as suas forças, pedia
ainda que lhe enviassem, não só ministros da palavra de Deus, mas
também algumas outras pessoas bem instruídas na religião cristã a fim

373
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 430.
374
Frans Leonard Schalkwijk, O Brasil na Correspondência de Calvino in Fides Reformata Fides Reformata IX,
N.º 1. São Paulo: Mackenzie, 2004, p. 102; cp. Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares
europeus sobre o índio e sua religiosidade, São Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 35; Leslie Bethel (ed.), The
Cambridge History of Latin America, vol. 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1984, p. 276; Wufert De
Greef, The Writings of John Calvin: an introductory guide, Westminster John Knox Press, 2008, p. 56; “Em
parte por vontade de melhor conhecer as novas doutrinas, em parte para aumentar os recursos da colônia com a
introdução de colonos livres e inteligentes, o vice-rei da „França Antártica‟ escreveu diretamente a Calvino, seu
antigo condiscípulo na Universidade de Paris, comunicando-lhe seus projetos. Calvino acolheu com carinho a
imprevista solicitação”. Paul Gaffarel, Notícia Biográfica in Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, Belo
Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 20-21.
375
Jean Crespin, História dos Mártires Perseguidos e Mortos pela Verdade do Evangelho in Nicolas Durand de
Villegagnon, Rio de Janeiro, Fundação Darci Ribeiro, 2009, p. 135.
134
de melhor aprimorar a si e aos seus e mesmo abrir aos selvagens o
caminho da salvação.376

A Igreja de Genebra responde afirmativamente e demonstra interesse missionário


diante da solicitação e da oportunidade que lhe surge como meio de expansão do reino de
Deus em terras além Atlântico. Relata Léry que a igreja de Genebra, ao receber as cartas de
Villegagnon solicitando o envio de protestantes para a França Antártica reagiu dando “graças
ao Eterno pela expansão do reino de Jesus Cristo em país tão longínquo, em terra estranha e
entre um povo que ignorava inteiramente o verdadeiro Deus”.377 Continua Léry:

Em seguida, atendendo aos pedidos de Villegagnon, o finado senhor


almirante, a quem também se escrevera para o mesmo efeito, solicitou
por carta a Philippe de Corguilleray, senhor Du Pont (que se havia
retirado para perto de Genebra e fora seu vizinho em Châtillon-sur-
Loing, em França), que fizesse a viagem a fim de conduzir os que
desejassem instalar-se nessa terra do Brasil. A mesma solicitação foi-
lhe feita também pela igreja e seus ministros de Genebra e, embora já
fosse velho e se sentisse alquebrado, o senhor Du Pont, animado pelo
grande desejo que tinha de empregar-se em tão bela obra, concordou
em fazer o que lhe era requerido, abandonando todos os seus negócios,
para ir tão longe, deixando para trás seus filhos e sua família.378

Em seguida Jean de Léry narra o processo de escolha dos ministros da palavra de Deus
que veem à França Antártica, portanto, mais uma vez evidenciando o caráter missionário da
empreitada, pelo menos por parte dos calvinistas. Após serem sondados pelo senhor Du Pont
“e seus amigos, alguns bacharéis que então estudavam teologia em Genebra” 379, os ministros
Pierre Richier, que já contava cinquenta anos de idade, e Guillaume Chartier,
espontaneamente se colocaram às disposição da igreja de Genebra, caso fossem julgados
aptos a realizarem tal missão. Richier e Chartier foram apresentados aos ministros de
Genebra “que os ouviram sobre alguns trechos das Santas Escrituras e os advertiram sobre
seus deveres, aceitaram ambos voluntariamente transpor o mar com o senhor Du Pont a fim
de juntarem-se a Villegagnon para anunciar o Evangelho na América”.380

376
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 76-77.
377
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77.
378
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77.
379
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77.
380
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77.
135
O senhor Du Pont fez uma escolha criteriosa de modo deveras honesto na exposição
da realidade que aguardava àqueles que se lançassem nesta jornada missionária pelo Novo
Mundo, não deixando margem para ilusões ou intensões distorcidas para aqueles que
desejavam se lançar nesta empreitada. Du Pont foi enfático, afirmando que “seria necessário
contentarem-se com certa farinha feita de raízes em lugar de pão; que não teriam vinho nem
notícias dele, já que não havia aí parreiras e, finalmente, que no novo mundo (conforme
informava Villegagnon) far-se-ia preciso levar uma vida em tudo e por tudo diferente da vida
em nossa Europa”. 381 O resultado foi uma espécie de separação entre àqueles que estavam
dispostos a pagar o preço necessário à pregação do Evangelho em terras distantes, e àqueles
que preferiam não arriscar o seu bem estar. Expõe Jean de Léry: “com isso, todos aqueles que
amavam essas coisas apenas na teoria e que não aspiravam mudar de ares nem suportar as
ondas e o calor da zona tórrida, nem ver o Polo Antártico, recusaram-se a se alistar e embarcar
em tal viagem”.382 Temos aqui uma prova evidente de que os calvinistas que vieram ao Brasil
no século XVI não estavam preocupados com o seu bem-estar, mas acima de tudo, tinham o
objetivo de pregar o Evangelho nestas terras, tese que ficará evidente quando abordarmos o
presente tema no último capítulo.

Contudo, mesmo diante de tão grande possibilidade de sofrimento, além da certeza das
imensas dificuldades, os seguintes nomes persistiram na missão:

Depois de muitos convites e solicitações, alguns, por certo os mais


corajosos, se apresentaram para acompanhar Du Pont, Richier e
Chartier. Foram eles: Pierre Bordon, Matthieu Verneuil, Jean du
Bordel, André Lafon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David,
Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jaques Rousseau e eu, Jean de
Léry que, tanto pela vontade de Deus como por curiosidade de ver
aquele mundo novo, fiz parte da comitiva.383

Em 10 de setembro de 1556, quatorze calvinistas iniciam a partir de Genebra a longa


jornada de cerca de duas mil cento e cinquenta léguas rumo ao Brasil.384 Passaram por
Châtillon-sur-Loing, seguiram a Paris onde permaneceram por cerca de um mês, passaram a
Rouen e seguiram para o porto de Honfleur na Normandia onde esperaram por mais um mês a

381
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 78.
382
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 78.
383
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 78.
384
Olivier Reverdin. Quatorze Calvinistes chez les Topinambous: histoire d‟une mission genevoise au Brésil
(1556-1558), Genéve/Paris, Droz/Minard, 1957, p. 09.
136
conclusão dos preparativos dos navios para embarcarem e seguirem viagem, que somente
ocorreria em 19 de novembro do corrente ano. Uma partida recheada de uma grande plateia
presente que ovacionava os corajosos aventureiros. Seguindo-se a uma viagem onde
enfrentariam grandes perigos diante de embarcações inimigas, além das tormentas seguidas,
doenças diversas, forte calor na linha do Equador, dentre outras dificuldades frequentes nas
viagens oceânicas do período. Em 26 de fevereiro de 1557, por volta das oito horas da
manhã, os viajantes avistam o Brasil pela primeira vez. Descreve Léry: “Não é preciso dizer
que muito nos alegramos e demos graças a Deus por estarmos tão perto do lugar de nosso
destino. De fato, já se haviam passado cerca de quatro meses que não víamos porto e
flutuávamos no mar, não raro com a ideia de que nos encontrávamos em um exílio sem
saída”.385

Seguiram costeando a terra rumo à Guanabara, passaram pelo Espírito Santo, já assim
denominado pelos portugueses; após isto, relata Léry: “em primeiro de março, alcançamos
uma região de pequenos baixios, isto é, escolhos e restingas salpicadas de pequenos rochedos
que entram pelo mar, e que os navegantes evitam passando ao largo na medida do
possível”.386 No dia 3 de março chegam à região do Cabo Frio; segue descrevendo Jean de
Léry: “desfraldando as velas, navegamos tão bem que no domingo, 7 de março de 1557,
deixando o mar alto à esquerda, do lado de leste, encontramos no braço de mar chamado
pelos selvagens de Ganabara e de rio de Janeiro, pelos portugueses, que assim o
denominaram por tê-lo descoberto, como afirmam, no dia 10 de janeiro”.387

Após estes eventos deu-se a tão esperada chegada e o desembarque no forte de


Colginy, e também a recepção concedida por Villegagnon aos calvinistas em terras
brasileiras, evidenciando o seu aparente comportamento como um suposto apreço à religião
reformada.

Depois de os navios terem ancorado em terra firme, todos cuidaram de suas


respectivas bagagens, levando-as aos escalares. Seguiram diretamente para a ilha, para o forte
Coligny. A primeira ação dos calvinistas, nas palavras de Léry, foi “depois de pôr o pé nessa

385
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 97.
386
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 100.
387
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 103-104.
137
terra, para onde havíamos sido conduzidos com tanta felicidade, foi todos juntos rendermos
graças a Deus”.388 Logo em seguida foram ter com Villegagnon que os aguardava, assim que
se encontraram “ele a todos abraçou muito risonho”.389 O senhor Du Pont juntamente com os
ministros reformados Richier e Chartier expuseram a razão principal que os movera à viagem
ao Novo Mundo realizada em meio a tantos perigos e de acordo com as cartas enviadas à
Genebra, desejavam erigir “nossa Igreja reformada, conforme com a palavra de Deus”. 390 O
interesse dos calvinistas fora essencialmente missionário como podemos observar.391 Léry
registra literalmente a resposta de Villegagnon: “quanto a mim, desde muito e de todo o
coração desejei tal coisa e recebo-vos de muito bom grado, porque também almejo que nossa
Igreja seja a mais bem reformada de todas, que os vícios sejam reprimidos, o luxo do
vestuário, condenado, e removido de nosso meio tudo quanto possa prejudicar o serviço de
Deus”.392 Villegagnon ainda estava “reformado” neste momento, pelo menos aparentava.

Logo em seguida, Villegagnon “erguendo depois os olhos ao céu e juntando as mãos


disse: „Santo Deus, rendo-te graças por me teres enviado o que há tanto venho ardentemente
pedindo‟”.393 Após, ao retornar o olhar para os calvinistas, afirmou:

Meus filhos (pois quero ser vosso pai), assim como Jesus Cristo nada
teve deste mundo para si e tudo fez por nós, assim eu (esperando que
Deus me conserve a vida até nos fortificarmos neste país e poderdes
dispensar-me) tudo pretendo fazer por todos aqueles que aqui vierem
com o mesmo fim que viestes. É minha intenção criar aqui um
refúgio para os fiéis perseguidos em França, na Espanha ou em
qualquer outro país de além-mar, a fim de que, sem temer o rei nem o
imperador nem quaisquer potentados, possam servir a Deus com
pureza conforme a sua vontade.394

388
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 105.
389
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 105.
390
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 105.
391
Olivier Reverdin. Quatorze Calvinistes chez les Topinambous: histoire d‟une mission genevoise au Brésil
(1556-1558), Genéve/Paris, Droz/Minard, 1957, p. 09.
392
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 105.
393
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 105.
394
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
138
Registra Jean de Léry deste modo as primeiras palavras de Villegagnon quando
recebeu os calvinistas “na quarta-feira, dia 10 de março de 1557”395, evidenciando ser ele um
homem extremamente caricaturado em suas ações. Convocou Villegagnon todos os
moradores do forte a se reunirem em uma pequena sala, construída no meio da ilha, onde foi
realizado o primeiro culto protestante nas Américas dirigido pelo ministro Richier. Registra
Léry: “cantamos em coro o salmo V e o dito ministro, tomando por tema as palavras do salmo
XXVII – „Pedi ao Senhor uma coisa que ainda reclamarei e que é a de poder habitar na casa
do Senhor todos os dias da minha vida‟, – fez a primeira prédica no forte Coligny, na
América”.396 Durante tudo o culto Villegagnon não cessou “de juntar as mãos, erguer o olhos
para o céu, dar fundos suspiros e fazer outros gestos que a todos nós pareciam dignos de
admiração”.397 Quando “terminadas as preces solenes conforme o ritual das igrejas
reformadas de França, e sendo marcado para elas um dia de semana, dissolveu-se a
reunião”.398

Os calvinistas permaneceram no mesmo local e fizeram a sua primeira refeição em


terras brasileiras. Comeram “farinha feita de raízes, peixe moqueado, isto é, assado à maneira
dos selvagens, e outras raízes assadas no borralho”.399 Para beber restou-lhes apenas a água
esverdeada e suja de uma cisterna que recolhia a água da chuva, no entanto, mesmo fétida e
corrompida, julgaram-na melhor do que aquela que haviam bebido durante a viagem. Para
encerrar a primeira refeição, registra Jean de Léry: “como sobremesa apropriada para
recuperar-nos dos trabalhos do mar, mandaram-nos carregar pedras e terra para as obras do
forte de Coligny, que se achava em construção. Esse foi o bom tratamento que nos deu
Villegagnon desde o primeiro dia de nossa chegada”.400 De fato, a descrição das dificuldades
na colônia como descritas anteriormente pelo senhor Du Pont ainda na Europa, tornaram-se
uma verdadeira realidade já no primeiro momento na colônia.

395
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
396
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
397
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
398
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
399
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
400
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106-107.
139
Quando chegou a hora de se recolherem, o senhor Du Pont e os ministros foram
acomodados em uma sala no meio da ilha, os demais recém-chegados foram alocados em um
casebre com cobertura de palha à beira-mar, construído por um escravo indígena de
Villegagnon, onde armaram suas redes de dormir e passaram as noites de sua estadia. Jean de
Léry registra o modo duro com o qual foram recebidos por Villegagnon, desde as primeiras
horas de sua chegada ao Brasil: comida escassa, trabalho duro “desde de madrugada até a
noite”401, mesmo a despeito da fraqueza que se encontravam após tão dura viagem até a
América; nada parecido com um pai, como Villegagnon gostava de ser chamado pelo índios.
No entanto, os calvinistas movidos pelo desejo “de ver concluído o refúgio” 402, que
Villegagnon dizia ser preparado para os cristãos fiéis, não cessavam de trabalhar duramente
com o intuito de ver construída a França Antártica. Foram motivados também pela instrução
do ministro Richier, que julgava ter encontrado em Villegagnon um “novo São Paulo”403, e de
fato, Léry afirmava que nunca havia ouvido “ninguém pregar melhor do que ele então a
reforma da religião”404, pelo menos por hora, pois, logo depois passou a mostrar-se como
sempre foi, adepto do catolicismo intolerante da mesma qualidade daquele evidenciado na
França das guerras de religião que os huguenotes haviam deixado para trás. Deste modo,
movidos pelas melhores intenções, todos trabalharam com alegria, além de suas forças por
mais de um mês, em trabalhos que não lhe eram costumeiros. Bem expõe Lestringant:

Na ilhota exígua que ainda hoje tem seu nome e onde ele reunira suas
forças, por receio de uma surpresa dos portugueses ou dos índios
hostis, seu chefe, o cavaleiro de Malta Nicolas Durand de
Villegagnon, logo cedia à febre obsidional. Não contente de ter
provocado a hostilidade dos tupinambás da costa, aliados tradicionais
dos franceses, mas que são atingidos, pouco depois da chegada dos
navios, por uma epidemia inexplicável, ele impõe ainda aos colonos
uma disciplina das mais rigorosas. Submetendo homens apenas
desembarcados de uma navegação de três a quatro meses a um regime
de trabalhos forçados, com o objetivo de fortificar o mais depressa
possível o sítio ocupado.405

401
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 107.
402
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 107.
403
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 107.
404
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 107.
405
Frank Lestringant, A outra conquista: os huguenotes no Brasil in Adauto Novaes (org.), A Descoberta do
Homem e do Mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 420.
140
Conseguiu Villegagnon apresentando-se como um “adepto” da religião reformada,
muito provavelmente agindo de um modo deveras sagaz, conquistar o apoio de todos os
huguenotes para levar a cabo seus interesses no forte Coligny, e não somente isto, mas,
também determinou que além das preces públicas realizadas diariamente, segundo a ordem
reformada, que eram efetuadas todas as noites, ainda determinou que os ministros Richier e
Chartier proferissem sermões duas vezes aos domingos e, igualmente em outros dias da
semana por pelo menos uma hora. Ordenou Villegagnon que os sacramentos fossem
administrados segundo a ordem reformada, e em consonância com a disciplina eclesiástica
aplicada aos pecadores, conforme era realizado em Genebra. Assim sendo, fica evidente que
o almirante Villegagnon parecia conhecer muito bem as nuances e práticas litúrgicas da
religião reformada, porque, de outro modo, não poderia apresentar-se tão bem caracterizado
como tal.

Os ministros calvinistas seguiram a determinação de Villegagnon, em 21 de março de


1557, um domingo, foi celebrado pela primeira vez a “Santa Ceia de Nosso Senhor Jesus
Cristo no forte Coligny”.406 Testemunha Jean de Léry que após “findo o sermão,
Villegagnon, aparentando zelo, levantou-se e alegou que os capitães, mestres, marujos e
algumas pessoas presentes que ainda não professavam a Religião reformada; estes deviam,
portanto, sair porque não estavam aptos a assistir ao mistério da administração do pão e do
vinho”.407 O almirante demonstrava um suposto zelo pela administração do sacramento da
Ceia do Senhor, obviamente com um certo tom de exagero em relação ao que era de fato
realizado pela Igreja Reformada em Genebra. Contudo, as expressões de aceitação da religião
reformada por parte do almirante não pararam, mas o próprio Villegagnon, em voz alta
pronunciou duas orações a fim de dedicar o forte a Deus e confessar publicamente sua suposta
fé reformada abertamente diante de todos os presentes no forte, pelo menos em aparência.408

406
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 107.
407
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 108.
408
Seguem as orações proferidas por Villegagnon e registradas por Léry:
“Meu Deus, abre os olhos e a boca de meu entendimento, acostuma-os a Te dirigir confissão, preces, e ações de
graça pelo muito bem que nos tens feito. Deus onipotente, vivo e imortal, pai eterno de Teu filho Jesus Cristo,
Nosso Senhor, que por Tua própria providência governas com Teu filho todas as coisas no céu e na terra, assim
como pela Tua bondade infinita te fizeste ouvir aos Teus escolhidos desde a criação do mundo, especialmente
por Teu filho que enviaste à terra e pelo qual Te manifestas, tendo dito em voz alta: “ouvi-o” – e, depois de sua
ascensão, por Teu Espírito Santo difundido entre os apóstolos –, reconheço de coração, perante a Tua Majestade
e a Tua Igreja, neste país implantado por graça Tua, que nunca os meus atos passaram de uma obra surgida das
trevas, da carne e da vaidade, voltados apenas para a satisfação de meu corpo. É com lealdade, portanto, que
confesso que, sem a luz de Teu Espírito Santo, só me é possível pecar; e, despojando-me de toda glória, quero
141
409
Após as preces, ajoelhou-se diante da mesa da Ceia do Senhor para receber o pão e o
vinho das mãos do ministro. Para Léry todas estas ações de Villegagnon foram pura

que saibam todos que, se alguma virtude existe na obra pia que por meu intermédio fizeste, é a Ti somente, fonte
de todo o bem, que ela deve ser atribuída. Rendo-Te graças, meu Deus, de todo o coração, por te haveres
dignado tirar-me do mundo em que vivia, por ambição, para colocar-me pela inspiração de Teu Santo Espírito,
no lugar onde eu possa, com toda a liberdade e todas as minhas forças, contribuir para o aumento de Teu Santo
Reino. E assim faço, preparando lugar de morada pacífica para os que não podem invocar publicamente o Teu
nome, nem santificá-Lo e adorá-Lo, em espírito e verdade, nem reconhecer em Teu filho, Nosso Senhor Jesus
Cristo, o único mediador e o único mérito da nossa salvação. Agradeço-Te ainda, ó Deus de suprema bondade,
porque, ao me conduzires a este país de ignorantes de Teu nome e grandeza, Tu me preservaste da malícia de
Satanás e Tu lhes incutiste terror a ponto de, à simples menção de nosso nome, tremerem de medo. Tu os
obrigastes a alimentar-nos com seu trabalho e, para refrear a sua brutal impetuosidade, os afligiste com cruéis
moléstias, preservando-nos delas, entretanto. Eliminaste os que nos eram perigosos e reduziste os outros a tal
estado de fraqueza que nada ousam empreender contra nós. E ainda Te aprouve não só permitir que lançassem
raízes neste lugar aqueles que para aqui conduziste sãos e salvos, como também estabeleceste o regime de uma
igreja para manter-nos unidos e no temor de Teu santo nome a fim de ganharmos a vida eterna.
Pois, já que Te aprouve, Senhor, erigir em nós o Teu reino, peço-Te por Jesus Cristo, Teu filho, que quiseste que
fosse hóstia para confirmar-nos em Teu amor, que aumentes as Tuas graças e a nossa fé, fortalecendo-nos e
iluminando-nos com Teu Espírito Santo, de forma a que todo o nosso esforço se empregue em Tua glória. Peço-
Te também, Senhor e Pai Nosso, que estendas a Tua bênção sobre este forte de Coligny e essa região da França
Antártica, para que se torne inexpugnável o refúgio daqueles que em boa consciência e sem hipocrisia aqui
venham a se abrigar para dedicar-se conosco à exaltação da Tua glória, e para que possamos invocar-Te no seio
da verdade sem sermos perturbados pelos hereges. Permite também que o Teu Evangelho reine neste lugar a fim
de que Teus servos não caiam no erro dos epicuristas e outros apóstatas, mas se mantenham fiéis à verdadeira
adoração da divindade, de acordo com a Tua santa palavra.
Praza a Ti também, ó Deus misericordioso, proteger o Rei, nosso Soberano e Senhor, bem como sua mulher, sua
progênie e seu conselho, e condescende em dar a este Teu humilde escravo a prudência necessária para ainda o
senhor Gaspar de Coligny, sua mulher e sua descendência, conservando-o todos na vontade de manter e defender
Tua Igreja; e não se desviar do verdadeiro caminho e resistir a todos os obstáculos que Satã lhe possa opor na
ausência de Teu auxílio. E praza a Ti também que sempre Te reconheçamos como nosso Deus misericordioso,
justo juiz, e conservador de todas as coisas, juntamente com Teu filho Jesus Cristo, que reina Contigo e com o
Espírito Santo baixado sobre os apóstolos. Cria, pois, em nós um coração reto, mortifica-nos com o pecado,
regenera-nos para que possamos viver com justiça e para que nossa carne se torne digna das ações da alma
inspirada por Ti, cumprindo a Tua vontade na terra como no céu a cumprem os anjos. Mas, por temor de que a
indigência em satisfazer nossas necessidades nos faça cair em pecado, desafiando Tua bondade, concorda em
prover a nossa vida e conservar a nossa saúde. E, assim como a carne terrestre se converte em sangue e alimento
do corpo, assim também nutre e sustenta as nossas almas com a carne de Teu filho, até que ele se consubstancie
em nós e nós nele, expulsando toda a malícia e substituindo-a pela caridade e pela fé, para que possamos nos
reconhecer como Teus filhos; e, se Te ofendermos, permite, Senhor de misericórdia, lavarmos os nossos pecados
no sangue de Teu filho, lembrando-Te que fomos concebidos na iniquidade e que, pela desobediência de Adão,
em nós reside o pecado. Sabe que nossa alma não pode executar o santo desejo de obedecer-Te através do corpo
imperfeito e rebelde. E em nome de Teu filho, Jesus Cristo, não nos imputes as nossas faltas, antes nos imputes
o sacrifício da sua morte e paixão, que pela fé temos sofrido com ele e penetrado pelo recebimento de seu corpo
no mistério da eucaristia. Da mesma forma, concede-nos graça para perdoarmos os que nos ofenderem e
procurarmos o seu bem, em vez de vingar-nos, agindo como se fossem nossos amigos e seguindo assim o
exemplo de Teu filho, que pediu por aqueles que o perseguiram. E, se formos atraídos pela ambição, pompas e
honras deste mundo, embora humilhados pela pobreza e pelo peso da cruz de Teu filho, seja a Tua vontade
tornar-nos obedientes; e a fim de que, perdidos na felicidade mundana, não nos rebelemos contra Ti, ampara-nos
e adoça a agrura das aflições de modo que as sementes que lançaste em nossos corações não sufoquem.
Rogamos-Te ainda, Pai celestial, que nos guardes das tentações com que Satanás busca desviar-nos; preserva-
nos de seus ministros e dos selvagens insensatos entre os quais Te aprouve jogar-nos e conservar-nos; livra-nos
dos apóstatas da Religião Cristã espalhados entre eles e chama-os à Tua obediência, a fim de que se convertam e
que Teu Evangelho se torne conhecido em toda a terra, e em todas as nações se proclame a Tua bem-
aventurança. Que vivas e reines com Teu filho e Espírito Santo por todos os séculos. Amém”. Jean de Léry,
História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy
Ribeiro, 2009, p. 108-111.
409
“Da América, outra oração a Nosso Senhor Jesus Cristo dita por Villegagnon na mesma ocasião:
142
ostentação vazia que não foi mantida por muito tempo, pois, mesmo tendo “abjurado
publicamente o papismo”410, possuía “mais vontade de discutir do que de aprender e
aproveitar, e muito tempo não se passou sem que promovessem disputas relativamente à
doutrina e sobretudo à Ceia”.411 No entanto, Villegagnon “mandou para a França o ministro
Chartier em um dos navios que, carregado com pau-brasil e outras mercadorias do país, partiu
em 4 de junho, a fim de trazer as opiniões dos doutores sobre a contenda da Ceia, e
principalmente a de Jean Calvino, a cujo parecer dizia Villegagnon submeter-se”.412 Pura
encenação daquele que fora chamado por Jean de Léry como o Caim das Américas.413

Villegagnon por diversas vezes apresentava-se determinado a seguir as orientações


teológicas do reformador João Calvino414, contudo, quando da realização da segunda Santa

Jesus Cristo, filho de Deus vivo, eterno e consubstancial, esplendor da glória de Deus, sua imagem viva, por
quem foram feitas todas as coisas, tu viste o gênero humano condenado pelo infalível juízo de Deus, Teu Pai, em
consequência da culpa de Adão, o qual poderia ter gozado da vida eterna, pois foi criado por Deus com terra não
poluída pela semente viril e dotado de toda a virtude, com liberdade de conservar-se na sua perfeição se,
provocado pela sensualidade da carne e movido pelos dardos inflamados de Satã, não se deixasse vencer,
incorrendo na ira de Deus; sem ti, Senhor nosso, ter-se-ia seguido a infalível perdição dos homens; mas, movido
por tua imensa e indizível piedade, tu te apresentastes a Deus, Teu Pai, humilhando-te a ponto de substituíres
Adão para sofrer toda a indignação de Deus e assim purificar-nos. E, da mesma forma que Adão fora feito de
barro não corrompido, sem semente viril, tu foste concebido do Espírito Santo em uma virgem para seres
formado de verdadeira carne como a de Adão, sujeita à tentação. Finalmente quiseste sofrer a morte para que,
como membros de teu corpo, Adão e toda a sua posteridade se alimentassem em ti e agradassem a Deus, Teu
Pai; e tu ofereceste a tua morte em satisfação das suas ofensas, como se ela fosse a de seus próprios corpos. E
assim como o pecado de Adão se transmitiria à sua posteridade – e, junto com o pecado, a morte –, tu quiseste e
pediste a Deus, Teu Pai, que tua justiça fosse imputada aos crentes, os quais, pela comunhão da tua carne e de
teu sangue, tu transformaste em ti mesmo, para viverem eternamente como filhos da justiça e não da ira. Se te
aprouve fazer-nos tantos benefícios e se, sentado à mão direita de Deus, Teu Pai, te constituísse nosso eterno
intercessor e nosso soberano sacerdote, tem piedade de nós, conserva-nos, fortalece e aumenta nossa fé; oferece
a Deus, Teu Pai, a confissão que faço de boca e de coração, em presença de tua Igreja, santificando-me com o
teu Espírito, como prometeste ao dizeres: – “Não vos deixarei órfãos”. Expande a tua Igreja neste lugar de modo
a que, em plena paz, sejas adorado com pureza. Que vivas e reines com Ele e com o Espírito Santo por todos os
séculos. Amém”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América,
Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 111-113.
410
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 113.
411
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 113.
412
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 113-114.
413
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 289.
414
“Costumava, com efeito, dizer e repetir estas palavras, que pude ouvir muitas vezes: – “o senhor Calvino é
um dos homens mais doutos que surgiram desde os apóstolos e nunca li ninguém que, no meu entender, melhor e
mais puramente tenha exposto e tratado as Santas Escrituras”. E para mostrar que o acatava, na resposta às
cartas que lhe trouxemos, não só se estendeu longamente sobre o estado geral das coisas, mas ainda (assim como
eu disse no Prefácio e se verá ainda no fim do original de sua carta do último dia de março de 1557, guardada em
lugar seguro) escreveu com tinta de pau-brasil e de seu próprio punho o seguinte: “Acatarei o conselho que me
destes em vossas cartas, esforçando-me com toda a vontade por não me desviar dele em coisa alguma. Pois em
verdade estou bem persuadido de que não pode haver outro mais reto, perfeito e santo. Por isso, mandei ler as
vossas cartas em reunião do nosso conselho e depois registrá-las, a fim de que sejamos, pela leitura delas,
143
Ceia, já demonstra outra inclinação teológica, provavelmente aquela que nunca havia
realmente abandonado, a católico romana. Interpreta Frank Lestringant: “Villegagnon
manifesta um comportamento bem estranho. Enquanto ostenta ortodoxia reformada, parece
ter permanecido papista na alma”.415 Para Léry, Villegagnon era guiado por um espírito
contraditório que “não soube se contentar com a simplicidade que a Escritura exige dos
verdadeiros cristãos em relação aos Sacramentos”.416 Quando a Santa Ceia é celebrada pela
segunda vez na colônia, Villegagnon já passou a apresentar ideias controversas, como a de
acrescentar água ao vinho, obrigar os reformados a crerem que “o pão consagrado
aproveitasse tanto à alma quanto o corpo”417, o dever de acrescentar sal e óleo à água do
batismo, e que um ministro não podia casar-se uma segunda vez.418 Resume Jean de Léry:
“Em suma, fiando-se tão somente em sua própria opinião, que não tinha fundamento na
palavra de Deus, tudo se pôs a dirigir a seu bel-prazer”.419 Logo após esta celebração da Ceia,
“Villegagnon declarou abertamente ter mudado de opinião sobre Calvino e, sem esperar
resposta à consulta feita por intermédio de Chartier, na França, declarou-o herege transviado
da fé”.420 Deste momento em diante, Villegagnon passou a agir com muita má vontade em
relação aos calvinistas, limitando os raros sermões a somente meia hora, sem estar mais
presente, o que antes fora muito comum a sua frequente assistência. A mudança foi motivada
possivelmente pelas cartas recebidas do cardeal de Lorena, entre outras, que censuravam
duramente a todos que haviam abandonado o catolicismo, deste modo, movido pelo temor das
consequências, retornou às práticas que estavam em consonância com sua verdadeira
crença.421 Do mesmo modo que mudara o clima político-religioso na França, também mudara
as ações de Villegagnon na França Antártica, ao que tudo indica, ser uma prática costumeira
sua no contexto da colônia. Constata Jean de Léry:

advertidos e afastados do mau caminho se viermos a fraquejar”.” Jean de Léry, História de uma Viagem feita à
Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 114.
415
Frank Lestringant, A outra conquista: os huguenotes no Brasil in Adauto Novaes (org.), A Descoberta do
Homem e do Mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 421.
416
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 116.
417
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 116.
418
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 116.
419
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 116.
420
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 118.
421
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 118.
144
Depois de meu regresso à França, ouvi dizer que antes de partir deste
país, para melhor usar do nome e autoridade do falecido senhor
almirante de Châtillon e mais facilmente abusar da Igreja de Genebra
em geral e de Calvino em particular, da qual procurava obter braços
para a empresa, Villegagnon se aconselhara com o cardeal de Lorena
de se mascarar com a Religião reformada. Como quer que seja, posso
assegurar que, por ocasião de sua rebeldia, como se tivesse a
consciência pesada, tornou-se tão neurastênico, que jurava a cada
instante pelo corpo de São Tiago que quebraria cabeça, braços e
pernas ao primeiro que o contrariasse; e ninguém mais ousava ir ter à
sua presença.422

Como resultado imediato os missionários calvinistas não se julgavam mais submissos


à vontade de Villegagnon, desta feita, segue-se, então, a perseguição de fato, contra os
calvinistas que habitavam a França Antártica. Como relata Jean de Léry, ao registrar que
Villegagnon “tentando matar-nos à fome ao proibir de nos darem as duas medidas de farinha
de raiz que era o que cada um de nós recebia diariamente”. 423 Culminando na expulsão dos
calvinistas do Forte de Coligny que seguem para o continente no final do mês de outubro de
1557. Léry afirma que possuíam meios de expulsar Villegagnon do forte, no entanto, para
que não houvesse quaisquer queixas contras os reformados que gerassem decepções entre os
calvinistas europeus, “nem se lançasse mácula sobre a nova doutrina”424, preferiram obedecê-
lo e deixar o forte sem contestações. Resolveram pagar o preço pela paz e por sua própria
imagem, mesmo a despeito de serem injustiçados. Retiraram-se os calvinistas após oito
meses de residência no forte, que haviam ajudado a construir, permaneceram no continente
por dois meses aguardando um navio que viria de Havre de Grâce para buscar pau-brasil que
os levaria de volta à Europa. Seguiram convivendo com os índios tupinambás, como lhes fora
costumeiro, e que os tratavam com mais humanidade do que o próprio patrício, pois, os
ajudaram dando-lhes tudo o que precisavam para a sua subsistência.425

Os conflitos religiosos na colônia pareciam refletir exatamente os conflitos


encontrados na própria França, contudo, o conflito central no Brasil sobre a Santa Ceia em
1557 antevê o tema central da discórdia que surgirá no Colóquio de Poissy de 1561.426 Tudo

422
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 118.
423
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 120.
424
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 122.
425
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 122.
426
“A controvérsia eucarística, que teve um epílogo trágico em 1558 com a morte de três mártires huguenotes,
anuncia a grande ruptura que, no desfecho do colóquio de Poissy, em setembro de 1561, preludia as guerras de
145
indica que as mudanças de humor na França determinaram a oscilação de interesses de
Villegagnon. Na França as perseguições se intensificaram a partir do reinado de Henrique II,
entre 1547 e 1559, que, ao contrário de seu pai Francisco I, não possuía qualquer necessidade
em estabelecer alianças políticas com os protestantes alemães, assim implicando em uma
intolerante perseguição contra os huguenotes. Henrique II promulgou editos que decretavam
até mesmo a morte para os hereges protestantes, a famigerada câmara ardente. Portanto, a
aparente esperança dada aos missionários calvinistas por Villegagnon rapidamente se
transformou em heresia aos seus olhos “pois sua busca espiritual o convenceu, através da
leitura dos Doutores da Igreja, que a tradição sobre a Eucaristia se explicava da mesma
maneira que na doutrina católica”.427 Neste contexto, “a partir do mês de maio de 1557, as
querelas recomeçaram, e a tirania de Villegagnon, tomado desde o início da vontade
apaixonada de combater a heresia, tornou irrespirável a atmosfera na colônia”. 428 Com todo
este clima de perseguição por parte de Villegagnon, a fuga dos calvinistas para o continente,
se tornou a única possibilidade de salvação. Portanto, os calvinistas seguiram com sua
motivação essencial de pregar o Evangelho de Cristo, como mostra Bonnichon, “os de
Genebra alcançaram o continente, estabelecendo-se no vilarejo às margens da baía, que Léry
chamou La Briqueterie. Ali tentaram ganhar a amizade dos indígenas e ensinar-lhes a fé”.429
E interpreta Lestringant: “o canibalismo real dos índios tupinambás é preferível à
antropofagia simbólica dos católicos da colônia. Quando Villegagnon, ao fim do debate
sobre a Eucaristia, deu aos calvinistas a possibilidade de verificar in situ uma similitude bem
fundada, os católicos mostraram-se piores que os canibais, incomparavelmente mais cruéis e
decididamente irrecuperáveis”.430

Este período passado na colônia (cerca de oito meses), somado ao tempo passado no
continente (mais ou menos dois meses), foi a experiência vivida por Jean de Léry que
fundamentou o seu relato que hora temos em mãos como objeto de estudo. O relato de Léry
de fato foi fundamentado em conhecimento de causa, pois segundo ele, esteve em vinte e duas

Religião”. Frank Lestringant, A outra conquista: os huguenotes no Brasil in Adauto Novaes (org.), A
Descoberta do Homem e do Mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 419.
427
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 431.
428
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 431.
429
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 431.
430
Frank Lestringant, A outra conquista: os huguenotes no Brasil in Adauto Novaes (org.), A Descoberta do
Homem e do Mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 423.
146
aldeias, além de frequentá-las familiarmente durante estes dez meses que permaneceu entre os
índios tupinambás, exemplo de historiador que é compromissado com a verdade, e não com a
criação imaginaria a partir do nada.431 Jean de Léry registra, segundo sua ótica calvinista,
aquilo que viu e viveu em terras brasileiras, como em realidade o é, um historiador
compromissado com fatos.

A viagem de retorno é tomada pelas lembranças das dificuldades sofridas na primeira


travessia atlântica, e também pelo gosto da terra que deixavam. O apreço que Jean de Léry
possuía pelos tupinambás e pela terra do Brasil é uma característica evidente em todo o seu
relato, mas fica expresso de um modo muito contundente quando de seu retorno à França
registra o seu desejo de permanecer nestas terras. Assinala Jean de Léry no contexto que
antecede o retorno à França:

Fizemo-lo, porém, com muita apreensão, tanto por causa da lembrança


das dificuldades que tivéramos na ida, como pelo fato de muito de
nós, que haviam encontrado na terra meios de servir a Deus e
apreciavam a bondade e a fertilidade do país, não desejarem regressar
à França, onde as dificuldades eram então, e são ainda,
incomparavelmente maiores no que concerne à religião e mesmo à
vida cotidiana. E teriam ficado se não fosse o tratamento recebido por
Villegagnon. Assim, ao dizer adeus à América, aqui confesso, pelo
que me diz respeito, que, embora amando como amo a minha pátria,
vejo nela a pouca ou nenhuma devoção que ainda subsiste e as
deslealdades que usam uns para com outros; tudo aí está italianizado e
reduzido a dissimulações e palavras vãs; por isso lamento muitas
vezes não ter permanecido entre os selvagens, nos quais, como
amplamente demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos
patrícios nossos com rótulos de cristãos, para sua condenação.432

No dia 04 de janeiro de 1558 os calvinistas conseguiram deixar o Brasil rumo à


França, contudo, embarcaram em um navio que estava em péssimas condições e já fazendo
água, um prenúncio das imensas dificuldades que estavam por vir. Neste momento Jean de
Léry quase retorna à França Antártica, mas diante do apelo de um de seus compatriotas
resolve retornar à embarcação e à viagem de volta a França, mesmo a despeito das condições
da embarcação. Cinco calvinistas resolvem retornar à colônia francesa, chagando lá
“imploram clemência a Villegagnon, que, no entanto, os condenou como hereges”. 433 Três

431
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 268.
432
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 271.
433
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 431.
147
destes foram condenados à morte, e ficaram conhecidos na história como os mártires da
Guanabara, os primeiros das Américas nesta lastimável categoria, um espelho da intolerância
religiosa que ocorria na França. “Pierre Bourdon, Jean du Bordel e Mathieu Verneuil foram
essas vítimas condenadas por Villegagnon por causa de sua religião”.434 André Lafon e
Jacques le Balleur foram poupados, o primeiro por ser alfaiate e segundo não temos o registro
do motivo. A viagem de volta à Europa durou cerca de vinte semanas extremamente difíceis,
perigo de naufrágio e fome extrema foram os companheiros inseparáveis do retorno ao velho
continente.

