I. O termo estranho, a princípio, relaciona-se ao que é
assustador, capaz de provocar medo, desconforto e inquietação.
Entretanto, as sensibilidades das pessoas variam bastante
quanto à percepção e classificação de algo como estranho, sejam outras pessoas, objetos diversos, sensações e situações.
Assim, ainda que a opinião inicial que se tenha sobre isso
aponte para o que é desconhecido e, por isso, capaz de gerar receios e reservas, é bom destacar que nem tudo o que é novo dá vez a essa impressão.
A palavra alemã "heimlich" é ambígua, pois tanto significa
familiar e agradável como o que é oculto. O termo "unheimlich", por sua vez, é usado como o contrário do primeiro par de significados.
Interessante destacar, ainda, que Schelling entendia como
"unheimlich" tudo o que, devendo ser secreto, acabou vindo à luz.
II. A estranheza diz respeito também a incertezas quanto
àquilo que a despertou, não se cuidando meramente de teor intelectual. Como se trata, então, de algo sobre o que não se tem um entendimento ou explicação claros, o peculiar efeito emocional provindo do diferente é descrito como estranheza.
No conto "O Homem de Areia", Hoffmann descreve o pavor
que acompanha um personagem ao longo de sua vida quanto a ter os olhos arrancados. Igualmente, em "Édipo Rei", o protagonista provoca um autocegamento, tanto como meio de punição como enquanto forma simbólica de não querer enxergar a sua terrível e angustiante realidade. O ato também representa o castigo da castração, implicando um corte em face da realidade objetiva.
O medo da castração, que acompanha o sujeito desde a
infância, evoca sentimentos de estranheza, vez que se encontram no âmbito do ics, e, por isso, não sujeitos a racionalizações.
Quando um sujeito se identifica de forma mais intensa com
outra pessoa, isso ocasiona uma confusão entre o eu do sujeito - self - e o do outro, dando a impressão de que o seu “eu” foi substituído, acarretando a sensação de estranheza. O outro é percebido como um duplo (duplicação de si) e o eu como dividido. Em se deparando com aspectos, características ou vicissitudes similares, processa-se a repetição da impressão.
Otto Rank sustentava q o duplo surgia como uma forma de
segurança contra a destruição do ego. Estaria ligado ao narcisismo primário, ao amor próprio típico da criança e da primitividade humana. Uma vez superada essa etapa, o duplo tende a inverter seu aspecto, ou seja, depois de ter surgido como uma garantia de imortalidade (alma como duplo do corpo), o duplo transforma-se num estranho anunciador da morte, ou seja, de algo que gera abalo por, de certa forma, colocar em risco a existência.
Mesmo com o passar do narcisismo primário, o duplo não
desaparece enquanto possibilidade psíquica do sujeito. Desse jeito, no desenvolvimento do ego, uma parte deste (neste momento da teoria psicanalítica denominado como duplo), pode se voltar contra a outra da qual se separou, atuando como censor e crítico do eu (self). Essa atividade mental tende a se isolar, como uma permanente dissociação, com o que passa a ter o ego como seu objeto, sobre o qual exerce vigilância.
O duplo, porém, não se restringe à vigilância, crítica e
censura à parte do eu da qual se separou, agregando outros materiais, consistentes em obrigações descumpridas ou sob as quais não se obteve êxito em concretizar, além de elementos tipicamente imaginários aos quais passa a se apegar, como a de deter vontade livre (e soberana).
Tendo o duplo rejeitado aspectos do ego, projeta-os
porquanto não os reconhece, tendo-os por estranhos a si. Assim, passa a identificá-los apenas nos objetos. À sensação de estranheza liga-se a de desamparo, já que evoca a vulnerabilidade natural que evita aceitar em si mesma.
Não obstante a estranheza implicar uma postura inicial de
repulsa, ela pode envolver o sujeito num ciclo de repetição que o faça tangenciar o que repele, situação que o pode levar a atribuir algum significado oculto a tais ocorrências. Aliás, e curiosamente, há sempre algo de familiar no que causa estranheza.
A compulsão à repetição advém de processos ics, estando
ligada à força da pulsionalidade que prevalece sobre o princípio do prazer, fato que colabora ainda mais para a inquietante sensação de estranhamento.
