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O ESTRANHO, 1919

I. O termo estranho, a princípio, relaciona-se ao que é


assustador, capaz de provocar medo, desconforto e inquietação.

Entretanto, as sensibilidades das pessoas variam bastante


quanto à percepção e classificação de algo como estranho, sejam
outras pessoas, objetos diversos, sensações e situações.

Assim, ainda que a opinião inicial que se tenha sobre isso


aponte para o que é desconhecido e, por isso, capaz de gerar
receios e reservas, é bom destacar que nem tudo o que é novo dá
vez a essa impressão.

A palavra alemã "heimlich" é ambígua, pois tanto significa


familiar e agradável como o que é oculto. O termo "unheimlich",
por sua vez, é usado como o contrário do primeiro par de
significados.

Interessante destacar, ainda, que Schelling entendia como


"unheimlich" tudo o que, devendo ser secreto, acabou vindo à luz.

II. A estranheza diz respeito também a incertezas quanto


àquilo que a despertou, não se cuidando meramente de teor
intelectual. Como se trata, então, de algo sobre o que não se tem
um entendimento ou explicação claros, o peculiar efeito emocional
provindo do diferente é descrito como estranheza.

No conto "O Homem de Areia", Hoffmann descreve o pavor


que acompanha um personagem ao longo de sua vida quanto a ter
os olhos arrancados. Igualmente, em "Édipo Rei", o protagonista
provoca um autocegamento, tanto como meio de punição como
enquanto forma simbólica de não querer enxergar a sua terrível e
angustiante realidade. O ato também representa o castigo da
castração, implicando um corte em face da realidade objetiva.

O medo da castração, que acompanha o sujeito desde a


infância, evoca sentimentos de estranheza, vez que se encontram
no âmbito do ics, e, por isso, não sujeitos a racionalizações.

Quando um sujeito se identifica de forma mais intensa com


outra pessoa, isso ocasiona uma confusão entre o eu do sujeito -
self - e o do outro, dando a impressão de que o seu “eu” foi
substituído, acarretando a sensação de estranheza. O outro é
percebido como um duplo (duplicação de si) e o eu como dividido.
Em se deparando com aspectos, características ou vicissitudes
similares, processa-se a repetição da impressão.

Otto Rank sustentava q o duplo surgia como uma forma de


segurança contra a destruição do ego. Estaria ligado ao
narcisismo primário, ao amor próprio típico da criança e da
primitividade humana. Uma vez superada essa etapa, o duplo
tende a inverter seu aspecto, ou seja, depois de ter surgido como
uma garantia de imortalidade (alma como duplo do corpo), o duplo
transforma-se num estranho anunciador da morte, ou seja, de algo
que gera abalo por, de certa forma, colocar em risco a existência.

Mesmo com o passar do narcisismo primário, o duplo não


desaparece enquanto possibilidade psíquica do sujeito. Desse jeito,
no desenvolvimento do ego, uma parte deste (neste momento da
teoria psicanalítica denominado como duplo), pode se voltar contra
a outra da qual se separou, atuando como censor e crítico do eu
(self). Essa atividade mental tende a se isolar, como uma
permanente dissociação, com o que passa a ter o ego como seu
objeto, sobre o qual exerce vigilância.

O duplo, porém, não se restringe à vigilância, crítica e


censura à parte do eu da qual se separou, agregando outros
materiais, consistentes em obrigações descumpridas ou sob as
quais não se obteve êxito em concretizar, além de elementos
tipicamente imaginários aos quais passa a se apegar, como a de
deter vontade livre (e soberana).

Tendo o duplo rejeitado aspectos do ego, projeta-os


porquanto não os reconhece, tendo-os por estranhos a si. Assim,
passa a identificá-los apenas nos objetos. À sensação de
estranheza liga-se a de desamparo, já que evoca a
vulnerabilidade natural que evita aceitar em si mesma.

Não obstante a estranheza implicar uma postura inicial de


repulsa, ela pode envolver o sujeito num ciclo de repetição que o
faça tangenciar o que repele, situação que o pode levar a atribuir
algum significado oculto a tais ocorrências. Aliás, e curiosamente,
há sempre algo de familiar no que causa estranheza.

A compulsão à repetição advém de processos ics, estando


ligada à força da pulsionalidade que prevalece sobre o princípio
do prazer, fato que colabora ainda mais para a inquietante
sensação de estranhamento.