As notícias das dificuldades reinantes na França Antártica recebidas na França


produziram um arrefecimento do ímpeto de colonização no Brasil. Consciente da chegada
das notícias reais, do que de fato ocorria na França Antártica, relatadas por conhecedores de
causa, acabando por produzir uma propaganda contrária aos seus interesses, Villegagnon
retorna à França no final de 1559 para modificar esta perspectiva reinante e defender sua
causa pessoalmente, conforme relata Bonnichon: “agradou a uns e outros, distribuindo
cinquenta selvagens que havia levado consigo. Pretendia também encontrar apoio junto ao
partido católico dos Guises, um dos quais era Grão-Mestre de Malta, e junto aos jesuítas
franceses, aos quais apresentou um plano de missões, ao mesmo tempo que fretava sete
navios no Havre, devendo estes estar prontos para velejar antes da Páscoa”. 435 Contudo, os
jesuítas portugueses já haviam reagido contrariamente à empreitada de Villegagnon que se
tornou fracassada, consequentemente ao influenciarem o rei de Portugal, na época D. João III
(1502-1557), argumentando que “se os portugueses não conquistassem a totalidade do País,
acabariam por ser expulsos, em razão da penetração dos protestantes franceses, que
constituíam um enclave entre as capitanias do Norte e do Sul”. 436 Portugal convencido pelos
jesuítas, estava agora determinado a reaver completamente as terras brasileiras, desta feita a

434
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 289. “Ao lembrar-me de que, enquanto resistíamos aos mais diversos perigos,
esses servos fiéis de Jesus Cristo eram mortos, após mil tormentos; ao recordar-me de que cheguei a pôr os pés
no escaler, para com eles regressar; dei graças a Deus pelo meu salvamento individual, e senti-me mais do que
nunca no dever de fazer com que a profissão de fé desses três honrados personagens fosse registrada no livro dos
que em nossos dias foram martirizados na defesa do Evangelho. Por isso, entreguei-me nesse mesmo ano de
1558 ao impressor Jean Crespin, o qual, juntamente com a narrativa dos perigos por que passaram os três para
aportar à terra dos selvagens depois de nos deixarem, a inseriu no livros dos mártires”. Jean de Léry, História de
uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009,
p. 289.
435
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 431.
436
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 431.
148
ação era invadir a França Antártica e “em 21 de fevereiro de 1560, Mem de Sá entrou na Baía
de Guanabara”437 dando início ao processo de retomada da ilha. Os franceses conseguiram
resistir ao ataque português durante cerca de quarenta dias, mas privados de água potável e de
munição para os arcabuzes renderam-se após um duro combate, assim sendo, Mem de Sá
invadiu a ilha com cerca de cento e vinte homens e muitos índios aliados em 15 de março de
1560, marcando o fim oficial da colonização francesa no Brasil do século XVI. 438 Conclui
Bonnichon:

As lutas religiosas na França eram mais importantes do que os outros


assuntos; o governo não estava disposto a comprometer as relações
cordiais com a Espanha e Portugal por causa de homens suspeitos de
uma heresia que ele se empenhava em combater na França.
Villegagnon contentou-se em obter uma carta de corso contra os
portugueses, a qual acabou por negociar com Portugal, pela soma de
trinta mil ducados, renunciando aos direitos da França sobre a
Guanabara.439

Bonnichon apresenta sua análise interpretativa com respeito às causas do fracasso da


empreitada de Villegagnon, que não ficou se quer quatro anos em terras brasileiras,
observemos: “Confinado numa ilha, a tiranizar seus compatriotas e os indígenas, contentou-se
com os trabalhos de aterro e as disputas teológicas. Querelas e dissensões decorrentes de seu
autoritarismo nada explicam”.440 Villegagnon tinha em mãos o apreço e consequente
obediência dos índios que “em pouco tempo poderiam tornar os franceses muito
poderosos”,441 evidenciando sua inabilidade como estrategista militar no governo da colônia.
Por outro lado, “o súbito ataque dos portugueses contra a ilha significou para estes uma
reação vital, e eles se beneficiaram na consecução do êxito, pela ausência do chefe inimigo,
de volta à França”.442 Para Bonnichon: “Villegagnon possuía uma concepção pouco
ambiciosa de seu papel: a partir de uma base forte, dominar a região, o país, pelas armas, a
437
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 432.
438
“Entretanto, o fim da França Antártica não foi nem tão evidente nem tão rápido. A colonização individual,
espontânea, defrontou-se ainda por muito tempo com os esforços portugueses.
Quando da tomada do forte Coligny, os franceses que escaparam foram obrigados a se refugiar em terra firme,
subsistindo até 1567 em meio às tribos, esperando por uma reviravolta da sorte”. Philippe Bonnichon, A França
Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério da Marinha, Serviço de
Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 433.
439
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 432.
440
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 432.
441
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 432.
442
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 432.
149
fim de ter acesso às fontes de metais preciosos; era uma política relativamente limitada, e um
fracasso militar levá-la-ia à ruína”.443 Outro aspecto que determinou a derrocada da França
Antártica está no abandono do seu líder-mor Villegagnon, além do seu partidarismo sectário
quando o seu papel deveria ser o de mediador de conflitos.444 Por fim, define Bonnichon
sobre a França Antártica: “se esta última não se desenvolveu ou não renasceu das próprias
cinzas, foi em razão de causas mais complexas: caráter de Villegagnon, derrota militar ou
apoio insuficiente por parte do governo francês”.445

Jean de Léry expressou, de modo enfático, que a culpa da decadência da França


Antártica pertencia unicamente ao almirante Villegagnon, pois, cerca de setecentos a
oitocentos calvinistas pretendiam se transportar ao Brasil para explorar a terra em um
primeiro momento por causa da falsidade religiosa deste. Enfatiza Léry:

E creio que se ele tivesse permanecido fiel à Religião reformada, cerca


de dez mil franceses estariam hoje instalados no Brasil; assim, não só
teríamos aí uma boa defesa contra os portugueses, em cujas mãos não
cairia o forte, como caiu depois de nosso regresso, mas ainda boa
extensão de terras permaneceria ao nosso rei e essa parte do Brasil,
com toda a razão, continuaria a chamar-se França Antártica.446

Desta feita, a tentativa de Villegagnon de estabelecimento de uma colônia francesa em


terras brasileira fracassou, porque a França Antártica sucumbiu diante de tantas adversidades
externas e principalmente a instabilidade interna provocada pelo autodenominado vice-rei da
colônia e sua falta de habilidade como comandante. A consequência imediata foi a fixação
estável dos portugueses na Guanabara produzindo as condições favorável para o surgimento
da cidade do Rio de Janeiro conforme a conhecemos nos dias atuais.447

Diante do relato apresentado, temos então, a reconstrução historiográfica do lugar


social em que Jean de Léry está inserido, nos possibilitando a compreensão das relações
443
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 432.
444
“Esta colônia, entretanto, se viu privada de proteção militar com a partida de um chefe que, sem dúvida,
errara em se mostrar mais sectário do que árbitro”. Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in
História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha,
Rio de Janeiro, 1975, p. 432-433.
445
Philippe Bonnichon, A França Antártica: a invasão in História Naval Brasileira, I Vol., Tomo II, Ministério
da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1975, p. 433.
446
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 270.
447
Cp. Elysio de Oliveira Belchior, Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Livraria
Brasiliana Editora, 1965; Mauricio de Almeida Abreu, Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700), 2
vol., Rio de Janeiro, Andrea Jakobsson Estúdio Editorial, 2010; Vivaldo Coaracy, Memórias da Cidade do Rio
de Janeiro, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1988.
150
semânticas que se expressam no relato História de uma Viagem feita à Terra do Brasil,
também chamada América, especificamente os tópicos a serem desenvolvidos nos seguintes
capítulos sobre a antropologia e a religião interpretadas a partir da concepção de mundo
promovida pela teologia calvinista.

151
CAPÍTULO TERCEIRO
A VALORAÇÃO DO OUTRO EM JEAN DE LÉRY

Não tenho certeza de que nos


maravilhamos o bastante em face da
nossa capacidade de ler imagens, isto é,
de decifrar os tais criptogramas da arte.
(Ernst H. Gombrich).448
O Deus bíblico, transcendente, invisível,
inimaginável por sua própria essência, é
no entanto o autor benevolente do
mundo, que dele traz os “vestígios” e, no
caso do homem, a “imagem”.449 (...) O
espírito calvinista, ao mesmo tempo que
impõe a iconoclastia, deixa a luz icônica
banhar as imagens seculares, que ele
tolera, ou melhor, autoriza, por causa do
empenho que demonstra em permitir que
se estenda e se realize o trabalho do
homem, santificado e exercido
“unicamente pela glória de Deus”. Essa
luz divina é um protesto da natureza
separada de seu Criador, que aspira a
juntar-se a ele. (Alain Besançon).450

Neste capítulo teremos como foco principal a análise das representações imagéticas do
índio tupinambá contidas na obra História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América de Jean de Léry publicada em La Rochelle em 1578, obra original em sua
primeira edição. O que sobressai claramente aos olhos é o fato de encontrarmos nas imagens
um olhar de admiração e respeito pelo habitante do novo mundo. Defendemos que tal ótica é
uma expressão concreta da aplicação prática do pensamento teológico do também francês, o
reformador João Calvino, em especial a sua concepção antropológica, pois, Léry é participe
desta nova civilização e deste novo tipo de homem que surge a partir do reformador

448
Ernst Hans Gombrich, Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica, 4.ª ed., São Paulo
WMF Martins Fontes, 2007, p. 34.
449
Alain Besançon, A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia, Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1997, p. 608.
450
Alain Besançon, A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia, Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1997, p. 306-307.
152
genebrino, conforme apontamos no capítulo primeiro. Léry evidencia em suas representações
imagéticas um modelo moderno de pensamento, tendo como características centrais a
fidelidade das representações e a valorização do indígena como ser humano. As imagens
registradas apontam para as qualidades singulares do respeito, apreço e admiração dos
tupinambás, onde a humanidade é exaltada a tal ponto que se torna um referencial para a
compreensão de si mesmo e do seu próprio povo de origem. Uma dinâmica própria à
heterologia, conforme apresentada por Michel de Certeau, como um discurso do Outro que
possibilita a compreensão do mesmo, porque a própria operação historiográfica se constitui
em uma ciência do Outro que se encontra posta em uma relação histórica.451 Desta feita, a
alteridade é sempre uma constante no fazer historiográfico, bem como o passado é o Outro do
presente, consequentemente, a alteridade subjaz com uma essência vital na atividade do ser
historiador.

É necessário nos situarmos quanto ao nosso processo de análise, desta feita é prudente
apontarmos claramente a metodologia aplicada nesta presente construção. Adotaremos, pelo
menos em parte, as relações linguísticas, com as quais Certeau dialogou em seu aparato
teórico, como o parâmetro de abordagem neste tópico. Vamos então, deste modo, assinalar
nossa abordagem para que equívocos não sejam gerados indevidamente. Em resumo, para
Certeau, o fazer historiográfico é constituído pela tríplice relação existente entre o lugar
social, a prática e a escrita. Deste modo seguiremos esta estrutura para a compreensão das
representações imagéticas contidas na obra de Jean de Léry. O lugar social de Léry diz
respeito às relações, das mais diversas, seja um lugar físico, sejam construções ideológicas,
que determinam o sentido do discurso histórico do autor. No presente caso, este lugar social é
especificamente condicionado pela antropologia teológica de João Calvino que nos possibilita
a compreensão das representações imagéticas, este lugar social que autoriza o discurso já fora
descrito em seus pormenores no capítulo segundo. A prática é a própria representação
imagética que encontramos na obra de Jean de Léry que será avaliada segundo as ferramentas
apropriadas da teoria visual. A escrita é o relato que Léry produz como uma fabricação
historiográfica do tupinambá, que se insere na relação história e antropologia, destacando o
Outro como referencial interpretativo do Eu europeu. Estes elementos surgem como
essenciais para a compreensão das representações imagéticas publicadas por Jean de Léry em
sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América.

451
Para maiores detalhes sobre a epistemologia da história proposta por Certeau vide a primeira parte da obra A
Escrita da História (Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 3-114).
153
3.1 – O Lugar Social do Mesmo

Os estudos linguísticos, que por sinal em Michel de Certeau se constituem em


elemento marcante para a sua construção teórica, serão preciosos para o entendimento das
representações imagéticas que encontramos na obra de Jean de Léry. Especificamente nos
valeremos dos estudos ligados à análise do discurso, inspirados pela valorização que Certeau
concedia à palavra como uma possibilidade de expressão das construções tanto culturais
quanto históricas, neste caso não somente a palavra escrita é o objeto de análise, mas também
as imagens. A análise do discurso comumente se presta à tarefa de considerar as construções
ideológicas que se constituem em um texto escrito produzido em uma discursividade
verbalizada. Para tanto, defende a ideia de que todo e qualquer texto é um produto
socialmente constituído, o que Certeau chamaria de lugar social onde a palavra ganha sentido,
autorização e limite em sua subsistência. Desta feita, o discurso deve ser analisado e
interpretado situando-o no seu lugar de construção e levando inevitavelmente em
consideração o ambiente histórico-social onde ele foi produzido. Conforme aponta
Dominique Maingueneau: “Não existe discurso que não seja contextualizado: não se pode, de
fato, atribuir um sentido a um enunciado fora de contexto”.452 E também Eni P. Orlandi: “A
linguagem só faz sentido porque se inscreve na história”.453 A implicação natural deste
conceito e modo de operação de analise dá conta do fato de que o discurso, um texto escrito
ou uma imagem, reflete e expressa necessariamente uma visão de mundo intrinsecamente
vinculada ao seu autor e, portanto, intrinsecamente ligada à sociedade a que pertence dentro
de um contexto histórico. Como afirma Certeau:

A arte de “moldar” frases tem como equivalente uma arte de moldar


percursos. Tal como a linguagem ordinária, esta arte implica e
combina estilos e usos. O estilo especifica uma estrutura lingüística
que manifesta no plano simbólico a maneira de ser no mundo
fundamental de um homem. Conota um singular. O uso define o
fenômeno social pelo qual um sistema de comunicação se manifesta
de fato: remete a uma norma. O estilo e o uso visam, ambos, uma
“maneira de fazer” (falar, caminhar, etc.), mas um como tratamento
singular do simbólico, o outro como elemento de um código. Eles se
cruzam para formar um estilo do uso, maneira de ser e maneira de

452
Patrick Charaudeau, Dominique Maingueneau, Dicionário de Análise do Discurso, 2.ª ed., São Paulo,
Contexto, 2006, p. 171.
453
Eni P. Orlandi, Análise de Discurso: princípios e procedimentos, 7.ª ed., Campinas-SP, Pontes, 2007, p. 25.
154
fazer. 454

A análise do discurso lida com texto, palavra e linguagem, todos pertencentes à escrita
e/ou fala verbal. Em princípio devemos salientar o fato de que o discurso é caracterizado por
uma tríplice essência natural, que seja, 1) seu acontecimento é produzido historicamente, 2)
tendo como veículo condutor a linguagem, escrita ou falada, e desta feita 3) externaliza uma
visão de mundo específica de um lugar social. Conforme enfatiza Fernandes: “Importa o
sujeito inserido em uma conjuntura social, tomado em um lugar social, histórica e
ideologicamente marcado”.455 Certeau entende que a escrita da história é uma atividade de
fabricação de sentido, comprometida com o real, mas também encontra-se sujeita a
determinações e radicada em prerrogativas456, consequentemente, é nesta relação com o lugar
social que se apresentam os métodos, expressando os interesses, os conteúdos e as
problematizações propostas, organizando os sentidos.457 Desta feita, todo discurso necessita
ser interpretado a partir de um sistema de pensamento que o referencie.458

O sujeito não profere um discurso solto no ar, sem referência, sem fundamento, muito
pelo contrário, o discurso é produzido pelo sujeito inserido em um lugar social. Portanto,
somente considerando o lugar social do sujeito é que o discurso será compreendido, porque é
no seu lugar de produção, em meio a condições459 específicas e subordinado às regras que
governam o discurso, que ele possui sentido. Obviamente, este procedimento somente é
devidamente considerado e, com retidão utilizado, por aquele que em busca do rigor
acadêmico e da honestidade para com o sujeito e o discurso, desejam compreender o seu
sentido como de fato foi pretendido, concordando ou não com o seu teor. Não sendo este o
caso, ou seja, em uma interpretação tendenciosa de determinado discurso, o intérprete torna-se
objeto de estudo para a compreensão de seu próprio discurso, já que se utiliza de meios e
artifícios desonestos como ponto de partida do seu próprio discurso com vista a uma suposta
aceitação do mesmo, mormente pelo fato de que este não se sustenta sozinho, é uma espécie
de discurso parasita, por assim dizer. Autoreferenciado, o discurso perde o seu sentido de

454
Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer, 9.ª ed., Petrópolis-RJ, Vozes, 2003, p. 179-
180.
455
Cleudemar Alves Fernandes, Análise do Discurso: reflexões introdutórias, 2.ª ed., São Carlos-SP, Claraluz,
2007, p. 11.
456
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 47.
457
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 47.
458
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 48.
459
“Condições de produção: constituem a instância verbal de produção do discurso: o contexto histórico-social,
os interlocutores, o lugar de onde falam e a imagem que fazem de si, do outro e do referente”. Helena H.
Nagamine Brandão, Introdução à Análise do Discurso, 2.ª ed., Campinas-SP, UNICAMP, 2004, p. 105.
155
existência. No entanto, lembremos Certeau: “Um discurso ideológico se ajusta a uma ordem
social, da mesma forma como cada enunciado se produz em função das silenciosas
organizações do corpo. Que o discurso como tal obedeça a regras próprias, isso não o impede
de articular-se com aquilo que não diz – com o corpo, que fala à sua maneira”.460

Em análise do discurso a fala do sujeito é considerada dentro da dimensão histórica,


social e ideológica. Do mesmo modo as representações imagéticas de Jean de Léry devem ser
consideradas. O sujeito é histórico por relacionar-se com o mundo onde vive, não é alheio
aos acontecimentos que passam diante dos seus olhos e aos quais sofre as implicações e
obrigatoriamente necessita reagir diante delas, aliás, isto é verdade para todo sujeito histórico,
seja quem for; social, pois representa o coletivo onde está inserido, não que seja apenas um
porta-voz não compromissado com um discurso e sem compreendê-lo na sua amplitude, mas
ao mesmo tempo fala daquilo que concorda e defende, e desta feita não se encontra sozinho
na concordância das ideias que apresenta461; e, ideológico porque o sujeito está permeado e é
afetado diretamente pela semântica da linguagem do lugar social de sua origem, o mundo
onde está inserido, produzindo e expressando uma visão de mundo.462

Este não é um trabalho que pretende inserir-se exatamente no âmbito dos estudos
linguísticos designados como Análise do Discurso. Pretendemos sim, nos valer do método e
procedimento deste campo de estudo, em diálogo com Michel de Certeau, ao enfatizar que o
sentido de um discurso, oral ou escrito, somente pode ser extraído adequadamente se
analisado a partir do tríplice conjunto histórico, ideológico e situando o sujeito no seu lugar
social. Pretensamente julgamos que os procedimentos ferramentários da análise do discurso
podem também ser aplicados à análise de imagens como no nosso caso por hora em
evidência. O que de fato é uma realidade, pois, as imagens podem e devem ser lidas.
Observemos as palavras de Alberto Manguel:
460
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 53.
461
Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano, 1. Artes de Fazer, 9.a ed., Petrópolis-RJ, 2003, p. 222.
462
“...há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo que é a que existe entre o interdiscurso e o
intradiscurso ou, em outras palavras, entre a constituição do sentido e sua formulação. (...) O interdiscurso é todo
o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras
tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito
por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o
“anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” minhas palavras. (...) Ao falarmos nos filiamos a redes de
sentidos mas não aprendemos como fazê-lo, ficando ao sabor da ideologia e do inconsciente. (...) Mas
certamente o fazemos determinados por nossa relação com a língua e a história, por nossa experiência simbólica
e de mundo, através da ideologia. Por isso a Análise de Discurso se propõe construir escutas que permitam levar
em conta esses efeitos e explicar a relação com esse “saber” que não se aprende, não se ensina mas que produz
seus efeitos”. Eni P. Orlandi, Análise de Discurso: princípios e procedimentos, 7.ª ed., Campinas-SP, Pontes,
2007, p. 32, 33, 34.
156
A existência se passa em um rolo de imagens que se desdobra
continuamente, imagens capturadas pela visão e realçadas ou
moderadas pelos outros sentidos, imagens cujo significado (ou
suposição de significado) varia constantemente, configurando uma
linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras
traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e
compreender nossa própria existência. As imagens que formam nosso
mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam
apenas presenças vazias que completamos com nosso desejo,
experiência, questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as
imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos
feitos.463

Mesmo defendendo que a imagem pode ser lida, é prudente tomarmos ciência das
dificuldades e implicações envolvidas nesta tarefa. Há problemas profundamente importantes
no que concerne esta atividade, portanto, é sensato observamos a ressalva que o historiador
das mentalidades Michel Vovelle nos faz, porque não há uma leitura simples ou única de uma
representação imagética que expresse uma chave de leitura fácil de decodificar. Enfatiza
Volvelle:

Mais do que uma decodificação, é de interpretação que convém falar,


o que supõe a seleção de um certo número de traços pertinentes em
função de uma determinada finalidade. O autor, com efeito, relembra
a necessidade imperativa, tratando-se de objetos culturais complexos,
de se perguntar qual significado... e para quem: o emissor... o receptor
(de ontem, de hoje; culto ou inculto).464

Pleiteamos, a despeito das dificuldades relacionadas, sem, contudo desprezá-las, que a


imagem pode ser considerada como um discurso carregado de sentido, produzido socialmente,
portanto, passível de ser analisada segundo o seu contexto histórico-social e, além disto,
também reflete o seu contexto ideológico, servindo deste modo como um documento para a
operação historiográfica, porquanto se encontra carregada de informações que revelam o
autor. Sigamos nesta tarefa.

Jean de Léry está inserido no contexto histórico da Reforma Protestante do século XVI
e do Renascimento com já exposto no capítulo anterior. Queremos enfatizar que ele quando
se depara com os índios em seu estado de completa nudez não é tomado por uma surpresa
repulsiva. Mas, compreende o Outro dentro do seu próprio sistema de vida, por assim dizer,
ou em outras palavras segundo a visão de mundo do habitante do Novo Mundo dentro de uma

463
Alberto Manguel, Lendo Imagens: uma história de amor e ódio, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p.
21.
464
Michel Vovelle, Ideologias e Mentalidades, São Paulo, Brasiliense, 2004, p. 94.
157
concepção relativista. Deste modo, Léry reflete o pensamento de sua época, lugar e seu
sistema ético. Que pensamento é este que não impõe sobre o indígena uma conceituação
dominadora e que não tem uma pretensão de subjugar? Para o momento apresentamos duas
explicações. A primeira diz respeito à antropologia teológica produzida pelo calvinismo
humanista que expressa a valorização do ser humano. A segunda relaciona-se ao modo como
o imaginário referente ao paraíso foi retratado na arte, em especial na pintura durante o
momento histórico imediatamente precedente a ele, preparando de certo modo as estruturas do
imaginário que dominam Jean de Léry neste encontro com o Outro, contudo, este é
direcionado pelo anterior, ou seja, a teologia calvinista continua apresentando-se como o
determinante na produção heterológica do viajante francês.

Conforme já apontamos no capítulo segundo, o lugar social de Jean de Léry está posto
no período relacionado à Reforma Protestante que se apresenta em uma relação com o
Renascimento na Europa, como uma construção histórica que surge, dentre outras, como uma
preparação intelectual para a Reforma produzindo a estrutura necessária ao surgimento e ao
desenvolvimento do pensamento reformado.465

O Renascimento apresenta-se como uma realidade que surge em um momento de


transição entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, e, além disto, influência as
mentalidades dos sujeitos em vários sentidos, conforme já apontados anteriormente. Jean de
Léry é um homem que se encontra socialmente localizado neste período de transição e limites,
deste modo, mesmo que influenciado em certa medida pelas concepções medievais, é um
homem moderno, um homem de sua época onde o Humanismo está vigorando nos círculos
mais abertos ao desenvolvimento intelectual.466 Neste período ocorre uma intensificação de
temáticas da antiguidade clássica que conduzem à exaltação da dignidade do homem, em

465
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 20; Alister E. McGrath, As Origens Intelectuais
da Reforma, São Paulo, Cultura Cristã, 2007.
466
O que se aplica a Calvino também defendemos aplicar-se a Léry, observemos Besançon: “Calvino, sem
deixar de ter em mira o cristianismo puro, é um moderno. Participa, adiantadamente, da grande faxina do séc.
XVII, do trabalho de desobstrução, da eliminação do entulho. É um sóbrio que busca a clareza. Considera que é
possível pôr em ordem a tradição, reconstruindo-a a partir da caução necessária e suficiente provida pela
Escritura. (...) Parece haver em Calvino a confluência de duas correntes. Uma, que provém da Antiguidade,
encontra seus foros de legitimidade em Orígenes e nos primeiros Padres quando afasta a imagem divina para o
infinitamente distante – o além-cosmo – e para o infinitamente profundo: o cerne mais íntimo que a intimidade
do próprio espírito, onde reside e trabalha o Espírito incognoscível. A outra, moderna, é a que busca restaurar a
ordem à luz da razão, a que trata de eliminar o que é inútil, o supérfluo herdado; que almeja a construção de um
templo mais limpo, mais transparente, mais exatamente conforme ao princípio puro do cristianismo que se pode
deduzir, more geometrico, da Escritura tomada como axioma”. Alain Besançon, A Imagem Proibida: uma
história intelectual da iconoclastia, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997, p. 299-300, 305.
158
especial na sua capacidade criadora para a transformação da natureza em cultura como um
ideal de progresso, eis a excelência do homem na sua possibilidade de transformação da
realidade existente diante de si, porque, é capaz de conquistar conhecimentos que o elevam
espiritualmente.467 O Outro é um discurso que fala por si só, e estar disposto a lê-lo é o
mesmo que abrir-se à possibilidade de transformação de si mesmo pelo desenvolvimento
intelectual, principalmente para um calvinista que entende o homem como imagem de Deus,
portanto, conhecer ao homem também se traduz em possibilidade de conhecimento do próprio
Deus que o criou. Na epistemologia teológica calvinista o homem ocupa lugar de
proeminência.

Para Silva, Jean de Léry apresenta-se como um representante do Renascimento o qual


produziu um relato que permite a identificação da formação do discurso moderno deste
período, no entanto, o construiu exatamente na fronteira entre um duplo constante que se
expressa em meio a similitudes e diferenciações expostas nos relatos descritivos da natureza e
dos tupinambás, nas relações entre o europeu e o índio, o protestante e o católico, criação
divina e o escambo, através de “um relativismo não-usual no período”.468 Para tanto, deve-se
ler a obra de Léry em busca dos rastros históricos que identificam “as condições de
emergência dos discursos no século XVI por meio do relato de viagem de um artesão em
terras longínquas, na profusão de imagens metafóricas e fragmentárias, estabelecendo
complexas relações de semelhança e contigüidade entre as espécies nativas e as européias, e
mesmo entre a identidade européia e a alteridade dos tupis”.469

Quanto às representações imagéticas do paraíso nas estruturas do imaginário europeu


observamos as proposições de Julio Bandeira, ao ressaltar que a transposição da fronteira
entre o Velho e o Novo Mundo ocorreu na verdade, em primeiro lugar, no campo das ideias, e
antes mesmo de Colombo cruzar o Atlântico. Para Bandeira “só se descobriu aquilo que já se
conhecia, e a Renascença preparou a Europa para a visão da paisagem exuberante e da nudez
espontânea dos povos de outras plagas a serem encontradas na passagem do século”. 470 O
Renascimento nos seus primórdios, redescobriu o nu por meio do resgate da cultura clássica,

467
Rodolfo Mondolfo, Figuras e Idéias da Filosofia da Renascença, São Paulo, Mestre Jou, 1967, p. 186.
468
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 20.
469
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 20.
470
Julio Bandeira, Canibais no Paraíso: a França Antártica e o imaginário europeu quinhentista, Rio de
Janeiro, Mar de Idéias, 2006, p. 13.
159
permitindo ao europeu a estrutura de pensamento necessária para através dos sentidos
perceber a beleza da realidade do mundo que os cerca, transpondo os limites da metafisica e
da religião católica. Processo de desenvolvimento histórico que possibilitou a perspectiva tão
marcante do paraíso terrestre e a exaltação da nudez, marcas das mentalidades europeias do
período.471 Jean de Léry mesmo neste contexto, não deixa de interpretar a realidade que o
cerca quando está em terras brasileiras, segundo os limites de sua constituição religiosa dentro
do sistema de pensamento teológico calvinista, porquanto, ainda sendo um homem de sua
época e consequentemente influenciado pelas mentalidades do tempo em que vive, o seu
compromisso maior está nas Escrituras Sagradas que estabelecem o parâmetro e os limites de
sua interpretação imagética. Léry entende que a nudez das índias não é atraente como
poderiam imaginar os europeus, no entanto, a ostentação das europeias produz sim maiores
males, contudo, não deixa de enfatizar que as índias são tão belas quanto suas conterrâneas.472
Evidencia Léry seu lugar social, ao deixar claro que não tem a intenção de aprovar a nudez,
mas enfatiza a simplicidade de vida dos tupinambás, mostra deste modo o limite da
circularidade hermenêutica de sua heterologia, a Bíblia, tópico de abordaremos à frente neste
capítulo.473

Como prova do que propõe, Bandeira apresenta a pintura Le Paradis Terrestre de


Dieric Bouts (1415-1475), a título de exemplo das pinturas que desde 1460 já instigavam o
imaginário europeu quanto ao paraíso terrestre constituído por um grupo de homens e
mulheres seminus, concluindo: “era a alegoria de uma possível vita nuova no Paraíso, e o
Brasil se tornou, com os Tupinambá, a primeira materialização do mito para os franceses”. 474
Delumeau descreve a obra de Bouts como um paraíso terrestre que é encontrado no além e se
apresenta como um lugar de passagem que conduz às moradas celestes.475 Tomando
Delumeau como inspiração, podemos afirmar que o Novo Mundo para Jean de Léry abre as
portas de uma nova compreensão da realidade ao mesmo tempo que pretende por ele mesmo,

471
Julio Bandeira, Canibais no Paraíso: a França Antártica e o imaginário europeu quinhentista, Rio de
Janeiro, Mar de Idéias, 2006, p. 13.
472
“Antes, porém, de encerrar este capítulo, quero responder aos que dizem que a convivência com esses
selvagens nus, principalmente as mulheres, instiga a lascívia e à luxúria. Direi que, apesar das muitas opiniões
em contrário acerca da concupiscência provocada pela presença de mulheres nuas, a nudez bruta das mulheres é
muito menos atraente do que comumente se imagina”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 138.
473
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 138.
474
Julio Bandeira, Canibais no Paraíso: a França Antártica e o imaginário europeu quinhentista, Rio de
Janeiro, Mar de Idéias, 2006, p. 15.
475
Jean Delumeau, O Que Sobrou do Paraíso? São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 132.
160
através do Evangelho, ser para o índio o caminho para a salvação. No entanto, mesmo o fato
do imaginário sobre o paraíso terrestre ser uma constante no período das navegações, Jean de
Léry, segundo Lestringant, “não se permite especular a esse respeito, nem, sobretudo, querer
retornar a essa origem inatingível”.476 Jean de Léry vive no limite fronteiriço do imaginário
medieval sobre o paraíso e a mentalidade realista do moderno, contenta-se com a descrição da
Escritura sobre o Éden, sempre demonstrando sua submissão à Bíblia como parâmetro de
interpretação da realidade que o cerca. Já mostramos no capítulo primeiro como o sistema
hermenêutico de Calvino contribuiu como a base fundante para o desenvolvimento das
ciências modernas, em Léry tal realidade apresenta-se como determinante para a sua
interpretação do tupinambá a partir desta hermenêutica bíblica calvinista. Portanto, é a
mentalidade calvinista o elemento norteador, que mesmo valendo-se das estruturas que o
sustentam, não se contenta em apenas reproduzi-las como um simples consumidor passivo
destes produtos, mas vai além, superando-os em sua escrita historiográfica e, em especial, em
suas representações imagéticas.

Julio Bandeira defende a tese de que “a singela espontaneidade do nu maravilhava os


franceses”477, e os europeus constituídos em seu imaginário com esta estrutura medieval do
maravilhoso não se espantaram quando se depararam com os índios no Novo Mundo. Como
exemplos, cita duas obras que influenciaram este imaginário, especificamente o francês:
Gabrielle d‟Estrée e sua irmã (anônima) e Allégorie Du Triomphe de Vênus (Angelo
Bronzino (1503-1572)). Segue Bandeira: “a beleza ideal da anatomia despida que cobre as
paredes do Palácio de Fontainebleau fora apenas uma antecipação na corte dos Valois daquilo
que a gente francesa encontrou nas praias brasileiras. Uma nudez que surpreende, mas não
desagrada Léry”.478 Mesmo entendendo que as estruturas medievais tenham contribuído na
formação das mentalidades de Jean de Léry, contudo, não podemos atribuir a influência de
sua estrutura de pensamento totalmente a esta presença da nudez nas obras de arte nos séculos
próximos que o antecedem. Lembremo-nos da festa brasileira em Rouen, apresentada no
capítulo segundo, onde cinquenta índios brasileiros já estavam presentes em terras francesas
em uma encenação real em que a nudez fora marca característica, tanto dos índios quanto dos
próprios franceses que participaram da apresentação, uma possível explicação para que o fato

476
Frank Lestringant, De Jean de Léry a Claude Lévi-Strauss: por uma arqueologia de Tristes Trópicos in
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2000, v. 43 n. o 2, p. 93.
477
Julio Bandeira, Canibais no Paraíso: a França Antártica e o imaginário europeu quinhentista, Rio de
Janeiro, Mar de Idéias, 2006, p. 24.
478
Julio Bandeira, Canibais no Paraíso: a França Antártica e o imaginário europeu quinhentista, Rio de
Janeiro, Mar de Idéias, 2006, p. 24.
161
da nudez não ser tomada como algo tão absurdo por Jean de Léry quando em 26 de fevereiro
de 1557 se depara com a visão dos primeiros índios em terras brasileiras, os margaias.479

Outro aspecto importante a ser considerado como modelador da mentalidade de Jean


de Léry está relacionado às motivações colonialistas dos missionários protestantes, pois não
podem ser identificadas com as motivações relacionadas à mera exploração de uma colônia
como corriqueiramente ocorreu nas Américas por parte dos portugueses e espanhóis, e mesmo
de alguns dos franceses. Desta feita, defendemos que o intuito francês não era o
estabelecimento de uma colônia que objetivava a exploração dos recursos naturais, mas sim, a
criação de uma colônia onde pudessem constituir morada, como já ficou evidente quando
analisamos o contexto do surgimento da França Antártica no capítulo anterior, segundo as
intenções de Villegagnon e dos enviados genebrinos. Também pleiteamos a ideia que as
pretensões dos franceses protestantes para o estabelecimento da França Antártica no Brasil
dizem respeito ao desejo de usufruir da liberdade de culto, claramente explicitado no texto de
Jean de Léry que também já fora apreciado. Tal liberdade não existia de modo amplo na

479
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 97. Eis a descrição que Jean de Léry apresenta em sua obra do primeiro
contato com os índios brasileiros: “Como eram os primeiros selvagens que eu via de perto, é natural que os
observasse atentamente e, embora os descreva minuciosamente mais adiante, quero desde já dizer alguma coisa a
seu respeito. Tanto os homens como a mulher estavam tão nus como ao saírem do ventre materno mas, para
parecer mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e manchado de preto. Os homens usavam o cabelo cortado
na frente à maneira de coroa de frade e comprido atrás, aparado em torno do pescoço como entre nós as pessoas
que usam cabeleira. Todos tinham o lábio inferior furado ou fendido e traziam no beiço uma pedra verde e
polida, como que engastada, do tamanho de uma moeda e que podia ser tirada ou recolocada, como bem
entendessem. Por certo usavam tais coisas para se enfeitar, mas, na realidade, sem a pedra, o corte do lábio
inferior se assemelhava a uma segunda boca, o que os tornava bastante mais feios. Quanto à mulher, além de
não ter o lábio furado, usava os cabelos compridos como as daqui; mas tinha as orelhas furadas tão cruelmente
que era possível atravessá-la com os dedos e nelas levava grandes pendentes de ossos brancos que lhe chegavam
até os ombros. Mais adiante, refutarei o engano daqueles que afirmam serem os selvagens peludos. Antes de se
separarem de nós os homens, principalmente dois ou três velhos que pareciam os mais importantes do lugar,
afirmaram que em suas terras se encontrava o melhor pau-brasil da região e prometeram ajudar-nos a cortar e
carregar a madeira, e ainda a nos fornecer víveres, além do esforço que fizeram para nos convencer a
carregarmos o nosso navio. Como, porém, eram nossos inimigos, isso nos pareceu engodo; em terra, onde
teriam vantagem, fácil lhes seria nos depenarem e comerem; de resto não era nossa intenção dirigir-nos para esse
lugar e não nos detivemos ali.
Depois que os Margaias admiraram a nossa artilharia e tudo o mais que desejaram no navio, talvez sonhando
com outros franceses que por acaso viessem a lhes cair nas mãos, pediram para voltar à terra, não querendo
incomodar nem retê-los, pagamos-lhes os víveres que nos haviam fornecido. Como desconhecessem pagamento
em moeda, o mesmo foi feito com camisas, anzóis, espelhos e outras mercadorias usadas no comércio com este
povo. Essa boa gente que não fora avara, ao chegar, pois nos mostrou tudo o que trazia no corpo, do mesmo
modo procedeu ao partir, embora já vestisse camisa. Ao sentarem-se no escaler, os homens arregaçaram as
vestimentas até o umbigo a fim de não estragá-las e descobriram tudo que deviam ocultar, querendo, ao
despedir-se, que lhes víssemos ainda as nádegas e o traseiro. Agiram certamente como honestos cavalheiros e
embaixadores corteses. Contrariando o provérbio comum entre nós de que a carne é mais cara do que a roupa,
revelaram a magnificência de sua hospedagem mostrando-nos as nádegas, e desse modo opinando que mais
valem as camisas do que a pele”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 98-99.
162
França do século XVI, prova disto é o massacre na noite de São Bartolomeu em 24 de agosto
de 1572, onde se sobressai uma perseguição sistemática por parte da casa real e, a partir de
então, possivelmente cerca de cem mil huguenotes foram mortos. Portanto a força motriz por
parte de Léry e também dos demais huguenotes em terras do Brasil possuía um caráter de
respeito à terra que desejavam fosse o seu lar, não por uma perspectiva utilitarista e
pragmática, mas acima de tudo, por sua mentalidade calvinista de respeito ao mundo como a
criação de Deus. Mais um motivo para um relato objetivo e fidedigno e não depreciativo está
expresso no seu impulso em pregar o Evangelho, segundo a religião reformada, aos índios
tupinambás que analisaremos em detalhes no próximo capítulo. Via de regra, as descrições de
europeus quanto aos habitantes da nova terra, eram clara evidência de uma suposta pretensão
de superioridade de raça, pelo menos na ideologia de alguns daqueles que eram provenientes
do Velho Mundo. Jean de Léry mostra uma compreensão diferente de seus concidadãos da
Europa, não enxerga o índio como um animal a ser subjugado, dominado e domesticado,
também não vê a terra como um produto a ser depredado pela perniciosa motivação
mercantilista. Este pensamento encontra referência em seu arcabouço ideológico que
passaremos a considerar.