Neuróticos obsessivos visam a conferir significados a tudo na
vida, inclusive ao acaso e a coincidências, o que não aceitam, já que implicaria, se admitido, o reconhecimento da insuficiência de tudo organizar e controlar. Essa disposição psíquica cria-lhes a ideia de que possuiriam uma espécie de poder do pressentimento e da capacidade de influenciar o que se lhes acontece, assim garantindo a impressão de que a força da própria vontade bastaria para alcançarem os seus propósitos e desejos.
À crença de se estar dotado da capacidade de pressentir o
que irá acontecer, realizando conexões de variadas ordens para sustentá-la, é acrescida a superstição do mau-olhado, que consiste no medo de um mal que supostamente possa ser cometido por outrem ao sujeito tão somente pela via do olhar. Os aspectos culturais que dão vez a essa crença dizem respeito ao receio à pretensa inveja do outro à pessoa que tem essa perspectiva. Além do elemento cultural, há toda uma disposição psíquica a isso favorável, a qual advém da projeção no outro da inveja que a própria pessoa sente, mas que não admite. Desse modo, passa-se a temer o mal que o externo pode ocasionar, do que sinais variados passam a ser interpretados nesse sentido.
Ora, o medo projetado no prejuízo que o outro seria capaz
de realizar sobre o sujeito é efeito da onipotência do pensamento, ou seja, de atribuir ao outro um poder oculto, que é justamente decorrente da percepção animista do mundo, onde a supervalorização narcísica baseava-se na crença de que os pensamentos das pessoas seriam capazes de atuar diretamente sobre outros indivíduos e o seu entorno. Esse pensamento mágico cuida-se de uma negação da realidade objetiva em face de suas muitas complexidades e elementos furtuitos, conferindo ao crente explicações mais simples e ideias de controle mais robustas sobre as circunstâncias. Assim, os resíduos animistas ainda manifestos na sociedade e incrustados no psiquismo humano faz com que os sujeitos percebam a realidade com estranheza, tendo por efeito a simplificação tal como povos de eras mais remotas procediam.
Se toda pulsão reprimida dá ocasião a estados de
ansiedade, é lícito afirmar que esse material recalcado, de algum modo, e mesmo que parcialmente, ao conseguir escapar da repressão a que submetido, proporciona medo e estranheza inexplicáveis, ainda que, originariamente, tenha sido familiar ao sujeito, isto é, o estranho não é nada novo ou alheio ao ego, já que antes se estabelecera no aparelho psíquico, tendo apenas e depois sido alienado pela repressão (o oculto que veio à luz, na definição de Schelling).
A ideia da morte é um exemplo disso. Repudiada por muitas
culturas, embora seja conhecida, não é facilmente reconhecida, já que a angústia a ela relacionada promove a repressão da ideia e, consequentemente, do seu afeto angustiante. Dessa feita, a crença desenvolvida de continuidade da vida no pós-morte visa a abafar as incertezas que se tem sobre isso e, assim, afastar a morte da consciência o máximo possível. No entanto, perdura o medo correlato, o qual se manifesta disfarçadamente (por deslocamento e/ou condensação) em várias circunstâncias, dentre os quais se destaca aqui a estranheza.
Em resumo: animismo, pensamento mágico e onipotente,
morte, complexo de castração e repetição involuntária são fatores que geram a sensação de estranheza. Exemplifica-se com circunstâncias relativas a epilepsias e demências: a inquietação diante de situações relativas a esses fenômenos, antes do período das explicações científicas, redundou o estabelecimento de crenças que sustentavam a repulsa a pessoas que os manifestavam. Ora, o medo frente ao desconhecido e inexplicável demandou o surgimento tanto de posturas defensivas quanto hostis em relação a tais sujeitos, vistos por séculos como endemoniados, ou seja, o diferente é tido por estranho e assim visto como um mal em potencial, além de uma ameaça a ser repelida.
Nas práticas religiosas, místicas ou mágicas, perspectivas
mais infantilizadas e arcaicas costumam dominar a mente de seus membros, dando maior realce e vazão às suas características neuróticas. Com isso, a realidade psíquica (interna) e a realidade objetiva (externa) perdem, ainda que momentaneamente, os seus contornos fronteiriços, conferindo à onipotência dos pensamentos uma ampla gama de articulações, bem como variadas e inusitadas conexões de sentido, alterando-se até mesmo a percepção dos sujeitos nisso envolvidos.
