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A contribuição da psicanálise freudiana

para uma nova compreensão da existência,


segundo o pensamento de Paul Ricoeur

Ricardo Jardim Andrade


Obras citadas por siglas *

• De Paul Ricoeur

CI- Le conflit dês interpretations. Essais d’herméneutique. Paris: Seuil, 1969.

EC- “Expliquer et comprendre”, in Revue Philosophique de Louvain, fev. 1977, T. 77,


p. 126-147.

I- De l’interpretation. Essai sur Freud. Paris: Seuil, 1965.

IE- “Funções da hermenêutica” in Interpretação e Ideologia. Rio de Janeiro:


Francisco Alves, 1977, p. 15-59.

SM- Philosophie de la Volonté II: Finitude et culpabilité, 2. La symbolique du mal.


Paris: Aubier-Montaigne, 1960.

• De Sigmund Freud

ACDAS- Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.

AOPR- Atos obsessivos e práticas religiosas.

APP- Para além de princípio do prazer.

ATI- Análise terminável e interminável.

CIP I- Conferências introdutórias sobre psicanálise I – Parapraxias.

CIP II- Conferências introdutórias sobre psicanálise II – Sonhos.

CIP III- Conferências introdutórias sobre psicanálise III – Neuroses.

CLP- Cinco lições de psicanálise.

DCE- A dissolução do complexo de Édipo.

DCP- Uma dificuldade no caminho da psicanálise.

DPFM- Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental.

DVE- Dois verbetes de enciclopédia.

ECD- Escritores criativos e Devaneios.

EI- O ego e o id.

* Consultar a bibliografia (p. 173).


EP- Esboço de psicanálise.

FI- O futuro de uma ilusão.

HMP- A história do movimento psicanalítico.

INC- “Inconsciente”, in Metapsicologia.

IS- A interpretação de sonhos.

IV- “Os instintos e suas vicissitudes”, in Metapsicologia.

LM- “Luto e melancolia”, in Metapsicologia.

MEC- Mal-estar na civilização.

N- A negativa.

NCIP- Novas conferências introdutórias à psicanálise.

ND- As neuroses de defesa.

PG- Por que a guerra?

PGAE- Psicologia de grupo e análise do ego.

PPC- Projeto para uma psicologia científica.

R- “Repressão”, in Metapsicologia.

SF- Sexualidade feminina.

SMTS- “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”, in Metapsicologia.

SNI- Sobre o narcisismo: uma introdução.

TETS- Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

TIEA- As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal.

TT- Totem e tabu.

• Sobre Psicanálise em geral

VP- Laplanche, J e Pontalis, JB. Vocabulário de psicanálise.

IEP- Laplanche, J e Leclaire, S. “L’inconscient: une étude psychanalytique”,


in L’inconscient (VIº Colloque de Bonneval).
Sumário

PRIMEIRA PARTE. O DISCURSO FREUDIANO ............................. 01

Capítulo I. A Psicanálise dos Sonhos ....................................................... 02


1) O sonho realiza um desejo ..........................................................................................03
2) A censura onírica .........................................................................................................07
3) Materiais do sonho ......................................................................................................11
3.1) Restos diurnos ................................................................................................................. 11
3.2) Recordações infantis ....................................................................................................... 11
3.3) Estímulos somáticos ....................................................................................................... 12
4) O trabalho do sonho ............................................................................................................. 13
4.1) A condensação ................................................................................................................ 14
4.2) O deslocamento .............................................................................................................. 16
4.3) A figuração ..................................................................................................................... 17
4.4) A elaboração secundária ................................................................................................. 19
5) O método da livre associação ............................................................................................. 20
6) O simbolismo onírico .......................................................................................................... 24

Capítulo II. A Metapsicologia .................................................................. 27


1) O ponto de vista tópico ....................................................................................................... 29
1.1) O aparelho psíquico ........................................................................................................ 29
1.2) A primeira tópica ............................................................................................................ 36
1.2.1) Sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente ............................................................ 37
1.2.2) A resistência ....................................................................................................................... 39
1.2.3) Pulsão, desejo e recalque.................................................................................................... 43
1.2.4) Recalque originário e recalque secundário ......................................................................... 51
1.2.5) Os destinos do afeto ........................................................................................................... 54
1.2.6) Processos primários e processos secundários ..................................................................... 57
1.3) A segunda tópica............................................................................................................. 58
1.3.1) O id..................................................................................................................................... 59
1.3.2) O ego .................................................................................................................................. 60
1.3.3) O superego ......................................................................................................................... 66
1.3.4) O complexo de édipo ......................................................................................................... 68
2) O ponto de vista econômico ............................................................................................... 76
2.1) Princípio de inércia e princípio de constância ................................................................ 77
2.2) Princípio de prazer e princípio de realidade ................................................................... 81
2.3) “A combinatória dos investimentos” ............................................................................. 86
3) O ponto de vista dinâmico...........................................................................................89
3.1) A primeira classificação das pulsões .............................................................................. 89
Teoria da libido ............................................................................................................................ 92
A fase oral .................................................................................................................................. 101
Fase sádico-anal ......................................................................................................................... 102
Fase fálica ................................................................................................................................... 104
Período de latência ..................................................................................................................... 105
Fase genital ................................................................................................................................. 107
3.2) A teoria do narcisismo .................................................................................................. 110
3.3) A segunda classificação das pulsões ............................................................................. 115
4) Inconsciente e linguagem ..........................................................................................125

Capítulo 3. A Psicanálise da Cultura .................................................... 141


1) Cultura e repressão ....................................................................................................141
2) A introjeção da ordem moral .....................................................................................148
3) A ilusão religiosa .......................................................................................................152
4) O édipo histórico .......................................................................................................159
5) A libertação pela arte.................................................................................................169
Bibliografia............................................................................................... 173
1

PRIMEIRA PARTE
O DISCURSO FREUDIANO

Nesta parte desenvolveremos alguns temas fundamentais da doutrina


freudiana. O nosso intento é fornecer ao leitor, tanto quanto possível, uma visão global
de alguns aspectos do pensamento de S. Freud (1856-1939) que são essenciais para a
compreensão da leitura proposta por P. Ricoeur em De L’Interprétation. Essai sur
Freud (1965). Trataremos, inicialmente, do sonho (I), formação psíquica que articula o
desejo e a linguagem1; em seguida, dos modelos metapsicológicos2 (II), que são
fundamentais para a compreensão do discurso psicanalítico em sua dupla vertente,
energética e hermenêutica3; finalmente, da psicanálise da cultura (III), porquanto a
psicanálise freudiana é, essencialmente, uma hermenêutica da cultura4, que se estrutura
segundo o modelo da interpretação dos sonhos5.

Advertimos ao leitor que, embora o nosso objetivo nesta primeira parte seja
realizar uma exegese dos textos de Freud, não deixaremos de recorrer a outros teóricos,
sobretudo, J. Laplanche (1966, 1978, 1979) e J.-B. Pontalis (1979) e , mas também J.
Lacan (1978) e S. Leclaire (1966; 1977), para indicar alguns pontos críticos do discurso
freudiano, pontos estes que sofreram profunda revisão teórica. Na conclusão deste
trabalho, confrontaremos a leitura de Freud proposta por Ricoeur com a nossa própria,
do que se evidenciarão algumas discrepâncias de interpretação.

1
“Ao fazer do sonho não somente o primeiro objeto de sua investigação, mas um modelo (...) de todas as
expressões dissimuladas, substituídas e fictícias do desejo humano, Freud convida a procurar no próprio
sonho a articulação do desejo e da linguagem” (I, p. 16s/Fr., p. 15).
2
“Ingressaremos na psicanálise por aquilo que ela tem de mais exigente, pela sistemática, que o próprio
Freud chamou de sua ‘metapsicologia’” (I, p. 60/Fr., p. 68s).
3
“Os escritos de Freud se apresentam de imediato, como o discurso misto, até mesmo ambíguo, que ora
enuncia conflitos de força justificando uma energética, ora relações de sentido justificando uma
hermenêutica. Gostaria de mostrar que essa ambiguidade aparente é bem fundada, que esse discurso é a
razão de ser da psicanálise” (I, p. 67/Fr. p. 75).
4
“Longe de ser apenas uma explicação dos resíduos da existência humana, dos avessos do homem, ela [a
psicanálise] mostra sua intenção verdadeira quando, fazendo estourar o quadro limitado da relação
terapêutica do analista e de seu paciente, eleva-se ao nível de uma hermenêutica da cultura” (CI, p.
105/Fr., p. 122).
5
“A interpretação da cultura será o grande desvio que revelará o modelo do sonho segundo sua
significação universal (...). A psicanálise vale na medida em que a arte, a moral e a religião são figuras
análogas, variantes da máscara onírica. Toda a dramática do sonho encontra-se, assim, generalizada às
dimensões de uma poética universal” (I, p. 141/Fr. p. 164).
2

CAPÍTULO I

A PSICANÁLISE DOS SONHOS

No prefácio à terceira edição inglesa de A Interpretação de Sonhos (1900),


Freud afirma que no seu entender esta obra contém a mais valiosa de suas descobertas.
“Compreensão dessa espécie”, confidencia-nos, “só ocorre a alguém uma vez na vida”
(IS, p. XII). Na verdade, “a interpretação dos sonhos é a via real que leva ao
conhecimento das atividades inconscientes da mente” (IS, p. 647).

Como se sabe, as primeiras investigações do inconsciente e a emergência da


terapia psicanalítica tiveram como motivação principal um caso de histeria – o caso
Anna O. –, pesquisado por Freud e J. Breuer (1842-1925), e por eles minuciosamente
descrito na obra Estudos sobre a histeria (1895). Contudo, aos poucos foi se observando
uma semelhança entre os sintomas neuróticos e os sonhos. Ao longo dos períodos de
terapia, “os pacientes, em vez de apresentar seus sintomas, apresentavam sonhos”.
Concluiu-se, desse modo, que “os sonhos, por si mesmos, são um sintoma neurótico que
nos oferece, ademais, a inestimável vantagem de ocorrer em todas as pessoas sadias”
(CIP II, p. 105). À diferença de que ocorre com o sintoma, o sonho não conhece a
fronteira que separa o psiquismo sadio do patológico. Daí a importância prioritária que
Freud lhe atribui para a compreensão da alma humana. Em verdade, os sonhos podem
ser considerados como modelo de estruturação de todas as formações do inconsciente,
tanto no plano individual como no cultural. No prefácio à terceira edição alemã de A
Interpretação de sonhos, Freud nos indica a existência de um paralelismo entre sonhos
e símbolos culturais:

Posso até aventurar-me a profetizar em que outras direções as edições


posteriores deste livro (...) diferirão da atual. Terão, por um lado, de
proporcionar contato mais estreito com o copioso material apresentado nos
escritos de ficção, nos mitos, no uso linguístico do folclore; enquanto, por
outro lado, terão que lidar, em maiores detalhes do que até aqui foi possível,
com as relações dos sonhos com as neuroses e as doenças mentais (IS, p.
XXXV).

Como se vê, o sonho é, de fato, uma formação psíquica privilegiada, cuja


compreensão pode elucidar não apenas o sentido dos sintomas neuróticos e psicóticos
como também o vasto campo das produções culturais humanas.
3

1) O SONHO REALIZA UM DESEJO

Freud dedica uma boa parte de A Interpretação de Sonhos para relatar


resumidamente toda a literatura sobre os sonhos anterior a sua obra. Expõe inúmeras
concepções de Aristóteles ao século XIX. Mostra-nos a maneira popular de se entender
os sonhos, algumas teorias filosóficas e finalmente as teorias científicas
contemporâneas. Contestando estas últimas, observa que do ponto de vista científico um
sonho não é susceptível de interpretação, pois, segundo um preconceito muito em voga
em sua época, não constitui “um ato mental, mas um processo somático...” (IS, p. 103).
A psicologia científica e a medicina do século XIX não podiam admitir, portanto, a
existência de um sentido para os sonhos. Em geral, a tendência era desprezá-los como
fonte de saber. “Os sonhos são excessivamente triviais e indignos de ser objeto de
pesquisa” (CIP II, p. 106), argumentava-se. Com efeito, não se pode realizar um relato
objetivo das imagens oníricas, pois o sonhador costuma esquecê-las ou deformá-las. A
tendência dos cientistas era, assim, negar aos sonhos o seu caráter psíquico, reduzindo-
os a meros efeitos de excitações somáticas. Freud se ergue vigorosamente contra esta
tendência reducionista e afirma categoricamente: “Os sonhos não são fenômenos
somáticos, mas psíquicos” (CIP II, p. 125).

Ao admitir um sentido para os sonhos, Freud se aproxima da compreensão


popular dos fenômenos oníricos, como, aliás, ele próprio o reconhece: “Fui levado a
compreender que temos aqui, mais uma vez, um daqueles casos não pouco frequentes
em que uma crença popular antiga e ciosamente guardada parece estar mais próxima da
verdade do que o julgamento da ciência predominante em nossos dias” (IS, p. 107).

A crença popular de origem remota a que se refere Freud é justamente a de que


os sonhos podem ser interpretados, porque possuem um sentido oculto. Exatamente
como os povos antigos e adivinhos de todas as épocas, Freud admite uma interpretação
dos sonhos e “interpretar significa achar um sentido oculto em algo” (CIP II, p. 109).

Ele se refere a duas modalidades de interpretação popular: a interpretação


simbólica e a decifração. “O primeiro desses processos considera o conteúdo do sonho
como um todo e procura substituí-lo por outro conteúdo que é inteligível e, sob certos
aspectos, análogo ao original” (IS, p. 104). O antigo testamento nos oferece um
4

exemplo famoso deste tipo de interpretação. Trata-se do célebre sonho do Faraó,


interpretado por José: as sete vacas gordas seguidas das sete vacas magras simbolizam
sete anos de fome no Egito, após sete anos de abundância. No segundo método, os
sonhos são tratados “como uma espécie de criptografia, na qual cada signo pode ser
traduzido em outro signo que possua um significado conhecido, de conformidade com
uma chave fixa” (IS, p. 105)6. O que é essencial no processo de decifração é que o
sentido não é tomado como um todo, mas dividido em partes, cada uma delas exigindo
uma análise particular. Dos dois métodos populares, é o segundo, sem dúvida, o que
mais se aproxima da interpretação psicanalítica7. Em A Interpretação de Sonhos, Freud
compara o sonho manifesto com um enigma de figuras ou hieróglifos, cujos signos
devem ser traduzidos para uma outra linguagem, a saber, a linguagem dos pensamentos
oníricos. Se tais signos forem considerados apenas como imagens, sem se levar em
conta a sua significação convencional, não podem ser decifrados. Há que se substituir
cada imagem pela sílaba ou palavra que representa. “As palavras que juntamos dessa
forma não deixam mais de fazer sentido, mas podem formar uma frase poética da maior
beleza e significado” (IS, p. 296). É assim que se decifra a “charada” do sonho.

Influenciado por Aristóteles, que afirma serem os sonhos a vida mental dos que
dormem, Freud investiga a relação entre sono e sonho. O que é o sono? É um estado em
que há um completo desinteresse pelo mundo externo. Parece que no sono a função
biológica de recuperação das energias vitais é acompanhada de uma função psicológica
do sonho, a saber: “a suspensão do interesse pelo mundo”. Nós não somos capazes de
tolerar o mundo ininterruptamente. Por causa disso, “de tempos em tempos nos
retiramos para o estado de pré-mundo, para a existência dentro do útero”, isto é, o sono
(CIP II, p. 111). Qual a relação entre o sono, que é uma fuga do mundo, e o sonho? No
entender de Freud, o sonho é o guardião do sono (CIP II, p. 156). Com efeito, em geral
não conseguimos um estado de repouso de tal ordem em que os resíduos da vida de
vigília sejam completamente afastados. Frequentemente tais resíduos permanecem
ativos durante o sono, estimulando a vida psíquica. A função dos sonhos seria
justamente impedir que tais estímulos nos despertem, transformando-os em imagens.

6
Substituímos sinal por signo nesta citação.
7
Veremos adiante (p.26) que ao descobrir o simbolismo onírico, Freud recorre à interpretação simbólica,
sem abandonar, obviamente, a interpretação associativa, rigorosamente psicanalítica (Cf. CIP II, p. 181).
5

“Um sonho”, diz Freud, “(...) é a maneira como a mente reage aos estímulos que
a atingem no estado de sono” (CIP II, p. 112). Em lugar de nos acordar, os estímulos
externos e internos se metamorfoseiam em sonhos. Pode-se até provar isto
experimentalmente. Freud se refere a um pesquisador que observou e relatou alguns de
seus sonhos produzidos artificialmente pelo ruído da campainha de um despertador.
Num sonho, a campainha se transforma num repicar de sinos; num outro, no tilintar de
cincerros de trenós; e, finalmente, num terceiro, numa pilha de louças, que se espatifa ao
solo. “O sonho não reconhece o despertador – e sequer este aparece no sonho – mas
substitui o ruído do despertador por outro; interpreta o estímulo que está pondo fim ao
sono, contudo o interpreta de forma diferente em cada uma das vezes” (CIP II, p. 117).
Como se vê, o sono não é interrompido pelo ruído, desde que este se transforme em
imagem onírica. Observe-se ainda que esta pluralidade de sonhos, formada a partir de
um único fator determinante, revela que os estímulos somáticos só podem explicar uma
pequena parte do sonho e não o total da reação onírica. Por que o ruído externo é
transformado em tal imagem e não em outra? Isto as teorias reducionistas da época não
podiam entender. Todo o esforço de Freud, conforme veremos, se orienta exatamente
nesta direção: demonstrar que o sonho é, essencialmente, um processo psíquico e não
somático. Como observa um comentador:

uma má digestão, a vontade de urinar, o toque do despertador poderão ser


invocados entre as causas de um sonho (...), mas não revelam o sentido. O
sentido de um fenômeno ou de uma conduta não decorre dos processos
psicoquímicos, mecânicos ou fisiológicos como seria de se supor. Ele está
relacionado com a intenção que lhes serve de base, ele é essa intenção.
(Brabant, 1977, p. 16)

Na perspectiva psicanalítica toda conduta humana é movida por uma intenção.


Na verdade, o principal móvel do sonho não é um estímulo somático, mas um
“estímulo” psíquico: o desejo. Conforme veremos a seguir, o sonho é a realização de
um desejo, logo, uma reação psíquica a um estímulo psíquico. As excitações somáticas,
como mostraremos, têm o seu lugar na formação do sonho, mas não são suficientes para
explicá-lo em sua totalidade.

A pesquisa de sonhos infantis e sonhos de conveniência, isto é, “sonhos que, em


qualquer época da vida, são suscitados por necessidades corporais imperiosas – fome,
sede, necessidade sexual” (CIP II, p. 160), pode ser muito útil para revelar, com
objetividade, que o sonho é de fato a realização de um desejo.
6

Freud relata alguns exemplos de sonhos produzidos por crianças de tenra idade.
Um menino de 19 meses, mantido durante todo o dia sem alimento, por ter sido vítima
de uma crise de vômitos, durante o sono, após dizer o próprio nome, acrescentou:
“Molangos, molangos, omelete, pudim!” Sonhava, portanto, com uma refeição.
Hermann, menino de apenas 22 meses, fora obrigado a presentear seu tio com um cesto
de cerejas, do qual só pudera tirar um único fruto. Ao despertar, comunicou a seus pais:
“Hermann comeu todas as cerejas”. Quer dizer, viu em sonho o seu desejo realizado.
Uma garota de 3 anos fez uma viagem por um lago. Ficou desgostosa quando teve que
deixar o barco, pois desejava continuar o passeio. Na manhã seguinte, sonhou que havia
continuado a sua viagem interrompida (IS, p. 136-142; CIP II, p. 154s). Todos estes
exemplos constituem simples e indisfarçada “realização de desejos” (Wunscherfüllung).

Existe um sonho que podemos produzir em nós mesmos quantas vezes


quisermos. Quem quer que coma algo muito salgado antes de dormir, acorda durante a
noite com sede. O despertar, porém, é precedido por um sonho que possui sempre o
mesmo conteúdo: o indivíduo se vê a si mesmo engolindo água em grandes goles. “A
sede dá lugar ao desejo de beber, e o sonho me indica esse desejo realizado” (IS, p.
133). Outro tipo de sonho de conveniência muito comum é o que ocorre a pessoas que
devem acordar cedo, mas dificilmente o conseguem por estar muito cansadas. O
indivíduo sonha, então, que já está acordado, ao lado da cama e prestes a sair de casa.
Este sonho corresponde nitidamente à necessidade de dormir, a qual Freud sempre
reconheceu como um dos componentes essenciais da construção dos sonhos. “Existem
bons motivos para situar a necessidade de dormir em condições de igualdade com as
outras grandes necessidades corporais” (CIP II, p. 163). Temos, ainda, os sonhos de
impaciência. É o que ocorre quando nossas fantasias oníricas antecipam a satisfação de
algo esperado e muito desejado, como uma grande viagem, um espetáculo teatral, uma
conferência etc. (CIP II, p. 162s).

A partir de tais experiências, Freud tira algumas conclusões relevantes a respeito


dos sonhos (CIP II, p. 154-156):

1) Os sonhos sempre pressupõem alguma vivência do dia anterior para se


produzirem.
2) Os sonhos não são absurdos, mas têm um sentido: realizam um desejo.
7

3) “A deformação onírica não faz parte das características essenciais do sonho”


(p.155). Com efeito, nos sonhos relatados o desejo se realiza sem qualquer
astúcia.
4) “Além dos estímulos somáticos, existem estímulos mentais que perturbam o
sono” (p.156), a saber, o desejo não realizado durante o dia.
5) Os sonhos não perturbam o sono. Ao contrário, são os “guardiães do sono”
(p.156). A função deles é eliminar os estímulos que poderiam impedir a
continuidade do sono.
6) O sonho apresenta o desejo realizado de uma forma alucinatória. “Gostaria de ir
ao lago é o desejo que origina o sonho. O conteúdo do sonho propriamente dito
é: ‘Estou indo ao lago’” (p. 157)8.

2) A CENSURA ONÍRICA

Muitos autores, antes de Freud, já tinham verificado que, frequentemente, os


sonhos são realização de desejo. Pode-se até dizer que esta é a compreensão popular dos
sonhos. A novidade da concepção psicanalítica não está em afirmar que alguns sonhos
constituem realização de desejo, mas que esta é uma característica essencial dos sonhos
(Cf. CIP II, p. 143s). Contudo, seria possível objetar: - Não se trataria de uma
generalização apressada e injustificável? Os sonhos de adultos são frequentemente
complicados e mesmo absurdos e no conteúdo deles nada se observa que possa ser
claramente entendido como realização de desejo. Ademais, é preciso levar em
consideração os sonhos de conteúdo aflitivo, cuja frequência, aliás, parece ser maior que
os de conteúdo agradável (IS, p. 144). Como um sonho penoso, um pesadelo, por
exemplo, pode ser a realização de um desejo?

Freud leva em conta estas objeções e se esforça para respondê-las


adequadamente. É, sobretudo, o conceito de censura onírica que lhe proporciona o
recurso teórico necessário para enfrentar tais críticas.

Urge distinguir o conteúdo manifesto do conteúdo latente dos sonhos.


“Descreveremos como conteúdo manifesto do sonho”, esclarece-nos Freud, “aquilo que
a pessoa que sonhou realmente nos conta; e ao material oculto, que esperamos encontrar

8
Consultar o que diremos adiante a respeito da distinção entre pulsão, desejo e necessidade (p. 177s;
269s). Freud nos textos citados confunde, ao que parece, necessidade e desejo.
8

acompanhando ideias que lhe acodem à mente, chamaremos de pensamentos oníricos


latentes” (CIP II, p. 147). Quer dizer, o conteúdo manifesto designa o sonho antes de ser
submetido à interpretação, tal como o sonhador o relata; o conteúdo latente designa,
justamente, o conjunto de significações (as ideias associadas)9 que se tornam conhecidas
mediante o trabalho de interpretação. “Uma vez decifrado, o sonho deixa de aparecer
como uma narrativa em imagens para se tornar uma organização de pensamentos, um
discurso, que exprime um ou vários desejos” (VP, p. 142s). Enquanto o sonho manifesto
é confuso, absurdo e predominantemente figurativo, “os pensamentos latentes não
diferem dos nossos conhecidos pensamentos conscientes da vida de vigília” (CIP II, p.
239).

Esta distinção é fundamental, porque permite mostrar que todos os sonhos,


mesmo os que aparentam incoerência, possuem um sentido latente que pode ser
interpretado. Se não nos é possível, na maioria dos casos, reconhecer de imediato o
desejo onírico, é porque ele se expressa deformadamente. Só a interpretação é capaz de
o revelar em toda a sua nudez. E por que nossos desejos, em geral, não se manifestam
numa linguagem acessível à consciência? Porque são desejos censuráveis,
incompatíveis com nossos padrões éticos, estéticos e sociais de comportamento (CIP II,
p. 172). A interpretação psicanalítica revela que por detrás de nossos sonhos habituais
existem desejos incestuosos, pervertidos, agressivos, mortíferos e profundamente
egoístas (CIP II, p. 172s).

A função da censura é, assim, impedir que tais desejos tão antissociais,


radicalmente ameaçadores da vida cultural, alcancem o sistema consciente e mobilizem
a extremidade motora do aparelho psíquico10. A travessia por Édipo, conforme
veremos11, é um momento crucial na evolução psicossocial do indivíduo e do gênero
humano, momento em que os desejos incestuosos e anticulturais são recalcados, dando
origem ao inconsciente. O inconsciente freudiano, contudo, é dinâmico, ou seja, seus
desejos não permanecem estáticos, mas continuam a influir de alguma forma no
comportamento consciente, ameaçando o equilíbrio biopsíquico. A função dos sonhos é,

9
Sobre o método da livre associação, cf. ,adiante, p. 67.
10
Sobre aparelho psíquico consultar, adiante, p. 80 .
11
Consultar p. 148 deste trabalho. O “Complexo de Édipo” deve ser pensado como condição de
possibilidade da cultura, embora os extratos de Freud citados sugiram, equivocadamente, que ele seja
posterior à cultura, pois os padrões éticos e estéticos que mobilizam a censura, pressupõe a constituição
da ordem moral (Cf., adiante, p. 246-272, o que diremos sobre o Complexo de Édipo com base no
discurso lacaniano).
9

justamente, realizar tais desejos de um modo imaginário e com isto garantir um relativo
equilíbrio do indivíduo. O objetivo da censura, como sustenta Freud, é preservar nossa
saúde mental (IS, p. 604).

Nossos desejos mais arcaicos e proibidos conseguem, portanto, um meio de


expressão nos sonhos. Tal expressão, contudo, não é transparente, mas deformada.
“Deformação onírica é aquilo que faz com que faz com que um sonho nos pareça
estranho e ininteligível” (CIP II, p. 165). A deformação (Entstellung) é o produto do
trabalho do sonho e seu objetivo é burlar a censura. Para compreendermos melhor a
noção de censura, vejamos em que circunstâncias Freud criou este termo.

A palavra “censura” indica com muita clareza a analogia entre as manifestações


psíquicas do inconsciente (sintoma, sonho, ato falho) e o texto escrito. É o próprio
Freud quem o reconhece, explicitamente, ao observar que ao se abrir um jornal político,
num período de guerra, por exemplo, pode-se verificar
que aqui e ali o texto está ausente e, em seu lugar, não se vê nada mais que
papel em branco. Isto, como sabemos, é obra da censura da imprensa (...).
Pois bem, podemos manter esta comparação (...). Queremos nos referir à
“censura de sonhos” (...). Em qualquer parte onde existem lacunas no sonho
manifesto, a censura é responsável por ela. (CIP II, p. 168s)

Em várias ocasiões, ao procurar explicar a origem da expressão “censura


onírica”, Freud se refere ao sonho de uma mulher de cinquenta anos, ocorrido em 1915,
o qual apresenta no seu conteúdo manifesto várias lacunas de expressão (CIP II, p.
166s; IS, p. 152s). Eis o relato deste sonho: por estar em tempo de guerra, a mulher
sentiu-se obrigada a “prestar serviço” no hospital militar. Dirige-se a este local e é
recebida por um suboficial que, imediatamente, pela entonação dada à palavra
“serviço”, entende tratar-se de “serviço de amor”. Ela se aproxima de um aposento,
grande e sombrio, onde se encontram vários oficiais do exército. Coloca-se diante do
major-médico e diz: “Eu e muitas outras mulheres e moças de Viena estamos prontas
para...” (em lugar de registrar a oferta da mulher, o sonho apresenta um murmúrio). O
major segura-a pela cintura e diz: “Suponhamos, madame, que isso realmente viesse
a...” (novamente o murmúrio). E o relato prossegue sempre desse modo: no momento
em que vai expressar o desejo sexual, o sonho registra um murmúrio em lugar do objeto
desejado. Como se vê, trata-se de um exemplo particularmente adequado para ilustrar o
conceito de censura. Há um texto relativamente coerente, do qual foram suprimidas
10

certas partes, cuja revelação seria altamente comprometedora do ponto de vista ético-
social. A analogia com o texto escrito salta aos olhos.

É preciso, contudo, que se tomem as devidas precauções para que não se entenda
de um modo antropomórfico o conceito de censura. Não existe uma espécie de
homúnculo que seria o “censor dos sonhos” (CIP II, p. 170). Trata-se, antes, de uma
força ou tendência psíquica que se opõe a outra. Uma força constrói o desejo e a outra, a
censura, acarreta uma distorção na expressão deste (IS, p. 153s).

Freud, como se vê, tem uma concepção essencialmente conflitante e, por isso
mesmo, dinâmica da vida psíquica: “Na mente”, diz-nos ele, “há lugar para existirem
lado a lado, intenções opostas, contradições” (CIP II, p. 175). É este dilaceramento
interno do ser humano que, em última instância, explica os sonhos de conteúdo aflitivo.
Como um desejo realizado pode ser doloroso, desagradável? O homem está em
contradição consigo mesmo. Há desejos que, uma vez satisfeitos, podem impedir a
realização de outros. O que é prazer num lugar é desprazer em outro (R, p.60).

Quando a censura não é eficaz para impedir a expressão de tais desejos, eles
tendem a desembocar na consciência e provocam ansiedade. Este afeto doloroso
substitui a censura na função de bloquear a invasão do desejo na consciência. Só que a
ansiedade exerce esta função de modo inadequado, pois em lugar de garantir a
continuidade do sono, desperta o que dorme (CIP II, p. 258s).

Esse enfraquecimento ou “diminuição” da censura indica que a elaboração


onírica não foi suficientemente eficaz para deformar a expressão do desejo. Quer dizer,
substituíram-se as representações originárias por outras secundárias, compatíveis com as
exigências da censura, mas os afetos desagradáveis vinculados àquelas continuaram
presentes nestas. Daí, nos pesadelos, aparecerem, frequentemente, representações
inócuas vinculadas a afetos penosos (ansiedade) (CIP II, p. 257).

Em conclusão podemos dizer o seguinte: nos sonhos de crianças pequenas e nos


sonhos de conveniência o desejo aparece claramente realizado. Isto, contudo, não é o
que ocorre na maioria das vezes. Em geral, nossos desejos não são inocentes, mas
extremamente ameaçadores. Daí a necessidade da censura, que modifica a expressão
primeira do desejo, dando origem ao sonho manifesto. Só o trabalho de interpretação é
capaz de traduzir o desejo. Por isso, Freud nos adverte reiteradas vezes de que para se
11

entender que todo sonho é realização de desejo, urge distinguir o conteúdo manifesto do
conteúdo latente, aplicando ao primeiro a técnica da interpretação psicanalítica.

3) MATERIAIS DO SONHO

O conteúdo latente dos sonhos ou pensamentos oníricos é constituído pelos


restos diurnos, recordações de infância e estímulos somáticos (VP, p.143; p. 664). Tais
são os materiais do sonho, quer dizer, os objetos sobre os quais atua a elaboração
onírica. Estudemos cada um deles.

3.1) RESTOS DIURNOS

No entender de Freud, “em todo sonho, é possível encontrar um ponto de contato


com as experiências do dia anterior” (IS, p. 175). Acreditamos que isto tenha ficado
claro com os exemplos de sonhos infantis e de conveniência, pois todos eles constituem
realização de desejos vinculados ao dia anterior. Na verdade, porém, todo e qualquer
sonho tem relação com os acontecimentos de véspera. Os restos diurnos sempre
aparecem no decorrer da interpretação dos sonhos. É possível que se constituam em
fonte de um sonho acontecimentos de dois ou três dias anteriores, desde, porém que
tenham sido lembrados na véspera (IS, p. 176).
Freud observa que, frequentemente, os vestígios do dia anterior, que aparecem
no sonho, são irrelevantes do ponto de vista emocional. Esta aparente insignificância,
contudo, deve ser objeto de suspeita. Na verdade, conforme mostraremos na discussão
sobre o mecanismo de deslocamento, a inocuidade do conteúdo manifesto pode ser um
ardil da censura para mascarar acontecimentos relevantes do dia anterior. Como
assevera Freud, “o fato de o conteúdo dos sonhos incluir remanescentes de experiências
triviais deve ser explicado como uma manifestação da deformação dos sonhos...” (IS, p.
188).

3.2) RECORDAÇÕES INFANTIS

Um outro material utilizado pelo trabalho do sonho são as recordações de


infância. Não raro pode-se constatar que um ou vários elementos do conteúdo
manifesto, que julgávamos desconhecer completamente, na verdade constituem
lembranças de nossa infância que jaziam no inconsciente. Freud traz um exemplo
12

retirado de sua experiência. Sonhou certa vez com um homem de um olho só, baixa
estatura, forte e com a cabeça enterrada até os ombros, o qual lhe deveria prestar um
serviço. Pelo contexto, concluiu tratar-se de um médico. Resolveu, então, pedir a sua
mãe uma descrição do médico de sua terra natal. Esta lhe traçou o esboço de uma
pessoa idêntica a do sonho. Soube, ainda, do mesmo modo, que este médico lhe havia
atendido na infância por ocasião de um acidente (CIP II, p. 241s).

No entanto, mais importante do que essas vivências esquecidas é a persistência


nos sonhos da própria “vida mental da criança, com todas as suas características, seu
egoísmo, sua escolha incestuosa do objeto de amor, e assim por diante” (CIP, p. 252).
As tendências e disposições afetivas, os desejos da infância continuam presentes nos
sonhos, constituindo mesmo o seu verdadeiro móvel. “Nossa teoria dos sonhos”, diz
Freud, “encara os desejos originados na infância como a força motivadora para a
formação dos sonhos” (IS, p. 627). Os desejos de véspera só podem produzir um sonho
na medida em que servem de escoamento para o genuíno móvel, a saber, um desejo
infantil recalcado e inconsciente. “Minha suposição”, diz-nos Freud, “é que um desejo
consciente só pode tornar-se um induzidor de sonhos se obtiver sucesso em despertar
um desejo inconsciente do mesmo teor e conseguir o reforço dele” (IS, p. 589).

Observe-se ainda que, de acordo com o que estudaremos adiante, o próprio


funcionamento do psiquismo no processo de realização dos sonhos é idêntico ao de uma
criança de tenra idade, que confunde o real com o imaginário, ou seja, alucina seus
desejos (IS, p. 603-604).

3.3) ESTÍMULOS SOMÁTICOS

Durante o sono o organismo pode ser perturbado por excitações somáticas. Tais
excitações são classificadas do seguinte modo: sensorial externa, sensorial interna e
orgânica. As excitações sensoriais externas são as provocadas por objetos externos
durante o sono. Exemplos: uma luz intensa, um ruído forte, um odor pronunciado ou a
exposição de partes do corpo a um frio excessivo (IS, p.24).

As excitações sensoriais internas são as que independem de um objeto externo,


ou seja, são puramente subjetivas. Por exemplo: um tinido ou zumbido nos ouvidos.
Especialmente importantes, para a formação do sonho manifesto, são as excitações
13

subjetivas da retina (as manchas luminosas que costumamos ver quando fechamos os
olhos) (IS, p. 35).

Em geral, quando nossos órgãos não funcionam bem produzem sensações


penosas. Se tais sensações ocorrerem durante o sono (por exemplo, uma taquicardia ou
uma dor de estômago) podem ser utilizadas como fonte dos sonhos (IS, p. 35s). É
possível, também, a ocorrência de sensações agradáveis, como a excitação dos órgãos
genitais. Tais são os estímulos orgânicos que atuam na formação dos sonhos.

Conforme já vimos, Freud se opõe à tendência reducionista de sua época. Um de


seus grandes méritos foi dar prioridade aos “estímulos” psíquicos (desejos) na formação
dos sonhos, colocando na dependência destes os estímulos somáticos. Na perspectiva
psicanalítica, “os sonhos são coisas que eliminam pelo método de satisfação
alucinatória, estímulos [psíquicos] perturbadores do sono” (CIP II, p. 165), e não apenas
estímulos somáticos.

4) O TRABALHO DO SONHO

A interpretação dos sonhos pode ser comparada ao trabalho de tradução de uma


língua para outra. A língua que nos é dada de imediato e cujo sentido desconhecemos é
a do conteúdo manifesto. Uma das contribuições mais importantes de Freud foi a
descoberta dos “caracteres e leis sintáticas” desta língua. De posse de tal estrutura
linguística, pôde traduzir o sonho manifesto para a nossa língua habitual e, deste modo,
descobrir o sentido oculto dos sonhos (conteúdo latente) (IS, p. 295s).

Assim como há um trabalho de interpretação que opera sobre o conteúdo


manifesto, para descobrir o conteúdo latente, ocorre também um trabalho psíquico que
se processa no sentido inverso, a saber, transformar o conteúdo latente no sonho
manifesto. É a este último que Freud denomina trabalho do sonho (Traumarbeit) (IS, p.
204 e 239; CIP II, p. 203s).

Empregando a célebre e problemática analogia de Freud, podemos dizer que o


trabalho do sonho constitui a chave gramatical que nos dá acesso à “linguagem” do
desejo e, também, de toda nossa existência. Freud subdivide o trabalho do sonho em
14

quatro mecanismos básicos, a saber: condensação, deslocamento, figuração e


elaboração secundária (CIP II, p.217)12.

4.1) A CONDENSAÇÃO

Comparando-se o conteúdo manifesto do sonho com o seu conteúdo latente,


verifica-se de imediato que este último sofre um processo de condensação. “Os sonhos
são breves, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e a riqueza dos
pensamentos oníricos” (IS, p. 297). Pode-se dizer, portanto, que o conteúdo manifesto é
uma “tradução abreviada” do conteúdo latente (CIP II, p. 204). Contudo, não se deve
entender a condensação como uma espécie de resumo. Com efeito,

um elemento manifesto pode corresponder simultaneamente a diversos


elementos latentes e, em sentido inverso, um elemento latente pode
desempenhar seu papel em diversos elementos manifestos – existe, por assim
dizer, um relacionamento entrecruzado (CIP II, p. 207).

Freud enumera três tipos possíveis de condensação. Pode ocorrer: 1º) pela
supressão de determinados elementos latentes; 2º) pela aparição no sonho manifesto de
apenas um fragmento de todo o complexo do conteúdo latente; 3º) pela reunião e
composição de vários elementos latentes, possuidores de algo em comum, numa só
unidade (CIP II, p. 204s). Talvez somente este último processo mereça ser designado
por “condensação”. É comum a representação em sonhos de personagens compostos.
Um personagem, deste tipo, “pode, talvez, assemelhar-se a A, contudo, pode estar
vestido como B, executar algo que lembre C, e ao mesmo tempo podemos saber que é
D” (CIP II, p. 205; IS, p. 342s). Esta composição não se dá apenas com pessoas, mas
também com lugares e coisas (CIP II, p. 205; IS p. 344). Pode-se sonhar, por exemplo,
com uma casa realmente existente, que tenha mobílias de outra e esteja situada num
lugar diferente de seu originário.

Freud, certa vez, teve um sonho, cuja análise revelou a presença deste
mecanismo. Vamos citá-lo como exemplo. Em geral, para expor a análise de seus
sonhos, ele apresenta um “preâmbulo”, no qual descreve as circunstâncias do dia
anterior – e de sua vida em geral – que motivaram o sonho; em seguida, relata o

12
Uma das teses principais de J. Lacan afirma que o inconsciente se estrutura como uma linguagem. No
entender do célebre psicanalista francês, os mecanismos da condensação e do deslocamento são
perfeitamente indicáveis em termos linguísticos. A condensação pode ser compreendida como metáfora e
o deslocamento como metonímia (Consultar p. 258 deste trabalho).
15

conteúdo manifesto, dividindo-o em partes; e, finalmente, indica as associações e


elabora a interpretação.

