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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PSICOPATOLOGIA GERAL I - TEÓRICA

Docente: Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira


Discente: Mauricio Vieira Gomes da Silva – 2016055680

Fichamento do capítulo Semiologia do pensamento e da linguagem: do juízo de


realidade ao delírio universal

Delírio e crença

 “Os manuais de psiquiatria concordam, de modo geral, que não existe definição
satisfatória e unificada para a noção de delírio, embora nossa sensibilidade ordinária
possa muitas vezes identificá-lo a partir de alguns traços.”
 “Todos podem se mostrar, de alguma forma e em um determinado momento, ilógico,
incorrigíveis e ser defendidos com tenacidade.”
 “Os psiquiatras foram levados a concordar que critérios de verdade ou erro não são os
mais indicados para qualificar um delírio. De fato, não saberíamos onde situar o ponto
exterior desde o qual poderíamos decidir sobre a racionalidade de um sistema de
pensamentos.”
 “Os manuais de psiquiatria também argumentam que entre o universo das crenças e o
delírio, em sua característica patológica, seria preciso enfatizar mais o grau de adesão
subjetiva a uma ideia do que o fato de essa ideia exceder ou não a uma norma social.”
 “A ilusão se distingue de um delírio por ser mais susceptível a uma contraprova ou
argumentação, aceitando a prova de realidade.”
 “O critério da adesão subjetiva da crença nos deixa em apuros, entretanto, quando
buscamos distinguir um delírio de uma superstição, na medida em que esta última se
caracteriza igualmente por uma forte adesão subjetiva a um determinado conteúdo
proposicional, como no pensamento ‘se eu passar por debaixo dessa escada, sobrevirá
algo de mal’.”
 “Mas, se uma superstição se caracteriza por uma forte adesão do sujeito a uma crença
que pode parecer absurda para outra pessoa, falta à superstição o fundamento de saber
que encontramos no delírio, na medida em que este se apresenta como uma
interpretação constitutiva da própria realidade ou de parte dela. Além disso, podemos
argumentar que uma superstição permanece restrita a determinados encadeamentos de
ideias que são compartilhados, contrariamente ao delírio, que se apresenta, de um
modo geral, como uma crença particular que pode chegar a reconfigurar a realidade
como um todo.”
 “O assentimento designa, enfim, uma precipitação do sujeito em direção a uma
afirmação tomada por verdadeira, sem que se faça necessária uma argumentação
lógica, tendo afinidade com um ato da vontade que impele o sujeito a aderir à
proposição em causa. Dito de outra forma, o que conta na problemática aberta pela
questão do assentimento a um conteúdo qualquer é mais o objeto que se apresenta no
campo perceptivo que designa a realidade para um sujeito do que o seu conteúdo
representativo.”
 “O que é preciso ressaltar, tendo em vista o tópico do delírio e dos juízos de realidade, é
o fato da presença do objeto da crença poder condicionar e aprisionar em torno de si o
julgamento da verdade ou da falsidade de uma representação da realidade, interditando
dessa forma o próprio juízo de realidade e a função crítica a ele associado. Por isso, o
pensamento lógico, assim como a filosofia transcendental kantiana, procurou desde
sempre separar o objeto dito “patológico” de toda construção racional da realidade.”
 “Todo estudo que vise formular algo sobre o delírio deve partir, portanto, da realidade
psíquica que caracteriza a nossa vida de sujeito, e não da verdade que se aplicaria a
uma proposição sobre a realidade.”
 “[...] um delírio é uma fala fora do discurso, na medida em que não se apoia em um laço
social – embora possamos testemunhar com frequência formações sociais que tomam
seu fundamento de um delírio – e que circula em torno de um objeto que fascina,
aterroriza, captura o próprio sujeito da representação.”
 “No fundo, dirá Freud, o que caracteriza a psicose é a Unglaube, a descrença que se
dirige ao discurso comum devido ao esvaziamento de gozo do qual depende a
organização do sentido compartilhado socialmente, uma vez que o delirante se vê diante
de um objeto que inunda o seu campo perceptivo, revelando-se a partir de signos que
estão apagados ou neutralizados por esse discurso comum.”
 “A palavra é a coisa, ela se coisifica sob determinadas condições subjetivas. Na
ausência dessa distância representativa, o delírio coloca em jogo a presença real desse
objeto do qual o psicótico não se separou – e que na neurose se liga a uma falta
fundamental, a falta do objeto do desejo.”