Por fim, é relevante apresentar outra hipótese psicanalítica
sobre o porquê de o estranho ocultar algo familiar, o que é associado ao fato de uma pessoa se encontrar num lugar em que nunca esteve, mas com a sensação de já ter estado lá, sobre o que é possível fazer uma ligação com a sexualidade humana. A saída do útero materno costuma se dar naturalmente pela via vaginal; antes, porém, a vida intrauterina corresponderia ao “paraíso perdido”, onde os desejos do feto eram atendidos de pronto, algo que vai deixando de ocorrer fora desse contexto. Com o desejo sexual aflorado genitalmente mais tarde, dentro de uma relação heterossexual, o homem também se sente movido pelo impulso inconsciente de entrar novamente em seu lar inicial (ambiente familiar) pela via da penetração vaginal. Assim, a inquietante sensação do “déjà-vu” pode representar esse anseio proeminente no humano a retornar ao seu conhecido, mas oculto, estado primário.
III. Sensações estranhas advêm de vários fatores, não se
restringindo àqueles acima realçados. Entretanto, o que é experimentado como estranho encontra-se sempre condicionado a algo familiar que foi reprimido. Por exemplo, e tomando por parâmetro a onipotência dos pensamentos, é bom lembrar que, uma vez que já se teve crenças passadas dessa natureza, e ainda que atualmente elas não mais se façam presentes, resquícos das mesmas podem influenciar perspectivas e posturas hodiernas sobre determinados aspectos do viver. Assim, se condições favoráveis se apresentarem, elas podem ressurgir e se impor sobre o psiquismo do sujeito. E mesmo que tenham sido familiares nalguns períodos passados, elas não ficam isentas do estranhamento ante as modificações posteriores pelas quais a pessoa passou, ainda que o teste da realidade se ache suspenso.
Quando o estranho se origina de complexos infantis, não é
a realidade material que importa, mas a realidade psíquica. Ao operar algum retorno do conteúdo ideativo que fora reprimido, a crença na realidade desse conteúdo é mantida, o que é diferente do caso anterior, onde dúvidas sobre a veracidade do conteúdo coexistem com as crenças. Isso se dá porque certas novas impressões fazem reviver complexos infantis reprimidos, o que é experimentado como algo estranho. Ressalva-se, entretanto, que ambas as situações abordadas não são facilmente distinguíveis, já que crenças primitivas guardam relação próxima com complexos infantis. Obras ficcionais que lidam com realidade fantástica tendem a não causar estranhamento pelo fato de que aqueles que têm contato com as mesmas compreendem o seu caráter, do que apresentam uma disposição para ingressar nesse universo mágico sem espanto ou repulsa ao diferente. Não obstante, se o ambiente retratado é da realidade objetiva, elementos sobrenaturais ou fenômenos que vão de encontro ao que é lógico e conhecido provocam estranheza e inquietação, causando impressões de repúdio, insatisfação e até mesmo certo rancor.
Portanto, apesar das dificuldades em identificar a categoria do
estranho com a qual se esteja lidando, é de bom alvitre lembrar que aquele proveniente de formas de pensamento que foram superadas se distinguir daquela outra advinda de complexos reprimidos pelo do fato de que esta última se apresenta de modo mais resistente tanto na experiência real quanto na ficção, ao passo que, a primeira, perde esse caráter diante de um cenário artificial e arbitrário proposto pela ficção.
O ficcionista (das artes ou de outras e diversificados aspectos
da vida) costuma exercer um poder peculiarmente diretivo sobre o estado de espírito de determinadas pessoas, guiando a corrente de suas emoções a ponto de represá-las numa direção e fazê-las fluir em outra a fim de obter o efeito pretendido. Desse jeito, a articulação do estranho realiza-se de tal modo que a pessoa é levada a corriqueiras sensações de inquietude, inclusive, e momentaneamente, podendo perder sua consciência. Isso porque há uma desarticulação da modalidade de pensamento habitual e também dos afetos diante do inesperado, e até mesmo fantástico, induzindo a pessoa a outro patamar de percepção e respostas.