No sonho do tio Josef (Cf. IS, p. 146-150), o “preâmbulo” é o seguinte: alguns


dias antes, Freud teve notícia de que dois colegas seus haviam conseguido uma
importante promoção na carreira de magistério. Isto o alegrou, deixando-o, num
primeiro momento, esperançoso de conseguir o mesmo. Logo, porém, teve que se
render à realidade, que não lhe era favorável. Com efeito, Freud era de origem judaica e
na Viena do final do século XIX já ocorriam, como se sabe, manifestações de
antissemitismo. Certa noite, recebeu a visita de um amigo, que era também judeu e
aspirava à mesma promoção. Esta pessoa contou-lhe que já tinha estado no ministério e
se certificara que a protelação de seu nome se devia a motivos sectários. Na manhã que
se seguiu a esta visita, Freud teve o sonho, cujo conteúdo manifesto é por ele resumido
(ou relatado), assim:

I. Meu amigo R. era meu tio – tinha por ele um grande sentimento de afeição.

II. Vi seu rosto diante de mim, algo mudado. Era como se tivesse sido
repuxado no sentido do comprimento. Uma barba amarela que o circundava
se destacava de maneira nítida (IS, p. 147).

O rosto alongado com a barba amarela correspondia ao do tio Josef. Porém, seu
amigo R. começava a ficar grisalho e sua barba também estava amarelecida. Freud
comparava, assim, no sonho, seu tio com o colega. O que poderia haver de comum entre
os dois? O tio era tido como um simplório e, assim, a aproximação dos dois indicava o
desejo de que o amigo tivesse esta mesma qualidade negativa. Por outro lado, a técnica
da livre associação trouxe à presença um novo personagem: o amigo N., judeu e
aspirante ao mesmo cargo. Este tinha também algo em comum com Josef: uma
condenação na justiça. O sonho manifesto, portanto, reuniu ou condensou numa só
imagem três pessoas: os amigos R. e N. e o tio Josef. A figura deste último serviu de
mediação para a formação do quadro onírico.

Que conclusão tirar desta análise? É o próprio Freud quem o explica, para
interpretar o sonho: “Meu tio Josef representava meus dois colegas que não haviam sido
nomeados para o cargo de professor – um como simplório, e o outro como criminoso”
(IS, p. 149). Quer dizer, o sonho expressava, deformadamente, o desejo de que a
16

rejeição de seus amigos não ocorrera por razões sectárias (antissemitismo), mas por
serem ambos incompetentes para o cargo. Com isto, na fantasia de Freud, permanecia
aberta a possibilidade de sua nomeação, já que motivos sectários não teriam interferido.

Há sonhos que expressam dois ou mais desejos interligados. A este fenômeno,


quer dizer, ser o sonho o resultado de vários fatores determinantes, Freud denomina
sobredeterminação (Uberdetermimierung) (IS, p. 207 e 233; VP, p. 648). Trata-se de
um efeito da condensação. Referindo-se a este processo, ele nos diz: “Às vezes é
possível (...) combinar duas sequências de pensamento latentes muito diferentes, em um
único sonho manifesto, de modo que se pode chegar a algo que parece ser uma
interpretação suficiente do sonho, e, no entanto, procedendo assim, pode-se deixar de
perceber uma possível ‘superinterpretação’” (CIP II, p. 206s). Quer dizer, ao contrário
do que se poderia supor numa primeira abordagem, o sonho manifesto não remete,
necessariamente, apenas para uma sequência associativa de significações. Não raro
descobre-se a existência de uma pluralidade de redes associativas, cada uma delas
possuindo a sua autonomia e coerência interna (sobredeterminação). Por isto mesmo,
esgotada a primeira, pode-se chegar a muitas outras interpretações, fenômeno a que
Freud denomina “superinterpretação” (Uberdeutung). Referindo-se a esta complexidade
inerente às formas oníricas, Freud emprega a famosa imagem do “umbigo do sonho”,
que representa “o ponto central do sonho, o ponto por onde ele mergulha para o
desconhecido” (IS, p. 560; ver também p. 119, nota 2).

4.2) O DESLOCAMENTO

Já sabemos que em todos os sonhos aparecem restos diurnos, isto é, vestígios de


experiências vividas na véspera. Frequentemente, tais vestígios só se insinuam no sonho
de forma deslocada, isto é, em si mesmo não constituem elementos relevantes do ponto
de vista emocional, mas se introduzem no conteúdo manifesto sorrateiramente, com a
finalidade de substituir e ocultar elementos afetivos realmente importantes e
significativos do conteúdo latente, elementos estes cujo “valor psíquico”13 só se
manifesta com a interpretação. Como se vê, “ocorre uma transferência e deslocamento
de intensidades psíquicas no processo de formação do sonho” (IS, p. 328).

13
Influenciado por L.Strümpel, estudioso dos sonhos, Freud denomina “valor psíquico” à intensidade
psíquica dos pensamentos oníricos (IS, p. 56). Citando Nietzsche, Freud afirma: “o fato é que uma
completa transposição de todos os valores psíquicos se verifica entre o material dos pensamentos oníricos
e o sonho” (IS, p. 351).
17

Podemos, assim, definir o deslocamento como sendo o “fato de a acentuação, o


interesse, a intensidade de uma representação ser susceptível de se soltar dela para
passar a outras representações originariamente pouco intensas, ligadas à primeira por
uma cadeia associativa” (VP, p. 162; Cf. IS, p. 643). Em termos econômicos14, pode-se
dizer que o investimento energético vinculado a uma determinada representação se
transfere para outra, emocionalmente irrelevante.

Vamos recorrer a um exemplo para nos fazer entender. Uma paciente de S.


Ferenczi sonhou certa vez que enforcava um cachorrinho. Através do método de livre
associação, lembrou-se inicialmente que, não obstante detestar a tarefa, costumava
matar aves com finalidade culinária. Tal lembrança levou-a a uma série de associações
sinistras como penas capitais, enforcamentos etc. Em seguida, mediante uma indagação
do analista, lembrou-se de que nutria profundo ódio pela cunhada, que interferia no
relacionamento dela com o marido. Veio-lhe, então, à memória um acontecimento
recente: tinha expulsado esta pessoa de sua casa, tratando-a como um “cachorrinho”.
Com tais dados colhidos durante a análise, verificou-se que o cachorrinho estrangulado
representava a cunhada e que o sonho expressava mascaradamente o desejo de agredir e
matar a mulher odiada. É evidente a ocorrência de um deslocamento (Dalbiez, 1947, ps.
45 e 47).

4.3) A FIGURAÇÃO

Trata-se do mecanismo mediante o qual os pensamentos oníricos se transformam


em imagens, sobretudo visuais (CIP II, p. 209). O conteúdo latente dos sonhos
corresponde a nossos pensamentos de vigília: pode ser expresso num discurso
logicamente organizado, constituído por palavras concretas ou abstratas e frases que se
articulam mediante conjunções. A expressão deformada deste material, porém, é
significativamente diversa. No conteúdo manifesto, com efeito, só encontramos
imagens, sobretudo as visuais, e raramente algo que possa ser identificado com
palavras, conceitos abstratos ou conjunções. O modo de expressão dos sonhos regride a
um estágio infantil, arcaico (CIP II, p. 239), anterior ao pensamento logicamente
estruturado. Este processo singularíssimo de nossa vida psíquica talvez seja o mais
interessante dos quatro que compõem o trabalho do sonho.

14
Cf., adiante, p. 163.
18

Convém comparar este mecanismo com a tarefa de substituir um editorial


político por uma série de ilustrações (CIP II, p. 209s). As palavras concretas, como sol,
mesa, casa etc., podem ser facilmente representadas por figuras. Quanto aos termos
abstratos, vários procedimentos são possíveis, sendo o mais adequado recorrer a
elementos concretos que possam representar analogicamente o conceito. Por exemplo,
substituir “adultério” (em alemão Ehebruch, literalmente “quebra do casamento”) por
uma perna quebrada ou “aristocracia”, que significa etimologicamente “altamente
situado”, por uma torre; é possível também – um outro exemplo – representar a ideia de
posse pela ação real de estar sentado em cima de algo. Ora, o trabalho do sonho procede
exatamente deste modo: utiliza imagens ou figuras para expressar os pensamentos
oníricos, quer seus conceitos sejam abstratos ou concretos.

O processo se complica, porém, quando se trata de representar conjunções, isto


é, os elementos que articulam logicamente os enunciados no discurso. Freud observa
que “os sonhos não têm meios a sua disposição para representar estas relações lógicas
entre pensamentos oníricos” (IS, p. 352). Na maioria das vezes, os sonhos desprezam as
conjunções e só representam o “conteúdo substantivo” dos pensamentos oníricos.
Poder-se-ia, contudo, objetar que o conteúdo manifesto de vários sonhos apresentam
operações lógicas complexas como contar, avaliar, e, sobretudo, criticar enunciados, os
quais não raro são constituídos por frases inteiras, que aparecem pronunciadas ou, mais
raramente, escritas no conteúdo manifesto. Diante disto, pergunta-se: seriam os sonhos,
de fato, incapazes de representar relações lógicas? Freud responde do seguinte modo:
“todas as sentenças faladas que ocorrem nos sonhos e são especificamente descritas
como tais constituem reproduções de falas não modificadas entre as lembranças no
material dos pensamentos oníricos” (IS, p. 333). O sentido imediato de tais sentenças,
portanto, não tem qualquer relevância para a interpretação; o que importa é o sentido
latente, que uma vez decifrado, se revela como totalmente diverso do sentido literal. O
analista, portanto, deve tratar os enunciados que aparecem no sonho como
“representação de coisa” e não como “representação de palavras”15.

15
Freud distingue “representação de coisa” de “representação de palavra”. A primeira é essencialmente
visual, a segunda acústica. O inconsciente só contém representações de coisa, ao passo que “as
representações de palavras são introduzidas numa concepção que liga a verbalização e a tomada de
consciência. Assim, desde o Projeto de uma Psicologia (...) que encontramos a ideia de que é associando-
se a uma imagem verbal que a imagem mnésica pode adquirir o índice de qualidade específico da
consciência” (VP, p. 585).
19

Contudo, embora as relações lógicas não possam ser representadas


plasticamente, são capazes de encontrar um meio de expressão mais ou menos adequado
nos aspectos formais do sonho manifesto, isto é, na maior ou menor intensidade (clareza
ou nitidez) das imagens oníricas, na divisão dos sonhos em partes e assim por diante
(CIP II, p. 211; IS, p. 350-353). Por exemplo, a ideia de causalidade pode ser expressa
pela transformação de uma imagem onírica em outra ou pela divisão do sonho em duas
partes, sendo que, em geral, a parte introdutória representa o efeito da seguinte (IS, p.
335s). Já a alternativa “ou ... ou”, assim como as antíteses e contradições, não
encontram um meio de expressão adequado no sonho. No primeiro caso, ambas as
alternativas são inseridas no texto manifesto e, no segundo, o sonho combina os
elementos contrários numa unidade.

Os sonhos se sentem em liberdade (...) para representarem qualquer elemento


pelo desejo contrário a ele, de modo que não há maneira de decidir à primeira
vista se qualquer elemento que admite um contrário está presente nos
pensamentos oníricos como positivo ou como negativo (IS, p. 339).

Na verdade, o inconsciente ignora a negação e por isto nele coexistem lado a


lado pensamentos mutuamente exclusivos (IS, p. 634 e ICS, p. 103).

4.4) A ELABORAÇÃO SECUNDÁRIA

Freud nos adverte de que “nem tudo contido num sonho se origina dos
pensamentos oníricos” (IS, p. 523). É possível adotar diante do sonho, no momento
mesmo em que sonhamos, uma postura crítica que nos leve, por exemplo, a afirmar: “é
apenas um sonho!”. Em casos como este, o pensamento de vigília se introduz nos
pensamentos oníricos (conteúdo latente), com a finalidade de “reduzir a importância do
que acabou de ser experimentado e tornar possível tolerar o que vem a seguir” (IS, p.
522). A intromissão destes elementos estranhos está, portanto, a serviço da censura.
“Não pode haver dúvida de que o agente da censura, cuja influência até agora somente
reconhecemos em limitações e omissões no conteúdo do sonho, é também responsável
por interpolações e acréscimos” (IS, p. 523).

Observe-se, ainda, que é próprio do pensamento de vigília estabelecer ordem no


material perceptivo, estruturá-lo segundo certas relações, enfim, transformá-lo num todo
inteligível. Ora, “em nossos esforços para fazer um modelo inteligível das impressões
sensórias que são oferecidas, muitas vezes incidimos nos erros mais estranhos ou até
mesmo deturpamos a verdade sobre o material diante de nós” (IS, p. 534). O homem
20

não suporta o caos, isto é, o que não encontra lugar no seu sistema de referência. O
estranho é logo incorporado a um todo inteligível, mesmo à custa de uma adaptação
artificial e forçada. Esta tendência a racionalizar nossas experiências encontra-se
também nos sonhos. É o que Freud denomina elaboração secundária. “O elemento que
distingue e ao mesmo tempo revela essa parte da elaboração do sonho é a sua finalidade
(...). Como resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de absurdidade e
desconexão e se aproxima do modelo de uma experiência inteligível” (IS, p. 524). A
elaboração secundária é, assim, um mecanismo que introduz elementos do pensamento
de vigília nos pensamentos oníricos, com a finalidade de remodelar ou revisar o sonho
manifesto, de tal modo que este se apresente como “uma história relativamente coerente
e compreensível” (VP, p. 198).

Ressalte-se que estes elementos externos ao conteúdo latente não raro são
extraídos de fantasias ou sonhos diurnos. Freud anota as seguintes semelhanças entre os
sonhos noturnos e os devaneios de vigília: uns e outros são realizações de desejos,
fundamentam-se em grande parte nas impressões de experiências infantis e beneficiam-
se de um certo relaxamento da censura. Os sonhos diurnos, contudo, em contraste com
os noturnos, são sempre muito coerentes, ou seja, enquadram a fantasia num todo
inteligível. Ora, parece que a elaboração secundária não faz mais do que moldar os
materiais oníricos “em algo semelhante a um sonho diurno”. Para desempenhar
eficazmente esta função, nada mais oportuno do que utilizar as fantasias já produzidas
no estado de vigília, introduzindo-as no conteúdo dos sonhos (IS, p. 526s).

A elaboração secundária limita-se, às vezes, a tornar apenas uma parte do sonho


inteligível; outras vezes, atua de forma tão bem sucedida, que o sonho inteiro aparece
como um todo coerente. É neste último caso que ela pode mais facilmente ser
reconhecida pelo analista. Finalmente, em certos sonhos o mecanismo parece falhar
completamente, tal a incoerência e confusão do conteúdo manifesto (IS, p. 524s).

5) O MÉTODO DA LIVRE ASSOCIAÇÃO

A técnica das associações livres surgiu a partir das experiências de J. Breuer e H.


Bernheim no domínio das psiconeuroses de histeria e obsessão. Na época, a histeria era
uma doença pouco conhecida. Suas verdadeiras causas eram ignoradas pela medicina.
Ocorria, em geral, após fortes abalos emocionais. Alguns sintomas histéricos comuns
21

são: amnésia, anestesia de uma parte do corpo, paralisia, rigidez muscular, perturbação
16
da fala etc. Diferentemente da histeria, os sintomas obsessivos não são somáticos,
mas psíquicos. Os neuróticos obsessivos são, por assim dizer, perseguidos por ideias
absurdas. Ficam preocupados com coisas que não lhes interessam, experimentam
impulsos que lhes parecem estranhos e realizam atos cuja execução não lhes
proporciona qualquer prazer, mas dos quais não podem escapar (CIP III, p. 306). As
representações obsessivas frequentemente são absurdas e exigem, por parte dos
enfermos, um considerável desgaste intelectual e psíquico. O doente se preocupa com
coisas insignificantes como se fossem problemas de vital importância. Os atos
obsessivos consistem, não raro, em repetições, ações rituais e cerimoniosas, realizadas
na hora de dormir ou de se levantar, de se vestir ou se lavar etc. Tais atos acabam se
tornando exigências dolorosas só com muito sacrifício satisfeitas.

Freud demonstrou que estas duas neuroses têm origem psíquica e não somática.
A técnica psicanalítica, revelando as lembranças inconscientes dos neuróticos e
possibilitando-lhes uma descarga emocional, conseguiu remover os sintomas e assim
indicar o verdadeiro móvel da doença, que é de ordem psíquica. Além disso, a
experiência analítica demonstrou que, tal como ocorre com os sonhos, os sintomas
neuróticos não são absurdos nem aparecem por acaso: ao contrário, têm um sentido. O
que nos interessa no momento não é o estudo das neuroses, mas o método da livre
associação, essencial à terapia psicanalítica e à interpretação dos sonhos. Vamos relatar,
no entanto, um caso de histeria para facilitar a compreensão desse método.

Anna O., paciente de Breuer, manifestou no decurso de sua enfermidade uma


série de perturbações físicas e psíquicas: paralisia e anestesia do lado direito;
perturbações oculares; dificuldade de manter a cabeça erguida; tosse nervosa;
repugnância a alimentos e à água (hidrofobia); redução do poder de expressão verbal, a
ponto de haver esquecimento da língua materna; estado de ausência da realidade
(“absence”), ou seja, de confusão e delírio, de total alteração da personalidade (CLP, p.
24). Breuer dedicou-se cuidadosamente a esta jovem e acabou por conduzi-la à
eliminação dos sintomas. Verificou que nos estados de ausência ela murmurava certas
palavras desconexas. Resolveu anotá-las e, posteriormente, colocando a doente em
estado de hipnose, repetiu-as para ela, a fim de verificar sua reação. “A paciente entrou,

16
Sobre neurose obsessiva consultar pp 241s, 300 e 313s deste trabalho.
22

assim, a reproduzir diante do médico as criações psíquicas que a tinham dominado no


estado de ‘absence’ e que se haviam traído naquelas palavras isoladas. Eram fantasias
(...) que tomavam, habitualmente, como ponto de partida a situação de uma jovem à
cabeceira do pai doente” (CLP, p. 76). Após relatar tais fantasias, Anna se sentia
aliviada. Verificou-se, porém, em pouco tempo, que a aplicação de tal método não
apenas permitia o afastamento passageiro das perturbações, mas podia conduzir à
eliminação dos sintomas, desde que a jovem se recordasse da ocasião em que eles
tinham aparecido e o motivo dos mesmos, exteriorizando-se afetivamente durante o
relato da lembrança dolorosa (ab-reação). “Ninguém, até então, havia removido por tal
meio um sintoma histérico nem penetrado tão profundamente na compreensão de sua
causa” (CLP, p. 26s). Pouco a pouco, Breuer compreendeu que quase todos os sintomas
se formavam do mesmo modo, isto é, como resíduos de experiências dolorosas (traumas
psíquicos). Estudando esta terapia empregada por Breuer, Freud concluiu: “os histéricos
sofrem de reminiscências”, e anotou: 1º) A doença se instala quando a emoção
desenvolvida na situação traumática não se exterioriza; 2º) O sintoma pressupõe uma
amnésia, uma lacuna de memória, cujo preenchimento suprime as condições que
provocam a produção do sintoma (CLP, p. 31)17.

O método terapêutico empregado por Breuer, que visava justamente o


preenchimento desta lacuna da memória, ou seja, a recordação da origem traumática do
sintoma, exigia, como vimos, a hipnose do doente. Freud, porém, decidiu afastar esse
recurso, que só eliminava os sintomas por pouco tempo, não atuando, portanto,
profundamente sobre a doença (DVE, p. 289). Para tanto fez uso de uma descoberta de
Bernheim. Estudando fenômenos ligados ao hipnotismo, este pesquisador observou que
embora as pessoas hipnotizadas tendam, em condições normais, a esquecer do que se
passou durante o sono hipnótico, podem, no entanto, despertos, lembrar-se das
experiências a que foram submetidas, mediante uma insistência do hipnotizador (CIP
III, p. 128s). Freud resolveu proceder do mesmo modo com seus pacientes. “Quando
chegamos a um ponto em que nos afirmavam nada mais saber, assegurava-lhes que
sabiam, que só precisariam dizer” (CLP, p. 34). Desse modo, prescindindo do
hipnotismo, consegui restabelecer o vínculo entre a cena patogênica e o sintoma
neurótico. Surgiu, assim, o primeiro esboço do que seria o método da livre associação.

17
Posteriormente Freud descobriu a etiologia sexual das neuroses e situou a origem do conflito psíquico
na situação edipiana (Cf. p. 218 deste trabalho).
23

Como se vê, as recordações esquecidas não se haviam perdido. Ao contrário,


continuavam em poder do paciente e estavam prontas a reaparecer, não fosse a ação de
uma força enigmática, o recalque, que as mantinha fora do domínio do consciente, ou
seja, no inconsciente18. Que procedimento seguir para recuperar as ideias esquecidas? A
hipótese básica de Freud é de que não existem ideias fortuitas, isto é, sem propósito ou
não intencionais. Além das intenções conhecidas existem intenções desconhecidas ou
inconscientes. Durante o processo terapêutico, o paciente pode libertar-se das ideias
intencionais (ou representações-metas) conhecidas. Feito isso, porém, “ideias
intencionais desconhecidas – (...) ‘inconscientes’ – tomam conta e, daí por diante,
determinam o curso das ideias involuntárias” (IS, p. 563). Todas as ideias (ou
representações), quer conscientes, quer inconscientes, são atravessadas por uma
intenção, que as vincula entre si, formando assim um complexo de ideias. Na medida em
que o paciente deixa fluir livremente as ideias que lhe ocorrem, a intenção que as une
vai se revelando. Chega o momento em que o próprio paciente é capaz de verbalizar
esta intenção e assumir o desejo que a suporta, reorientando-o numa nova direção.

Como se vê, para Freud a consciência não monopoliza o sentido. Por detrás do
sentido consciente há o sentido inconsciente. Traímo-nos por todos os lados. Todo ato
humano “tem um sentido”. Expressamo-nos, mesmo quando não pensamos fazê-lo. O
sem sentido apenas mascara um sentido oculto. Assim, se em determinada situação,
recordamo-nos de algo, esta lembrança não está solta em nossa mente. Ao contrário, ela
se liga a outras lembranças aparentemente esquecidas, que pouco a pouco podem aflorar
na consciência. Daí a eficácia do método da livre associação que consiste justamente em
deixar o paciente expor, com toda a liberdade, isto é, sem autocrítica, as ideias que lhe
ocorrem, para que o analista possa, no trabalho de interpretação, concatenar tais ideias,
apresentando as relações ocultas que as unem. Esta técnica, desde que habilidosamente
dirigida, permite a reconstituição da experiência traumática e, com isto, a eliminação
dos sintomas neuróticos (DVE, p. 290s)19.

Freud empregou esta mesma técnica para interpretar os sonhos. Conforme


indicamos acima (p. 57), ele dividia o sonho em partes e aplicava para cada uma o

18
Sobre recalque e inconsciente, cf. adiante, p. 104-128.
19
Mais adiante vamos nos referir à resistência, um outro elemento fundamental da relação terapêutica
(Cf. p. 97 deste trabalho).
24

método associativo. Conseguia, assim, reconstituir a expressão latente do desejo


(pensamentos oníricos) numa tradução aproximada do sonho manifesto.

6) O SIMBOLISMO ONÍRICO

Foi uma aparente falha no emprego do método associativo que conduziu Freud à
descoberta de uma vigorosa simbólica que atua nos sonhos, embora ultrapasse o
domínio onírico. Com efeito, os pacientes, ao comunicarem as sequências de ideias que
lhes ocorrem esbarram frequentemente com certas representações que impedem o
prosseguimento das associações. É verdade que, muitas vezes, após algumas tentativas,
brotam algumas ideias. “Não obstante, restam casos nos quais deixa de surgir uma
associação, ou, se essa é obtida, não nos dá o que dela esperávamos” (CIP II, p. 180).
Quando a interpretação esbarra com “esses elementos oníricos mudos” é sinal de que
está diante de algum tipo de símbolo. O que é um símbolo no entender de Freud? É um
modo de representação que se caracteriza por uma relação permanente entre o signo
(elemento do sonho manifesto) e o que ele significa (sua “tradução”) (CIP II, p. 181).
Esta relação se fundamenta principalmente na analogia (forma, grandeza, função,
ritmo), mas também em alguns casos na simples alusão (VP, p. 629).

“O simbolismo não constitui peculiaridade exclusiva dos sonhos e não é


característico dos mesmos” (CIP II, p. 182). Com efeito, a mesma simbologia que
encontramos no sonho é empregada “por mitos e contos de fadas, pelas pessoas em seus
ditados e em suas canções, pelo uso idiomático coloquial e pela imaginação poética”
(CIP II, p. 198). A elaboração onírica, portanto, não cria os símbolos, mas apenas se
serve deles (Cf. IS, p. 375). É por isto que “a presença de símbolos nos sonhos não só
facilita sua interpretação como também a torna mais difícil” (IS, p. 376). Facilita,
porque, em certas circunstâncias, permite “interpretar um sonho sem fazer perguntas ao
sonhador...” (CIP II, p.181), já que o sentido dos símbolos se encontra elaborado na
cultura, ou seja, independe de uma investigação das características individuais do
paciente; dificulta, porque exige do intérprete um conhecimento da natureza do símbolo
e de suas características culturais. Neste sentido, o trabalho do psicanalista deve ser,
necessariamente, interdisciplinar. Há que se manter “vínculos com a mitologia e com a
filosofia, com o folclore, com a psicologia social e com a teoria da religião”, afirma
Freud (CIP II, p. 200).
25

A descoberta do simbolismo onírico mostra que a decifração do sentido dos


sonhos exige duas modalidades de interpretação: a associativa ou propriamente
psicanalítica e a simbólica, de origem popular (CIP II, p. 181). “A técnica do símbolo”,
observa Freud, “suplementa a técnica associativa e produz resultados que apenas
possuem utilidade quando subordinada a esta” (CIP II, p. 182).

Os símbolos descobertos pela psicanálise são numerosos, mas o campo do


simbolizável é muito limitado, a saber, “o corpo humano como um todo, os pais, os
filhos, irmãos e irmãs, nascimento, morte, nudez e algumas outras coisas mais” (CIP II,
p. 183). Consideremos alguns destes símbolos. A representação da figura humana, como
um todo, em geral, é feita por uma casa. As casas com paredes lisas representam
homens e com saliências e sacadas, mulheres. Os pais aparecem nos sonhos,
frequentemente, como imperador e imperatriz, rei ou rainha, os irmãos como príncipes
e princesas ou, também, como bichinhos. Os genitais masculinos são representados por
objetos que se assemelham a sua forma e têm uma função similar, quer dizer, coisas
alongadas e retas, além de penetrantes e cortantes. Por exemplo, bengalas, guarda-
chuvas, postes, árvores, facas, punhais, lanças, revólveres etc. O pênis ereto pode ser
simbolizado, também, por balões, aviões (máquinas voadoras) etc., e até pela
representação da pessoa inteira que sonha no ato de voar. Partes do corpo, como o braço
ou o pé, também representam o órgão masculino. Os genitais femininos, em geral,
aparecem no sonho sob a forma de objetos ocos, isto é, capazes de conter algo em si.
Por exemplo: buracos, cavidades, vasos, garrafas, caixas, malas, estojos, cofres, bolsas
etc. Portas e portões podem também simbolizar os orifícios femininos, assim como a
boca pode substituir a vagina. Os seios são representados por frutas, como peras ou
maçãs, e a complexa topografia das partes genitais femininas, por paisagens, com
rochedos, florestas e água. Já o aparelho genital pode ser substituído por máquinas
complexas. O ato sexual, em geral, é representado por atividades rítmicas, como dançar,
cavalgar e subir ou descer escadas. A castração é simbolizada pela queda ou corte de
cabelos, pelo cair de dentes, pela decapitação etc. (CIP II, p. 183-184; IS, p. 377-383).

No entender de Freud, “o simbolismo é, talvez, o mais notável capítulo da teoria


dos sonhos” (CIP II, p. 181). Constitui uma espécie de linguagem básica ou primitiva,
“um modo de expressão antigo”, de que só conhecemos hoje alguns vestígios. É
possível até, levando-se em conta a tese do filólogo H. Sperber, segundo a qual “as
necessidades sexuais desempenham o papel principal na origem e no desenvolvimento
26

da linguagem” (CIP II, p. 199), que as relações simbólicas sejam resíduos de um meio
arcaico de expressão, o qual se servia basicamente de representações sexuais. Isto
explicaria porque a grande maioria dos símbolos tem caráter erótico (CIP II, p. 184).

(FALTA UMA CONCLUSÃO PARA ESTE CAPÍTULO)


27

CAPÍTULO II

A METAPSICOLOGIA

Freud sempre teve a preocupação de oferecer às suas descobertas um arcabouço


conceptual. O que ele denomina “metapsicologia” é, justamente, a parte teórica da
psicanálise. O discurso metapsicológico, ressalte-se, tem uma sólida base empírica. O
objetivo de Freud não é construir um saber especulativo, mas um saber científico. As
proposições que carecem de base experimental são logo denunciadas. “O que segue é
especulação...”, afirma, por exemplo, ao introduzir suas reflexões sobre as pulsões de
vida e de morte em Para além do princípio do prazer (Cf. APP, p. 37). Os momentos
especulativos, contudo, constituem exceção no conjunto da obra. Os escritos de Freud
dão testemunho de um monumental esforço para construir uma ciência psicanalítica e
de uma confiança inabalável na possibilidade de um conhecimento objetivo do real (Cf.
FI, p. 68-71). Como Freud encara a pesquisa científica? “O verdadeiro início da
atividade científica” afirma ele, “consiste (...) na descrição dos fenômenos, passando
então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação” (IV, p. 27). O projeto da
psicanálise, portanto, é construir um novo campo de inteligibilidade para os fenômenos
psíquicos, com base na observação clínica.

No capítulo VIIº de A Interpretação dos Sonhos, - um importantíssimo texto de


metapsicologia -, Freud nos diz que explicar é passar do desconhecido ao conhecido e
considerando que em sua época não havia um sistema psicológico capaz de acolher
novas teorias no domínio dos sonhos, comunica-nos que se viu na iminência de criar um
certo número de hipóteses relativas à estruturação da mente humana. Adverte-nos,
porém, de que tal tarefa não pode deixar de apresentar riscos: “Temos de ter cuidado em
não seguir essas hipóteses demasiado além de seus primeiros elos lógicos ou o seu valor
se perderá em incertezas” (IS, p. 545). Nunca é demais insistir sobre este caráter não
dogmático da obra de Freud. Coerente com seu projeto de criar um novo domínio de
objetividade científica, reformulou continuamente os conceitos metapsicológicos e
nunca deixou de considerar os modelos teóricos precisamente como modelos, isto é,
flexíveis e capazes de readaptação. O sistema freudiano não é fechado, mas aberto; não
é estático, mas orgânico. Está sempre em condições de assimilar novos elementos. “O
28

avanço do conhecimento”, diz Freud, “(...) não tolera qualquer rigidez” (IV, p.27). Esta
é a tônica do discurso metapsicológico.

O mestre vienense reconhece que o pensamento humano não resulta apenas de


“uma curiosidade desinteressada”, mas “possui motivos práticos” (FI, p. 34). Está ciente
que “as pessoas raramente são imparciais no que concerne às coisas supremas, aos
grandes problemas da ciência e da vida” e que, “em tais casos, cada um de nós é
dirigido por preconceitos internos profundamente enraizados...”. Justamente por isto, a
desconfiança e não a confiança deve ser a atitude correta a tomar frente aos “resultados
de nossas próprias deliberações...” (Cf. APP, p. 78s), afirma com sabedoria o pai da
psicanálise.

No que diz respeito à terminologia psicanalítica, Freud observa que trabalha com
uma “linguagem figurativa, peculiar à psicologia (ou, mais precisamente, à psicologia
profunda)” e acrescenta: “As deficiências de nossa posição provavelmente se
desvaneceriam se nos achássemos em posição de substituir os termos psicológicos por
expressões fisiológicas ou químicas”. Reconhece, contudo, que até mesmo as ciências
naturais empregam uma linguagem metafórica, com a qual, porém, já estamos
familiarizados (Cf. APP, p. 79).

Como discernir os conceitos metapsicológicos? O que confere ao discurso


psicanalítico o caráter teórico? Freud o diz: “Proponho que, quando tivermos
conseguido descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico [ou
tópico] e econômico, passemos a nos referir a isso como uma representação
metapsicológica” (INC, p. 98). A nossa exposição, portanto, se orientará, a seguir, por
esta recomendação. Investigaremos (1) o ponto de vista tópico, (2) o ponto de vista
econômico e (3) o ponto de vista dinâmico. Acrescentaremos, contudo, uma seção sobre
as relações entre (4) inconsciente e linguagem, tendo em vista a relevância do modelo
linguístico nas pesquisas psicanalíticas pós-freudianas, pesquisas estas que são
discutidas e em parte endossadas por Paul Ricoeur.
29

1) O PONTO DE VISTA TÓPICO

Freud emprega a metáfora do lugar psíquico para representar os processos


psíquicos. Essa topografia da mente pressupõe o modelo do aparelho psíquico.
Conforme veremos, a mente é comparada ora a um aparelho neurônico, ora a um
aparelho ótico. Em ambos os casos, o que se pretende é “tornar inteligíveis as
complicações do funcionamento mental, através da dissecação da função e da atribuição
de seus diferentes constituintes a partes componentes diferentes do aparelho” (IS, p.
572). Quer dizer, trata-se de simplificar a compreensão do psiquismo, decompondo-o
em partes (ou lugares) e atribuindo a cada uma delas funções específicas.
Consideraremos, portanto, inicialmente a hipótese do aparelho psíquico (II.1.1.), para
em seguida tratarmos do ponto de vista tópico, em sua dupla versão: inconsciente e pré-
consciente/consciente (II.1.2.); id, ego e superego (II.1.3.).

1.1) O APARELHO PSÍQUICO

O ensaio póstumo Projeto para uma Psicologia Científica (1895) caracteriza-se


pela tentativa de localizar anatomicamente os processos psíquicos e reduzir a mente a
um aparelho neurônico. Em A Interpretação de Sonhos (1900), Freud abandona este
projeto, por julgá-lo inexequível, e cria a hipótese do aparelho psíquico. “Evitarei,
cuidadosamente”, comunica-nos, “a tentação de determinar a localização psíquica por
qualquer modo anatômico” (IS, p. 572). Contudo, conforme veremos, a referência
anatômica não está de todo ausente nesta nova fase. Seja como for, Freud se dá conta
das dificuldades insolúveis de sua proposta anterior e, referindo-se ao novo modelo,
afirma: “Analogias desta espécie destinam-se apenas à auxiliar nossos esforços em
tornar inteligíveis as complicações do funcionamento mental...” (IS, p. 572). Na
verdade, trata-se, no dizer do próprio Freud, de uma descrição concreta, de uma
hipótese grosseira ou, como ele afirma recorrentemente, de uma “ficção” (Cf. IS, p. 572
e p. 642; SMTS, p. 153; DPFM, p. 169).

Deixaremos para apresentar o aparelho neurônico de 1895 numa outra seção20,


limitando-nos a considerar, no momento, o modelo posterior. A intenção de Freud no
Capítulo VIIº de A Interpretação de Sonhos é “representar o instrumento que executa
nossas funções mentais como semelhante a um microscópio composto, a um aparelho

20
Consultar p. 164 deste trabalho.
30

fotográfico ou algo deste tipo” (IS, p. 572). O modelo neurônico é substituído, portanto,
pelo modelo ótico. Vejamos a estrutura e funcionamento deste novo aparelho.

Freud inspirou-se numa observação de G. T. Fechner (1801-1887) para


introduzir sua nova representação do psiquismo. Segundo este pesquisador, “a cena de
ação dos sonhos é diferente da cena da vida ideacional de vigília” (apud Freud, IS, p.
572). A descoberta da elaboração onírica e dos processos inconscientes, em geral, deu
uma nova dimensão a estas palavras. Freud tinha, ao que parece, melhores motivos que
Fechner para afirmar que o lugar em que se forma o sonho é outro em relação aquele
em que se formam os pensamentos de vigília. Por isto, num insight, reconhece: “o que
nos é apresentado nessas palavras é a ideia de localização psíquica” (IS, p. 572). Uma
das finalidades do novo modelo é, assim, representar esquematicamente o cenário
peculiar às imagens oníricas.

O aparelho é composto de vários sistemas ou instâncias dispostos numa ordem


espacial e temporal. Tem uma extremidade sensória e uma outra motora. Na primeira,
situa-se um sistema que recebe percepções; na segunda, um outro que dá acesso à
motilidade. Os processos psíquicos avançam, normalmente, de uma extremidade para a
outra. A energia21 recebida no polo perceptivo é restituída sob a forma motriz no polo
oposto. O aparelho, portanto, tem um sentido ou direção. Observe-se, ainda, que ele
segue o modelo do arco reflexo (Cf. IS, p. 573s e 636; VP, p. 661)22.

As percepções deixam certos vestígios em nossa mente. Podemos denominá-los


traços mnésicos e à função que lhes é relacionada, memória. Não se pode admitir que
“um só e mesmo sistema possa com exatidão reter modificações de seus elementos e,
apesar disso, permanecer aberto à recepção de novas ocasiões de modificações” (IS, p.
574). É preciso, então, atribuir cada uma dessas funções (a que percebe e a que retém os
vestígios da percepção) a sistemas diferentes. A separação da percepção e da memória
em sistemas distintos é uma tese que, diga-se de passagem, Freud sempre defendeu (Cf,
por exemplo, APP, p.38).

21
Sobre o conceito de energia psíquica consultar p. 163 deste trabalho.
22
Reflexo é a reação automática (involuntária, portanto) de um organismo a uma excitação. O arco
reflexo é o conjunto de mecanismos nervosos (cadeias de neurônios) que está na base da atividade
reflexa.
31

Observe-se que o que é retido das excitações sensoriais não é, propriamente, o


conteúdo delas. Tal conteúdo encontra-se ligado a muitas outras percepções, segundo
diversas associações; é sempre um conjunto de percepções que vem à tona na
lembrança23. Na verdade, “uma mesma e única excitação, transmitida pelos elementos
Pcpt.24, deixa uma variedade de registros permanentemente diferentes” (IS, p. 572). Há
registros relativos à similaridade e contraste, outros à simultaneidade e contiguidade e
assim por diante. Isto explica porque um mesmo evento pode ser recordado de diversos
modos ou segundo diferentes redes associativas. Temos, portanto, que nos referir a
vários sistemas mnésicos e não apenas a um. Como se vê, Freud tem uma concepção
original, complexa e sofisticada da memória, que muito o distancia do empirismo
vulgar.

Não faz da memória a ideia de um puro e simples receptáculo, (...) mas fala
de sistemas mnésicos, desmultiplica a recordação em diversas séries
associativas e designa por fim pelo nome de traço mnésico, menos uma
‘impressão fraca’ que permanece numa relação de semelhança com o objeto,
do que um signo sempre coordenado com outros (...). Nesta perspectiva, a
Vorstellung de Freud já foi aproximada da noção linguística de significante
(VP, p. 583)25.

Enquanto a consciência é uma função do sistema perceptivo, os sistemas


mnésicos são inconscientes26. “Nossas lembranças – sem excetuar aquelas que se acham
mais profundamente em nossa mente – são, em si próprias, inconscientes”. Podem-se
tornar conscientes, mas são capazes de “produzir todos os seus efeitos enquanto se
acham numa condição inconsciente” (Cf. IS, p. 576).

Já vimos que existem duas forças psíquicas conflitantes atuando na formação


dos sonhos. Uma representada pelo desejo e outra, pela censura. A instância crítica,
porém, não atua apenas durante o sono: está presente, também, na vida de vigília,
colocando-se “como uma tela” entre o desejo inconsciente e a consciência (Cf. IS, p.
576s). Onde situar a censura no aparelho psíquico? Observe-se que caso as
representações inconscientes se apresentassem à consciência, inevitavelmente,
desencadeariam uma ação ou movimento consequente. A ação transformadora do

23
“É um fato familiar que retemos permanentemente algo mais que o simples conteúdo das percepções
(...). Nossas percepções se acham mutuamente ligadas em nossa memória...” (IS, p.575).
24
Abreviação empregada por Freud para designar o sistema perceptivo.
25
Sobre Vorstellung (representação) e sua aproximação por J. Lacan da noção linguística de significante,
consultar p. 257 deste trabalho.
26
Freud admite duas modalidades de inconsciente: o virtual (pré-consciente) e o sistemático e dinâmico
(inconsciente propriamente dito) (Cf., adiante, p.....).
32

mundo externo, com efeito, pressupõe uma representação ou conjunto de representações


que a oriente27. Exatamente por isso, as representações incompatíveis com os interesses
da realidade devem permanecer inconscientes. Para garantir isto, o lugar mais
apropriado para hospedar a censura é a extremidade motora do aparelho (Cf. IS, p. 577).
Neste ponto estratégico, ela regula o trânsito das representações inconscientes para o
sistema pré-consciente, interditando a passagem das representações que não foram
modificadas pelo deslocamento, condensação e outros mecanismos que já conhecemos
(Cf. IS, p. 579). Aquelas que são admitidas no pré-consciente podem tornar-se
conscientes e daí atingir o polo motriz do aparelho, sem, contudo, acarretar qualquer
risco para este.