Michel de Certeau defende que toda escrita da história se articula com um lugar
próprio de produção, condicionada por imposições e privilégios, que determinam os métodos
usados pelo historiador e externalizam os seus interesses, a sua organização, e
consequentemente dando sentido às construções linguísticas da operação historiográfica.
Consequentemente, entendemos que o lugar social em que se inscreve o sujeito viajante-
escritor e a partir de onde ele fala é fator determinante para a produção de sentido de sua
escrita e de suas representações imagéticas, o que por sinal é verdadeiro em todo discurso
escrito ou visual. A visão de mundo de Léry foi delineada pelos conceitos e pressupostos
calvinista quanto ao homem como criado à imagem e semelhança de Deus. Léry também
compreendia o mundo como criação de Deus, fato claramente evidente em seu relato.480

480
“Asseguro, finalmente, aos que preferem a verdade dita simplesmente à mentira bem vestida, que aqui
encontrarão fatos não só verdadeiros, mas ainda dignos, muitos deles, de admiração por terem sido reservados a
nossos antepassados, e pedirei ao Senhor, autor e conservador de todo o universo, que faça com que esta pequena
obra alcance bom êxito para glória de seu Santo Nome”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 74; “Eis tudo, não o que se
poderia dizer, mas o que pude observar acerca das árvores, plantas e frutas do Brasil durante um ano quase de
estada. Não existem na América quadrúpedes, aves, peixes ou outros animais completamente idênticos aos da
Europa; não vi tampouco árvores, ervas ou frutas que não se diferenciassem das nossas, à exceção da beldroega,
do manjericão e do feto que vive em vários lugares, como pude observar nas excursões que fiz pelas matas e
campos do país. Por isso, quando a imagem desse novo mundo, que Deus me permitiu ver, se apresenta a meus
olhos, quando revejo assim a pureza do ar, a abundância de animais, a variedade de aves, a beleza das árvores e
163
Portanto, desta feita, tanto o homem (seja os tupinambás ou os europeus), quanto o mundo
onde este habita, deveriam ser enxergados segundo a importância, o propósito e a finalidade
que correspondam à mesma qualidade daqueles que foram estabelecido pelo Criador. A visão
que Jean de Léry possui do índio é movida pelo conceito apreendido de seu mestre, João
Calvino (1509-1564), considerando que se encontrava em preparação teológica para a
ordenação ao pastorado na Academia de Genebra, que fora paralisada apenas
momentaneamente para esta empreitada missionária no Novo Mundo. Para Calvino, o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, tema bíblico que desenvolve
principalmente nas suas Institutas da Religião Cristã. O reformador genebrino também
compreende que o mundo que nos cerca não deve ser visto como uma divindade481, mas como
criação de Deus, esta concepção permite o estudo e a descrição da fauna e da flora brasileiras,
porquanto, não se trata de um deus panteísta, o que impediria por completo qualquer tipo de
relação, além disto, a própria compreensão acerca do índio tupinambá também é possível pelo
viajante através destes conceitos realistas biblicamente constituídos. Pleiteamos a tese de que
a visão de mundo calvinista, como um lugar social, é determinante para a constituição do
sentido conforme fora pretendido por Jean de Léry em seu relato de viagem. Deste modo,
acompanhamos Michel de Certeau ao afirmar que “não existe relato histórico no qual não
esteja explicitada a relação com um corpo social”.482

Seguindo Gramsci, entendemos que o lugar social também se constitui como uma
filosofia de mundo que se externaliza nas manifestações intelectuais coletivas de um grupo
social.483 A concepção de Mikhail Bakhtin é apropriada ao afirmar que toda produção
ideológica está condicionada a uma realidade natural ou social existente em todo corpo físico
como um instrumento de produção e de consumo do seu produto, além de refletir e

das plantas, a excelência das frutas e em geral as riquezas que embelezam essa terra do Brasil, logo me ocorre a
exclamação do profeta no Salmo 104:
Ó Senhor Deus, como tuas diversas obras
São maravilhosas por todo o universo:
Tudo o que fizeste foi de grande sabedoria!
E, pois, a terra está plena de tua grandeza.
Felizes seriam os povos dessa terra se conhecessem o Criador de todas essas coisas. Como, porém, isso não
acontece, vou tratar dos temas que nos provarão quão longe estão eles ainda disso”. Jean de Léry, História de
uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009,
p. 182.
481
“O que mudou com Calvino não foi a ideia de Deus, mas a ideia do mundo. Este é desdivinizado”. Alain
Besançon, A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997,
p. 301.
482
Michel de Certeau, A Escrita da História, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 93.
483
Antonio Gramsci, Concepção Dialética da História, 9ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p.
16.
164
condicionar uma realidade, ou seja, “tudo que é ideológico possui um significado e remete a
algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem
signos não existe ideologia”.484 Em fim, conclui Bakhtin: “cada signo ideológico é não
apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa
realidade”.485 Deste modo, compreendemos que as representações imagéticas de Jean de Léry
em sua obra são fruto e materialização de seu arcabouço teológico calvinista, expressão de seu
lugar social como um sistema de pensamento que referencia suas interpretações, tanto
verbaliazadas, quanto imagéticas. Logo, os conceitos de imagem e semelhança de Deus no
homem são chave para entender os ideais e métodos de abordagem que Jean de Léry
apresenta em suas representações imagéticas. Tema este da imagem de Deus no homem
atestado quanto à sua importância pelo historiador Jean-Claude Schmitt ao defender
acertadamente que o fundamento da antropologia cristã está na imagem de Deus no homem
conforme narrado pela Bíblia no livro de Gênesis, apresentando a Deus como o Bom
Imageiro, o homem e a criação são marcas universais que expressam o caráter do Todo-
Poderoso.486

As palavras de Peter Burke são prudentes e amplamente necessárias de serem


observadas com atenção como um contraponto cauteloso, advertindo que no encontro entre
culturas, as imagens produzidas entre estas podem ser inevitavelmente estereotipadas, ao
potencializarem alguns traços do Outro na mesma medida que omite alguns. 487 Burke nos
chama à atenção para a concepção de que “o olhar freqüentemente expressa atitudes sobre as
quais o espectador pode não estar consciente, sejam elas de medos, ódios ou desejos
projetados no outro”.488 Neste sentido, poderíamos supor que o desejo de Jean de Léry nas
suas representações imagéticas humanizadas e respeitosas refletem o sentimento que lhe
faltava, ou seja, este respeito honroso dentre os seus próprios irmãos europeus que lhe fora
inexistente, verdade clarificada quando remontamos ao modo como os huguenotes foram
perseguidos e mortos pelos seus compatriotas movidos pelo sentimento de intolerância
religiosa, conforme descrito no capítulo anterior. Assim, para Burke, o estereotipo que Léry

484
Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico da linguagem, São Paulo, Hucitec, 2006, p. 31.
485
Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico da linguagem, São Paulo, Hucitec, 2006, p. 33.
486
Jean-Claude Schmitt, O Corpo das Imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média, Bauru-SP,
EDUSC, 2007, p. 13.
487
Peter Burke, Testemunha Ocular: história e imagem, Bauru-SP, EDUSC, 2004, p. 156.
488
Peter Burke, Testemunha Ocular: história e imagem, Bauru-SP, EDUSC, 2004, p. 156.
165
expressa é positivo ao construir a imagem do selvagem nobre.489

Observemos alguns detalhes do composto do sistema de pensamento teológico de Jean


de Léry, a sua visão de mundo e o seu lugar social, apresentando os conceitos do reformador
João Calvino quanto ao homem como criado à imagem e semelhança de Deus. Em rápidas
citações do tema encontrado nas obras do reformador, a título de ilustração de seu pensamento
quanto ao referido assunto, podemos situar a relação ideológica existente entre Calvino e
Léry, isto se faz necessário por ser determinante para moldar a estrutura de pensamento de
nosso autor que se expressa em sua experiência em terras brasileiras conforme a sua História
de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América. Contudo, lembremos a
advertência que Biéler faz, de que, para Calvino “o homem é primariamente determinado em
seu comportamento moral e social por suas relações com Deus; são elas que lhe comandam o
destino e lhe condicionam a vida individual e social”.490 Deste modo, conhecer a
antropologia teológica de Calvino é conhecer as estruturas fundantes das práticas de Jean de
Léry, porque encontramos na Reforma Protestante do século XVI a teologia bíblica como o
fundamento determinante da ação deste novo homem.

Para Calvino o homem “deve ser visto como espelho da glória de Deus”.491 A imagem
de Deus no homem é entendida como “a perfeita excelência da natureza humana”492 e um
“bem interior da alma”.493 Deus adornou o homem com “Sua própria imagem”.494 Deste
modo, mostra Calvino que não devemos nos concentrar nas maldades que o homem faz, “mas,
antes, darmos conta de que ele é portador da imagem de Deus”.495 Esta postura positiva
progride dando um passo a mais, conforme enfatiza: “se com nosso amor cubrimos e fazemos
desaparecer as faltas do próximo, considerando a beleza e a dignidade da imagem de Deus
nele, seremos induzidos a ama-lo de coração”.496 Considerando que a ênfase da produção
teológica de Calvino estava na efetivação prática, defendemos que este amor ao próximo
motivado pela imagem de Deus nele encontra-se presente como fator de motivação primordial
nas relações de Jean de Léry com os índios tupinambás nas terras brasileiras. Comentando o

489
Peter Burke, Testemunha Ocular: história e imagem, Bauru-SP, EDUSC, 2004, p. 156.
490
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p.
257.
491
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.4.
492
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.4.
493
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.4.
494
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 38.
495
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 38.
496
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 38.
166
Salmo 8, Calvino expõe: “Deus, ao criar o homem, deu uma demonstração de sua graça
infinita e mais que amor paternal para com ele, o que deve oportunamente extasiar-nos com
real espanto”.497 Pleiteamos a tese de que esta perspectiva do homem como imagem e
semelhança de Deus subjaz nas estruturas fundantes da interpretação de Léry como a fonte do
espanto e maravilhamento quando se depara com os habitantes do Novo Mundo que permeia
intensamente toda a sua obra como um fio condutor de sua apreciação historiográfica,
produzindo deste modo, a sua heterologia calvinista. Enfatiza Silva:

O texto de Léry não se vincula ao caráter etnocêntrico costumeiro dos


relatos de viagem, no qual o olhar europeu busca identificar o
indígena como um homem incompleto ou como uma inversão da sua
cultura, sendo, na verdade, totalmente ausente o mecanismo de
identificação do novo com o velho mitigado, tanto pelo seu elevado
grau de relativismo e tolerância, como pela visão positiva que ele
atribui a uma série de características desse outro.498

Na obra de 1537, Instrução na Fé, ao comentar sobre o mandamento “Não Matarás”,


expõe Calvino que “somos proibidos de toda violência e injúria e, de modo geral, de qualquer
ofensa que possa ferir o corpo do nosso próximo. Pois se lembrarmos que o homem foi feito
à imagem de Deus, devemos considerá-lo como santo e sagrado, de tal forma que ele não
possa ser violado sem que também nele seja violada a imagem de Deus”.499 Calvino em A
Verdadeira Vida Cristã enfatiza: “A Escritura nos ajuda com um excelente argumento,
ensinando-nos a não pensar no valor real do homem, mas só em sua criação, feita conforme a
imagem de Deus. A Ele devemos toda honra e o amor de nosso ser”. 500 O olhar valorativo
que Jean de Léry expressa encontra o seu fundamento nesta concepção acerca do ser humano,
de que a sua importância é derivada do próprio Deus, de modo que, desonrá-lo é o mesmo que
desonrar a Deus, e além disto, qualquer violência contra o homem é cometida diretamente
contra o próprio Deus. O homem foi criado por Deus como algo maravilho, portanto, o
calvinista deve advogar a dignidade que a natureza humana possui, por conseguinte, Léry o
faz com grande maestria quando descreve em detalhes o índio tupinambá privilegiando a
veracidade do relato, em especial nas suas representações imagéticas ao utilizar os métodos da
perspectiva, proporção e rotação, que consideraremos em maiores detalhes no decorrer deste
capítulo. Este modo valorativo de interpretar o índio é evidente quando Léry relata os índios

497
João Calvino, O Livro dos Salmos, vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p. 173.
498
Wilton Carlos Lima da Silva, A Invenção de um Olhar: Jean de Léry e os Tupinambás in História Social, N.o
8/9, Campinas-SP, 2001/2002, p. 83.
499
João Calvino, Instrução na Fé in Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: textos escolhidos, São Paulo,
Pendão Real, 2008, p. 53.
500
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 37.
167
em sua vida cotidiana, por exemplo, a educação dos índios às refeições 501, a vida festiva dos
tupinambás502, o uso do caou-in503, as práticas culinárias504, a antropofagia, os ornamentos e
enfeites505, a religião, os índios como hábeis nadadores506, o método de pesca507, a sabedoria
tupinambá508, a frugalidade509, a arte na feitura de utensílios domésticos510, o algodão fiado
para fazer redes de dormir511, o uso de condimentos na culinária512, uma estrutura social513, as
armas de guerra514, a organização e a estratégia para a guerra515, os instrumentos musicais516,
os meios de transporte517, a estrutura das aldeias518, enfim, estes são exemplos do modo
honroso com o qual Léry descreveu os índios tupinambás em sua História de uma Viagem
feita à Terra do Brasil, também chamada América.

Ao comentar o texto de Gênesis 1.26 “Também disse Deus: Façamos o homem à


nossa imagem, conforme a nossa semelhança”, o uso do verbo “façamos” no qal

501
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 144.
502
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 145.
503
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 146.
504
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 149.
505
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 158.
506
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 168.
507
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 169.
508
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 173.
509
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 173.
510
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 176.
511
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 177.
512
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 181.
513
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 184.
514
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 185-186.
515
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 187, 188.
516
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 187.
517
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 188.
518
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 188.
168
imperfeito519, é indicativo do fato de que o homem, “a mais excelente de todas as suas
obras”520, foi criado, segundo Calvino, após uma deliberação e uma consulta entre as pessoas
da Trindade. Para Calvino o evento é impar, pois, o homem poderia ter sido criado pelo
poder da palavra como o fora todo o restante da criação, no entanto, a Trindade entra em
consulta para “dar esse tributo à excelência do homem”.521 Aponta que o homem é uma
espécie preeminente de Deus, que expressa a sua sabedoria, justiça e bondade, o qual é
merecida e espantosamente considerado como um verdadeiro mundo em miniatura. Para
Calvino, a imagem de Deus no homem é algo singularmente excelente e digno de celebração,
porquanto ao homem foi dado o principal lugar entre toda a criação.522 A imagem de Deus no
homem consistia primariamente em inteligência intelectual, racionalidade e ordem interna
representada na mente, na vontade e nos sentidos como expressões da ordem divina. 523 Estas
características possibilitam ao ser humano os relacionamentos que compõem sua real
humanidade, que sejam, o relacionamento social, o cultural e o espiritual. Jean de Léry
percebe que os tupinambás se relacionam consigo mesmo e entre si em uma estrutura social
racional e equilibrada524, também percebe que o índio habita o seu mundo de um modo
ativamente construtivo e transformador525, além disto, há uma religiosidade entre os

519
Este verbo possui uma função coortativa, ou seja, tem o objetivo de expressar claramente a intenção do
sujeito na realização da ação. Nestes termos, aplicando ao verso em evidência, aponta que Deus quando
deliberou criar o ser humano possuía uma intenção em mente, assim o homem não foi um fruto do acaso, mas da
vontade expressa do próprio Deus.
520
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing Co., 1996, p. 91.
521
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing Co., 1996, p. 91.
522
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing Co., 1996, p. 227.
523
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing Co., 1996, p. 95-96.
524
“Eis, conforme pude observar, o modo como os Toupinenquins | Tupinakĩ | comportam-se para ir à guerra.
Embora não tenham reis nem príncipes, e sejam iguais entre si, a natureza lhes ensinou o mesmo que era
observado entre os lacedemônios, isto é, que os velhos a quem chamam Peorerou-picheh | pe‟ē oré rubixáb
“vocês são nossos chefes” |, em virtude da sua experiência devem ser respeitados e obedecidos nas aldeias
quando surge a ocasião”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 184.
525
“A árvore a que os selvagens chamam Choyne | cúi‟ýba | é de tamanho médio; suas folhas verdes
assemelham-se às do loureiro; seu fruto é volumoso como uma cabeça de menino e tem forma de um ovo de
avestruz; não é comestível. Como esse fruto tem a casca dura, os Toüoupinambaoults o conservam inteiro,
perfurando-o ao comprido, com ele fazendo o instrumento chamado Maraca | maracá |, já referido. Quando
cortados ao meio, e esvaziados, servem tanto para fazer xícaras em que bebem, como outras pequenas vasilhas
para diversos fins”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América,
Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 175-176; “Quanto às árvores que produzem o algodão, há
muitas no Brasil, as quais crescem a uma altura mediana; a flor é uma campânula amarela semelhante à flor da
abóbora na Europa; quando o fruto está maduro, fende-se em quatro partes, saindo o algodão (que os americanos
chamam Ameni-iou | amynijúb |) em flocos ou capulhos, no meio dos quais se encontram caroços pretos muito
unidos em forma de rim, da grossura e comprimento de uma fava. As mulheres selvagens preparam e fiam o
169
habitantes das terras brasileiras – que será nosso objeto de análise no próximo capítulo –, a
sabedoria e racionalidade são características que marcadamente apontam para a imagem de
Deus no homem, e Jean de Léry não as deixa de descrever.526 Justiça527 e bondade528 também

algodão para fazer as redes do modo que descreverei adiante”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à
Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 177.
526
“Os nossos Toüoupinambaoults | Tupinambá | muito se admiram ao ver os franceses e outros estrangeiros se
darem ao trabalho de ir buscar o seu Araboutan. Uma vez, um velho perguntou-me: “Por que vindes vós outros,
Mairs | maír | e Peros | peró | (franceses e portugueses), buscar lenha de tão longe para aquecer? Não tendes
madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não queimávamos,
mas a utilizávamos, tal qual o faziam eles para pintar em vermelho os seus cordões de algodão e suas plumas,
para extrair tinta para tingir.
Retrucou o velho imediatamente: “E porventura precisais de tanta?” – “Sim,” respondi-lhe, “pois no nosso país
existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis
imaginar, e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados”. – “Ah!” retrucou
o selvagem, “tu me contas maravilhas”, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: “Mas
esse homem tão rico de que me falas não morre?” – “Sim,” disse eu, “morre como os outros”.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam insistir em qualquer assunto até o fim; por isso,
perguntou-me de novo: “E quando morre, para quem fica o que ele deixa?” – “Para seus filhos, quando os tem,”
respondi; “e na falta destes, para os irmãos ou parentes mais próximos”. “Na verdade,” – prosseguiu o ancião,
que, como vereis, não era nenhum tolo – “agora vejo que vós outros Mairs sois grandes loucos, pois atravessais
o mar e sofreis grandes desconfortos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para juntar riquezas
para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! A terra que vos nutriu não será suficiente para alimentar
vossos filhos também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que, depois da nossa
morte, a terra que nos alimentou também os alimentará, por isso descansamos sem maiores cuidados”. Jean de
Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação
Darcy Ribeiro, 2009, p. 173.
527
“Coisa quase inacreditável, e de causar vergonha aos que consideram as leis divinas e humanas como simples
meios de satisfazer sua índole corrupta, os selvagens, guiados apenas pelo seu instinto natural, vivem com muita
paz e sossego. Evidentemente em refiro a cada nação de per si ou às que vivem como aliadas, pois como tratam
os inimigos já sabemos.
Se ocorre uma briga entre dois indivíduos (o que não é tão raro que, durante a minha permanência de quase um
ano entre eles, só me foi dado presenciar duas vezes), os outros não procuram separá-los ou apaziguá-los;
deixam-nos até que furem os olhos mutuamente, sem dar palavra. No entanto, se um deles é ferido, prendem o
ofensor, que recebe por parte dos parentes próximos do ofendido uma ofensa igual e no mesmo lugar do corpo;
e, se acontece morrer a vítima, os parentes do defunto tiram a vida do assassino. Em suma, é vida por vida, olho
por olho, dente por dente etc. É verdade que isso sucede muito raramente entre os selvagens, como já disse”.
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 224.
528
“São as seguintes cerimônias que os Toüoupinambaoults observam ao receber seus amigos. Apenas chega o
viajante à casa do Moussacat | moçacár | (bom pai de família que dá de comer aos forasteiros) a quem escolheu
para hospedeiro, senta-se numa rede e permanece algum tempo sem dizer palavra. É costume o visitante
escolher um amigo em cada aldeia e para a sua casa deve dirigir-se primeiro, sob pena de descontentá-lo. Em
seguida, reúnem-se as mulheres em torno da rede e, acocoradas no chão, põem as mãos nos olhos e choram as
boas-vindas ao hóspede, dizendo mil coisas em seu louvor, como por exemplo: “Tiveste tanto trabalho em vir
ver-nos. És bom. És valente.” Se o estrangeiro é francês ou outro europeu, acrescentam: “Trouxeste coisas
muito bonitas que não temos em nossa terra.” Para responder, deve o recém-chegado mostrar-se choroso
também; se não quer fazê-lo de verdade, deve pelo menos fingi-lo com profundos suspiros, como me foi dado
observar da parte de alguns de nossa nação que, com muito jeito, imitavam a lamúria dessas mulheres.
Terminada a primeira saudação festiva das mulheres americanas, o Moussacat (isto é, o velho dono da casa), que
durante um quarto de hora permaneceu sossegado num canto da casa a fazer flechas ou outra coisa, sem parecer
avistar-nos (costume bem diverso dos nossos, cheios de mesuras, abraços, beijos e apertos de mão) aproximar-
se-á então e dirá: Ere-ioubé | erejúpe |, isto é, “Você veio?” E depois: “Como vai você? O que você quer?” etc.
ao que se deve responder conforme se verá depois, no colóquio em sua língua.
Depois disso, ele perguntará se queremos comer. Se respondermos afirmativamente, mandará depressa aprontar
e trazer numa bonita vasilha de barro um pouco de farinha que comem, caças, aves, peixes, e outros manjares;
170
são atributos que indicam a realidade da imagem de Deus nos tupinambás que Jean de Léry
não deixa de identificar. Estes elementos ao serem foco do relato caracterizam os índios
tupinambás como seres humanos, a chave de leitura de Léry, portanto, é a mentalidade
calvinista que privilegia o humano por excelência como portadores da imagem de Deus.

Calvino em sua obra máxima A Instituição da Religião Cristã é enfático ao afirmar


que falar da criação do homem, deve-se considera-lo como a espécie mais nobre e mais
admirável, expressão da justiça, sabedoria e bondade de Deus.529 Expõe Calvino:

Quando, pois, Deus decretou criar o homem “à sua imagem”, porque


tal era obscuro, como explicação repetiu a expressão “à semelhança”;
como se dissesse que fazia o homem, no qual se representaria a si
mesmo como à imagem, pelos sinais de semelhança que lhe
imprimiria. (...) Então, mantenho o princípio que há pouco expus: que
a imagem de Deus se estende para toda a excelência em que sobressai
a natureza do homem entre todas as espécies animais. (...) É certo
que, mesmo em cada uma das partes do mundo, brilham determinadas
mostras da glória de Deus, de onde se pode perceber que, quando sua
imagem foi colocada no homem, tacitamente se subentende uma
antítese que eleva o homem acima de todas as outras criaturas, tal que
o separasse do comum.530

Deste modo encontramos na evidenciação deste lugar social as raízes que


determinaram o modo de “olhar” e a “leitura” que Jean de Léry apresenta quando se deparou
com os tupinambás no Brasil do século XVI, e, além disto, também construíram tanto a
descrição vívida em sua obra, quanto as consequentes representações imagéticas
posteriormente editadas.

como, porém, os selvagens não têm mesas nem bancos nem cadeiras, servem-no no chão raso. Quanto à bebida,
se você quiser um Caouin, e se ele o tiver de fato, dar-lhe-á também.
Em seguida, voltam as mulheres com frutos e objetos da terra, a fim de trocá-los por espelhos, pentes ou
miçangas para enfeites de braço. Quando alguém quer pernoitar na aldeia onde se encontra, o velho manda
armar uma bonita rede branca e, embora não faça frio nessa terra, mandará fazer três ou quatro pequenos fogos
em torno da rede, os quais serão avivados, tanto por causa da umidade como por ser de tradição, repetidas vezes
durante a noite com pequenos abanos chamados Tatapecoua | tatápecuáb |, parecidos com os leques de nossas
mulheres”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de
Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p 231-232.
529
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.1.
530
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.3.
171
Quer as imagens tenham um efeito de
alívio ou venham a provocar selvageria,
maravilhem ou enfeiticem, sejam
manuais ou mecânicas, fixas, animadas,
em preto e branco, em cores, mudas,
falantes – é um fato comprovado, desde
há algumas dezenas de milhares de anos,
que elas fazem agir e reagir.531
O nascimento da imagem está envolvido
com a morte. Mas se a imagem arcaica
jorra dos túmulos é por recusar o nada e
para prolongar a vida. As artes plásticas
representam um terror domesticado. Por
conseguinte, quanto mais apagada da
vida social estiver a morte, menos viva
será a imagem e menos vital nossa
necessidade de imagens. (Regis
Debray).532

3.2 – A Prática Imagética

A história, segundo Michel de Certeau, é uma fabricação linguística que emerge de um


lugar social, e, além disto, também é produzida a partir de uma prática. Neste sentido,
passaremos a considerar a prática imagética que se evidencia na obra de Jean de Léry. Esta
prática científica está condicionada ao lugar social que autoriza o seu discurso, desta feita, as
práticas demonstradas nas representações imagéticas de nosso viajante apontam para as
relações que o antecedem e que se constituem em sua estrutura de pensamento, portanto,
apresentam as chaves de compreensão de suas representações imagéticas, visto que, temos
diante de nós um sujeito social que externaliza em imagens a sua concepção de mundo e seu
sistema de pensamento teológico calvinista.

Do mesmo modo que a descrição da história da França Antártica, no que concerne a

531
Regis Debray, Vida e Morte da Imagem: uma história do olhar no Ocidente, Petrópolis-RJ, Vozes, 1994, p.
15.
532
Regis Debray, Vida e Morte da Imagem: uma história do olhar no Ocidente, Petrópolis-RJ, Vozes, 1994, p.
20.
172
uma estrutura de mentalidade, pode ser iniciada vislumbrando as construções do imaginário,
identificadas na festa brasileira em Rouen – já descrita em detalhes no capítulo segundo –,
assim também se dá com respeito às relações imagéticas francesas com o Novo Mundo,
porque, esta festa condensa as imagens mais antigas provindas dos normandos no início do
século XVI que vinham à costa brasileira em busca de pau-brasil. Conforme atesta Belluzzo,
que, “além de figurarem esses índios brasileiros em baixos-relevos da Igreja de Saint Jacques,
em Dieppe, eles estão presentes em conjunto de obras em Rouen, dos quais nos restam
baixos-relevos em madeira esculpida e pintada do Hôtel L‟Ile du Brésil, demolido em 1837,
hoje na coleção do museu daquela cidade”.533 No entanto, enfatiza ainda Belluzzo, que “a
obra central e instigante dessa epopeia seria a Triunfal Entrada do Rei Henrique II e da
Rainha Catarina de Médici em Rouen, em outubro de 1550, quando se encena „agradável e
magnífico espetáculo‟, com participação de índios tupinambás, talvez alguns tabajaras, ao
lado de marujos normandos”.534 Temos assim correlação e convergência de um ponto
conceitual fundante em comum na festa brasileira em Rouen.

O modelo da arte francesa fora derivado do italiano que se valia da mitologia pagã, a
mesma eleita pelo humanismo, expressão do renascimento clássico francês do século XVI,
interligando a cultura grega aos triunfos dos imperadores romanos. 535 Era costume da cidade
de Rouen presentear o rei com estátuas de ouro como expressão do seu poder. 536 O rei
Henrique II recebeu um livro que servia de roteiro durante a encenação contendo dez
miniaturas coloridas, entre as quais se encontrava “a iluminura Le Bal des Brésiliens
representa a cidade teatralizada pela decoração cenográfica, preparada para o cortejo solene
por ocasião da visita dos reis”.537 Todo o espetáculo constrói um simbolismo alegórico que
produz uma gama enorme de representações imagéticas, conforme atesta Belluzzo: “o

533
Ana Maria de Moraes Belluzzo, A Imaginação do Desconhecido in Tânia Maria Tavares Bessone, Tereza
Aline P. Queiroz (orgd.), América Latina: imagens, imaginação e imaginário, São Paulo, EDUSP, 1997, p. 326.
534
Ana Maria de Moraes Belluzzo, A Imaginação do Desconhecido in Tânia Maria Tavares Bessone, Tereza
Aline P. Queiroz (orgd.), América Latina: imagens, imaginação e imaginário, São Paulo, EDUSP, 1997, p. 326.
535
Cp. “O relato de Jean de Léry, originalmente intitulado Histoire d‟un voyage fait en la terre du Brésil,
aparece na França em 1578, descrevendo o que ele teria presenciado em expedição à malograda França
Antártica. O texto é extremamente representativo, quer pelo exemplo de relato erudito do Renascimento francês
(que se utiliza muitas vezes de modelos da Antiguidade clássica para estabelecer uma valorização positiva dos
homens do Novo Mundo) quer pela forma, já que é uma das primeiras narrativas no processo de invenção do
Brasil no século XVI (e que tem sido levado adiante nos séculos seguintes, seja pelo surgimento de outros relatos
seja pelas releituras dos já existentes)”. Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza
em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 73.
536
Ferdinand Denis, Uma Festa Brasileira celebrada em Rouen em 1550, São Bernardo do Campo, Usinas de
Ideias/Bazar das Palavras, 2007, p. 33, 35.
537
Ana Maria Belluzzo, A Propósito d‟o Brasil dos Viajantes in O Brasil dos Viajantes, Revista Usp (30), São
Paulo, jun/jul/ago 1996, p. 14.
173
estabelecimento de aproximações espaciais e parentescos humanos anula distâncias e
diferenças. A arte é esse lugar simbólico em que se desenham paisagens desejadas. A
imaginação do Renascimento clássico francês contempla um novo concerto geográfico, de
acordo com suas aspirações de conquista”.538 Lembremos mais uma vez, o lugar de onde se
fala determina o limite do discurso, mas também estabelece as temáticas que são relevantes
para o historiador.539

A primeira edição dos relatos de viagem do huguenote francês Jean de Léry surgiu em
1578, a partir daí, diversas edições posteriores se sucederam conforme atesta Nelson Werneck
Sodré em seu livro: O que se deve ler para conhecer o Brasil: “já em 1580, em Genebra,
aparecia a segunda edição; a terceira é de 1585, a quarta de 1594, a quinta de 1599, a sexta de
1600”.540 Entretanto, nos dedicaremos às imagens que compõem o livro em sua edição
original: Jean de Léry, Histoire d‟um Voyage Fait em La Terre Du Bresil, Autrement Dit
Amérique, La Rochelle, Antoine Chuppin, 1578 (fac-símile), por julgarmos que nesta edição
contenha representações imagéticas veiculadas à obra sob os auspícios do autor, e deste modo,
são um reflexo fidedigno de sua mentalidade calvinista.541

É importante salientar que as mais diversas edições, nas mais distintas línguas as quais
este texto foi traduzido, possuem imagens produzidas por Theodore de Bry (1528-1598)
principalmente a partir dos próprios relatos de Jean de Léry. Theodore de Bry nasceu em

538
Ana Maria Belluzzo, A Propósito d‟o Brasil dos Viajantes in O Brasil dos Viajantes, Revista Usp (30), São
Paulo, jun/jul/ago 1996, p. 14.
539
Cp. Maria Cândida Ferreira de Almeida, Tornar-se o Outro: o topos canibal na literatura brasileira, São
Paulo, Annablume, 2002, p. 132.
540
Nelson Werneck Sodré, O Que se Deve Ler para Conhecer o Brasil, 7ª. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
1997, p. 330.
541
“Em relação aos demais assuntos, os sumários dos capítulos já dizem bem do que tratam e, entre estes, o do
primeiro já revela a causa de nossa viagem à América. Por outro lado, de acordo com o que prometi na primeira
edição, além das cinco figuras de selvagens, outras foram ajuntadas para o prazer dos leitores, e se não há outras
mais foi em razão das despesas que acarretariam, segundo alegou o editor”. Jean de Léry, História de uma
Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p.
72; “Para dar uma justa ideia dos artifícios já descritos, usados pelos selvagens para adornar e enfeitar o corpo,
seriam necessárias muitas figuras em cores, o que exigiria um livro especial”. Jean de Léry, História de uma
Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p.
135. Ao que parece Jean de Léry não sabia desenhar: “Uns oito dias depois de chegarmos à ilha em que se
encontrava Villegagnon, os selvagens trouxeram-nos um desses Coati o qual, como é de imaginar, foi muito
apreciado pela novidade. Por ser tão estranho em comparação com os animais da Europa, mais de uma vez pedi
a um certo Jean Gardien, hábil desenhista da nossa comitiva, que mo desenhasse juntamente com outros animais
desconhecidos na Europa; infelizmente ele nunca me atendeu”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à
Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 155. Cp. “Jean
de Léry também dispunha no Brasil de um „expert en l‟art du portrait‟, que possibilitou a inclusão mais concisa
de cinco imagens originais dos índios brasileiros”. Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso
e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 106,
108.
174
Liége, mas mudou-se em 1570 por razões religiosas para Frankfurt, que era protestante,
iniciando seu ofício de gravador e editor, juntamente com seus filhos, Jean-Théodore (1561-
1620) e Jean-Israël (c 1570-1611). “Em As grandes viagens, publicadas entre 1593-1603,
quase todos os autores editados por de Bry, que soube ilustrar seus relatos a partir de esboços,
pertenciam, como Léry, à religião reformada e denunciavam a violência da colonização
ibérica”.542 Mesmo sabendo de sua importância, não trataremos das imagens produzidas por
Theodore de Bry, mas apenas nos concentraremos somente nas representações imagéticas
contidas na primeira edição da obra de Jean de Léry sobre o Brasil.

A intenção primordial de Jean de Léry é apresentar aos europeus por meio das
representações imagéticas o índio tupinambá como de fato ele é, a realidade indígena em seu
contexto vivencial. Estas representações imagéticas apontam para fora do Novo Mundo com
o intuito de mostrar o real. Ouvir o Outro é valorizar a alteridade, é perceber o Outro como a
palavra que fala e comunica proposições valorativas. A lição imagética que Léry apresenta,
traspondo tempo e espaço, é a importância de ouvir o Outro. Vai além, ao expressar, fundado
em sua estrutura de pensamento calvinista, o índio tupinambá como ser humano, portanto,
digno de valor e importância. Como enfatiza Almeida: “o gravador, tal como Jean de Léry,
também publicado na America tercia pars, retrata o índio dentro de uma visão do humano,
minimizando a violência contida no ritual antropofágico e tomando o selvagem como um ser
produtor de símbolos e dotado de uma cultura profundamente diferente da europeia, porém já
humana”.543

Sintetiza Belluzzo, e também já nos conferindo uma chave de leitura para nos
aproximarmos às imagens apresentadas por Jean de Léry, enfatiza que suas representações
imagéticas são figuras clássicas em seu significado e em sua forma, em contra partida às
alegorias e representações naturalistas próprias do medievo. Deste modo, as imagens em Léry
ganham relevância para a construção do bom selvagem segundo os padrões de ordem
clássica.544

542
Julio Bandeira, Canibais no Paraíso: a França Antártica e o imaginário europeu quinhentista, Rio de
Janeiro, Mar de Idéias, 2006, p. 84.
543
Maria Cândida Ferreira de Almeida, Tornar-se o Outro: o topos canibal na literatura brasileira, São Paulo,
Annablume, 2002, p. 141.
544
“Algumas de suas ilustrações ultrapassam o teor iconográfico e tendem à maior autonomia. Desgarram do
texto pela unidade narrativa de concepção espacial. Suas significações também não dependem de um nexo de
sucessão. Em conjunto, parecem configurar o ciclo da vida e da morte, da guerra e da dança, dos rituais
tupinambás com os amigos viajantes estrangeiros. Desse grupo de cinco ilustrações estará ausente o tema de
175
Neste contexto seguimos o conceito, a partir de Michel de Certeau, que a operação
historiográfica também se constitui em uma fabricação imagética como uma produção de
sentido. Nesta operação Jean de Léry cria o lugar onde o tupinambá tem direito à fala por
meio das táticas visuais. Desta feita, o índio é colocado imageticamente como um espelho
que possibilita a compreensão de si mesmo ao próprio Léry. Contudo, as regras que
estabelecem as estruturas de interpretação das imagens estão condicionadas aos parâmetros
institucionais aos quais o historiador está inserido, porquanto, não há como ser diferente,
porque não existe neutralidade semântica.

Se a escrita coloca em cena o ausente, a imagem certamente também o faz. No


entanto, o paradoxo permanece, já que o sepultamento o acompanha. A imagem só faz
sentido, somente se sustenta, por causa da ausência do Outro. Neste caso, a representação
imagética é o sepulcro do Outro, na mesma medida que é a sua materialização, a possibilidade
de transpor o tempo e o espaço. Com as representações imagéticas, Jean de Léry organiza a
relação entre a etnologia e a história, transformando a alteridade em identidade tupinambá
fazendo com que o próprio índio transmute a inconsciência em consciência de si mesmo. O
resultado é a possibilidade de retenção do Outro pelo mesmo, em uma circularidade que viaja
do mesmo ao Outro, retornando a si mesmo, e nesta viagem imagética, constrói uma tradução
da realidade indígena. Uma verdadeira operação historiográfica por meio de signos
carregados de sentidos.

Jean de Léry nos oferece uma descrição daquilo que viu em solo brasileiro, os
habitantes da terra, seu modo de vida e tantas coisas mais que lhe chamaram muito a atenção,
descreve tais coisas de um modo amplamente minucioso e detalhista.545 Vejamos o seu relato
e as suas impressões dos primeiros habitantes do Brasil no século XVI, os índios tupinambás
relacionando as representações imagéticas às suas interpretações explicativas
correspondentes. Vamos às imagens e às descrições escriturísticas feitas por Léry
relacionadas às representações.

teor mais conflitivo: a relação dos conhecidos índios canibais com os inimigos. Essas cenas de luta e devoração
não têm equivalência na atitude contemplativa e na dimensão construtiva dos desenhos”. Ana Maria de Moraes
Belluzzo, A Imaginação do Desconhecido in Tânia Maria Tavares Bessone, Tereza Aline P. Queiroz (orgd.),
América Latina: imagens, imaginação e imaginário, São Paulo, Edusp, 1997, p. 329-330.
545
Cp. Ronald Raminelli, Imagens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1996, p. 46; Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, vol. I (1550-1794), São
Paulo, Cultrix/EDUSP, 1977-78, p. 40-41; Sergio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: os motivos edênicos
no descobrimento e colonização do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 2000, p. 377-378.
176
Figura 2

546

546
Jean de Léry, Histoire d‟um Voyage Fait em La Terre Du Bresil, Autrement Dit Amérique, La Rochelle,
Antoine Chuppin, 1578, p. 122.
177
No capítulo VIII da História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, “Sobre a índole, força, estatura, nudez, disposição e ornatos de corpo dos homens e
mulheres selvagens brasileiros, habitantes da América, entre os quais permaneci quase um
ano”, Jean de Léry começa o seu registro ordenado proveniente da sua observação vivencial
com os índios tupinambás, com os quais viveu “familiarmente”, enfatizando a sua
circularidade hermenêutica:

Não são maiores nem mais gordos nem menores de estatura do que os
europeu; nem têm os corpos monstruosos ou estranhos a nosso ver;
são, porém, mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem-
dispostos e menos sujeitos a moléstias, encontrando-se entre eles
muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de
chegarem muitos a 100 ou 200 anos (sabem contar a idade pela
lunação), poucos são os que ao envelhecer têm os cabelos brancos ou
grisalhos, o que comprova não só o bom clima da terra, como disse
anteriormente, sem geadas nem frios excessivos que perturbem o
verdejar permanente dos campos e da vegetação, mas, ainda, que
pouco se preocupam com as coisas deste mundo. E, de fato, nem
bebem eles nessas fontes lodosas e pestilenciais que nos corroem os
ossos, dessoram a medula, debilitam o corpo e consomem o espírito,
essas fontes em suma que, nas cidades, nos envenenam e matam,
antes do tempo, e que são a desconfiança e a avareza, os processos
judiciais e as intrigas, a inveja e a ambição. Nada disso os inquieta e
menos ainda os apaixona e domina, como adiante mostrarei. E todos
eles parecem beber da Fonte da Juventude.547

Jean de Léry apresenta uma perspectiva realista ao descrever os índios tupinambás,


além de demover a perspectiva do imaginário medieval de que estes habitantes seriam
monstruosos, como bem foi desenvolvido pelo historiador Claude Kappler. 548 Mostra em seu
relato “um progressivo afastamento do „maravilhoso‟ e do „fantástico‟”549, uma perspectiva
onde “a geografia da experiência lentamente suplanta a do imaginário”550, marcas
características da estrutura de pensamento da modernidade. Esta característica de
cientificidade encontrada em Léry é um produto da relação do calvinismo com o pensamento
renascentista que se expressa na “afirmação de um empirismo ainda mediado pela fé”.551
Expressa assim, um afastamento do imaginário edênico ao transpor esta fronteira rumo a um

547
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 128-129.
548
Claude Kappler, Monstros, Demônios e Encantamentos no Fim da Idade Média, São Paulo, Martins Fontes,
1994.
549
Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade, São
Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 54.
550
Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade, São
Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 54.
551
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 122.
178
realismo que aponta para o concreto. Deste modo, em Léry evidenciamos uma perspectiva
com a qual “a „experiência‟ e o „vivido‟ são constantemente reivindicados como status de
verdade, mas que, em Léry, são limitados pela recusa em negar o texto bíblico”.552 Em Jean
de Léry, portanto, encontramos um olhar diferenciado e original na forma de entender e
interpretar o habitante do Novo Mundo.

O olhar valorativo do ser humano proveniente da mentalidade calvinista é aqui


naturalmente aplicado ao tupinambá reconhecendo-o como humano. Em um primeiro
momento equiparando-o ao europeu, para logo em seguida apresentar o indígena como
superior ao habitante do Velho Mundo, em grande medida pelo desprendimento deste dos
bens materiais. A chave de leitura de Léry está em sua ética calvinista, em especial ao
conceito de frugalidade, caracterizado em especial, pela não preocupação excessiva com as
coisas deste mundo. Calvino defende que Deus “recomendou a frugalidade e a temperança, e
proibiu que o homem exceda por causa da sua abundância”.553 Deste modo, os que são
possuidores de riquezas “devem lembrar que o excedente não deve ser usado para
intemperança ou luxúria, mas para aliviar as necessidades dos irmãos”.554 Os tupinambás,
mesmo sem consciência disto, estão vivendo o ideal bíblico identificado por Calvino e
apreendido por Jean de Léry.