A vivência delirante primária

 “[...] dizemos que o discurso da psicopatologia se apresenta cativo de um preconceito


irrefletido do mundo na concepção do fenômeno perceptivo. Alguns autores, entretanto,
entre os quais podemos citar Jaspers e Conrad, confrontaram essa ideia geral com o
argumento de que o fator primário da loucura é, desde o início, o enigma da significação
da realidade. É a esse enigma, expresso pela presença inquietante de um significante
fora da cadeia discursiva, que a interpretação delirante visa responder na tentativa de
religá-lo a uma cadeia de sentido privativa do sujeito na psicose.”
 “A evolução de um delírio seria, assim, passível de ser elucidada pelo acompanhamento
de sua evolução desde seus elementos mínimos e primeiros, os seus ‘fenômenos
elementares’ até a concatenação desses elementos num conjunto articulado de
relações, a ‘elaboração delirante’.”
 “Quanto a Lacan, ele considera que o delírio tem a mesma estrutura que se manifesta
no fenômeno elementar, tal como a estrutura de uma folha reproduz a estrutura da
árvore da qual ela faz parte.”
 “Podemos atribuir a esse pensamento todas as características de um fenômeno
elementar: a passividade que caracteriza a recepção da mensagem pelo sujeito; o fato
de ele não se reconhecer como seu emissor; o caráter intrusivo e espontâneo do
pensamento; o enigma de sua apresentação; a indignação que o pensamento provoca,
tal como poderíamos esperar de uma injúria; o esforço de réplica, que o obriga a
responder a essa injunção.”
 “O delírio de Schreber seria, assim, uma elaboração de saber em torno do fenômeno
elementar da psicose, não ao modo de uma superestrutura, mas como um
desdobramento do que se apresenta, desde o início, como uma significação imposta.”
 “Na visão jasperiana, por sua vez, o delírio seria uma transformação da consciência
global ou parcial da realidade por um falso juízo.”
 “Um delírio autêntico seria uma forma de juízo que escapa à compreensão, evocando-se
como hipótese para essa descontinuidade a ocorrência de um processo orgânico
postulado pela psicopatologia jasperiana.”
 “As vivências delirantes primárias são assim análogas a visões de significação. Do ponto
de vista afetivo, tal situação é vivida como insuportável; e diante desse perigo
indeterminado e inominável, toda significação produz um alívio.”
 “A vivência delirante primária remete, assim, ao colapso da realidade referida ao
discurso estabelecido pela emergência de um signo de gozo que não encontra lugar na
cadeia discursiva.”

A interpretação delirante

 “É com base nessa vivência delirante primária e em sua incompreensibilidade que


Jaspers distinguiu as ideias delirantes autênticas das ideias deliroides. As ideias
deliroides surgem de modo compreensível de outro processo psíquico e em
continuidade com estes, remontando a determinadas vivências, temores, desejos ou
impulsos. É possível então rastrear e remontar a origem psicológica do transtorno, em
geral transitório, do qual decorre a ideia delirante. Nas ideias delirantes autênticas, por
sua vez, é justamente por faltar esse elo da compreensão que o sujeito é levado a
construir um nexo que ligue os elementos primários às significações posteriores”
 “Para Lacan, se não há nenhuma psicogênese que possa traçar uma linha de
continuidade ou restabelecer uma cadeia de sentido entre o que existia antes e depois
da vivência delirante, é porque a própria experiência já se manifesta como ruptura com a
cadeia de sentido suportada pelo discurso.”
 “Quanto à interpretação delirante, ela pode estar mais ou menos incorporada à
personalidade. De um modo geral, os manuais de psiquiatria distinguem as psicoses
delirantes crônicas e agudas. [...] as manifestações agudas das psicoses delirantes se
caracterizam pela ‘eclosão súbita de um delírio transitório geralmente polimorfo em seus
temas e suas expressões’, as psicoses delirantes crônicas se distinguem pela
permanência do delírio, que se incorpora assim à própria personalidade do doente,
podendo se apresentar tanto de forma sistemática, num conjunto de crenças bem-
articuladas e mais próximas da paranoia, quanto de forma caótica e fantasiosa, mais
próximas da esquizofrenia.”
 “Em outras palavras, um delírio é o resultado de processos metafóricos e metonímicos
que mantêm uma relação estrutural com a sua célula fundamental. A prevalência da
metáfora aponta para o que Lacan chamou intuição delirante, descrita como ‘um
fenômeno pleno que tem para o sujeito um caráter submergente, inundante, que o
preenche e estanca o deslizamento da significação.”