Dissemos que a censura atua durante a vigília, ou seja, que ela é um componente
de nosso psiquismo, estando presente quer nos casos patológicos quer no
funcionamento normal da mente. Na verdade, o sistema inconsciente “não conhece
outro objetivo que não seja a satisfação dos desejos”. Não apenas os sonhos, mas
também os sintomas “devem ser encarados como realização de desejos inconscientes”
(IS, p. 606). Em síntese: “somente um desejo é capaz de colocar o aparelho em
movimento...” (Cf. IS, p. 636)28. Ora, se o desejo é o móvel da vida psíquica e, por
outro lado, não pode ser realizado sem colocar em risco o aparelho como um todo,
compreende-se que a censura deva atuar continuamente, exigindo a deformação da
expressão primeira do desejo, mediante os mecanismos já estudados (condensação,
deslocamento etc.).

É possível representar esquematicamente o aparelho psíquico do seguinte modo


(CF. IS, p. 577):

Pcpt Mnes Mnes Ics Pcs

..….. M

27
Conforme veremos, a representação é representação-meta (ou ideia-intencional), quer dizer, ela é
atravessada por uma intenção consciente ou inconsciente (Cf. p. 113 deste trabalho).
28
Sobre a noção de desejo consultar p. 104 deste trabalho.
33

Vejamos como Freud explica este diagrama. Os sistemas mnésicos (Mnes)


situam-se entre os dois polos do aparelho. Na extremidade sensória temos o sistema
perceptivo (Pcpt) e na extremidade motora (M) o pré-consciente (Pcs), cujas
representações podem facilmente se tornar conscientes e mobilizar uma ação
consequente29. O sistema subjacente é o inconsciente (Ics), que “não tem acesso à
consciência exceto por via do pré-consciente” (IS, p. 577). A censura, conforme
dissemos, situa-se na extremidade motora e o impulso que forma sonhos e sintomas, isto
é, o desejo, no sistema inconsciente (Cf. IS, p. 578). É bem verdade que os desejos se
vinculam a elementos do pré-consciente para produzirem as imagens oníricas, mas o
verdadeiro móvel do sonho são desejos inconscientes infantis (Cf. IS, p. 627).

Uma das características essenciais do sonho é a confusão entre o imaginário e o


real, entre as representações oníricas e a percepção. O sonhador, enquanto sonha, confia
em suas imagens como se fossem reais (Cf. IS, p. 571). Como se explica esta
propriedade dos sonhos? Já vimos que o funcionamento do aparelho obedece a uma
certa direção ou sentido. Na vigília, normalmente, as excitações seguem da extremidade
sensória para a extremidade motora, ou seja, num sentido progressivo. No estado de
sono, quer dizer, de fuga do mundo, as excitações não têm como ser descarregadas no
polo motriz, pois o que dorme não se move. Elas seguem, portanto, na direção inversa
da de vigília, isto é, da extremidade motora para a extremidade sensória. É este sentido
regressivo do sonho que explica o seu caráter alucinatório 30. Observe-se que este
funcionamento regressivo do aparelho não se dá apenas no sono, mas também na
vigília, em condições especiais. É o caso das alucinações histéricas e paranoicas (Cf. IS,
p. 582 e 605). Ocorre, também, nos primeiros meses de vida, quando a criança não
dispõe ainda de meios intelectuais e motores para buscar por si mesma os objetos
capazes de satisfazer seus desejos. Dependente em tudo de sua mãe e incapaz de
distinguir o imaginário do real, a criancinha alucina seu desejo, tal como o adulto o faz
durante o sono. Trataremos deste exemplo privilegiado em outra seção31. Por ora,
queremos apenas lembrar que a regressão onírica encontra a sua gênese e o seu
protótipo na alucinação do pequenino ser. “O sonho é um pedaço de vida mental infantil

29
O pré-consciente, diz Freud, “detém a chave do movimento voluntário” (IS, p. 577).
30
“A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece nos sonhos é dizendo que a excitação se
movimenta numa direção para trás. Em vez de ser transmitida na direção da extremidade motora do
aparelho, ela se movimenta no sentido da extremidade sensória e atinge finalmente o sistema perceptivo”
(IS, p. 578).
31
Cf., adiante, p. 109-115.
34

que foi suplantado” (IS, p. 604). Quer dizer, o sonho adulto é uma espécie de resíduo
arqueológico do funcionamento primitivo da mente.

Freud observa que a regressão também desempenha um papel importante na


formação dos sintomas neuróticos e esclarece que ela deve ser encarada sob tríplice
aspecto: 1º) como regressão tópica, ou seja, no sentido indicado na representação
esquemática do aparelho (da extremidade motora para a extremidade sensória); 2º)
como regressão temporal, pois se trata de um retorno a estruturas psíquicas arcaicas; 3º)
como regressão formal, na medida em que retoma métodos primitivos de expressão,
quer dizer, abandona o discurso logicamente estruturado e recorre à figuração (Cf. IS, p.
584).

Acabamos de apresentar o funcionamento do aparelho durante o sono ou num


estado de completa impotência para modificar o real. É chegado o momento de indagar:
como ele opera no estado de vigília? Ou melhor: em que condições ele pode atuar sobre
o mundo externo?

Até aqui temos falado de vários sistemas. A partir de agora é oportuno nos
limitarmos a dois: “[eles] são o germe daquilo que no aparelho integralmente
desenvolvido, descrevemos como o Inc. (inconsciente) e o Pcs. (pré-consciente/
consciente)” (IS, p. 637, os parênteses são nossos). A transformação do mundo só pode
vir do segundo sistema, pois o primeiro “é incapaz de fazer qualquer coisa que não seja
desejar” (IS, p. 639), ou por outra, só busca o prazer, isto é, o alívio das tensões
produzidas pelas excitações e é impotente para sair do curto circuito regressivo
(alucinação)32. Para atuar sobre a realidade externa, o segundo sistema deve: 1º)
“possuir a totalidade do material de memória livremente a seu comando”; 2º) “manter a
maior parte de suas catexias [ou investimentos] de energia num estado de quiescência e
33
empregar apenas uma pequena parte no deslocamento” (IS, p. 637) . Enquanto a
atividade do primeiro sistema (Ics) “se dirige para garantir a livre descarga das
quantidades de excitações, (...) o segundo sistema, por meio das catexias [ou
investimentos] que dele emanam, obtém êxito em inibir a descarga e em transformar a
catexia [ou o investimento], numa catexia [ou investimento] quiescente” (IS, p. 637s).

32
Sobre o conceito de prazer, consultar ps. 169-178 deste estudo.
33
Sobre investimento e energia psíquica, consultar adiante, p. 179-183.
35

O que Freud nos está dizendo com esta terminologia de cunho fisicalista, mas
rigorosa, é que no inconsciente a energia flui livremente, como dão testemunho os
mecanismos do deslocamento, da condensação e da figuração (Cf. IS, p. 633-637), ao
passo que no pré-consciente/consciente, a energia não pode ser descarregada totalmente,
já que uma parte dela deve ser retida ou armazenada para que o aparelho tenha
condições de transformar o mundo e obter os objetos de que necessita. Em outros
termos: o aparelho psíquico, para atuar sobre a realidade, deve transformar a energia
livre em energia ligada.

Levando-se em conta que o aparelho, em ambos os sistemas, é regulado pelo


princípio do prazer (ou princípio do desprazer, segundo a terminologia34 de Freud na
época) 35, e considerando-se que o prazer é concebido como diminuição da excitação e o
desprazer como acréscimo, conclui-se que o segundo sistema, para armazenar a energia
necessária à transformação do mundo externo, só pode investir numa representação caso
encontre condições de “inibir o desenvolvimento do desprazer que dela pode provir”
(IS, p. 639). Observe-se, contudo, que esta inibição não pode ser completa: um início
(ou sinal) de desprazer é necessário para informar o segundo sistema e mobilizar um
mecanismo capaz de afastar a representação aflitiva. Este mecanismo é denominado por
Freud Verdrängung (recalcamento, recalque ou, de acordo com a discutível tradução
inglesa, repressão) (Cf. IS, p. 642)36.

Os processos inerentes ao segundo sistema, introduzidos pelo recalque, são


denominados secundários, em oposição aos do primeiro, que são primários. Estes se
caracterizam pelo deslocamento, condensação, figuração, ausência de negação etc.
(CF. IS, p. 640-643); aqueles, pela consciência, atenção, memória, ação, pensamento
racional, imaginação etc. (Cf. DPFM, p. 169s). Conforme veremos ao estudar o ponto
de vista econômico (Cf., adiante, p......), os processos primários exigem a energia móvel
e os secundários, a energia ligada. Uma das funções principais do aparelho psíquico é
exatamente operar a transformação de uma modalidade de energia em outra e substituir
os processos primários pelos secundários, o que só é possível pela sujeição das

34
Sobre a terminologia freudiana, consultar, acima, p. 79.
35
“... o princípio do desprazer regula claramente o curso da excitação no segundo sistema tanto quanto no
primeiro” (IS, p. 639).
36
Sobre recalque consultar, adiante, ps. 104-123.
36

tendências pulsionais impregnadas de desejo (Cf. APP, p. 81)37. O termo aparelho,


aliás, sugere a ideia de um trabalho a realizar. Freud inspirou-se, conforme dissemos, no
modelo de arco reflexo, segundo o qual a energia recebida na extremidade sensória é
restituída sob forma motriz na outra extremidade (Cf. VP, p. 65 e 661).

A respeito desta hipótese da transformação energética (trabalho psíquico),


sempre presente nos escritos metapsicológicos, Freud, contudo, nos confessa: “a
mecânica desses processos é-me inteiramente desconhecida”. E indicando uma certa
dependência do modelo ótico ao antigo modelo neurônico, completa: “Quem quer que
queira tomar estas ideias a sério teria de procurar analogias físicas para elas e descobrir
um meio de representar os movimentos que acompanham a excitação dos neurônios”
(IS, p. 637).

1.2) A PRIMEIRA TÓPICA

O ponto de vista tópico, conforme mostramos, emprega a metáfora do lugar


psíquico. A primeira topografia da mente elaborada por Freud pretende indicar em que
sistema (consciente ou inconsciente) ou entre que sistemas (pré-consciente) (Cf. INC, p.
89s) do aparelho situa-se determinado ato psíquico. A hipótese do inconsciente é uma
exigência clínica, mas a representação topográfica da mente também o é. Com efeito, se
o analista comunicar a um paciente uma ideia recalcada (lembrança, fantasia etc.)
elucidada durante a terapia, esta comunicação, de início, não lhe provocará qualquer
mudança. No entanto, a partir de então o paciente possuirá a mesma representação “sob
duas formas, em diferentes lugares em seu mecanismo mental” (INC, p. 92). Quer dizer,
o que lhe foi comunicado passa a existir em seu psiquismo em dois registros distintos:
como representação consciente e como “lembrança inconsciente”. É lícito, portanto, nas
construções teóricas da psicanálise, empregar a analogia do “lugar psíquico”. No
entanto, adverte-nos Freud, esta “topografia psíquica, no momento [sic], nada tem a ver
com a anatomia; refere-se (...) a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam
situadas no corpo” (INC, p. 91. O grifo é de Freud). Considerando-se que o artigo citado
(O Inconsciente) veio à lume em 1915, conclui-se que o projeto organicista de 1895
nunca foi completamente abandonado, embora com o passar dos anos, não obstante as

37
Sobre energia livre e energia vinculada consultar p. 130 deste trabalho e sobre processos primários e
secundários, p. 129.
37

intenções reducionistas de Freud, a sua realização se tornasse inviável, porque


incompatível com a direção assumida pelo discurso metapsicológico.

1.2.1) SISTEMAS INCONSCIENTE E PRÉ-CONSCIENTE/CONSCIENTE

A hipótese o inconsciente é necessária e legítima (Cf. INC, p. 81). Necessária


porque os dados da consciência, tanto nos indivíduos psicologicamente sadios como nos
doentes, apresentam um grande número de lacunas. Com efeito, certas formações
psíquicas bem conhecidas, como os sonhos, sintomas e atos falhos permaneceriam
ininteligíveis se insistíssemos em reduzir a vida psíquica à consciência. Contudo, elas se
enquadram numa “ligação demonstrável” quando as interpolamos com atos
inconscientes (Cf. INC, p. 82). O exemplo do sonho, que acabamos de estudar, revela-
nos como todos estes fenômenos, aparentemente absurdos, têm um sentido. “Em todos
os casos onde parece reinar a arbitrariedade, o acaso ou a incoerência, a psicanálise
afirma existir um sentido que pode ser descoberto” (Brabant, 1977, p. 15).

Ressalte-se que antes mesmo das primeiras pesquisas psicanalíticas, as


experiências com a hipnose, em especial a sugestão pós-hipnótica, já tinham
demonstrado a existência do inconsciente (Cf. INC, p. 84). O indivíduo que, desperto do
sono hipnótico, obedece a uma ordem do hipnotizador, sem reconhecê-la, só pode estar
agindo por influência de uma motivação inconsciente. Assim,

pelo estudo dos fenômenos hipnóticos, tornou-se habitual a concepção, a


princípio estranhável, de que num mesmo indivíduo são possíveis vários
agrupamentos mentais que podem ficar mais ou menos independentes entre
si, sem que um ‘nada saiba do outro’. (CCP, p. 31)

Tais agrupamentos constituem, justamente, o inconsciente e o consciente.

Além de necessária para explicar as lacunas da consciência, a hipótese do


inconsciente é legítima. Embora só tenhamos consciência direta de nossos estados
mentais, atribuímos, por analogia, a outras pessoas a posse de uma consciência igual a
nossa. De modo semelhante, devemos atribuir os estados mentais que não temos como
relacionar com o resto de nossa vida psíquica, não a uma outra consciência que, por
ventura, existisse em nós, pois isto seria absurdo (uma tal consciência não seria
consciente de si), mas ao inconsciente (Cf. INS, p. 84-87). Quer dizer, pelo fato de não
38

termos acesso direto ao inconsciente, não é justo negar a sua existência. É perfeitamente
legítimo inferi-la de suas manifestações ou de seus efeitos38.

A psicanálise nos mostra, portanto, que “a equivalência convencional entre o


psíquico e o consciente é totalmente inadequada” (INC, p. 83). A divisão da mente em
consciente e inconsciente constitui, assim, a premissa fundamental da psicanálise (Cf.
EI, p. 23).

Pode-se falar de duas modalidades de inconsciente: o inconsciente descritivo e o


inconsciente sistemático. O primeiro “abrange (...) atos que são meramente latentes,
temporariamente inconscientes, mas que em nenhum outro aspecto diferem dos atos
conscientes”. O segundo, “abrange processos tais como os reprimidos [ou recalcados],
que, caso se tornassem conscientes, estariam propensos a sobressair num contraste mais
genérico com o restante dos processos conscientes” (INC, p. 88). Freud reserva o termo
inconsciente para o segundo sentido, e denomina pré-consciente o inconsciente virtual
ou descritivo.

Portanto, há dois modos de exclusão de representações da atividade mental


consciente. Uma exclusão temporária, e outra definitiva. As representações pré-
conscientes podem ser admitidas no consciente; as representações inconscientes, por
serem recalcadas, só em circunstâncias extraordinárias, possibilitadas pela terapia
analítica, são capazes de transitar para o pré-consciente e daí para o consciente39.

Temos, assim, dois sistemas psíquicos, cada um dotado de leis próprias. Há uma
ordem peculiar ao inconsciente e uma outra ao consciente. O inconsciente não é o lugar
da desordem, mas uma outra maneira de se organizar os processos mentais frente à
ordem do consciente. A própria metáfora do aparelho psíquico, constituído por sistemas
diversos com funções peculiares, indica que na mente não há lugar para a desrazão e o
acaso. “O psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental.

38
“Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor – devido a
algum motivo tal qual o inferimos a partir de seus efeitos –, mas do qual nada sabemos” (NCIP, p.90).
39
O que foi originalmente recalcado, contudo, jamais tem acesso à consciência (sobre o conceito de
recalque originário, cf. adiante ps. 119-123)
39

Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou causal nas manifestações psíquicas”
(CCP, p. 46)40.

Tendo em vista distinguir de forma abreviada, direta e inconfundível a utilização


do termo inconsciente no sentido sistemático de seu emprego no sentido descritivo,
Freud propõe algumas abreviaturas, a saber: Ics para o inconsciente; Pcs para o pré-
consciente e Cs para o consciente. Os dois (ou três) sistemas são, então, Ics e Pcs-Cs
(Cf. INC, p. 88s e EI, p. 24s).

Já que se trata de dois sistemas, cada um com sua legalidade própria, Freud
compara o inconsciente a um outro sujeito que atropela o sujeito consciente: “todos os
atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de
minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser
explicados por uma via mental atribuída a essa outra pessoa” (INC, p. 85. Cf. NCIP, p.
90).

1.2.2) A RESISTÊNCIA

O recalque, conforme veremos, é uma força psíquica que se opõe a


determinadas representações, quer mantendo-as no inconsciente, quer afastando-as do
consciente. O que evidencia a presença desta força é a prática terapêutica, ou mais
precisamente, a resistência.

O fato de se ter encontrado, na técnica da psicanálise, um meio pelo qual a força


opositora pode ser removida e as ideias em questão tornadas conscientes, torna
irrefutável esta teoria (...). A força que institui a repressão [ou recalque] e o mantém
é percebida como resistência durante o trabalho da análise (EI, p. 25).

O que vem a ser esta resistência a que se refere Freud? A descoberta deste
mecanismo está ligada ao emprego do método da livre associação. A resistência sempre
aparece durante o processo terapêutico. Sua função é impedir o acesso do analisando ao
inconsciente. “Quando nos empenhamos em curar um doente”, diz Freud, “de
desembaraçá-lo de seus sintomas mórbidos, ele nos opõe uma resistência violenta,

40
Contudo, já o vimos, Freud se refere também ao sentido dos processos psíquicos, quer conscientes ou
inconscientes. “Queremos dizer com isso tão somente a intenção à qual serve a sua posição em uma
continuidade psíquica. Na maioria das nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por ‘intenção’
ou ‘propósito’” (Cf. CIP I, p. 57). Há que se articular, portanto, o determinismo psíquico com o sentido
dos atos psíquicos (Cf. IS, p. 563 e p. 636).
40

teimosa, que se mantém durante toda a duração do tratamento” (CIP III, p. 337).
Quando o analista pensa ter superado uma resistência descobre, decepcionado, que ela
apenas se metamorfoseou em outra. Freud enumera vários exemplos: o esquecimento do
que se queria dizer, a desvalorização do material a ser apresentado, acanhamento,
excesso ou ausência de ideias, argumentos teóricos contra a psicanálise etc (Cf. CIP III,
p. 338-342). A intensidade da resistência tende a crescer quando surge na análise um
tema novo, alcança o ponto máximo quando a elaboração do tema é mais satisfatória e
decresce quando o tema se esgota (Cf. CIP III, p. 343).

Na interpretação dos sonhos, a resistência pode aparecer como esquecimento ou


dúvida do que se sonhou. Por isto, deve-se utilizar tanto o menor e mais incerto
constituinte do relato quanto o mais claro e distinto. “Tratamos como se fosse a Sagrada
Escritura aquilo que autores precedentes haviam encarado como uma imposição
arbitrária” (IS, p. 548). Na verdade, a deformação do relato apenas continua o trabalho
do sonho: é um artifício empregado pela elaboração secundária. O psicanalista pode,
inclusive, usar de certa astúcia para provocar uma reconstituição mais adequada do
sonho, a saber, induzir o paciente a realizar um segundo relato e, na repetição, registrar
as novas palavras empregadas. O trecho modificado indica o núcleo do sonho mais
sensível à resistência. Sobre ele, certamente, a censura operou com maior vigor. Daí a
dificuldade do paciente em comunicá-lo (Cf. IS, p. 549).

A mais importante forma de resistência é a transferência. Trata-se da força mais


eficaz para impedir o acesso do analisando ao inconsciente. Contudo, o analista pode,
habilmente, transformar o que seria apenas um obstáculo terapêutico em instrumento de
libertação do paciente. Sob este aspecto, a transferência se reveste de uma “importância
extraordinária” no tratamento psicanalítico (Cf. CIP III, p. 518). O que vem a ser a
transferência? Como ela se manifesta na relação terapêutica?

Freud observa que, no decorrer da terapia, o paciente desenvolve um interesse


acentuado pela pessoa do analista. De início, não raro, este interesse tem um caráter
amistoso e agradável e favorece a colaboração do analisando com o terapeuta. Um belo
dia, porém, as coisas mudam completamente. “Nuvens aparecem”. O paciente deixa de
seguir a regra áurea da psicanálise, isto é, dizer tudo que lhe vem à mente. “Comporta-
se como se estivesse fora do tratamento e como se não tivesse feito um acordo com o
analista (...). Inequivocamente estamos nos defrontando com uma formidável
41

resistência”. O que está por detrás de tal atitude? “A causa da dificuldade é haver o
paciente transferido para o analista intensos sentimentos de afeição...” (CIP III, p.
513)41.

Estas manifestações afetivas são ambivalentes42: podem-se dar sob a forma de


inclinação amorosa ou de hostilidade. “Os sentimentos hostis revelam-se, via de regra,
mais tarde que os sentimentos afetuosos, e se ocultam atrás destes” (CIP III, p. 516).
Sendo o analista homem e o analisando mulher, a transferência pode manifestar-se
como uma conquista amorosa. A paciente é tomada por sentimentos de ternura,
impregnados de erotismo e ciúme, pelo analista, quer dizer, por todo um conjunto de
afetos que acabam por fazê-la “esquecer” por completo a finalidade do tratamento. É
possível, também, que tais sentimentos se apresentem de forma mais branda: “em lugar
de um desejo de ser amada, uma jovem pode deixar emergir um desejo, em relação a um
homem idoso, de ser recebida como filha predileta; o desejo libidinal pode estar
atenuado num propósito de amizade inseparável, mas idealmente não sensual” (CIP III,
p. 515).

A atitude do homem frente ao analista, devido à constituição bissexual do ser


humano43, não difere essencialmente da feminina. “Existe a mesma vinculação ao
analista, a mesma supervalorização das qualidades deste, a mesma absorção dos seus
interesses, o mesmo ciúme de qualquer pessoa mais chegada a ele na vida real”.
Dificilmente, contudo, aparece na relação terapêutica exigências sexuais diretas, “na
medida em que é incomum o homossexualismo manifesto”. O mais frequente, portanto,
é a forma sublimada de transferência (Cf. CIP III, p. 515s).

Nos homens, contudo, encontra-se bem mais amiúde do que nas mulheres a
transferência hostil ou negativa. “Os sentimentos hostis indicam, tal qual os afetuosos,
haver um vínculo afetivo, da mesma forma como o desafio, tanto como a obediência,
significa dependência, embora tendo a sua frente um sinal ‘menos’ e, lugar de um
‘mais’” (CIP III, p. 516). Inconscientemente, o paciente transfere ou desloca44 para o
relacionamento com o analista as atitudes e sentimentos que mantém para com o próprio
pai. O terapeuta toma o lugar do pai. O paciente sente-se tolhido pelo analista,

41
Substituímos, nas citações de Freud, o termo “médico” por analista.
42
Sobre ambivalência emocional, ver os. 206; 209; 241s; 315-317 deste trabalho.
43
Sobre bissexualidade, consultar p. 152 deste trabalho.
44
Consultar p. 60 deste trabalho.
42

ameaçado em sua legítima aspiração à independência e deseja triunfar sobre o poder de


seu rival45 (Cf. CIP III, p. 342s).

Observe-se que a neurose não é uma coisa acabada, mas algo que está em
desenvolvimento, como um organismo vivo. Em determinado momento da terapia, ela
se concentra num único ponto: a relação do analisando com o terapeuta. Quando a
transferência atinge este grau não é incorreto dizer que a neurose originária se
transforma numa outra atual e artificial. “Todos os sintomas do paciente abandonam seu
significado original e assumem um novo sentido que se refere à transferência...” (Cf.
CIP III, p. 517s). O que é repetido e atuado (acted out), e não apenas recordado, na
neurose transferencial, é a vida sexual infantil ou, mais precisamente a situação
edipiana (Cf. APP, p. 30).

A postura do terapeuta diante deste tipo de resistência deve ser de prudência. É


importante que o paciente reexperimente alguma parte esquecida de sua vida, mas de
modo a manter certo alheamento, o que deve ser habilmente possibilitado pelo analista
(Cf. APP, p. 30). Bem trabalhada, a transferência, quer amorosa (positiva) quer hostil
(negativa), deixa de ser um obstáculo para se tornar um poderoso instrumento nas mãos
do analista, “com cujo auxílio os mais secretos compartimentos da vida mental podem
ser abertos” (CIP III, p. 517).

Discorremos até aqui sobre a resistência. Já sabemos, porém, que ela é, por
assim dizer, a face visível do recalque. Como nos diz Freud,

“as mesmas forças que hoje, como resistência, se opõem a que o esquecido
volte à consciência, deveriam ser as que antes tinham agido, expulsando da
consciência os acidentes patogênicos correspondentes. A esse processo por
mim formulado, dei o nome de recalque e julguei-o demonstrado pela
presença inegável da resistência.” (CLP, p. 35)46

O conceito de recalque, evidenciado pela resistência, é absolutamente central no


discurso metapsicológico, pois ele introduz o próprio objeto da psicanálise, a saber, o

45
Freud observa em Análise Terminável ou Interminável (1937) que o desejo de possuir um pênis por
parte da mulher e a luta do homem contra sua atitude passiva ou feminina diante de outro homem
constituem “dificuldades extraordinárias” na relação terapêutica. A bissexualidade, ao que tudo indica, é a
mais forte resistência contra a psicanálise. “Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre mais da
sensação positiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita de que estivemos
‘pregando ao vento’ ...”, desabafa Freud. O desejo de ter um pênis não se expressa na análise sob a forma
de transferência; já a “recusa a submeter-se a um substituto paterno” deve ser vista como “uma das mais
fortes resistências transferenciais” (Cf. ATI, p. 286).
46
Substituímos nesta citação o termo repressão por recalque.
43

inconsciente, no sentido dinâmico e sistemático. Estudaremos este conceito chave,


articulando-o com dois outros não menos essenciais.

1.2.3) PULSÃO, DESEJO E RECALQUE

O desejo imprime à pulsão um certo sentido (ou direção) e é sobre a pulsão,


assim orientada, que incide o recalque. Portanto, há que se relacionar estes três
conceitos entre si, para se penetrar na primeira tópica. Isto significa que é impossível
isolar o ponto de vista tópico das demais perspectivas metapsicológicas. Urge recorrer
ao ponto de vista dinâmico para se compreender a representação espacial da mente47. Na
verdade, se há necessidade de se fazer uma topografia dos processos psíquicos é porque
tais processos são conflitantes e os polos deste conflito se distribuem em diferentes
lugares da mente. Quer dizer: é a própria dinâmica psíquica que exige a tópica. Mas o
ponto de vista econômico também está presente, pois, conforme veremos, a pulsão é
uma certa “quantidade de energia”. Os três pontos de vista, portanto, são
interdependentes, sendo impossível considerar qualquer um deles sem se referir aos
demais. O que propomos aqui, para facilitar a exposição e análise do discurso freudiano
é apenas privilegiar (e não isolar) um ponto de vista em relação aos demais.

Numa famosa comparação, Freud nos diz que a teoria do recalque é a pedra
angular sobre a qual repousa todo o edifício da psicanálise (Cf. HMP, p. 26). Na
verdade, o conceito de inconsciente foi obtido pela teoria do recalque. “O reprimido [ou
recalcado]”, diz Freud, “é para nós o protótipo do inconsciente” (EI, p. 15). O que é o
recalque? Vamos responder a esta questão, absolutamente central, por etapas.
Inicialmente trataremos da pulsão, em seguida do desejo e finalmente do recalque48.
Freud menciona inúmeras vezes a distinção entre estímulos externos (ou exógenos) e
estímulos internos (ou endógenos). Tomemos alguns exemplos: uma luz forte que
incide sobre a vista é um tipo de excitação oriunda de fora do organismo; “a secura da
membrana mucosa da faringe ou a irritação da membrana mucosa do estômago” (R, p.
28), quer dizer, a sede e a fome são excitações oriundas de dentro do aparelho. Estas
últimas constituem um impacto permanente e não um impacto momentâneo, como
ocorre com a primeira. Em virtude disto, em relação aos estímulos internos, ao contrário
do que ocorre com os externos, não é possível a fuga ao desprazer (Cf. R, p. 59). Fome,

47
O conceito de pulsão, como veremos adiante (Cf. p. 104), é dinâmico.
48
Na seção seguinte trataremos da distinção fundamental entre recalque originário e recalque secundário.
44

sede, respiração e sexo constituem exigências vitais prementes em relação às quais não
é possível qualquer escapismo. Freud chamou estas grandes necessidades vitais de
pulsões. Portanto, a pulsão (Trieb) corresponde às excitações internas do organismo (Cf.
IV, p. 28).

Contudo, se a pulsão tem uma origem somática, seu destino é psíquico. Segundo
uma conhecida definição de Freud, a pulsão é um conceito situado na fronteira entre o
psíquico e o somático (Cf. IV, p. 32). Esta situação fronteiriça precisa ser investigada
mais profundamente. Comecemos destrinchando os elementos da pulsão. São em
número de quatro: a pressão (Drang); o objetivo (Ziel); o objeto (Objekt) e a fonte
(Quelle).

A pressão é a força motora ou a exigência de trabalho requerida pela pulsão (Cf.


IV, p. 32). Em outros termos: a pulsão exige uma certa “quantidade de energia que faz
pressão em determinada direção. É desta pressão que deriva seu nome Trieb” (NCIP, p.
121)49. O objetivo (finalidade, alvo ou meta) é a satisfação que só pode ser obtida
eliminando-se o estado de estimulação na fonte pulsional. O que a pulsão visa é a
obtenção do prazer, ou seja, a redução das excitações na fonte somática. O objeto “é a
coisa em relação à qual ou através da qual” a pulsão alcança seu objetivo. É o elemento
mais variável da pulsão: pode ser modificado inúmeras vezes no decorrer das
vicissitudes sofridas pela pulsão. A fonte é “o processo somático que ocorre num órgão
ou parte do corpo e cujo estímulo é representado na vida mental por um instinto [ou
pulsão]”. A fonte é, pois, a base somática da pulsão. Não interessa por si mesma à
psicanálise. Embora as pulsões “sejam inteiramente determinadas por sua origem numa
fonte somática”, na vida psíquica só a conhecemos por seus objetivos (Cf. IV, p. 33s)50.

Recorramos a um exemplo para nos fazer entender. Quando estamos com fome,
sentimos uma estimulação excessiva na membrana mucosa do estômago (fonte).
Seguindo o princípio de constância51, que orienta o aparelho psíquico no sentido de
reduzir o excesso de estimulação (que provoca insatisfação) ou de manter este excesso

49
Laplanche e Pontalis observam que o que caracteriza essencialmente a pulsão e “o fato de ser um
impulso a que não se pode fugir, exigindo do aparelho psíquico um certo trabalho e pondo em movimento
a motricidade” (VP, p. 39). Justamente por isto o id da segunda tópica, conforme veremos, é concebido
como o polo pulsional da personalidade (ver p. 132 deste trabalho).
50
Sobre a distinção freudiana entre prazer (desejo) e satisfação (necessidade), relevada por vários teóricos
franceses (Laplanche, Pontalis, Lacan etc), nem sempre respeitada por seu autor, cf. adiante, p. 173.
51
Sobre princípio de constância consultar abaixo, p. 164-169.
45

no mais baixo nível possível (Cf. IV, p. 30), empenhamo-nos para encontrar uma
refeição (objeto), que alivie as tensões do organismo, dando origem a uma experiência
de satisfação (objetivo).

Observe-se que em relação à fome, sede, micção, respiração etc., quer dizer, a
tudo o que diz respeito à autoconservação, a única solução possível para se reduzir as
tensões do organismo é a realização de determinados “atos específicos”, mediante os
quais se obtém diretamente, sem qualquer mediação e sem demora excessiva, a
satisfação. Não há como eliminar a sede e a fome senão através de líquidos e refeições
sólidas (objetos reais e predeterminados) e não se pode protelar em demasia a
satisfação de tais excitações (objetivos imediatos), bem localizados no organismo
(fontes fixas), sem que se provoque a morte do indivíduo. Por isto mesmo, trata-se em
todos esses casos de necessidade vitais. O mesmo, porém, não ocorre em relação à
sexualidade. Como mostraremos adiante em nossa abordagem da teoria da libido (cf.
p...), as fontes da sexualidade situam-se em diversas partes do corpo (zonas erógenas) -
Freud se refere mesmo ao “corpo erógeno” -, seus objetos são flexíveis e mutáveis e
seus objetivos, proteláveis (Cf. NCIP, p. 121s). Talvez por isto fosse melhor reservar o
termo pulsão (Trieb)52 para a sexualidade e destinar o termo necessidade para as demais
exigências vitais, como sugerem, entre outros, Laplanche e Pontalis (Cf. VP, p. 68).
Freud, porém, emprega Trieb num sentido englobante. Na sua primeira classificação das
pulsões, distingue as pulsões de autoconservação das pulsões sexuais e, na segunda
classificação, submete a autoconservação à libido, reunindo-as em Eros (pulsões de
vida) e contrapondo-as às pulsões de morte (Tânatos) (Cf., adiante, ps - ).

Dissemos que a pulsão é um conceito limite entre o psíquico e o somático.


Agora estamos melhor aparelhados para compreender isto. As fontes pulsionais são
somáticas, mas a busca dos objetos e objetivos é psíquica (Cf. VP, p. 591). Vejamos por
quê.

Freud se refere ao representante psíquico da pulsão (Triebpräsentanz e


Psychische Repräsentanz), que pode ser ideativo (representação) ou afetivo (Cf. R, p.
66). Vamos nos deter, por ora, no representante ideativo53 (Vorstellungs repräsentanz),

52
Sobre a distinção entre os termos Trieb (pulsão) e Instinkt (instinto) ver p. deste trabalho.
53
O representante ideativo é o que até o momento temos chamado simplesmente de representação, via a
tradução francesa (ou ideia, via tradução inglesa). Para sermos mais precisos, trata-se da “representação
ou grupo de representações em que a pulsão se fixa no decurso da história do indivíduo e por intermédio
46

pois ,“geralmente, Freud assimila o representante pulsional ao representante ideativo; na


descrição das fases do recalcamento é o destino do representante ideativo que é
exclusivamente encarado até ser tomado em consideração ‘outro elemento do
representante psíquico’: o quantum de afeto (Affektbetrag)...” (VP, p. 592s ; cf. R, p.
66)54.

A pulsão só pode ser satisfeita na medida em que se inscreve no psiquismo


mediante seus representantes (ou delegados, para usarmos uma expressão grata a
Freud). É sobre tais representantes que incide o recalque e não sobre a pulsão no seu
lado somático. Por isto, o que interessa, fundamentalmente, à psicanálise não é a pulsão
enquanto excitação somática, mas os representantes psíquicos da pulsão (Cf. IV, p. 33s).
Do contrário não se trataria de psico-análise 55.

O que acabamos de estudar a respeito dos representantes pulsionais nos remete à


noção psicanalítica de desejo.

O aparelho psíquico não funciona do mesmo modo na criança e no adulto. “Esse


aparelho só atingiu sua perfeição após longo período de desenvolvimento” (IS, p. 602),
assevera Freud. Tendo em vista compreender a formação do desejo, que é o móvel do
sonho e do aparelho em geral, ele cria uma hipótese relativa ao funcionamento primitivo
do psiquismo.

Os estímulos internos do aparelho (sexualidade, fome etc.), conforme


mostramos, são normalmente apaziguados pelo adulto, por meio de ações motoras que
transformam o ambiente e alcançam objetos capazes de proporcionar prazer (objetivo
pulsional). A criança recém-nascida, porém, não dispõe de meios intelectuais e motores
adequados para buscar por si mesma os objetos capazes de satisfazê-la. Por exemplo, o
primeiro de todos os objetos, o seio materno, é oferecido ao recém-nascido de fora, pela
mãe: a própria criança não é capaz de buscá-lo. Quando as tensões (ou excitações)
internas atingem um grau intolerável, a criança apenas esboça um movimento, sendo
incapaz de conseguir por si mesma uma ação adequada: “um nenezinho com fome grita

da qual se inscreve no psiquismo” (VP, p. 588). Observe-se que representação (Vorstellung) é um termo
que Freud sempre utilizou em contraposição a afeto. A concepção linguística (Lacan) aproxima o
representante ideativo da noção saussuriana de significante (consultar p. 257 deste trabalho).
54
Sobre os destinos do afeto, consultar p. 123 deste trabalho.
55
“Um instinto [ou pulsão] nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a ideia que o representa
pode” (INC, p. 93).
47

e dá pontapés impotentemente” (IS, p. 602; cf. DPFM, p. 169, nota 1). A pulsão não é
satisfeita deste modo. Somente a posse de um objeto é capaz de proporcionar à criança
uma experiência (ou vivência) de satisfação56, ou seja, o apaziguamento das tensões
(prazer). Esta experiência de satisfação fica inscrita na mente, ou seja, deixa um traço
mnésico (Cf. IS, p. 602). Quando a tensão reaparece (o retorno da fome, por exemplo),
surge imediatamente um impulso psíquico que reinveste o traço mnésico e reaviva a
representação da percepção agradável experimentada anteriormente. “Um impulso desta
espécie é o que chamamos de desejo” (IS, p. 603). O desejo é sempre desejo de prazer,
ou seja, a tendência a retornar a uma experiência de satisfação vivida no passado57.

Recapitulando: o bebê sente algum estímulo excessivo (a fome, por exemplo).


Realiza, então, uma experiência de satisfação (suga o seio materno), que elimina,
durante algum tempo, a excitação e deixa um traço mnésico em sua mente. Mais tarde,
volta a sentir tensões desagradáveis e lembra-se, então, da experiência de satisfação, ou
seja, torna a investir na imagem da percepção agradável e tende a retornar à experiência
gratificante, quer dizer, deseja tal experiência. E Freud completa: “o reaparecimento da
percepção é a realização do desejo” (IS, p. 603).

Ocorre que nos primeiros meses de vida a criança confunde a imagem ou lembrança
da percepção com a própria percepção. Não é capaz de distinguir o objeto imaginário do
objeto real, exatamente como ocorre com o adulto quando sonha. Quer dizer, para a criança
recém-nascida a lembrança (ou representação) tem um caráter alucinatório. “Nada nos
impede de presumir que houve um estado primitivo do aparelho em que (...) o desejo
terminava em alucinação” (IS, p. 603).

O aparelho psíquico, portanto, tende, originariamente, para a realização de uma


percepção idêntica à experiência de satisfação vivida anteriormente e o caminho mais curto
para a consecução desta identidade perceptiva58 é a alucinação.

56
Befriedigungerlebnis. Sobre a distinção freudiana entre satisfação e prazer, nem sempre respeitada pelo
mestre vienense, cf. adiante, p. 177.
57
Observe-se que uma experiência ainda não vivida pelo indivíduo pode também ser desejada, desde que
ele se identifique com alguém que já a tenha vivenciado. Trata-se, por assim dizer, de uma experiência
indireta de satisfação. Uma criança que nunca andou de bicicleta pode desejar fazê-lo. Para tanto, deve
identificar-se com um amiguinho possuidor deste veículo. É desta forma que se dá o amadurecimento e
evolução da personalidade.
58
Freud define a noção de identidade de percepção, que expressa o funcionamento do aparelho no nível
dos processos primários, do seguinte modo: “uma repetição da percepção que se achava ligada à
satisfação da necessidade” (IS, p. 603).
48

Ressalte-se, porém, que a realização alucinatória do desejo não é plenamente


adequada. O curto circuito regressivo só gratifica de modo efêmero, provisório. “É
necessário dar um alto à regressão antes que ela se torne completa” (IS, p. 603). Quer dizer,
a criança precisa aprender a buscar a identidade perceptiva “a partir do mundo externo” (IS,
p. 603), e não apenas no nível imaginário. Em outros termos, a identidade de percepção
deve ceder lugar à identidade de pensamento. Expliquemo-nos melhor.