Segue a descrição comparativa do índio tupinambá utilizando o europeu como um


referencial de interpretação. A cor da pele é morena como os espanhóis e provençais. Vivem
todos nus como saíram do ventre materno, sem qualquer pudor ou vergonha. Nega Léry mais
uma vez a interpretação animalesca que supostamente os tornaria presas da opressão
destrutiva europeia ao destacar: “não são, como alguns imaginam e outros o querem fazer
crer, cobertos de pelos ou cabeludos. Ao contrário. Têm pelos como nós, mas os arrancam
com as unhas ou pinças que lhes dão os cristãos, apenas lhes respontam em qualquer parte do
corpo, mesmo nas pálpebras e sobrancelhas”.555 Curiosamente arrancam os pelos das
pálpebras e das sobrancelhas que, segundo Léry, cria uma vista zarolha e feroz; os cabelos são

552
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 122. Continua Silva: “Léry não se entrega à
sedução fácil do relato fantástico ou do edenismo. Prefere valer-se, fundamentalmente, da estratégia da surpresa,
com um constante movimento pendular de aproximação e afastamento, o que permite a construção do inesperado
que desconcerta os hábitos da razão europeia”. Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e
natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 124.
553
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, p. 177.
554
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, p. 177.
555
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 129.
179
tosquiados na parte superior e anterior do crânio, idêntico à coroa de frade.556

Jean de Léry apresenta a descrição que fundamenta a representação imagética, e


também a explica. Fica evidente a intensão do viajante em apresentar todos os detalhes que
lhe são perceptíveis no seu olhar. O propósito é ser o mais realista possível. Eis o relato
descritivo:

Assim, mostrei amplamente tudo o que se poderia dizer sobre o


exterior dos corpos tanto dos homens como dos meninos americanos;
se se mantiver em primeiro plano esta descrição, podereis agora
figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem
conformado e proporcionado de membros, inteiramente depilado, de
cabelos tosados como já expliquei, com lábios e faces rachados e
enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e
igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de
preto com o suco de Genipat, e com colares compostos de uma
infinidade de pequenos fragmentos de conchas que eles chamam
Vignol, pendurados ao pescoço, e havereis de vê-lo tal como é
ordinariamente em seu país e tal como o vereis retratado mais adiante,
com apenas seu crescente de osso bem polido sobre o peito e sua
pedra no buraco do lábio. Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas
e o vereis retratado bem garboso ao vosso lado. Em verdade, para
completar o quadro, colocamos junto a esses Toüoupinambaoults uma
de suas mulheres, com o filho preso a uma cinta de algodão e
abraçando-lhe as ilhargas com as pernas. Ao lado de ambos, há que
pôr ainda um leito de algodão feito como rede de pescaria e suspenso
no ar. E acrescentamos o fruto chamado Ananas |nanã “ananás,
abacaxi”|.557

Partindo do pensamento de Michel de Certeau, podemos afirmar que esta espécie de


operação imagética visa fabricar uma interpretação fundamentada no real vivido, enfatizando
a relação entre o documento, a natureza, com uma produção cultural segundo os signos
renascentistas que evidenciam a valorização do humano através de categorias clássicas. Deste
modo, as representações imagéticas em Jean de Léry são compromissadas com o real,
demonstrando um historiador que testemunha a partir de sua vivência empírica. Tais
características explicam não somente as relações teóricas nesta primeira representação
imagética, mas aplicam-se às demais, às quais iremos pela frente apreciar em maiores
detalhes, em conjunto com o relato contextualizado registrado na História de uma Viagem
feita à Terra do Brasil, também chamada América.

556
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 129.
557
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 133, 135.
180
Figura 3

558

558
Jean de Léry, Histoire d‟um Voyage Fait em La Terre Du Bresil, Autrement Dit Amérique, La Rochelle,
Antoine Chuppin, 1578, p. 231, 249.
181
Enquanto isto no capítulo XV “Sobre o tratamento que os americanos dão a seus
prisioneiros de guerra e as cerimônias que observam, tanto ao matá-los quanto ao comê-los”,
circunscrito ao contexto da antropofagia ritual, após o sacrifício ritual e a divisão dos espólios
físicos do inimigo, os tupinambás conservam as caveiras aos montes na aldeia, registra Léry
que quando os franceses estão entre eles, “a primeira coisa que fazem é contar-lhes as suas
proezas e mostrar-lhes esses troféus descarnados, dizendo que o mesmo farão a todos os seus
inimigos”.559 Ao que parece, os índios usam as caveiras com um intuito simbólico para
representar suas conquistas, mas também para intimidar os estrangeiros. Supostamente este
seria um fato constrangedor para ser registrado por um estrangeiro, contudo, nosso viajante
demonstra qualquer sentimento de vergonha ou, quiçá, este seria um momento para reduzir a
humanidade do tupinambá, no entanto, apresenta um relato objetivo e isento. Enquanto os
ossos das pernas e braços são utilizados para um objetivo curioso, fazer flautas e pífanos, já os
dentes são perfurados e organizados como contas de colares, a serem utilizados como um
adorno no pescoço.

O executor dos sacrifícios é detentor de uma atividade em extremo honrosa para os


tupinambás, pois, “depois de praticado o feito, retiram-se em suas casas e fazem no peito, nos
braços, nas coxas e na barriga das pernas sangrentas incisões. E, para que permaneçam por
toda a vida, esfregam-nas com um pó negro que as torna indeléveis”.560 O número de vítimas
é registrado pelo número de cortes que o executor carrega no corpo, o que lhe confere um
maior status diante dos seus pares.

Por fim, registra Léry como uma espécie de legenda à representação imagética:

Para melhor entendimento, representei aqui um desses selvagens com


incisões e, ao lado, outro que atira com o arco. E se, após essa tão
estranha tragédia as mulheres concedidas aos prisioneiros engravidam
deles, os selvagens que mataram os pais, alegando que essas crianças
procedem da semente de seus inimigos (coisa horrível de ouvir e mais
ainda de ver), comerão uns logo após o nascimento ou, se lhes apraz
melhor, antes disso os deixarão crescer um pouco.561

559
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 198.
560
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 198.
561
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 198-199.
182
Figura 4

562

562
Jean de Léry, Histoire d‟um Voyage Fait em La Terre Du Bresil, Autrement Dit Amérique, La Rochelle,
Antoine Chuppin, 1578, p. 275.
183
De volta ao capítulo VIII da História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América, “Sobre a índole, força, estatura, nudez, disposição e ornatos de corpo dos
homens e mulheres selvagens brasileiros, habitantes da América, entre os quais permaneci
quase um ano”, Jean de Léry, descreve em detalhes os ornamentos utilizados pelos
tupinambás quando vão à guerra ou quando participam do sacrifício ritual do prisioneiro.
Assim, “os selvagens brasileiros enfeitam-se com vestes, máscaras, braceletes e outros
adereços de penas verdes, encarnadas ou azuis, de incomparável beleza natural, a fim de
mostrar-se mais belos e mais bravos”.563 Todos estes ornamentos corporais são “muito bem
misturadas, combinadas e amarradas umas às outras sobre treliças de madeira e com fios de
algodão, formam vestuários que parecem de pelúcia e que podem rivalizar com os dos
melhores artesãos de França”.564 Seguindo o mesmo princípio, os tupinambás ornamentam
os acessórios de guerra, espadas e clavas, que para Léry, “produzem um efeito
deslumbrante”.565 Para o vestuário, os índios fazem uso de grandes penas de avestruz que
organizam como uma rosa para atar à cintura.

Quando os índios se reúnem para dançar, beber e cauinar, além da música que cantam,
também usam um fruto que depois de seco tiram-lhe as sementes e substituem por pequenas
pedras, então, amarram-nas aos tornozelos para produzir sons que os anime mais ainda à
dança e à cantoria.

Também fazem uso de um instrumento musical chamado maracá, feito de um fruto


semelhante ao ovo de avestruz que é furado no centro e esvaziado, colocando pequenas pedras
ou grãos de milho, coloca-lhe um pedaço de pau. O tal instrumento produz um grande
barulho. Descreve Jean de Léry: “os brasileiros os trazem em geral na mão e quando adiante
me referir à sua religião direi qual a sua opinião acerca do Maraca e da sua sonoridade,
sobretudo depois que esses objetos são enfeitados com lindas plumas e empregados em
determinada cerimônia”.566 O instrumento era parte essencial da cerimônia que determinava o
ingresso à guerra contra o inimigo. Usado em uma espécie de previsão de vitória antecipada.

563
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 132.
564
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 132.
565
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 132.
566
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 133.
184
Figura 5

567

567
Jean de Léry, Histoire d‟um Voyage Fait em La Terre Du Bresil, Autrement Dit Amérique, La Rochelle,
Antoine Chuppin, 1578, p. 315.
185
No capítulo XVIII, “Sobre o que podemos chamar leis e polícia civil entre os
selvagens; o modo humano com que tratam os visitantes amigos; e os prantos e discursos
festivos das mulheres por ocasião das boas-vindas”, Jean de Léry descreve a etiqueta da
prática tupinambá quando recepciona os seus amigos como uma sociedade organizada em
costumes e regras extremamente humanas e cordatas. O viajante quando chega à casa do seu
hospedeiro senta-se em uma rede e permanece em silencio por algum tempo. “É costume o
visitante escolher um amigo em cada aldeia e para a sua casa deve dirigir-se primeiro, sob
pena de descontentá-lo. Em seguida, reúnem-se as mulheres em torno da rede e, acocoradas
no chão, põem as mãos nos olhos e choram as boas-vindas ao hóspede, dizendo mil coisas em
seu louvor”.568 O hóspede deve responder chorando do mesmo modo, não precisa ser sincero,
mas, deve ser no mínimo encenado com profundos suspiros, aponta Léry. O dono da casa até
então apenas em um canto fazendo flechas, após o choro das mulheres, chega-se ao hóspede
para recepcioná-lo.

Continua Jean de Léry a descrever a recepção cordata que os índios tupinambás


dedicam aos seus visitantes:

Depois disso, ele perguntará se queremos comer. Se respondermos


afirmativamente, mandará depressa aprontar e trazer numa bonita
vasilha de barro um pouco da farinha que comem, caças, aves, peixes,
e outros manjares; como, porém, os selvagens não têm mesas nem
bancos nem cadeiras, servem-no no chão raso. Quanto à bebida, se
você quiser um Caouin, e se ele o tiver de fato, dar-lhe-á também.
Em seguida, voltam as mulheres com frutos e objetos da terra, a fim
de trocá-los por espelhos, pentes ou miçangas para enfeites de braços.
Quando alguém quer pernoitar na aldeia onde se encontra, o velho
manda armar uma bonita rede branca e, embora não faça frio nessa
terra, mandará fazer três ou quatro pequenos fogos em torno da rede,
os quais serão avivados, tanto por causa da umidade como por ser
tradição, repetidas vezes durante a noite com pequenos abanos
chamados Tatapecoua | tatápecuáb |, parecidos com os leques de
nossas mulheres.569

568
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 231.
569
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 232.
186
Figura 6

570

570
Jean de Léry, Histoire d‟um Voyage Fait em La Terre Du Bresil, Autrement Dit Amérique, La Rochelle,
Antoine Chuppin, 1578, p. 335.
187
A última imagem apresentada por Jean de Léry, dentro de uma lógica cronológica, é a
representação fúnebre nas práticas tupinambás no capítulo XIX, “Sobre como os selvagens se
tratam em suas doenças; sobre seus funerais, suas sepulturas, e os grandes choros que fazem
por seus mortos”. Registra Léry que, ao adoecer, um tupinambá rapidamente mostra ao
amigo a parte do corpo que fora acometida pela doença, o amigo chupa está parte, ou o pagé,
“os quais lhes fazem crer não somente que os curam, mas ainda que lhes prolongam a
vida”.571 Os índios em razão do clima estariam menos sujeitos às doenças comuns aos
europeus, no entanto, Léry descreve uma doença dita sem cura:

Sofrem os nossos americanos de uma moléstia incurável denominada


Pians | piã | e que têm por causa da luxúria; vi, apesar disso, meninos
tão atacados dessa doença que se pareciam com variolosos.
Transformando-se o mal em pústulas mais grossas do que o polegar,
que se espalham por todo o corpo, os indivíduos que o contraem
ficam cobertos de marcas que se conservam durante a vida toda, tal
como entre nós ocorre aos variolosos e cancerosos que se
contagiaram na torpeza e na impudicícia.572

Curiosamente os tupinambás, por grave que seja a doença que os acometa, nada
concede de comida aos doentes, mesmo que sejam obrigados a ficar acamados por um mês. E
ainda, “nada impede os que estão com saúde de dançar, cantar, beber e se divertir com grande
bulha em torno da pobre vítima, a qual, consciente de que de nada adiantaria lastimar-se, se
conforma em ouvir a algazarra silenciosamente”.573 No entanto, se vier a morrer o doente, a
festa transforma-se subitamente em um pranto de tão grande barulho, que não era possível
dormir se estivessem em uma aldeia onde o rito ocorresse, e enfatiza: “as mulheres,
sobretudo, se exaltam nas lamentações e gritam tão alto que mais parecem cães ou lobos a
uivar”.574 Continua Léry o relato: “assim fazem as nossas americanas, repetindo a cada
estância o estribilho: “Morreu, morreu, aquele que agora lamentamos.” E os homens então
respondem dizendo: “Em verdade, não o veremos mais, a não ser quando formos para além
das montanhas, onde, como nos ensinam os nossos Caraibes | caraíba |, dançaremos com
ele.”.575 Contudo, o rito fúnebre dura apenas meio dia, porque os tupinambás não gastam

571
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 239.
572
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 239.
573
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 240.
574
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 240.
575
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 240-242.
188
muito tempo com tais cerimônias por não ser costume manter os cadáveres sem o
sepultamento, além deste período de tempo. Descreve Léry: “depois de aberta a cova, não
comprida como as nossas, mas redonda e profunda como um tonel de vinho, o corpo, que terá
sido dobrado logo após ter expirado, com os braços e as pernas amarrados em volta, é
enterrado quase de pé”.576 Mas, se o morto é um bom velho, então o sepultamento ocorre na
sua própria casa, enrolado em sua rede de algodão, com os seus colares, plumas e pertences
pessoais.577

Seguimos a análise de Belluzzo, historiadora da arte, em seu texto “A lógica das


imagens e os habitantes do Novo Mundo”, em que defende a norteadora tese central de que a
obra de Jean de Léry situa-se de um modo exemplar no “relato erudito do renascimento
francês, que se utiliza de modelos da antiguidade clássica para estabelecer uma valorização
positiva dos homens do Mundo Novo”.578 Léry representa o índio segundo o nu
proporcionado e o corpo completamente sem pelos, dispensado atenção especial à verdade
etnológica, ao “revelar o corte dos cabelos, a ornamentação facial com pedras, as marcas das
vitórias ostentadas pelos selvagens nos riscos de suco de genipapo nas pernas”.579 Assinala
Belluzzo que Jean de Léry não faz inserções despropositadas em suas representações
imagéticas, tão pouco nas suas descrições dos índios tupinambás, porém, tudo possui um
propósito muito bem pensado, porque, “afirmar que os índios se depilam é distanciá-los dos
seres peludos que habitam a floresta. Expor marcas de guerra é mencionar a coragem e a
bravura, aludidas pelos troféus de cabeças inimigas aos seus pés”.580

A semântica das representações imagéticas está fundamentada nas inter-relações


existentes, primeiramente entre as partes constituintes de cada imagem, e, além disto, também
aponta para uma conceituação entre as próprias representações. Portanto, Jean de Léry tem
como objetivo “uma razão formal abstrata”581, ao compor suas representações segundo
parâmetros clássicos, resgatados pelo renascimento, construídos pelos princípios da

576
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 240-242.
577
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 240-242.
578
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 47.
579
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 50.
580
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 50.
581
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 50.
189
proporcionalidade do corpo, transpondo o índio tupinambá ao campo da idealização, e deste
modo, o objetivo pretendido por Jean de Léry foi mostrar o habitante das terras brasileiras
segundo as categorias que apontam para a realidade da universalidade humana. Enfatiza
Belluzzo:

Evitando a combinação aditiva das figuras, Léry as superpõe para não


justapor. O corpo frontal e o corpo de perfil sob o eixo de rotação é
um recurso que equivale à variação de pontos de vista. Está, por outro
lado, de acordo com o relativismo cultural de Léry, que seria capaz de
reconsiderar Plínio e Ovídio diante dos fatos da América. Para ele, o
mundo natural é um conjunto ordenado e o homem ocupa o seu
centro.582

Nesta análise imagética temos mais uma prova do lugar privilegiado que o índio
tupinambá ocupou no relato interpretativo de Jean de Léry, porque, apresenta em sua
operação imagética o relativismo cultural que lhe é próprio, um olhar inovador e diferenciado
ao destacar o Outro no lugar central de sua interpretação. Léry, além de colocar o índio como
uma figura humana destacada e isolada, portanto exaltada, ainda acrescenta animais
domésticos e frutas ao seu redor, o interesse é apresentar a realidade dos fatos como vividos e
presenciados, a vida do cotidiano em sua vivacidade.

O corpo dos índios é representado como um “nu atlético e apolíneo de constituição


escultural, formado por volumes, quando se sabe que a escultura e o baixo-relevo dos antigos
forneciam os modelos para a transgressão do espaço topográfico e segmentado das
representações medievais”.583 Está é uma evidência da proposição central deste trabalho que
em Jean de Léry encontramos uma perspectiva moderna que fundamenta sua estrutura de
pensamento. No entanto, mesmo se utilizando de estruturas representativas medievais, Jean
de Léry vai além, na verdade as supera, transpondo as fronteiras que lhe seriam
condicionantes na produção de uma interpretação inovadora, porque, o seu ponto de partida é
o calvinismo que lhe permite este novo olhar do mundo.

Belluzzo analisa as representações imagéticas de Jean de Léry segundo a aplicação da


rotação aos corpos indígenas:

O movimento dos índios em dança estabelece a disposição regular das

582
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 51.
583
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 51.
190
partes do corpo para diferentes direções, sendo fiel ao desejo de uma
forma racional e à unidade geométrica espacial. Pode-se adivinhar
que o discóbulo – um dos modelos da escultura grega antiga –
empresta sugestões à rotação da figura indígena, vindo a
movimentação apontar para o espaço ao redor. Afinal, não se teria
isso em mente ao se relacionar as duas figuras, sugerindo uma
seqüência de posições da primeira para a segunda, do frontal para o
perfil, do dobrado para o ereto?584

O conceito de rotação na arte tem o objetivo de mostrar um ideal de transformação de


uma realidade condicionante, deve ser “entendida como ruptura do equilíbrio estático e início
de movimento”.585 A rotação perspéctica tem o seu escopo central no índio tupinambá, como
se objetivasse representá-lo com um poder transformador da realidade que o cerca, além de
apontar, através da circularidade hermenêutica, para a sua própria ação em romper com as
estruturas de pensamento vigentes. Quando o historiador se lança em sua operação
historiográfica, ele acaba por revelar não somente os documentos que analisou, mas, também
expõe a sua própria concepção de mundo que determina a sua fabricação historiográfica. Nas
suas representações imagéticas Jean de Léry não é diferente, porque aponta para a capacidade
humana de construção da realidade.

Belluzzo, em outro texto, enfatiza que “é possível que a noção de “naturalidade” da


vida primitiva tenha vindo ao encontro do ideal dos reformadores protestantes, contrários ao
domínio do papado e capazes de uma visão crítica da artificialidade dos costumes na Europa.
O bom selvagem ganhava nessa moldura outros sentidos”.586 Além disto evidencia que “no

584
Ana Maria de M. Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.), Índios no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 50-51. Continua à frente
compara as imagens de Léry com as de Theodore de Bry: “As interpretações do nu por Theodore De Bry
apresentam algumas semelhanças com as ilustrações propostas por Jean de Léry, para quem o estado natural é
tido como verdade essencial, diferente do artificialismo da sociedade européia, apreciando a simplicidade do nu
como virtude. Nos dois autores, o corpo atlético, heróico, guerreiro, apresenta traços anatômicos. O corpo
orgânico em movimento é definido por sua estrutura interna. A proporcionalidade das partes e postura das
figuras permite associá-las aos motivos artísticos antigos. Predomina a figura humana em movimento de
expressão da vontade e da emoção, ou seja, a figuração de sentimentos universais através da representação
humana.
Longe de atenderem demandas anacrônicas da antropologia física, que reclama a representação de traços
indígenas, as figuras impõem uma melhor compreensão da tipificação clássica. De acordo com códigos estéticos
da época, as figuras humanas não se distinguem por traços faciais e raciais, mas pela ornamentação e pelas
práticas. Também se impõe a noção de beleza, que se deseja nas proporções harmoniosas entre as partes e na
relação proporcional de todas as partes entre si. A movimentação dos índios é enfim manifestação de
subjetividade, manifesta na expressão do corpo e não da face, na postura e no movimento”. Ana Maria de M.
Belluzzo, A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo in Luís Donisete Benzi Grupioni (org.), Índios
no Brasil, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 54-55.
585
Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 392.
586
Ana Maria de Moraes Belluzzo, A Imaginação do Desconhecido in Tânia Maria Tavares Bessone, Tereza
Aline P. Queiroz (orgd.), América Latina: imagens, imaginação e imaginário, São Paulo, Edusp, 1997, p. 330.
191
ambiente de renovação do século XVI francês, impunha-se uma ruptura de mentalidade”.587
Jean de Léry se encaixa exatamente neste movimento como um homem do seu tempo, no
entanto, não podemos identificá-lo somente como um reacionário com o único objetivo de
contrariar as influências do catolicismo na sociedade, mas, acima de tudo, a sua reação
transformadora da realidade é fundamentada na sua mentalidade teológica calvinista que tem
como propósito central viver para a glória do Criador.

Temos deste modo, a representação do índio segundo conceitos clássicos, uma


propriedade renascentista, evidenciado pela extração do índio de sua realidade contextual e,
além disto, Jean de Léry coloca-o no campo do ideal por meio da aplicação do conceito da
proporção em suas representações imagéticas. Este conceito de proporção apontado por
Belluzzo é central para o entendimento das mentalidades contidas nestas representações
imagéticas da obra de Jean de Léry, portanto, Panofsky nos esclarece a compreensão da teoria
da proporção, primeiramente com uma conceituação basilar, como “um sistema de estabelecer
as relações matemáticas entre as diversas partes de uma criatura viva, particularmente dos
seres humanos na medida em que esses seres sejam considerados temas de uma representação
artística”588, e ainda, “as relações matemáticas poderiam ser expressas pela divisão de um
todo, bem como pela multiplicação de uma unidade; o esforço de determiná-las poderia ser
guiado por um anseio de beleza, bem como por um interesse pelas “normas” ou, enfim, por
uma necessidade de estabelecer uma convenção; e, sobretudo, as proporções poderiam ser
investigadas com referência ao objeto da representação”. 589 O historiador Emile Léonard
defende que a ênfase em ordem e organização é característica singular em Calvino mostrando
sua relação com o humanismo590, assim sendo, podemos perceber que a ideia central da teoria
da proporção se coaduna naturalmente com a mentalidade calvinista, e deste modo foi
coerente Jean de Léry utilizá-la em suas representações imagéticas em conformidade com
suas estrutura de pensamento.

Além disto, quando lemos as descrições que Jean de Léry faz dos índios tupinambás,
fica evidente a outra possibilidade levantada por Panofsky, o desejo de demonstrar a beleza,
evidenciando a conceituação teológica calvinista que entendo o homem como um espelho da

587
Ana Maria de Moraes Belluzzo, A Imaginação do Desconhecido in Tânia Maria Tavares Bessone, Tereza
Aline P. Queiroz (orgd.), América Latina: imagens, imaginação e imaginário, São Paulo, Edusp, 1997, p. 330.
588
Erwin Panofsky, Significado nas Artes Visuais, 3.ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 90-91.
589
Erwin Panofsky, Significado nas Artes Visuais, 3.ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 91.
590
Emile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, I/La Réformation, Paris, Quadrige/Presses
Universitaires de France, 1988, p. 269.
192
beleza divina na criação. Panofsky também mostra que “a teoria das proporções humanas era
vista tanto como um requisito da criação artística, quanto como uma expressão da harmonia
preestabelecida entre o microcosmo e o macrocosmo; além do mais, era vista como a base
racional para a beleza”.591 Esta forma de relação entre macro e micro, também reflete o
entendimento calvinista acerca do homem como a imagem e semelhança de Deus, portanto,
reflexo da beleza divina neste mundo. Curiosamente Calvino também fazia uso do termo
microcosmo em referência ao homem: “verdadeiramente existem muitas coisas nesta natureza
corrupta que podem induzir ao desprezo; mas se você corretamente pesa todas as
circunstâncias, o homem é, entre outras criaturas, uma certa preeminente espécie da Divina
sabedoria, justiça e bondade, o qual é merecidamente chamado pelos antigos de mikrokosmos
„um mundo em miniatura‟”.592 Reforça Panofsky afirmando que a teoria das proporções era
“tão infinitamente valiosa para o pensamento da Renascença precisamente porque apenas essa
teoria – matemática e especulativa ao mesmo tempo, – poderia satisfazer as diversas
necessidades espirituais da época”.593 A necessidade espiritual do calvinismo era mostrar a
importância do ser humano na sua relação com Deus, deste modo Jean de Léry expressa mais
uma vez o seu compromisso com a sua estrutura de pensamento teológica.

O humano é o referencial de interpretação do mundo e o índio é o humano para Jean


de Léry. Não um simples humano, mas um humano distinto dos animais e monstros peludos
que recheavam o imaginário europeu medieval anterior às grandes descobertas, por
conseguinte, se não bastasse esta correção da mentalidade europeia, enfatiza Léry, figurando
um índio exaltado e dotado das qualidades da coragem e da bravura. Refletindo, deste modo,
o seu interesse e valorização do humano ao destacar o índio no centro, em evidência como
homem, e acima de tudo como “universalidade humana”, ou seja, o europeu tem muito o que
aprender com os habitantes do Novo Mundo.

591
Erwin Panofsky, Significado nas Artes Visuais, 3.ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 129.
592
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing, 1996, p. 92.
593
Erwin Panofsky, Significado nas Artes Visuais, 3.ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 130. “Assim dupla e
triplamente santificada (devemos considerar, como valor adicional, o interesse histórico que os “herdeiros da
Antiguidade” eram obrigados a alimentar pelas alusões esparsas dos autores clássicos pela única razão de esses
autores serem clássicos) a teoria das proporções alcançou um prestígio inaudito na Renascença. As proporções
do corpo humano eram louvadas como uma realização visual da harmonia musical; foram reduzidas a princípios
aritméticos e geométricos gerais (sobretudo a “secção de ouro” à qual este período de culto platônico atribuía
uma importância bastante extravagante; foram vinculadas aos diversos deuses clássicos, de modo que pareciam
estar investidas de uma significação arqueológica e histórica, bem como mitológica e astrológica. E novas
tentativas foram feitas – em conexão com uma observação de Vitrúvio – de identificar as proporções humanas
com as das construções e partes das construções, para demonstrar a “simetria” arquitetônica do corpo humano e
a vitalidade antropométrica da arquitetura”. Erwin Panofsky, Significado nas Artes Visuais, 3.ª ed., São Paulo,
Perspectiva, 2001, p. 130-132.
193
Para Michel de Certeau a fabricação historiográfica também se define como uma
prática, pois, o historiador sempre trabalha com objetos materiais, são suas fontes
documentais, com o objetivo de construir sua interpretação da história. Deste modo, o
historiador transforma os documentos que tem em suas mãos em um produto interpretativo e
definido semanticamente em conformidade com o lugar social do sujeito que interpreta a
história. Nesta operação o historiador atravessa uma fronteira, porque se desloca de um lugar
cultural para outro. Esta viagem histórica vai além de um simples olhar, mas é o resultado da
utilização de técnicas, para que o historiador consiga manipular estes documentos e
transformá-los em conformidade com regras específicas. Se o passado é o Outro para
Certeau, então, a historia é acima de tudo uma forma de representar a alteridade, valorizando-
a e exaltando-a. Assim é Jean de Léry, que trabalha em sua prática representativa segundo
regras modernas com o objetivo de produzir uma operação imagética que valoriza o Outro, e
o faz produzindo o espaço próprio ao índio tupinambá ao mesmo tempo em que produz uma
nova interpretação, mas esta valorativa. As representações imagéticas de Jean de Léry são na
verdade um instrumento de exorcismo da morte ao possibilitar a sociedade tupinambá um
lugar, um discurso e um passado.594

594
Françoise Dosse, A História à Prova do Tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido, São Paulo,
UNESP, 1999, p. 48.
194
Na verdade, o texto em questão convida-
nos à descoberta dos Tupinambás, mas
também dos Europeus, pois muitas vezes
é construída uma imagem em filigrana a
partir da descrição do nativo brasileiro,
parecendo-nos que a descrição dos
costumes indígenas não é mais do que
uma estratégia retórica para denunciar a
hipocrisia, a ambição e a cobiça
europeias, assumindo, portanto, a
narrativa lériana, à semelhança da
cardiniana, uma função de crítica social
(Ana Lúcia Vieira).595
Léry, ainda, aproveita para fazer crítica
interna da civilização européia mediante
a descrição idealizada que faz dos índios
e a comparação que estabelece entre eles
e os europeus. (Carlos G. Steigleder).596

3.2 – A Escrita do Outro como Referencial

Seguindo o percurso da análise imagética será de vital importância considerar mais


atentamente o conceito de perspectiva597 – uma marca importante do Renascimento598 –, pois,

595
Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry e
de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008, p. 127-128.
596
Carlos Geovane Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade, São
Luiz-MA, EDUFMA, 2010, p. 64.
597
“No Renascimento a palavra “perspectiva” – embora continuasse também a manter a sua tradicional acepção
– adquiriu um novo significado com a descoberta técnica pictórica que permitia representar uma cena
tridimensional num plano, a partir de um ponto de fuga. O primeiro tratado sobre esta técnica foi escrito por
Alberti e intitula-se De Pictura (1446). Antes dele, porém, já Masaccio (1401-1429) e Fra Filippo Lippi (1406-
1469?) tinham estabelecido correctamente alguns princípios de perspectiva. A técnica atingiu o seu apogeu com
mestres como Leonardo da Vinci (1452-1519), Albert Dürer (1471-1528) e Rafael (1483-1520), entre outros.
No seu Trattato dela Pittura, Leonardo da Vinci dedicou-lhe um longo capítulo, mas embora começassem a
circular cópias manuscritas logo após a sua morte, o tratado só veio a ser impresso em 1651. O primeiro tratado
francês sobre perspectiva foi escrito e publicado por Jean Cousin (1501-1590), mas o verdadeiro fundador da
perspectiva teórica foi Ubaldo del Monte (1545-1607), autor de um livro de referência intitulado Perspectiva
libri sex (1600)”. Luís Miguel Bernardo, Histórias da Luz e das Cores, vol. 1, 2.a ed., Porto, Universidade do
Porto, 2009, p. 279.
598
“Dentre as inovações surgidas durante o Renascimento, existe uma que marcou definitivamente a história da
ciência, da técnica e da arte: a invenção da perspectiva plana”. Andreia Guerra, Marco Braga, José Cláudio Reis,
Breve História da Ciência Moderna, das máquinas do mundo ao universo-máquina (séc. XV a XVII), vol. 2, 3.a
ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010, p. 38.
195
Jean de Léry faz uso prático deste conceito que evidencia o olhar do Outro como referencial
de interpretação do mundo que o cerca. Olhar através do índio tupinambá transformando-o
nas lentes que possibilitam enxergar e construir uma tradução do próprio europeu. O índio
tupinambá é uma janela aberta para a Europa através da qual Jean de Léry olha atentamente
com o objetivo de compreender o seu próprio mundo por meio da aplicação de uma
concepção científica de sua época, além do mais, evidencia-se como uma expressão da íntima
relação existente entre o calvinismo e o progresso da ciência moderna. 599 Assim sendo, “esse
sistema lhe permite reproduzir a natureza com maior fidelidade”.600

Segundo Panofsky, “„Perspectiva‟ é uma palavra latina que significa „ver através
de‟”.601 Em Jean de Léry, o uso da perspectiva é traduzido como um olhar através do
tupinambá para enxergar a si mesmo. Utilizada como um modo de interpretar uma
representação imagética, a perspectiva...

se transforma em uma “janela”, através da qual cremos olhar o


espaço, isto é, quando a superfície material, pictórica ou em relevo,
sobre a qual aparecem, desenhadas ou esculpidas, as formas das
figuras individuais ou das coisas, é negada como tal e transformada
no “plano figurativo” sobre o qual se projeta um espaço unitário visto
através dele e compreendendo todas as coisas – independentemente
do fato de que essa projeção seja construída com base na impressão
sensível imediata ou mesmo mediante uma construção geométrica
mais ou menos “correta”.602

Utilizado deste modo, o uso do conceito de perspectiva nas representações imagética


aponta para a intenção objetiva do autor em representar a verdade, a realidade dos fatos como
realmente se apresentam ao olhar, sem distorções ou imposições de quem as representa.603

599
“A invenção da perspectiva não teve consequências puramente técnicas ou artísticas. Pode-se dizer que foi a
expressão de uma transformação maior. Num primeiro momento, ela educou o olhar dos florentinos e, em
seguida, do restante da Europa. Diversas pinturas de outros povos da mesma época não possuem essa expressão
da tridimensionalidade. O novo olhar foi de fundamental importância para as observações que passaram a ser
feitas a partir daquele momento, tanto no campo da astronomia, com os telescópios, como no da história natural,
com os microscópios”. Andreia Guerra, Marco Braga, José Cláudio Reis, Breve História da Ciência Moderna,
das máquinas do mundo ao universo-máquina (séc. XV a XVII), vol. 2, 3.a ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2010, p. 44.
600
Maria Cândida Ferreira de Almeida, Tornar-se Outro, o topos canibal na literatura brasileira, São Paulo,
Annablume, 2002, p. 135.
601
Erwin Panofsky, A Perspectiva como Forma Simbólica in Giulio Carlo Argan, História da Arte Italiana, vol.
2, São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 108.
602
Erwin Panofsky, A Perspectiva como Forma Simbólica in Giulio Carlo Argan, História da Arte Italiana, vol.
2, São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 108.
603
No Renascimento “o espírito investigativo tomou conta desse homem “universal”, que buscou novas
maneiras de desenvolver suas obras, seja por meio do uso de novas técnicas de pintura, seja por meio do uso da
perspectiva, que o ajudaram a alcançar uma representação mais fiel da realidade”. Patrícia Rita Cortellazzo, A
História da Arte por Meio da Leitura de Imagens, Curitiba, Ibpex, 2008, p. 34.
196
Esta intenção se coaduna com o real ofício do historiador, conforme expõe Dosse ao versar
sobre Michel de Certeau como historiador:

A história permanece como uma mescla, ela nasceu de uma ruptura


inicial com o mundo da epopeia e do mito. A erudição da história
tem por função reduzir o erro da fábula, diagnosticar o falso,
escantear o falsificável, mas com uma incapacidade estrutural para
dar acesso a uma verdade estabelecida pelo vivido no passado. Esta
posição, fundamentalmente de mediação, faz com que a história se
situe entre um discurso fechado, que é seu modo de inteligibilidade, e
uma prática que remete a uma realidade.604

Essa relação inscreve Jean de Léry no ofício de historiador, ou, como segundo afirma
Michel de Certeau, Léry apresenta uma lição de escrita, uma operação historiográfica.605
Obviamente não há isenção e neutralidade do historiador que produz uma interpretação da
realidade, porquanto está inserido em um lugar social que autoriza o seu discurso. No
entanto, evidencia-se em Léry o seu desejo de não interferir consciente e premeditadamente
nas representações imagéticas, ou objetivando interesses desonestos, mas, contrariamente,
expressa uma honestidade não impositiva na sua análise. A operação historiográfica se
caracteriza como uma “revelação da verdade”.606

O objetivo primordial de Jean de Léry é apresentar o real, mesmo que condicionado às


limitações próprias da atividade histórica em reter na sua totalidade o objeto intencionado.
Desta feita, as representações imagéticas em Jean de Léry se constituem em um espelho do
real para entender a si próprio. Possivelmente o grande programa intelectual de Michel de
Certeau tenha sido o de questionar a relação entre escrita e história, até que ponto a escrita
reflete de fato o real, assim sendo, em Léry encontra um historiador que está de fato
compromissado em apresentar um discurso, escrito ou imagético, que seja compromissado
com o real que se expressa através de processos científicos modernos e inovadores, e acima
de tudo respeitosos com o sujeito historiografado.

Giulio Argan, historiador da arte, é esclarecedor ao apresentar o pensamento do


humanismo como influência produtora de modificação nas concepções de espaço e tempo.
Deste modo, “os infinitos e diversos aspectos do real classificam-se e ordenam-se em um

604
François Dosse, De Certeau: un historiador de la alteridad in Perla Chinchilla (coord), Michel de Certau, un
pensador de la diferencia, Ciudad de México, Universidad Iberoamericana, 2009, p. 21.
605
Michel de Certeau, A Escrita da História, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 214-216.
606
Françoise Dosse, A História à Prova do Tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido, São Paulo,
UNESP, 1999, p. 48.
197
sistema racional, manifestam-se em uma forma unitária e universal, o espaço. Do mesmo
modo ordenam-se os infinitos e diversos eventos que se sucedem no tempo”.607 A perspectiva
é uma ocupação formal e representativa do espaço segundo um modelo racional, Jean de Léry
expressa este modelo moderno, no entanto, vai além, porque segue em um lógica histórica,
porque, constrói uma sucessão de eventos em suas representações imagéticas. Assim, atesta
Argan a operação imagética de Jean de Léry como uma construção histórica da realidade que
presenciou, um registro compromissado com a verdade dos fatos que representa.
Observemos:

Uma vez que essa ordem não está nas coisas, mas é imposta às coisas
pela razão humana que as pensa, não há diferença entre a construção e
a representação do espaço e do tempo. A perspectiva dá o verdadeiro
espaço, isto é, uma realidade da qual é eliminado tudo o que é casual,
irrelevante ou contraditório; a história dá o verdadeiro tempo, isto é,
uma sucessão de fatos da qual é eliminado o que é ocasional,
insignificante, irracional. A perspectiva constrói racionalmente a
representação da realidade natural, a história, a representação da
realidade humana: pois que o mundo é natureza e humanidade,
perspectiva e história se integram e, juntas, formam uma concepção
unitária do mundo.608

O uso do conceito de perspectiva que é aplicado às representações imagéticas em Jean


de Léry não está condicionado às imagens somente, mas transcende a estas, e passa a figurar
em seu próprio texto de um modo pictórico. A descrição minuciosa leva o leitor a viajar
juntamente com o autor, inserindo-o na realidade a qual é construída por imagens mentais
fidedignas. De fato, o discurso escrito ou imagético na obra História de uma Viagem feita à
Terra do Brasil, também chamada América, provocam a utilização do índio tupinambá como
um paralelo de análise, um parâmetro interpretativo para a realidade europeia, e até mesmo
para o próprio europeu. Esta imagem realista converte-se em um espelho para o europeu
conhecer a si mesmo.

Esta relação entre perspectiva (espaço) e história levantada por Argan apontam para a
análise de Michel de Certeau no que diz respeito à relação entre espacialidade e
temporalidade. Para Certeau esta espacialidade apresenta-se como um quadro que coincide
com o de um sistema sem história que na construção elaborada por Jean de Léry transforma-
se em uma construção histórica, ou seja, ele concede pela operação historiográfica uma
genealogia ao índio tupinambá, um exorcismo da morte histórica. Esta concepção de mundo,

607
Giulio Carlo Argan, História da Arte Italiana, vol. 2, São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 131.
608
Giulio Carlo Argan, História da Arte Italiana, vol. 2, São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 132.
198
em Léry é exatamente a construção etnográfica que tem como objetivo a articulação das leis
que organizam o espaço que pertence ao Outro, privilegiado pela fidelidade do relato
historiográfico. Portanto, nesta dialética entre natureza e cultura a lição de escrita que Jean de
Léry apresenta se constitui como uma interpretação, uma hermenêutica do Outro, e acima de
tudo uma interpretação de si mesmo pelo Outro, a sua heterologia propriamente dita. Nesta
ciência do Outro, segundo Certeau criação de Léry, encontramos um discurso do Outro, sobre
o Outro que produz o clímax onde o Outro mesmo é quem fala. Deste modo, no uso da teoria
da perspectiva, Léry dá voz ao índio tupinambá para expressar o seu discurso mais
intrinsecamente verdadeiro ao registrar em suas representações imagéticas a realidade que
fora por ele mesmo presenciada. Assevera Dosse: “a intervenção do historiador pressupõe dar
espaço ao outro, sempre mantendo o vínculo com o sujeito que fabrica o discurso
histórico”609; é exatamente esta ação que encontramos vívida em Léry em sua relação com
Outro, o índio tupinambá do século XVI no Brasil. Uma preservação da verdade discursiva
que possibilita a construção história, portanto, etnológica e heterológica. De modo que, ao
fazer uso do Outro como referencial, Léry se utiliza de uma circularidade hermenêutica, em
que o índio é trazido como objeto imagético e literário que lhe permite um retorno nesta
viagem interpretativa a si mesmo, contudo, mediado ou “através de” (perspectiva) o
tupinambá, mais uma vez evidenciando a construção da sua heterologia calvinista que se
traduz em valorização do ser humano.

O compromisso de Jean de Léry com a fidelidade do relato é um reflexo da fidelidade


com a revelação que fora apreendida do reformador João Calvino, que compreendia a
existência de dois modos de Deus se revelar, através da criação e por meio da revelação
especial na Escritura, a Palavra de Deus. No seu comentário à Carta aos Hebreus, afirma
Calvino que “em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência
de sua eterna sabedoria, munificência e poder”.610 E ainda: “o mundo, portanto, é com razão
chamado o espelho da divindade”.611 Deste modo, para Léry, representar o índio tupinambá
no seu contexto vivencial com fidelidade é acima de tudo um compromisso com o próprio
Deus, porque, nesta relação está a possibilidade de conhecer ao Criador que tem na criação o

609
François Dosse, De Certeau: un historiador de la alteridad in Perla Chinchilla (coord), Michel de Certau, un
pensador de la diferencia, Ciudad de México, Universidad Iberoamericana, 2009, p. 18.
610
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 300.
611
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 300.
199
reflexo de sua natureza divina.612 Portanto, o compromisso de Léry em representar o homem
em suas relações do dia-a-dia encontra uma analogia na responsabilidade do teólogo
calvinista em formular a sua teologia fundamenta na fidelidade à Palavra de Deus. Calvino
atestou esta fidelidade quando de sua morte, e vale a pena repetir aqui uma das suas últimas
palavras antes de falecer: “Quanto à minha doutrina, tenho ensinado com fidelidade e Deus
me concedeu a graça de escrever: o que eu fiz o mais fielmente que pude e não adulterei uma
única passagem da Escritura nem a deturpei conscientemente. E muito embora tivesse
realmente possibilidades de descobrir sentidos sutis, se me tivesse aplicado com subtileza,
empreendi tudo isso e me apliquei com simplicidade”.613

Observemos atentamente detalhes do relato de Jean de Léry, quando finaliza o


principal capítulo onde descreve em detalhes as características dos índios tupinambás “Sobre
a índole, força, estatura, nudez, disposição e ornatos de corpo dos homens e mulheres
selvagens brasileiros, habitantes da América, entre os quais permaneci quase um ano”, bem
como, encontramos evidência suficiente deste uso do Outro como referencial de interpretação,
sem contudo, suprimir sua visão de mundo calvinista caracteristicamente condicionada aos
limites da Escritura Sagrada. Éric Fuchs ao falar sobre a ética de Calvino, especificamente no
sub-tópico “Uma ética que é uma hermenêutica da Escritura”, atesta o zelo que possuía o
reformador genebrino pela Palavra de Deus como fonte única e determinante para regular a
prática moral dos homens ao apontar que “trata-se, portanto, de saber o que Deus quer de nós.
E, para tanto, é preciso pôr-se na escola da Bíblia. De toda a Bíblia. Nesse ponto, Calvino é
de um rigor e de uma originalidade notáveis”.614 Deste modo, a Escritura é o limite
determinante da análise que Léry apresenta em seu relato de viagem.

