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epistemológico em psicanálise
The history of the psychoanalytical movement and epistemological debates in
psychoanalysis
Abstract: This paper aims to explore intersections between the history of psychoanalytical
movement and epistemological debates in psychoanalysis. The premise is that history and
epistemology are inseparable in psychoanalysis. From then on, a bibliographic review was
done aiming to understand how this intersection was constituted when Freud was developing
his theoretical arguments. For this, some texts were selected, the main one being the text
‘History of psychoanalytical movement’, written by Freud in 1914. In addition to this text,
more current other texts were selected and the results of the exploration show that the
psychoanalytical method, proposed by Freud, is the point of articulation between history and
the debates epistemological in psychoanalysis.
Keywords: Psychoanalysis; History; Epistemology.
1
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IMS/UERJ)(2016), mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe (2011). Professora do
Departamento Psicologia da Faculdade Pio Décimo de Sergipe, do departamento de Psicologia do Centro
Universitário Estácio de Sergipe e do departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Klecia Renata de Oliveira Batista - A história do movimento psicanalítico e o debate epistemológico em
psicanálise
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ocorrência desses eventos teria se dado durante aqueles momentos aos quais ele denominou
de estados hipnoides e que podem ser caracterizados por condições em que a consciência do
indivíduo encontra-se em estado de rebaixamento, impedindo a ab-reação necessária ao
acontecimento presente. Nos Estudos sobre a Histeria – obra escrita em conjunto com Freud
–, Breuer chegou a expor o princípio do que mais tarde viria a ser uma divergência teórica
fundamental:
Para nós, a importância dos estados semelhantes à hipnose, os estados
‘hipnoides’, reside, além disso e sobretudo, na amnésia e em sua
capacidade de provocar aquela cisão da psique [...]. Mas devo
restringir consideravelmente a nossa tese. A conversão, a produção
ideogênica de fenômenos somáticos, ocorre também fora dos estados
hipnoides, e para a formação de complexos de ideias excluídos do
trânsito associativo Freud encontrou na amnésia voluntária da defesa
uma segunda fonte, independente dos estados hipnoides. Mas, com
essa restrição, ainda penso que estes últimos são causa e condição de
muitas, até mesmo da maioria das histerias grandes e complicadas
(Breuer & Freud, 1893-1895/2016, p.305).
Foi justamente a divergência teórica e técnica com Breuer que marcou o início da
teoria e técnica psicanalítica. É importante sublinhar as contribuições de outros médicos ao
lado de quem Freud e Breuer caminharam durante esse percurso inicial. Como bem destaca
Mezan (2006), Charcot e Janet representaram papéis centrais nos primeiros embates teóricos e
clínicos de Freud. Entre as principais transmutações do método catártico para a psicanálise,
Freud destacou a teoria da repressão e da resistência, a introdução da sexualidade infantil e a
interpretação dos sonhos como instrumento válido para conhecimento do inconsciente (Freud,
1914/2012).
Daí em diante, com essa base conceitual e clínica delineada, a psicanálise começou a
ramificar em diferentes direções. Ao sistematizar suas constatações acerca do inconsciente em
uma teoria, Freud logo começou a reunir em torno de si um conjunto de jovens médicos
interessados em suas ideias – foi justamente aí que teve início isso que ele denominou de
movimento psicanalítico. Entre os mais próximos, criou-se um grupo de discussão – a
chamada Sociedade Psicológica das Quartas Feiras – que se reunia no apartamento de Freud
para debater assuntos diversos: “psicanálise, inconsciente, etiologia e terapia das neuroses,
sexualidade, onanismo, impotência, homossexualidade, incesto, em suma, os temas que a
clínica psicanalítica recém-criada por Freud revelava e dos quais a sociedade em geral sequer
queria saber da existência” (Checchia, Torres & Hoffmann, 2015, p. 13).