Do ponto de vista psicanalítico, o processo denominado pensamento reduz-se ao


investimento do desejo em lembranças de experiências de satisfação vividas anteriormente,
as quais, porém, não são mais visadas em si mesmas, mas como mediações para a realidade.
A lembrança gratificante é transformada em ideia intencional, a representação (Vorstellung)
se transfigura em representação-meta (Zielvorstellung)59, quer dizer, representação que
orienta o aparelho psíquico na execução de atividades motoras que levam à transformação
do mundo externo e à obtenção de objetos capazes de realizar de algum modo o desejo.
Assim, a identidade de percepção se transforma em identidade de pensamento, ou por outra,
a percepção idêntica à experiência de satisfação é reencontrada, pela mediação do
pensamento, na realidade e não apenas nas fantasias. “O pensamento, afinal de contas”, diz
Freud, “nada mais é que um substituto de um desejo alucinatório...” (IS, p. 604) 60.

A passagem da realização alucinatória do desejo, para a satisfação real


pressupõe o que Freud chama de teste (ou prova) de realidade. Trata-se de um
dispositivo que possibilita ao indivíduo distinguir os estímulos internos dos externos,
mediante uma ação muscular do organismo. A criança pequena, incapaz ainda de se
locomover, tende a confundir o que vem de fora de seu organismo com o que lhe é
interior, suas representações com o real. Pouco a pouco ela se torna capaz de diferenciar
uma coisa e outra. “Uma percepção que desaparece por meio de uma ação é reconhecida
como externa, como realidade; nos casos em que tal ação não tem influência, a
percepção se origina dentro do próprio corpo do indivíduo – não é real”. Segundo
Freud, este dispositivo, que possibilita reconhecer a realidade e atuar sobre ela, é uma
das “principais instituições do ego” (Cf. SMTS, p. 155).
59
O termo alemão Zielvorstellung é traduzido para o inglês por purposive idea e para o francês por
representation-but. Daí, encontramos em português ideia intencional (IS, p. 563) e representação-meta
(VP, p. 586). Ambas as traduções indicam que por ser investida pelo desejo, a representação (ou ideia)
tem um sentido, intenção ou meta (Ziel). O termo assinala, ainda, que as associações “obedecem a uma
finalidade”(Cf. VP, 587s; IS,p.563 e 640; R, p. 63).
60
“Todo pensamento não é mais que um caminho indireto da lembrança de uma satisfação (uma
lembrança que foi adotada como ideia intencional), a uma catexia [ou investimento] idêntica da mesma
lembrança, que se espera atingir mais uma vez através de um estágio intermediário de experiências
motoras” (IS, p. 640).
49

Em resumo: o desejo ora investe na representação e se realiza no puro


imaginário, ora utiliza a representação como meio para transformar o mundo.

Observe-se, porém, que a realização do desejo no nível imaginário nunca é


completamente abandonada. Mesmo nos processos secundários, regulados pelo
princípio da realidade61, busca-se o prazer da fantasia.

Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade de


pensamento foi separada; ela foi liberada do teste de realidade e permanece
subordinada somente ao princípio do prazer. Esta atividade é a fantasia, que
começa já nas brincadeiras infantis, e, posteriormente, conservada como
devaneio, abandona a dependência de objetos reais. (DPFM, p. 171s)

O homem projeta no mundo seus desejos e fantasias. Não chegamos ao real em


estado bruto. A realidade é necessariamente afetada de qualidade psíquica. “Se
olharmos para os desejos inconscientes reduzidos a sua mais fundamental e verdadeira
forma, teremos de concluir, fora de dúvida, que a realidade psíquica é uma forma
especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material” (IS, p.
658). É sobretudo no seio desta realidade psíquica62, quer dizer, de nossas fantasias, que
se desenrola o drama humano. “Nada, a não ser um desejo, pode colocar nosso aparelho
mental em ação” (IS, p. 604).

Contudo, conforme veremos63, não somos presas definitivas do imaginário. A


linguagem pode libertar o imaginário e a verdade do sujeito finalmente aparecer. Esta, a
esperança do analista como intérprete do inconsciente. Mas, mesmo então, “o âmago de
nosso ser” continua sendo desejar (Cf. IS, p. 642) e o mundo permanece impotente para
realizar ou preencher (erfüllen) nossos anseios (Cf. VP, ps. 549, 159 e 521).

Dissemos que o traço-mnésico investido pelo desejo se torna representação-meta,


ideia-intencional, quer dizer, uma representação que orienta o aparelho psíquico para a
busca de seus objetos e objetivos (metas, intenções) pulsionais. Contudo, certas
representações suscitadas pelo desejo não têm acesso à consciência ou dela são afastadas.
Com efeito, existem desejos infantis cujo atendimento entraria em contradição com as
representações-metas do sistema secundário (Pcs-Cs). “A realização desses desejos não

61
Consultar p. 169 deste trabalho.
62
“A ideia de realidade psíquica está ligada à hipótese freudiana referente aos processos inconscientes;
não só estes não levam em conta a realidade exterior, como a substituem por uma realidade psíquica.
Empregada na sua acepção mais rigorosa a expressão realidade psíquica designaria o desejo inconsciente
e o fantasma que lhe está ligado” (VP, p. 549).
63
Consultar p. 269 deste trabalho.
50

mais geraria um afeto de prazer, mas de desprazer e é precisamente essa transformação de


afeto que constitui a essência daquilo que chamamos de repressão [ou recalque]” (IS, p.
642). Quer dizer, a realização de certos desejos provoca “prazer num lugar e desprazer em
outro”. Quando o desprazer na consciência é maior que o prazer surge o recalque,
mecanismo que “consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente,
mantendo-a à distância” (R, p. 60).

Não se pense, porém, que as representações afastadas da consciência desapareçam.


Já sabemos que o inconsciente psicanalítico é dinâmico. “Os desejos inconscientes”, diz
Freud, “são ativos” (IS, p. 615). As representações recalcadas não só atuam
disfarçadamente sobre nossa conduta, como também proliferam abundantemente no
inconsciente. Elas ali se organizam, produzem derivados, estabelecem ligações e quando
apresentadas ao neurótico parecem-lhe estranhas, assustadoras e repelentes. Esta força falaz
da pulsão resulta da frustração das satisfações e do “desenvolvimento desinibido da
fantasia” (R, p. 62).

Nessas condições, a procura racional ou consciente dos objetos capazes de realizar


nossos desejos torna-se inexequível. A meta - ou o objetivo pulsional - só poderá, então, ser
atingida pela astúcia ou sob o disfarce de metas aceitáveis (Cf. Brabant, 1977, p. 30).

Na medida em que a representação constitui um descanso necessário entre as


excitações somáticas e a atividade motora que conduz à realização do objetivo (ou
meta) pulsional, compreende-se que os diversos tipos de defesa64, que visam realizar
disfarçadamente o desejo sem colocar em perigo o ego, só possam operar no nível das
representações. Dentre tais defesas, o recalque ocupa o lugar central. Na verdade, o que
se passa no nível das representações é o que Freud denomina os destinos das pulsões
(ou as vicissitudes dos instintos, tomando-se como referência a equivocada tradução
inglesa do famoso artigo de Freud, publicado em 1915).

São quatro os destinos das pulsões65: reversão a seu oposto (ou inversão em seu
oposto); retorno sobre si mesmo; recalque e sublimação. Só vamos nos referir,

64
Entende-se por defesa o “conjunto de operações cuja finalidade é reduzir, suprimir qualquer
modificação susceptível de por em perigo a integridade do indivíduo biopsicológico”. O ego é o sujeito e
o objeto das operações defensivas. “A defesa, de um modo geral, incide na excitação interna (pulsão) e,
de preferência, numa das representações (recordações, fantasmas) a que ela está ligada, numa situação
capaz de desencadear essa excitação na medida em que é incompatível com este desequilíbrio, (...). Os
afetos desagradáveis, motivos ou sinais da defesa, podem também ser objeto dela” (VP, p. 150).
65
Pelo menos Freud os enumera assim no artigo Os instintos e suas vicissitudes (1915), que acabamos de
mencionar, onde trata do assunto (Cf. IV, p. 37).
51

brevemente, aos dois primeiros, porquanto o recalque foi estudado acima e a sublimação
será abordada em outra seção (cf., adiante, p.....). Desnecessário dizer que todos estes
mecanismos compactuam com a defesa.

A reversão (ou inversão) se refere ao objetivo pulsional: trata-se da


transformação da atividade em passividade e vice-versa. Observa-se na passagem do
sadismo ao masoquismo (de infligir dor a tornar-se objeto de tortura) e do voyerismo ao
exibicionismo (de contemplar a ser contemplado). O retorno sobre si mesmo se refere
ao objeto pulsional. Na verdade, os dois processos são complementares, um não
podendo ser considerado sem o outro. Tomemos como exemplo o par sadismo-
masoquismo.

A observação clínica nos autoriza a dizer que “o masoquismo é, na realidade, o


sadismo que retorna em direção ao próprio ego do indivíduo (...). O masoquista partilha
da fruição do assalto a que é submetido” (IV, p. 38). A reversão do sadismo em
masoquismo se dá do seguinte modo: a) em primeiro lugar, tem-se a violência (ou
castigo) dirigida a outra pessoa (objeto pulsional); b) depois, o objeto é abandonado e a
agressividade volta-se para o próprio ego (retorno sobre si mesmo); c) finalmente uma
pessoa estranha é procurada para infligir no ego, agora masoquista, a dor. (Cf. IV, p.
38s). O processo pode ocorrer no sentido inverso, isto é, do masoquismo ao sadismo.
Não existe diferença entre uma pulsão voltar-se do objeto para o ego ou do ego para um
objeto (Cf. APP, p. 73).

O exemplo, como se vê, ilustra a conjugação dos dois processos (reversão e


retorno sobre si mesmo). Ressalte-se, ainda, que a troca de papéis e as identificações
invertidas ocorrem, inicialmente, no nível imaginário, para depois se traduzirem em
atos.

1.2.4) RECALQUE ORIGINÁRIO E RECALQUE SECUNDÁRIO

O recalque não é uma defesa que esteja presente desde o início. Só aparece após
a cisão entre a atividade psíquica consciente e inconsciente. Antes da cisão, a tarefa de
rechaçar as tendências pulsionais cabia a outras vicissitudes, como, por exemplo, “a
reversão no oposto ou o retorno em direção ao próprio eu (self) do sujeito” (R, p. 60s).
52

A observação clínica exige que se reconheçam duas fases do recalque: o


recalque originário (primeiro ou primário) e o recalque secundário (recalque
propriamente dito). Vejamos o que fundamenta tal distinção. Comecemos pelo recalque
secundário, pois o outro recalque é uma hipótese criada por Freud para explicar este.

O recalque propriamente dito (sentido que temos empregado até aqui) não se
limita a repudiar certas representações desprazíveis, mas exige também, para operar, “a
atração exercida por aquilo que foi primevamente repelido”. Quer dizer, compreende
tanto uma força de repulsão que atua no sentido do Pcs-Cs para o Ics, como uma força
de atração que atua no sentido inverso: do Ics para o Pcs-Cs. “Caso essas duas forças
não cooperassem, caso não existisse algo previamente reprimido [ou recalcado] pronto
para receber aquilo que é repelido pelo consciente”, o recalque, provavelmente falharia
(Cf. R, p. 61s).

Temos, portanto, por um lado, o sistema pré-consciente/consciente afastando


certas representações que provocam desprazer (recalque propriamente dito) e, por outro,
a atração exercida pelo inconsciente sobre as representações secundariamente
recalcadas. Em outros termos: para que haja o recalque secundário (Nachdrängen) é
necessário que o inconsciente já tenha se estruturado em contraposição ao consciente.
Com efeito, as representações recalcadas precisam encontrar um lugar na rede (ou
complexo) de representações inconscientes. Daí Freud criar a hipótese de um recalque
originário (Urverdrängung), que consiste em negar entrada no consciente ao
representante psíquico (ideacional) da pulsão. Com isso, estabelece-se uma fixação: a
partir de então, o representante em questão continua inalterado, e a pulsão permanece
ligada a ele (Cf. R, p. 61). A fixação a que se refere Freud, nesta passagem, indica não
apenas “a fixação numa fase libidinal, mas a fixação da pulsão numa representação e a
inscrição desta representação no inconsciente” (VP, p. 559).

Qual o investimento66 peculiar ao recalque originário? Admitindo-se, como


sugere Freud, que o recalque originário institui a primeira representação inconsciente da
pulsão (fixação), não se pode explicá-lo como resultante de um investimento do
inconsciente ou do pré-consciente/consciente. Na verdade, a cisão entre os dois sistemas
e seus respectivos investimentos surge com o recalque originário. Portanto, resta apenas
a possibilidade de um contrainvestimento (ou anticatexia, segundo a discutível tradução

66
Sobre a noção de investimento ,consultar p. 179 deste trabalho.
53

inglesa), para explicar o primeiro recalque. “A anticatexia”, diz Freud, “é o único


mecanismo da repressão [ou recalque] primeva” (R, p. 98)67.

Conforme já vimos, a pulsão só se exprime no nível psíquico através de seus


representantes. Os primeiros representantes que fixam a pulsão no psiquismo não têm
acesso ao consciente (recalque originário). Contudo, formam-se rebentos (cadeias de
representações derivadas) do que é primariamente recalcado. Estes rebentos situam-se
tanto no inconsciente como no consciente. Os mais próximos do originariamente
recalcado, os mais atraídos por ele, são os que permanecem no inconsciente por ação do
recalque. Os mais distantes do recalcado originário podem ter acesso ao sistema pré-
consciente/consciente. Parece, então, que a resistência atua em função da distância entre
as representações inconscientes e o que foi primariamente recalcado. As representações
mais distantes do recalcado originário e mais próximos do consciente podem,
efetivamente, transitar de um sistema para o outro. “Ao executarmos a técnica da
psicanálise”, esclarece-nos Freud, “continuamos exigindo que o paciente produza de tal
forma derivados do reprimido [ou recalcado], que, em consequência de sua distância no
tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do consciente” (R, p. 63).
Eis aí, portanto, o fundamento teórico do método da livre associação.

As associações que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de


qualquer ideia intencional [ou representação-meta] consciente ou de qualquer
crítica, e a partir das quais reconstituímos uma tradução consciente do
representante reprimido [ou recalcado] – essas associações nada mais são do
que derivados remotos e distorcidos desse tipo. (R, p. 63)

O paciente vai desfiando sua meada de associações até encontrar um pensamento,


cuja relação com o recalcado é tão óbvia que ele é tentado a repetir o recalque. Este,
evidentemente, é um momento crucial no processo analítico. O método associativo permite,
assim, construir “uma tradução consciente do representante reprimido [ou recalcado]”. Não
se pode determinar de modo geral, válido para todos os casos, “o grau de distorção e de
distância necessária para a eliminação da resistência por parte do consciente” (R, p. 63). É
por isso que não se pode saber a priori a duração e o sucesso de uma análise.

Diante do que dissemos a respeito do método associativo, compreende-se porque o


determinismo freudiano é a expressão de um sentido subjetivo. O complexo de
representações, embora seja objetivo, é determinado por um sentido subjetivo: “a repressão

67
Para maiores esclarecimentos sobre este tema, consultar p. 262 deste trabalho.
54

[ou recalque]”, diz Freud, “atua de um modo altamente individual (...): um pouco mais ou
um pouco menos de distorção altera totalmente o resultado” (R, p. 63s).

1.2.5) OS DESTINOS DO AFETO

Consideramos até aqui o representante ideativo da pulsão, mas pouco falamos do


afeto. Ora, no entender de Freud, “se o instinto [ou pulsão] não se prendeu a uma ideia [ou
representação] ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer
sobre ele” (INC, p. 43. Grifos nossos). Urge, portanto, completar nossas investigações com
o estudo dos afetos.

Do ponto de vista econômico68, as representações são investimentos energéticos em


traços mnésicos, ao passo que os afetos “correspondem a processos de descarga, cujas
manifestações finais são percebidas como sentimentos” (INC, p. 93). Por isto Freud
emprega a expressão “quota (ou quantum) de afeto” para designar o representante não
ideacional das pulsões. O “fator quantitativo” do afeto vem a ser a energia de origem
pulsional , que se vincula a determinada representação ou grupo de representações (CF. R,
p. 66).

Na prática psicanalítica fala-se, não raro, de amor, ódio ou ira inconscientes. A


rigor não existem afetos inconscientes. O que temos são afetos vinculados a
representações recalcadas que, após o recalque, se desligam destas e são investidos em
outras representações conscientes. “Se restaurarmos a verdadeira conexão, chamaremos
o impulso afetivo original de inconsciente”, mas de modo impróprio, pois este “afeto
nunca foi inconsciente”. Em geral, quando se fala de “afeto inconsciente”, há uma
referência implícita aos destinos sofridos pelo fator quantitativo (carga afetiva) após o
recalque. No recalque, diz Freud, ocorre uma ruptura entre o afeto e a representação à
qual ele se liga e cada um desses fatores passa então por destinos (ou vicissitudes)
diferentes (Cf. INC, p. 96). Os destinos do afeto são em número de três: 1º) ou o afeto
permanece, ao menos em parte, como é; 2º) ou sofre uma mudança qualitativa,
transformando-se em ansiedade; 3º) ou simplesmente é suprimido, isto é, impedido de
desenvolver-se (Cf. INC, p. 94 e R, p. 66).

Para ilustrar tais destinos, consideremos alguns exemplos extraídos da histeria


de ansiedade, da histeria de conversão e da neurose obsessiva. No primeiro caso, o

68
Sobre o ponto de vista econômico, consultar p. 163 deste trabalho.
55

fator quantitativo (quota de afeto) não desaparece, mas se transforma em ansiedade. O


sintoma central desta neurose é a fobia. Em O homem dos lobos (1918), Freud analisa o
caso de uma criança que tinha fobia a lobos. O que está na origem deste sintoma “é uma
atitude libidinal para com o pai, aliado ao medo dele” (R, p. 69). A formação desta
neurose segue três fases. Numa primeira, surge a ansiedade que provoca o recalque do
desejo libidinal voltado para o pai, sem que o indivíduo nada saiba a respeito do que o
ameaça.

Na segunda fase, emerge uma representação substitutiva, a saber, o animal


fóbico. Esta representação, “por um lado, se relaciona por associação à ideia rejeitada [o
pai] e, por outro lado, escapa à repressão [ou recalque] em vista da sua distância daquela
ideia” (INC, p. 99). Este deslocamento afetivo permite a racionalização da ansiedade.
Quer dizer, agora ela se dirige a um objeto determinado e pode ser entendida. “A
criança talvez possa vir a se comportar como se não tivesse absolutamente qualquer
predileção pelo pai, tornando-se inteiramente livre dele; é como se seu medo do animal
fosse um temor real...” (INC, p. 100). Em termos econômicos, pode-se dizer que depois
do desinvestimento da representação ameaçadora e dolorosa (o pai como objeto de
desejo) ocorre um contrainvestimento (ou anticatexia) numa representação substitutiva
do sistema Pcs-Cs (o lobo), cuja função é impedir a emergência da representação
recalcada, fortemente investida no sistema Ics.

Na terceira fase, o trabalho começado na segunda é retomado numa escala mais


ampla: “todo o ambiente associado à ideia substitutiva é catexizado [ou investido] com
intensidade especial exibindo, assim, um elevado grau de sensibilidade à excitação”.
(Cf. INC, p. 100). Aparecem, então, um conjunto de evitações, renúncias e proibições
que caracterizam o sintoma fóbico.

É de se notar, ainda, que nesta neurose o ego se comporta como se o perigo


viesse do mundo externo, quando, na verdade, a ameaça é interna, isto é, tendências
pulsionais impregnadas de desejos do próprio ego. Em outros termos, o ego se defende
do perigo pulsional, projetando-o no exterior.

Na histeria de conversão69, ocorre “um desaparecimento total da quota de afeto”


(R, p. 69). A conversão “consiste (...) numa transposição de um conflito psíquico e

69
O caso Ana O., já estudado (consultar p. 68s deste trabalho), é um exemplo deste tipo de neurose.
56

numa tentativa de resolução deste em sintomas somáticos, motores (paralisias, por


exemplo) ou sensitivos (anestesias ou dores localizadas, por exemplo)” (VP, p. 148).
Nesta neurose, o sintoma tem um caráter simbólico, quer dizer, há uma relação
analógica entre a representação recalcada e seus substitutos. Em termos econômicos, a
conversão consiste na transformação de energia libidinal em inervação somática. Quer
dizer, a energia se desliga de uma representação e é “transposta para o corporal” (Cf.
VP, p. 148). Freud observa que a “área superinervada” atrai todo o investimento
energético para si, num processo de condensação (Cf. R, p. 70).

Na neurose obsessiva70, os sintomas resultam de uma ambivalência emocional.


O neurótico regride ao estágio sádico-anal que se caracteriza, conforme veremos, pela
ambivalência. Ele reprime o impulso hostil contra alguém que é, simultaneamente,
amado e odiado, e a agressividade retorna, mascaradamente, sob a forma de tendência
amorosa. Este substituto é uma formação reativa71 , a qual, no entanto, ainda não pode
ser considerado como sintoma.

A ambivalência que permitiu que o recalque ocorresse através da formação


reativa, constitui também o ponto em que o recalcado consegue retornar. A
emoção desaparecida retorna em sua forma transformada, como ansiedade social,
ansiedade moral e autocensura ilimitadas; a ideia rejeitada é substituída por um
substituto por deslocamento, frequentemente um deslocamento para algo muito
pequeno ou indiferente (R, p. 71. O primeiro grifo é nosso)72.

Freud se pergunta se o mecanismo que provoca os sintomas e as formações


substitutivas em geral (sonhos, atos falhos etc.) coincide com o recalque e responde
negativamente. Ao que tudo indica não é apenas o recalque que produz formações
substitutivas e sintomas, mas estes últimos devem sua existência também ao retorno do
recalcado (Cf. R, p. 68), que se efetua por deslocamento, condensação, conversão etc.
Temos então três mecanismos articulados entre si: o recalque originário, o recalque
secundário e o retorno do recalcado. A operação de recalcamento inclui, portanto, estes
três momentos (Cf. VP, p. 556 e 602). Observe-se, em conclusão, que o recalque opera
não apenas no sentido de impedir o acesso de certas representações ao inconsciente ou
de expulsá-las daí, como também no sentido de “cercear o desenvolvimento do afeto e o
desencadeamento da atividade muscular” (INC, p. 95). Quer dizer, embora o recalque

70
Consultar p. 67 deste trabalho para maiores esclarecimentos sobre esta neurose. Convém considerar,
também, a analogia estabelecida por Freud entre o sintoma obsessivo e o ritual religioso (cf. p. 300-303)
71
“Atitude ou hábito psicológico de sentido oposto a um desejo recalcado e constituído em reação contra
ele (o pudor a opor-se a tendências exibicionistas, por exemplo)”. Do ponto de vista econômico, “a
formação reativa constitui um contrainvestimento permanente” (VP, p. 258s).
72
Na citação substituímos repressão e reprimido respectivamente por recalque e recalcado.
57

incida apenas sobre a representação ideativa, exerce controle, também, indiretamente,


sobre os afetos e o acesso à motricidade, sendo mais eficaz, porém, em relação aquele
do que a este, como o comprovam a neurose e a psicose (Cf. INC, p. 95).

1.2.6) PROCESSOS PRIMÁRIOS E PROCESSOS SECUNDÁRIOS

Acabamos de ver que o recalque cinde o psiquismo em dois sistemas, cada um


deles com características próprias. Os processos psíquicos se ordenam de um modo no
inconsciente e de outro, no pré-consciente/consciente. No primeiro caso, temos os
processos primários, no segundo, os secundários. Já tivemos a oportunidade de nos
referir a esta classificação73, mas agora, temos condições de apresentá-la de forma mais
sistemática.

O inconsciente ignora a negação, pois nele coexistem lado a lado pensamentos e


desejos contraditórios, mutuamente exclusivos (Cf. IS, p. 634 e INC, p. 103). Está,
portanto, aquém da lógica. Ignora também o tempo, quer dizer, seus processos “não são
ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo, não têm qualquer
referência ao tempo” (INC, p. 104). Por isto, não se pode admitir o “teorema kantiano
segundo o qual o tempo e o espaço são formas necessárias de pensamento” (APP, p.
41). O inconsciente substitui a realidade externa pela psíquica, ou seja, submete-se
apenas ao princípio do prazer e não ao princípio da realidade74. Mas o que melhor
caracteriza os processos primários são os mecanismos de deslocamento e da
condensação. Eles são, no dizer de Freud, a marca dos processos inconscientes (Cf.
INC, p. 103).

Os processos secundários, por sua vez, são lógicos, temporais, submetem-se à


realidade e só excepcionalmente toleram deslocamento e condensação. Como ressalta
Freud, referindo-se ao sistema pré-consciente/consciente, “quando um processo passa
de uma ideia para outra, a primeira ideia conserva parte de sua catexia [ou investimento]
e apenas uma pequena parcela é submetida a deslocamento. Os deslocamentos e as
condensações, tais como ocorrem no processo primário, são excluídos ou bastante
restringidos” (INC, p. 105). A mobilidade dos investimentos inconscientes deve-se,
como já tivemos oportunidade de assinalar, ao tipo de energia peculiar ao sistema.
Enquanto a energia do inconsciente é livre, a energia do sistema secundário é ligada
73
Consultar p. 91 deste trabalho.
74
Consultar p. 169 deste trabalho.
58

(Cf. INC, p. 105; APP, p. 45; IS, p. 637s). “Esta livre circulação de energia que
caracteriza os processos primários é regida pelo princípio de prazer. É ela que se acha
inibida pelos processos secundários à medida que o princípio de realidade toma a frente
do princípio do prazer” (Brabant, 1977, p. 67). Freud considera esta distinção como “a
compreensão interna (insight) mais profunda [alcançada] até agora a respeito da
natureza da energia nervosa...” (INC, p. 106).

1. 3) A SEGUNDA TÓPICA

A segunda representação tópica dos processos psíquicos surge em 1923, com o


ensaio O ego e o id (Das Ich und das Es), que introduz na metapsicologia a tríade id,
ego e superego. O que teria levado Freud a esta reformulação teórica? Antes de mais
nada, a impossibilidade de situar no sistema Pcs-Cs várias operações do ego,
principalmente os mecanismos de defesa, dentre os quais cabe ressaltar o recalque e sua
outra face: a resistência. Vimos que a experiência clínica revela a vigorosa atuação da
resistência, isto é, desta força que emana do ego e tem por objetivo impedir o acesso do
analisando ao recalcado. Esta força, revela-nos Freud agora, é também inconsciente e
comporta-se exatamente como o recalcado (Cf. EI, p. 28 e NCIP, p. 88). É preciso,
portanto, reconhecer que “o inconsciente não coincide com o reprimido [ou recalcado];
é ainda verdade que tudo que é reprimido [recalcado] é inconsciente, mas nem tudo que
é inconsciente é reprimido [recalcado]”. Diante desta nova perspectiva, já não é
possível “derivar as neuroses de um conflito entre o consciente e o inconsciente” (EI, p.
28). Urge reformular os polos do conflito. A oposição, agora, não é mais do consciente
ao inconsciente, mas do ego ao recalcado.

Há que se constatar, porém, conforme veremos, que o conceito de identificação,


cuja relevância metapsicológica foi mais e mais reconhecida por Freud, a ponto de
designar “a operação pela qual o indivíduo humano se constitui” (VP, p. 296), exerceu
um papel central nesta virada teórica (Cf. VP, p. 660)75.

Observa-se, ainda, o seguinte: 1º) A reformulação do ponto de vista tópico


corresponde à revisão do ponto de vista dinâmico. Não se pode, com efeito, separar a
tríade id, ego e superego da segunda classificação das pulsões (pulsões de vida e de
morte); 2°) Ao desviar sua atenção do recalcado para as forças recalcadoras (Cf. NCIP,

75
Sobre o conceito de identificação, conferir, adiante, p....
59

p. 76), Freud, na verdade, está questionando temas centrais da relação


indivíduo/sociedade, tais como: o que é autoridade? Como ela se interioriza? O que é
obrigação moral? ; 3º) Ressalte-se, finalmente, que “Freud não renunciou a conciliar as
suas duas tópicas”. Assim, no capítulo IVº do Esboço de Psicanálise (1938) apresenta
uma síntese do aparelho psíquico em que coexistem os sistemas e instâncias das duas
representações espaciais da mente (Cf. VP, p. 661; EP, p. 182-190) A segunda tópica
não anula a primeira, mas se sobrepõe a ela.

1.3.1) O ID

Tendo em vista a inconveniência de se denominar “sistema inconsciente” à


região mental alheia ao ego e levando em consideração a necessidade de se reformular
os polos do conflito neurótico e a compreensão da própria dinâmica da vida psíquica,
Freud, inspirando-se em G. Groddeck (1866-1934) e F. Nietzsche, emprega um novo
termo para designar o polo que se opõe ao ego no conflito. Trata-se do pronome neutro
alemão es, cuja forma latina é id, que equivale em português a isto. O id é o “isto” de
nossa personalidade, quer dizer, o que temos de anônimo e impessoal. Como afirma
Groddeck, tendemos a nos comportar “de modo passivo na vida”. Em lugar de sermos
senhores de nossa existência, não raro temos de admitir que “somos ‘vividos’ por forças
desconhecidas e incontroláveis” (EI, p. 35).

O id é o polo pulsional da personalidade. Podemos descrevê-lo “como estando


aberto no seu extremo, a influências somáticas” e como contendo dentro de si
exigências pulsionais que nele encontram expressão psíquica (Cf. NCIP, p.94). É,
assim, o reservatório primitivo da energia psíquica, a qual é de origem pulsional76.
Observe-se, porém, que “a ideia de uma ‘inscrição’ da pulsão, que vinha atestar-se na
noção de ‘representante’, embora não seja francamente rejeitada, não é reafirmada”
(VP, p. 287).

O pouco que sabemos a respeito desta instância nos é fornecido pelo estudo da
elaboração onírica e da formação do sintoma neurótico. Em verdade, conhecemo-la
através de analogias: “caos”, parte “obscura” e “inacessível” da personalidade,
“caldeirão cheio de agitação fervilhante” (Cf. NCIP, p. 94). Segundo “as distinções
populares com que estamos familiarizados”, convém afirmar que “o ego representa o

76
O id está repleto de energias que a ele chegam das pulsões (Cf. NCIP, p. 94).
60

que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as
paixões” (EI, p. 37; cf. NCIP, p.98).

Muitas das características do id são descritas por Freud em oposição ao ego e


coincidem com os processos primários do sistema inconsciente da primeira tópica: nele
“não existe nada que corresponda à ideia de tempo”; seus desejos são imutáveis:
“depois de se passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco”;
está aquém da ordem moral: “não conhece nenhum julgamento de valor”; está aquém da
ordem lógica, pois desconhece a negação: “impulsos contrários existem lado a lado, sem
que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro”; só busca o prazer, o que em
termos econômicos significa que sua energia é móvel e capaz de descarga imediata, do
contrário “não ocorreriam os deslocamentos e as condensações, que são tão
características do id” (Cf. NCIP, p. 94-96) 77.

Em síntese, “o id constitui o polo pulsional da personalidade; os seus conteúdos,


expressão psíquica das pulsões, são inconscientes, em parte hereditários e em parte
recalcados e adquiridos” (VP, p. 285).

1.3.2) O EGO

Empregando uma metáfora, podemos dizer que o ego “repousa” na superfície do


id. Quer dizer, “o ego não se acha nitidamente separado do id”. Ao contrário, “sua parte
inferior funde-se com ele” (Cf. EI, p. 35s). Para sermos mais rigorosos, podemos
afirmar que “o ego é aquela parte do id que se modificou pela proximidade e influência
do mundo externo, que está adaptado para a recepção de estímulos...” (NCIP, p. 96; cf.
EI, p. 37). A função por excelência do ego, portanto, é “representar o mundo externo
perante o id – o que é uma sorte para o id, que não poderia escapar à destruição se, em
seus cegos intentos, não atentasse para esse poder externo supremo” (NCIP, p. 97). O
ego, portanto, é a instância que percebe o real e regula o aceso à motricidade (Cf. EI, p.
37).

77
As analogias empregadas por Freud (“caos”, “caldeirão” etc.), bem como a declaração de que “as leis
lógicas do pensamento não se aplicam ao id” (NCIP, p. 94), podem sugerir que esta instância não tem
uma organização ou estrutura interna. Contudo, como sublinham Laplanche e Pontalis, “a ausência de
organização do id é apenas relativa” às leis de estruturação do ego. O próprio fato de Freud retornar, na
descrição do id, às propriedades que definem o sistema inconsciente na primeira tópica, indica que a
instância constitui um modo positivo e original de organização (Cf. VP, p. 287).
61

Registre-se, porém: este controle do movimento e da ação se dá “sob as ordens


do id” (NCIP, p. 97). Uma analogia talvez possa nos ajudar. Freud compara as relações
do ego e do id com as de um cavaleiro com seu cavalo. O cavaleiro deve controlar a
força superior do cavalo, mas muitas vezes, para não se separar do animal, segue para
onde ele quer ir. O ego age de forma semelhante com o id. Contudo, enquanto o
cavaleiro emprega suas próprias forças, “o ego utiliza forças tomadas de empréstimo”
(Cf. EI, p. 37; NCIP, p. 98).

Na verdade, as relações do ego com o id não são simples. O id é conduzido pelo


ego, mas ao mesmo tempo o conduz. Detenhamo-nos um pouco diante desta
interdependência. O ego não está sempre em oposição ao id, como uma primeira leitura
da segunda tópica poderia sugerir. As pulsões e desejos do id precisam do ego para
alcançar seus objetivos e o ego se presta a tal papel. Como? Mediante o processo
psíquico denominado identificação. O que é a identificação? Vamos recorrer a um caso
concreto para nos fazer entender. Ao investigar o distúrbio psíquico chamado
melancolia, Freud chegou à conclusão de que nas pessoas vitimadas pelo mesmo, “um
objeto que fora perdido foi instalado novamente dentro do ego, isto é, que uma catexia
[ou investimento] do objeto foi substituída por uma identificação” (EI, p. 40).
Expliquemo-nos melhor: quais os principais sintomas desta afecção? Em Luto e
melancolia (1915), Freud os descreve assim:

Desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo


externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer
atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de
encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando
numa expectativa delirante de punição (LM, p. 166).

Este último sintoma – a diminuição exagerada da autoestima, acompanhada de


contínua recriminação do próprio ego – mereceu a atenção particular de Freud.
Interpretando-o, concluiu que as autoacusações do doente não se aplicam a ele próprio,
mas, “com ligeiras modificações, (...) a alguém que o paciente ama, amou ou deveria
amar. (...) São recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse
objeto para o ego do próprio paciente”. Em outros termos: “a sombra do objeto caiu
sobre o ego” (LM, p. 1705). Quer dizer, o paciente, em determinado momento de sua
existência, escolheu alguém para amar, investiu a libido78 neste objeto, mas uma
decepção destroçou a relação objetal. Em lugar, contudo, de ele, como seria de se

78
Consultar p. 189 deste trabalho.
62

esperar, retirar a libido do objeto perdido e investi-la em outro, preferiu investi-la no seu
próprio ego. Como se explica isto? Segundo Freud, na melancolia, o ego do paciente,
desejando recuperar imaginaria e inconscientemente o objeto perdido, se identifica com
ele, imita-o, torna-se de alguma forma semelhante a ele e, ao mesmo tempo, se pune e
se autorrecrimina, na medida em que seu antigo amor se tornou desprezível por tê-lo
decepcionado. O paciente não pode amar-se porque o seu ego se identifica com o objeto
odioso. O conflito entre o ego e a pessoa amada/odiada se interioriza, opondo o ego a si
próprio. A autorrecriminação do melancólico, portanto, é apenas um disfarce de seu
ódio recalcado.

Amadurecendo suas investigações, Freud concluiu que esta substituição de um


investimento objetal por uma identificação, longe de ser excepcional, é um processo
comum, que influi decisivamente “na determinação da forma tomada pelo ego” e na
“construção do que é chamado de seu ‘caráter’” (EI, p. 41). Na verdade, o ego é um
precipitado de identificações.

Ampliando um pouco mais a base clínica capaz de legitimar esta afirmação,


Freud traz um novo exemplo. Lembra os amantes, as pessoas que estão fortemente
vinculadas a objetos sexuais. Frequentemente, ao abandonar o objeto desejado, o ego do
amante sofre uma transformação semelhante a que ocorre no melancólico: o objeto
perdido se instala dentro de seu ego, quer dizer, o amante se identifica com a pessoa
amada, passando, por exemplo, a assumir alguns de seus hábitos (Cf. EI, p. 41 e NCIP,
p. 82). Ora, este mesmo processo é muito frequente “nas fases primitivas de
desenvolvimento”. Estudaremos adiante a situação edipiana, em que os pais –
especialmente a mãe – são fortemente investidos pela libido da criança. A travessia por
Édipo, conforme veremos, exige a perda dos primeiros objetos de amor (proibição do
incesto) e, ao mesmo tempo, conduz a criança a uma série de identificações com seus
pais. Estas identificações, que longe de serem superficiais, “são gerais e duradouras”
(EI, p. 43), constituem um recurso utilizado pelo ego para perpetuar imaginariamente a
presença do objeto amado. Este recurso é tão eficaz que gera o próprio ego, ou melhor,
fortalece um ego que até então era muito fraco (Cf. EI, p. 41). Pode-se afirmar, portanto,
“que o ego é formado, em grande parte, a partir de identificações que tomam o lugar de
catexias [ou investimentos] abandonados pelo id” (EI, p. 62). Ou ainda, sublinhando o
ponto de vista econômico: “[o ego] retira libido do id e transforma as catexias [ou
investimentos] objetais deste em estrutura do ego” (EI, p. 70).
63

Este processo de identificação constitui, no dizer de Freud, “a única condição em


que o id pode abandonar os seus objetos” (EI, p. 41). Com efeito, o ego assume as
características do objeto para poder compensar a frustração do id. É como se ele
dissesse ao id: “olhe, você também pode me amar; sou semelhante ao objeto” (EI, p.
42). Daí a interdependência entre as duas instâncias. A identificação é um “método”
(sic) empregado pelo ego para controlar os desejos do id. Mas este controle requer uma
conformidade e sujeição do ego às exigências do id (EI, p. 42). Com efeito, o objeto
perdido é recuperado pelo id graças à mediação do ego, alterado por identificação. O
ego, ao mesmo tempo, impede a satisfação do id e procura satisfazê-lo, tomando o lugar
do objeto perdido. A satisfação que o id alcança agora, contudo, é de outra ordem: é
uma satisfação sublimada, dessexualizada 79.

Na medida em que é dotado de percepção e comanda o acesso à motricidade, o


ego tem a função de harmonizar o id com a realidade externa. “Como criatura
fronteiriça, o ego tenta efetuar a mediação entre o mundo e o id, tornar o id dócil ao
mundo e, por meio de sua atividade muscular, fazer o mundo coincidir com os desejos
do id”. Esta tarefa mediadora, no entanto, longe de possibilitar a autonomia do ego,
graças ao processo de identificação que acabamos de descrever, transforma o ego num
“objeto libidinal” para o id (libido narcísica), ou seja, num “escravo submisso que
corteja o amor de seu senhor” (EI, p. 71)

Referimo-nos à interdependência entre as duas instâncias. Este vínculo recíproco


existe, inegavelmente. Contudo, considerando-se o que acabamos de mostrar, parece
necessário reconhecer que há uma dependência maior do ego em relação ao id, do que
do id em relação ao ego. O próprio título do capítulo Vº de O Ego e o Id confirma esta
assertiva: “As relações dependentes do ego”. O estudo do superego, que
empreenderemos a seguir, nos revelará mais ampliadas ainda estas relações de
dependência.

79
“A transformação de libido do objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica o
abandono de objetos sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade,
surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à
sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a
libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo” (EI, p. 42). Sobre
narcisismo consultar p. 221 deste trabalho e sobre sublimação, ps. 157, 212s, 278, 282, 332.
64

No entanto, esta fraqueza do ego80 não nos deve impedir de reconhecer a sua
força. Com efeito, ele “está encarregado de importantes funções” 81. Já nos referimos a
algumas delas: perceber a realidade, controlar o acesso à motricidade e harmonizar o id
com o mundo externo. Mas o ego exerce, ainda, outras tarefas fundamentais. Na
verdade, todos os processos secundários são agora efetuados pelo ego.