Neuróticos obsessivos visam a conferir significados a tudo na


vida, inclusive ao acaso e a coincidências, o que não aceitam, já
que implicaria, se admitido, o reconhecimento da insuficiência de
tudo organizar e controlar. Essa disposição psíquica cria-lhes a
ideia de que possuiriam uma espécie de poder do pressentimento
e da capacidade de influenciar o que se lhes acontece, assim
garantindo a impressão de que a força da própria vontade bastaria
para alcançarem os seus propósitos e desejos.

À crença de se estar dotado da capacidade de pressentir o


que irá acontecer, realizando conexões de variadas ordens para
sustentá-la, é acrescida a superstição do mau-olhado, que
consiste no medo de um mal que supostamente possa ser
cometido por outrem ao sujeito tão somente pela via do olhar. Os
aspectos culturais que dão vez a essa crença dizem respeito ao
receio à pretensa inveja do outro à pessoa que tem essa
perspectiva. Além do elemento cultural, há toda uma disposição
psíquica a isso favorável, a qual advém da projeção no outro da
inveja que a própria pessoa sente, mas que não admite. Desse
modo, passa-se a temer o mal que o externo pode ocasionar, do
que sinais variados passam a ser interpretados nesse sentido.

Ora, o medo projetado no prejuízo que o outro seria capaz


de realizar sobre o sujeito é efeito da onipotência do pensamento,
ou seja, de atribuir ao outro um poder oculto, que é justamente
decorrente da percepção animista do mundo, onde a
supervalorização narcísica baseava-se na crença de que os
pensamentos das pessoas seriam capazes de atuar diretamente
sobre outros indivíduos e o seu entorno. Esse pensamento mágico
cuida-se de uma negação da realidade objetiva em face de suas
muitas complexidades e elementos furtuitos, conferindo ao crente
explicações mais simples e ideias de controle mais robustas sobre
as circunstâncias. Assim, os resíduos animistas ainda manifestos
na sociedade e incrustados no psiquismo humano faz com que os
sujeitos percebam a realidade com estranheza, tendo por efeito a
simplificação tal como povos de eras mais remotas procediam.

Se toda pulsão reprimida dá ocasião a estados de


ansiedade, é lícito afirmar que esse material recalcado, de algum
modo, e mesmo que parcialmente, ao conseguir escapar da
repressão a que submetido, proporciona medo e estranheza
inexplicáveis, ainda que, originariamente, tenha sido familiar ao
sujeito, isto é, o estranho não é nada novo ou alheio ao ego, já que
antes se estabelecera no aparelho psíquico, tendo apenas e depois
sido alienado pela repressão (o oculto que veio à luz, na definição
de Schelling).

A ideia da morte é um exemplo disso. Repudiada por muitas


culturas, embora seja conhecida, não é facilmente reconhecida, já
que a angústia a ela relacionada promove a repressão da ideia e,
consequentemente, do seu afeto angustiante. Dessa feita, a crença
desenvolvida de continuidade da vida no pós-morte visa a abafar as
incertezas que se tem sobre isso e, assim, afastar a morte da
consciência o máximo possível. No entanto, perdura o medo
correlato, o qual se manifesta disfarçadamente (por deslocamento
e/ou condensação) em várias circunstâncias, dentre os quais se
destaca aqui a estranheza.

Em resumo: animismo, pensamento mágico e onipotente,


morte, complexo de castração e repetição involuntária são fatores
que geram a sensação de estranheza. Exemplifica-se com
circunstâncias relativas a epilepsias e demências: a inquietação
diante de situações relativas a esses fenômenos, antes do período
das explicações científicas, redundou o estabelecimento de
crenças que sustentavam a repulsa a pessoas que os
manifestavam. Ora, o medo frente ao desconhecido e inexplicável
demandou o surgimento tanto de posturas defensivas quanto
hostis em relação a tais sujeitos, vistos por séculos como
endemoniados, ou seja, o diferente é tido por estranho e assim
visto como um mal em potencial, além de uma ameaça a ser
repelida.

Nas práticas religiosas, místicas ou mágicas, perspectivas


mais infantilizadas e arcaicas costumam dominar a mente de seus
membros, dando maior realce e vazão às suas características
neuróticas. Com isso, a realidade psíquica (interna) e a realidade
objetiva (externa) perdem, ainda que momentaneamente, os seus
contornos fronteiriços, conferindo à onipotência dos pensamentos
uma ampla gama de articulações, bem como variadas e inusitadas
conexões de sentido, alterando-se até mesmo a percepção dos
sujeitos nisso envolvidos.