Muitos foram os nomes que compuseram ou passaram pelo círculo mais próximo de
Freud ao longo das quatro décadas que se seguiram até sua morte. Em meio a isso, começou
um movimento de organização de Congressos de Psicanálise, que foram realizados em
diversas localidades. Surgiram periódicos e revistas de psicanálise, através das quais se
disseminavam as ideias e os debates psicanalíticos, sobretudo no meio acadêmico. Além
disso, foram criados núcleos de psicanálise em outros países, reunindo médicos, escritores,
artistas etc. A esse respeito, Freud cita, em seu texto de 1914, ter conhecimento de debates
psicanalíticos nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Índia, no Canadá, na Argentina, na
França, na Itália, na Suécia, entre outros (além das já tradicionais escolas de Viena e Zurique).
Não se pretende aqui acompanhar exaustivamente todas as histórias que compuseram
o movimento psicanalítico desde então. A finalidade desta seção se restringe a explorar os
motivos pelos quais Freud optou por acolher algumas das ideias de seus colegas e excluir
outras delas do campo da psicanálise. Para fazer isso, serão dedicadas algumas linhas à leitura
que Freud fez, na obra aqui explorada, das suas divergências com Adler e Jung. Segundo ele,
esses dois teóricos renegaram os princípios da psicanálise (Freud, 1914/2012).
Sobre Adler, Freud afirmou que sua ‘psicologia individual’ deveria ser vista como
uma corrente psicológica oposta à psicanálise, e cujo desenvolvimento está fora de seu campo
de interesse. Sua principal crítica recai sobre o fato de a teoria de Adler ter se constituído
como um sistema, algo que a psicanálise evitou ser (Freud, 1914/2012, p.307). Para Freud, a
teoria adleriana acabou por deixar de lado o peso das motivações libidinais nas produções
humanas, em nome da afirmação de componentes egóicos que serviriam para tornar a teoria
claramente inteligível nos parâmetros de uma psicologia da consciência. A forma através da
qual Adler conseguiu sustentar essa estrutura teórica, segundo Freud, foi pela via de
reinterpretações e deformações de fatos psicanalíticos observáveis na clínica.
Por caminhos diferentes, mas no mesmo sentido, se deram as divergências com Jung.
Em 1912, este enviou uma carta a Freud afirmando que havia introduzido algumas
modificações na teoria psicanalítica e que, com elas, obteve êxito na superação de resistências
de muitas pessoas que a ela se opunham.
Respondi que isso não era razão para se vangloriar, e que quanto mais
ele sacrificasse as – duramente adquiridas – verdades da psicanálise,
tanto mais ele veria se desvanecerem as resistências. A modificação
de que os suíços se orgulhavam era, mais uma vez, o refreamento
teórico do fator sexual. Confesso que desde o princípio entendi esse
‘progresso’ como uma adequação excessiva às exigências da
atualidade (Freud, 1914/2012, p.316)
A fim de sustentar uma teoria que se enquadrasse nos ditames civilizatórios, Jung
precisou se afastar completamente da observação e da técnica psicanalítica (Freud,
1912/2014). O que Freud denuncia na teoria junguiana, portanto, é o fato de assim como
Adler, Jung ter construído um sistema teórico cujas bases psicanalíticas já não estariam
presentes. A principal dessas bases seria a fidelidade aos dados clínicos e é justamente sobre
isso que o presente artigo vai se debruçar na próxima seção, visando articular a história do
movimento psicanalítico com o debate epistemológico acerca da psicanálise.
Griesinger – considerado o pai da psiquiatria alemã – segundo o qual as doenças mentais são
doenças cerebrais. “O anatomismo de Griesinger passou a ter hegemonia absoluta durante
todo o período áureo da Psiquiatria clássica. As doenças mentais, desse modo, foram
divididas em dois grupos: as de substrato anatomopatológico já comprovado e as de substrato
anatomopatológico por comprovar” (Barreto, 2013, p.69).
Com esse cuidado, encerra-se aqui a segunda parte desse artigo no ensejo de que
tenham sido compreendidos os elementos que possibilitam amarrar a história da psicanálise
ao seu debate epistemológico. Na ultima seção, a seguir, serão exploradas algumas breves
discussões que se fazem acerca de correntes psicanalíticas que foram elaboradas pós-Freud e
que, por fazerem parte do movimento psicanalítico, passam pela avaliação epistemológica.
conforme apresentado anteriormente, justamente quando avalia que este abandona o vínculo
dos fenômenos com a vida pulsional para partir de uma nova visão de mundo que deveria ser
compartilhada por todos.