O id, conforme vimos, desconhece o tempo. A ordenação temporal dos


processos mentais é introduzida pelo ego, via sistema perceptivo: “o modo de atuação
desse sistema é o que dá origem à ideia de tempo” (NCIP, p. 97; cf. EI p. 70). A
tendência à síntese, à combinação, à unificação e à ordenação dos processos mentais é,
assim, bem característica do ego e “está totalmente ausente do id” (NCIP, p. 70). Talvez
por isto, o ego seja capaz de interpor entre a necessidade e a ação “uma protelação sob a
forma de atividade de pensamento” (NCIP, p. 97). A reação do ego ao mundo não é
imediata e direta, mas mediada por um complicado processo de pensamento. “O ego
destronou o princípio de prazer, que domina o curso dos eventos no id sem qualquer
restrição, e o substitui pelo princípio de realidade” (NCIP, p. 97).

O ego é sede não apenas das percepções externas, mas também internas. Estas
últimas revelam os processos psíquicos como dotados das qualidades de prazer ou
desprazer (Cf. EI, p. 33). Conforme já vimos, diante de uma ameaça externa o
mecanismo adequado para evitá-la é a fuga. Quando se trata, porém, de excitações
internas de desprazer (oriundas do id, podemos dizer agora), sendo impossível a fuga, o
mecanismo do recalque pode ser acionado. É do ego, portanto, que “procedem as
repressões [ou recalques], por meio das quais se procura excluir certas tendências da
mente” (EI, p. 27). Se o recalque vem do ego, a resistência também procede desta
instância, como, aliás, já mostramos anteriormente. A bem dizer, não apenas o recalque
e a resistência, mas os mecanismos de defesa em geral. Se o id é o polo pulsional da
personalidade, pode-se afirmar que, “do ponto de vista dinâmico, o ego representa (...) o
polo defensivo da personalidade” (VP, p. 171).

Uma leitura atenta do que acabamos de expor a respeito das características e


funções do ego pode conduzir-nos a um impasse: a constatação de que Freud apresenta
duas concepções diversas e, possivelmente, incompatíveis do ego. Por um lado,
80
“Do ponto de vista dinâmico, ele [o ego] é fraco, tomou emprestado ao id suas forças...” (NCIP, p. 98).
81
A citação completa é a seguinte: “Vemos agora o ego em sua força e em suas fraquezas. Está
encarregado de importantes funções.” (EI, p. 70).
65

centraliza a existência do ego no sistema percepção-consciência, descrevendo-o como a


instância mediadora por excelência, cuja função primeira é harmonizar a personalidade
com o mundo externo (Cf. EI, p. 37; NCIP, p. 96) e, por outro lado, compreende o ego
como formado por uma série de identificações que substituem investimentos objetais,
82
ou seja, como resultante da transformação da libido de objeto em libido narcísica (Cf.
EI, p. 42). Estas duas concepções, aliás, deram origem a correntes psicanalíticas
divergentes: a Ego Psychology (A. Freud, H. Hartmann, D. Rapaport, E. Kris, R.
Loewenstein etc), cujas pesquisas têm por sede a Inglaterra e os Estados Unidos, e a
escola lacaniana, cujos trabalhos se desenvolvem na França. Melaine Klein parece
ocupar um lugar à parte, que se opõe também à centralização do ego, reivindicada pela
corrente anglo-saxônica. Faremos apenas ligeiras referências a estas teorias, lembrando
que Ricoeur adota parcialmente o ponto de vista da escola francesa (Cf. I, p. 301 / Fr. p.
363).

O grande objetivo da psicanálise centrada no ego é adaptação do indivíduo ao


meio83. “Em psicanálise”, escreve Hartmann, o fundador desta escola, “encontramos o
problema da adaptação principalmente em relação com a teoria do eu; igualmente
como objetivo da terapia, e finalmente em ligação com considerações pedagógicas”
(apud Richard, 1977, p. 112). A terapia derivada desta escola conduz a um normalismo,
à sujeição do analisando a moral dominante e à ordem estabelecida. O discurso
psicanalítico se transforma em discurso ideológico e a contribuição essencial de Freud
sobre a vida fantasmática e a sua relação com a vida real é desprezada. Na verdade, os
próprios mecanismos de defesa, tão bem descritos por Anna Freud (O Ego e os
Mecanismos de Defesa), “não são uma defesa contra a realidade exterior (o que ela
durante muito tempo afirmou), mas defesas contra os fantasmas, são eles próprios
fantasmas” (Richard, 1977, p. 110 e 114s)84.

Lacan recusa totalmente a concepção de ego como instância reguladora da


personalidade com o meio. Prefere seguir a outra perspectiva aberta por Freud, que
possibilita pensar o ego como resultante de um fracasso de identificação. O ego
inicialmente é puramente imaginário (narcisismo primário) e depois simbólico

82
Sobre a teoria do narcisismo, consultar p. 221 deste trabalho.
83
Na Ego Psychology, afirmam Laplanche e Pontalis, “o ego é concebido antes de mais nada como um
aparelho de regulação e de adaptação à realidade, cuja gênese se procura descrever, por processos de
maturação e de aprendizagem, a partir do equipamento senso-motor do latente” (VP, p. 184).
84
Sobre fantasma (ou fantasia) consultar pp. 66; 326 deste trabalho.
66

(narcisismo secundário)85. Em ambos os casos, ele não tem realidade. Deixaremos a


discussão do enfoque lacaniano, porém, para outra seção. Por ora, queremos apenas
registrar que optamos por esta última corrente, que se aproxima mais do que a anterior
da leitura de Freud proposta por Ricoeur.

1.3.3) O SUPEREGO

O ego sadio, quer dizer, em condições normais de funcionamento, “pode


tomar-se a si mesmo como objeto, pode tratar-se como trata outros objetos, pode
observar-se, criticar-se etc.” Esta capacidade de uma parte do ego colocar-se diante de
outra, para conhecê-la e julgá-la, intensifica-se e adquire contornos surpreendentes nos
casos patológicos. Ora, a patologia pode conduzir-nos a uma melhor compreensão da
estrutura de nossa vida psíquica. Os doentes mentais afastam-se “da realidade externa,
mas por essa mesma razão conhecem mais da realidade interna, psíquica, e podem
revelar-nos muitas coisas que de outro modo nos seriam inacessíveis”. Pois bem, alguns
pacientes, vitimados por alucinações paranoicas, queixam-se de estarem sendo
permanentemente observados, fiscalizados e julgados por poderes estranhos. Freud
indaga a respeito da possibilidade de tais pessoas insanas estarem certas, isto é, de
existir em cada um de nós “uma instância como essa que observa e ameaça punir”, e
responde pela afirmativa: a separação da instância observadora do restante do ego é um
aspecto regular da estrutura do ego. Esta instância é denominada, a partir de então,
superego (Cf. NCIP, p. 77s). Pode-se atribuir ao superego três funções: a consciência, a
auto-observação e o ideal do ego. A consciência, no sentido moral, é a faculdade que
avalia o ego, podendo puni-lo com sentimento de culpa e remorso quando seus atos
contrariam os princípios morais (Cf. NCIP, p. 78). Esta autoavaliação, contudo,
pressupõe que o ego seja capaz de observar-se a si mesmo86 e exige um modelo segundo
o qual ele é julgado. O “ego real” é observado e comparado a um “ideal de ego” (Cf.
SNI, p. 111). Este modelo ideal, narcísico, é formado à imagem dos pais e expressa a
admiração que a criança um dia lhes dedicou (CF. NCIP, p. 95).

O superego surge como uma gradação ou diferenciação no interior do ego.


Descrevemos superficialmente as três funções atribuídas por Freud a esta nova

85
Sobre narcisismo primário e secundário consultar pp. 225-228 deste trabalho. Para compreensão da
concepção lacaniana do ego remetemos o leitor ao que dissemos adiante (pp. 264-269).
86
Freud enraíza a especulação filosófica nesta atividade auto-observadora da mente (Cf. SNI, p. 113s).
67

instância. Cabe-nos agora realizar a tarefa mais árdua, isto é, explicar a gênese do
superego.

Observações clínicas nos autorizam a afirmar que o superego é o “herdeiro do


complexo de Édipo” (Cf. EI, p. 49; NCIP, p. 83). É preciso, portanto, investigar a
situação edipiana para compreender a origem desta instância. Apresentaremos adiante
(cf. p....) a teoria da libido, quando teremos a oportunidade de nos referir às fases oral,
anal, fálica e genital. Aqui nos limitaremos a abordar o conflito edipiano, que se
instaura na fase fálica, e a resolução do mesmo.

Mostramos que a identificação está na origem do ego. Agora podemos dizer que
o superego – esta diferenciação no interior do ego – resulta também deste mesmo
processo. Por detrás do ideal do ego87, afirma Freud, “jaz oculta a primeira e mais
importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai em sua própria
pré-história pessoal” (EI, p. 43). Talvez fosse melhor dizer que o superego resulta da
identificação da criança com os pais (Cf. ibid., nota 2), ou ainda, com a “instância
parental”, expressão muito empregada por Freud em Novas Conferências Introdutórias
à psicanálise (Cf., por exemplo, ps. 81 e 83).

A primeira identificação da criança com os pais, porém, não é a substituição de


um investimento objetal. É uma “identificação direta e imediata” anterior a qualquer
escolha de objeto. No capítulo VIIº de Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921),
Freud nos diz que “a identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota
expressão de um laço emocional com outra pessoa” (p. 55). Ela é anterior a escolha do
objeto, não se confunde com este processo e nem depende necessariamente dele,
embora, conforme já sabemos, frequentemente se instale no ego após a perda de uma
relação objetal. O que caracteriza essencialmente a identificação é que ela “se esforça
por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado
como modelo”. Quando nos identificamos a um objeto, desejamos ser como ele, à
diferença do que ocorre quando o escolhemos, pois neste último caso, desejamos ter o
objeto. “O primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes que qualquer escolha

87
Freud em O Ego e o Id trata como sinônimos superego e ideal do ego (Cf. EI, p. 40; VP, p. 289).
Contudo, conforme indicamos acima, em Novas Conferências Introdutórias concebe o ideal do ego como
uma função do superego. Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução (p. 112s) – antes, portanto, da
introdução do termo superego na metapsicologia – distingue nitidamente o “agente da censura” do “ideal
do ego”. Para maiores esclarecimentos, consultar p. 227 deste trabalho.
68

sexual de objeto tenha sido feita” (PGAE, p. 56). Contudo, as identificações que
resultam de escolhas objetais, como mostraremos a seguir, são fundamentais para a
resolução do complexo de Édipo e vêm completar e reforçar as identificações primárias
da criança (Cf. EI, p. 44).

Seguindo a trilha indicada pelo próprio Freud (Cf. EI, p. 43, nota 2, e p. 44),
vamos, inicialmente, apresentar a formação e resolução do complexo de Édipo e a
gênese do superego, seu herdeiro, tomando como modelo o caso da criança de sexo
masculino. Em seguida, enfocaremos a resolução do conflito edipiano da menina.

1.3.4) O COMPLEXO DE ÉDIPO

No entender de Freud, se a tragédia de Sófocles ainda hoje nos impressiona e


atrai é porque Édipo, sem o saber, realiza dois desejos peculiares a toda criança do sexo
masculino: “eliminar o pai e, em lugar deste, desposar a mãe” (CIP III, p. 387). O
recalque incide sobre tais desejos incestuosos introduzindo a criança na cultura. A
situação edipiana é universal: “Todos os que nascem neste planeta”, assevera Freud,
“veem-se ante a tarefa de dominar o complexo de Édipo” (TETS, p. 123). A própria
referência “a um mito para além da história e das variações da vivência individual”
aponta para esta universalidade (Cf. VP, p. 117). A literatura nos oferece vários
exemplos que confirmam a existência de tais desejos inconscientes. Basta lembrar o
Hamlet, de Shakespeare (Cf. EP, p. 220; Jones, 1970) e esta passagem de Diderot,
citadas em três ocasiões distintas por Freud: “Se o pequeno selvagem fosse abandonado
a si mesmo, mantendo toda a sua loucura, e juntasse ao pouco discernimento de uma
criança de berço as violentas paixões do homem de trinta anos, ele estrangularia seu pai
e se deitaria com sua mãe“ (CIP III, p. 394, nota 2; EP, p. 121).

A psicanálise nos revela que “as experiências dos cinco primeiros anos de uma
pessoa exercem efeito determinante sobre sua vida”. Tais experiências, contudo, caem
no esquecimento e, em geral, o paciente só toma conhecimento delas na análise, através
do método da livre associação de ideias (Cf. LM, p. 149). Procuraremos apresentar, a
seguir, a reconstituição de nossa infância psíquica, seguindo, naturalmente, as
indicações minuciosas de Freud.
69

A criança pequenina investe a libido88 em sua mãe, de quem depende material e


afetivamente. Mas a mãe, de início, não é desejada como um todo. Ela se reduz, para a
criança, ao seio que a amamenta. Já que o seio-alimento é “o primeiro objeto erótico da
criança”, pode-se dizer que “a origem do amor está ligada à necessidade de nutrição”.
Temos, portanto, inicialmente um apoio89 da pulsão sexual (oral, no caso) na função
nutritiva. Pouco a pouco, contudo, o seio é completado pela figura da mãe, que não
apenas alimenta e cuida da criança, mas lhe desperta outras sensações de prazer.
“Através dos cuidados com o corpo da criança, [a mãe] se torna seu primeiro sedutor”
(Cf. EP, p. 216s). O amor que o menino dedica a sua mãe é, no dizer de Freud,
“inequivocamente” erótico. A criança não disfarça sua curiosidade sexual, indica
claramente seu desejo de dormir com a amada, “pode impor sua presença junto a ela
quando está se vestindo, ou mesmo fazer tentativas reais de seduzi-la”. Não é difícil
verificar que o menino quer ter sua mãe só para si, que tem ciúmes do pai e mostra
satisfação quando ele está ausente. Não raro chega a prometer que se casará com sua
mãe (Cf. CIP III, p. 388). Surge neste momento tendências masturbatórias, que “de
modo algum representa a totalidade de sua vida sexual”. A masturbação constitui
apenas uma válvula de escape, “uma descarga genital da excitação sexual pertinente ao
complexo, e durante todos os seus anos posteriores, deverá sua importância a esse
relacionamento” (DCE, p. 220).

O pai que, até então, era um modelo com o qual a criança se identificara
(identificação primária positiva) com a intensificação da escolha objetal pela mãe, passa
a ser um rival, do que resulta uma nova identificação hostil (identificação secundária
negativa) com a figura paterna. Os sentimentos que ligam o menino ao pai, portanto, se
tornam ambivalentes: a antiga admiração passa a coexistir com o ódio intenso. Esta
ambivalência já se encontra em esboço na fase oral, “em que o objeto que prezamos e
pelo qual ansiamos, é assimilado pela ingestão” (incorporação), fase, aliás, em que o
canibal se fixa, sem conseguir ultrapassá-la, pois, como nos explicam os antropólogos,
“ele só devora as pessoas de quem gosta” (Cf. PGAE, pp 55-57)90.

A ambivalência para com o pai e a relação objetal amorosa para com a mãe
“constituem o conteúdo do complexo de Édipo positivo simples de um menino” (EI, p.

88
Consultar p. 189 deste trabalho.
89
Consultar p. 195 deste trabalho.
90
Cf. adiante, pp. 203-206.
70

44). Com a dissolução do complexo, o menino deve abandonar o investimento libidinal


na mãe. A perda deste primeiro objeto de eleição pode ser substituída de dois modos:
pela identificação com a mãe ou a intensificação da identificação com o pai. Esta última
possibilidade, parece ser um caminho “mais normal”, que permite, inclusive, a
manutenção da relação afetuosa com a mãe, sem qualquer referência sexual-genital e
consolida “a masculinidade no caráter de um menino” (Cf. EI, p. 45). Na verdade, a
substituição da mãe por outro objeto sexual só ocorre na puberdade. É nesta época que
“o indivíduo humano tem de se dedicar à grande tarefa de desvincular-se de seus pais”,
para inserir-se na comunidade sociocultural. O filho deve desviar seus desejos
libidinosos em relação à mãe e orientá-los para um novo objeto de amor. Ao mesmo
tempo, cabe-lhe reconciliar-se com o pai ou liberar-se da pressão deste (Cf. CIP III, p.
393).

Contudo, a situação edipiana não é tão simples assim. A esta maneira


esquematizada de se compreender o complexo, “frequentemente justificada para fins
práticos”, deve-se acrescentar uma descrição mais completa e minuciosa. O que
dificulta grandemente o entendimento do complexo de Édipo é o seu caráter triangular e
a bissexualidade91 constitucional do ser humano. “Um estudo mais aprofundado”,
observa Freud, “geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é
dúplice, positivo e negativo, devido à bissexualidade originalmente presente na criança”
(EI, p. 45). Sob a forma positiva simples o complexo se limita à rivalidade em relação
ao pai e ao desejo libidinoso voltado para a mãe. Sob a forma negativa simples, a
situação se inverte. Quer dizer, aparecem tendências libidinosas orientadas para o
mesmo sexo e ódio ao sexo oposto. “Na realidade, estas duas formas encontram-se em
graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo” (VP, p. 116). Quer
dizer, normalmente a criança se identifica (positiva e negativamente) com os genitores

91
A noção de bissexualidade, introduzida na psicanálise por Freud sob a influência de seu amigo Fliess,
indica que todo ser humano tem constitucionalmente disposições sexuais masculinas e femininas. A teoria
se fundamentou, inicialmente, em dados anatômicos e da embriologia. Fliess dava à bissexualidade
biológica toda ênfase. Embora Freud em alguns textos pareça inclinar-se para esta concepção, em outros
condena esta tendência biologicista, reconhecendo a importância psicológica da bissexualidade (Cf. VP,
p. 88s). “... Ninguém se limita à modalidades de reação de um único sexo; há sempre lugar para as do
sexo oposto, da mesma maneira que o corpo carrega juntamente com os órgãos plenamente desenvolvidos
de determinado sexo, rudimentos atrofiados, e com frequência inúteis, dos do outro. Para distinguir entre
masculino e feminino, na vida mental, usamos o que é, sem dúvida alguma, uma equação empírica,
convencional e inadequada: chamamos de masculino tudo que o que é forte e ativo, e de feminino tudo o
que é fraco e passivo” (EP, p. 216; cf. TETS, pp 31-34).
71

de ambos os sexos, embora prevaleçam certas identificações sobre outras. Em virtude de


sua constituição bissexual,

um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e
uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas (...) também se comporta como
uma menina e apresenta uma atitude afetuosa feminina para com o pai e um
ciúme e uma hostilidade correspondente em relação à mãe (EI, p. 45s)92.

Como o complexo de Édipo chega ao declínio? Por estar fadado à frustração, ao


insucesso? Ou, apenas, por que, chegado o momento oportuno, se desmorona como um
dente de leite que cai? Estas hipóteses podem corresponder à realidade, mas não
explicam os mecanismos que entram em jogo na “destruição” ou “demolição” do
complexo. Para Freud, “a destruição do complexo de Édipo é ocasionada pela ameaça
de castração” (DCE, p. 222).

Dissemos que a situação edipiana ocorre na fase fálica. Esta fase se organiza
tanto para o menino como para a menina sob o império do falo (Cf. EP, p. 179). Ter ou
não ter falo, eis a questão. O menino imagina que todos os seres humanos têm um órgão
semelhante ao seu. A menina, conforme veremos, é tomada por uma inveja de pênis e
imagina que o seu clitóris deverá crescer e se tornar um órgão igual ao do menino (Cf.
TETS, p. 90s; NCIP, p. 85; ACDAS, p. 314).

Vimos que a criança masculina se sente sexualmente atraída pela mãe. Esta
atração pouco a pouco vai sendo percebida pelos pais a ponto de exigir deles a
interdição. A mãe, ao se dar conta da excitação sexual do menino, proíbe-o de
manipular seu pênis. Em seguida, juntamente com o pai, adota uma atitude mais severa.
Os dois,

mais ou menos diretamente, mais ou menos brutalmente, pronunciam uma


ameaça de que essa parte dele, que tão altamente valoriza, lhe será tirada.
Geralmente é de mulheres que emana a ameaça; com muita frequência, elas
buscam reforçar sua autoridade por uma referência ao pai ou ao médico, os
quais, como dizem, levarão a cabo a punição (DCE, p. 219).

Portanto, a ameaça de castração vem da mãe, embora a execução da tarefa seja


delegada ao pai. Contudo, observa Freud, “não se trata de a castração ser ou não ser
efetuada; o que é decisivo é que o perigo ameaça de fora e a criança acredita nele”

92
Podemos completar esta citação com uma outra esclarecedora: “O complexo de Édipo ofereceu à
criança duas possibilidades de satisfação, uma ativa e outra passiva. Ela poderia colocar-se no lugar de
seu pai, à maneira masculina, e ter relações com a mãe, como tinha o pai, caso em que cedo teria sentido
o último como um estorvo, ou poderia querer assumir o lugar da mãe e ser amada pelo pai, caso em que a
mãe se tornaria supérflua” (DCE, p. 220).
72

(NCIP, p. 109). O importante não é a castração real, mas a simples fantasia da castração.
Mesmo quando imaginária, ela é ameaçadora, provoca ansiedade e configura o
“complexo de castração”. Diante deste perigo real ou imaginário – este último o que de
fato interessa à psicanálise – o que resta a criança? Para “preservar seu órgão sexual,
renuncia a posse da mãe...” (EP, p. 219). O menino inicialmente não leva muito a sério a
ameaça e, consequentemente, não obedece aos pais. Contudo, um belo dia, vê os órgãos
genitais femininos. Esta visão rompe a descrença da criança em relação à decisão dos
pais e determina a renúncia libidinal da mãe (Cf. DCE, 219s). Agora ele se assegurou de
que a castração é possível.

Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar à


criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico
nessa parte de seu corpo e a catexia [ou investimento] libidinal de seus
objetos parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessas
forças: o ego da criança volta às costas ao complexo de Édipo (DCE, p. 221).

É neste momento de encerramento da situação edipiana e da organização genital


fálica que emerge o superego, como um resíduo de todas estas experiências traumáticas
da criança.

É a descoberta da possibilidade de castração, tal como provada pela visão dos


órgãos genitais femininos, que impõe ao menino a transformação de seu
complexo de Édipo e conduz à criação de seu superego, iniciando assim
todos os processos que se destinam a fazer o indivíduo encontrar lugar na
comunidade cultural. (SF, p. 263; grifos nossos)

Detenhamo-nos um momento na averiguação dos processos psíquicos que


conduzem à formação do superego.

Até esbarrar com o pai castrador, guardião da lei, porta-voz da cultura, a criança
vivia em pleno gozo sua relação íntima com a mãe (Cf. TETS, p. 119). A emergência da
figura paterna provoca a ruptura desta relação, na medida em que impõe como condição
da posse do pênis a renúncia da mãe. Ao abandonar os investimentos libidinosos no
objeto materno, o menino faz sua a interdição do pai. Introjeta a lei do pai, introduz,
pelo mecanismo da identificação, a autoridade paterna em si mesmo, do que resulta um
precipitado de identificações em seu ego, a saber, o superego93. A criança toma de
empréstimo a força do pai e traz para dentro de si o obstáculo que a impede de realizar
seus desejos:

93
Como ressaltam Laplanche e Pontalis, “é difícil determinar, entre as identificações, as que estariam
especificamente em jogo na construção do superego, do ideal do ego, do ego ideal, e mesmo do ego” (VP,
p. 645).
73

O superego retém o caráter do pai (...) [e] quanto mais poderoso o complexo
de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão [ou ao recalque] (sob a
influência da autoridade, do ensino religioso, da educação escolar e da
leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o
ego, sob a forma de consciência ou, talvez, um sentimento inconsciente de
culpa (EI, p. 47).

O superego é, assim, o “herdeiro do complexo de Édipo”. Freud nos diz que a


instalação na mente infantil desta nova instância pode ser encarada como um “exemplo
bem sucedido de identificação com a instância parental” (NCIP, p. 83). Observe-se que
a expressão “instância parental” indica que a identificação constitutiva do superego não
deve ser concebida como identificação com pessoas (Cf. VP, p. 646). Aliás, Freud é
muito explícito a este respeito: “O superego de uma criança é constituído segundo o
modelo não de seus pais, mas do superego de seus pais” (NCIP, p. 87).

Com as identificações necessárias para a formação do superego, “as tendências


libidinais pertencentes ao complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e
sublimadas (...) e em parte são inibidas em seu objetivo e transformadas em impulsos de
afeição” (DCE, p. 221; grifos nossos)94. O órgão genital masculino é salvo, mas sua
função é paralisada. Com efeito, com o declínio da situação edipiana surge um período
de latência, que interrompe o desenvolvimento sexual da criança até a puberdade,
quando a libido volta a manifestar-se explicitamente.

O retraimento do ego diante do complexo de Édipo pode ser considerado como


recalque, embora outros recalques posteriores possam surgir com a participação do
superego. “O processo que descrevemos é, porém, mais que uma repressão [ou
recalque]. Equivale, se for idealmente levado a cabo, a uma destruição e abolição do
complexo”. A superação do complexo decide tanto do normal como do patológico. Se a
travessia por Édipo só conseguir o recalque e não a destruição ou a dissolução do
complexo, “este persiste em estado inconsciente no id e manifestará mais tarde seu
efeito patogênico” (DCE, p. 221s). Freud não se cansa de repetir: “O complexo de
Édipo pode ser considerado como o núcleo das neuroses” (CIP III, p. 393).

Do ponto de vista econômico, existe uma íntima ligação do superego 95 com o id.
Com efeito, erigindo o ideal do ego e, assim, dominando o complexo de Édipo, o ego,

94
Sobre sublimação e amor inibido em sua finalidade (ou em seu objetivo), consultar p. 282 deste
trabalho.
95
Neste parágrafo, estamos tomando o termo superego no sentido de O Ego e o Id, onde ele engloba as
funções de interdição (censura) e de ideal.
74

simultaneamente, submete-se às exigências do id, ao identificar-se com o objeto perdido


e desejado por esta última instância. Pode-se até dizer que enquanto “o ego é
essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se
em contraste, como representante do mundo interno, do id” (EI, p. 49). Há, portanto,
uma “comunicação abundante” entre o ideal do ego e as tendências libidinosas do id. A
energia do superego, colocada à disposição deste pelo complexo de Édipo, origina-se do
id (Cf. EI, p. 52). Estas trocas de investimentos constituem o substrato energético e
quantitativo que possibilita à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós
transforma-se, pela formação do ideal, no que é mai elevado na mente humana, segundo
nossa escala de valores (Cf. EI, p. 49).

Até agora investigamos a situação edipiana no menino, deixando na obscuridade


os conflitos femininos. É claro que muito do que dissemos não depende do sexo da
criança, mas são processos que estruturam a vida mental (identificação, recalque,
sublimação, formação do ideal etc.). Contudo, conforme veremos, tais processos e
mecanismos se realizam no menino, de um modo, e, na menina, de outro.

Durante algum tempo, Freud imaginou que o desenvolvimento do complexo de


Édipo dava-se na mulher de modo análogo ao do homem, invertendo-se apenas o objeto
da agressividade e do amor. A menina desejaria libidinosamente o pai e seria hostil para
com sua mãe (Cf. EI, p. 45). Na verdade, as coisas não ocorrem exatamente assim, ou
melhor, para que tais desejos surjam a menina segue um caminho próprio, diferente do
percorrido pelo menino. Há profundas diferenças entre o complexo de Édipo masculino
e o feminino. Freud, inclusive, chegou a rejeitar a expressão “complexo de Electra”, que
pressupõe uma analogia entre as duas formas de conflito (Cf. SF, p. 263), embora tenha
se servido dela em alguns escritos.

Pode-se atribuir também à mulher uma organização fálica e um complexo de


castração. “O clitóris na menina inicialmente comporta-se como um pênis, porém,
quando [ela] efetua uma comparação com um companheiro de brinquedo do outro sexo,
percebe que se saiu mal e sente isso como uma injustiça feita a ela e como fundamento
para inferioridade” (DCE, p. 223). Portanto, por não dispor de um órgão idêntico ao do
menino, a menina se sente inferior a ele. Este sentimento de inferioridade provoca uma
“inveja de pênis”, que determina todo o seu desenvolvimento posterior. A criança
feminina, é claro, não pode temer a perda do pênis, mas reage ao fato de não ter
75

recebido um (Cf. EP, p. 221s) e procura alguma compensação (Cf. DCE, p. 123). Se ela
insiste em seu primeiro desejo, quer dizer, transformar-se numa criança masculina,
pode-se tornar homossexual, ou pelo menos, apresentar “traços marcadamente
masculinos” (Cf. EP, p. 222). Em geral, porém, segue um outro caminho. Tal como o
garoto, ela tem como primeiro objeto de amor a mãe (SF, p. 262), que é “o prótipo de
todas as relações amorosas posteriores” (EP, p. 217). Na verdade, “o amor infantil é
ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo” (SF, p. 66).
No entanto, no momento em que percebe sua inferioridade em relação à criança
masculina, a menina desenvolve um relacionamento hostil para com a mãe. Não pode
perdoar a quem lhe gerou desprovida de pênis e, em seu ressentimento, se desliga da
mãe, mas se identifica com ela e imaginariamente toma seu lugar na relação com o pai,
ou seja, faz do pai sua nova escolha. Estabelece, assim, uma nova relação com o pai,
inicialmente motivada pelo desejo de ter um pênis, depois, de ter um filho por
intermédio dele (Cf. EP, p. 222). A menina “desliza – ao longo de uma equação
simbólica, poder-se-ia dizer – do pênis para um bebê (...). Os dois desejos – possuir um
pênis e um filho – permanecem fortemente catexizados [ou investidos] no inconsciente
e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior” (DCE, p.
223s).

Observe-se que, em consequência do que dissemos, à diferença do que ocorre no


homem, “a mulher só atinge a normal situação edipiana positiva depois de ter superado
um período anterior que é governado pelo complexo negativo” (SF, p. 260). Quer dizer,
enquanto o menino inicialmente ama o genitor de sexo oposto e rivaliza com o pai
(complexo positivo), a menina ama primeiro o genitor de mesmo sexo e hostiliza o de
sexo oposto, que é a encarnação da autoridade e da lei (complexo negativo). Uma outra
diferença marcante é a situação do complexo de castração no desenvolvimento de cada
um dos sexos. Nos meninos, conforme vimos, a “ameaça de castração” destrói o
complexo de Édipo; nas meninas, a “impressão de castração” cria o complexo (Cf. SF,
p. 264; EP, p. 223).

A resolução mais satisfatória da situação edipiana na menina é “completar seu


amor pelo órgão estendendo-o ao portador do órgão, tal como aconteceu anteriormente,
quando progrediu do seio da mãe para a mãe como uma pessoa completa”. Quando isto
ocorre, a mulher é capaz de escolher o marido por suas qualidades paternas e de
“reconhecer sua autoridade” (EP, p. 223).
76

Concluindo esta exposição a respeito do complexo de Édipo, gostaríamos de


fazer três observações: 1ª) A estrutura triangular inerente à situação edipiana (sujeito
desejante, objeto desejado e instância interditora) pode-se estender para outros membros
da família, sobretudo irmãos, que eventualmente assumam os papéis materno e paterno.
A rivalidade entre irmãos se explica, também, a partir da situação edipiana: uma criança
posta em segundo plano pelo nascimento de um irmão não perdoa facilmente sua mãe
pela perda dos privilégios. Por isto, Freud se refere a Édipo como sendo um “complexo
familiar” (Cf. CIP III, p. 389s); 2ª) A objeção introduzida pelo antropólogo B.
Malinovski e retomada pela escola culturalista (E. Fromm, K. Horney etc.), segundo a
qual nas culturas em que o pai é desprovido de qualquer função repressiva, não existe
complexo de Édipo, desconhece que o essencial na situação edipiana é a estrutura
triangular a que nos referimos e não os personagens que em tal ou tal civilização
ocupem os vértices do triângulo. Cabe ao psicanalista, com o apoio das pesquisas
etnológicas, investigar nas sociedades primitivas “em que personagens reais, e mesmo
em que instituição se encarna a instância interditória” (VP, p. 120); 3ª) Embora Freud
insista, com razão, na universalidade do complexo de Édipo, fundamenta sua
argumentação recorrendo a exemplos particulares, claramente vinculados à situação
cultural e histórica em que vivia. Urge, portanto, completar e corrigir o enfoque
freudiano pelas análises lúcidas de Lacan, que articula Édipo com a aquisição da
linguagem96. O que nos permite afirmar universalidade do complexo de Édipo é a
estrutura triangular a que nos referimos.

2) O PONTO DE VISTA ECONÔMICO

O ponto de vista econômico pressupõe a hipótese segundo a qual os processos


psíquicos podem ser expressos em termos energéticos. No século XIX havia a tendência
generalizada de se aplicar a todos os domínios científicos, inclusive às ciências
humanas, o modelo fornecido pelas ciências da natureza, particularmente o da físico-
matemática. Influenciado por essa tendência, ou seja, pretendendo dar um estatuto de
cientificidade equivalente ao das ciências naturais às suas descobertas no campo da
psicologia, Freud se empenhou para explicar os processos psíquicos recorrendo ao
96
Para o enfoque lacaniano do complexo de Édipo, consultar pp 264-269 deste trabalho.
77

conceito de energia psíquica, análogo ao de energia física. Trata-se de um conceito


operacional, que permite a leitura dos fenômenos psíquicos em termos quantitativos e
mensuráveis. A energia psíquica é susceptível de aumento, diminuição e equivalência.
Os processos psico-energéticos circulam pela mente e nela se repartem. O conceito de
investimento97 (ou catexia, segundo a discutível tradução inglesa) e seus derivados –
contrainvestimento, desinvestimento, superinvestimento – vinculam-se a esta
capacidade de circulação e repartição da energia psíquica. Considerando que, no
entender de Freud, esta energia deriva de excitações somáticas, o ponto de vista
econômico é definido do seguinte modo: é o que “se esforça por levar até às últimas
consequências as vicissitudes de quantidades de excitação e chegar pelo menos a uma
estimativa relativa de sua magnitude” (Cf. INC, p. 98).

2.1) PRINCÍPIO DE INÉRCIA E PRINCÍPIO DE CONSTÂNCIA

Com o objetivo de introduzir o leitor no ponto de vista econômico, vamos expor


um esboço rápido e incompleto do modelo neurônico elaborado no Projeto para uma
Psicologia Científica (1895), modelo, aliás, cuja relevância no conjunto da teoria
psicanalítica não deve ser minimizada, não obstante o referido ensaio ser inacabado e
póstumo. Esta decisão parece-nos acertada, tendo em vista que o aparelho neurônico do
Projeto pode ser considerado como um modelo essencialmente econômico da mente, já
que relega a segundo plano o dinamismo dos processos psíquicos98.

Freud utilizou duas teorias de origem diversas na elaboração do aparelho


neurônico. Uma oriunda da escola fisiológica de H. Helmholtz e outra, endossada por
neuroanatomistas da década de 80 do século XIX. A primeira considerava que a
psicologia era regida por leis puramente físico-químicas, como, por exemplo, o
princípio de constância, frequentemente mencionado por Freud e Breuer; a segunda,
“estabelecia que a unidade do sistema nervoso central era uma célula distinta, não tendo
continuidade anatômica direta com células adjacentes” (Cf. IS, introdução dos editores
ingleses, p. XXIII). Esta dupla influência aparece no Projeto, por um lado, na
concepção dos neurônios, que são as “partículas materiais” com que o aparelho é
construído e, por outro lado, no conceito de energia ou quantidade (Q), a qual segue as

97
Besetzung, no original no alemão.
98
Recorremos algumas indicações de Wollhein (1977, p. 44-66) na apresentação do que segue.
78

leis gerais do movimento, ou seja, é governada pelo “princípio de inércia neurônica” em


articulação com o “princípio de constância” (Cf. PPC, p. 25).

Expliquemo-nos melhor. Um neurônio (célula nervosa) é apto a ser investido (ou


catexizado) de uma certa quantidade (Q) de energia e, neste sentido, pode estar “cheio”
ou “vazio” de energia (PPC, p.28). A excitação (ou estímulo) nervosa é concebida como
a corrente energética que flui através dos neurônios. Pode-se estabelecer um princípio
básico da atividade neurônica em relação a esta quantidade (Q). Trata-se do princípio de
inércia: “Os neurônios tendem a se desfazer de Q” (PPC, p. 26). Quer dizer, os
neurônios propendem a se livrar das quantidades de que estejam cheios. A este
princípio, no entanto, vem-se juntar o princípio de constância, segundo o qual a energia
não pode ser totalmente descarregada, mas deve ser mantida no mais baixo nível
possível (Cf. PPC, p. 28).

O que justifica a introdução deste novo princípio? Freud segue a concepção do


arco reflexo, segundo o qual “a quantidade de excitação recebida pelo neurônio
sensitivo supõe-se ser inteiramente descarregada na extremidade motora” (VP, p. 463).
O aparelho neurônico – tal como o ótico99 – é composto, numa de suas extremidades,
por neurônios sensórios, isto é, células nervosas aptas a receber estímulos e, na outra,
por neurônios motores, quer dizer, células que controlam o movimento que descarrega
Q. Ocorre que os estímulos não vêm apenas de fora, mas também de dentro, ou seja,
das células do corpo (fome, sede, sexualidade etc.) (Cf. PPC, p. 26). Considerando-se
apenas os estímulos externos, seria possível conceber a mente recorrendo apenas ao
modelo neurofisiológico do arco reflexo, e, neste caso, o princípio de inércia seria
suficiente para explicar a descarga de Q. Contudo, levando-se em conta os estímulos
internos, é necessário acrescentar ao princípio de inércia o de constância. Com efeito,
para a energia procedente dos estímulos endógenos, que correspondem às grandes
necessidades vitais, a descarga segue um caminho mais complexo. O alívio de tais
necessidades exige o que Freud denomina “ações específicas” (PPC, p. 27), isto é, as
ações que, ao modificar o meio ambiente, criam condições favoráveis para aliviar as
excitações com objetos e objetivos adequados (a fome, por exemplo, não pode ser
eliminada mediante gritos ou emoções, mas por meio de uma ação que alcance o objeto
específico – um alimento, no caso – capaz de satisfazê-la).

99
Cf. acima, p. 80-29.
79

Ora, as ações específicas exigem do aparelho duas condições básicas. Em


primeiro lugar, deve dispor de algum meio para registrar as experiências (memória), a
fim de que, quando estimulado, mobilize a descarga adequada e não outra. Em segundo
lugar, deve ser capaz de tolerar um acúmulo de energia, sem o qual a ação específica
não pode efetuar-se (princípio de constância) (Cf. PPC, p. 25-28).

Detenhamo-nos um momento diante desta dupla exigência. Freud divide os


neurônios sensórios em duas classes: os totalmente permeáveis ao fluxo energético e os
impermeáveis. Os primeiros são próprios da percepção, os segundos, da memória (Cf.
PPC, p. 30). Quer dizer, há excitações que provocam modificações permanentes nos
neurônios (memória) e outras que não os modificam senão momentaneamente,
possibilitando-lhes receber sempre novas excitações nas mesmas condições anteriores
(percepção). No protoplasma dos neurônios impermeáveis encontram-se “barreiras de
contato” (PPC, p. 29) que dificultam a circulação de energia e, deste modo, conseguem
armazenar uma certa quantidade necessária “às exigências da vida” (atos específicos)
(PPC, p. 27). Há neurônios cujas barreiras de contato são tão altas que mantém uma
reserva contínua de energia. Eles constituem o ego (Cf. PPC, p. 58s). Mas o ego é
consciente, de modo que é necessário postular, além dos neurônios permeáveis e
impermeáveis, os neurônios de consciência, cuja função é regular a periodicidade ou
frequência da corrente energética e, assim, fornecer as impressões qualitativas de prazer
e desprazer, este correspondendo a um aumento no nível de excitação e aquele, a uma
diminuição (Cf. PPC, p. 45).

Em síntese: as ações específicas, necessárias à vida, exigem que a energia não


seja totalmente descarregada (a descarga total corresponde ao princípio de inércia, à
energia livre e aos processos primários), mas mantida no mais baixo nível possível
(princípio de constância, energia vinculada, processos secundários), o que é
possibilitado pelas barreiras de contato dos neurônios mnésicos e do ego.