612
“O tema central da teologia da Reforma era “a glória de Deus”. Kepler escreveu, em 1598, que os
astrônomos, na qualidade de sacerdotes de Deus no que diz respeito ao livro da natureza, deviam ter em mente
não a glória de seu próprio intelecto, mas, acima de tudo, a glória de Deus. (...) A Igreja reformada ensinava que
a obrigação de glorificar a Deus por todas as Suas obras deve ser cumprida por todas as faculdades do homem, e
não somente pelos olhos, mas também pelo intelecto. Calvino era de opinião que aqueles que negligenciavam o
estudo da natureza eram tão culpados como aqueles que, ao investigarem as obras de Deus, se esqueciam do
Criador. Reprovava veementemente aqueles “fantásticos” antagonistas da ciência que diziam que o estudo
apenas torna os homens soberbos e que não reconheciam que isto levava ao “conhecimento de Deus e à
orientação da vida”. Reiteradas vezes afirmou que a pesquisa científica é algo que penetra muito mais
profundamente nas maravilhas da natureza do que a mera contemplação. Ao fazer essa declaração, não se referia
à “física” especulativa de sua época, mas às sólidas disciplinas empíricas então existentes, ou seja, a astronomia
e a anatomia, que revelavam, segundo ele, os segredos do macrocosmo e do microcosmo”. R. Hooykaas, A
Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, UnB, 1988, p. 137-138.
613
Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 123.
614
Éric Fuchs, verbete “João Calvino” in Monique Canto-Sperber (org.), Dicionário de Ética e Filosofia Moral,
vol. 1, São Leopoldo-RS, Editora Unisinos, 2007, p. 185. Cp. João Calvino, As Institutas II.10.
200
Jean de Léry começa deixando claro que a nudez das índias não instiga à lascívia e à
luxuria porque tal nudez não é atraente como muitos na Europa poderiam supor que fosse.
Enfatiza:

Os enfeites, pós, artifícios, cabelos encrespados, golas de rendas,


anquinhas, sobressaias e outras ninharias com que as mulheres de cá
se enfeitam e de que jamais se fartam são causas de males sem
comparação maiores do que a nudez habitual das índias, as quais, no
entanto, nada devem àquelas quanto à formosura. Se a decência me
permitisse dizer mais, tenho certeza de que teria vantagem em
responder a quaisquer objeções. Limito-me a apelar para os que
estiveram no Brasil e, como eu, viram umas e outras.615

Jean de Léry, no entanto, evidenciando seu limite interpretativo, a Escritura Sagrada,


apresenta o Outro como um modelo ideal ao viver desprendido das coisas deste mundo,
prática a ser seguida pelos europeus que na verdade estão no sentido oposto. A frugalidade
tupinambá deveria ser adotada como um exemplo de viver correto. Refletindo desta feita a
mentalidade teologia de seu mentor espiritual, porquanto, neste contexto, apresenta Calvino
sua regra áurea de comportamento e perspectiva quanto aos bens materiais deste mundo,
“aqueles que desfrutam deste mundo, que o façam como se não desfrutassem”616, uma vida
com moderação, “usemos este mundo como se não o usássemos”.617 Observemos o relato de
Jean de Léry:

Não é meu intuito, entretanto, aprovar a nudez contrariando o que


dizem as Escrituras, pois Adão e Eva, após o pecado, reconhecendo
estarem nus, se envergonharam; sou contra os que a querem
introduzir entre nós, como os hereges, contra a lei natural, embora
deva confessar que, neste ponto, não a observam os selvagens
americanos. O que digo é somente para mostrar que não merecemos
louvor por condená-los severamente, só porque sem pudor andam
nus, pois os excedemos no vício contrário, no da superfluidade de
vestuário. Praza a Deus que cada um de nós se vista modestamente,
mais por decência e honestidade do que por vaidade e mundanismo.618

Vemos também Jean de Léry fazer uma comparação da antropofagia ritual tupinambá
com as práticas europeias, sempre se referindo à limitação de sua circularidade hermenêutica,
a Escritura. A comparação segue em dois níveis, um metafórico e outro realista. A violência
tupinambá serve de analogia para a usura cruel dos europeus primeiramente, para logos após,

615
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 138.
616
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 73.
617
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 73.
618
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 138.
201
compará-la à violência das perseguições aos huguenotes nas guerras de religião da França no
século XVI, com o viajante sempre se posicionando favoravelmente ao tupinambá.

Eis o relato do modo de vida frugal dos tupinambás conforme registrado por Jean de
Léry em uma comparação metafórica contra a usura dos europeus:

Poderia acrescentar outros exemplos da crueldade dos selvagens para


com seus inimigos, mas creio que o que disse já basta para arrepiar os
cabelos de horror. É útil, entretanto, que ao ler semelhantes
barbaridades, os leitores não se esqueçam do que se pratica entre nós.
Em boa e sã consciência, estou seguro de que excedem em crueldade
aos selvagens os nosso usurários, que, sugando o sangue e o tutano,
comem vivos viúvas, órfãos e outras criaturas miseráveis, para as
quais seria melhor cortar-lhes o pescoço de um só golpe, que deixá-
las morrer assim lentamente. Por isso, deles disse o profeta que
esfolam a pele, comem a carne e quebram os ossos do povo de Deus,
como se os fizessem ferver numa caldeira. 619

Se o cristão deve ser desapegado aos bens materiais deste mundo, então, a usura é
firmemente condenada, conforme Calvino já havia ensinado ao comentar o Salmo 15, e Jean
de Léry segue esta lógica em sua crítica às práticas europeias. Calvino enfatiza que o
verdadeiro cristão não deve de modo algum oprimir ao seu próximo com a usura, tão pouco
obrigá-lo a aceitar suborno com o propósito de fazer algo injusto. Ensina que qualquer lucro
em que outro tenha prejuízo é condenado pelo salmista. Assim, adverte ao cristãos a tomarem
cuidado com os pretextos que os provoquem a tirar proveitos ilícitos do próximo.

Ressalta Calvino: “com respeito à usura, é raríssimo encontrar no mundo um usurário


que não seja ao mesmo tempo um extorquidor e viciado ao lucro ilícito e desonroso.
Consequentemente, Cato desde outrora corretamente colocava a prática da usura e o
homicídio na mesma categoria de criminalidade, pois o objetivo dessa classe de pessoas é
sugar o sangue de outras pessoas”.620 Pelo contrário, o grande fator motivador para auxílio e

619
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 201.
620
João Calvino, O Livro dos Salmos, vol. 1, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, p. 297-298. “Nossa cobiça é
um abismo insaciável, a menos que seja ela restringida; e a melhor forma de mantê-la sob controle é não
desejarmos nada além do necessário imposto pela presente vida; pois a razão pela qual não aceitamos esse limite
está no fato de nossa ansiedade abarcas mil e uma existências, as quais debalde sonhamos só para nós. (...)
...cada um de nós prevê que suas necessidades absorverão vastas fortunas, como se possuíssemos um estômago
bastante grande para comportar metade da terra. (...) Para assegurarmos que a suficiência [divina] nos satisfaça,
aprendamos a controlar nossos desejos de modo que a não querermos mais do que é necessário para a
manutenção de nossa vida. Ao qualificar de alimento e cobertura, ele exclui o luxo e a superabundância. Pois a
natureza vive contente com um pouco, e tudo quanto extrapola o uso natural é supérfluo. Não que algum uso
mais liberal de possessões seja condenado como um mal em si mesmo, mas a ansiedade em torno delas é sempre
pecaminosa”. João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 168-169.
202
ajuda ao próximo está no fato de que este além de sido criado, é imagem e semelhança do
Criador. Uma vez que “o bem que fazermos aos homens”621 Deus considera “como sacrifício
oferecido a ele próprio”.622 Uma evidência da visão de mundo norteadora das práticas de Jean
de Léry quando se depara com os tupinambás, e que também norteia sua interpretação do
Outro.

Logo em seguida Jean de Léry confronta a violência tupinambá à violência real e


muito mais cruel que ocorre na Europa do século XVI, um reflexo da intolerância religiosa
que reinava naquele período, principalmente na França das guerras de religião. As perguntas
retoricas que Léry faz no capítulo XV registram uma denúncia das atrocidades que foram
realizadas em nome da religião católica, sob o álibi da heresia.623 Somente na Noite de São
Bartolomeu cerca de trinta mil huguenotes foram mortos de um modo impiedosamente cruel.
Provavelmente, Léry tem em mente o modo desumano com o qual os seus companheiros
foram condenados à morte na França Antártica por Villegagnon.

A violência ao próximo fora abominada por Calvino pelo fato do ser humano ser a
imagem e semelhança de Deus. Destaca o reformador que somos proibidos de qualquer
violência, de modo que, ferir este homem é como se houvesse de atingir o próprio Deus.624
Enfatiza Calvino que “Deus veta que o irmão seja ferido ou violentado com a injúria, porque
deseja que a vida dele nos seja cara e preciosa”.625 E também destaca, já que, “se o Senhor
atou a linhagem dos homens em certa unidade, a cada um deve ser recomendada a

621
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394.
622
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394.
623
“Entretanto, mesmo sem falar por metáforas, não encontramos aqui, na Itália e alhures, pessoas condecoradas
com o título de cristãos que, não satisfeitas em trucidar seu inimigo, ainda lhes devoram fígado e coração? E que
vimos em França durante a sangrenta tragédia iniciada a 24 de agosto de 1572? Sou francês e entristece-me
dizê-lo. Entre outros atos de horrenda recordação, não foi a gordura das vítimas trucidadas em Lyon, muito mais
barbaramente do que pelos selvagens, depois que elas foram tiradas do rio Saône, publicamente vendida em
leilão e concedida ao maior lançador? O fígado e o coração e outras partes do corpo de alguns indivíduos não
foram comidos por furibundos assassinos de que se horrorizam mesmo os infernos? Depois de miseravelmente o
haverem morto, não picaram o coração a Coeur de Roi, que professava a religião reformada em Auxerre, não lhe
puseram os pedaços à venda e não os comeram afinal, para aplacar a raiva, como mastins? Milhares de
testemunhas desses horrores, nunca dantes vistos em qualquer povo, ainda vivem, e há livros já impressos que os
atestam à posteridade”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 201-202.
624
João Calvino, Instrução na Fé in Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: textos escolhidos, São Paulo,
Pendão Real, 2008, p. 53.
625
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, II.8.9.
203
incolumidade de todos. Portanto, em suma, nos é interditada toda violência e injúria e
qualquer prejuízo que lese o corpo do próximo”.626

Em seguida Jean de Léry apresenta sua conclusão onde toma o Outro como
referencial, o índio tupinambá se apresenta como mais humano que o europeu:

Portanto, não abominemos demasiado a crueldade dos selvagens


antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não
mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra
nações inimigas de que têm vingança a tomar; elas mergulharam no
sangue de seus parentes, vizinhos e compatriotas. Não é preciso ir à
América, nem mesmo sair de nosso país, para ver coisas assim
monstruosas.627

No que diz respeito à segurança que os índios tupinambás davam aos seus hóspedes,
observemos o relato de Jean de Léry mais uma vez em comparação com a realidade vivida
entre os franceses:

Quanto à segurança dos hóspedes entre os selvagens da América,


devo dizer que é absoluta; da mesma forma como odeiam os inimigos
e os matam e comem quando podem, amam os amigos e aliados e não
hesitam em morrer para defendê-los. Éramos amigos e aliados dos
Toüoupinambaoults e gozávamos por isso de plena segurança entre
eles. Confiava neles e me considerava mais seguro no meio desse
povo, a que denominamos selvagem, do que em França entre muitos
franceses desleais e degenerados. Falo daqueles que são assim, pois,
quanto às pessoas de bem, que, graças a Deus, não faltam ainda no
Reino, por nada gostaria de ferir-lhes a honra.628

Percebemos que Jean de Léry reflete uma intima relação com a cultura grega clássica;
certamente é compreensível, tendo em vista os modelos que surgem de uma observação mais
aplicada, quando se evidenciam as matrizes representativas da antiguidade grega. Explicitado
também pelas diversas citações e referências constantes a autores clássicos do mundo da
filosofia grega antiga que o viajante apresenta no decorrer de sua História de uma Viagem
feita à Terra do Brasil, também chamada América. Léry Insere-se no período renascentista
com todas as suas prerrogativas e implicações, seja enquanto teólogo ou narrador de viagem,
ou mesmo pelas imagens grandemente pictóricas que formula e representa, no entanto,
sempre superando-as.

626
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, II.8.39.
627
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 201-202.
628
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 235-236.
204
Como um humanista expressa uma grande estima pelo ser humano em suas descrições,
e desta feita o tupinambá é percebido como homem, portanto, digno de respeito e valor. As
representações imagéticas que estão inseridas na obra de Jean de Léry em sua primeira edição
nos revelam a valorização do Outro como uma singular proposta interpretativa do Novo
Mundo. Deste modo nos fornece uma chave para compreender o Outro, que por implicação
lógica, é diferente do eu/nós, pois o “interpreta” dentro de seu próprio contexto social e
cultural.

Observamos nas representações imagéticas de Jean de Léry um olhar de admiração e


respeito pelo índio tupinambá, uma evidência da aplicação prática da teologia calvinista. Este
olhar interpretativo aponta para a fidelidade das representações segundo as regras modernas
da rotação e da perspectiva. Estas práticas construídas na operação imagética estão
condicionadas ao lugar social do sujeito historiador que estabelece e autoriza semanticamente
o discurso. Portanto, esta fabricação imagética emerge deste lugar social segundo práticas
cientificamente constituídas. Deste modo, as representações imagéticas transpõem o tempo e
o espaço para produzir um lugar onde o índio tem voz. Assim Léry demonstra a importância
de ouvir o Outro, porque, este é um espelho que permite a compreensão de si mesmo. Este
ausente, o Outro, é posto em evidência, de modo que, tem-se a materialização desta ausência
que perpassa o tempo e o espaço, além de transformar a alteridade em identidade.

205
CAPÍTULO QUARTO
A HERMENÊUTICA RELIGIOSA DO OUTRO EM JEAN DE
LÉRY

Léry enriquece consideravelmente as


interpretações e os usos simbólicos.
Graças à sua pena, o canibal torna-se uma
espécie de chave universal, um símbolo
que permite dar conta, de um jeito ou de
outro, das taras morais e sociais as mais
manifestas, e dos desdobramentos mais
monstruosos da história recente.
Em sua releitura do canibalismo
tupinambá, a ação de Léry exerce-se, de
fato, segundo duas modalidades
principais: por um lado, ele sistematiza a
explicação pela vingança; por outro, ele
faz do ato de comer um uso alegórico,
esvaziando-o de seu conteúdo carnal e
elevando-o “a um sentido mais elevado”.
(Frank Lestringant).629

Partindo da tese inicial de que Jean de Léry é influenciado e tem sua estrutura de
pensamento determinada pela mentalidade teológica do reformador João Calvino, seguimos
abordando sobre o tópico em questão que se constitui em elemento de vital essencialidade
para a compreensão da interpretação do viajante francês em terras brasileiras no que concerne
às relações e práticas religiosas dos índios tupinambás. Deste modo devemos considerar os
aspectos que são centrais na formulação teológica de Calvino que fundamentam a construção

629
Frank Lestringant, O Canibal: grandeza e decadência, Brasília, Editora UnB, 1997, p. 104.
206
interpretativa de Léry, que sejam os temas teológicos do conhecimento acerca do Deus e da
concepção de queda.630

Neste último capítulo analisaremos as práticas religiosas dos índios tupinambás


segundo o relato de Jean de Léry e o seu interesse na conversão deles à religião reformada.
Para tanto, iniciaremos a compreensão destas temáticas com a identificação do lugar teológico
que determina a construção semântica destes tópicos no relato historiográfico do autor. A
abordagem que Léry faz à religião indígena é condicionada e autorizada pelos limites
fundantes das ideias concernentes ao senso da divindade e a semente da religião como
elementos universais na natureza essencial do ser humano, além disto, o limite da
circularidade interpretativa que conduz o viajante é definido pelo modo como se aproxima da
Escritura Sagrada. Estes conceitos que autorizam o seu discurso analítico são herdados do
reformador genebrino e determinam o parâmetro de análise que o viajante apresenta quando
se depara com as relações religiosas indígenas. Desta feita, encontramos nestas teses
teológicas as chaves de leitura da obra de Jean de Léry no que concerne à sua hermenêutica
religiosa do Outro.

4.1 – As Fronteiras da Circularidade

A operação historiográfica apresentada por Jean de Léry está circunscrita entre dois
limites, o conhecimento de Deus e os pressupostos que norteiam a sua recepção da Escritura
Sagrada. O elemento central que consideraremos diz respeito à realidade da presença do

630
Cp. “A Antropologia religiosa estabelece-se como conhecimento – ou ciência – do homem religioso. É sem
dúvida um observação parcial sobre a totalidade da existência humana, mas uma das que mais apreendem,
porque toda vida religiosa, seja individual ou coletiva, é chave de unidade. No sentido de que ela exige e coloca
a vida do „além‟ – esse „além‟ necessariamente ligado à existência humana –, assim como, em sua soberana
leitura do universe, implica o maior número de participações em todos os aspectos do cósmico. Finalmente,
qualquer que tenha sido o encarniçamento do espírito modern em divider, até querer separar a religião das outras
formas de existência, consciente ou subliminarmente, a necessidade religiosa, que harmoniza na medida do
possível o irracional e o racional, permanence peça essencial do equilíbrio humano, assim como do poder de
testemunhar: o que é, ao mesmo tempo, criação e violência. Assim, o homem na religião está, ao contrário do
que pretendem analyses hoje em dia ultrapassadas, no exercício ou em busca do todo-poderoso. O religioso
exprime o humano quase em sua mais alta e mais enérgica medida. E o faz – o que interessa à história – através
de uma considerável „espessura‟ humana, temporal. O fenômeno religioso pertence, do ponto de vista temporal,
ao longo prazo. Mas ainda: as suas transformações, mesmo a sua evolução, são muito lentas, no que se refere
aos hábitos adquiridos e à visão do mundo”. Alphonse Dupront, A Religião: antropologia religiosa in Jacques
Le Goff, Pierre Nora, História: novas abordagens, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1986, p. 83.
207
religioso na constituição do ser humano, porque, para Calvino, há uma centelha do
conhecimento de Deus na natureza essencial do homem, categorizada como sensus divinitatis
e semen religionis, ou, senso de divindade e semente da religião que se expressam por meio
de suas estruturas existenciais externalizadas em suas falas e em seus ritos socialmente
constituídos.

A tese do sensus divinitatis e semen religionis defendida por Calvino631 foi construída
a partir da tese de Marco Túlio Cícero em sua obra Da Natureza dos Deuses, onde defende
que o conceito de Deus é uma ideia inata no homem e que esta o conduz à adoração religiosa.
Jean de Léry também faz uso da tese de Cícero para construir a teoria que norteará sua análise
da religião dos tupinambás. Léry inicia o capítulo XVI (“Sobre o que se pode chamar
religião entre os selvagens americanos; e sobre os erros em que estes são mantidos por
certos trapaceiros chamados Caraibes; e a grande ignorância de Deus em que estão
imersos”), que descreve a religiosidade tupinambá, citando Cícero e mostrando a sua
dificuldade de aplicar a sua tese a este povo brasileiro do século XVI. 632 Ao perceber a
dificuldade de entender a complexidade da vida social dos tupinambás, e que as estratégias
não conseguem abarcar estas relações tão facilmente, passa, através de táticas adaptadas à
realidade vivenciada a encontrar o espaço onde a descrição da religiosidade tupinambá terá
sentido, mostrando assim, uma capacidade singular de aplicação prática do seu sistema
teórico, a escrita entra em cena como possibilidade de transformação da realidade religiosa
dos tupinambás.633 Ao se deparar com a realidade de que o índio encontra-se à margem da

631
Otto fala de numen, mas reconhece que a originalidade da tese estava em Calvino com o seu conceito de
sensus divinitatis. Cf. Rudolf Otto, O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/EST/Vozes, 2007, p. 38.
632
“Embora seja aceita universalmente a sentença de Cícero, de que não há povo, por mais bruto, bárbaro ou
selvagem que não tenha ideia da existência de Deus, quando considero de perto os nossos Toüoupinambaoults |
Tupinambá |, vejo-me algo hesitante em aplicá-la a eles. Pois, além de não ter conhecimento algum do
verdadeiro Deus, eles não adoram quaisquer divindades terrestres ou celestes, como os antigos pagãos, nem
como os idólatras de hoje, ou mesmo como os índios do Peru que, a 500 léguas do Brasil, veneram o sol e a lua.
Não têm nenhum rito nem lugar determinado em que se reúnam para a prática de serviços religiosos, nem oram
em público ou em particular. Ignorantes quanto à criação do mundo, não têm nomes específicos para distinguir
os dias, nem contam semanas, meses e anos, apenas calculando ou marcando o tempo por lunações. Não apenas
desconhecem a escrita sagrada ou profana, mas ainda ignoram quaisquer caracteres capazes de designar o que
quer que seja”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio
de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 203.
633
“Quando cheguei ao país e comecei a aprender-lhes a língua, escrevia frases e depois as lia diante deles;
julgavam que era feitiçaria, e diziam uns aos outros: „Não é maravilhoso que este que ontem não sabia uma
palavra do nosso idioma, possa hoje ser entendido por nós, graças a esse papel que ele segura e que o faz falar?‟
Também é esta a opinião dos selvagens das ilhas Hispaniolas, que foram os primeiros a emiti-la, pois diz o autor
de sua história (Livro I, cap. 34) que, vendo os espanhóis se comunicarem de longe por meio de cartas,
imaginaram-nos dotados do dom de profecia, ou que as cartas falassem. E acrescenta ele que por isso os
selvagens, temerosos de serem descobertos, não mais mentiam nem roubavam aos espanhóis e passaram a lhes
208
humanidade, Léry, diante desta encruzilha historiográfica passa a transitar entre ciência e arte,
no objetivo de construir a sua escrita, que alias, Michel de Certeau chama de lição de escrita.
Assim sendo, Léry faz o índio cruzar a fronteira da marginalidade rumo ao centro, onde é
colocado em evidência. Na continuidade de sua descrição a sua opinião vai sendo
transmutada e o seu relato passa à descrição de sua compreensão da existência da religião,
certamente uma religião diferente daquela que está habituado a ver na Europa, mas ainda sim
religião, e não somente isto, vai além, compreende a possibilidade de conversão do índio
tupinambá à religião reformada.

A construção teológica de Calvino no que diz respeito ao conhecimento de Deus


possui dois elementos que são chave para o entendimento da religiosidade tupinambá
conforme interpretada por Jean de Léry. Para Calvino, há intrínseca e essencialmente no ser
humano um senso da existência de Deus e uma semente de religião que aponta para a
adoração deste Deus. O sensus divinitatis, um conhecimento inato de Deus, e o semen
religionis, um impulso natural à adoração, são indicativos de humanidade, porque se
constituem em uma capacidade cognitiva que é elemento natural do ser humano. Estes
elementos são parte da essência do ser humano, portanto, é exatamente este aspecto do
humano que possibilita a aproximação do ser humano com Deus. Segundo Calvino, pleitear a
impossibilidade de conversão estaria ligado à inexistência de religião e do conhecimento inato
de Deus, como consequência negar-se-ia a humanidade do sujeito. Assim, Jean de Léry ao
reconhecer a religião entre os tupinambás, bem como, o seu impulso em pregar-lhes o
evangelho são indicações de olhar valorativo e respeitoso do índio tupinambá, reconhecendo-
o como ser humano.

Analisemos em maiores detalhes o conceito teológico do sensus divinitatis e semen


religionis como foi construído por Calvino. O reformador começa sua obra magna A
Instituição da Religião Cristã, com um capítulo sobre o conhecimento de Deus. Neste
capítulo sua tese principal revela o seu apreço pelo ser humano como é apropriado a um
humanista, quando afirma:

obedecer cegamente. Eis aí um tema de dissertação capaz de mostrar que os habitantes da Europa, da Ásia e da
África devem louvar a Deus por sua superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo. enquanto os selvagens
nada podem comunicar entre si a não ser pela palavra, nós, ao contrário, sem sair de um lugar, por meio da
escrita e das cartas que enviamos, podemos dizer os nossos segredos a quem quisermos, ainda que estejam tão
longe quanto o outro extremo da terra. Além da invenção da escrita, os conhecimentos de ciência que
adquirimos pelos livros e que eles ignoram devem ser tidos como dons singulares que Deus nos concedeu”. Jean
de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação
Darcy Ribeiro, 2009, p. 203-204.
209
Quase toda a suma de nossa sabedoria, que deve ser considerada a
sabedoria verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes: o
conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como são
unidas entre si por muitos laços, não é fácil discernir qual precede e
gera a outra. Pois, em primeiro lugar, ninguém pode olhar para si sem
que volte imediatamente seus sentidos para Deus, no qual vive e se
move, porque não há muita dúvida acerca de que não provenham de
nós as qualidades pelas quais nos sobressaímos. Pelo contrário, é
certo que não sejamos senão a subsistência no Deus uno. Ademais,
por esses bens, que gota a gota caem do céu sobre nós, somos
conduzidos como que de um regato para a fonte.634

Devemos considerar o ponto focal a respeito da tese defendida por Calvino e


apreendida por Jean de Léry no que diz respeito ao conhecimento de Deus como inato no ser
humano, uma característica essencial da humanidade. Para o reformador, “está fora de
discussão que é inerente à mente humana, certamente por instinto natural, algum sentimento
da divindade”.635 Deste modo, para evitar a desculpa da ignorância por parte do homem,
Deus imprimiu na essência da natureza do ser humano, o senso da existência de Deus,
objetivando refrescar a memoria constantemente com lampejos deste senso, com o objetivo de
que todos “sem exceção, entenderem que há um Deus e são sua obra, sejam condenados, por
seu próprio testemunho, por não o cultuarem e não consagrarem a própria vida à vontade
d‟Ele”.636 Para tanto, enfatiza Calvino que não há nenhuma nação que seja “tão bárbara,
nenhum povo é tão selvagem que não se convença da existência de um Deus”,637 e vai além,
mesmo aqueles que “parecem diferir muito pouco das feras, sempre possuem, no entanto,
certa semente de religião: essa assunção geral ocupa de forma tão profunda o espírito que é
tenazmente indissociável das vísceras de todos”.638 Desta feita, enfatiza Calvino que este
senso da divindade e esta semente da religião são características inalienáveis do ser humano
em sua essência:

Então, de tal perspectiva, desde o começo do mundo, nenhuma cidade,


nenhuma casa existiria que pudesse carecer de religião. Nisso há uma
tácita confissão: está escrito no coração de todos um sentimento de
divindade. E a idolatria é um grande exemplo dessa concepção.
Sabemos como o homem não se rebaixa de bom grado de modo que
coloque outras criaturas à sua frente. Por conseguinte, como o homem
prefere antes cultuar um pedaço de pau e uma pedra a considerar que
não há nenhum Deus, vê-se muito bem a que grau ele se deixa
impressionar a respeito da divindade. De tal forma esta não pode ser

634
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.1.1, São Paulo, UNESP, 2008.
635
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.1, São Paulo, UNESP, 2008.
636
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.1, São Paulo, UNESP, 2008.
637
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.1, São Paulo, UNESP, 2008.
638
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.1, São Paulo, UNESP, 2008.
210
apagada da mente dos homens, que é mais fácil que se corrompa sua
inclinação natural, como de fato é corrompida, quando o homem,
altivo e soberbo, rebaixa-se espontaneamente ao que é ínfimo para que
Deus seja reverenciado.639

Os conceitos teológicos do sensus divinitatis e semen religionis apontam para a


construção das crenças e práticas religiosas segundo o Deus bíblico cristão conforme é
apresentado pelos reformadores, portanto, a evangelização de povos que estão desfocados em
viver a vida religiosa que os conduza para este Deus é algo naturalmente coerente, além disto,
se constitui em uma tarefa obrigatória para um cristão reformado evangelizar àquele que está
na ignorância real de Deus.640 Porquanto, “para os que julgam com retidão, sempre estará
estabelecido que foi gravado na mente humana um sentimento de divindade que jamais será
apagado, tanto seja naturalmente inata em todos a convicção de que há um Deus como esteja
profundamente arraigada tal convicção na própria medula dos homens. É rico testemunho
disse a teimosia dos ímpios que, lutando furiosamente, não se podem desembaraçar do medo
de Deus”.641 A conversão se constitui em elemento chave para recolocar o ser humano no
percurso correto segundo a coerência de sua própria existência, ou seja, voltar-se para Deus,
contudo, neste sentido, esta tarefa, segundo a mentalidade calvinista, consiste em amplificar
potencialmente a humanização daquele que ainda não reconhece a Deus como o doador de
toda graça e misericórdia à criação.

Além disto, quanto mais o homem tente negar estas marcas, mais na mesma
proporção acaba por confirmar esta realidade essencial de seu ser. Para Calvino, não é
necessário que esta doutrina seja ensinada em escolas porque “qualquer um é per si um mestre
dessa doutrina desde o útero, e a própria natureza não permite que ninguém a esqueça, ainda
que muitos apliquem todas as forças nisso”.642 Enfatiza que, “se a religião for afastada de
uma vez da vida dos homens, eles não somente não serão em nada melhores que os animais
639
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.1, São Paulo, UNESP, 2008.
640
Calvino também não deixa de denunciar que a religião pode ser usada como meio de controle impositivo e
repressor, observemos: “Por isso, é de todo gratuito o que dizem alguns: que a religião foi inventada pela astúcia
e esperteza de certos homens, para que o povo simples cumprisse seu dever, sendo que os próprios inventores,
que ensinavam os outros a servir a Deus, não acreditavam em sua existência. Sem dúvida, reconheço que, na
religião, homens astutos escreveram muitas coisas pelas quais incitavam a reverência da plebe e incutiam o terror
para que as almas se mantivessem obedientes, mas em lugar algum conseguiram isso sem que a mente dos
homens já não fosse antes imbuída daquela constante persuasão acerca de Deus, da qual, assim como de uma
semente, emerge a propensão para a religião. E certamente não é crível que faltasse em absoluto o conhecimento
de Deus àqueles mesmos que, com velhacaria, iludiam aos mais rudes sob o título da religião. Mesmo que
outrora alguns tenham surgido e hoje não poucos a neguem que Deus existe, queiram ou não queiram, depois
começam a sentir o que antes desejavam desconhecer”. João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.2,
São Paulo, UNESP, 2008.
641
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.3, São Paulo, UNESP, 2008.
642
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.3, São Paulo, UNESP, 2008.
211
brutos, como também serão de longe mais miseráveis em muitos aspectos, de tal modo que,
obrigados a tantas formas de males, levarão para sempre uma vida de tumultos e
inquietudes”.643 Deste modo, a intencionalidade de Jean de Léry em apresentar ao índio a
religião reformada com vistas à conversão é pautada no desejo de dar-lhes algo de bom que
exalte a sua existência humana.644

Para Calvino, a sabedoria tem seu fundamento no conhecimento mútuo de Deus e do


próprio homem, porque estes são inseparáveis, e, além disto, conhecer o homem consiste em
uma via para o conhecimento de Deus. Este conceito é determinante na interpretação do texto
de Jean de Léry, pois olhar o índio e encontrar beleza nele é reconhecer que tais benefícios
provêm das mãos do Criador como um reflexo de Sua essência, imagem e semelhança.
Continua Calvino afirmando que “o homem jamais chega a um conhecimento puro de si sem
que, antes, contemple a face de Deus, e, dessa visão, desça para a inspeção de si mesmo”. 645
Assim, em Léry o desejo de conhecer o Outro expressa a circularidade interpretativa
conforme aponta Michel de Certeau. Léry olha o Outro não somente com uma possibilidade
de conhecer a si mesmo, mas também identifica neste encontro com o Outro a possibilidade
de ampliar o seu conhecimento do próprio Deus, porquanto, por causa da realidade da
imagem divina no índio tupinambá, este se constitui em um espelho de Deus. Contudo, é o
conhecimento de Deus determinante na interpretação do Outro, como expõe o reformador,
“seja como for que o conhecimento de Deus e de nós estejam ligados por um vínculo mútuo, a
ordem correta do ensino postula que primeiro tratemos daquele e depois desçamos para tratar
deste”.646

643
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.3.3, São Paulo, UNESP, 2008.
644
“Como minha intenção é a de perpetuar aqui a recordação de uma viagem feita expressamente à América para
estabelecer o verdadeiro serviço de Deus, tanto entre os franceses que para aí se haviam retirado como entre os
selvagens que habitam aquelas terras, acreditei ser meu dever levar à posteridade o nome daquele que foi a causa
e o motivo da expedição. Em verdade, considerando que não houve em toda a antiguidade um chefe francês e
cristão que estendesse o reino de Jesus Cristo, rei dos reis e senhor dos senhores, e os limites territoriais de seu
príncipe soberano a país tão longínquo, tudo considerado como convém, ninguém conseguirá exaltar o suficiente
uma tão santa e realmente heroica empresa. Embora digam alguns que merece o fato pouca importância, em
vista do pouco tempo que os acontecimentos duraram, e de não haver no momento naquelas terras nenhuma
religião verdadeira levada pelos franceses, afirmo o contrário. Sustento que, assim como o Evangelho do filho
de Deus foi pregado nessa quarta parte do mundo chamada América, se o empreendimento tivesse continuado
tão bem quanto começou, tanto o reino espiritual como o temporal atualmente aí se achariam enraizados, e mais
de dez mil súditos da nação francesa estariam agora em plena e segura posse, para nosso rei, daquilo que
espanhóis e portugueses deram aos seus”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil,
também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 53-54.
645
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.1.2, São Paulo, UNESP, 2008.
646
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.1.3, São Paulo, UNESP, 2008.
212
Quando Jean de Léry fala da inexistência de religião entre os tupinambás, está se
referindo a um conceito de religião como um conhecimento de Deus que se expressa de um
modo específico. O conceito de conhecimento de Deus, exposto por Calvino, será norteador
para a compreensão da interpretação que Léry apresenta. Este conhecimento de Deus que o
homem pode ter não é simplesmente saber da existência de Deus, mas conhecer a própria
pessoa de Deus, e aquilo que o conduza à glória de Deus. Portanto, para Calvino religião é o
conhecimento de quem Deus é segundo a fundamentação semântica da Bíblia que se
materializa no modo ético de vida do sujeito. Calvino não defende a possibilidade de
construção de uma teologia natural que seja suficientemente abrangente para dar o
conhecimento salvífico ao homem caído.647 Expõe o reformador:

E aqui não me refiro ainda àquela espécie de conhecimento pela qual


os homens, perdidos e amaldiçoados em si, apreendem um Deus
redentor no Cristo Mediador, mas falo tão-somente daquele
conhecimento primeiro e simples, para o qual nos conduziria a
genuína ordem da natureza se Adão se tivesse mantido íntegro. Pois,
ainda que nessa ruína do gênero humano ninguém sinta a Deus como
pai, autor da salvação ou propício de algum modo, até que o Cristo se
nos apresente como um meio de sua pacificação, é diferente sentir que
Deus, nosso criador, sustente-nos por sua potência, reja pela
providência, favoreça pela bondade e acompanhe com todo o gênero
de bênçãos, e que nos abrace a graça da reconciliação que nos é
apresentada em Cristo”.648

Calvino entende que o conhecimento de Deus inato no ser humano aponta para o
conhecimento salvífico que somente é encontrado em Cristo Jesus como o reconciliador do
homem com Deus, sendo esta uma necessidade por causa da queda e do pecado. Deste modo,
reconhecer o sensus divinitatis nos índios tupinambás é claramente o reconhecimento da
possibilidade de estender este conhecimento à Jesus Cristo.649 E continua Calvino
enfatizando que o conhecimento de Deus é possível porque ele se revela primeiramente por
meio da criação e da Escritura Sagrada, e a partir daí como redentor através de Jesus Cristo, e
mais uma vez, este conhecimento produz resultado: “ainda que nossa mente não possa
apreender a Deus sem lhe atribuir algum culto, não bastará, entretanto, defender apenas que
Ele seja o único a ser cultuado e adorado, a menos que também sejamos persuadidos de que

647
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.1, São Paulo, UNESP, 2008.
648
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.1, São Paulo, UNESP, 2008.
649
“Calvino estabelece uma clara distinção entre o „conhecimento geral do Deus criador‟, obtido por meio de
nossa reflexão a respeito do mundo criado, e o mais especificamente cristão „conhecimento do Deus redentor‟,
alcançado apenas mediante a revelação cristã. Calvino está convencido de que a revelação cristã é consistente
com o conhecimento natural, embora o amplie”. Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e
Religião, São Paulo, Loyola, 2005, p. 176.
213
Ele seja a fonte de todos os bens, para que não os busquemos senão n‟Ele”. 650 Para Calvino
este conhecimento de Deus não é restrito somente aos cristãos, mas “qualquer pessoa, ao
refletir inteligente e racionalmente sobre a ordem criada, seria capaz de chegar à ideia de
Deus”.651

Continuemos a considerar o conceito de religião que Calvino expõe, porque


entendemos ser este chave para a compreensão das assertivas que Jean de Léry apresenta em
suas análises interpretativas com respeito à religião tupinambá. Para Calvino a criação aponta
para o conhecimento de Deus, pois, o mundo sempre foi sustentado pelo seu imenso poder,
dirigido por sua sabedoria, conservado por sua bondade e acima de tudo, governado por sua
justiça e equidade, de modo que, tudo flui dele e tem nele a causa precípua, portanto, deve-se
“a tudo d‟Ele esperar e pedir e, com ação de graças, atribuir a Ele o que se recebe”. 652 Assim
sendo, “aquele sentimento de misericórdia de Deus é o verdadeiro mestre da piedade, da qual
nasce a religião. Chamo piedade à reverência unida ao amor a Deus, que agrega o
conhecimento de seus benefícios”.653 Deste modo, para Calvino, a religião é sinônimo de
uma fé vivida na prática em reconhecimento grato da bondade de Deus para com a criação e o
ser humano. Segundo este quadro o objetivo de Jean de Léry quando fala de evangelização é
levar o tupinambá a este quadro de reconhecimento da misericórdia de Deus.654 Observemos
Calvino:

Com efeito, até que os homens não sintam que devem todas as coisas
a Deus, que são favorecidos pelo seu cuidado paterno, que Ele é o
autor de todos os bens, de modo que nada deva ser buscado fora d‟Ele,
jamais se sujeitarão a Ele por uma observância voluntária, pelo
contrário; a menos que erijam n‟Ele uma sólida felicidade para si,
jamais se aproximarão completamente d‟Ele de modo verdadeiro e
com sinceridade de alma.655

Por fim expõe Calvino objetivamente seu conceito de religião: “Eis o que é a pura e
autêntica religião, a saber, a fé unida ao verdadeiro temor de Deus, de tal modo que o temor
tanto contenha em si a reverência voluntária quanto traga consigo o culto legítimo tal qual é
prescrito na Lei. Deve-se notar isto com diligência: todos veneram confusamente a Deus e

650
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.1, São Paulo, UNESP, 2008.
651
Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo, Loyola, 2005, p. 177.
652
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.1, São Paulo, UNESP, 2008.
653
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.1, São Paulo, UNESP, 2008.
654
Esta temática será abordada em maiores detalhes à frente neste capítulo.
655
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.1, São Paulo, UNESP, 2008.
214
pouquíssimos o reverenciam; porquanto por toda parte é grande a ostentação exterior, rara
contudo é a sinceridade do coração”.656

Outro conceito que irrompe a partir da temática do conhecimento de Deus inato no ser
humano é o conceito de queda ou pecado que se constitui em elemento limitador deste
conhecimento, visto que o pecado aliena os homens deste conhecimento completo de Deus657;
enfatiza Calvino: “tão logo Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi ele
imediatamente despojado de todas as coisas boas que recebera”658, consequentemente, com a
queda o ser humano perdeu o direito a estas benesses divinas. Resume Calvino:

Sabemos, porém, que, pela queda de Adão, toda a humanidade caiu de


seu primitivo estado de integridade; porque, pela queda, a imagem
divina ficou quase que inteiramente extinta de nós, e fomos
igualmente despojados de todos os dons distintivos pelos quais
teríamos sido, por assim dizer, elevados à condição de semideuses.
Em suma, de um estado da mais sublime excelência fomos reduzidos a
uma condição de miserável e humilhante destituição.659

Portanto, a universalidade do pecado na humanidade é uma característica limitadora da


apreensão do conhecimento de Deus pelo homem. Por conseguinte, quando Jean de Léry
aborda a pecaminosidade do tupinambá, na verdade ele está equiparando índio e europeu em
equivalência de qualidade, ou seja, segundo a perspectiva calvinista, descrever o pecado entre
os índios é classificá-los como humanos.660 Conforme atesta Jeanneret: “conclusão

656
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.2.3, São Paulo, UNESP, 2008.
657
João Calvino, Exposição de Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 32.
658
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 57.
659
João Calvino, O Livro dos Salmos, vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p. 169.
660
“Resta-me agora tratar da questão que poderia ser aqui ventilada, de saber qual a origem desses selvagens. É
evidente que descendem de um dos três filhos de Noé, mas acho difícil dizer de qual, baseando-me nas Santas
Escrituras ou nas histórias profanas. É verdade que Moisés, fazendo menção aos filhos de Jafé, diz que as ilhas
foram habitadas por eles; mas, como todos expõem, tratando-se aí das terras da Grécia, Gália, Itália e outras
regiões daqui que, separadas da Judeia pelo mar, são chamadas ilhas por ele, não existe, portanto, base para que
nelas se incluam a América e adjacências. Dizer que são oriundos de Sem, do qual saiu a semente bendita e
saíram os judeus, embora estes se tenham corrompido a ponto de ser afinal rejeitados por Deus, por várias causas
ninguém ha de admiti-lo. No que concerne à beatitude eterna em que cremos e a qual esperamos depois de
Cristo, são os selvagens um povo maldito e desamparado de Deus, não obstante as noções muito imperfeitas que
possuem da vida futura; embora, com respeito à vida eterna, não exista, como já demonstrei, povo menos
apegado aos bens humanos e que viva tão alegre e quase sem cuidados. Parece-me, pois, mais provável ser
descendam de Cam.
Atestam as Santas Escrituras que quando Josué chegou à terra de Canaã, segundo as promessas que Deus fizera
aos patriarcas e em virtude do comando de que foi revestido, e começou a ocupá-la, de acordo com a promessa
de Deus e em obediência a uma ordem precisa, os povos da região se acovardavam por completo. Poderia ser
que os avós e antepassados de nossos americanos, expulsos de Canaã pelos filhos de Israel, tivessem embarcado
e se deixado levar ao acaso até aportar em terras da América. Com efeito, o espanhol autor da História geral das
Índias, varão muito versado na ciência, é de opinião que os índios do Peru, terra limítrofe do Brasil, são
descendentes de Adão e trazem o estigma da maldição de Deus, coisas que eu tinha pensado e escrito nas
anotações da presente história mais de dezesseis anos antes de ler a sua obra. Mas, como não quero discutir o
215
importante e perfeitamente calvinista. Se Léry rejeita as posições extremas, as ideologias e os
mitos, isso é por causa do pecado original. O mal atinge todas as criaturas e desarma qualquer
pretensão de exemplaridade. Porque eles fazem parte da queda, todos os homens são
igualmente condenados à culpa, e a natureza não é menos corrompida aqui e lá”.661 Ao final
de sua argumentação, conclui Jeanneret:

Em nome do seu pessimismo teológico, Léry não dá razão nem aos


selvagens nem aos europeus. Seria essa uma razão para alardear, em
sua investigação, distância, desprezo ou ceticismo. Ao contrário. O
resultado prático da doutrina calvinista do pecado é aqui a tolerância e
o sentimento de uma fundamental igualdade entre os homens –
igualdade na reprovação e na incerteza da salvação. O calor fraternal
de Léry para com os canibais e sua surpreendente disponibilidade
intelectual se alimentam de uma visão protestante, ou agostiniana, do
mundo.662

Para Calvino a superação desta limitação epistemológica somente é possível por meio
de Jesus Cristo. Deste modo, o pecado é identificado pelo reformador como uma realidade
que perpassa a existência de todo o ser humano, porque “fora de Cristo estamos
completamente mortos, visto que o pecado, a causa da morte, reina e nós”. 663 Duas fontes de
conhecimento uma interna e a outra externa são identificadas por Calvino, mas ambas
apontam a possibilidade de um conhecimento pleno e salvador em Jesus Cristo. Os índios
tupinambás são identificados por Jean de Léry como inseridos nesta realidade, portanto,
passíveis de atingir este conhecimento pleno, motivo que o dirige à evangelização nas terras
brasileiras.664 O seu real interesse é dar-lhes, ao reconhecer sua humanidade, a oportunidade

assunto, deixarei que cada qual tenha a sua crença a esse respeito. Por mim, reputo certo descender essa pobre
gente da raça corrompida de Adão, mas o vê-los tão desprovidos de todos os bons sentimentos de Deus não basta
para abalar a minha fé, graças a Deus, firme e segura. E não concluo, com os ateus e os epicuristas, que não
existe Deus ou que Ele não se preocupa com os homens, porém, ao contrário, que há grande diferença entre as
pessoas iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os indivíduos abandonados à cegueira de seus
sentidos. E confio cada vez mais na verdade de Deus”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 216-217.
661
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literatura
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 104.
662
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literatura
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 105.
663
João Calvino, Exposição de Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 51.
664
Os calvinistas vieram à França Antártica por solicitação de Villegagnon, mas motivados pelo desejo de
evangelizar tanto os franceses que aqui estavam quanto os índios que habitam as terras brasileiras. Cp.
“Fingindo sempre que ardia de zelo para adiantar o reinado de Jesus Cristo e procurando persuadir com empenho
a sua gente, ao serem seus navios carregados de regresso à França, escreveu e mandou por um deles um
emissário a Genebra para requisitar ministros religiosos que o ajudassem e socorressem, na medida do possível,
nessa sua tão santa empresa. E, no intuito de prosseguir com diligência na obra que empreendera e desejava
levar avante com todas as suas forças, pedia ainda que lhe enviassem, não só ministros da palavra de Deus, mas
também algumas outras pessoas bem instruídas na religião cristã a fim de melhor aprimorar a si e aos seus e
216
de crescer no conhecimento salvífico de Deus, conforme o entendimento reformado da
relação entre Deus e o homem pecador.