É sabido que a partir da década de 40 houve uma expansão do movimento
psicanalítico pelo mundo, com a consequente multiplicação de alternativas teóricas. Ora, se a
historia da psicanalise é a historia de seu debate epistemológico, parece justo que essas
alternativas sejam revisadas em seus fundamentos científicos e, portanto, em seus parâmetros
metodológicos.
Não se pode ignorar que, em meio a essa multiplicação de teorias, surgiu um
movimento dogmatista que teve como consequência a construção de frequentes combates
envolvendo a questão de qual seria, enfim, a verdadeira psicanálise. No caso da clínica das
neuroses, já foi pontuado que os elementos que vão justificar, desde Freud, o reconhecimento
de uma teoria como sendo psicanálise é a manutenção do eixo transferência-interpretação. É
preciso ressaltar, entretanto, que existe ainda outro conjunto de teorias que se inscreve no
problema de forma peculiar, exatamente por não tomar como referencia para suas elaborações
teóricas a clínica das neuroses.
Ainda assim, algumas dessas teorias obtiveram esse reconhecimento dos seus pares e
podem ser consideradas parte fundamental da psicanálise contemporânea. Para melhor falar
sobre isso, recorre-se aqui à metáfora proposta por Mezan (2014), a qual trata a história da
psicanálise como a história de um tronco e seus ramos. Para o autor, ao estabelecer o tripé
teoria-técnica-método e ao definir os critérios metodológicos de sua disciplina, Freud criou
um tronco a partir do qual algumas ramificações puderam se desenvolver.
É necessário chamar atenção para o fato incontestável de que o nascimento de
qualquer teoria esbarra nos limites estabelecidos pelo paradigma científico do campo e, dentro
disso, nas problemáticas circunscritas por esse paradigma em determinado contexto cultural.
Isso serve para a psicanálise freudiana e, de igual forma, serve para compreender a
emergência das diferentes ramificações às quais Mezan (2014) vai se referir em sua obra.
Embora tenham desenvolvimentos peculiares, esses ramos estão ligados entre si pelo tronco
que lhes sustenta. Assim, a psicanálise de Melanie Klein, a psicanálise de Lacan, a psicologia
do ego americana e a psicologia das relações de objeto britânica são reconhecidas como parte
do entroncamento psicanalítico iniciado por Freud.
É necessário destacar que aos critérios metodológicos usados por Freud como crivo de
avaliação da pertinência de uma teoria no campo da psicanálise, Mezan (2014) acrescenta
critérios teóricos. Para o autor, além de sustentar-se sobre a experiência, uma teoria
psicanalítica precisa se desdobrar em quatro dimensões: 1) uma teoria da psique
(metapsicologia); 2) uma teoria da gênese e do desenvolvimento psíquico; 3) uma teoria do
funcionamento normal e patológico; e 4) uma teoria do processo psicanalítico.
Apesar de considerar estes critérios válidos para a avaliação de um corpo teórico em
psicanálise, ressalta-se aqui que eles são insuficientes. Sustenta-se aqui o pressuposto
apresentado desde o início de que é a discussão em torno da cientificidade que atravessa e
constitui a história do movimento psicanalítico, sendo imprescindível reafirmar o método
como o requisito básico, após o qual os critérios teóricos podem ser colocados. Julga-se
necessário colocar as coisas nesses termos para evitar a falsa impressão de que uma teoria que
cumpra os critérios acima citados seria reconhecidamente uma ‘verdadeira’ teoria
psicanalítica, como buscavam os dogmatistas do século passado.
Ou seja, para além de cumprir esses requisitos, é importante que a teoria seja
desenvolvida a partir de constatações feitas a partir da experiência psicanalítica da qual o
psicanalista é parte. E ele é parte em dois sentidos: em primeiro lugar, ele tem uma atuação
clínica e, juntamente com isso, ele observa – como investigador do inconsciente que é –
aquilo que a sua atuação produz no encontro transferencial com o outro. Qualquer teoria
pretensamente psicanalítica que não conte, em sua construção, com os dados oriundos desse
encontro, pode ser caracterizada como aquilo a que Freud (1910/2013) chamou de
‘psicanálise selvagem’, termo utilizado para fazer referencia à simples aplicação de conceitos
psicanalíticos para fazer a leitura de fenômenos clínicos, sem a análise devidamente pautada
na relação transferencial.