O Projeto de 1895, como já lembramos, é uma obra incompleta que Freud nunca
publicou em vida. Ele evidencia uma tendência a localizar fisiologicamente os
processos psíquicos, tendência esta que, de resto, como já tivemos a oportunidade de
afirmar, nunca se ausentou por completo do pensamento de Freud. “Todas as nossas
ideias provisórias em psicologia”, dizia ele em 1914, “presumivelmente algum dia se
basearão numa estrutura orgânica” (SNI, p. 95). Não obstante esta tendência
80

reducionista, muito comum no século XIX e início do século XX, Freud nunca
conseguiu realizá-la. Na verdade, como vimos, abandonou rapidamente o aparelho
neurônico, para substituí-lo pelo aparelho psíquico. Inspirando-se nas ciências da
natureza, em particular na físico-matemática, criou novos modelos, para explicar os
fatos observados na clínica, que são irredutíveis a fatos puramente naturais. O que
importa no aparelho neurônico, portanto, não é o seu caráter organicista ou fisicalista,
mas o seu valor de modelo. Neste sentido, ele é tão importante para a metapsicologia
quanto o “aparelho psíquico” do capítulo VIIº da Interpretação de Sonhos. Aliás, muitas
das ideias desenvolvidas no Projeto foram retomadas com algumas modificações na
obra posterior e daí passaram para o arsenal de conceitos da teoria psicanalítica. Os
sistemas neurônicos deram lugar aos sistemas psíquicos; a “Quantidade” (Q) foi
substituída pelo investimento hipotético de energia psíquica; os princípios de inércia e
de constâncias se tornaram a expressão econômica dos princípios de prazer e realidade;
a energia livre, própria dos processos primários, e a energia vinculada, própria dos
secundários, continuaram a circular do mesmo modo nos sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente.

Contudo, convém apontar duas modificações, ou melhor, adaptações que dizem


respeito à fonte energética do aparelho. Com o advento da teoria das pulsões (Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905), Freud passou a admitir que “quase toda
a energia com que o aparelho se abastece origina-se de suas tendências pulsionais
inatas” (Cf. APP, p. 19)100. Na segunda tópica, o id é concebido como o polo pulsional
da personalidade, estando, assim, “repleto de energia que a ele chega dos instintos [ou
pulsões] ...” (NCIP, p. 94). Não é de se estranhar tais afirmações, já que a fonte da
pulsão, conforme mostramos, reside em excitações somáticas, consistindo, portanto,
numa certa “quantidade de energia” (Cf. NCIP, p. 121). Freud insiste em que o conceito
de pulsão é um conceito limite entre o psíquico e o somático. A energia das pulsões
sexuais é denominada libido (Cf. NCIP, p. 120) e a da autoconservação, interesse (CIP
III, p. 484). Na segunda classificação, como veremos, Freud não raro emprega Eros para
substituir libido101 (Cf. APP, p. 68).

100
Nesta citação substituímos “impulsos instintivos” por “tendências pulsionais”.
101
Nem sempre, contudo, Eros é empregado no sentido econômico, ou seja, como sinônimo de libido (Cf.
VP, p. 206).
81

2.2) PRINCÍPIO DE PRAZER E PRINCÍPIO DE REALIDADE

Freud sempre admitiu que o aparelho psíquico é governado pelo princípio do


prazer. No Projeto, refere-se “a série de sensações de prazer e desprazer” e reconhece a
existência de “uma tendência da vida psíquica para evitar o desprazer” (Cf. VP, p. 45).
Para elaborar o aparelho ótico de Interpretação de Sonhos, conforme já mostramos102,
concebe o princípio de desprazer como aquele que preside o curso das excitações tanto
no primeiro sistema (Ics) como no segundo (Pcs-Cs) (Cf. IS, p. 639). Num importante
artigo de 1911 (Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental),
depois de introduzir a expressão princípio de prazer, sem abandonar a anterior
(“princípio do desprazer”), afirma: “a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento
que possa despertar desprazer” (DPFM, p. 168). Em Além do Princípio de Prazer
(1920), onde questiona o princípio, reconhece que os processos psíquicos evitam o
desprazer e buscam o prazer (Cf. APP, p. 15). Dez anos depois, isto é, no ensaio Mal
Estar na Civilização (1930), declara: “o que decide o propósito da vida é simplesmente
o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho
psíquico desde o início” (MEC, p. 32).

Como Freud entende o prazer? A noção de prazer tem um caráter econômico,


quer dizer, está vinculada a quantidade de excitação (ou tensão). O desprazer
corresponde a um aumento de tensão e o prazer a uma diminuição. No Projeto, Freud
vincula o afeto do prazer à “tendência primária à inércia” (Cf. PPC, p. 45). Em
Interpretação de Sonhos reconhece que as “liberações de prazer e desprazer regulam
automaticamente o curso dos processos catexiais” (IS, p. 612). No artigo Os Destinos
das Pulsões103 (1915), reformulando o princípio de constância, afirma que “o sistema
nervoso é um aparelho que tem por função livrar-se dos estímulos que lhe chega, ou
reduzi-los ao nível mais baixo possível; ou que, caso isso fosse viável, se manteria
numa condição inteiramente não estimulada” (IV, p. 30).

Contudo, um pouco adiante, neste mesmo artigo, admite como “altamente


indefinida”, a suposição de que “os sentimentos desagradáveis estão ligados a um
aumento e os sentimentos agradáveis a uma diminuição do estímulo”, até que se consiga
102
Cf.,acima, p. XX ?
103
Este título , via a tradução inglesa, é, como já vimos, O instinto e suas vicissitudes.
82

“descobrir que espécie de relação existe entre o prazer e o desprazer, por um lado, e
flutuações nas quantidades de estímulo que afetam a vida mental, por outro” (IV, p. 31).
Em Além do Princípio de Prazer (1920), no entanto, volta a reconhecer a
correspondência entre o aumento e a diminuição da quantidade de excitação com os
afetos de desprazer e prazer, respectivamente (Cf. APP, p. 16), e chega a formular o
princípio de prazer do seguinte modo: “[O curso dos eventos mentais] é invariavelmente
colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que
seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de
desprazer e uma produção de prazer” (APP, p. 15). Diz ainda que “o princípio de prazer
decorre do princípio de constância” (APP, p. 17). Na mesma obra, introduzindo o
“princípio de Nirvana”, declara:

a tendência dominante da vida mental e, talvez da vida nervosa em geral, é o


esforço para reduzir, para manter constante ou para remover a tensão interna
devida aos estímulos (o princípio de Nirvana, para tomarmos de empréstimo
uma expressão de Barbara Low), tendência que encontra expressão no
princípio de prazer... (APP, p. 74) 104.

Contudo, ainda em Além do Princípio de Prazer, retomando a dúvida levantada


em Os Destinos das Pulsões e assumindo o caráter problemático da concepção
econômica do prazer, Freud reconhece: “Nossa consciência nos comunica sentimentos
provindos de dentro que não são apenas de prazer e desprazer, mas também de uma
tensão peculiar que, por sua vez, tanto pode ser agradável como desagradável” (APP, p.
82). Estas tensões, necessárias à vida, são introduzidas por Eros105:

Se é verdade que o princípio da constância de Fechner governa a vida, que


assim consiste numa descida contínua em direção à morte, são as
reivindicações de Eros, dos instintos [ou pulsões] sexuais, que, sob a forma
de necessidades instintuais [ou pulsionais], mantém o nível que tende a
baixar e introduzem novas tensões. (EP, p. 60)

Estas novas tensões introduzidas por Eros, na medida em que podem ser, no
dizer do próprio Freud, agradáveis, sem dúvida abalam a hipótese econômica do prazer.
Esta hipótese, contudo, não obstante seu caráter problemático, nunca foi afastada por
Freud, devido ao interesse operacional que reveste para a teoria psicanalítica,
inconcebível sem a admissão da noção de prazer inconsciente. A interpretação
econômica dos afetos de prazer e desprazer, com efeito, “permite enunciar um princípio

104
Laplanche e Pontalis observam que Freud, na obra citada, define o princípio de constância de modo
equívoco, ou seja, confunde-o com o princípio de inércia: “a tendência para redução absoluta e a
tendência para a constância são consideradas equivalentes” (VP, p. 460).
105
Consultar p. 229 deste trabalho.
83

válido, quer para as instâncias inconscientes da personalidade, quer para os seus aspetos
conscientes” (VP, p. 467). Como é possível se referir a um prazer inconsciente? Apenas
do ponto de vista econômico, ou seja, como redução do nível de tensão. Na verdade, o
afeto de prazer é sempre necessariamente consciente; apenas seu substrato energético e
quantitativo pode ser inconsciente.

Laplanche e Pontalis observam que, não obstante numerosas afirmações de


Freud assimilarem o princípio de prazer ao princípio de constância, há que se
reconhecer, tal como se delineia no Projeto, que o princípio de prazer corresponde antes
a tendência à inércia que a manutenção da constância. Na verdade, a oposição inércia e
constância, embora se encontre explicitamente formulada apenas no ensaio de 1895,
corresponde à muitas outras oposições metapsicológicas, a saber, energia livre e energia
ligada, processo primário e processo secundário, prazer e realidade e também, pulsões
de morte (tendência para eliminar as tensões) e pulsões de vida (tendência para manter
as tensões) (Cf. VP, p. 460 e 468).

Até aqui nos referimos as princípio do prazer. É o momento de introduzirmos


um outro mecanismo correlato, também regulador do aparelho psíquico: o princípio de
realidade.

“Sob a influência dos instintos [ou pulsões] de autoconservação do ego”, diz


Freud, “o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade” (APP, p. 18). O
ego-prazer, que se limita a desejar, deve ser completado pela ego-realidade, que busca o
útil e resguarda-se contra danos (DPFM, p. 173)106. A intenção fundamental de obter
prazer não é abandonada com o princípio de realidade: o aparelho apenas aprende a
adiar a satisfação e tolerar temporariamente o desprazer “como uma etapa no longo e
indireto caminho para o prazer” (APP, p. 18). Na verdade, o objetivo do novo princípio
não é a “deposição”, mas a “proteção” do anterior (Cf. DPFM, p. 173).

Já vimos que na criança pequenina o aparelho funciona de tal modo que o desejo
desemboca na alucinação: a percepção e a lembrança, o objeto real e o objeto
imaginário se confundem. É a frustração e o desapontamento que leva o pequenino ser a
abandonar esta tentativa de satisfação alucinatória. O aparelho psíquico tem de
representar as “circunstâncias reais do mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas

106
Cf.,acima, p. 114, o conceito de teste (ou prova) de realidade.
84

uma alteração real”. Surge, assim, um novo princípio regulador do funcionamento


psíquico, segundo o qual o que se apresenta na mente não é mais apenas o agradável,
mas o real, mesmo quando desagradável. “Este estabelecimento do princípio de
realidade provou ser um fato momentoso” (Cf. DPFM, p. 169).

A instauração do princípio de realidade exige uma série de modificações no


aparelho psíquico, que corresponde à passagem dos processos primários aos secundários
ou, em termos econômicos, à transformação de energia vinculada em energia livre.
Desenvolvem-se os órgãos sensoriais e a consciência emergente aprende a distinguir
qualidades sensórias em acréscimo às de prazer e desprazer, que até então eram as
únicas que lhe interessavam. Desenvolvem-se, também, as demais funções conscientes,
a saber, atenção, juízo, memória; dá-se a substituição da descarga motriz por uma ação
capaz de transformar a realidade; finalmente surge o pensamento. Este último é dotado
de características que possibilitam “ao aparelho mental, tolerar uma tensão aumentada
de estímulo...”. A atividade pensante é acompanhada por deslocamentos relativamente
pequenos de investimentos, junto com menor dispêndio (descarga) destes. Para se obter
tal resultado, o aparelho precisa transformar investimentos móveis (ou livres) em
investimentos ligados. “É possível que o pensar fosse originariamente inconsciente...”
(DPFM, p. 171), sustenta Freud.

Conforme dissemos, o novo princípio não suprime o anterior. O princípio de


realidade garante a obtenção de satisfações no real, mas por outro lado, “o princípio de
prazer continua a reinar em todo um campo de atividades psíquicas, espécie de domínio
reservado entregue ao fantasma e que funciona segundo as leis do processo primário: o
inconsciente” (VP, p. 471)107. Há que se distinguir a realidade externa da “realidade
psíquica”, que é constituída por nossos desejos em correlação com suas fantasias (ou
fantasmas) (Cf. VP, p. 549). “As fantasias”, diz Freud, “possuem realidade psíquica, em
contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no
mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva” (Cf. CIP III, p.
430)108.

107
“Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade de pensamento foi
separada; ela foi liberada do teste de realidade e permaneceu subordinada somente ao princípio de prazer.
Esta atividade é o fantasiar...” (DPFM, p. 171). Cf. acima, p. 115.
108
“Nunca nos devemos permitir ser levados erradamente a aplicar os padrões da realidade a estruturas
psíquicas reprimidas [ou recalcadas] e, talvez, por causa disso, a menosprezar a importância das fantasias
na formação os sintomas, sob o pretexto de elas não serem realidades, ou a remontar um sentimento
85

As fantasias, no entender de Freud, são rebentos ou derivados pulsionais, que


têm propriedades do sistema pré-consciente/consciente, sendo, contudo “inconscientes e
incapazes de se tornarem conscientes. Assim, qualitativamente pertencem ao sistema
Pcs, mas factualmente, ao Ics. É sua origem que decide seu destino” (INC, p. 109). O
fantasiar se enraíza no inconsciente, mas atua continuamente sobre as representações
conscientes.

Neste ponto, é conveniente estabelecer uma distinção fundamental, a saber,


diferençar necessidade e desejo. Laplanche e Pontalis observam que se entendermos por
prazer apenas o apaziguamento de uma necessidade, “a oposição princípio de prazer –
princípio de realidade nada oferece de radical”. Contudo, se Freud colocou a noção de
prazer em primeiro plano, foi num contexto totalmente distinto, onde o prazer
permanece ligado a processos (vivência ou experiência de satisfação) e fenômenos
(sonhos) “cujo caráter desreal é evidente. Nesta perspectiva, os dois princípios surgem
como fundamentalmente antagônicos, pois a realização de um desejo inconsciente
(Wunscherfüllung) corresponde a exigências e funciona segundo leis completamente
diferentes da satisfação (Befriedigung) das necessidades vitais” (VP, p. 469). Embora
Freud nem sempre tenha sido fiel a esta distinção, pode-se dizer que a necessidade,
109
correspondente às pulsões de autoconservação (sede, fome etc.) , tem como fonte
uma tensão somática interna e encontra sua satisfação (objetivo pulsional) mediante
uma ação específica que lhe fornece um objeto adequado (líquido, comida etc.), ao
passo que “o desejo está indissoluvelmente ligado a ‘traços mnésicos’ e encontra a sua
realização (Erfüllung) na reprodução alucinatória das percepções tornadas signos dessa
satisfação” (VP, p. 159). A necessidade, portanto, encontra satisfação no real; o desejo
é realizado no plano fantasmático, o que lhe proporciona prazer (e não satisfação). O
princípio de realidade regula as necessidades vitais (autoconservação) e o princípio de
prazer, as realizações fantasmáticas do desejo (VP, p. 469).

Somente tendo em vista esta distinção entre necessidade (ordem biológica da


autoconservação) e desejo (ordem sexual), pode-se entender porque, segundo Freud, a
educação (adaptação à realidade) é um processo que se dá com relativo êxito no que diz

neurótico de culpa a alguma outra fonte, por não haver provas de que qualquer crime realmente tenha sido
cometido” (DPFM, p. 175).
109
Consultar p. 185 deste trabalho.
86

respeito à autoconservação e com muita dificuldade no domínio das pulsões sexuais110.


Na verdade, as pulsões do ego, que garantem a autoconservação, na medida em que só
podem se satisfazer com objetos reais, submetem-se facilmente ao princípio de
realidade, ao passo que as pulsões sexuais, por manterem estreito vínculo com as
fantasias, só podendo se realizar de modo imaginário, transitam lentamente do regime
do prazer para o da realidade (Cf. DPFM, p. 172; VP, p. 521).

Contudo, não obstante a conveniência de se distinguir desejo e necessidade,


prazer e satisfação, sexualidade e autoconservação, deve-se sublinhar, com não menos
vigor, a articulação entre os dois níveis diferençados. Conforme veremos111, Freud
afirma que a pulsão sexual se apoia na autoconservação, do que resulta que o prazer
sempre se associa a alguma satisfação.

2.3) “A COMBINATÓRIA DOS INVESTIMENTOS”112

O conceito de investimento (ou, segundo a tradução inglesa, catexia)113


corresponde ao fato de a energia psíquica poder ligar-se a uma representação ou grupo
de representações, a uma parte do corpo ou ao ego, a um objeto exterior ou a fantasias
inconscientes. Vejamos como surgiu o emprego deste termo e como ele adquiriu um
significado nuclear na metapsicologia.

As primeiras observações psicanalíticas levaram Freud a distinguir


representação e quantum (ou quota) de afeto, já que este último pode deslocar-se 114 de
uma representação para outra. Do ponto de vista clínico, isto significa que uma
experiência emocionalmente importante na história do indivíduo pode ser evocada com
indiferença e o caráter desagradável da mesma pode ser transferido ou deslocado para
um outro acontecimento irrelevante. “O tratamento tal como é descrito nos Estudos
sobre a histeria, restabelecendo a conexão entre as diferentes representações em causa,
restabelece a relação entre a recordação do acontecimento traumático e o afeto,
favorecendo assim a descarga deste (ab-reação)” (VP, p. 330). O destino do quantum de

110
“O princípio de prazer persiste por longo tempo como método de funcionamento empregado pelos
instintos [ou pulsões] sexuais, que são difíceis de educar, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego,
com frequência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo”
(APP, p. 18s). “A atividade sexual torna uma criança ineducável...” (TETS, p. 74).
111
Consultar p. 195 deste trabalho.
112
Devemos este título a Clancier (1977, p. 70).
113
Besetzung, em alemão.
114
Consultar p. 60 deste trabalho.
87

afeto é, pois, distinto do da representação115. Para explicar este fenômeno, Freud


concebe, hipoteticamente, o afeto como o fator quantitativo, o substrato invariável da
representação.

Nas funções mentais deve ser distinguida alguma coisa – uma quota de afeto
ou soma de excitação – que apresenta todas as características de uma
quantidade (embora não disponhamos de meios para medi-la), capaz de
crescimento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os
traços de memória [ou traços mnésicos] das ideias, tal como uma carga
elétrica se expande na superfície de um corpo (ND, p. 73).

Um outro motivo, vinculado ao anterior, para se pensar os processos psíquicos


como investimentos energéticos prende-se às investigações da histeria. Na histeria de
conversão116, com efeito, os sintomas emergem como manifestações somáticas. Com a
hipótese energética, Freud pôde explicar tal fenômeno como a conversão da energia
libidinal em inervação somática117. A libido, no processo de recalcamento, se desliga da
representação e é “transposta para o corporal” (Cf. VP, p. 330; CCP, p. 26 e 30).

Tais fatos, especialmente este último (conversão), levaram Freud a postular uma
espécie de “princípio de conversão de uma energia nervosa”, o qual princípio foi
sistematizado no Projeto para uma Psicologia Científica. Neste ensaio, como tivemos a
oportunidade de mostrar, o investimento é concebido como o ato de carregar um sistema
neurônico, isto é, um conjunto de células nervosas. Em Interpretação de Sonhos, Freud
se liberta dos esquemas neurológicos e a quantidade (Q) se transforma numa “energia
psíquica” que circula num “aparelho psíquico”. A noção de investimento, como se vê,
pouco a pouco foi ganhando um sentido metafórico, analógico, embora, na verdade,
Freud nunca tenha abandonado completamente a referência neurofisiológica. Sob este
aspecto, o termo Besetzung (investimento) sempre apresentou uma ambiguidade que,
aliás, a metapsicologia nunca dissipou. Há que se reconhecer, portanto, que, não
obstante ser um componente nuclear do aparelho conceptual da psicanálise, a noção de
investimento não recebeu de Freud um tratamento rigoroso. Seja como for, ela é
indispensável, sobretudo do ponto de vista terapêutico, pois explica numerosos dados
clínicos e possibilita ao analista acompanhar a evolução do tratamento (Cf. VP, p. 331-
334). É incontestável, portanto, o seu valor operacional.

115
Consultar p. 123 deste trabalho.
116
Sobre “histeria de conversão”, cf. acima, p. 126.
117
Consultar pp. 69 e 126s deste trabalho.
88

Urge articular a noção de Besetzung com o ponto de vista tópico. Freud admite
que cada sistema investe de um modo peculiar. Vejamos como se combinam tais
investimentos no aparelho como um todo.

Para explicar o “mercado” ou a economia dos investimentos psíquicos, Freud


emprega uma terminologia complementar: desinvestimento, contrainvestimento e
superinvestimento. Procuremos definir cada um destes termos.

Os dois primeiros indicam mecanismos que se combinam para possibilitar o


recalque e as operações defensivas em geral. Conforme vimos, no recalque secundário,
certas representações são expulsas do pré-consciente/consciente, ou seja, o sistema
deixa de investir nelas. A energia assim desinvestida se torna disponível para um
contrainvestimento, isto é, um investimento numa representação – mas, também, num
comportamento, numa situação, num traço de caráter etc - que mantem as
representações recalcadas no inconsciente, impedindo-as de retornarem para o segundo
sistema (pré-consciente/consciente), no qual tendem incessantemente a irromper. O
elemento contrainvestido pode ser derivado da representação recalcada ou se opor
diretamente a ela. No primeiro caso, ocorre uma formação substitutiva (sonhos,
sintomas [como, por exemplo, o do animal fóbico]); no segundo, uma formação reativa
(por exemplo: uma preocupação excessiva com limpeza que reage a tendências anais e,
simultaneamente, as mascara; ou ainda: uma atitude de cuidado excessivo e obsessivo
com determinada pessoa, atitude esta cujo objetivo inconsciente é reagir a uma
tendência agressiva e ocultá-la) (cf. VP, p. 144s).

Conforme já indicamos, o contrainvestimento opera também no recalque


originário, o qual cinde o psiquismo em inconsciente e pré-consciente/consciente, dando
origem, consequentemente, aos investimentos peculiares a cada um destes sistemas118.

Superinvestimento é um termo empregado por Freud para explicar


economicamente um fenômeno importante do ponto de vista terapêutico: a atenção119.
Uma sequência de representações pode receber um investimento suplementar
(superinvestimento) e, assim, se tornar consciente, ou seja, objeto de atenção. É
possível, também, que este acréscimo energético seja retirado desta sequência

118
Consultar p. 121 deste trabalho.
119
Conferir com o que dissemos acima a respeito do método de livre associação (p. 67) e da resistência
(p. 97).
89

(desinvestimento) e aplicado em outra (superinvestimento). As representações


superinvestidas e depois desinvestidas passam do consciente para o pré-consciente.
“Parece que a sequência de pensamentos que foi assim iniciada e abandonada”, afirma
Freud, “pode continuar a desenvolver-se sem que a atenção seja novamente voltada
para ela (...). Chamemos uma sequência de pensamentos como esta de pré-consciente”
(IS, p. 631s; grifo nosso).

3) O PONTO DE VISTA DINÂMICO

Conforme vimos anteriormente, os desejos recalcados não desparecem nem se


mantêm imóveis no inconsciente, mas tendem a forçar a censura e reaparecer no
consciente de onde foram expulsos. Quer dizer, “o reprimido [ou recalcado] exerce uma
pressão contínua em direção ao consciente, de forma que essa pressão pode ser
equilibrada por uma contrapressão incessante” (R, p. 65). O inconsciente psicanalítico
não é, pois, estático, mas dinâmico. Opondo-se a Pierre Janet, Freud afirma:

Não atribuímos a divisão psíquica à incapacidade inata para a síntese da parte


do aparelho psíquico, mas explicamo-lo dinamicamente pelo conflito de
forças mentais contrárias, reconhecendo nele o resultado de uma luta ativa da
parte dos dois agrupamentos entre si (CLP, p. 36).

Foi, portanto, considerando esta dinâmica mental que Freud chegou ao termo e
ao conceito do inconsciente (Cf. EI, p. 24). Os fenômenos psíquicos resultam, pois, do
conflito e também da composição de forças que, em última instância, são de origem
pulsional (Cf. VP, p. 165).

Como o conceito de pulsão já foi estudado120, vamos nos limitar, nesta seção, a
investigar as duas classificações pulsionais elaboradas por Freud (pulsões sexuais e
pulsões do ego, na primeira; pulsões de vida e de morte, na segunda), dando especial
relevo à teoria da libido, tendo em vista que a sexualidade sempre foi considerada como
um dos polos do conflito psíquico. Intercalaremos, porém, entre as duas classificações a
teoria do narcisismo, que está na raiz da virada conceptual de Freud.

3.1) A PRIMEIRA CLASSIFICAÇÃO DAS PULSÕES

Freud sempre concebeu dualisticamente as pulsões (Cf. APP, p. 71). Este


dualismo se explica pelo próprio dinamismo mental, quer dizer, é uma expressão do

120
Cf. acima, p. 104-109.
90

conflito psíquico. E mais: ele se concilia com as concepções populares, poéticas e


míticas. Assim, em harmonia com a primeira classificação, o “poeta-filósofo” Schiller,
citado por Freud, já dizia: “São a fome e o amor que movem o mundo” (Cf. MEC, p.
77). No que diz respeito a segunda classificação, Freud, por sua vez, observa: “a libido
de nossas pulsões sexuais coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual
mantém unidas todas as coisas” (APP, p. 68).

O mestre vienense chega a afirmar que a teoria das pulsões é uma espécie de
mitologia da psicanálise (Cf. NCIP, p. 119). Ele recorre ao mito quer para confirmar as
intuições dos poetas e filósofos (Empédocles, Platão, Shopenhauer, Schiller), quer para
assinalar os limites de suas interrogações. Em carta a Einstein, chega a afirmar que toda
ciência tem um caráter mítico: “Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias
uma espécie de mitologia (...). Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma
espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da
sua física?” (PG, p. 254).

Tais palavras não podem deixar de provocar certa estranheza na boca de um


homem que nunca escondeu sua admiração pelo conhecimento científico, a ponto de
declarar em O Futuro de uma Ilusão (1927) – uma espécie de credo positivista e
cientificista – que “nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que
121
a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar” (FI, p. 71) . O Freud
genuíno, porém, está alhures. Fiquemos com o amigo dos poetas e leitor de Platão, o
estudioso da mitologia e frequentador incansável da literatura e das artes, o mesmo
Freud que, envolvido pelo onírico, afirmou ser o desejo e não a razão o móvel do
psiquismo, Eros e não Logos o fundamento da existência. Deixemos o Freud positivista,
para reencontrar o Freud psicanalista.

O que teria levado nosso autor à primeira classificação das pulsões? Por que
122
separar a sexualidade da autoconservação, a libido dos interesses do ego? Freud
apresenta vários motivos. Consideremos os dois principais: 1º) Do ponto de vista
biológico, pode-se afirmar que a autoconservação visa apenas a fins individuais, ao
passo que a sexualidade tem finalidade dupla: o prazer individual e a manutenção da

121
Cf. abaixo, p. 293-307, nossa discussão de O Futuro de uma Ilusão, obra em que Freud expõe sua
teoria da religião.
122
“... Pulsões do ego significa pulsões de conservação de si mesmo, pois o ego como instância é a
agência psíquica a que está entregue a conservação do indivíduo” (VP, p. 514. Cf. APP, p. 69).
91

espécie ou, mais amplamente, da substância viva (Cf. SNI, p. 94s; CIP III, p. 482; APP,
p. 56); 2º) Do ponto de vista clínico, pode-se afirmar que o conflito patogênico é um
conflito entre as pulsões do ego e as pulsões sexuais (Cf. CIP III, p. 409). Freud admite
que a neurose é formada a partir de três fatores: a frustração da libido; a fixação da
mesma em algum estágio de seu desenvolvimento; finalmente o conflito entre as
exigências libidinais e os interesses do ego. O ego pode tanto aceitar a fixação da libido
e tornar-se pervertido, como reagir a isto. Nesse último caso, “o ego experimenta uma
repressão [ou recalque] ali onde a libido sofreu uma fixação” (CIP III, p. 408).

Temos, assim, por um lado, as exigências da sexualidade e, por outro, as


exigências da vida ou da autoconservação (nutrição, defecação, respiração etc.). Esta
polaridade corresponde à distinção entre princípio de prazer e princípio de realidade.
Conforme vimos, enquanto as pulsões de autoconservação se adaptam facilmente à
realidade, as pulsões sexuais “são difíceis de educar” (APP, p. 19). À diferença da
autoconservação, a sexualidade não tem fontes, objetos e objetivos pré-estabelecidos,
mas suas pulsões “fazem-se notar por sua plasticidade, sua capacidade de se
substituírem (...) e por sua possibilidade de se submeterem a adiamentos...” (NCIP, p.
122). Na verdade, as pulsões do ego só podem se satisfazer no nível da realidade, daí a
sua rigidez. Os desejos sexuais, porém, podem ser realizados no nível imaginário, em
virtude do que permanecem sob o domínio exclusivo do princípio do prazer. Justamente
porque dispensam a realidade, tais desejos podem ser recalcados, sublimados ou
inibidos em seus objetivos, mecanismos psíquicos inoperantes no que diz respeito à
autoconservação (Cf. R. p. 60). A sublimação e a inibição do objetivo pulsional
pressupõe o recalque. A pulsão sublimada é aquela que se gratifica com objetivos e
objetos socialmente reconhecidos (arte, ciência etc.), ao passo que o segundo
mecanismo mantém os objetos e modifica apenas os objetivos, transformando-os de
prazer diretamente sexual em afetos de ternura. Tanto na sublimação como na inibição
de objetivo as fontes sexuais somáticas permanecem as mesmas (Cf. NCIP, p. 121s). “O
amor com finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente sexual, e ainda
o é no inconsciente do homem” (MEC, p. 61).

Freud, como já sabemos, distingue Instinkt (instinto) de Trieb (pulsão). O


primeiro termo designa “um comportamento hereditariamente fixado e que aparece sob
uma forma quase idêntica em todos os indivíduos de uma espécie” (VP, p. 507). Trieb,
ao contrário, não caracteriza um comportamento pré-estabelecido, específico e
92

hereditário. Freud emprega este termo para expressar a grande “plasticidade” da


sexualidade humana, assim como a agressividade no quadro da segunda classificação
pulsional. Sublinhe-se, portanto: no discurso freudiano, Instinkt é usado para designar a
sexualidade animal e Trieb, a sexualidade humana. A autoconservação, porém, muitas
vezes é concebida como “necessidade” (Bedürfnis) (Cf.VP, p. 521). Por tudo isto,
Laplanche e Pontalis, entre outros, sugerem que se reserve o termo “pulsão” para
expressar a sexualidade e “necessidade”, para a autoconservação 123.

TEORIA DA LIBIDO

O termo libido designa a energia das pulsões sexuais (Cf. NCIP, p. 120). Trata-
se “de uma força quantitativa, variável que poderia servir de medida do processo e das
transformações que ocorrem no campo da excitação sexual” (TETS, p. 113). A libido,
contudo, nunca foi de fato medida, o que levou Freud a admitir que ela “não [é]
presentemente mensurável” (PGAE, p. 38). Na verdade, a energia psíquica nunca
poderá ser medida, porque é uma metáfora ou, para empregarmos um termo que, como
já mostramos , o próprio Freud utiliza para referir-se ao aparelho psíquico, contrapondo-
o ao aparelho neurônico, trata-se de uma “ficção” (Cf. IS, p. 572; 642). Nunca é demais
insistir sobre o caráter analógico do conceito de energia psíquica e dos princípios
homônimos aos da física (inércia e constância) que a regulam, os quais já foram
estudados em nossa apresentação do ponto de vista econômico (cf., p....).

Esta inovação terminológica se justifica por não existir em alemão uma palavra
equivalente à “fome” para designar a atração sexual (Cf. TETS, p. 25). “Em exata
analogia com a ‘fome’”, diz Freud, “empregamos ‘libido’ como nome da força (...) pela
qual a pulsão se manifesta” (CIP III, p. 366)124. A libido, portanto, é a “fome” sexual.

Investigaremos neste tópico as diversas fases de evolução da libido. Freud cria a


hipótese de que a organização sexual genital pressupõe organizações pré-genitais: a fase
oral, a fase sádico–anal e a fase fálica. Antes, porém, de estudarmos o desenvolvimento
da vida sexual humana julgamos oportuno apresentar alguns esclarecimentos sobre este

123
“Podemos perguntar”, indagam os autores do Vocabulário de Psicanálise, “se, numa terminologia
mais rigorosa, não conviria designar aquilo a que Freud chama ‘pulsões de autoconservação’ pelo termo
‘necessidades’, diferenciando-as assim melhor das pulsões sexuais” (VP, p 68).
124
Substituímos instinto por pulsão, nesta citação.
93

ponto crucial, mas também extremamente polêmico, do discurso freudiano: a pulsão


sexual.

Já sabemos que a maneira tradicional de se encarar o psíquico como equivalente


a consciente é superada pela teoria do inconsciente. Do mesmo modo, a identidade entre
sexual e genital é rejeitada e ultrapassada pela teoria da libido. Como nos esclarece
Freud, “não podemos deixar de postular a existência de algo sexual que não é genital –
que não tem nenhuma relação com a reprodução” (CIP III, p. 376).

Se levarmos em conta a opinião popular a respeito do instinto sexual


chegaremos, sem grande esforço, à seguinte conclusão: em geral, imagina-se que ele
esteja ausente na infância, manifestando-se apenas na puberdade, e concebe-se

como sexual tudo aquilo que, com vistas a obter prazer, diz respeito ao corpo
e, em especial, aos órgãos sexuais de uma pessoa do sexo oposto, e que, em
última instância, visa à união dos genitais e à realização do ato sexual. (CIP
III, p. 355; Cf. TETS, p. 25).

Como se vê, a maneira como o senso comum encara a sexualidade humana,


exclui o comportamento infantil e as práticas denominadas perversas da referência
sexual. Toma-se como modelo o ato que se limita a uma só fonte (zona erógena genital),
a um só objeto (pessoa de sexo oposto) e a um só objetivo (união sexual genital)125.
Somente as práticas sexuais que seguem esse modelo, vinculado à reprodução, são
consideradas como normais. Tudo mais é considerado como perversão (desvio quanto
ao objetivo: prazer oral e anal, voyeurismo, exibicionismo, sadomasoquismo etc.) ou
inversão (desvio quanto ao objeto: homossexualismo, pedofilia, bestialidade, fetichismo
etc.). Como a inversão já pressupõe a perversão (a recusa do genital), emprega-se
habitualmente este último termo para designar ambos os desvios. Todas essas práticas,
na medida em que se afastam dos objetos, objetivos e fontes genitais, são, em geral,
encaradas como “aberrações”. Daí não terem merecido dos estudiosos qualquer atenção
teórica antes do trabalho pioneiro de Freud. Sábios e ignorantes, pesquisadores e leigos
se uniam num forte sentimento de aversão e condenação moral que impedia uma
consideração objetiva do comportamento sexual humano. Freud teve a coragem de
quebrar este tabu, de superar este “obstáculo epistemológico” e criar uma “teoria da

125
Cf. o que foi exposto acima sobre os elementos da pulsão (p. 106s).
94

sexualidade” que leva em conta a perversão e as atividades sexuais infantis, ou seja, o


prazer desvinculado da reprodução (Cf. CIP III, p. 369).

Não obstante condenar a moral sexual dominante126, cujos “procedimentos não


se baseiam na honestidade e não demonstram sabedoria” (CIP III, p. 506s), Freud
reconhece que o teórico não é reformador de costumes, mas na medida do possível um
observador crítico127 dos fatos. Por isto mesmo, desaconselha aos analistas proporem
para seus pacientes uma vida sexual completa, o que, além de enganoso, seria
contraproducente do ponto de vista terapêutico. O psicanalista não deve orientar ou
insinuar soluções, mas de preferência deixar que o próprio paciente tome suas decisões
(Cf. CIP III, p. 505s).

Em geral, salvo algumas graves exceções (necrofilia e pedofilia, por exemplo),


as perversões não devem ser consideradas propriamente como doenças psíquicas, pois o
paciente é capaz de agir em tudo como uma pessoa tida como normal, exceto em suas
práticas sexuais (Cf. TETS, p. 40; p. 52s). Freud observa, inclusive, que quando as
circunstâncias se tornam favoráveis, as pessoas “normais” podem adotar “por bastante
tampo” algum tipo de perversão (Cf. TETS, p. 52). Isto se explica porque, segundo a
teoria psicanalítica da sexualidade – e esta é uma de suas teses centrais – a disposição
para a perversão não é rara e singular, mas uma parte da chamada constituição normal
(Cf. TETS, p. 64). Freud rompe aqui a fronteira entre o perverso e o normal, o sadio e o
patológico. A vida sexual humana inclui necessariamente traços de perversão. O beijo,
por exemplo, embora não seja considerado como uma prática desviante, inclui tudo o
que a moral sexual condena como perverso, pois “consiste na junção de duas zonas
erógenas orais em vez de dois genitais”. Por outro lado, as precondições do prazer
genital inclui o ser visto, o contato sexual com o corpo desejado (e não apenas a fusão
dos genitais) e no auge da excitação sexual o amante pode beliscar e morder o corpo
amado (componente sadomasoquista da pulsão sexual). Acrescente-se, ainda, que “o
ponto máximo de excitação (...) nem sempre é provocado pelos genitais, mas por
alguma outra região do corpo do objeto”. Todas estas práticas preliminares, contudo,
não obstante se aproximarem do comportamento perverso, não são tidas como tais nem

126
“Constatamos ser impossível tomar o partido da moralidade sexual convencional ou ter em apreço a
forma pela qual a sociedade procura regular na prática o problema da vida sexual” (CIP III, p. 506s).
127
“Não podemos deixar de observar com olho crítico...” (CIP, p. 506s)
95

condenadas moralmente (Cf. CIP III, p. 377), o que evidencia que as noções de
sexualidade e normalidade do senso comum são enganosas.

Ressalte-se ainda, no que diz respeito ao comportamento homossexual, que


Freud não considera a atração sexual exclusiva de homens por mulheres, ou vice-versa,
como um dado evidente e indiscutível, mas como um problema. A psicanálise revela
que “todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e
(...) na realidade o fizeram em seu inconsciente”. Na verdade, a escolha de objeto
infantil independente do sexo, isto é, pode recair em objetos masculinos ou femininos e
é desta primeira escolha que se desenvolvem tanto os tipos normais como os invertidos
(Cf. TETS, p. 35s, nota 1). Todas estas considerações levam Freud a transpor o
“abismo” que separa a sexualidade normal da perversa, ou seja, a defender a tese de
que,
a sexualidade normal surgiu de algo que existia antes dela, eliminando
determinados aspectos desse material como inservíveis e reunindo o restante
a fim de subordiná-lo a uma nova finalidade, a da reprodução” (CIP III, p.
378).

Freud verificou na clínica que o comportamento perverso é muito mais frequente


do que então se supunha (Cf. CIP III, p. 35a) e descobriu, conforme veremos, que os
sintomas neuróticos se formam a partir do recalque de desejos perversos (Cf. TETS, p.
26; p. 58-60). Tais fatos levaram-no a suspeita de que existe uma sexualidade infantil e
esta é do tipo perverso (Cf. CIP III, p. 369). Em outros termos, a libido antes de se fixar
na genitalidade percorre outras partes do corpo, formando o que pode ser denominado
organizações pré-genitais. A vida sexual dos perversos e neuróticos não seria mais do
que uma fixação e regressão à sexualidade infantil (Cf. TETS, p. 58-60; p. 65; p. 69s; p.
107; p. 129, nota 1; CIP III, p. 399). A investigação do desenvolvimento sexual das
crianças se reveste, portanto, de uma importância absolutamente central para a
psicanálise. Impossível compreender o comportamento sexual adulto sem articulá-lo
com as camadas primitivas que o formaram e possibilitaram.

Ao se debruçar sobre nossos primeiros anos de vida e ao defender,


corajosamente, a existência de uma intensa vida sexual infantil, Freud está ciente de
pisar um terreno até então inexplorado:

Ao que sei, nem um só autor reconheceu claramente a existência regular de


um instinto [ou pulsão] sexual na infância; e nos escritos que se tornaram
numerosos sobre o desenvolvimento das crianças, o capítulo sobre
“Desenvolvimento Sexual” é, via de regra, omitido. (TETS, p.675)
96

A sexualidade infantil pré-genital apresenta três características: 1ª) apoia-se nas


funções somáticas vitais (nutrição, defecação etc.), para alcançar seus objetivos (Cf.
TETS, p. 76s); 2ª) é constituída por pulsões parciais que, independentemente umas das
outras, buscam o prazer de órgão (objetivo pulsional) (Cf. CIP III, p. 370 e 383; TETS,
p. 77 e 93); 3ª) é autoerótica, ou seja, não recorre a objetos externos para obter prazer,
mas apenas ao próprio corpo da criança (Cf. CIP III, p. 368s; TETS, p. 77 e 93).
Consideremos cada uma destas características.

Segundo Freud, o prazer sexual se apoia na satisfação das necessidades vitais.


“De início,” diz-nos ele, “a atividade sexual se liga a funções que atendem à finalidade
[ou objetivo] de autoconservação e não se torna independente delas senão mais tarde”
(TETS, p. 76). A função corpórea fornece à sexualidade a fonte (zona erógena), o objeto
(o seio, por exemplo, na pulsão oral) e um objetivo que é irredutível à satisfação das
necessidades vitais (o prazer de sugar, por exemplo) (Cf. VP, p. 66).