No entanto, Calvino enfatiza que o conhecimento de Deus inato no ser humano chega
a ser enfraquecido e corrompido por causa da ignorância e da maldade no ser humano.
Portanto, para Calvino somente há religião verdadeira quando esta conduz o indivíduo na
direção do Deus verdadeiro, porque “Deus permanece semelhante a si mesmo e não é um
espectro ou fantasma a ser transformado pelo desejo de qualquer um”. 665 E conclui “que
nenhuma religião seja legítima se não for unida à verdade”.666 Esta postura é encontrada por
Jean de Léry na prática religiosa dos índios tupinambás, principalmente sua oscilação quando
da conveniência em se mostrarem, pelo menos momentaneamente, interessados pelo Deus
bíblico667 e, ao que parece, já ter sido esta variação de humor no religioso identificada por
Calvino:

Envolvem-se numa quantidade tão grande de erros que a escuridão da


maldade destrói aquelas centelhas que brilhavam para o discernimento
da glória de Deus. Sem dúvida, resta aquela semente, que de nenhum
modo pode ser extraída desde a raiz, pois que há uma divindade. Mas
de tal modo está corrompida, que de si não produz senão péssimos
frutos. Ou melhor, daí se extrai com maior exatidão o que estou
defendendo agora: o sentimento da divindade foi naturalmente
impresso no coração dos homens, uma vez que a necessidade extrai
sua confissão até dos próprios réprobos. Enquanto tudo está tranquilo,
zombam de Deus, ou melhor, são mordazes e loquazes em enfraquecer
seu poder; se algum desespero os aflige, estimula-os a buscá-lo e a
ditar pequenas preces, pelas quais fica evidente que não desconheciam

mesmo abrir aos selvagens o caminho da salvação”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 76-77.
665
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.4.3, São Paulo, UNESP, 2008.
666
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.4.3, São Paulo, UNESP, 2008.
667
“Admiravam-se muito quando lhes dizíamos que não éramos atormentados pelo espírito maligno e que isso
devíamos ao Deus, de quem tanto lhes falávamos, pois, sendo muito mais forte do que Aygnan, lhe impedia de
fazer-nos mal. E acontecia que, sentindo-se amedrontados, prometiam acreditar em Deus. Passado o perigo,
porém, zombavam do santo, como se diz no provérbio, e não se lembravam mais de suas promessas.
No entanto, tal temor ao espírito maligno não era irrisório. Pude vê-los mais de uma vez apreensivos, quando se
lembravam do que tinham sofrido no passado, batendo com as mãos nas coxas, aflitos e em suores. E nesses
transes nos diziam: “Mair Atou-assap, Acequeiey Aygnan Atoupaué” | maír atubaçáb, acykyjé anhága katúpabē
suí |, o que vem a ser em nossa língua: “Francês, meu amigo (ou meu perfeito aliado), temo ao diabo, ao espírito
maligno, mais do que tudo.” E se lhes respondíamos: “Nacequeiey Aygnan” | nacykyjé anhánga çuí “não tenho
medo do diabo” |, isto é, “nós não o tememos”, deploravam sua sorte e retrucavam : “Seríamos tão felizes se
fossemos protegidos do mal como vós.” Replicávamos então: “É preciso que, como nós, confieis naquele que é
mais forte e poderoso do que ele.” Apesar de todas as suas promessas, porém, de nada valia a lição. Logo a
esqueciam”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de
Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 205.
217
inteiramente a Deus, mas que o que devia manifestar-se antes foi
suprimido pela malícia e rebeldia.668

Desta feita, deve-se entender que os tupinambás possuíam duas fontes de acesso ao
conhecimento de Deus: uma interna, o sensus divinitatis e o semen religionis; e outra externa,
a própria criação.669 No entanto, segundo a mentalidade de Calvino que Jean de Léry segue,
somente a Escritura é eficiente para a salvação, assim o desejo de Léry em apreender a língua
tupi para torná-la acessível aos tupinambás, além das diversas tentativas de expor passagens
da Escritura oralmente aos índios se constituem em prova do desejo que possuía pela
evangelização dos tupinambás pautado pelo reconhecimento de sua humanidade. A
possibilidade de conversão é uma realidade porque o sensus divinitatis e o semen religionis
são inatos no ser humano, contudo, as suas práticas religiosas vividas são determinadas pelas
estruturas sociais vigentes e modificá-las não é algo contraditório. A identificação da
possibilidade de conversão por parte de Jean de Léry aponta para o percurso de uma via de
retorno, como Michel de Certeau identifica, ou seja, um retorno a si mesmo pela mediação do
Outro, porquanto, ele mesmo, Léry, se constitui como uma mediação para o Outro. A sua
própria conversão é o paralelo para a conversão do índio tupinambá ao protestantismo
reformado. Não é somente uma valorização do índio, mas desejar-lhe o mesmo tipo de
benefício que para ele foi proveitoso. Deste modo, a conversão não deveria ser entendida
com um caráter impositivo e colonizador, mas sim indicativo de valorização por parte de Jean
de Léry aos índios tupinambás.

Também é importante considerarmos o modelo de apreciação de Calvino pela


Escritura Sagrada, porque, é elemento-chave tomado por Jean de Léry como o limite da
circularidade hermenêutica em sua heterologia. É exatamente neste modo de achegar-se à
Bíblia que faz com que Léry tome-a como um parâmetro interpretativo em diversas ocasiões
vividas na viagem ao Novo Mundo conforme podemos evidenciar explicitamente no seu
relato. Frank Lestringant confirma esta perspectiva: “os protestantes liam a Bíblia todos os
dias e interpretavam o seu cotidiano e a história que então viviam em função dessa leitura. O
668
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.4.4, São Paulo, UNESP, 2008.
669
“Ele [Calvino] afirma que certo conhecimento geral de Deus pode ser alcançado por meio da criação – na
humanidade, na ordem natural e no próprio processo histórico. Identifica duas bases para esse conhecimento: a
primeira, subjetiva; a segunda, objetiva. O primeiro fundamento é o “senso da divindade” (sensus divinitatis),
ou a “semente da religião” (semen religionis), implantado em cada ser humano por Deus. Deus implantou nos
seres humanos o sentido ou pressentimento de sua existência divina. Seria assim como se Deus tivesse gravado
no coração humano alguma coisa de si mesmo. O segundo fundamento reside na experiência da ordem do
mundo e na reflexão dessa ordem. Por meio do exame da ordem criada e de seu ponto mais alto, a humanidade,
podemos reconhecer o Deus criador, bem como sua sabedoria e sua justiça”. Alister E. McGrath, Fundamentos
do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo, Loyola, 2005, p. 176-177.
218
relato de Léry é crivado de citações bíblicas”.670 As várias referencias à Escritura Sagrada
iremos considerar na sequência.

Calvino sempre se apresentou diante da Escritura com elevado sentimento de respeito,


apreço e zelo, deste modo expressa sua consideração em diversas partes das suas obras
literárias e com uma grande diversidade de termos.671 Nos seus escritos refere-se à Bíblia
como a “pura Palavra de Deus”672; fala da “pureza da verdadeira Palavra de Deus”673;
enfatiza que nossa fé está alicerçada na “Sagrada Palavra de Deus” 674; ao falar do batismo diz
que “a Igreja foi santificada por Cristo, seu Esposo, e lavada com a lavagem da água pela
Palavra da vida”675; “sagrada Palavra”676; “Palavra da verdade”677; “Santa Palavra”,678,
“Palavra de Vida”,679 Infalível,680 que tem “segura credibilidade”:681 é íntegra.682 Por isso ela
é a “Norma da fé”,683 “Infalível norma de Sua sacra vontade”.684 Também afirma Calvino: “A
suprema prova da Escritura se estabelece reiteradamente da pessoa de Deus nela a falar”. 685 E
ainda: “É chocante blasfêmia afirmar que a Palavra de Deus é falível até que obtenha da parte
dos homens uma certeza emprestada”.686 E: “a Palavra do Senhor é semente frutífera por sua
própria natureza”.687 Estes diversos conceitos refletem o apreço que o reformador genebrino
possuía pela Bíblia como Palavra de Deus. Jean de Léry expressa na prática este respeito pela
Bíblia e objetivamente afirma: “só acredito realmente no que dizem as Santas Escrituras;
procedem elas de quem toda a verdade conhece e é, portanto, a suprema e indiscutível
670
Andrea Daher, Entrevista com Frank Lestringant in Topoi, v. 11, n. 20, jan-jun, 2010, p. 160.
671
Hermisten Maia Pereira da Costa, Fundamentos da Teologia Reformada, São Paulo, Mundo Cristão, 2007, p.
44.
672
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, IV.4.1, São Paulo, UNESP, 2008; João Calvino, A Instituição
da Religião Cristã, IV.8.9, São Paulo, UNESP, 2008; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição
especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo, Cultura Cristã, 2006, 110, IV.15.12.
673
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, IV.10.26, São Paulo, UNESP, 2008.
674
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.18.3, São Paulo, UNESP, 2008.
675
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, IV.15.2, São Paulo, UNESP, 2008.
676
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, IV.15.2,
São Paulo, Cultura Cristã, 2006, p. 105.
677
João Calvino, Exposição de Romanos, 2.ª ed., São Paulo, Paracletos, 2001, p. 444.
678
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, IV.15, São Paulo, UNESP, 2008.
679
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, II.7, São Paulo, UNESP, 2008. João Calvino, Exposição de
Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 110.
680
João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 98; João Calvino, A Instituição da Religião
Cristã, IV.16.16 São Paulo, UNESP, 2008; João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p.
14.
681
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.8.1, São Paulo, UNESP, 2008.
682
João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 187.
683
João Calvino, Exposição de Romanos, 2.ª ed., São Paulo, Paracletos, 2001,p. 330.
684
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, p. 14.
685
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.7.4., São Paulo, UNESP, 2008. Vd. também, João Calvino, A
Instituição da Religião Cristã, I.9.3, São Paulo, UNESP, 2008.
686
João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 98.
687
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, p. 103.
219
autoridade”.688 E ainda enfatiza Léry: “há grande diferença entre as pessoas iluminadas pelo
Espírito Santo e as Santas Escrituras e os indivíduos abandonados à cegueira de seus sentidos.
E confio cada vez mais na verdade de Deus”.689

A tarefa do cristão reformado era pregar esta Palavra como expressão desta
consciência de apreço pela mesma. A responsabilidade e a grandiosidade da tarefa que Deus
dignou homens a realizar, esta pregação da Palavra, é enfatizada por Calvino: “Mas, a quem
parece eximir-se a autoridade da doutrina, pela desprezabilidade dos homens que hão sido
chamados a ensiná-la, estes põem a mostra sua ingratidão, porquanto, entre tantos dotes
preclaros com os quais Deus há exortado o gênero humano, esta prerrogativa é singular: digna
a Si consagrar as bocas e línguas dos homens, para que neles faça ressoar Sua própria voz”.690
Jean de Léry reflete esta perspectiva quando em diversas situações vividas entre os índios, não
perde a oportunidade de ensinar a Bíblia ao índio tupinambá, como analisaremos em detalhes
à frente neste mesmo capítulo.

Em resumo, observaremos alguns princípios que são norteadores da ética dos


reformados no ensino de Calvino sobre a relação que o cristão deve ter com a Bíblia.
Primeiramente, o dever de meditar nesta Palavra como fiéis estudantes dela, como estudantes
dignos da lei. Comentando o verso segundo do Salmo 1, Calvino mostra: “o estudo da lei
como sendo a marca da piedade, nos ensinando que Deus só é corretamente servido quando
sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religião
ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra
de Deus”.691

Também adverte sobre o dever de praticar esta Palavra, como discípulos que a ouvem
atentamente, porque a Escritura é o meio pelo qual Deus se revela, e é o fundamento precípuo
do verdadeiro entendimento:

Uma vez que pouquíssimos se oferecem docilmente à Palavra de Deus


a fim de manterem-se em seus limites, mas antes se regozijam na sua
vaidade. Assim se tem, para que as ilumine a verdadeira religião, que
o início deva ser desde a doutrina celeste e não há quem prove sequer

688
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 275.
689
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 217.
690
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, IV.1.5, São Paulo, UNESP, 2008.
691
João Calvino, O Livro dos Salmos, vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p. 53.
220
o mínimo gosto da reta e sã doutrina a não ser que seja seu discípulo;
donde também emerge o princípio da verdadeira inteligência, quando
abraçamos respeitosamente o que Deus quis atestar a seu próprio
respeito na Escritura. Com efeito, não só a fé perfeita e plena nasce da
obediência, mas todo o reto conhecimento de Deus.692

Comentando o Salmo 17.4, Calvino afirma que a Palavra o conduz à prática correta,
restringindo as práticas pecaminosas, força que faz resistir às tentações, padrão de governo e
direcionamento para a vida cristã.693 As Sagradas Escrituras são o único meio que nos
protege de trilhar caminhos errados, um modo de preservar ao protestante de cair no erro de
criar novas formas de culto a Deus, perfazendo assim heresias. Trazendo sempre à memória o
Deus Criador e os seus feitos, uma possibilidade de contemplação da magnificência de Deus,
e expressão do seu poder soberano. 694

Esta perspectiva diante da Bíblia, herdada do reformador genebrino, encontramos em


diversos momentos da História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América de Jean de Léry que passaremos a observar.

Na viagem da Europa para o Brasil na travessia do Atlântico, durante uma forte


tormenta, com o mar arrebatador durante cerca de uma semana, ao ver as ondas varrerem o
convés, os huguenotes se utilizam do Salmo 107 como uma oração de livramento, porquanto
este texto descreve uma situação semelhante.695 Quando costearam a Berbéria, a beleza do
lugar faz Jean de Léry exclamar: “isso me levou a recordar as Escrituras e a contemplar essa
obra de Deus com grande admiração”.696 Ao avistar baleias, Léry lembra dos textos bíblicos
do Livro dos Salmos e do Livro de Jó.697 Na quarta-feira, dez de março de1557, quando
desembarcam a primeira atitude dos calvinistas, mesmo antes de se alocarem adequadamente,
é fazer um culto onde Salmo 5 é cantado, e o Salmo 27.5 foi pregado, segundo fora relatado
por Léry.698 Quando há a celebração da segunda Ceia em terras brasileiras, para o debate

692
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.6.2, São Paulo, UNESP, 2008.
693
João Calvino, O Livro dos Salmos, vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p. 332-333.
694
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, I.6.3, São Paulo, UNESP, 2008.
695
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 81.
696
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 85.
697
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 95.
698
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 106.
221
acerca da ausência do vinho, os Evangelhos são evocados como critério definidor.699 Quando
relata a nudez indígena, expõe: “não é meu intuito, entretanto, aprovar a nudez contrariando o
que dizem as Escrituras”.700

Ao concluir o relato da terra, Jean de Léry estupefato com a beleza que acabara de
registrar, conclui:

Quando a imagem desse novo mundo, que Deus me permitiu ver, se


apresenta a meus olhos, quando revejo assim a pureza do ar, a
abundancia de animais, a variedade de aves, a beleza das árvores e das
plantas, a excelência das frutas e em geral as riquezas que embelezam
essa terra do Brasil, logo me ocorre a exclamação do profeta no Salmo
104:
Ó Senhor Deus, como tuas diversas obras
São maravilhosas por todo o universo;
Tudo o que fizeste foi de grande sabedoria!
E, pois, a terra está plena de tua grandeza.701

Em outra ocasião, ao se deparar com semelhante beleza da terra, registra novamente:


“Atravessávamos uma grande floresta de árvores diversificadas, toda verde de ervas e
cheirosa de flores, ouvindo o canto de uma infinidade de aves que gorjeavam no meio da mata
banhada de sol. De coração alegre, senti-me chamado a louvar a Deus por todas essas coisas
e comecei a cantar em voz alta o salmo 104: „Exulta, exulta, minha alma etc.‟”.702

Ao descrever sobre a religião entre os tupinambás, faz uso de dois textos bíblicos para
apresentar a sua análise: “quando o apóstolo [Atos 14.7] disse que Deus permitiu aos gentios
seguirem o caminho que bem entendessem, a todos beneficiando, no entanto com a chuva do
céu e a fertilidade das estações, observou que os homens só não conhecem o Criador em
virtude de sua própria malícia. Pois o que é invisível em Deus encontra-se visível na criação
do mundo [Romanos 1.20]”.703

699
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 121.
700
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 138.
701
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 182.
702
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 215.
703
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 207.
222
Quando um ancião conta-lhe uma história de que há centenas de anos houve um Mair,
um estrangeiro, que já lhes havia “anunciado o verdadeiro Deus”704, Jean de Léry dispensa os
registros dos livros fabulosos e prefere ficar com a Escritura para interpretar este relato:
“considero com melhor fundamento a passagem de São Paulo sobre os apóstolos, no Salmo
19: „a sua voz percorreu toda a terra e suas palavras chegaram às extremidades do mundo‟”.705
Um relato oral como uma lembrança dos antepassados que os índios cantavam, dava conta de
uma enorme enchente que Léry interpreta como o dilúvio bíblico fazendo referencias ao
tempo de Noé.706 As suas teorias sobre a origem dos índios e a ocupação da América são
fundadas a partir das histórias bíblicas de Noé e Adão, respectivamente.707

Jean de Léry, maravilhado com a caridade e a hospitalidade dos índios tupinambás


com que foi tratado, exclama: “é difícil descrever tudo o que fizeram esses selvagens para nos
servir; pode-se dizer, em suma, que fizeram então conosco o que São Lucas, nos Atos dos
Apóstolos, diz terem os bárbaros da Ilha de Malta feito com São Paulo e seus companheiros
escapados do naufrágio”.708

Por fim, durante a viagem de retorno à Europa, quando se aproxima da linha do


Equador, Jean de Léry lembra as divagações dos filósofos se seria possível, ou não, nevar
neste ponto da terra. No entanto, resolve a questão da seguinte forma:

A solução mais exata para a questão está nas próprias palavras de


Deus a Jó (Livro de Jó, 38.22) quando, para mostrar-lhe que os
homens mais perspicazes nunca chegariam a compreender a grandeza
de suas obras, disse: “Entrastes nos tesouros na neve? Viste também
os tesouros do granizo? E isto é como se o Eterno, esse grande e
maravilhoso obreiro, dissesse a seu servo: “Em que celeiro tenho eu
essas coisas, conforme o teu entendimento? Poderia dar a razão
disso? Não, por certo, pois não és bastante sábio.709

704
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 214.
705
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 214.
706
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 210-211.
707
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 216-217.
708
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 235.
709
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 275-276.
223
Michel de Certeau defende a tese de que Jean de Léry deslocou sua teologia tornando-
a laica710, esta afirmação aponta para a transposição fronteiriça do teórico para sua
aplicabilidade prática no mundo real e concreto na existência empiricamente vivida. Deste
modo, os conceitos teológicos de conhecimento de Deus, em seus desmembramentos
concernentes aos conceitos de senso da divindade e semente da religião, a limitação
epistemológica provocada pelo pecado e o pressuposto de abordagem da Bíblia são aplicados
por Jean de Léry às suas análises daquilo que viu e presenciou, ou seja, transforma conceitos
teóricos em chaves de leitura para a interpretação da realidade. Portanto, “o relato de Léry é
crivado de citações bíblicas”711, porque é um “calvinista rigoroso”712, com uma estrutura de
pensamento “teologicamente fundamentada”713, e acima de tudo “por sua fidelidade à
Bíblia”.714

710
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 234.
711
Andrea Daher, Entrevista com Frank Lestringant in Topoi, v. 11, n. 20, jan-jun, 2010, p. 160.
712
Frank Lestingant, Corps Mystique, Corps Sauvage, Michel de Certeau, Lecteur de Jean de Léry in Jean de
Léry ou L‟invention du Sauvage, essai sur l‟Histoire d‟un voyage faict en la terre du Bresil, 2.a ed., Paris,
Éditions Champion, 2005.
713
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literatura
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 104.
714
Michel Jeanneret, Léry e Thevet, como falar de um Novo Mundo? in Opiniães, revista dos alunos de literatura
brasileira, ano 2, número 3, São Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Letras Vernáculas, 2011, p. 105.
224
Em regra geral, os sacrifícios acabam
numa refeição tomada em comum.
Animal ou humana, é sempre a vítima que
faz as despesas do banquete. O
canibalismo ritual não é “uma invenção
do imperialismo ocidental”, é um dado
fundamental do religioso arcaico. (René
Girard).715
Não me parece excessivo julgar bárbaros
tais atos de crueldade, mas que o fato de
condenar tais defeitos não nos leve à
cegueira acerca dos nossos. Estimo que é
mais bárbaro comer um homem vivo do
que o comer depois de morto; e é pior
esquartejar um homem entre suplícios e
tormentos e o queimar aos poucos, ou
entregá-lo aos cães e porcos, a pretexto de
devoção e fé, como não somente o lemos
mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos
conterrâneos; e isso em verdade é bem
mais grave do que assar e comer um
homem previamente executado. (Michel
de Montaigne).716

4.2 – A Antropofagia Ritual

O ritual antropofágico dos índios tupinambás do século XVI foi registrado por
diversos viajantes europeus que estiveram em terras brasileiras nos idos deste mesmo século,
e também em ocasiões posteriores. Lembremos rapidamente, Jean de Léry é um huguenote,
suas abordagens, suas descrições e seus relatos de viagem são profundamente influenciados
por sua formação e experiência teológica onde está inserido e influenciado pelo seu contexto
histórico e sua visão de mundo. Vêm ao Brasil no século XVI com vistas ao estabelecimento
da assim chamada França Antártica sob a direção do controverso vice-almirante francês

715
René Girard, Eu via Satanás cair do céu como um raio, Lisboa, Instituto Piaget, 2002, p. 12.
716
Michel de Montaigne, Ensaios, Livro Primeiro, Dos Canibais in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural,
1972, p. 107.
225
Nicolas Durand de Villegagnon. Possui um ideal utópico: viver a religiosidade reformada
com liberdade.

Existem várias análises do relato de Jean de Léry em que ele descreve e interpreta a
religião dos tupinambás. Alguns defendem que, ao Léry indicar serem os tupinambás
destituídos de qualquer conhecimento do Deus verdadeiro e, portanto, segundo estes, sem
religião alguma, sugerem estar aí o ponto focal de distinção do relacionamento amigável do
protestante com o índio, visto que, sendo este destituído de qualquer religiosidade, por certo
seria impossível convertê-lo, sem possibilidade de conversão, portanto, sem uma suposta
violência religiosa.717 Em contrapartida, há a ideia de que o olhar católico-romano, ao
identificar a possibilidade de conversão, passa a impor de maneira arbitrária, pelo uso de
violência, a sua religiosidade aos nativos.718 No entanto, nossa tese é a de que encontramos
em Jean de Léry, não a negação da religiosidade dos índios tupinambás, mas na verdade, ele a
interpreta segundo as categorias próprias do calvinismo. São estas categorias, descritas acima
que, além de darem conta de fazê-lo compreender a religião dos tupinambás, também
apontam para a possibilidade da conversão ao cristianismo reformado. Eis a afirmação
introdutória de Jean de Léry:

Passemos agora aos nossos assuntos e vejamos em primeiro lugar o da


religião, que é um dos pontos principais que eu devo observar entre os
homens. Apesar de informar detalhadamente, no capítulo XVI, qual a
religião dos Toüoupinambaoults | Tupinambá |, deparo de início com
uma dificuldade que não me canso de admirar e, embora não me caiba
esclarecê-la como seria desejável, não deixarei de mencioná-la. Direi
pois que, apesar de os que melhor e mais sensatamente falaram a
respeito não só disseram, mas observaram que ser homem implica o
sentimento de uma força superior; direi ainda que todos se acham tão
presos uns aos outros que, qualquer que seja a maneira com que
sirvam a Deus, todos têm uma religião, certa ou errada, não se pode
negar, para compreender de que lado se coloca naturalmente o
homem.719

Jean de Léry evidencia o seu pressuposto de análise da religião dos tupinambás, o


conceito teológico que apreendeu do reformador genebrino quanto ao senso da divindade e a

717
Cp. Andréa Daher no seu artigo A Viagem de Jean de Léry e A Missão de Claude d‟Abbeville no Brasil
(Séculos XVI e XVII) in Lúcia Helena Costigan (org.), Diálogos da Conversão, Campinas-SP, UNICAMP, 2005;
Frank Lestringant, À Espera do Outro in Adauto Novaes (org.), A Outra Margem do Ocidente, São Paulo,
Companhia das Letras, 1999.
718
Cp. Roberto Gambini, Espelho Índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena, Rio de Janeiro, Espaço &
Tempo, 1988; Ronald Raminelli, Imagens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1996.
719
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 71-72.
226
semente da religião como uma característica essencial do ser humano. Deste modo, Léry
acaba por abarcar duas perspectivas, que se mostram na mentalidade calvinista como
necessariamente indissociáveis, o tupinambá é um ser humano, portanto, a religião é uma
realidade que se faz presente em sua estrutura social. Ou seja, a religião é um elemento que
caracteriza o índio, comprovando sua humanidade, por ser este aspecto uma característica
intrínseca à natureza humana.

Por ser um humano que espelha a beleza de Deus, é portanto, o tupinambá uma
imagem da ordem e organização divina, que se reflete em sua estrutura social, de modo que a
função da guerra é “reforçar e conservar a autonomia política de cada comunidade
territorial”.720 Destarte, o contexto onde Léry relata a religiosidade tupinambá, a guerra entre
tribos inimigas, por conseguinte, se mostra indicativa deste sistema estruturante que explicita
uma organização social. Jean de Léry ao descrever, segundo o desejo de apresentar única e
tão somente aquilo que presenciou, as relações guerreiras dos índios tupinambás, evidencia
uma estrutura social fundante, uma organização complexa, uma realidade humana por
excelência que apresenta um organismo social coeso a partir de regras éticas de
comportamento, identificadas como bens naturais intrínsecos ao ser humano. Deste modo a
exposição feita por Jean de Léry, por si só já se constitui em uma interpretação na qual o
tupinambá é identificado como um ser humano com capacidade social estruturante,
ressaltando a humanidade destes, portanto, sua valorização, porquanto refletem a imagem de
Deus. Outro elemento destacado em Léry é a circularidade interpretativa, aplicada na
comparação entre tupinambá e europeu, de modo que a coletividade estruturada também é
evidência de humanidade valorativa. Portanto, em Léry temos uma “lição de escrita” que se
apresenta como uma hermenêutica do Outro que se designa em um parâmetro interpretativo
de si mesmo.

Após apresentarmos estes conceitos com vistas a tê-los como parâmetro interpretativo
do ritual de guerra dos índios tupinambás no século XVI, segundo o relato do protestante
francês Jean de Léry, e a consequente antropofagia ritual religiosa, pensemos na guerra como
prática de um grupo social organizado que usa da força para subjugar o adversário
submetendo-o à vontade do povo que o capturou. A violência é o que caracteriza o ato, ou
seja, o emprego da força para levar o adversário rumo ao convencionado no ritual, lembrando

720
Adone Agnolin, O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e
identidade no caso tupinambá, São Paulo, Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 192.
227
que esta força no caso tupinambá apresenta-se no âmbito do religioso, do imaginário, do
social e não somente em seu aspecto físico. O ritual antropofágico do índio tupinambá revela-
se como um elemento religioso social expressando realidades coletivas, portanto, perpassadas
de elementos sociais e como tal deve ser analisada respeitando sua integridade estrutural
religiosa, social e ideológica. Exatamente como Jean de Léry o faz ao utilizar-se da
perspectiva do relativismo cultural721 que o move a compreender o índio tupinambá nas suas
relações mais singulares, mesmo que estas sejam chocantes ao olhar ocidental.

Consideraremos primeiramente o relato de Jean de Léry em sua História de uma


Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, de um modo descritivo o contexto
da guerra, em seguida o modo como os índios tupinambás tratam os seus prisioneiros e por
fim, no próximo tópico, nos concentraremos no ponto central deste capítulo que é a análise da
descrição da religião dos tupinambás na sua relação com a possibilidade de conversão ao
protestantismo reformado expresso ao longo do relato de viagem.

Inicia Jean de Léry o capítulo XIV “Sobre a guerra, o combate, a bravura e as armas
dos selvagens”, mostrando que a prática da guerra é um costume habitual de todos os
habitantes desta parte do mundo.722 Esta guerra dos tupinambás, descrita como incansável,
tem como inimigos eternos os índios Margaias e Peros. Léry rapidamente já evidencia sua
circularidade hermenêutica ao usar o índio como espelho interpretativo do europeu, já que, se
estes guerreiam unicamente pelo ímpeto de tomar terras, lucrar financeiramente e subjugar os
outros, os tupinambás teriam uma motivação mais nobre ao querer vingar os seus familiares e
amigos.723 Aponta Léry a guerra, desde o início do seu relato, como algo ordenado e a
vingança como um valor próximo à noção de religião.724 Schwarcz entende que a guerra e

721
Cp. Ana Lúcia Vieira, A Alteridade na Literatura de Viagens Quinhentista: olhares e escritas de Jean de Léry
e de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro, Lisboa, Colibri, 2008; Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras
Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo,
UNESP, 2003.
722
“Cada grupo precisa do outro para definir a si mesmo e, por isso, a vitória nunca é definitiva. Isso indica que
a guerra não nasce por causa da alteridade, mas cria a alteridade e o inimigo é no início sempre um igual”.
Adone Agnolin, O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e
identidade no caso tupinambá, São Paulo, Associação Editoral Humanitas, 2005, p. 192.
723
“O desejo de vingança que os índios alimentam é concretizado na guerra. A guerra, assim, é uma das
principais atribuições do homem indígena, pois é nela que prova o seu valor e suas qualidades. A guerra e
solenidades que a envolvem fazem parte do universo simbólico de crenças e práticas que sustentam e conferem
inteligibilidade à realidade dos índios, pertencendo, portanto, à dimensão do „sagrado‟”. Carlos Geovane
Steigleder, Staden, Thevet e Léry: olhares europeus sobre o índio e sua religiosidade, São Luiz-MA, EDUFMA,
2010, p. 78.
724
Lilia Moritz Schwarcz, O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na
corte de d. João, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 34.
228
vingança entre os tupinambás é o que de fato impressiona Jean de Léry, porque, “por mais
que critique, o autor confessa descobrir lógicas locais, além de estabelecer comparações com
a maneira como os franceses fazem a guerra”.725 Expõe Léry o relato que presenciou726:

Os selvagens não se guerreiam para conquistar países e terras uns aos


outros, pois sobejam terras para todos; tampouco pretendem
enriquecer com os despojos dos vencidos ou o resgate dos
prisioneiros. Não são movidos por nada disso. Eles próprios
confessam serem impelidos por outro motivo: o de vingar pais e
amigos presos e comidos, no passado, do modo que contarei no
capítulo que segue. E são tão encarniçados uns contra os outros que
quem cai no poder do inimigo não pode esperar perdão; será tratado
da mesma forma, isto é, abatido a pancadas e comido.727

Jean de Léry ao que parece aponta para uma preferência às motivações dos tupinambás
como supostamente mais nobres que as pertencentes aos europeus, mesmo, sem em momento
algum julgar a guerra como algo valoroso, mostra sua relativização interpretativa ao mostrar
algo de mais humano no índio tupinambá, porque, pelo menos este se preocupava não
somente com o seu próprio bem estar, mas também, com a honra dos seus irmãos tupinambás.
Possivelmente uma crítica velada às motivações dos católicos e reis franceses durante o
período das guerras de religião na França.

A guerra entre os povos indígenas no Brasil do passado foi uma constante, porque, “o
ódio entre eles é tão arraigado, que se mantêm para sempre irreconciliáveis”728, registra Jean
de Léry, para logo na sequência mostrar a sua perspectiva crítica fundamentada no sistema de
pensamento calvinista, observemos:

Daí nos parece possível concluir que Maquiavel e seus discípulos, dos
quais a França por infelicidade anda cheia nestes tempos, não passam
de imitadores desses bárbaros cruéis. Ensinam esses ateus e praticam,
contrariamente à doutrina cristã, que os novos obséquios nunca devem
apagar as antigas injurias. Os homens, inspirados naturalmente pelo
diabo, não podem perdoar-se uns aos outros e eles bem o demonstram,
revelando terem o coração mais falso e feroz que os próprios tigres.729

725
Lilia Moritz Schwarcz, O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na
corte de d. João, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 35.
726
“Posso falar com certeza por já ter sido espectador de uma luta”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita
à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 189.
727
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 183.
728
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 184.
729
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 184. Como já defendemos e expressamos, a análise de Léry é condicionada
229
Temos deste modo, uma evidência que, mesmo diante da valorização do Outro, Jean
de Léry não abre mão do fundamento determinante de sua estrutura de pensamento calvinista,
o compromisso com a sua teologia construída a partir da Bíblia Sagrada, prova da importância
que a escrita ocupa na mentalidade reformada como a norma de ética de vida em todos os seus
pormenores.

A estrutura social dos tupinambás privilegiava os mais velhos com respeito, mesmo
não tendo “reis nem príncipes, e sejam iguais entre si”.730 Estes eram os responsáveis pelo
discurso de incentivo à guerra que, ou sentados nas suas redes ou andando chamavam a
atenção dos seus irmãos para a guerra. Com uma performance curiosa, o idoso “bate com as
mãos nos ombros e nas nádegas”731 para chamar a atenção dos ouvintes e provocá-los a vingar
os seus antepassados que foram mortos e comidos pelos inimigos. Todo este movimento dura
cerca de seis horas, onde todos ouvem com atenção sem deixar de dar ouvidos a uma única
palavra. Segue Jean Léry em seu relato de viagem descrevendo detalhadamente as armas que
são utilizadas pelos índios tupinambás na guerra: o tacape, o arco, o escudo e o arcabuz
negociado com os europeus.