Para ilustrar essa ideia Freud apresenta um caso que lhe foi encaminhado. Tratava-se
de uma senhora que sofria de estados de angústia precipitados desde a separação do último
marido. Essa senhora procurou um médico que a encaminhou, então, para o consultório de
Freud, informando que seus sintomas seriam oriundos de carência sexual e que Freud teria o
conhecimento sobre a causa. Ao fazer isso, diz Freud, o médico deixa de observar os preceitos
técnicos da psicanálise, além de demonstrar ser um mau entendedor de uma série de teorias
científicas psicanalíticas. Quando ocorre uma interpretação selvagem desse tipo, perde-se a
oportunidade de conhecer o funcionamento psíquico que jogo no caso, pois o próprio método
psicanalítico é subjugado. Foi o que aconteceu no caso relatado, pois o tal médico afirmou
para aquela senhora que ela tinha três caminhos para recuperar sua saúde: ou voltava para o
marido, ou arranjava um amante ou buscava satisfazer a si mesma. “Curiosamente, nessas
alternativas terapêuticas do suposto psicanalista não sobra espaço para – a psicanálise! [...]
Onde ficaria o tratamento analítico, em que vemos o principal recurso para os estados de
angústia?” (Freud, 1909/2013, p.330).
Assim, não há intervenção psicanalítica válida e também não se colocam as condições
de investigar a dinâmica psíquica em funcionamento. A transferência é o espaço privilegiado
para que ambas as coisas aconteçam de forma rigorosa, pois é nesse espaço que o objeto
científico da psicanálise – o inconsciente – se manifesta de forma mais vívida para o
psicanalista.
A transferência cria uma zona intermediária entre a doença e a vida,
através da qual se efetua a transição de uma para a outra. O novo
estado [transferência] assumiu todas as características da doença, mas
representa uma enfermidade artificial, em toda parte acessível à nossa
interferência. Ao mesmo tempo, é uma parcela da vida real, tornada
possível por condições particularmente favoráveis, porém, e tendo
uma natureza provisória” (Freud, 1914/2010).
Considerações finais
Em Contribuições à História do Movimento Psicanalítico (1914/2012), Freud
construiu uma narrativa acerca da trajetória da Psicanálise e avaliou algumas teorias que, a
seu ver, não deveriam ser reconhecidas como teorias psicanalíticas. A partir daquele texto, o
presente artigo se propôs a compreender questões metodológicas e o debate epistemológico
em psicanálise, mostrando como esses dois elementos marcam a história do campo.
Considera-se que Freud deu início a um campo teórico que impõe, até os dias atuais, a
necessidade de se deparar com questões como essas. Pelo objeto em torno do qual giram as
teorizações psicanalíticas, é preciso manter vivo o debate epistemológico, pois somente a
partir disso a história do movimento psicanalítico pode seguir com suas ramificações se
precavendo em relação ao risco de constituir uma visão de mundo.
Referências Bibliográficas
Breuer, J., & Freud, S. (2016) Estudos sobre a Histeria. (L. Barreto, Trad.). In P. C. L. de
Souza (Ed.). Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 2, pp.13-427). São Paulo:
Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1895).
Checchia, M., Torres, R., & Hoffmann, W. (Orgs.) (2015) Os primeiros psicanalistas: Atas
da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908. (M. M. M. Silva, Trad.). São Paulo:
Scriptorium. (Trabalho original publicado em 2008).
Jones, E. (1989) A vida e a obra de Sigmund Freud (Vol. 1). (J. C. Guimarães, Trad.). Rio de
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Kuhn, T. S. (2013) A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva. (Trabalho
original publicado em 1962).
Mezan, R. (2006) Freud: a trama dos conceitos (2ª reimp. da 4ª ed.). São Paulo: Perspectiva.
(Trabalho original publicado em 1981).