A propósito deste apoio ou anáclise (Anlehnung) da sexualidade nas pulsões de


autoconservação, gostaríamos de ressaltar o seguinte (Cf. VP, p. 67s): 1º) O
reconhecimento de que as pulsões sexuais buscam nas funções vitais suas fontes e
objetos indica que a sexualidade e a autoconservação, logo, o prazer e a satisfação
pertencem a ordens distintas. O prazer, conforme mostramos128, situa-se no nível da
realização dos desejos, enquanto que a satisfação corresponde às necessidades vitais. A
noção de apoio, portanto, fundamenta a primeira classificação das pulsões; 2º) O rótulo
de pansexualismo, não raro atribuído à psicanálise, se revela impróprio e enganoso
quando se considera o apoio da sexualidade na autoconservação. Na verdade, em todas
as manifestações humanas pode-se descobrir uma coloração sexual. Reconhecer, porém,
a presença do sexo em tudo não é o mesmo que afirmar que tudo é sexo ou que a
personalidade tem uma infraestrutura sexual. As pulsões do ego, na primeira
classificação e a agressividade, na segunda, comprovam que em psicanálise nem tudo é
sexo129. Se a sexualidade atravessa a existência humana, podendo ser detectada do
começo ao fim de nossa história, é porque as pulsões sexuais se apoiam nas de
autoconservação, ou seja, precisam das necessidades vitais, das funções corpóreas e
mesmo intelectuais para se manifestar.

128
Consultar p. 177s deste trabalho.
129
Como afirma o próprio Freud, “a psicanálise jamais se esqueceu de que há também forças instintuais
[ou pulsionais] que não são sexuais” (CIP III, p. 410).
97

O conceito de pulsão parcial é correlato ao de organização da libido. No


entender de Freud, a pulsão sexual pode ser decomposta em alguns elementos que se
unem progressivamente para formar um conjunto ou todo organizado. A plena
organização sexual se dá quando todos estes elementos, ou seja, as pulsões parciais se
subordinam aos genitais, quer dizer, à função reprodutiva. Esta função é precedida por
“uma vida sexual que poderia ser descrita como anárquica – a atividade independente
dos diferentes instintos [ou pulsões] parciais buscando o prazer do órgão”. Este
momento prévio anárquico é mitigado “por indícios infrutíferos de organizações pré-
genitais – uma fase sádico-anal precedida por uma fase oral que é, talvez, mais
primitiva” (CIP III, p. 338s).

Consideremos alguns exemplos de pulsões parciais. As crianças pequeninas, por


serem imunes à vergonha, revelam com relativa facilidade o prazer que encontram em
expor seus corpos, especialmente os genitais, e em ver os órgãos sexuais de outras
pessoas. Desconhecem, também, a “barreira da piedade”, revelando sem subterfúgios
suas tendências sádicas ao agredir coleguinhas e animais. Por outro lado, como
Rousseau já tinha observado em suas Confissões, “a excitação dolorosa da pele das
nádegas é uma das raízes erógenas da pulsão passiva de crueldade (masoquismo)”.
Voyeurismo, exibicionismo e sadomasoquismo, portanto, originariamente não se
vinculam à genitalidade: são tendências independentes, pulsões parciais que
reaparecem, contudo, na sexualidade do adulto ou à título de componentes da
organização genital ou como manifestações libidinosas perversas.

Observe-se que, em geral, as pulsões parciais são especificadas pelo objetivo


(pulsão de ver, pulsão de apossar-se, pulsão de domínio etc.) e pela fonte (pulsão oral,
anal etc.). Isto já indica o autoerotismo, vale dizer, a ausência de um objeto externo e de
uma imagem do corpo unificada (ou de um primeiro esboço do ego). Na sexualidade
infantil, o objeto coincide com a fonte ou com o órgão (zona erógena) que produz o
prazer (Cf. VP, p. 79). O autoerotismo é assim anterior ao narcisismo primário130.

Uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o


começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos [ou pulsões]
autoeróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto,
necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação
psíquica – a fim de provocar o narcisismo. (SNI, p. 93. Parêntese nosso.)

130
Sobre narcisismo primário, cf. p. 226 deste trabalho.
98

O autoerotismo, portanto, exclui o objeto externo e não precisa do ego para


manifestar-se. Contudo, admite um objeto parcial, que em última análise é alguma parte
do corpo, real ou fantasmática (seio, fezes, pênis). Para Melanie Klein, o objeto, ainda
que parcial, “é dotado fantasmaticamente de características semelhantes às de uma
pessoa (por exemplo, perseguidor, tranquilizador, benevolente etc.)” (VP, p. 413).

No artigo As Transformações do Instinto [ou pulsões] exemplificadas no


Erotismo Anal (1917), Freud indaga a respeito do destino das pulsões parciais anal-
eróticas, diante do estabelecimento da organização genital definitiva, e conclui pela
permanência destas pulsões na fase posterior. “As fontes orgânicas do erotismo anal”,
diz ele, “não podem, certamente, ser enterradas como resultado da emergência da
organização genital”. Referindo-se a equivalência entre diversos objetos parciais e às
relações mantidas entre eles, afirma:
Parece que nos produtos inconscientes – ideias espontâneas, fantasias,
sintomas – os conceitos de fezes (dinheiro, dádiva), bebê e pênis mal se
distinguem um do outro e são facilmente intercambiáveis (...). Esses
elementos do inconsciente são tratados muitas vezes como se fossem
equivalentes e pudessem substituir um ao outro. (TIEA, p. 160s)

Na verdade, a organização genital e a escolha correspondente de objeto não


eliminam as fantasias vinculadas às pulsões parciais. As pesquisas psicanalíticas
revelam que por detrás da afeição, admiração e respeito ao objeto amoroso “estão
ocultos os velhos anseios sexuais dos instintos [ou pulsões] parciais, que agora se
tornaram inúteis” (TETS, p. 96). Isto nos leva a concluir que: 1º) o objeto parcial deve
ser concebido como um elemento irredutível da pulsão sexual, quer dizer, algo que
jamais é definitivamente ultrapassado; 2º) o objeto total sempre tem implicações
narcísicas: é formado como um precipitado (e não como uma síntese) dos objetos
parciais, numa forma modelada segundo o ego; 3º) a psicanálise não obriga a pensar a
sexualidade numa perspectiva genética ou desenvolvimentista, isto é, segundo a ideia de
que o indivíduo passaria do objeto parcial para o total por uma integração progressiva
de suas pulsões parciais no interior da organização genital (Cf. VP, p. 410s). Como nos
esclarecem Laplanche e Pontalis,

Ainda que a teoria freudiana seja uma das que, na história da psicologia, mais
contribuíram para promover a noção de fase, não parece que ela se
harmonize, na sua inspiração fundamental, com o uso que a psicologia
genética fez desta noção, postulando, a cada nível da evolução, estrutura de
conjunto de caráter integrativo (VP, p. 245).
99

Aqui é preciso um novo esclarecimento. Como observam os autores citados,


Freud segue dois caminhos para definir os modos de organização da sexualidade: ora
atribui às zonas erógenas (fonte pulsional) a função de organizar a libido (fases oral,
anal, fálica, genital), ora atribui a mesma função ao objeto pulsional. Neste último caso,
“os diversos modos de organização escalonam-se então segundo uma série que vai do
autoerotismo ao objeto heterossexual, passando pelo narcisismo e pela escolha
homossexual” (Cf. VP, p. 417). Apresentaremos abaixo as organizações libidinais
seguindo o primeiro critério, que é, de longe, o mais conhecido. Contudo, para evitar
uma compreensão desenvolvimentista da teoria da sexualidade parece-nos conveniente
acrescentar ao que dissemos algumas observações prévias. Em primeiro lugar, cumpre
ressaltar um conceito sobre o qual a psicanálise pós-freudiana tem insistido. O que
realmente importa na teoria da libido não é a evolução das fases, mas a relação de
objeto. Esta expressão, que se encontra esporadicamente em Freud e não remete a seu
aparelho conceptual, é muito utilizada por vários teóricos

para designar o modo de relação do indivíduo com seu mundo, relação que é
o resultado complexo e total de uma determinada organização da
personalidade, de uma apreensão mais ou menos fantasmática dos objetos e
de certos tipos privilegiados de defesa (VP, p. 576).

Assim, para cada fase e cada zona correspondente, existe um objeto típico
(objeto oral, anal etc.). Diferentemente da psicologia evolucionista, importa frisar que
no discurso freudiano os objetos típicos não são abandonados numa fase posterior ou
passam a integrar a fase genital, mas coexistem no adulto e determinam sua escolha
objetal. Assim, por exemplo:

dizer que em determinada fase o funcionamento de determinado aparelho


somático (boca) determina um modo de relação (incorporação), é de fato
reconhecer a esse funcionamento um papel de protótipo: todas as outras
atividades do indivíduo – somáticas ou não – poderão estar então
impregnadas de significações orais (VP, p. 579).

Uma segunda observação a respeito das fases de evolução da libido: é preciso


lembrar o conceito freudiano de posterioridade (Nachträglichkeit), posto em relevo,
oportunamente, por J. Lacan, que emprega, aliás, a expressão après coup (só depois)
para designá-lo. Este termo expressa a concepção psicanalítica da temporalidade e da
causalidade psíquicas131. Segundo Freud, tal como Lacan o relê, há experiências e

131
Esta não é, contudo, a principal noção de tempo empregada por Freud. Temos de reconhecer com
Ricoeur que há no discurso freudiano um “arcaismo do sujeito”, segundo o qual o passado tende a
determinar o futuro. É preciso, então, completar a “arqueologia do sujeito” com uma “teleologia do
100

impressões passadas que podem ser remodeladas posteriormente - portanto, podem ser
resignificadas -, em função de novas experiências ou do acesso a outro grau de
desenvolvimento. O passado, portanto, é sempre passível de receber um novo sentido no
futuro e, ainda, uma eficácia psíquica. O tempo não corre, portanto, do passado para o
futuro, mas do futuro para o passado. É o próprio Freud quem o afirma:

... trabalho na hipótese de que o nosso mecanismo psíquico se tenha


estabelecido por estratificação: os materiais presentes sob a forma de traços
mnésicos sofrem de tempos a tempos, em função de novas condições, uma
reorganização, uma reinscrição (Freud em carta a Fliess, apud VP, p. 442).

Esta concepção impede a redução da história do indivíduo a um determinismo


linear que considere unicamente a ação do passado sobre o presente. Há uma certa
teoria psicanalítica da personalidade, uma certa caracterologia que incorre neste engano.
“Todo o destino do homem estaria decidido desde os primeiros meses, e mesmo desde a
vida intrauterina...” (VP, p. 442).

A noção de posterioridade – ou resignificação - tem ainda o mérito de sublinhar


o que há de retroativo na constituição da sexualidade. Freud nos diz que “a vida sexual
(...) não emerge como algo pronto...” (CIP III, p. 383), ou seja, “não é um dispositivo
inteiramente montado, mas se estabelece ao longo de uma história individual que muda
de aparelhos e de alvos...”. Esta é uma das principais dificuldades da teoria freudiana da
sexualidade. A noção de posterioridade pode nos ajudar a esclarecê-la na medida em
que nos permite afirmar que as experiências infantis pré-genitais - a da sucção, por
exemplo - não são desde o início sexuais, mas só ganham este significado
posteriormente, isto é, depois do aparecimento da atividade genital (Cf. VP, p. 622). É
preciso reconhecer, no entanto, que esta não é a posição explícita de Freud, que insiste,
conforme mostraremos a seguir, no caráter sexual do prazer experimentado pela criança
nas fases pré-genitais.

Antes de apresentarmos as características de cada fase de organização da libido é


oportuno fazer ainda duas observações: a) no entender de Freud, não existe uma
sucessão clara e linear das fases: “uma pode aparecer em adiantamento a outra; podem
sobrepor-se e podem estar presentes lado a lado” (EP, p. 180); b) além do mais, elas
“são normalmente atravessadas suavemente, sem darem mais que uma insinuação de

sujeito”, que se inspira na “fenomenologia do espírito” de Hegel, na qual é sempre a última figura que dá
sentido às anteriores (Cf. I, p.....).
101

sua existência. Somente nos casos patológicos tornam-se elas ativas e reconhecíveis à
observação superficial” (TETS, p. 93).

A FASE ORAL

A primeira organização das pulsões parciais dá-se sob o primado da zona


erógena oral. Freud define zona erógena do seguinte modo: “É uma parte da pele ou da
membrana mucosa em que os estímulos de determinada espécie evocam uma sensação
de prazer possuidora de uma qualidade particular” (TETS, p. 77s). O prazer produzido
pela zona erógena é de natureza sexual (Cf. CIP III, p. 367). Em várias ocasiões ele
afirma que o corpo inteiro pode ser considerado como zona erógena132. Contudo, a
erogenicidade “pode-se ligar a algumas partes do corpo de forma particularmente
marcante. Há zonas erógenas predestinadas, conforme mostra o exemplo do sugar”
(TETS, p. 78).

A boca é o primeiro órgão a fazer exigências libidinosas à mente (Cf. EP, p.


179). O principal interesse do recém-nascido liga-se à ingestão de alimentos. “Se um
bebê pudesse falar, ele indubitavelmente afirmaria que o ato de sugar o seio materno é
de longe o ato mais importante de sua vida”. Fundamentando-se no pediatra S. Lindner
(1879) de Budapeste, Freud ressalta o caráter sexual do prazer experimentado pela
criança no ato de sugar (Cf. CIP III, p. 366s).

A obstinada persistência do bebê em sugar dá prova, em estágio precoce, de


uma necessidade de satisfação que, embora se origine da ingestão da nutrição
e seja por ela instigada, esforce-se, todavia, por obter prazer
independentemente da nutrição e, por essa razão, pode e deve ser
denominada de sexual.” (EP, p. 179)

Esta citação nos traz a importante noção de apoio ou anáclise (Anlehnung), a que
já nos referimos anteriormente. Freud compara a satisfação/prazer obtida pela criança ao
orgasmo do adulto:

Ninguém que já tenha visto um bebê reclinar-se saciado no seio e dormir com
as faces coradas e um sorriso feliz pode fugir à reflexão de que o quadro
persiste como o protótipo da expressão da satisfação sexual na vida posterior
(TETS, p. 76).

132
“Qualquer (...) parte da pele ou membrana mucosa pode assumir as funções de uma zona erógena”
(TETS, p. 78); “Podemos decidir considerar a erogenicidade como uma característica geral de todos os
órgãos e, então, podemos falar de um aumento ou diminuição dela numa parte específica do corpo” (SNI,
p. 100); “As partes mais proeminentes do corpo de que esta libido se origina são conhecidas pelo nome de
zona erógena, embora, de fato, o corpo inteiro seja uma zona erógena deste tipo” (EP, p. 176).
102

Vimos que a fonte da organização libidinal oral é a zona erógena determinada


pela cavidade bucal e que o objeto está em estreita conexão com a nutrição. Resta-nos
explicar o objetivo pulsional. Segundo Freud, este “consiste na incorporação do objeto –
o protótipo de um processo que, sob a forma de identificação, deverá desempenhar mais
tarde um importante papel psicológico” (TETS, p. 94). Ressalte-se que esta
caracterização do objetivo privilegia, na descrição da fase, não a zona erógena, mas um
modo de relação de objeto.

A incorporação envolve três significações: 1º) o prazer oriundo de uma


penetração do objeto em si; 2º) a destruição do objeto; 3º) a assimilação das qualidades
deste objeto, conservando-o dentro de si. É este último aspecto que faz da incorporação
o protótipo da identificação e da introjeção (Cf. VP, p. 246). A incorporação, ressalte-
se, não se limita nem à atividade oral nem à fase oral, embora a oralidade constitua, sem
dúvida, o seu modelo privilegiado. Com efeito, outras zonas erógenas e outras funções
podem ser o suporte da incorporação, ou melhor, de seus fantasmas: o ânus, a pele, os
órgãos genitais femininos, a respiração, a vista, a audição etc (Cf. VP, p. 310).

Segundo K. Abraham (1877-1925), pode-se distinguir dois estágios na fase


133
oral : no primeiro, o que está em questão é a incorporação, ou seja, não há a
ambivalência em relação ao objeto; o segundo se caracteriza pela atividade de morder e
pode ser denominado oral-sádico. Este último revela pela primeira vez os fenômenos da
ambivalência que se tornam mais nítidos na fase seguinte, isto é, na organização sádico-
anal (Cf. NCIP, p. 124).

FASE SÁDICO-ANAL

A segunda organização da libido dá-se sob o primado da zona anal. As


investigações psicanalíticas revelam a existência de um “prazer subsidiário à defecação”
(TETS, p. 81). A retenção, acumulação e expulsão de fezes provocam excitação e prazer
na mucosa anal; correspondem a um verdadeiro “estímulo masturbatório sobre a zona
anal” (TETS, p. 81). Este prazer se apoia na defecação, mas não deve ser confundido

133
“Somos (...) obrigados a admitir que existe uma diferença dentro da fase oral da libido, tal como dentro
da fase sádico-anal. No nível primário daquela fase, a libido da criança está ligada ao ato de sugar (...). O
nível secundário desta fase difere do primeiro pelo fato de a criança trocar sua atividade de sugar pela de
morder´(Abraham, 1970, p. 111).
103

com a satisfação oriunda da realização desta necessidade vital: “a zona anal acha-se
bem adaptada, por sua posição, a atuar como um meio através do qual a sexualidade
pode ligar-se a outra função somática” (TETS, p.80).

Este prazer obtido no ato de defecar encontra logo a barreira da civilização que
exige ordem e limpeza (Cf. MEC, p. 55). Pela primeira vez, portanto, o bebê deve
defrontar com “o mundo externo como força inibidora, hostil, ao seu desejo e prazer”
(CIP III, p. 368).

O contraste masculino/feminino não exerce ainda qualquer função neste


momento. Em seu lugar, observa-se a oposição ativo/passivo que pode ser considerada
como precursora da polaridade sexual e se vincula a ela na organização genital. A
atividade, que prefigura a masculinidade, coincide com o sadismo, o qual se manifesta
inicialmente na pulsão de domínio, pulsão esta que se transforma facilmente em
crueldade. A passividade, que prefigura a feminilidade, coincide com o erotismo anal
(Cf. CIP III, p. 382). No dizer de Freud, “o órgão que mais que qualquer outro
representa o objetivo sexual passivo é a membrana mucosa erógena do ânus” (TETS, p.
94).

Na fase de aleitamento a criança dependia em tudo de sua mãe. Suas funções


motoras ainda não estavam desenvolvidas. A criança aceitava passivamente a disciplina
(o horário das mamadas) imposta pela mãe. Ora, esta situação se modifica quando ela se
torna capaz de coordenar seus movimentos (musculares). “A atividade”, diz Freud, “é
posta em operação pela pulsão de domínio, por intermédio da musculatura somática”
(TETS, p. 94)134. O pequeno, que era totalmente passivo, aprende neste momento a agir
por si mesmo (comer com asseio, urinar e defecar na hora certa e no local adequado
etc.). Torna-se também capaz de reagir às exigências de seus educadores. Pode tanto
manifestar seu descontentamento – que não é pouco, em virtude da frustração de seus
desejos anais – como sua concordância com o meio. Como? Expulsando ou retendo as
fezes inadequadamente. As fezes têm para as crianças tanto um valor positivo como
negativo, quer dizer, são aptas quer para expressar sua agressividade (o ato de defecar é
concebido imaginariamente como dotado de um potencial agressivo e destrutivo) quer
para expressar seu amor para com os que cuidam dela, especialmente a mãe (a criança
concebe as fezes como um presente) (Cf. TETS, p. 81; Brabant, 1977, p. 38s).

134
Substituímos instinto por pulsão na passagem citada.
104

Abrahan propôs a diferenciação, aceita por Freud, de dois períodos no interior da


fase, distinguindo em cada um deles dois tipos de atitudes opostas frente ao objeto. “No
primeiro período, o erotismo anal está ligado à evacuação e a pulsão sádica à destruição
do objeto; no segundo período, o erotismo anal está ligado à retenção e a pulsão sádica
ao controle possessivo” (NCIP, p. 124).

Este desenvolvimento, numa medida aproximadamente igual dos pares


antagônicos de pulsões, pode ser denominado ambivalência135 (Cf. TETS, p. 45).

A relação de objeto característica desta fase está impregnada de significações


vinculadas à função de defecação (expulsão/retenção) e ao valor simbólico das fezes
(fezes = presente = dinheiro). Em outros termos: todas as relações da criança com o
mundo, todas suas atividades mentais e corpóreas se dão segundo o modelo da
defecação, a qual comporta a retenção e a expulsão de fezes. Esta referência imaginária
não se limita a um determinado momento da evolução da libido, mas se fixa no
inconsciente e influi decisivamente na escolha de objeto do futuro adulto (Cf. VP, p.
580 e 234; Brabant, 1977, p. 41). “Esta forma de organização sexual”, diz Freud, “pode
persistir por toda a vida e permanentemente atrair para si grande parcela da atividade
sexual” (TETS, p.95)

FASE FÁLICA136

Neste estágio de desenvolvimento, a organização da libido é centralizada no


falo. Com efeito, meninos e meninas só conhecem nesta fase o órgão genital masculino
e o contraste entre os sexos é concebido como a oposição ter falo ou não ter falo
(castração), o que representa um avanço em relação à oposição passividade/atividade da
fase anterior. “A suposição de que todos os seres humanos têm a mesma forma
(masculina) de órgão genital é a primeira das muitas teorias sexuais notáveis e
momentosas das crianças” (TETS, p. 91). Por um longo período, as crianças ignoram os
órgãos genitais femininos. A menina, por desconhecer sua vagina, supõe depender

135
Ambivalência é a “presença simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, atitudes e de
sentimentos opostos, por excelência, amor e ódio”. Ela aparece nas psicoses, neuroses e nos estados de
luto e melancolia. Conforme mostramos, está presente nas fases oral e anal, nas quais coexistem amor e
destruição do objeto (Cf. VP, p. 49s). Cf., adiante, p. 239-245; 287-293.
136
Como já estudamos os principais episódios e mecanismos desta fase (complexo de Édipo, complexo
de castração, identificação, formação do superego, etc.), vamos nos limitar aqui a ressaltar certos dados
omitidos na exposição anterior (consultar p. 148 deste trabalho).
105

apenas do clitóris para obter prazer e imagina que este órgão crescerá, transformando-se
num pênis (EP, p. 179; TETS, p. 117s; ACDAS, p. 314).

No entender de Freud, a fase fálica deve ser concebida como genital, pois
“apresenta um objeto sexual e certo grau de convergência dos impulsos sexuais sobre
esse objeto”. Contudo, a maturidade sexual só é alcançada na puberdade, quando a
criança tem de fato acesso à diferenciação entre os sexos (Cf. TETS, p. 95, nota 1).

PERÍODO DE LATÊNCIA

Pode-se observar do sexto ao oitavo ano de vida em diante uma parada ou


retrocesso no desenvolvimento sexual, o qual só é retomado na puberdade. Freud chama
este intervalo entre a fase fálica e a fase genital adulta de período de latência (Cf. CIP
III, p. 381; TETS, p. 70-74). Observe-se que não se trata propriamente de uma fase, pois
não ocorre uma nova organização da sexualidade, mas de uma nova etapa da
organização anterior que prepara a seguinte (Cf. VP, p. 342). O que justifica a latência –
e não a ausência, sublinhe-se – da atividade sexual que nos primeiros anos de vida foi
tão intensa? Para Freud, a amnésia relativa à nossa infância deve-se ao recalque, o qual
surge com o declínio do complexo de Édipo137. A tarefa da psicanálise não é outra que
“trazer novamente à memória esse período esquecido da vida” (CIP III, p. 381).

É no período de latência que se erguem as forças psíquicas que se opõem ao


livre desenvolvimento da sexualidade, a saber, “a repugnância, os sentimentos de
vergonha e as exigências estéticas e morais”. Embora Freud reconheça a importância
dos fatores hereditários e constitucionais, ressalta que em geral “se tem da criança
civilizada uma impressão de que a construção dessas barreiras é um produto da
educação...” (TETS, p. 71).

Com o recalque, a exuberante sexualidade infantil se transforma em ternura,


quer dizer, os objetivos sexuais se atenuam e se manifestam pelo que pode ser descrito
como corrente afetiva. Na puberdade, a corrente sensual e a corrente afetiva devem se

137
“Não há que se falar de qualquer abolição real das impressões da infância, mas antes de uma amnésia
semelhante àquela que os neuróticos exibem em relação a eventos ulteriores e cuja essência consiste em
simplesmente afastar estas impressões da consciência, ou seja, em reprimi-las [ou recalcá-las]” (TETS, p.
69). Sobre o declínio do complexo de Édipo consultar p. 157s deste trabalho.
106

encontrar e convergir para um mesmo objeto138. Quando isto não ocorre, ou seja,
quando a ternura se desvincula da sexualidade, o amor se torna impossível (Cf. TETS,
p. 96).

É também no período de latência que se opera a sublimação da sexualidade.


Freud anota:

os historiadores da civilização parecem unânimes em admitir que poderosos


componentes são adquiridos para toda espécie de realização cultural por este
desvio das forças instintivas [ou pulsionais] sexuais dos objetivos sexuais e
sua orientação para objetivos novos – processo que merece o nome de
“sublimação” (TETS, p. 72).

Este mecanismo, contudo, não é suficientemente eficaz em todos os casos. Não


raro, “uma manifestação fragmentária da sexualidade que escapou à sublimação pode
libertar-se”. Na verdade, como os educadores reconhecem intuitivamente, “a atividade
sexual torna uma criança ineducável” (TETS, p. 73s).

Freud parece apontar três destinos possíveis para a sexualidade infantil: o


recalque, por si só, leva à neurose; a liberação sexual, sem uma adequada intensidade do
recalque, conduz à perversão; o recalque aliado à sublimação possibilita as realizações
culturais139. O artista parece constituir um caso à parte, tal a complexidade e riqueza de
sua personalidade: “Uma análise carcterológica de um indivíduo altamente dotado e, em
particular, de um com disposição artística, pode revelar uma mistura, em todas as
proporções, de eficiência, perversão e neurose” (TETS, p. 136).

Concluindo, observe-se que no entender de Freud, o fato de a evolução sexual


dos seres humanos ocorrer em duas fases principais, ou seja, de ela ser interrompida
pelo período de latência, “parece ser uma das condições necessárias da aptidão dos
homens para desenvolver uma civilização superior, mas também para a neurose”
(TETS, p. 131). Não se encontra nada de análogo no nível animal, o “que,
evidentemente, tem uma relação importante com a hominização” (EP, p. 178).

138
“Uma vida sexual normal só é assegurada pela exata convergência da corrente afetiva e da corrente
sensual ambas dirigidas para o objeto sexual e o objetivo sexual” (TETS, p. 103).
139
“Não há no curso do desenvolvimento sexual outras influências que se possam comparar em
importância com as liberações de sexualidade, onda de repressão [ou recalque] e sublimações” (TETS, p.
136).
107

FASE GENITAL

No dizer de Freud, a completa organização da sexualidade “só se conclui


na puberdade, numa quarta fase, a genital” (EP, p. 180). Nesta fase, a pulsão sexual, que
até então agia fragmentariamente, busca um novo objetivo e um novo objeto. As
pulsões parciais se combinam entre si e se submetem ao primado da zona genital e à
função da reprodução. A sexualidade se torna, por assim dizer, “altruística” (Cf. TETS,
p. 103; CIP III, p. 383). Surge uma nova e definitiva escolha de objeto. Freud, conforme
mostramos140, considera o objeto o elemento mais variável da pulsão sexual (Cf. IV, p.
33). Esta permite uma “tal variedade e tamanha vulgarização de seus objetos que a
fome, com sua maior retenção energética deles, só permitiria nos casos mais extremos”
(TETS, p. 39). Esta tese da contingência de objeto impede que se conceba a sexualidade
de modo rígido e predeterminado. Ao contrário, permite-nos pensá-la como resultante
da história peculiar a cada indivíduo. Se o objeto não é predeterminado, pode-se falar de
escolha de objeto. No entender de Freud, esta escolha é bifásica. A primeira dá-se na
fase fálica, e a segunda – que é a definitiva –, na fase genital (Cf. TETS, p. 96).
Vejamos como ocorre esta última.

É na puberdade que emerge em toda a sua pujança a distinção


masculino/feminino, pois na fase fálica, conforme vimos, a criança só conhece o órgão
genital masculino. Freud chega a dizer que “a libido é invariável e necessariamente de
natureza masculina, ocorra ela em homens ou em mulheres e independente de ser objeto
um homem ou uma mulher” (TETS, p. 116). A diferenciação sexual e o acesso à própria
masculinidade ou feminilidade são conquistas lentas que alcançam o seu apogeu na
puberdade. É neste momento que o processo de encontrar um objeto, lentamente
preparado na infância, se completa.

Conforme vimos anteriormente141, a criança tem uma relação prazerosa com as


pessoas que cuidam dela, especialmente com sua mãe. Em geral, os educadores
acariciam, beijam, embalam a criancinha, dedicam-lhe toda sorte de mimo e carinho, ou
seja, tratam-na “como um substitutivo de um objeto sexual completo” (TETS, p. 120).
Tais manifestações de afeto despertam prematuramente a sexualidade infantil, “a tal
ponto que a excitação mental rompe caminho de maneira inequívoca até o aparelho

140
Consultar acima, p. 106.
141
Consultar, adiante, p. 149s.
108

genital” (TETS, p. 122). O caminho mais simples para a criança seria escolher seus
objetos sexuais entre aqueles que cuidam dela. Contudo, o período de latência
possibilita a construção de uma poderosa “barreira contra o incesto”, mediante a qual a
criança introjeta os preceitos morais que excluem de sua escolha objetal as pessoas que
amou em sua infância. Esta barreira é, antes de tudo, uma exigência cultural.

A sociedade precisa defender-se contra o perigo de que os interesses de que


necessita para o estabelecimento de unidades sociais superiores, possam ser
absorvidas pela família e, por esse motivo, no caso de todos os indivíduos,
mas em particular dos moços adolescentes, ela busca por todos os meios
possíveis afrouxar os laços deles com a família – laços que, em sua infância,
são os únicos importantes.” (TETS, p. 122)

Com o aparecimento da puberdade, as tendências sexuais até então latentes


irrompem vigorosamente, fazendo novas exigências ao psiquismo. Contudo, Freud
observa: “a vida sexual dos jovens em amadurecimento é quase inteiramente restrita ao
terreno das fantasias...” (TETS, p.122). Os impulsos incestuosos continuam presentes e
atuantes, embora se manifestem respeitando a diferenciação sexual, ou seja, “o filho se
sente atraído pela mãe e a filha, pelo pai” (TETS, p.123). Contudo, estas fantasias têm
curta duração, pois logo o jovem se vê na iminência de realizar uma das mais penosas
experiências da puberdade: “o desligamento da autoridade dos pais”, processo essencial
para o avanço da civilização. É neste momento que surge uma nova e definitiva escolha
de objeto. Contudo, a escolha anterior ainda continua presente, influenciando de alguma
forma a sexualidade genital (Cf. TETS, p.96).

O homem, especialmente, procura alguém que possa representar o retrato que


faz de sua mãe, do modo que predominou em sua mente desde a primeira
infância; assim, se sua mãe ainda estiver viva, ela bem pode ressentir-se desta
nova versão dela própria e recebê-la com hostilidade. (TETS, p. 125)

Nas pessoas cuja libido, desenvolvendo-se normalmente, alcança a genitalidade,


esta escolha segunda, embora se dê à sombra dos pais, especialmente da mãe, alcança
um objeto externo à família. O mesmo não parece ocorrer com os neuróticos, cuja
escolha permanece inconscientemente incestuosa, do que resulta o recalque e o repúdio
da sexualidade (Cf. TETS, p. 124). Contudo, não obstante o recalque, a vida sexual dos
neuróticos é intensa, se bem que diversa da que caracteriza as pessoas sadias. Com
efeito, as investigações psicanalíticas permitem afirmar que “os sintomas constituem a
atividade sexual do paciente” (TETS, p. 56). Quer dizer, por detrás dos sintomas
neuróticos, possibilitando-os e sustentando-os, encontra-se a energia da pulsão sexual,
isto é, a libido.
109

... Esses sintomas são substitutos – transcrições, por assim dizer – de diversos
processos psíquicos, desejos e vontades que, por obra de um processo
psíquico especial [recalque], foram impedidos de obter descarga em atividade
psíquica admissível para a consciência. (TETS, p. 56)

Muitos se opuseram a esta concepção por desconhecer a extensão do conceito de


sexualidade na psicanálise (Cf. TETS, p. 58). Conforme mostramos, o que Freud
entende por sexual não se limita de modo algum ao genital, como a investigação das
perversões e da sexualidade infantil o comprova. Na verdade, “a sexualidade dos
neuróticos permanece em estado infantil ou é trazida de volta a ele” (TETS, p. 65). Em
outros termos: “O instinto [ou pulsão] sexual dos psiconeuróticos exibe todas as
aberrações que estudamos como variações da vida sexual normal e como manifestações
anormais” (TETS, p. 58).

Os desejos sexuais dos neuróticos são desejos infantis perversos. Contudo,


devido ao recalque, não se manifestam na consciência senão sob a máscara dos
sintomas. As investigações psicanalíticas revelam: 1º) Todos os neuróticos, sem
exceção, têm desejos homossexuais (Cf. TETS, p. 58); 2º) Atribuem significação sexual
aos orifícios oral e anal e também a outras zonas (o olho, por exemplo) que lhes
proporcionaram prazer na infância. Assim, na histeria, estas partes do corpo (oral e
anal) tornam-se sede de novas sensações, modificada pela conversão da libido e pela
inervação, sensações estas em tudo análogas às excitações sexuais normais, em especial,
ao processo de ereção. Nas neuroses obsessivas, contudo, os impulsos que criam novos
objetivos sexuais parecem independentes das zonas erógenas (Cf. TETS, p. 59; p. 61s).
3º) Finalmente, um fator especialmente relevante na formação dos sintomas são as
pulsões parciais (ou componentes)142. Elas surgem como pares de opostos que só são
detectados pela observação sob a forma de novos objetivos pulsionais. Assim, o estudo
dos sintomas revela a presença de componentes tais como: as pulsões de olhar (ativas) e
de exibir (passivas) e as de crueldade, sob a forma masoquista (passivas) e sádica
(ativas). A contribuição feita por este último componente (agressividade) “é essencial
para o entendimento do fato de que os sintomas envolvem sofrimento”. É também esta
vinculação entre libido e crueldade que explica a transformação de amor em ódio, de
ternura em agressividade que é tão característica de grande parte dos casos de neurose
(Cf. TETS, p.59).

142
Sobre a noção de pulsão parcial, cf. acima, p. 197-203.
110

Entende-se, assim, que Freud tenha podido afirmar que “os sintomas se formam
em parte à custa da sexualidade anormal; as neuroses são, por assim dizer, o negativo
das perversões” (TETS, p. 58). A perversão, portanto, se apresenta quer sob a forma
positiva (a perversão propriamente dita), quer sob uma forma negativa (a neurose). No
segundo caso, as tendências perversas são recalcadas.

Concluindo esta apresentação da teoria da libido, gostaríamos de trazer alguns


esclarecimentos a respeito de um ponto básico, a saber, a noção psicanalítica de normal.
Freud jamais procura a norma no consenso social, mas, segundo a tese explícita dos
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (TETS), no estabelecimento da
organização genital. Laplanche e Pontalis, contudo, sugerem que a norma seja
procurada alhures, isto é, na situação edipiana, porquanto “numerosas perversões, como
o fetichismo, a maior parte das formas da homossexualidade e mesmo o incesto
realizado, supõem uma organização sob o primado da zona genital” (VP, p. 435). Digna
de nota é a elucidativa sugestão de S. Leclaire:

...esta primazia genital, na perspectiva psicanalítica, não resulta do fato da


importância da função reprodutora do aparelho genital, mas ao contrário do
privilégio dessa zona na ordem da inscrição ou da busca dessa diferença
sensível que é o prazer (Leclaire, 1977, p. 41).

Do ponto de vista psicanalítico, portanto, a norma seria o prazer e a violação da


norma, a impossibilidade de fruir o prazer. Justamente por isto, como observam os
autores do Vocabulário de Psicanálise, na medida em que, por buscar um prazer que se
apoia na autoconservação, mas é irredutível à satisfação das necessidades vitais, a
sexualidade humana é estruturalmente perversa, ou seja, só pode constituir-se pela
ruptura com o natural (Cf. VP, p. 434; cf., também, J. Laplanche, Vie et mort en
psychanalyse, Paris: Flammarion, 1970, p. 19-41).

3.2) A TEORIA DO NARCISISMO

Freud verificou que inúmeros fenômenos clínicos poderiam ser explicados pelo
que Paul Näcke, em 1899, denominou narcisismo. Os homossexuais, por exemplo,
escolhem “inequivocamente” a si mesmos como objeto de amor, ou seja, “procuram um
rapaz que se pareça com eles próprios e a quem eles possam amar como eram amados
por sua mãe” (TETS, p. 35, nota 1; Cf. SNI, pp 89;104; PGAE, p. 59). Mas o narcisismo
não se encontra apenas no comportamento desviante. Pode ser verificado nas neuroses
atuais (hipocondria, por exemplo) e transferenciais (histeria e obsessão) e ainda, de
111

forma acentuada, a ponto de conduzir a uma ruptura dos vínculos com a realidade, nas
psicoses, quer dizer, na paranoia e na esquizofrenia. Esta última afecção se caracteriza
por dois fatores interdependentes: megalomania e desinteresse pelo mundo (coisas e
pessoas). No esquizofrênico, a libido deixa de investir em objetos externos e regressa
vigorosamente sobre o próprio ego, dando origem a um estado de megalomania ou
exaltação excessiva do próprio ego, “atitude”, diz Freud, “que pode ser denominada de
narcisismo” (SNI, p. 90s).

Todos estes fenômenos clínicos evidenciam a presença, ao lado da libido objetal,


de uma libido do ego ou libido narcísica. Freud defende, assim, a existência de “uma
catexia [ou investimento] libidinal original do ego, parte da qual é posteriormente
transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com as
catexias [ou investimentos] objetais...” (SNI, p. 92).

Pode-se falar de “uma espécie de princípio de conservação da energia libidinal”


(VP, p. 366) ou, por outra, de uma balança energética entre a libido do ego e a libido de
objeto: “Quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia”. Assim, por exemplo,
uma pessoa apaixonada retira de seu ego toda a energia para investi-la completamente
no objeto amado (Cf. SNI, p. 92). Uma pessoa doente, por sua vez, tende a
desinteressar-se pelo mundo externo e até pelo ser amado, para se concentrar sobre seus
males físicos. “O homem enfermo retira suas catexias [ou investimentos] libidinais para
seu próprio ego, e as põe para fora novamente quando se recupera” (SNI, p. 98).

Na verdade, o narcisismo não caracteriza apenas o comportamento perverso,


neurótico ou psicótico nem deve ser reduzido a um episódio na evolução da libido, mas
é um processo estruturante da vida psíquica. No dizer de Laplanche e Pontalis, é “uma
êxtase da libido que nenhum investimento objetal permite ultrapassar completamente”
(VP, p. 366). O ego, já o vimos, pode ser considerado como um grande reservatório da
libido, de onde ela é enviada para os objetos, embora tenda sempre a retornar ao ponto
de partida (Cf. DVP, p. 310).

Freud se refere a duas modalidades de escolha objetal: uma escolha anaclítica e


outra, narcísica. A primeira se explica pelo apoio (ou anáclise) da sexualidade na
autoconservação. Quer dizer, ama-se anacliticamente quando se escolhe um objeto,
112

segundo o modelo das pessoas que cuidam, protegem e alimentam as crianças. O amor
anaclítico é, essencialmente, paternal ou maternal.

Na escolha narcísica, porém, o indivíduo procura-se a si mesmo, ou seja, o amor


do outro é um amor disfarçado de si mesmo. É o que ocorre na homossexualidade, mas
também em muitos outros casos. Na verdade, “ambos os tipos de escolha objetal estão
abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro”
(SNI, p. 104).

Parece que a escolha anaclítica representa a maneira masculina de amar e a


narcísica, a feminina (cf. SNI, p. 106). As mulheres, especialmente quando belas,
“desenvolvem certo autocontentamento”, que exerce um grande fascínio sobre os
homens. “Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas...”. Quer
dizer, enquanto os homens amam, as mulheres desejam prioritariamente ser amadas.
Esta atitude narcísica parece atrair intensamente aqueles que renunciaram a uma parte
de seu próprio narcisismo na busca do amor objetal. Pode-se localizar neste aspecto da
psicologia feminina o que se convencionou denominar “mistério da feminilidade”.

