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Delírio e crença
“Os manuais de psiquiatria concordam, de modo geral, que não existe definição
satisfatória e unificada para a noção de delírio, embora nossa sensibilidade ordinária
possa muitas vezes identificá-lo a partir de alguns traços.”
“Todos podem se mostrar, de alguma forma e em um determinado momento, ilógico,
incorrigíveis e ser defendidos com tenacidade.”
“Os psiquiatras foram levados a concordar que critérios de verdade ou erro não são os
mais indicados para qualificar um delírio. De fato, não saberíamos onde situar o ponto
exterior desde o qual poderíamos decidir sobre a racionalidade de um sistema de
pensamentos.”
“Os manuais de psiquiatria também argumentam que entre o universo das crenças e o
delírio, em sua característica patológica, seria preciso enfatizar mais o grau de adesão
subjetiva a uma ideia do que o fato de essa ideia exceder ou não a uma norma social.”
“A ilusão se distingue de um delírio por ser mais susceptível a uma contraprova ou
argumentação, aceitando a prova de realidade.”
“O critério da adesão subjetiva da crença nos deixa em apuros, entretanto, quando
buscamos distinguir um delírio de uma superstição, na medida em que esta última se
caracteriza igualmente por uma forte adesão subjetiva a um determinado conteúdo
proposicional, como no pensamento ‘se eu passar por debaixo dessa escada, sobrevirá
algo de mal’.”
“Mas, se uma superstição se caracteriza por uma forte adesão do sujeito a uma crença
que pode parecer absurda para outra pessoa, falta à superstição o fundamento de saber
que encontramos no delírio, na medida em que este se apresenta como uma
interpretação constitutiva da própria realidade ou de parte dela. Além disso, podemos
argumentar que uma superstição permanece restrita a determinados encadeamentos de
ideias que são compartilhados, contrariamente ao delírio, que se apresenta, de um
modo geral, como uma crença particular que pode chegar a reconfigurar a realidade
como um todo.”
“O assentimento designa, enfim, uma precipitação do sujeito em direção a uma
afirmação tomada por verdadeira, sem que se faça necessária uma argumentação
lógica, tendo afinidade com um ato da vontade que impele o sujeito a aderir à
proposição em causa. Dito de outra forma, o que conta na problemática aberta pela
questão do assentimento a um conteúdo qualquer é mais o objeto que se apresenta no
campo perceptivo que designa a realidade para um sujeito do que o seu conteúdo
representativo.”
“O que é preciso ressaltar, tendo em vista o tópico do delírio e dos juízos de realidade, é
o fato da presença do objeto da crença poder condicionar e aprisionar em torno de si o
julgamento da verdade ou da falsidade de uma representação da realidade, interditando
dessa forma o próprio juízo de realidade e a função crítica a ele associado. Por isso, o
pensamento lógico, assim como a filosofia transcendental kantiana, procurou desde
sempre separar o objeto dito “patológico” de toda construção racional da realidade.”
“Todo estudo que vise formular algo sobre o delírio deve partir, portanto, da realidade
psíquica que caracteriza a nossa vida de sujeito, e não da verdade que se aplicaria a
uma proposição sobre a realidade.”
“[...] um delírio é uma fala fora do discurso, na medida em que não se apoia em um laço
social – embora possamos testemunhar com frequência formações sociais que tomam
seu fundamento de um delírio – e que circula em torno de um objeto que fascina,
aterroriza, captura o próprio sujeito da representação.”
“No fundo, dirá Freud, o que caracteriza a psicose é a Unglaube, a descrença que se
dirige ao discurso comum devido ao esvaziamento de gozo do qual depende a
organização do sentido compartilhado socialmente, uma vez que o delirante se vê diante
de um objeto que inunda o seu campo perceptivo, revelando-se a partir de signos que
estão apagados ou neutralizados por esse discurso comum.”
“A palavra é a coisa, ela se coisifica sob determinadas condições subjetivas. Na
ausência dessa distância representativa, o delírio coloca em jogo a presença real desse
objeto do qual o psicótico não se separou – e que na neurose se liga a uma falta
fundamental, a falta do objeto do desejo.”
A interpretação delirante