Na organização para a guerra reúnem-se os índios tupinambás em cerca de oito a dez


mil. As mulheres acompanham os homens, no entanto, são responsáveis pelas redes de
dormir e pelos mantimentos. A música acompanha a partida e o levantar dos acampamentos,
além de todo o percurso da caminhada para a batalha, o intuito é aumentar-lhes a coragem e
incitá-los a matar e devorar os inimigos. Se porventura, seguem o percurso por água, fazem
uso das suas barcas para seguir pela costa brasileira. Segue-se então a batalha em si, que Jean
de Léry define como cruel, entretanto evidencia a organização dos tupinambás nas estratégias
de guerra e na estrutura organizacional das aldeias. Jean de Léry demonstra-se, na verdade,

pela teologia calvinista, deste modo observemos, sucintamente, o que Calvino expõe com respeito à ação de
Satanás sobre os homens: “Satanás entra em ação com astúcia, e obviamente não destrói o evangelho em sua
totalidade, senão que macula sua pureza com opiniões falsas e corruptas. Muitos não levam em conta a
gravidade do mal, e por isso fazem uma resistência menos radical. O apóstolo, portanto, protesta dizendo que,
uma vez seja a verdade de Deus corrompida, nada sadio nela fica. Ele usa a metáfora do fermento, o qual, por
menor que seja a quantidade, transmite sua acidez a toda a massa. Devemos ser muito cautelosos, não
permitindo que algo estranho seja adicionado à íntegra doutrina do evangelho”. João Calvino, Exposição de
Gálatas, São Paulo, Paracletos, 1998, 158-159. E ainda: “a causa de nossa corrupção deve ser encontrada no
domínio que o diabo exerce sobre nós. (...) todos os que vivem segundo o curso do mundo, ou seja, segundo as
inclinações da carne, batalham sob o comando de Satanás”. João Calvino, Exposição de Efésios, São Paulo,
Paracletos, 1998, p. 52.
730
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 184.
731
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 184.
230
admirado pela beleza visual da guerra, mesmo a despeito desta crueldade identificada,
vejamos:

Devo acrescentar que, embora tenha visto muitas vezes regimentos de


infantaria e cavalaria nos países europeus com seus elmos dourados e
suas armas reluzentes, nunca um espetáculo de combate me deu tanto
prazer aos olhos. Mas, além do entretenimento de vê-los saltar,
assobiar e manobrar com destreza as armas para todos os lados,
causava-me encanto o espetáculo de tantas flechadas emplumadas de
vermelho, azul, verde e outros cores, brilhando aos raios do sol; e não
era menos agradável ver roupas, barretes, braceletes e outros adornos
feitos dessas penas naturais com que se vestiam os selvagens.732

Após a aventura que durou cerca de três horas, muitos mortos e feridos de parte a parte
e prisioneiros levados para a aldeia, Jean de Léry juntamente com um companheiro que não
denomina retornam à ilha, a França Antártica, porquanto ainda não haviam sido os calvinistas
expulsos por Villegagnon. Uma evidência de que tal prática foi voluntária, uma
demonstração de interesse de Léry pelas práticas indígenas, mesmo a despeito do choque
cultural que tal experiência poderia trazer.733

Jean de Léry no capítulo XV “Sobre o tratamento que os americanos dão a seus


prisioneiros de guerra e as cerimônias que observam, tanto ao matá-los quanto ao comê-los”
passa a descrever especificamente a antropofagia ritual dos tupinambás. Vamos analisar a sua
descrição em maiores detalhes. No final do capítulo anterior, Léry relatou o final da guerra
entre as tribos indígenas e os tupinambás conduzindo os seus prisioneiros à aldeia. Agora ele
se concentra em descrever o modo como estes prisioneiros são tratados e os detalhes
concernentes à cerimônia antropofágica. É importante destacarmos que Léry entende a
antropofagia como um ritual circunscrito às relações da guerra entre as tribos e a consequente
conquista de prisioneiros, afastando deste modo, uma compreensão distorcida deste
canibalismo como uma prática alimentar dos tupinambás.

Os prisioneiros de guerra quando chegam à aldeia são muito bem tratados. Recebem
farta alimentação para engodarem, e até mesmo mulheres lhes são concedidas, normalmente
uma filha ou irmã de um homem tupinambá. Não há pressa em realizar a o ritual de
antropofagia. O início do cerimonial começa com o anúncio do evento para as aldeias das

732
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 190.
733
“Quando chegamos em frente a nossa ilha, eu e meu companheiro tomamos uma barca para o forte e os
selvagens foram para suas aldeias em terra firme”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 191.
231
vizinhanças sobre o dia da execução do prisioneiro. No dia definido começam a rapidamente
“chegar de todos os lados homens, mulheres e crianças”. 734 Os convidados dançam e bebem
cauin por toda a manhã, inclusive o próprio prisioneiro que em breve será devorado, e
curiosamente é dos mais animados com os festejos, uma vez que, todo paramentado com
penas dança e bebe por cerca de seis ou sete horas, conforma relata Léry. Logo em seguida,
“é agarrado por dois ou três dos personagens mais importantes do grupo e, sem que oponha a
menor resistência, é amarrado pela cintura com cordas de algodão ou outras feitas da casca de
uma árvore”.735 É levado deste modo pela aldeia como um troféu por algum tempo. No
entanto, mesmo a despeito da humilhante situação o prisioneiro não se deixa intimidar com a
situação, e “com audácia e incrível segurança, gaba-se de suas proezas passadas e diz aos que
o mantém amarrado: „Também eu, valente que sou, já antes amarrei assim vossos
parentes‟”.736 E o prisioneiro não cessa de retrucar veementemente afrontando os seus
algozes, falando em voz alta: “comi um pouco do teu pai”, “matei e moqueei a teus irmãos” e
por fim: “comi tantos homens e mulheres, filhos de vós outros Toüoupinambaoults
|Tupinambá|, a que capturei na guerra, que nem posso contá-los; e estejais certos de que, para
vingar a minha morte, os Margaias |Maracajá| da nação a que pertenço hão de comer ainda
tantos de vós quantos possam apanhar”.737

Após algum tempo exposto publicamente, o prisioneiro é imobilizado completamente


quando aqueles que seguram as cordas o fazem com mais força. Neste momento o prisioneiro
é instigado a vingar-se dos seus opressores, que passa a atirar, nos cerca de três a quatro mil
espectadores, tudo quanto lhe venha à mão, pedra e cacos, sem escolher o alvo. Após tudo
isso, um guerreiro que não participou dos eventos até o momento sai ao encontro do
prisioneiro com uma grande espada de madeira enfeitada com plumas e o corpo todo
adornado. E se inicia um diálogo.

734
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 192.
735
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 192-193.
736
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 193.
737
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 193.
232
Tupinambá: “Não és tu da nação dos Margaias, nossa inimiga? Não tens morto e devorado
parentes e amigos nossos?”.738

Prisioneiro: “Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos”; “Eu não estou a
fingir, fui de fato valente e ataquei e aprisionei vossa gente e os comi muitas vezes”.739

Tupinambá: “Agora estás em nosso poder e serás morto por mim e moqueado e devorado por
todos nós”.740

Prisioneiro: “Meus parentes também me vingarão”.741

Diante disto, o que chama à atenção de Jean de Léry é o fato dos prisioneiros não
temerem a morte antropofágica, mesmo curiosamente, sendo-lhes temerosa a morte natural.
O diálogo continua com ambos retrucando-se um após o outro em um encenação vívida.
Após isto, registra Jean de Léry:

O selvagem encarregado da execução levanta então o Tacape com


ambas as mãos e descarrega tal pancada com a extremidade redonda
na cabeça do pobre prisioneiro, tal como os açougueiros por aqui
abatem os bois, que vi alguns caírem completamente mortos, sem
sequer mover braço ou perna. É verdade que, estando estendidos no
chão, a gente os vê tremer um pouco por causa dos nervos e do sangue
que se retira. Os executores costumam bater com tal habilidade na
testa ou na nuca, que não se faz necessário repetir o golpe, e a vítima
perde muito sangue.742

Após executar o prisioneiro, o guerreiro tupinambá, que julga o seu ato ser em
extremo honroso, retira-se e volta para a reclusão solitária de sua casa, o mesmo lugar que
estava quando todos festejavam por horas à véspera do sacrifício. Além disto, “fazem no
peito, nos braços, nas coxas e na barriga das pernas sangrentas incisões. E, para que
permaneçam por toda a vida, esfregam-nas com um pó negro que as torna indeléveis. O

738
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 193.
739
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 194.
740
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 194.
741
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 194.
742
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 194.
233
número de incisões indica o número de vítimas sacrificadas e lhes aumenta a consideração por
parte dos companheiros”.743

Descreve Jean de Léry que, com o prisioneiro depois de morto, a esposa que lhe fora
dada entra em prantos fingidos, no entanto, registra o viajante que, “se puder, será a primeira
a comer-lhe um pedaço”.744 Se porventura, as esposas tivessem filhos, estes também seriam
comidos no ritual antropofágico.

Em seguida, inicia-se a preparação culinária da vítima. Cabe às mulheres tupinambás,


especialmente as mais velhas, que são as mais gulosas e mais ansiosas pela morte, arrancar a
pele do morto escaldando-o com água fervente e esfregando-o, para o tornarem
completamente branco, segundo Jean de Léry, à mesma maneira que os borgonheses
cuidavam em preparar um porco. “No ato que mais deveria escandalizá-lo, o visitante vindo
da Europa descobre uma desconcertante familiaridade”.745 Analogia curiosa feita pela
huguenote.

Depois desta preparação inicial, o dono do prisioneiro, juntamente com alguns


companheiros, rapidamente abrem e cortam o corpo em postas, em sequência, após este ato,
tomam os seus filhos e esfregam pelo seus corpos o sangue do morto, com o propósito de
torná-los mais ferozes e valentes.746

Inicia-se a preparação culinária da vítima. Todas as partes do corpo da vítima são


lavadas com cuidado e colocadas em grandes e altas grelhas de madeira. As velhas índias
tupinambás ficam ao redor desta grelha para comer as tripas e lamber os dedos, visto que,
estas apreciavam muito a carne humana, como expõe Jean de Léry. Mesmo com três a quatro
mil pessoas reunidas para a cerimonia antropofágica, nenhum tupinambá saía da festa sem ao
menos comer um pedaço do prisioneiro morto.

Jean de Léry deixa evidente no seu relato de viagem quais são os motivos da
antropofagia tupinambá:

743
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 198.
744
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 195.
745
Frank Lestringant, O Canibal: grandeza e decadência, Brasília, UnB, 1997, p. 91.
746
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 195-196.
234
Mas, como poderíamos pensar, não comem a carne por simples
gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima,
seu principal objetivo é causar temor aos vivos. Move-os a vingança,
exceto no que diz respeito às velhas, como já observei. Por isso, para
satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro, dos
dedos dos pés até o nariz, orelhas e alto da cabeça, com exceção,
porém, dos miolos, nos quais não tocam.747
Mas esses bárbaros não só se deleitam no extermínio de seus inimigos
(pois os Margaias impõem o mesmo tratamento aos
Toüoupinambaoults quando os pegam), mas ainda têm um especial
prazer em ver que seus aliados façam o mesmo.748

Os crânios dos prisioneiros mortos são conservados nas aldeias como troféus que
servem aos índios tupinambás para intimidação para aqueles que os visitam. Enquanto isto,
os ossos das coxas e braços servem para confeccionar instrumentos musicais, como flautas e
pífanos. Enquanto os dentes usam-nos os tupinambás no pescoço como enfeites em forma de
colares.

O clímax do relato antropofágico de Jean de Léry atinge o seu ápice quando


primeiramente faz uma comparação desta antropofagia tupinambá com as práticas europeias,
concluindo que estes são mais cruéis do que aqueles, e, em segundo lugar quando apresenta a
sua defesa das práticas dos índios, revela a relatividade cultural que lhe é própria em todo o
relato de viagem, e consequentemente sua circularidade hermenêutica. Observemos, ainda
que extenso, estas análises:

Poderia acrescentar outros exemplos da crueldade dos selvagens para


com seus inimigos, mas creio que o que já disse basta para arrepiar os
cabelos de horror. É útil, entretanto, que ao ler semelhantes
barbaridades, os leitores não esqueçam do que se pratica entre nós.
Em boa e sã consciência, estou seguro de que excedem em crueldade
aos selvagens os nossos usurários, que, sugando o sangue e o tutano,
comem vivos viúvas, órfãos e outras criaturas miseráveis, para as
quais seria melhor cortar-lhes o pescoço de um só golpe, que deixá-las
morrer assim lentamente. Por isso, deles disse o profeta que esfolam a
pele, comem a carne e quebram os ossos do povo de Deus, como se os
fizessem ferver numa caldeira. Entretanto, mesmo sem falar por
metáforas, não encontramos aqui, na Itália e alhures, pessoas
condecoradas com o título de cristãos que, não satisfeitas em trucidar
seu inimigo, ainda lhes devoram fígado e coração? E que vimos em
França durante a sangrenta tragédia iniciada a 24 de agosto de 1572?
Sou francês e entristece-me dizê-lo. Entre outros atos de horrenda
recordação, não foi a gordura das vítimas trucidadas em Lyon, muito

747
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 198.
748
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 199.
235
mais barbaramente do que pelos selvagens, depois que elas foram
tiradas do rio Saône, publicamente vendida em leilão e concedida ao
maior lançador? O fígado e o coração e outras partes do corpo de
alguns indivíduos não foram comidos por furibundos assassinos de
que se horrorizam mesmo os infernos? Depois de miseravelmente o
haverem morto, não picaram o coração a Coeur de Roi, que professava
a religião reformada em Auxerre, não lhe puseram os pedaços à venda
e não os comeram afinal, para aplacar a raiva, como mastins?
Milhares de testemunhas desses horrores, nunca dantes vistos em
qualquer povo, ainda vivem, e há livros já impressos que os atestam à
posteridade.749

Por fim, no último parágrafo do capítulo, Jean de Léry defende os tupinambás:

Não abominemos demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos.


Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais
detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas de
que têm vingança a tomar; elas mergulharam no sangue de seus
parentes, vizinhos e compatriotas. Não é preciso ir à América, nem
mesmo sair de nosso país, para ver coisas assim monstruosas.750

A interpretação que Jean de Léry faz da guerra e da antropofagia ritual dos índios
tupinambás mostra-se evidentemente, influenciada por sua experiência de vida, o contexto das
guerras de religião na França, conforme já apresentamos no capítulo segundo. Léry sabe o
que é ser marginalizado pelo poder instituído, deste modo, compreende que o Outro tem uma
lógica que determina suas ações. Mesmo limitando sua interpretação conscientemente pelo
apreço à Escritura Sagrada, faz uma apresentação relativista e compreensiva das praticas
antropofágicas. Portanto, evidencia o compromisso com o seu lugar social que possibilita a
inteligibilidade do seu relato, como um calvinista convicto de suas relações determinantes de
sentido linguístico.

E, além disto, “em vez de símbolo de uma alteridade odiosa, como era comumente
representada em outras narrativas de viagem da época, no relato de Jean de Léry a
„antropofagia‟ está em todo lugar e, em última análise, torna-se sintoma da estranheza que ele
percebe na Europa”.751 Léry identifica que “entre „aquém‟ e „além‟, não são tanto as coisas
que diferem, mas sua aparência, pois, no conjunto, a natureza humana é a mesma e só a língua

749
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 201-202.
750
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 202.
751
César Braga-Pinto, As Promessas da História: discursos proféticos e assimilação no Brasil colonial (1500-
1700), São Paulo, EDUSP, 2003, p. 135.
236
é outra”.752 Portanto, Léry enriquece a “interpretação e o uso simbólico da antropofagia –
através desta operação interpretativa/simbólica – que, mesmo não aceitável, a prática
antropofágica se torna, pelo menos, compreensível”.753 Consequentemente, este relativismo
cultural que Léry apresenta no relato da antropofagia ritual dos tupinambás, lhe permite um
argumento comparativo que o posiciona contrário às crueldades cometidas pelos católicos
contra os protestantes no período das guerras de religião. “O texto de Léry deixa entrever a
acusação ao católico que faz o papel de um autêntico antropófago para o protestante”.754 No
entanto, Léry ao transformar as práticas antropofágicas tupinambás em escrita, além de dar
voz ao índio, acaba por responder, em consonância com o poder da palavra, às práticas cruéis
dos católicos franceses nas atrocidades cometidas contra os protestantes franceses durante o
período das guerras de religião na França, em especial a noite de São Bartolomeu e a sua
experiência durante o cerco de Sancerre.755

Jean de Léry em sua operação historiográfica, ao descrever detalhadamente a


antropofagia ritual dos índios tupinambás, está na verdade semanticamente apontando para o
encontro com o Outro, e nesta atividade acaba por possibilitar a compreensão do Eu no
presente. Esta construção do signo não é uma fabricação a partir do nada, mas é sim, um
produto escriturístico condicionado ao seu lugar social e compromissado com a verdade dos
fatos relatados. Seguindo Michel de Certeau, afirmamos que o historiador objetiva a escrita
que materializa a história, sem desvincular-se do seu comprometimento com o real, e desta
feita, Léry é uma testemunha do que relata, contudo, não se exime de interpretar o real
segundo as categorias semânticas do seu lugar social. Por conseguinte, o viajante historiador,
coloca em cena pictoricamente os fatos, o ausente tupinambá em suas relações sociais, como
se apresentam ao seu olhar vivencial. Jean de Léry faz o índio ressurgir no Velho Mundo
concedendo a possibilidade do europeu pensar criticamente sobre suas práticas de intolerância

752
François Hartog, O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, Belo Horizonte, UFMG,
1999, p. 252.
753
Adone Agnolin, O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e
identidade no caso tupinambá, São Paulo, Associação Editoral Humanitas, 2005, p. 152.
754
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 112.
755
“A atenuação do canibalismo ameríndio e o reforço do canibalismo europeu se intensificaria, no universe
mental de Léry, durante os anos decorridos entre a volta à França e a publicação do livro em 1578. A Guerra
religiosa e o cerco de Sancerre haviam trazido consigo um séquito de atrocidades: os massacres coletivos, a
venda, em praça pública, da gordura dos corpos de pessoas massacradas; a ingestão de seus fígados, corações e
outras partes mais”. Laura de Mello e Souza, Os Novos Mundos e o Velho Mundo: confrontos e inter-relações in
Maria Ligia Coelho Prado;, Diana Gonçalvez Vidal (org.), À Margem dos 500 anos: reflexões irreverentes, São
Paulo, EDUSP, 2002, p. 160. Para maiores informações sobre a experiência vivida por Jean de Léry durante o
cerco de Sancerre vide: Frank Lestringant, O Canibal: grandeza e decadência, Brasília, UnB, 1997, p. 103-119.
237
social e religiosa. E acima de tudo, Jean de Léry aponta enfaticamente que “a antropofagia
passa a ser um sinal, a sua presença clama por um esforço de conversão” 756, o que
consideraremos na sequência.

756
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 111.
238
Para estes reformadores, a reconciliação
em Cristo une todos os seres humanos em
um só corpo, acima das diferenças de
línguas, de raças, de civilizações e de
condições sociais; toda ideia de
escravização ou de discriminação foi
abolida. Estes homens, pois, estão a
postos para realizar um trabalho de
evangelização que nenhuma barreira
racial poderia conter. É difícil de saber
quê se teria passado, se este começo de
empreendimento missionário tivesse
podido ser levado a cabo. O fato é que a
atitude destes primeiros calvinistas era
sensivelmente diferente da atitude dos
colonizadores dos séculos seguintes com
que se tem, erroneamente, julgado o
calvinismo. Só o despertamento
missionário do século XIX viria
reencontrar este primeiro espírito
evangélico da longínqua expedição
reformada. Tinha ele por alvo único a
extensão do Reino de Deus sobre todos os
pontos da terra, com o corolário da
igualdade de todos os homens
reconciliados pela cruz e pelo sangue de
Cristo, sem discriminação de raças.
(André Biéler).757

4.3 – Evidências da Possibilidade de Conversão

Advogamos que Jean de Léry não somente compreende a possibilidade de conversão


do índio tupinambá à religião reformada, mas também, trabalha para levar à efeito concreto
esta perspectiva. As evidências da possibilidade de conversão podem ser identificadas em
três modos diferentes: o impulso dos reformados em transpor o Atlântico rumo às terras
brasileiras com vistas à pregação do evangelho, visualizado em diversos momentos do relato;
a identificação de que há religião entre os tupinambás, apresentada em um capítulo específico
pelo viajante; o registro do diálogo que Léry teve com um índio, identifica o desejo de

757
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 250.
239
apreender a língua tupi, reflexo da importância que a Reforma Protestante concedeu ao
conhecimento das línguas vernáculas para a pregação da Palavra.

4.3.1 – Motivações missionárias

No relato de viagem de Jean de Léry temos evidências claras das motivações


missionárias que os quatorze huguenotes possuíam como impulso vital para a sua empreitada
na França Antártica que podem ser visualizadas verbalmente ou em práticas concretas nas
tentativas de apresentar o evangelho aos índios tupinambás em conversas pessoais.
Observemos os detalhes destes registros na obra do francês.

As evidências começam a ser apresentadas por Jean de Léry já na dedicatória à sua


obra, ao destacar claramente a sua motivação: “minha intenção é a de perpetuar aqui a
recordação de uma viagem feita expressamente à América para estabelecer o verdadeiro
serviço de Deus, tanto entre os franceses que para aí se haviam retirado como entre os
selvagens que habitam aquelas terras, acreditei ser meu dever levar à posteridade o nome
daquele que foi a causa e o motivo da expedição”.758 Léry continua a expor em detalhes a sua
motivação missionária, enfaticamente apresenta:

Em verdade, considerando que não houve em toda a antiguidade um


chefe francês e cristão que estendesse o reino de Jesus Cristo, rei dos
reis e senhor dos senhores, e os limites territoriais de seu príncipe
soberano a país tão longínquo, tudo considerado como convém,
ninguém conseguirá exaltar o suficiente uma tão santa e realmente
heroica empresa. Embora digam alguns que merece o fato pouca
importância, em vista do pouco tempo que os acontecimentos
duraram, e de não haver no momento naquelas terras nenhuma religião
verdadeira levada pelos franceses, afirmo o contrário.759

Esta empreitada de pregar o “Evangelho do filho de Deus”760 no Brasil do século XVI


foi um projeto que Jean de Léry visualizava como algo que seria vivido por longo tempo, não

758
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 53.
759
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 53-54.
760
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 54.
240
somente algo pontual, mas sim, um projeto amplo de construção missionária que visava a
chegada de mais de dez mil franceses para a França Antártica em anos subsequentes, se a
empreitada fosse adiante.761

O próprio André de Thevet atestou a motivação missionária dos seus compatriotas


calvinistas. Jean de Léry cita-o para provar este impulso, no entanto, apresenta uma ressalva
de que o cosmógrafo escreveu após sua estada em terras brasileiras. Observemos a concepção
do católico Thevet:

Aliás, se eu tivesse permanecido mais tempo nesse país, teria tentado


conquistar as almas transviadas desse pobre povo, em vez de cavar o
solo para procurar as riquezas que a natureza nele escondeu. Mas, não
só por não estar ainda muito versado na língua dos habitantes, como
por terem os ministros, mandados por Calvino para ensinar o novo
Evangelho, iniciado a empresa, invejosos de minha deliberação,
abandonei o meu intento.762

No capítulo I “Sobre o motivo e ocasião que nos levou a empreender esta longínqua
viagem à terra do Brasil”, Jean de Léry relata as motivações dos calvinistas como
relacionadas ao ideal de Villegagnon de retirar-se para um lugar onde todos pudessem servir
livremente a Deus segundo o “Evangelho reformado”.763 Portanto, aponta o huguenote,
“com tão belo pretexto, conseguiu a boa vontade de alguns fidalgos adeptos da Religião
reformada e que, dotados dos mesmos sentimentos que Villegagnon professava, desejavam

761
Segue Léry: “Deve-se atribuir o erro e a descontinuidade a Villegagnon e àqueles que, com ele
(contrariamente ao que fizeram de início e ao que haviam prometido) em lugar de continuar a obra, abandonaram
a fortaleza que havíamos construído e o país a que chamáramos França Antártica aos portugueses, que nele se
adaptaram muito bem. Assim nunca deixará de aparecer que o senhor Gaspar de Coligny, almirante de França e
vosso muito virtuoso pai, tendo executado a empresa por intermédio daqueles que enviou à América, além de
entregar novas terras à coroa de França, mostrou ainda seu zelo para que fosse o Evangelho não somente pregado
em todo o reino mas ainda em todo o orbe terrestre”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 54. Cp. Jean de Léry,
História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy
Ribeiro, 2009, p. 142.
762
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 59. À frente expõe Léry: “...terem sido as calúnias de Thevet a causa, em
grande parte, da publicação desta narrativa –, me desculpem alongar-me demasiado neste prefácio para
desmascarar o impostor com suas próprias palavras. Não insistirei, portanto, embora me tenham avisado de que,
após a primeira edição deste escrito, andou Thevet à procura de documentos e memórias, para responder, o que
alguns, que se dizem de nossa religião, tentaram fornecer-lhe, revelando, se o fizeram de fato, o zelo que nele
empregam. Afinal, nunca tendo visto Thevet, como já disse, nem tido nenhum desentendimento pessoal com
ele, a objeção que lhe oponho aqui visa apenas a repelir as ofensas que fez ao Evangelho e aos que, em nosso
tempo, foram os primeiros a propagá-lo na terra do Brasil”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra
do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 70.
763
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 75.
241
encontrar semelhante retiro”.764 Relata que o cavaleiro de Malta “pedia ainda que lhe
enviassem, não só ministros da palavra de Deus, mas também algumas outras pessoas bem
instruídas na religião cristã a fim de melhor aprimorar a si e aos seus e mesmo abrir aos
selvagens o caminho da salvação”.765 Léry relata que este discurso fora apenas puro
fingimento, no entanto, a igreja de Genebra responde afirmativamente segundo esta nobre
intenção, mesmo que o impulso de Villegagnon fosse distorcido. Diante desta solicitação “a
igreja de Genebra rendeu, antes de mais nada, graças ao Eterno pela expansão do reino de
Jesus Cristo em país tão longínquo, em terra estranha e entre um povo que ignorava
inteiramente o verdadeiro Deus”.766 Logo em seguida a igreja de Genebra empreende as
ações para atender ao pedido feito por Villegagnon. Os ministros foram escolhidos com o
propósito de “anunciar o Evangelho na América”.767 Quando os calvinistas chegaram ao
Brasil, logo depois do desembarque, diante de Villegagnon expuseram as razões de sua
viagem: “o senhor Du Pont, nosso condutor, apoiado por Richier e Chartier, ministros do
Evangelho, declarou a razão principal que nos movera àquela viagem e a passar o mar em
meio a tantos perigos para irmos ter com ele e aí, de acordo com as cartas que ele mandou a
Genebra, erigimos nossa Igreja reformada, conforme com a palavra de Deus”.768

Quando do início da controvérsia com respeito à Santa Ceia, Villegagnon manda


emissários à Europa para consultar a Calvino sobre o tema. Juntamente com estes seguem
dez rapazes tupinambás na embarcação, no momento de sua partida, o ministro Richier ora
pedindo “a Deus que lhes fizesse a graça de se tornarem os primeiros deste pobre povo
chamados à salvação”.769 Esta atitude evidencia o intento dos calvinistas em pregarem o
Evangelho nas terras brasileiras. No entanto, nem sempre os resultados foram os desejados,
conforme ressalta Léry: “não obstante as prédicas feitas a esse povo bárbaro, nenhum
764
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 76.
765
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77. “Ocorre, ainda, que um tal Nicolas Carmeau (...), revelou-me, ao despedir-
se, que Villegagnon lhe ordenara dizer verbalmente a Calvino que, para perpetuar os conselhos recebidos, iria
mandar gravá-los em cobre; encarregava também esse mesmo indivíduo de lhe trazer de França homens,
mulheres e meninos, prometendo pagar todas as despesas que os adeptos da Religão fizessem para arranjar essa
gente”. Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de
Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 114.
766
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77.
767
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 77.
768
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 105.
769
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 114.
242
indivíduo quis abandonar sua crença e converter-se”.770 No contexto da antropofagia ritual,
relata Jean de Léry a tentativa de levar uma índia à conversão:

Achando-me eu certo dia em uma aldeia da grande ilha chamada


Piraui-ion |Pirábijú|, deparei-me com uma mulher prisioneira, prestes
a ser morta pelo modo que descrevi. Aproximei-me e, para acomodar-
me à sua maneira de falar, disse-lhe que se recomendasse a Toupan
|tupán|, (pois Toupan entre eles não quer dizer Deus mas trovão); que
orasse como eu lhe ia ensinar. Em resposta, ela meneou a cabeça e,
fazendo pouco, disse: “O que me darás para que eu faça o que dizes?”
“Pobre coitada” – retruquei.771

As tentativas de evangelização dos índios na terra brasileira no século XVI


continuaram em outros diálogos quando se deparavam com os índios a explicar-lhes sobre
Aygnan, um suposto espírito maligno que atormentava os tupinambás. No entanto, fora outra
investida sem sucesso.772

O relato mais abrangente, e possivelmente a melhor oportunidade que os huguenotes


tiveram para evangelizar os índios, ocorreu quando estavam na aldeia chamada Ocarentin,
prestes a iniciar a refeição chegaram alguns índios para contemplar os franceses, Jean de Léry
e o intérprete, se posicionaram ao redor dele, como que para protegê-los. Registra Léry: “A
multidão não nos interrompeu com uma só palavra durante toda a refeição. No entanto, um
ancião que nos observava atentamente e nos vira orar a Deus antes e depois de comer,
perguntou-nos: “Que significa isso que acabais de fazer, tirando o chapéu por duas vezes, em
silêncio, enquanto um só fala? Essas palavras eram dirigidas a vós ou a alguém ausente?”.773
Diante desta curiosidade do índio sobre esta prática, Léry concebe uma oportunidade para
explicá-la e assim evangelizar os índios apresentando-lhes o “Deus verdadeiro”.774 Momento
extremamente oportuno para as intenções missionárias, porque se tratava de uma das maiores
e mais povoadas aldeias da região, além disto, pareciam para Léry, estarem “mais atentos que

770
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 115.
771
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 194.
772
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 205.
773
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 213.
774
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 213.
243
usualmente e mais dispostos”775 a ouvi-lo, assim, pede ajuda ao intérprete para comunicar-
lhes a mensagem que desejava. Relata Léry:

Após responder ao velho que dirigíamos as nossas preces a Deus, o


qual, embora não seja visto por ninguém, a todos ouve perfeitamente e
conhece o que têm no coração, falei-lhes da criação do mundo; e
disse-lhes que, se Deus havia feito o homem superior aos demais
seres, era para que pudéssemos glorificar o Criador; e acrescentei que,
como O servíamos, Ele nos protegia do perigo quando atravessávamos
os mares em viagens de quatro a cinco meses sem pôr pé em terra.
Declarei-lhe ainda que, por essa razão, não temíamos os tormentos de
Aygnan nem nesta vida nem na outra, e que se eles, selvagens,
quisessem libertar-se dos enganos em que os mantinham os Caraibes
mentirosos e trapaceiros, e ao mesmo tempo abandonar a sua barbárie,
deixando de comer a carne de seus inimigos, gozariam das mesmas
graças que nós. E para que bem entendessem os motivos da perdição
do homem, tanto quanto para prepará-los para receberem Jesus Cristo,
falamos-lhes durante mais de duas horas, com exemplos e expressões
tirados do seu conhecimento cotidiano, que deixo de repetir para não
alongar-me.776

Jean de Léry registra que todos o ouviram “com grande admiração e muito atentos”. 777
Logo em seguida ao longo discurso evangelizador um ancião toma a palavra: “é certo que
dissestes coisas maravilhosas e bonitas que nunca ouvimos”.778 No entanto, responde o índio,
que se abandonassem o seu costume guerreiro e suas práticas antropofágicas, as nações
vizinhas zombariam deles. Assim retruca Léry: “Respondemos, com veemência, que não
deviam importar-se com os gracejos dos outros, pois se, como nós, adorassem o verdadeiro
Deus do céu e da terra que nós lhe anunciávamos, venceriam todos os inimigos que vissem
atacar”.779 Pelo menos por uns poucos instantes, Léry concebe que a conversa fora produtiva:
“E, graças à eficácia que Deus emprestou às nossas palavras, ficaram os nossos
Toüoupinambaoults tão tocados que não só vários deles prometeram seguir os nossos
ensinamentos e não mais comer carne humana, mas ainda se ajoelharam conosco enquanto
[orávamos]. E um intérprete lhes explicou o significado de nossas preces”.780 No entanto, a

775
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 213.
776
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 213.
777
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 213.
778
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 213.
779
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 214.
780
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 214.
244
imagem de que este momento de evangelização trouxera um resultado positivo durou pouco,
já que logo em seguida os índios retornaram às suas prática habituais, registra: “Depois desta
cena, encaminharam-nos os selvagens a redes de algodão para que repousássemos; antes,
porém, de começar a dormir já os ouvíamos cantar todos juntos que, para se vingarem de seus
inimigos, deviam aprisionar e comer o maior número possível deles. Eis um belo exemplo da
inconstância desse pobre povo e da natureza corrupta do homem”. 781 Contudo, este resultado
não afastava Léry de sua intenção missionária, visto que afirmou enfaticamente: “Mesmo
assim, sou de opinião que, se Villegagnon não houvesse abjurado a Religião reformada, e
tivéssemos podido permanecer por mais tempo no país, teríamos chamado e ganho alguns
deles para Jesus Cristo”.782

No mesmo contexto, mais adiante em seu relato, Jean de Léry registra outro exemplo
onde aproveitando a oportunidade não se fez de rogado em apresentar a quatro índios a sua
religião reformada, obviamente com intencionalidade evangelística. Conta que passou um dia
no continente com o propósito de abastecer a colônia de mantimentos, assim, ao cruzar uma
grande floresta onde se deparou com a beleza da flora brasileira, foi tomado, “de coração
alegre” pelo que presenciava a louvar a Deus por tudo e começou a cantar o Salmo 104:
“Exulta, exulta, minha alma”.783 Rapidamente os índios que caminhavam atrás de Léry,
prazerosos com a música que ouviam, mas sem entendê-la, quando acabou de cantar, um
índio “todo comovido e enlevado, exclamou: „Na verdade, cantaste maravilhosamente bem e
fiquei muito contente em ouvir o teu canto que me recorda o de uma nação aliada, nossa
vizinha. Mas nós não compreendemos a tua língua, por isso explica-nos o teu canto‟”.784
Prontamente Léry passou a explicar-lhes, aproveitando mais uma oportunidade para
evangelizar, relata:

Como eu era o único francês ali presente e só ia encontrar dois outros


no lugar onde pretendíamos dormir, expliquei como pude que não só
havia louvado a Deus em geral, pela beleza e governo de suas
criaturas, mas ainda o havia particularmente aplaudido como único
criador dos homens e de todos os animais, frutos e plantas espalhados
pelo mundo inteiro. Expliquei também que minha canção fora ditada

781
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 214.
782
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 214.
783
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 215.
784
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 215.
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pelo espírito desse Deus magnifico, cujo nome eu celebrava; que fora
já cantada havia cerca de 10.000 luas por um dos nossos grandes
profetas, o qual a legara à posteridade, para ser usada para o mesmo
fim.785

Os índios tupinambás que ouviram Jean de Léry atentamente por meia hora,
responderam: “Como vós os Mairs sois felizes por saberdes tantos segredos ocultos a nós,
seres mesquinhos, pobres miseráveis!”.786 Por fim, explica e interpreta Léry o relato:
“Considerei dever contar este episodio para mostrar que, por mais bárbaros e cruéis que sejam
com seus inimigos, essas nações da América não são tão ferozes que não considerem bem
tudo que lhes é dito com boa razão. E, com efeito, discorrem melhor do que a maioria dos
camponeses e mesmo que outras pessoas daqui, que, no entanto, se reputam muito
capazes”.787 Léry mais uma vez expressa que há a possibilidade de conversão à religião
reformada por parte dos índios, um impulso motivador para a continuidade de sua atividade
missionária.

Por fim, mais uma vez enfatiza Jean de Léry que a culpa da França Antártica não ter
vingado em terras brasileiras pertence unicamente à Villegagnon, e neste contexto destaca que
cerca de setecentas a oitocentas huguenotes teriam aportado nestas terras com o proposito de
se estabelecerem no Novo Mundo, e deste modo, a força motriz, além da tão desejada
liberdade religiosa, também havia um forte impulso missionário.

Desta feita, podemos perceber que todo o contexto, tanto do relato de Jean de Léry,
quanto da própria empreitada dos calvinistas na França Antártica, esteve relacionado ao
desejo de pregar o Evangelho segundo a religião reformada. O impulso dos calvinistas e as
práticas vivenciais relatadas na História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também
chamada América, dão conta de comprovar este interesse missionário. Este esforço
missionário de conversão do tupinambá ao protestantismo reformado é potencializado quando
Léry se depara com a realidade da religiosidade do índio, submisso aos interesses de “falsos
profetas”, os caraibes, que passaremos a apreciar com maior vagar as suas práticas para
controlar os indígenas, segundo os relatos de Jean de Léry.

785
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 216.
786
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 216.
787
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 216.
246
4.3.2 – A religião tupinambá

No capítulo XVI “Sobre o que se pode chamar religião entre os selvagens


americanos; e sobre os erros em que estes são mantidos por certos trapaceiros chamados
caraibes; e a grande ignorância de Deus em que estão imersos”, Jean de Léry registra em
maiores detalhes a religiosidade dos tupinambás, que por ora iremos considerar
detalhadamente segundo a cronologia exposta pelo viajante francês.

Uma advertência é necessária, porquanto, possivelmente uma rápida e inadvertida


leitura deste capítulo, sem falar em uma leitura premeditadamente tendenciosa, levaria o leitor
a defender que Jean de Léry minimizaria e rejeitaria a religião dos tupinambás relegando-a ao
desprezo. No primeiro parágrafo do capítulo Léry cita Cícero, o ponto de contato teórico que
o liga ao conceito de semente da religião que fora desenvolvido por Calvino. Este conceito
será o seu ponto de partida, e também o seu parâmetro de análise da religiosidade encontrada
nas relações sociais do tupinambá. Apresenta Léry:

Embora seja aceita universalmente a sentença de Cícero de que não há


povo, por mais bruto, bárbaro ou selvagem que não tenha ideia da
existência de Deus, quando considero de perto os nossos
Toüoupinambaoults | Tupinambá |, vejo-me algo hesitante em aplicá-
la a eles. Pois, além de não ter conhecimento algum do verdadeiro
Deus, eles não adoram quaisquer divindades terrestres ou celestes,
como os antigos pagãos, nem como os idolatras de hoje, ou mesmo
como os índios do Peru que, a 500 léguas do Brasil, veneram o sol e a
lua.788

Na verdade Jean de Léry apresenta-se como um analista sincero de suas dificuldades


diante do seu objeto vivencial ao reconhecer a complexidade em aplicar esta tese aos
tupinambás, uma característica marcante da contingência do ser humano. Contudo,
rapidamente esta dificuldade já se converte em uma consciência interpretada a partir daquilo
que presencia ao enfatizar que os tupinambás não possuem conhecimento do verdadeiro Deus,
conclusão semanticamente definida segundo os conceitos bíblicos interpretados pelo sistema
teológico calvinista. E de fato, os índios tupinambás não conheciam o Deus judaico-cristão
apresentado pela Bíblia que Léry tão bem conhecia. Em seguida, assevera na sua História,
que os tupinambás não possuem a prática da adoração à qualquer divindade, no entanto, isto

788
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 203.
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não significa que não haja um rito religioso entre os índios, o que realmente na sequência do
capítulo Jean de Léry irá apresentar em maiores detalhes.

Em seguida apresenta Jean de Léry uma descrição que reflete a limitação que possui
para descrever as práticas religiosas dos tupinambás segundo as categorias habituais da
realidade europeia. Assim, percebemos que a colonização linguística, que nos referimos no
capítulo primeiro, apresenta aqui as suas limitações, porque as categorias semânticas
europeias não dão conta de descrever em sua amplitude as práticas sociais dos tupinambás.
No entanto, esta é uma dificuldade que todos os antropólogos que se lançam ao trabalho de
campo encontrarão, ou seja, os limites de suas teorias diante da realidade prática. Léry acaba
por perceber a possibilidade que tem diante de si, através da circularidade hermenêutica,
compreender a si mesmo a partir de suas limitações conceituais. Podemos, deste modo
afirmar, que o encontro com o Outro deu a Léry a oportunidade de potencializar a sua
estrutura de pensamento moderna. Relata:

Não têm nenhum rito nem lugar determinado em que se reúnam para a
prática de serviços religiosos, nem oram em público ou em particular.
Ignorantes quanto à criação do mundo, não têm nomes específicos
para distinguir os dias, nem contam semanas, meses e anos, apenas
calculando ou marcando o tempo por lunações. Não apenas
desconhecem a escrita sagrada ou profana, mas ainda ignoram
quaisquer caracteres capazes de designar o que quer que seja.789

Apresenta Jean de Léry as ocasiões onde em conversa com os índios tupinambás,


expunha-lhes que acreditavam “em um só Deus soberano, criador do mundo, que fez o céu e a
terra com todas as coisas contidas e que delas dispunha como Lhe aprazia”790, diante desta
fala, os índios olhavam-se com espanto e exclamavam admirados. Na tentativa de
aproximação e criação de um ponto de contato com o entendimento dos índios, por terem eles
medo de trovão, que chamam de Toupan, Léry se valeu da oportunidade de um trovão para
“dizer-lhes que era o Deus de que lhes falávamos quem assim fazia tremer o céu e a terra a
fim de nos mostrar Sua grandeza e Seu poder”.791 No entanto, a esperteza indígena, logo
retrucava que se precisava assustá-los, este deus não valia nada. Conclui Léry: “Eis o

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Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 203.
790
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 204.
791
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 204.
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deplorável estado em que vive essa mísera gente”.792 Segue-se a pergunta retórica: “Como é
possível, dirá alguém, que, como animais brutos, vivam esses americanos sem nenhuma
religião?”793

Esta pergunta retórica introduz uma mudança no relato. No entanto, de fato, para Jean
de Léry faltava pouco para que entre os tupinambás não houvesse religião, contudo, ressalta
que há uma luz em meio às trevas espessas da ignorância que aponta a existência de uma
religiosidade entre os índios tupinambás. Assim, para descrever este lampejo de luz que
identifica a religião entre os índios através da consciência de uma espécie de céu e inferno que
dita as suas relações éticas, segue a relatar:

Eles acreditam não só na imortalidade da alma, mas ainda que, depois


da morte, as dos que viveram dentro das normas consideradas
corretas, que são as de vingar-se bem e comer muitos inimigos, irão
para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas
de seus avós (são estes os Campos Elísios dos poetas). Ao contrário,
as almas dos efeminados e medíocres, que não se importam em
defender a pátria, vão ter com Aygnan | anháng | (assim chamam o
diabo em sua língua) o qual as atormenta sem cessar.794

Jean de Léry ressalta a aflição que os índios tupinambás sofriam deste espírito
maligno, que também chamam de Kaagerre. Registra que em muitos momentos ao sentirem-
se mortificados de medo, exclamavam de repente: “Defendei-nos de Aygnan que nos
espanca”.795 E os índios garantiam a Léry que realmente viam Aygnan “sob a forma de um
quadrúpede ou de uma ave, ou de qualquer outra estranha figura”. 796 Os tupinambás ficavam
admirados quanto Léry lhes falava que não temiam a Aygnan por confiarem em Deus, que é
mais poderoso que ele, impedindo-o de fazer-lhes qualquer mal. Assim, quando se sentiam
angustiados pelo espírito maligno, rapidamente se mostravam tendentes a acreditar em Deus,
contudo, em passando o perigo retornavam ao estado anterior e se esqueciam das promessas
feitas ao huguenote. Contudo, mostra Léry que este temor não se tratava de algo irrisório,
mas, sim um tormento opressivo: “Pude vê-los mais de uma vez apreensivos, quando se

792
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 204.
793
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 204.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 204-205.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 205.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 205.
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lembravam do que tinham sofrido no passado, batendo com as mãos nas coxas, aflitos e em
suores”.797 Na sequência registra Léry um diálogo ilustrativo desta realidade aterrorizante:

Tupinambá: “Francês, meu amigo (ou meu perfeito aliado), temo ao diabo, ao espírito
maligno, mais do que tudo”.798

Léry: “não tenho medo do diabo”, “nós não o tememos”.799

Tupinambá: “Seríamos tão felizes se fôssemos protegidos do mal como vós”.800

Léry: “É preciso que, como nós, confieis naquele que é mais forte e poderoso do que ele”.801

No entanto, mesmo diante desta tentativa evangelizadora, o resultado foi que “apesar
de todas as suas promessas, porém, de nada valia a lição. Logo a esqueciam”. 802 Esta
resposta dos índios tupinambás, para Jean de Léry, mostra como os tormentos dos espíritos
malignos provocavam os piores temores em suas almas.