Do juízo de realidade ao delírio universal

 ● “O afastamento da realidade em favor da vida de fantasia é considerado, nesse artigo,


a característica mais notável das neuroses, evidenciando que a dominância psíquica do
princípio do prazer se mantém mesmo após o advento do princípio de realidade.”
 “Na verdade, como diz Freud, o princípio de realidade nada mais é do que uma espécie
de proteção e de adaptação do prazer às condições impostas pela realidade em
detrimento do funcionamento primário do aparelho psíquico. Em linhas gerais, um
processo primário é descrito como a forma mais primitiva de o aparelho psíquico obter
prazer, via de regra através da alucinação, tal como ocorre nos sonhos. O que o advento
do princípio de realidade introduz é a distinção entre o objeto da alucinação e o
surgimento desse mesmo objeto no mundo externo, obrigando então o aparelho
psíquico a se desenvolver no sentido do juízo de realidade.”
 “Em linhas gerais, um processo primário é descrito como a forma mais primitiva de o
aparelho psíquico obter prazer, via de regra através da alucinação, tal como ocorre nos
sonhos. O que o advento do princípio de realidade introduz é a distinção entre o objeto
da alucinação e o surgimento desse mesmo objeto no mundo externo, obrigando então
o aparelho psíquico a se desenvolver no sentido do juízo de realidade.”
 “A fantasia funciona como uma janela que permite o enquadramento da realidade, mas
também como uma tela que filtra o excesso de luz para que a cena da realidade se
projete e seja interpretada pelo sujeito. Em suma, essa extração é também a condição
da função do juízo de realidade. É por meio da extração da fantasia que a atividade do
pensamento poderá julgar se o objeto que se apresenta em seu campo perceptivo
corresponde ou não ao objeto de sua representação fantasmática.”
 “O trabalho delirante visa, portanto, localizar e cifrar esse gozo excessivo através da
elaboração de um saber. Mas isso é feito sem levar em conta o juízo de realidade, cuja
possibilidade é dada justamente pela extração da fantasia. A solução encontrada por
Schreber, a de assumir uma atitude feminina para com Deus, foi a base a partir da qual
se erigiu o delírio e se reduziu essa exigência de gozo.”
 “Quanto à fantasia neurótica, ela funciona como um anteparo diante do real. A visão da
realidade é modelada pela fantasia neurótica e só pode ser corrigida por uma espécie de
atitude crítica do juízo ou por uma verificação objetiva semelhante a fantasia. É essa
possibilidade da transposição da fantasia em um saber que diz respeito à realidade que
faz de todo sujeito um delirante em potencial.”
 “A perda de realidade na psicose seria então equivalente a uma recusa da perda do
objeto, e seu efeito seria a inflação de gozo que se manifesta na realidade delirante.
Devido a isso, o segundo tempo da psicose estaria ligado às tentativas de reconstrução
delirante da realidade da qual o sujeito se afastou, visando religar esse gozo excessivo a
uma cadeia de sentido.”

Alucinação e delírio universal

 “A alucinação é um ponto de partida fundamental na obra de Freud. Dada uma primeira


– e desde então mítica – experiência de satisfação (por exemplo, a saciedade resultante
do primeiro encontro com o seio materno), uma segunda ocorrência psíquica se seguirá
sob a forma de reativação de uma lembrança que, em princípio, reinveste o traço do
objeto que ficou associado às condições em que se deu aquela primeira experiência.
Essa reativação psíquica do objeto é o núcleo da alucinação, matriz que funda a série
permanente das relações do sujeito com os seus objetos substitutivos na busca de
reencontrar a experiência de satisfação primordial.”
 “Em face da impossibilidade de satisfação com o primeiro objeto alucinado, os objetos
substitutivos serão sempre sub-rogados insuficientes dessa primeira experiência. Por
isso a realidade se apresenta de forma essencialmente precária para o sujeito.”
 “Mas quando J.-A. Miller se refere a um delírio generalizado, ele está se referindo a uma
ampliação do delírio não para o universo das coisas do mundo, mas para o universo dos
sujeitos: a ideia da generalização é solidária, por um lado, com a frase de Lacan
segundo a qual “todo mundo é louco, isto é, delirante”, e, por outro, com a ausência de
um referente no campo da linguagem. Delírio universal passa a significar a condição de
todo sujeito ou ser falante, no sentido em que a dependência da linguagem produz
necessariamente uma separação em relação à realidade que se tenta designar por seu
intermédio. Todo sentido dado através da linguagem a alguma coisa se produz num
campo separado da coisa, sem que haja uma instância superior que permita regular a
relação entre o que se diz e aquilo do que se fala.”
 “Dizer que não há discurso que não seja do semblante significa também reconhecer que
todo discurso só permite referir a linguagem à realidade ao colocá-la sob a autoridade
de um significante mestre.”
 “Dessa forma, todos nós, seres falantes, psicóticos ou não, falamos do que não existe,
enquanto giramos em torno do objeto indizível de nosso desejo”.

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