Por fim, é relevante apresentar outra hipótese psicanalítica


sobre o porquê de o estranho ocultar algo familiar, o que é
associado ao fato de uma pessoa se encontrar num lugar em que
nunca esteve, mas com a sensação de já ter estado lá, sobre o que
é possível fazer uma ligação com a sexualidade humana. A saída
do útero materno costuma se dar naturalmente pela via vaginal;
antes, porém, a vida intrauterina corresponderia ao “paraíso
perdido”, onde os desejos do feto eram atendidos de pronto, algo
que vai deixando de ocorrer fora desse contexto. Com o desejo
sexual aflorado genitalmente mais tarde, dentro de uma relação
heterossexual, o homem também se sente movido pelo impulso
inconsciente de entrar novamente em seu lar inicial (ambiente
familiar) pela via da penetração vaginal. Assim, a inquietante
sensação do “déjà-vu” pode representar esse anseio proeminente
no humano a retornar ao seu conhecido, mas oculto, estado
primário.

III. Sensações estranhas advêm de vários fatores, não se


restringindo àqueles acima realçados. Entretanto, o que é
experimentado como estranho encontra-se sempre condicionado
a algo familiar que foi reprimido. Por exemplo, e tomando por
parâmetro a onipotência dos pensamentos, é bom lembrar que,
uma vez que já se teve crenças passadas dessa natureza, e ainda
que atualmente elas não mais se façam presentes, resquícos das
mesmas podem influenciar perspectivas e posturas hodiernas
sobre determinados aspectos do viver. Assim, se condições
favoráveis se apresentarem, elas podem ressurgir e se impor sobre
o psiquismo do sujeito. E mesmo que tenham sido familiares
nalguns períodos passados, elas não ficam isentas do
estranhamento ante as modificações posteriores pelas quais a
pessoa passou, ainda que o teste da realidade se ache suspenso.

Quando o estranho se origina de complexos infantis, não é


a realidade material que importa, mas a realidade psíquica. Ao
operar algum retorno do conteúdo ideativo que fora reprimido, a
crença na realidade desse conteúdo é mantida, o que é diferente
do caso anterior, onde dúvidas sobre a veracidade do conteúdo
coexistem com as crenças. Isso se dá porque certas novas
impressões fazem reviver complexos infantis reprimidos, o que é
experimentado como algo estranho. Ressalva-se, entretanto, que
ambas as situações abordadas não são facilmente distinguíveis, já
que crenças primitivas guardam relação próxima com complexos
infantis.
Obras ficcionais que lidam com realidade fantástica tendem a
não causar estranhamento pelo fato de que aqueles que têm
contato com as mesmas compreendem o seu caráter, do que
apresentam uma disposição para ingressar nesse universo mágico
sem espanto ou repulsa ao diferente. Não obstante, se o ambiente
retratado é da realidade objetiva, elementos sobrenaturais ou
fenômenos que vão de encontro ao que é lógico e conhecido
provocam estranheza e inquietação, causando impressões de
repúdio, insatisfação e até mesmo certo rancor.

Portanto, apesar das dificuldades em identificar a categoria do


estranho com a qual se esteja lidando, é de bom alvitre lembrar
que aquele proveniente de formas de pensamento que foram
superadas se distinguir daquela outra advinda de complexos
reprimidos pelo do fato de que esta última se apresenta de modo
mais resistente tanto na experiência real quanto na ficção, ao passo
que, a primeira, perde esse caráter diante de um cenário artificial e
arbitrário proposto pela ficção.

O ficcionista (das artes ou de outras e diversificados aspectos


da vida) costuma exercer um poder peculiarmente diretivo sobre o
estado de espírito de determinadas pessoas, guiando a corrente de
suas emoções a ponto de represá-las numa direção e fazê-las fluir
em outra a fim de obter o efeito pretendido. Desse jeito, a
articulação do estranho realiza-se de tal modo que a pessoa é
levada a corriqueiras sensações de inquietude, inclusive, e
momentaneamente, podendo perder sua consciência. Isso porque
há uma desarticulação da modalidade de pensamento habitual e
também dos afetos diante do inesperado, e até mesmo fantástico,
induzindo a pessoa a outro patamar de percepção e respostas.

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