Jean de Léry, após apresentar que a crença na imortalidade da alma é algo comum na
mentalidade da América ao apresentar outros autores, segue explicando o seu objetivo nesta
descrição do tormento que os índios tupinambás sofrem em relação aos espíritos malignos,
perturbando-os cruelmente. Segue Jean de Léry em sua circularidade hermenêutica
focalizando a leitura de seu próprio contexto vivencial, conclui que os tupinambás se revelam
melhores que os europeus, observemos: “Narro isto tudo com a finalidade de que saibam os
endemoniados ateus, de que nossa terra anda cheia, e que, como os Toüoupinambaoults,
embora de um modo muito mais bestial, procuram fazer crer que Deus não existe, que nos
selvagens encontram pelo menos a prova da existência dos diabos para atormentar ainda neste
mundo os que negam Deus e o seu poder”.803 Registra enfaticamente Léry que a presença

797
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 205.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 205.
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opressiva do diabo na vida dos tupinambás não é algo puramente dos sentimentos maus dos
homens, retruca: “responderei que os americanos são realmente atormentados por espíritos
malignos, pois nunca seria possível que paixões humanas, por mais violentas que fossem,
pudessem afligi-los a tal ponto”.804 E por fim expõe sobre os tupinambás que, “apesar de sua
cegueira, admitem não só a existência no homem de um espírito que não morre com o corpo,
mas ainda que, ao separar-se deste, está sujeito à felicidade ou à desgraça perpétua”.805

Para Jean de Léry, a consciência da existência de uma força que não podiam os índios
resistir e que os conduzi ao temor, leva à dedução “que não só se verifica assim a verdade do
axioma de Cícero de que nenhum povo existe sem alguma de divindade, mas ainda que não há
escusa para aqueles que não querem conhecer o Todo-Poderoso”.806 Esta análise está
apontando para a comprovação que, de fato, Léry está utilizando o conceito de senso de
divindade e semente da religião, e a tese teológica do pecado original, temas já expostos,
como os parâmetros de que se vale para a sua interpretação da religiosidade tupinambá. E não
somente isto, mas também aponta em sua análise para a concepção do conhecimento de Deus
via revelação natural, ainda que limitado e condenatório: “Quando o apóstolo disse que Deus
permitiu aos gentios seguirem o caminho que bem entendessem, a todos beneficiando, no
entanto com chuva do céu e a fertilidade das estações, observou que os homens só não
conhecem o Criador em virtude de sua própria malícia. Pois o que é invisível em Deus
encontra-se visível na criação do mundo”.807 O senso da divindade é enfaticamente afirmado
por Léry como uma prova da religiosidade tupinambá: “Embora os nossos americanos não o
confessem francamente, estão de fato convencidos da existência de alguma divindade;
portanto, não podendo alegar ignorância, não estarão isentos de pecados”.808

Jean de Léry não para em apresentar a religião tupinambá somente como uma
consciência da existência da divindade, mas também passa a descrever as práticas religiosas
segundo a lógica da semente da religião que aponta para os ritos sagrados adotados pelos
indígenas. Observemos: “Além do que já disse a respeito da imortalidade da alma, em que

804
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 206.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 207.
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acreditam, do trovão, a que temem, e do diabo e dos espíritos malignos que os atormentam,
mostrarei como essa semente da religião (se é que as práticas dos selvagens podem merecer
tal nome) brota e não se extingue neles, apesar das trevas em que vivem”.809 Segue
apresentando um relato acerca das práticas dos caraibes, uma espécie de “falsos profetas” que,
segundo ele, existiam entre os tupinambás.

Relata Jean de Léry que estes caraibes queriam persuadir os índios tupinambás de que
eles se comunicavam com os espíritos e que lhes dariam força e poder para vencer os
inimigos na guerra, além de tentar convencê-los que teriam a virtude de fazer crescer as frutas
e engrossar as raízes. Os tupinambás possuíam uma solenidade que ocorria de três em três,
ou quatro em quatro anos que Léry deve a felicidade de poder presenciar, uma grande
oportunidade, considerando que esteve no Brasil por apenas dez meses.810

Em certa vez Jean de Léry observava um movimento singular que lhe chamou a
atenção. Foram índios chegando de vários lugares, contando cerca de quinhentos ou
seiscentos, a uma aldeia em que ele estava. Eles se separaram em três grupos, os homens
foram para uma casa, as mulheres noutra e as crianças em uma terceira. Logo em seguida,
cerca de doze caraibes chegaram, o que levou Léry a concluir que se tratava de um
acontecimento extraordinário, e persuadiu os companheiros que estavam com ele para
presenciar o que estava por vir.

Jean de Léry descreve um barulho que começaram a ouvir da casa dos homens, “um
ruído muito baixo como o murmúrio dos que rezam as horas”811, logo em seguidas mulheres
se colocam em pé, cerca de duzentas, prestando muita atenção naquilo que ouviam da casa
dos homens. “Os homens pouco a pouco elevavam a voz e os ouvíamos claramente cantar
todos juntos e repetir frequentemente uma interjeição de encorajamento: He, he, he, he”812,
expõe Léry. As mulheres passaram a responder com uma voz trêmula do mesmo modo, com
a mesma interjeição, o que somente aumentou o espanto dos observadores. “Ao mesmo
tempo, as mulheres urravam, saltavam com violência, balançavam os seios e espumejavam

809
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 207.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 207-208.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 208.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 208.
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pela boca, e algumas caíam desmaiadas como vítimas de ataques epiléticos; por isso, não me
foi possível deixar de acreditar que se tivessem sido repentinamente possuídas pelo diabo.
Também as crianças se agitavam e se maltratavam, no aposento que se achavam reclusas”.813
Ao presenciar isto, Léry reconheceu que estava com medo e que desejava voltar à colônia
francesa. Após os ruídos ininteligíveis terem cessado, o silêncio tomou conta do lugar e todos
se calaram. Homens, mulheres e crianças começaram a cantar, mas agora de um modo
completamente harmonioso, o que dirimiu o medo de Léry, que até o momento tudo relatou a
partir da casa das mulheres onde fora proibido de sair pelos caraibes. Tomando coragem,
Léry saiu da casa das mulheres para ver de mais perto o que os homens estavam fazendo em
sua própria casa, mesmo a despeito das mulheres e dos outros franceses advertirem-no do
perigo que corria. No entanto, entrou na casa e chamou dois outros colegas para assistirem
tudo o que ocorria, sem se importarem os selvagens com a presença dos franceses. Registra
Léry: “enfileirados e ordenados admiravelmente, continuaram as suas canções; em vista disso,
eu e meus companheiros nos acomodamos em um canto a fim de contemplar sossegadamente
a cena”.814 Iniciam-se a dançar, como Léry relata:

Bem perto uns dos outros, mas de mãos soltas e sem sair do lugar, eles
formam uma roda, curvados para a frente e movendo apenas a perna e
o pé direitos; cada qual, com a mão direita sobre as nádegas e o braço
e a mão esquerda pendentes, suspende um tanto o corpo e assim todos
cantam e dançam. Como eram numerosos, formavam três rodas, no
meio das quais ficavam três ou quatro Caraibes ricamente adornados
de vestimentas, cocares, e braceletes feitos de belas plumas naturais de
diversas cores, tendo em cada mão um Maraca | maracá |, isto é,
chocalhos feitos de certo fruto maior do que um ovo de avestruz.
Segundo diziam, era para que o espírito falasse dentro deles; e para
consagrá-los a esse fim, faziam-nos soar com toda força.815

Enquanto isso os caraibes não ficavam dançando no mesmo lugar como os demais.
Apenas saltando para frente ou para trás, e vez ou outra tomando “uma vara de madeira de
quatro a cinco pés de comprimento em cuja extremidade havia a erva Petun | petým | seca e
acesa e, voltando-se e soprando para todos os lados a fumaça dela sobre os outros selvagens,

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Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 209.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 209.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 209-210.
253
diziam-lhes: „Para que vençais os vossos inimigos, recebei o espírito da força‟”. 816 E
repetiam por vezes o mesmo procedimento.

Essa cerimonia durou por cerca de duas horas, e os homens selvagens não cessavam
de dançar e cantar, todos os quinhentos ou seiscentos. Cantavam “de um modo tão
817
harmonioso que ninguém diria não conhecerem música” , relata Jean de Léry. “Para
terminar, bateram o pé direito no chão com mais força e, depois de cuspirem para a frente,
pronunciaram em uníssono duas ou três vezes com voz rouca: He, hua, hua, hua, e assim
cessaram”.818

Após o término da cerimonia, Jean de Léry não tendo compreendido completamente


todas as falas dos índios tupinambás que foram proferidas durante o rito, pediu ao intérprete
que lhe esclarecesse o sentido das frases que proferiam com veemência. O intérprete lhe
explicou que os índios “haviam lamentado insistentemente seus antepassados mortos e
celebrado sua valentia; consolavam-se, no entanto, na esperança de ir ao encontro deles,
depois da morte, para além das altas montanhas onde todos juntos dançariam e se
alegrariam”.819 Também haviam ameaçado a tribo dos Ouëtacas, seus inimigos, porque os
caraibes lhes prometiam que seriam vitoriosos na batalha, o que nunca havia ocorrido
anteriormente, segundo o viajante. Nas canções também mencionavam um tempo passado
onde ocorreu um transbordamento de águas que se assemelhava ao dilúvio.

O relato de Jean de Léry sobre a religiosidade tupinambá reflete um olhar


condicionado pelo seu lugar social que está circunscrito aos limites da Escritura Sagrada.
Esta realidade se comprova por meio dos usos dos conceitos de senso de divindade, semente
de religião e pecado original que torna limitada a possibilidade de um conhecimento de Deus
mais profundo, o que caracterizaria a verdadeira religião segundo a mentalidade calvinista.
Outra prova está na comparação que Léry faz do caraíba como falso profeta, claramente uma
análise condicionada aos conceitos que extrai da Bíblia.820 Jean de Léry apresenta uma

816
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 210.
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Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 210.
820
Cristina Pompa, Profetas e Santidades Selvagens: missionários e caraíbas no Brasil colonial, Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n.o 40, 2001, p. 187.
254
representação histórica como um evento que é colocado em cena pela escrita. Temos uma
construção historiográfica construída a partir da comparação com a Escritura Sagrada,
conforme destaca Michel de Certeau: “Essa articulação entre a palavra e a escrita é, por uma
vez, encenada na Histoire. Focaliza discretamente todo o relato, mas Léry explicita sua
posição num episódio-chave, no capítulo central no qual trata da religião, quer dizer, da
relação que o cristianismo da Escritura estabelece com as tradições orais do mundo
selvagem”.821 Desta feita, Léry tem em mente a salvação redentiva do índio tupinambá, em
um primeiro momento uma realidade presente, aqui e agora, de respeito, valorização e
humanização do índio, e também uma salvação que aponta para um futuro, a vida eterna.
Desta feita, a salvação seria concretizada “em dois movimentos distintos, pela capacidade de
romper com a repulsa pelo selvagem e tudo aquilo que ele representa, afastando essas
representações da imagem diabólica atribuída ao canibal, e pela salvação de populações
inteiras, por meio da revelação da verdade bíblica, que aproximaria do Criador suas
criaturas”.822 Este aspecto final é a dimensão do acesso à Escrita Sagrada que iremos agora
observar.

4.3.4 – A escrita evangelizadora

Jean de Léry dá conta que os índios tupinambás são destituídos da capacidade de


escrita, portanto, o acesso à Escritura Sagrada não seria possível. Contudo, esta não fora uma
realidade limitadora somente dos povos americanos, porque o próprio europeu possuía
limitações na escrita, nem todos sabiam ler e escrever, o analfabetismo era todo abrangente.823
Deste modo, se o conhecimento salvífico provêm somente através da Bíblia, sem acesso à
palavra escrita, a salvação não seria possível, tanto para o europeu, quanto para o habitante do
Novo Mundo. Na Europa a influência da Reforma Protestante na educação foi
transformadora da realidade ignorante na qual o povo esteve acondicionado, no capítulo

821
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 230.
822
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 112.
823
“O povo, durante a Idade Média – e durante muito tempo também na Idade Moderna –, é analfabeto. Seu
conhecimento estão ligados a crenças e tradições ou observações de senso comum: o seu horizonte cultural é
muito limitado, mas bem firme na centralidade atribuída à fé cristã e à sua visão de mundo, que chega a ele por
muitas vias alternativas à escrita: sobretudo através da palavra oral e da imagem, que são as duas vias de acesso à
cultura por parte do povo”. Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo, UNESP, 1999, p. 178-179.
255
primeiro já identificamos a força do calvinismo como uma mentalidade que inaugura a prosa
do francês moderno, por exemplo.824 Para o historiador Lucien Febvre, diante da realidade de
uma Europa imersa em ruinas e incertezas, um homem e um livro foram essenciais para a sua
libertação da ignorância, Calvino e as suas Institutas da Religião Cristã.825 Mesmo este não
sendo o lugar adequado para o desenvolvimento da tese da influência da Reforma Protestante
na educação moderna por meio da escrita, não podemos deixar de considerar a realidade de
sua centralidade para o progresso da Europa e para o desenvolvimento humano. Contudo,
lembremos, a Reforma Protestante foi um movimento de ordem teológica e religiosa,
portanto, o seu impulso de ação transformadora sempre esteve fundamentado nos seus
princípios bíblicos, assim fora essencial colocar a Bíblia nas mãos do povo, dando-lhe a
capacidade de leitura e interpretação. Uma das características mais determinantes na
produção de sentido, unidade e herança histórica em uma civilização é a sua linguagem, Jean
de Léry sabe muito bem disto, prova que percebeu a importância de registrar a língua tupi e
dar vez e voz ao índio tupinambá, o próximo passo, se tivesse tido tempo, seria a Escritura
Sagrada acessível ao indígena, afinal de contas esta fora o modus operandi dos reformados na
Europa, princípio seguido pelos protestantes também no século das missões e
subsequentemente em suas práticas evangelizadoras. Consequentemente, Jean de Léry
refletia o princípio escriturístico adotado pela Reforma Protestante e pelo calvinismo quando
busca apreender a língua tupi. Conforme atesta Silva: “Na Reforma protestante a questão da
língua torna-se crucial na relação entre o sagrado e o profano, em que a palavra escrita passa a
ser a ponte com Deus. Embasado nessa necessária relação, Léry fará a observação „científica‟
sobre o índio e sua língua, buscando apreender a configuração física, os costumes, a natureza
e a linguagem”.826

824
Olivier Millet (ed.), Jean Calvin: Œvre Choisies, Éditions Gallimard, 1995, p. 08. Afirmação corroborada
por Willemart: “Organizador religioso, mas também grande escritor, Calvino foi, de um certo modo, fundador da
prosa francesa com a Institution e seus tratados”. Philippe Willemart, A Idade Média e a Renascença na
Literatura Francesa, São Paulo, Annablume, 2000, p. 43; Cp. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro,
Objetiva, 2006, p. 58; Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas: de Maomé à Idade das
Reformas, vol. III, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2011, p. 232; Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo,
UNESP, 1999, p. 252.
825
Lucien Febvre, Au Coeur Religieux du XVIe Siècle, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1968, p. 256.
826
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 120. Afirma Orlandi: “A questão da língua, na
Reforma, como nós dissemos, torna-se uma questão crucial na relação entre o sagrado e o profano, estando o
problema da relação do sujeito com o saber ligado ao problema do domínio da língua”. Eni Pulcinelli Orlandi,
Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas, Cortez/UNICAMP, 1990, p.
96.
256
De fato, a escrita para Jean de Léry está intimamente ligada ao aspecto do religioso,
visto que, é exatamente no capítulo de História de uma Viagem feita à Terra do Brasil,
também chamada América, onde trata especificamente sobre a religião tupinambá que registra
a importância da escrita como uma bênção de Deus. Evidenciando, de pronto o seu desejo de
apreender a língua tupi já desde o primeiro momento de sua chegada em terras brasileiras.
Registra Léry: “Quando cheguei ao país e comecei a aprender-lhes a língua, escrevia frases e
depois as lia diante deles; julgavam que era feitiçaria, e diziam uns aos outros: „Não é
maravilhoso que este que ontem não sabia uma palavra do nosso idioma, possa hoje ser
entendido por nós, graças a esse papel que ele segura e que o faz falar?‟”.827 Diante da
superstição tupinambá Léry conclui:

Eis aí um tema de dissertação capaz de mostrar que os habitantes da


Europa, da Ásia e da África devem louvar a Deus por sua
superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo. Enquanto os
selvagens nada podem comunicar entre si a não ser pela palavra, nós,
ao contrário, sem sair de um lugar, por meio da escrita e das cartas que
enviamos, podemos dizer os nossos segredos a quem quisermos, ainda
que estejam tão longe quanto o outro extremo da terra. Além da
invenção da escrita, os conhecimentos de ciência que adquirimos
pelos livros e que eles ignoram devem ser tidos como dons singulares
que Deus nos concedeu.828

Contudo, esta postura de Jean de Léry por vezes chama à atenção e causa espanto pelo
uso da palavra “superioridade”. No entanto, devemos entender que o uso desta palavra está
condicionado pelo seu lugar histórico e social no qual está circunscrito. Não está falando de
uma superioridade de natureza essencial, mas apenas de uma posição de inferioridade que o
índio tupinambá se encontrava devido à falta de sua capacidade de escrita. Não é cabível uma
interpretação pejorativa por parte de Jean de Léry, porquanto, o que confere humanidade ao
índio que ele identifica é a sua essência humana, ou seja, ser imagem e semelhança de Deus,
possuir o senso de divindade e a semente da religião, uma estrutura social organizada, entre
outros aspectos que apresenta claramente em seu relato de viagem – o que já apresentamos
anteriormente. Mas, no entanto, esta categorização de inferioridade linguística o movera a
apreender a língua tupi e registrá-la em seus pormenores, refletindo assim uma visão
missionária, porque, aprender a língua é o primeiro passo para a evangelização, e esta visava

827
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 203-204.
828
Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro,
Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 204.
257
elevar o índio tupinambá ao nível em que estava Léry, visto que havia sido colocado neste
patamar por meio da palavra escrita, expressão de sua mentalidade calvinista.

A operação historiográfica produzida por Jean de Léry tendo como objeto a linguagem
indígena que registra, a partir de um modelo europeu, “garante ao índio o privilégio de uma
história, para a qual os relatos fornecem a materialidade e a temporalidade até então
impossíveis. O índio tupinambá, entretanto, não possuiria voz sobre sua memória social”829,
se não fosse esta construção historiográfica. Desta feita, esta escrita possibilita ao tupinambá
uma viagem que transpõe os mundos e os séculos. Léry, por meio da escrita constrói e liberta
a cultura indígena. Esta operação etnográfica articula-se em uma forma de escrita que
organiza o espaço que pertence ao Outro de modo a privilegiar a sua oralidade. Portanto,
atesta Silva: “A apropriação da língua, que passaria a ser confinada a regras e esquemas
interpretativos, na tentativa de esboçar-se uma gramática tupi a partir do colóquio em língua
brasílica e na identificação das espécies e riquezas naturais a partir do seu nome indígena, não
é uma condenação da fala indígena ao silêncio, mas sim um direcionamento no direito da
fala”.830

Deste modo, encontramos em Jean de Léry a preocupação em ser o mais objetivo


possível, porque, do mesmo modo que o seu cuidado diante das representações imagéticas foi
o de apresentar o real, a verdade dos fatos, agora em suas descrições linguísticas a vigilância
que o move ao registro é a mesma. Este objetivo evidencia-se no capítulo XX “Colóquio
entre as gentes do país”, que se trata de uma espécie de dicionário da língua tupi.831 Nele
Léry mostra como contar até cinco, a cores, peças de escambo, animais da terra, as aldeias, a
flora, os povos e as línguas, tudo em língua tupi, além de apresentar as partes do corpo, cujo
nome não se deve pronunciar, identifica os pronomes da língua tupinambá, relata os nomes

829
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 120.
830
Wilton Carlos Lima da Silva, As Terras Inventadas: discurso e natureza em Jean de Léry, André João
Antonil e Richard Francis Burton, São Paulo, UNESP, 2003, p. 121.
831
“O capítulo XX da História de Léry é constituído pelo “Colóquio da entrada ou chegada na terra do Brasil”, o
qual é seguido de uma série de observações gramaticais que formam o primeiro ensaio publicado sobre aspectos
da gramática de uma língua indígena brasileira, a língua dos índios Tupinambá (Tupi Antigo), a mesma que os
missionários portugueses passaram a chamar de Língua Brasílica”. Aryon Dall`igna Rodrigues, A Contribuição
Linguística de Jean de Léry in Jean de Léry, História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2009, p. 43.
258
dos pertences da casa e da cozinha, os familiares, os verbos em seus tempos e modos, por fim
enumera as vinte e duas aldeias tupinambás por onde nosso viajante havia passado.832

Ao longo de sua História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América, Jean de Léry produz um discurso sobre o Outro que perpassa todo o relato na função
objetiva de dirimir a clivagem entre oralidade e escrita, espacialidade e temporalidade,
alteridade e identidade, e entre inconsciência e consciência, a sua operação historiográfica
realizou o seu objetivo, contudo, restou apenas uma língua a ser traduzida, assim, “o capítulo
que dá o código da transformação linguística. Ele permite restaurar a unidade tornando a
dobrar uma sobre as outras as cascas heterogêneas que cobrem uma identidade de
substância”.833 A linguagem traz a realidade vivencial dos selvagens ao Ocidente, suprime a
clivagem. Aponta Michel de Certeau: “A operação não torna mais necessária, Calvino já
sugerira, a redução das linguagens a uma língua primeira de onde procederiam todas; ela
substitui o estar-lá de uma origem por uma transformação que se desenvolve na superfície das
línguas, que faz transitar um mesmo sentido de língua e que logo concederá à linguística,
ciência dessas transformações, um papel decisivo em toda a estratégia recapituladora”.834
Deste modo esta operação linguística de tradução que Léry desenvolve apontaria para a
possibilidade de apresentação da Escritura Sagrada ao índio tupinambá, conforme atesta
Certeau: “O dicionário se torna instrumento teológico”.835

832
“Em adição, para que não só aqueles com quem atravessei e reatravessei o mar, mas também os que viram na
América (muitos dos quais podem estar vivos ainda), inclusive os marinheiros e outros, que viajaram e
permaneceram um pouco no rio de Janeiro ou Ganabara | Guanabara |, sob o Trópico de Capricórnio, apreciem
melhor e mais prontamente os discursos que fiz anteriormente a respeito das coisas notadas por mim naquele
país, eu quis ainda, particularmente em favor deles, acrescentar, depois deste Colóquio, o Catálogo de vinte e
duas aldeias em que eu estive e que frequentei familiarmente entre os selvagens americanos”. Jean de Léry,
História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, Rio de Janeiro, Fundação Darcy
Ribeiro, 2009, p. 267-268.
833
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 241.
834
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 242.
835
Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 242. “Na partida de
Genebra, uma linguagem se põe em busca de um mundo (é a missão); privada de efetividade (sem terra), aparece
finalmente nas margens extremas do Ocidente (a ilha Coligny, cap. VI) como linguagem pura da convicção ou
da subjetividade, incapaz de defender seus enunciados objetivos contra um uso enganoso senão pela fuga dos
locutores. A essa linguagem se opõe, na outra margem, o mundo da alteridade máxima: a Natureza selvagem. A
efetividade é inicialmente a estranheza. Mas, na espessura dessa alteridade, a análise introduz um corte entre
exterioridade (estética etc.) e a interioridade (um sentido assimilável). Opera uma virada lenta, começando pela
maior exterioridade (o espetáculo geral, depois a floresta etc.), progride para as regiões de maior interioridade (as
doenças e a morte). Prepara assim a efetividade selvagem para que se torne, por meio de uma tradução (cap.
XX), o mundo que diz a linguagem inicial. O lugar de partida era um aqui (“nós”) relativizado por um alhures
(“eles”) e uma linguagem privada de “substância”. Ele se torna um lugar de verdade, já que lá se mantém o
discurso que compreende um mundo. Tal é a produção para a qual o selvagem é útil: da afirmação de uma
convicção, leva a uma posição de saber. Mas, se na partida a linguagem a restaurar era “teológica”, a que se
259
Orlandi segue a mesma proposta ao enfatizar que o “colóquio” de Léry é marcado pela
teologia; o seu diferencial é o fato de falar do “lugar do protestante”. Este lugar é
determinado, segundo a autora, “pela necessidade de conhecer profundamente a língua”836,
“rejeição da tradição” e “pela insistência sobre o papel do sujeito, o humanismo da
Reforma”.837 Evidencia a diferença de Léry, afirmando que “Ele tem, pois, um papel
missionário: o da confrontação com o catolicismo, sua forma de existir, de estar na América,
de conceber o índio, de catequizá-lo. Faz também parte do seu trabalho o ver o índio esse
outro sujeito possível, na perspectiva humanista da Reforma”.838 Para Orlandi, está no modo
de observação, descrição e compreensão do índio e de sua cultura a prova de que Léry
apresenta uma abordagem mais científica, porquanto desejava conhecer mais profundamente a
língua tupi, é exatamente isto que o afasta do preconceito ao índio e à sua cultura. A língua é
questão central na Reforma Protestante, assim aponta Orlandi, “é daí, que deriva o caráter de
cientificidade que Jean de Léry dá às suas observações sobre o índio e sua língua, sendo então
parte de suas convicções e de suas práticas religiosas. A forma científica de mostra-lo é a
explicitação das regras da gramática da língua dos índios”.839 A autora também enfatiza que
Léry além do “gosto pela ciência”, ainda é caracterizado pela sua objetividade, sem contudo,
deixar de correlacionar a língua tupi com o latim, o grego e o hebraico “para tornar suas
observações mais familiares”.840 Portanto, todo o cuidado de Jean de Léry em registrar com
fidelidade a língua tupi fora feito segundo o projeto missionário calvinista.

Neste capítulo seguimos a perspectiva de que a teologia calvinista em suas mais


diversas teses fora imprescindível para a análise da hermenêutica religiosa do Outro como
proposta por Jean de Léry, que em todo o momento apresentou o índio tupinambá com apreço
e respeito, característica vital deste calvinismo. Esta operação historiográfica que Léry
fabrica ao dar uma história ao índio permite dar-lhes voz e produz um lugar onde este tem
autorizado o seu discurso. A atividade empreendida por Jean de Léry visava a exaltação do

instaura na volta é (em princípio) científica e filosófica”. Michel de Certeau, A Escrita da História, 3.ª ed., Rio
de Janeiro, Forense, 2011, p. 243-244.
836
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/Unicamp, 1990, p. 94.
837
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/Unicamp, 1990, p. 95.
838
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/Unicamp, 1990, p. 95.
839
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/Unicamp, 1990, p. 96.
840
Eni Pulcinelli Orlandi, Terra à Vista: discurso do confronto: Velho e Novo Mundo, São Paulo/Campinas,
Cortez/UNICAMP, 1990, p. 96.
260
indígena segundo o evangelho que defendia, porquanto, a Escritura Sagrada confere ao
tupinambá o conhecimento salvífico capaz de transformar sua vida no presente e dar-lhe a
vida eterna, segundo o pensamento calvinista. Segundo esta mentalidade teológica a
possibilidade de conversão consiste no alto nível de reconhecimento da humanidade do
sujeito.

261
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Jean de Léry (1534-1611) foi um teólogo e missionário huguenote, que aportou em


terras brasileiras no longínquo século XVI, ao se deparar com os índios tupinambás quando
da tentativa de implantação de uma colônia francesa, a chamada França Antártica, relacionou-
se com os habitantes do Novo Mundo pautado por um olhar humano de respeito e valoração
deste índio. Olhar de uma qualidade diferente de outros que estiverem no Brasil em período
correlacionado. O fundamento norteador deste olhar que entende o índio como um ser
humano, e até mesmo percebendo-o como um parâmetro para a compreensão de si mesmo é o
que investigamos neste trabalho, apoiados no conceito de heterologia de Michel de Certeau.
Contudo, nossa tese afirma que esta hermenêutica do Outro em Jean de Léry é determinada
pelo sistema de pensamento teológico calvinista. A circularidade hermenêutica do viajante
francês está condicionada à Escritura Sagrada, dela parte, a ela retorna.

O huguenote veio ao Brasil enviado pela Igreja Reformada de Genebra em resposta à


solicitação do vice-almirante Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571), que desejava
ocupar a nascente colônia e promover o seu desenvolvimento. A motivação para angariar
adeptos à empreitada fora a possibilidade de liberdade religiosa, o oposto do que estava
ocorrendo na França do século XVI, em período também conhecido como a época das guerras
de religião. Ao todo são quatorzes calvinistas que se lançam em uma viagem de cerca de três
meses, visualizando a utopia da liberdade e a possibilidade de evangelização, tanto dos
franceses que já se encontravam em terras brasileiras, quanto dos habitantes originais da terra.
A recepção amigável do vice-almirante durou pouco tempo, e após apenas oito meses de
estadia na colônia, os calvinistas foram expulsos, a tão sonhada liberdade religiosa logo se
transformou em perseguição religiosa como um lastimável espelho da realidade situacional
francesa. Os calvinistas se dirigiram para o continente, onde permaneceram por cerca de dois

262
meses à espera de um navio que os levasse de volta à Europa. Durante estes dez meses na
América, Jean de Léry se lançou livremente ao convívio com os índios tupinambás, a sua
experiência vívida fora registrada em sua obra História de uma Viagem feita à Terra do
Brasil, também chamada América. Esta obra é o objeto de nossa análise nesta pesquisa, no
qual encontramos estas expressões de valoração do Outro, que inauguram, em certa medida, a
antropologia moderna.

Nossa perspectiva de análise norteou-se pelo ferramentários teórico provindo de


Michel de Certeau ao identificar que a perspectiva calvinista é o fundamento para a
heterologia, ou ciência do Outro encontrada em Jean de Léry. A história tem por finalidade
propiciar o encontro com o Outro com o objetivo de promover a compreensão do mesmo.
Observamos que, para Certeau a historiografia é uma operação que se constitui em três
elementos basilares, o lugar social de produção, a prática científica e a escrita da história.
Este conjunto produz a fabricação de sentido do discurso histórico que se estabelece no seu
comprometimento com o real vivenciado empiricamente. Deste modo, Jean de Léry é
compreendido por Certeau como um historiador por excelência.

O lugar social de Jean de Léry que possibilita e autoriza o seu discurso é o sistema de
pensamento calvinista, construído como um processo, utilizando-se das mentalidades que o
antecedem, em especial o humanismo renascentista, contudo, também superando-os, porque
fundamenta-se e compromete-se com os princípios bíblicos, limites da hermenêutica teológica
calvinista. A compreensão semântica é determinada pelo situar-se no lugar social, porque a
escrita é uma produção social institucionalizada. Segundo, já defendemos, Calvino é
considerado por diversos historiadores como o iniciador e fundador de um novo tipo humano,
o calvinista; o criador de uma nova civilização. As características centrais deste novo modelo
humano, a partir da estrutura de pensamento calvinista, é a sua fundamentação ética pautada
na Escritura Sagrada, a valorização do ser humano como criado à imagem e semelhança de
Deus, e a organização social. Estes elementos característicos produziram ramificações que
influenciaram diversas áreas do saber humano, e nas mais diversas vertentes da existência
humana; as ciências humanas e naturais como um todo sofreram, direta ou indiretamente,
ingerência do pensamento calvinista. Jean de Léry evidencia estas estruturas calvinistas no
seu relato quando organiza o espaço histórico do índio tupinambá, quando o descreve como
um ser humano em sua excelência, não obstante, o seu parâmetro de interpretação sempre

263
esteve condicionado pelo seu compromisso com a Escritura Sagrada, o limite de sua
circularidade hermenêutica, de sua heterologia.

Este lugar social onde os sistemas de pensamento eclodem também se institui como
um ambiente determinado pelas situações históricas dos sujeitos, condicionados às suas
próprias contingências vivenciais. Toda interpretação histórica está posta em uma relação de
dependência de um sistema que a referencie. Portanto, a descrição deste ambiente da
sociedade escriturística, ou seja, a compreensão da Reforma Protestante condicionada às suas
relações históricas, a própria situação vivencial do reformador João Calvino, a França das
guerras de religião e o ambiente no qual se insere Jean de Léry na tentativa de implantação da
França Antártica são centrais para a compreensão da construção da mentalidade calvinista em
suas expressões concretas, que se traduziram na escrita da história, porquanto é neste
ambiente que se dá a construção vivencial do sistema de pensamento teológico calvinista em
sua concretude no viajante historiador. Como não existe voz pura, como enfatizava Certeau, o
autor sempre é representante de um corpo, desta feita, o corpo que determinou a interpretação
humanista de Jean de Léry é o calvinismo em sua correlação com o humanismo renascentista,
contudo, comprometido com a Escritura, para tanto, ouvir a voz de Léry é ouvir o
pronunciamento da teologia calvinista.

Um elemento chave que surge nesta contextualização é a evidência de que o próprio


autor fora colocado à margem da sociedade europeia do catolicismo romano, portanto,
também é um ser marginalizado por ser o Outro dentro do Cristianismo no século XVI.
Portanto, Jean de Léry tem conhecimento de causa quanto a ser posto de lado no que concerne
à valoração humana, desta feita, sabedor que fora a tomada da palavra que lhe estaria
possibilitando a criação do seu próprio lugar, pretende dar ao índio a mesma oportunidade que
está vivenciando ao se utilizar deste projeto de construção de valor social. A tomada da
palavra do lugar social de Léry, o ambiente reformado calvinista, fora propiciada pela
Escritura e pela pregação que se constituíram como a estratégia que produzia este lugar, ou
seja, sempre esteve em evidência a centralidade da escrita e da oralidade como processo de
construção de identidade, e também, abertura da possibilidade à fala em um mundo
impositivo que os levava à marginalidade social, portanto, Léry segue este mesmo processo
dando ao índio tupinambá o direito à voz como um meio de produção de sentido e
valorização, porque este foi o mesmo processo seguido quando da construção do seu próprio
lugar social.

264
A prática científica de Jean de Léry é comprovada em sua relação com a verdade dos
fatos experienciados, ao remeter o leitor constantemente às fontes que fundamentam o seu
relato. A evidência desta cientificidade permeia toda a obra, pois Léry sempre aponta para a
realidade de que o seu registro fora fundamentado no que presenciou. A obra é intitulada
como História... não por acaso, mas porque está implicada com o real, construída como uma
investigação da realidade, como consequência, é um relato histórico fidedigno. No entanto,
irrompe um duplo onde o historiador articular-se, a vivência e a escrita da história, a teoria e a
prática, Léry vai transitar em sua prática científica nestes dois mundos, sem contudo abrir
mão de um, ou outro. A cientificidade apresentada por Jean de Léry não o impediu de
dialogar com as propriedades de sua época, o renascimento em sua valoração pelo humano.
Esta realidade evidencia-se nas representações imagéticas contidas na obra do viajante que
refletem os conceitos de perspectiva, rotação e proporção, todos utilizados pelos artistas de
sua época com o propósito de comunicar o valor natural do ser humano. Portanto, Léry ao
fazer uso destes critérios de representação imagética, demonstra ser um homem moderno. Na
medida em que faz uso das descobertas e inovações de sua época com a finalidade de
expressar a sua valorização do índio como um ser humano por excelência. Assim, apresenta
um habitante do Novo Mundo capaz de transformar a realidade a qual está posto, fazendo uso
das ferramentas que tem diante si, do mesmo modo que o europeu tem feito ao longo de sua
história.

A escrita da história efetuada por Jean de Léry é a possibilidade de dar voz ao índio
tupinambá. Produz o lugar onde o índio tem direito à fala por meio de estratégias
escriturísticas que objetivam a produção de sentido no discurso historiográfico. Contudo,
Léry vai além, visto que, é por meio deste diálogo com Outro que o europeu tem diante de si a
possibilidade de pensar a sua própria realidade. Evidencia-se assim, um reflexo da
epistemologia calvinista que encontra no ser humano a possibilidade do conhecimento de
Deus, por este ter sido criado à imagem e semelhança do Criador. O viajante francês dá a
possibilidade ao índio tupinambá da tomada da palavra, condicionada e limitada, no entanto,
também se apresenta como uma possibilidade de superação; construção e erosão como uma
realidade concreta, o morto é sepultado, mas na mesma medida é trazido à vida. A escrita põe
em cena o que se encontra ausente, os rastros do Outro na história. A escrita revela e oculta,
traz à vida e sepulta. O espaço do Outro é criado por meio da escrita, desta feita, Jean de Léry
possibilita ao índio tupinambá a compreensão do presente e a construção do futuro. A escrita
articula-se entre o lugar social e as práticas científicas adotadas pelo historiador, neste
265
movimento Léry trabalha uma operação que produz o espaço do Outro. Este espaço é
marcado pela valoração do índio tupinambá como um ser humano caracterizado pela
dignidade derivada, porque este fora criado à imagem de Deus, deste modo, portador da
semente da religião, do senso de divindade, de sabedoria, criatividade transformadora da
realidade que o cerca, do senso de justiça que organiza as relações entre os seres, uma
organização social e lampejos de bondade, entre outras características humanas. Jean de Léry
também deixa evidente que conhecer este Outro, sem as amarras do preconceito da suposta
superioridade europeia, se constitui em um privilégio para a compreensão do próprio europeu
e, além disto, uma possibilidade de aprendizagem do modelo de vida que pratica, e também
como um meio para pensar criticamente a respeito das ações violentas no que concerne à
intolerância, que o Eu europeu tem realizado, contudo há um complicador, este pensa ser mais
civilizado do que aquele, a conclusão de Léry por vezes é inversa, ou seja, o índio tupinambá
é mais civilizado quando concentra-se no trabalho para produzir o que necessita à sua
sobrevivência e não para acumular riquezas; quando mostra-se pertencente a uma estrutura
social mais justa; quando as suas motivações para a guerra não estão relacionadas à mera
conquista territorial, entre outros.

A intencionalidade do protestante em evangelizar o indígena não se constitui em uma


atitude de imposição cultural, porquanto, Jean de Léry ao advogar a possibilidade de
conversão do índio, reconhece que este possui as marcas características da humanidade como
a consciência da existência da divindade e o impulso pela religião, revelando características
essenciais do ser humano, conforme fora advogado pela teologia calvinista. O convívio com
os índios e a dedicação em aprender e registrar a língua tupi, apontam para a importância que
o calvinismo, e a Reforma Protestante como um todo, davam à escrita como fator de vital
importância para a comunicação das verdades do Evangelho salvador de Cristo e como um
processo de valorização do ser humano ao libertá-lo da ignorância em todos os níveis e que
provocavam o controle e a limitação em um sistema opressivo.

A heterologia em Jean de Léry é, acima de tudo, uma ciência do Outro circunscrita e


determinada pelos parâmetros fundantes do sistema de pensamento teológico calvinista,
aplicados em sua dimensão mais prática às necessidades da vida situacional do sujeito
histórico, mas ao mesmo tempo compromissado com as suas bases fundantes provenientes
das Escrituras Sagrada como o limite e o parâmetro interpretativo deste Outro, que fora criado
à imagem e semelhança de Deus, portanto, digno de respeito e valoração.

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