Freud, porém, nos adverte:

O grande encanto das mulheres narcisistas tem, contudo, o seu reverso;


grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas queixas quanto à
natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os
tipos de escolha de objeto (SNI, p. 106).

A saída para tais mulheres é a maternidade. Ao se tornarem mães, conseguem


conciliar seu narcisismo com uma escolha objetal, pois a criança que geram é ao mesmo
tempo um objeto estranho e parte de si mesmas.

Que se ressalte, porém: o modo feminino de amar não é exclusivo das mulheres,
nem o masculino, dos homens: “Estou pronto a admitir”, diz Freud, “que existe um
número bem grande de mulheres que amam de acordo com os moldes do tipo
masculino...” (SNI, p. 106). As escolhas anaclítica e narcísica independem, portanto, do
sexo biológico. Afinal, já o vimos, a teoria da bissexualidade é essencial à psicanálise.

Explicitando melhor seu pensamento, Freud apresenta o seguinte esquema: ama-


se anacliticamente quando a escolha segue o modelo da mulher que alimenta ou do
homem que protege; ama-se narcisicamente quando a escolha recai sobre o próprio ego.
113

Neste último caso, o outro pode ser amado segundo o modelo do que se é, do que se foi
ou do que se gostaria de ser. A escolha narcísica se manifesta ainda no amor materno: a
mãe ama o filho porque este foi parte de si mesma.

Se a mulher tem melhores motivos do que o homem para amar narcisicamente


seus filhos, há que se reconhecer, porém, que “o amor dos pais, tão comovedor e no
fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual,
transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (SNI, p.
108).

O terceiro tipo de escolha narcísica, quer dizer, a que se manifesta como amor a
um ego ideal, isto é, o ego que se gostaria de ser, merece certos esclarecimentos
suplementares.

Para explicar o narcisismo tal como é detectado na clínica ou na observação do


comportamento humano, Freud elabora a hipótese de um narcisismo primário. Com
esta expressão ele designa o que seria uma primeira forma de narcisismo, “o da criança
que se toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher objetos exteriores” (VP,
p. 91).

Em Totem e Tabu (1913)143, Freud compara o comportamento infantil com o


comportamento dos povos primitivos. Estes últimos acreditam na onipotência de seus
pensamentos: confundem a natureza com a representação da natureza, ou melhor, o real
com o imaginário e admitem, consequentemente, que ao atuarem sobre este podem
modificar aquele (Cf. TT, p. 95-104). Esta mesma “supervalorização dos processos
mentais” ocorreria na infância, constituindo o narcisismo primário (Cf. SNI, p. 91).

Este estado hipotético de investimento da libido infantil explicaria o narcisismo


posterior que seria sempre uma regressão aos primeiros anos de vida, ou seja, um
narcisismo secundário em oposição ao narcisismo primário da infância144.

143
Cf. adiante (p. 308-325) nossa exposição e discussão desta obra.
144
Freud compreende de dois modos o narcisismo primário. Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução
distingue-o do autoerotismo e concebe-o como contemporâneo da formação de um primeiro esboço do
ego (Cf. SNI, p. 93). No quadro da segunda tópica, suprime a diferença entre autoerotismo e narcisismo,
considerando este último como um estado de fusão da criança com o mundo, anterior à formação do ego.
Registre-se que Lacan fica com a primeira concepção e situa o narcisismo primário na fase do espelho
(Cf. VP, 367-370). Sobre a fase do espelho, cf. adiante, p....
114

No comportamento adulto normal, o antigo narcisismo e a megalomania infantis


são afastados. Diante disto, Freud se pergunta: “Que aconteceu à libido do ego?
Devemos supor que toda ela se converteu em catexias [ou investimentos] objetais?”
(SNI, p. 110). Já sabemos que a resposta é negativa, ou seja, que o narcisismo continua
presente de forma atenuada na existência adulta. Urge, porém, explicar como ocorre a
passagem da primeira forma de narcisismo para a posterior. Freud recorre à teoria do
recalque para responder. “A repressão [ou recalque] (...) provem do amor-próprio do
ego” (SNI, p. 110). Quer dizer, o recalque emerge da comparação do ego real com o
ideal que o ego fixou para si mesmo. A formação do ideal do ego é o fator
condicionante do recalque (SNI, p. 111).

Como se forma o ideal do ego? Sua origem é essencialmente narcísica. O que o


homem projeta diante de si como ideal é o substituto do narcisismo infantil (primário),
estado em que há um verdadeiro delírio de grandeza ou megalomania. Este estado é
abandonado graças á crítica dos pais (SNI, p. 111). A censura que emana destes é
interiorizada, dando origem a uma instância que observa e critica o ego, a saber, o
superego. Convém distinguir o ideal de ego do superego, embora em O Ego e o Id
Freud empregue os dois termos como sinônimos (Cf. EI, p. 40). Com efeito, são
processos mentais distintos o ideal que mede o ego e a observação que julga e censura o
ego segundo os critérios deste ideal (Cf. SNI, p. 11s; VP, p. 289). Quer dizer, a função
ideal não deve ser confundida com a função de interdição. Também não se deve
confundir o processo de idealização com a sublimação. Nesta última, a ênfase da
alteração pulsional recai sobre o objetivo da pulsão, ao passo que “a idealização é um
processo que diz respeito ao objeto” (Cf. SNI, p. 111). É a idealização dos pais pela
criança que forma as instâncias ideais. Mas este processo existe também no adulto. Por
exemplo, o indivíduo apaixonado engrandece e exalta ilimitadamente o ser amado. “O
amor é cego”, diz a sabedoria popular. Esta última distinção é importante, porque nos
neuróticos a idealização não vem acompanhada de sublimação, embora pressuponha o
recalque (Cf. SNI, p. 112).

Agora estamos em condições de entender a modalidade de amor narcísico que


consiste em amar segundo o que se gostaria de ser. Neste caso, ama-se “o que possui a
excelência que falta ao ego para torná-lo ideal...”. Esta forma de amor é muito comum
nos neuróticos, que em virtude dos excessivos dispêndios em investimentos objetais
exigidos pelos sintomas, são incapazes de realizar seu ideal de ego.
115

Ele [o neurótico] procura retornar, de seu próprio dispêndio da libido em


objetos, ao narcisismo, escolhendo um ideal sexual segundo o tipo narcisista
que possui as excelências que ele não pode atingir. Isso é a cura pelo amor,
que ele geralmente prefere à cura pela análise. (SNI, p. 119)

Cura falaz, no entanto, pois traz consigo uma dependência mutiladora em


relação ao ser amado.

Observe-se, finalmente, que o narcisismo exerce uma importante função do


ponto de vista social. O indivíduo pode abandonar seu próprio ideal e substitui-lo pelo
do grupo (família, classe, nação), tal como se encontra corporificado em seu líder (Cf.
PGAE, p. 85s; SNI, p. 119). A formação de um ideal narcísico de grupo, obviamente,
cria condições favoráveis para a vida social, aliviando inclusive os sacrifícios pulsionais
exigidos pela civilização. Contudo, na medida em que este prazer narcísico é
compartilhado também pelas classes oprimidas, pode ocultar e, assim, reforçar a
dominação. “As classes oprimidas”, observa Freud, “podem estar emocionalmente
ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os
seus ideias” (FI, p. 24s).

Com a introdução do narcisismo na teoria psicanalítica, o próprio ego, conforme


vimos, se torna objeto de libido. Com isto, no entender de Freud, a distinção entre
pulsões sexuais e pulsões do ego se mostra inapropriada (Cf. APP, p. 70). Agora, as
próprias pulsões de autoconservação são de natureza libidinal (DCP, p. 130). Freud
chega a se referir às “pulsões sexuais autoconservadoras” (APP, p. 73). Quer dizer, o
indivíduo precisa amar-se a si próprio para manter-se na existência. A ausência de
autoestima conduz à morte. Abre-se o caminho, portanto, para uma nova classificação
das pulsões.

3. 3) A SEGUNDA CLASSIFICAÇÃO DAS PULSÕES

É no ensaio Para além do Princípio do Prazer (1920) que Freud introduz o novo
dualismo pulsional, a saber, pulsões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tânatos)145.
Nesta obra, ele nos comunica a descoberta de alguns fenômenos clínicos que revelam
uma tendência do psiquismo a repetir não apenas experiências de prazer, mas também
de desprazer. Vejamos alguns exemplos desta estranha “compulsão à repetição”, que

145
Freud nunca utilizou em seus escritos o termo grego Tânatos para designar as pulsões de morte.
Contudo, segundo seu biógrafo Ernest Jones, empregou-o em conversação (CF. VP, p. 651).
116

questiona o próprio princípio de prazer, princípio este cuja relevância no quadro teórico
da psicanálise já tivemos a oportunidade de estudar 146.

Um primeiro fato clínico que parece contrariar a tendência ao prazer são os


sonhos de neuróticos traumáticos. A neurose traumática é uma doença que se instala a
partir de um acontecimento acidental, inesperado, que provoca considerável dano físico
ao paciente. Os sintomas desta neurose assemelham-se aos da histeria, hipocondria e
melancolia: perturbações motoras, indisposição subjetiva, debilitamento das
capacidades mentais. O fator surpresa, que gera o susto, muito influencia na formação
deste quadro.

Há que se diferençar medo, ansiedade e susto. Na primeira destas disposições


afetivas, o indivíduo se sente ameaçado e conhece o objeto constrangedor; na segunda,
experimenta a situação ameaçadora, mas ignora o objeto que a provoca: lida mais com
suas fantasias do que com a realidade; na terceira, tanto o perigo como seu objeto são
desconhecidos, ou seja, o indivíduo é colhido de surpresa. No medo e na ansiedade
espera-se o perigo e, por esta razão, é possível prepara-se para ele; no susto, porém, o
sujeito encontra-se psiquicamente desarmado, do que resulta o trauma e os sintomas
consequentes. A neurose traumática é, assim, uma “neurose do susto”. “Ora, os sonhos
que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente trazer
o paciente de volta à situação de seu acidente numa situação da qual acorda em outro
susto” (APP, p. 22). Uma reflexão cuidadosa revela que este fato aparentemente sem
importância pode abalar o aparelho conceptual da psicanálise, pois coloca em xeque
tanto o princípio do prazer como a teoria dos sonhos. De acordo com esta última, seria
de se esperar que o paciente sonhasse, não com a situação dolorosa que o vitimou, mas
com cenas de seu passado sadio ou com a cura que tanto almeja, isto é, com o que
corresponda a seus desejos e não com o que os contraria. Em vista disto, Freud conclui:
“... a função de sonhar (...) nessa condição está perturbada e afastada de seus
propósitos” (Cf. APP, p. 23).

Um outro caso que questiona o princípio do prazer é a brincadeira inventada por


um menininho de um ano e meio. Contudo, deixaremos para apresentar este conhecido
exemplo mais adiante, quando, conduzidos por Lacan, investigarmos a introdução da

146
Cf. acima, p. 169-178.
117

criança na ordem simbólica147. Por ora queremos apenas sublinhar que a brincadeira
repete uma experiência profundamente dolorosa para o pequeno: a ausência da mãe. Por
que em suas atividades lúdicas o menino insiste em rememorar uma situação dolorosa?
Sua mente não estaria sendo conduzida por um “além do princípio do prazer”?

Consideremos agora o terceiro exemplo apresentado por Freud. Já vimos que a


prática terapêutica revela a existência de uma poderosa força psíquica que opera no
sentido de impedir o acesso do paciente a seus desejos inconscientes. Trata-se da
resistência148. Por ação desta força, os pacientes não apenas deixam de falar de suas
experiências (por esquecimento, pudor, desconfiança, etc.) como também tendem a
repetir o material recalcado “como se fosse experiência contemporânea”, em lugar de
apenas recordar este material.

Essas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm
como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo
e de seus derivativos, e são invariavelmente atuados (acted out) na esfera da
transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as coisas
atingem esta etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi substituída por
outra nova, pela neurose de transferência. (APP, p. 30)

Não há dúvida de que a resistência é regulada pelo princípio do prazer, pois evita
a ansiedade intolerável que adviria da liberação brusca do recalcado. A função do
analista é levar o paciente a suportar, gradualmente, e não de uma só vez, o desprazer
necessário à eliminação do sintoma. Nesse sentido, o terapeuta é a encarnação do
princípio de realidade e sua técnica em nada contraria o princípio do prazer. Contudo –
e isto é um fato inusitado – a compulsão à repetição que se dá na esfera da transferência
revive não apenas experiências de prazer, mas também “experiências que não incluem
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram
satisfação...”. Neste último caso devem ser mencionadas, principalmente, as frustrações
libidinosas vivenciadas no período de formação do complexo de Édipo. “Os pacientes
repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas,
revivendo-as com a maior engenhosidade” (Cf. APP, p. 32).

É de se notar que esta tendência a repetir experiências desagradáveis ultrapassa a


situação analítica, podendo ser verificada no “destino” de certas pessoas. Freud cita
alguns exemplos: o benfeitor que é sempre abandonado por seus protegidos; o homem

147
Consultar p. 269 deste trabalho.
148
Cf., acima, p. 97-104.
118

cujas amizades resultam sempre em traição por parte do amigo; o amante cujos casos
amorosos frustrados atravessam sempre as mesmas fases e chegam às mesmas
conclusões. Em todas estas situações dá-se uma “perpétua recorrência da mesma coisa”
e o que se repete não é o prazer, mas o desprazer (Cf. APP, p. 33s).

Considerando todos os fatos citados – sonhos de neuróticos traumáticos,


brincadeiras infantis, a neurose de transferência e a compulsão de destino – pode-se
concluir: “... existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o
princípio do prazer...” (APP, p. 34).

Ora, esta compulsão à repetição tem um caráter pulsional. Não se pode fugir a
suspeita, pondera Freud, de que “deparamos com a trilha universal dos instintos e
talvez da vida orgânica em geral...”. A tendência à repetição, ou seja, “a restaurar um
estado anterior de coisas”, longe de ser fortuita, estrutura a vida instintiva (Cf. APP, p.
51s).

Esta concepção é sem dúvida surpreendente, pois estamos acostumados a


considerar a vida instintiva como um fator de desenvolvimento e progresso e não como
uma tendência regressiva. Contudo, as próprias ciências naturais fornecem-nos vários
exemplos que comprovam a teoria: “peixes que migram para a desova, pássaros que
voam em migração, e possivelmente tudo o que qualificamos como manifestação de
instinto149 em animais...” (NCIP, p. 132s). A embriologia, por sua vez, nos mostra que
no processo de evolução de um animal, o germe recapitula as estruturas de todas as
formas das quais se originou (CF. APP, p. 52).

Se os instintos são conservadores, como explicar o desenvolvimento dos seres


vivos? A evolução se deve a influências externas, em última instância, à “história da
Terra em que vivemos e de sua relação com o Sol” (APP, p. 53).

Na verdade, paradoxalmente, “o objetivo de toda vida é a morte”. Para se


compreender esta asserção deve-se ter presente que “as coisas inanimadas existiram
antes das vivas” (APP, p. 54). A passagem do inanimado ao animado, do inorgânico ao
orgânico não se faz sem a introdução de fortes tensões na substância viva emergente.

149
Freud usa Instinkt no original e não Trieb (Cf. NCIP, p. 133, nota 1). Levando em consideração esta
nomenclatura, estamos empregando o primeiro termo (instinto) para designar as tendências vitais no
sentido mais amplo, reservando pulsão para a esfera humana.
119

Estas tensões tendem a se neutralizar, surgindo disto o primeiro instinto: “o instinto a


retornar ao estado inanimado” (APP, p. 54), ou seja, o instinto da morte. Nos primórdios
a substância viva era facilmente criada e facilmente destruída, como ocorre ainda hoje
com certos microrganismos. A vida prolongava-se por um brevíssimo período de tempo.
Forças externas, porém, obrigaram a substância viva a extraviar-se da tendência
regressiva que lhe é imanente “e a efetuar detours mais complicados antes de atingir seu
objetivo de morte” (APP, p. 54)

Observe-se que a morte a que tendem os seres vivos não é motivada por fatores
externos, mas resulta de fatores internos. A morte por pressão externa é evitada pelos
instintos de autoconservação. Na verdade, o organismo tende a morrer, mas apenas a
seu próprio modo (Cf. APP, p. 55).

Seriam os instintos sexuais também conservadores ou representam uma exceção


neste quadro regressivo? Antes de mais nada, tratemos de entender o que vem a ser, do
ponto de vista biológico, o instinto sexual. Dentre os elementos que compõem o
complicado corpo de um organismo superior, as células germinais se destacam por
terem uma existência que garante a continuidade da vida. Em pouco tempo separam-se
do organismo como um todo e, sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se,
sendo que parte de sua substância chega a um término e outra parte “reverte novamente,
como germe residual, ao início do processo de desenvolvimento” (APP, p. 56). As
células germinais, portanto, lutam contra a morte da substância viva e conseguem para
ela “uma imortalidade potencial”. Ressalte-se que elas só realizam esta função de
preservar e prolongar a vida, pela fusão com outras células similares.

Os instintos que preservam tais organismos elementares da destruição e


provocam o encontro dos mesmos com outras células germinais são, justamente, os
instintos sexuais. Eles são tão regressivos quanto os instintos de morte, com a diferença,
porém, de que o estado anterior de coisas que tendem a preservar não se identifica com
o estágio inorgânico da matéria, mas com a própria substância viva. Quer dizer, não
impelem o ser vivo para a morte e sim para a manutenção e prolongamento da vida.
“São os verdadeiros instintos da vida” (APP, p. 56).

Com a extensão da libido aos processos celulares, o instinto sexual é


transformado em Eros, esta força que procura reunir e manter vivas as partes da
120

substância viva (Cf. APP, pp 80, nota 1). “A libido de nossos instintos sexuais”, diz
Freud, “coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas
as coisas vivas” (APP, p. 68).

Há que se reconhecer, portanto, uma luta entre os instintos: uns prolongam a


vida, outros apressam a morte (Cf. APP, p. 56). Enquanto os instintos eróticos tendem
cada vez mais a combinar em unidades maiores a substância viva, os instintos de morte
“se opõem a esta tendência e levam o que está vivo de volta a um estado inorgânico”
(NCIP, p. 133s). Eros aumenta as tensões necessárias à vida, enquanto Tânatos tende a
eliminá-las. A morte trabalha em silêncio e, sob o efeito do princípio do prazer, deseja
“repousar Eros, o promotor de desordens” (EI, p. 74)150.

Freud reconhece, por conseguinte, a existência de uma afinidade tanto entre a


morte e o prazer, como entre tensão e vida. Isto não apenas no campo biológico e
cósmico, mas também no plano psicológico e psicanalítico, propriamente dito.

Os instintos de vida têm muito mais contato com nossa percepção interna,
surgindo como rompedores da paz e constantemente produzindo tensões cujo
alívio é sentido como prazer, ao passo que os instintos de morte parecem
efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade,
servir aos instintos de morte (APP, p. 83).

A maior parte do que dissemos até aqui se fundamenta mais na biologia que na
psicologia. Não deixa de ser estranha esta incursão de Freud no domínio da
“especulação” biológica, porquanto, conforme sabemos, a pulsão só pode ser decifrada
nos seus representantes psíquicos. É tempo, portanto, de retornarmos à clínica e
procurarmos nela os representantes das pulsões de morte.

Tanto no nível biológico como no psicológico, a tendência regressiva e


autodestrutiva inerente às pulsões de morte volta-se, sob a influência de Eros, para o
exterior e retarda o retorno ao inanimado. Eros, portanto, neutraliza os efeitos negativos
de Tânatos (Cf. APP, p. 68; EJ, p. 74; NCIP, p. 134). Como diz Freud, “para fins de
descarga, o instinto [ou pulsão] de destruição é habitualmente colocado a serviço de
Eros” (EI, p. 55). O que chamamos de agressividade não é mais do que a expulsão para
fora do psiquismo, por intermédio do aparelho muscular, de uma parte desta
destrutividade originária, peculiar aos seres vivos (Cf. EI, p. 54; NCIP, p. 131; MEC, p.

150
Ver acima citação da p. 172 sobre princípio de Nirvana.
121

79; PG, p. 254)151. A agressividade, portanto, longe de se opor a Eros corresponde a


seus objetivos. Ela pode manifestar-se tanto no domínio da autoconservação como no
domínio da sexualidade. A agressividade integrada à conservação é aquela exigida para
a dominação, posse e eventual destruição dos objetos do mundo, ou seja, para o trabalho
(Cf. MEC, p. 37, nota 1; p. 79); a agressividade integrada à sexualidade é a necessária à
conquista, posse e manutenção do objeto de desejo e ao próprio ato sexual (Cf. APP, p.
72; MEC, p. 57). Na verdade, a agressividade “constitui a base de toda relação de afeto
e amor entre pessoas” (Cf. FI, p.73).

A destrutividade, porém, nunca é plenamente expulsa para o mundo externo.


“Uma determinada quantidade de instinto [ou pulsão] destrutivo pode permanecer no
(...) interior” (NCIP, p. 131). Daí a existência, no domínio da sexualidade, tanto de um
“sadismo original” como de um “masoquismo primário” (Cf. APP, p. 72s).

Freud cria a hipótese de fusão, união ou mistura das pulsões de vida e de morte.
Os dois grupos “raramente – talvez nunca – aparecem isolados um do outro, mas (...)
estão mutuamente mesclados em proporções variadas e mais diferentes, tornando-se
assim irreconhecíveis para nosso julgamento” (MEC, p. 79). Pode-se atribuir à
dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões em suas manifestações reais, o motivo
que levou Freud a só reconhecer tardiamente o papel da agressividade na vida psíquica,
como um fator distinto da sexualidade (Cf. PG, p. 252).

Há situações privilegiadas, contudo, em que as pulsões destrutivas aparecem


quase de forma independente, por estarem muito mal misturadas às pulsões de vida. É o
que ocorre na perversão sadomasoquista, na neurose obsessiva e na melancolia.
Consideremos cada um desses casos.

Em primeiro lugar, há que se distinguir o sadismo e o masoquismo integrados ou


fundidos à sexualidade destas mesmas práticas tais como são detectadas na perversão.

Uma determinada mistura dessas duas tendências está incluída nas relações
sexuais normais, e falamos em perversões quando estas deslocam para o
plano secundário os fins sexuais e os substituem por seus próprios fins.
(NCIP, p. 130)

151
Parece-nos oportuna esta distinção entre agressividade e destrutividade, embora ela nem sempre se
encontre no discurso de Freud.
122

Nas práticas normais, portanto, o sadomasoquismo se encontra a título de


componente da pulsão sexual, enquanto que nas práticas desviantes verifica-se uma
desfusão, que se mantém, contudo, dentro de certos limites, já que a separação total é
impossível (Cf. EI, p. 55). Na medida em que a destrutividade se manifesta e pode ser
facilmente reconhecida no sadismo e no masoquismo, devem-se considerar tais
tendências perversas como representantes psíquicos das pulsões de morte (Cf.EI,p.53 e
MEC,p.80).

Seguindo as indicações de Abrahan, Freud, conforme vimos, admite um estágio


sádico-oral na fase oral propriamente dita, e uma fase sádico-anal, também subdividida
em dois estágios. Em relação ao sadismo oral, que surge com a dentição e a capacidade
de morder (Cf. NCIP, p. 124), Freud observa: “o ato de obtenção de domínio erótico
sobre um objeto coincide com a destruição deste objeto” (APP, p. 77), quer dizer, a
criança tende simultaneamente a incorporar e a aniquilar o objeto pulsional (o seio
materno e seus substitutos). Na fase sádico-anal, esta ambivalência se manifesta com
maior vigor: as tendências destrutivas convivem com as tendências afetuosas, ou seja, a
criança deseja simultaneamente aniquilar e reter, perder e possuir o objeto pulsional, ou
seja, as fezes (Cf. NCIP, p. 124). Observe-se que nesta relação ambivalente, as pulsões
sexuais e destrutivas possuem um mesmo objeto, embora com objetivos diferentes.
Somente na fase genital, a pulsão sádica “assume, para fins de reprodução, a função de
dominar o objeto sexual até o ponto necessário à efetivação do ato sexual” (APP, p. 72).
Quer dizer, é nesta última fase que se dá a plena integração ou fusão das pulsões
destrutivas com as pulsões eróticas. Por isto, Freud considera a destrutividade perversa
do sadomasoquista como uma forma de regressão a estágios pré-genitais da organização
da libido, em que a fusão pulsional ainda não tinha se dado adequadamente.

Os sintomas obsessivos e melancólicos também resultam da desfusão da libido e


da agressividade. “Em geral e de maneira ostensiva, os neuróticos obsessivos se
mostram às voltas com conflitos entre agressividade e docilidade, crueldade e mansidão,
sujeira e limpeza, desordem e ordem”. São, ao mesmo tempo, “arrumados e
desmazelados, limpos e sujos, bondosos e cruéis” (Fenichel, 1981, p. 257). Todas estas
contradições são explicadas como regressão à fase sádico-anal, na qual, conforme
vimos, as relações objetais são predominantemente ambivalentes, em virtude da
desfusão pulsional.
123

A essência de uma regressão (da fase genital para a anal-sádica, por exemplo)
reside numa desfusão de instintos [ou pulsões], tal como, inversamente, o
avanço de uma fase anterior para a genital (...) estaria condicionado a um
acréscimo de componentes eróticos (EI, p. 55; Cf, p. 68).

Tanto o neurótico obsessivo como o melancólico são vítimas de um doloroso


sentimento de culpa. Freud explica a formação do superego152 como resultante da
identificação com os pais, da introjeção da autoridade e da interiorização da
agressividade. O sentimento de culpa não é mais do que o retorno sobre o próprio ego,
via superego, da agressividade oriunda do id, mas dirigida à autoridade paterna e tudo o
que representa a lei. A destrutividade da pulsão de morte, que havia sido expulsa do
interior para o exterior, por ação de Eros, retorna, pelo recalque, ao lugar de origem,
graças à mediação do superego. A agressividade interiorizada, isto é, o sentimento de
culpa pode reaparecer tanto no domínio do patológico como do normal. Em ambos os
casos trata-se de uma exigência da civilização, cuja subsistência requer, como veremos
no próximo capítulo, a repressão da agressividade. Na neurose obsessiva, os motivos do
sentimento de culpa permanecem inconscientes e o paciente tende a negá-los. Na
melancolia, ao contrário,

O ego não arrisca a fazer objeção; admite sua culpa e submete-se ao castigo
(...). Na neurose obsessiva, o que estava em questão eram impulsos
censuráveis que permaneciam fora do ego, enquanto que na melancolia o
objeto a que a ira do superego se aplica foi incluído no ego mediante
identificação. (EI, p. 64s)

Nesta última afecção, o superego é dominado por “uma cultura pura do instinto
[ou pulsão] de morte”, o que não raro conduz o paciente ao suicídio, se a mania153 não
vier a tempo salvar o ego (Cf. EI, p. 67s). O crudelíssimo sentimento de culpa do
melancólico se explica, portanto, por uma desfusão máxima das pulsões: a
agressividade se desvincula quase que completamente de Eros e, em estado de pureza,
se empenha para destruir o ego.
Procuremos recapitular o que foi exposto a respeito da segunda classificação das
pulsões: 1º) Freud descobre na clínica a compulsão à repetição, isto é, a tendência
psíquica a repetir experiências de desprazer; 2º) Saindo do plano rigorosamente
psicanalítico e se introduzindo nos domínios da biologia, ele especula a respeito dos

152
Ver pp. 144-157 deste trabalho
153
“O ciclo maníaco-depressivo é o ciclo que medeia entre os períodos de acréscimo e decréscimo os
sentimentos de culpa, entre sentimentos de ‘aniquilamento’ e de ‘onipotência’, de punição e novo ato”.
Há que se distinguir, porém, o modelo normal de triunfo da mania patológica. Os exageros da mania
esmagam o ego tanto quanto a severa autopunição do superego (Cf. Fenichel, 1981, p. 38s).
124

instintos/pulsões de vida e de morte. Conclui que ambos têm uma tendência regressiva,
isto é, visam a recuperação de um estado anterior de coisas, sendo que Eros quer
conservar as tensões necessárias à vida e Tânatos quer eliminar tais tensões e regressar
ao estado inanimado, ou seja, à morte. Há, portanto, uma luta entre Eros – a tendência à
união e à complexificação – e Tânatos – a tendência à desunião e à autodestruição; 3º)
Abandonando suas especulações, Freud procura indicar alguns representantes das
pulsões de morte na clínica, pois a psicanálise perderia sua especificidade caso
pretendesse se limitar ao estudo biológico das pulsões, em lugar de procurar decifrá-las
através de seus representantes psíquicos. Investiga, então, a perversão sadomasoquista, a
neurose obsessiva e a melancolia, sob o ângulo da destrutividade da pulsão de morte;
4º) Em síntese, ele descobre o seguinte: a) Tanto no nível biológico como no
psicológico a destrutividade inerente aos seres vivos é expulsa por Eros para o exterior;
b) Na vida psicológica, a destrutividade que se volta para fora (a agressividade) pode
integrar-se ou não à sexualidade e à autoconservação; c) A integração ou fusão das
pulsões de vida com as de morte é altamente positiva para o psiquismo e ocorre, em
condições normais, na fase genital. Nas fases sádico-oral e sádico-anal, que se
caracterizam pela ambivalência de tendências e sentimentos, as pulsões encontram-se
ainda em estado de desfusão; d) A perversão sadomasoquista, a neurose obsessiva e a
melancolia, na medida em que apresentam nítida característica de desfusão pulsional,
podem ser consideradas como regressão aos estágios pré-genitais de organização da
libido; e) O sentimento de culpa que se manifesta na obsessão neurótica e na melancolia
pode ser explicado como o retorno da agressividade, que havia sido expulsa por Eros
para o exterior, na direção do próprio ego, graças à mediação do superego; f) Não é,
contudo, apenas o sentimento de culpa patológico que resulta de uma repressão da
agressividade. Na verdade, a repressão e a interiorização da agressividade são uma
exigência da civilização: representam “o mais severo sacrifício” a que se submete o
indivíduo para conviver em sociedade (Cf. NCIP, p. 137); g) Do sentimento de culpa
resulta, consoante o título do famoso ensaio de Freud, que estudaremos adiante (cf.
p.....), um permanente “mal-estar na civilização”.
125

4) INCONSCIENTE E LINGUAGEM

Tendo em vista que P. Ricoeur discute as principais teses do modelo linguístico


do inconsciente (Lacan e discípulos) adotando como principal referência a comunicação
de J. Laplanche e S.Leclaire ao VIº Colóquio de Bonneval (1960), cujo tema foi “O
Inconsciente”154, apresentaremos a seguir uma síntese desta comunicação.

Os articulistas inicialmente realizam uma crítica a G. Politzer, famoso teórico


francês que lançou um grito de “morte à metapsicologia”155, tese que foi, também,
defendida na França por Roland Dalbiez (cf., adiante, p...). A intenção de Politzer era
abandonar os conceitos teóricos da psicanálise para reter apenas a prática clínica, ou
mais precisamente, a interpretação. Desta primeira abordagem do texto, conclui-se: 1º)
Pode-se admitir, com Politzer, que o essencial da descoberta freudiana relativa aos
sonhos e à vida psíquica em geral consiste em ter substituído os mecanismos impessoais
por uma explicação que recorre à subjetividade. Contudo, contra Politzer, deve-se
reconhecer que sob o termo “pensamentos oníricos” (inconsciente) o que Freud
descobre é um discurso que pode se desenrolar “em pessoa”, sem ser, entretanto, na
primeira pessoa, mas sob a forma alienada da segunda ou terceira pessoas. Para
confirmar isso basta lembrar o conceito de Id (es) da segunda tópica. Com esta
constatação, torna-se desnecessário abandonar a metapsicologia e a “maquinaria
freudiana” (aparelho psíquico) para ficar apenas com o sentido, como sugere Politzer.
Na verdade, o que importa é articular a energética psicanalítica com o sentido; 2º)
Contrariando Politzer, que propõe “uma teoria da imanência do sentido”, segundo a
qual, o conteúdo manifesto (letra) traria um sentido implícito, denominado conteúdo
latente, o qual deveria ser apenas explicitado pela interpretação, Laplanche e Leclaire,
na esteira de Freud, afirmam: a) O inconsciente não é coextensivo ao manifesto como
sua significação latente, mas intercalado nas lacunas do texto manifesto; b) “O
inconsciente está em relação ao manifesto não como o sentido com uma letra, mas num
mesmo nível de realidade”. Come se vê, longe de criticarem o realismo do inconsciente,
como faz Politzer, os autores o endossam plenamente: “O inconsciente está

154
Ricoeur resume, comenta e endossa as teses de J.Laplanche e S.Leclaire (Cf. I, p. 320-322/Fr. 390-
394).
155
Cf. G. Politzer, Critique des fondements de la psychologie . I. La psychologie et la psychanalyse,
Rieder, 1928.
126

rigorosamente separado do texto manifesto (...). É um fragmento de discurso que deve


reencontrar seu lugar no discurso” (Cf. IEP, p. 101).

Dando prosseguimento às suas investigações, Laplanche e Leclaire aproximam


fenomenologia e psicanálise, para logo em seguida distinguirem as duas disciplinas. As
descrições fenomenológicas dizem respeito apenas ao pré-consciente (inconsciente
descritivo ou virtual). Tratam dos conteúdos psíquicos que a consciência, em razão de
sua estrutura temporal, não visa atualmente, embora estejam virtualmente no seu campo
de significação. Ora, “o inconsciente, no sentido psicanalítico, é constituído de
conteúdos inacessíveis à consciência”, quer dizer, conteúdos que sofreram a ação do
recalque. Na verdade, o inconsciente psicanalítico não é descritivo, mas sistemático. É
um outro sistema (Ics) que se opõe ao sistema pré-consciente/consciente (Pcs-Cs), o
qual é também, em grande parte, inconsciente no sentido virtual e descritivo, e,
portanto, fenomenológico. A hipótese do inconsciente, por conseguinte, diz respeito “a
uma segunda estrutura, na qual esses fenômenos lacunosos encontram sua unidade,
independentemente do restante do texto” (IEP, p. 104). A abordagem estritamente
psicanalítica é, como se vê, profundamente estranha às descrições fenomenológicas.

Em seguida, visando esclarecer a questão da inscrição dos representantes


pulsionais em dois sistemas distintos e realmente separados, e, também, a natureza dos
investimentos peculiares a cada sistema, Laplanche e Leclaire se referem ao sonho de
um paciente, Philippe. A interpretação deste sonho passa a ser o fio condutor da
comunicação. Em síntese, eis o relato:
A praça deserta de uma pequena cidade. Liliane, que Philippe não conhece,
aparece descalça e lhe diz: “Há muito tempo vi uma areia fina como esta”. Os
dois estão numa floresta e as árvores parecem curiosamente coloridas.
Philippe pensa que há vários animais no local e quando se apressa em dizê-lo,
um licorne cruza o caminho em que se encontram.

O sonho mascara um desejo de beber. Durante a sessão, Philippe lembrou-se que


tinha ingerido um prato muito salgado (“arenques ao Báltico”) no jantar e que acordara
à noite com muita sede, o que o obrigou a tomar água. Algumas lembranças ocorreram
ao paciente na sequência de associações: uma cidadezinha provinciana que conhecera
em criança, onde se situava a “fonte do Licorne”; uma cena que se deu neste local: ele
se vê criança, com as mãos em concha, tentando beber a água que jorra da fonte; um
outro passeio de sua infância, em que procurou imitar um companheiro mais velho, o
qual conseguira fazer um barulho de sirene ao soprar nas mãos unidas em concha
127

(gesto, como se vê, análogo ao anterior); os nomes Lili e Anne, resultantes da


decomposição de Lilianne. Anne, uma sobrinha, com quem passeara numa floresta na
véspera, e Lili, uma pessoa muito próxima de suas relações, que tinha estado com ele,
numa praia atlântica, na mesma ocasião em que conhecera a cidade do Licorne (contava
apenas três anos). A experiência que marcou esta temporada foi uma brincadeira com
Lili. Como Philippe, neste verão abrasador, não cessasse de dizer: “estou com sede”,
Lili passou a repetir, todas as vezes em que se encontravam: “Então, Philippe, está com
sede?”. Essa brincadeira afetuosa tornou-se uma espécie de fórmula íntima de
reconhecimento.

Estas lembranças e os restos diurnos já nos autorizam a fazer uma importante


distinção. De um lado temos a necessidade de beber (a sede orgânica de Philippe),
resultante da ingestão de arenques (manjubas), necessidade esta que desencadeia o
processo onírico; de outro, há o desejo de beber, a verdadeira sede de Philippe,
enunciada diante de Lili, o qual desejo, ao menos temporariamente, foi realizado no
sonho. A distinção entre necessidade e desejo é imperiosa. O prazer efêmero que o
sonho proporciona não corresponde à necessidade fisiológica, já que Philippe continua
com sede e acorda para beber água, mas a seu desejo.

Poderíamos ser tentados a reduzir o móvel do sonho à libido. Com efeito, a


pulsão aparece nele como vinculada à zona bucal, que, conforme já foi exposto (cf.,
acima, p....), é a primeira a se distinguir no desenvolvimento pós-natal. Philippe tem
sede, e sua sede adulta remete à sede infantil. Como entender esta carência de beber
numa criança tão bem nutrida? Na verdade, como já dissemos, a sede de Philippe não se
reduz à sede orgânica. “A libido vai substituir a necessidade e é dela que tomamos
conhecimento no campo psicanalítico.” (IEP, p. 109). A necessidade fisiológica é um
pretexto (apoio)156 para o desejo libidinoso de Philippe expressar-se, o qual desejo,
conforme veremos, se desloca para Lili e nela e por meio dela se realiza
provisoriamente. Freud, porém, sempre defendeu o dualismo pulsional. Qual o papel
das pulsões de morte na formação dos sonhos? Os autores se referem a um outro sonho
do paciente, cujo contexto castrativo é evidente, para responder à questão. Eis o relato
deste novo sonho:

156
Sobre a noção de apoio, consultar ps. 195s deste trabalho
128

Um garoto de doze anos cai num buraco e se fere. Grita forte. Alguém se
aproxima (o psicanalista) para ver onde está a ferida. Aparece no calcanhar um
arranhão em forma de vírgula, que não sangra. O garoto se feriu com um objeto
em forma de foice no interior do buraco.

Os articulistas relatam as diversas associações de Philippe e suas respectivas


interpretações, a começar pela primeira lembrança que ocorre ao paciente: uma cicatriz
em seu rosto que se encontra indicada em sua carteira de identidade. O ferimento, que,
no sonho, aparecia no calcanhar, se transforma, assim, em cicatriz facial. O grito
catastrófico que se segue à queda, não está ligado à dor (desprazer), mas à surpresa do
acidente, quer dizer, a seu caráter instantâneo, fulgurante. As associações vinculadas ao
golpe de foice dizem respeito à amputação, tétanos mortais, degolamentos, penas
capitais: “é o tema fundamental do fim e do começo que aparece aí em sua intensidade
catastrófica” (IEP, p. 110). Quer dizer: estamos aqui no domínio da pulsão de morte. A
morte está aquém e além do prazer e desprazer. Aquém, porque é a condição de ambos.
Além, porque reencontramo-la “no instante do gozo que conclui – e dá sentido – ao
prazer crescente da união amorosa” (IEP, p. 110).

Dissemos que o grito do sonho manifesto não resulta da dor, não expressa o
sofrimento da vítima. Resulta sim, podemos dizer agora, da situação catastrófica
introduzida pela pulsão de morte (a castração). Na verdade, é um grito de ansiedade
frente à morte, grito desesperado pela vida. E a dor indica a sobrevivência do indivíduo
à castração, ou seja, já é um sinal de vida (Cf. IEP, p. 110).

A pulsão de morte é uma rocha, o fundamento do complexo de castração e, no


entanto, não pode ser nomeada, fica à margem do dizível, aquém e além da linguagem.
Ela instaura a linguagem, mas não pode ser dita. Segundo Laplanche e Leclaire, a
pulsão de morte é a
força radical, originariamente condensada e fixa, que aflora no instante
catastrófico ou extático, neste ponto em que a coerência orgânica do sujeito em
seu corpo aparece pelo que ele é, inominável e indizível, síncope ou êxtase,
gritando seu apelo por uma palavra que a ultrapasse e a sustenha” (IEP, p.
111)157.

As considerações precedentes dizem respeito ao dualismo pulsional. Referimo-


nos ao papel das pulsões sexuais e da pulsão de morte na formação dos sonhos. Agora é

157
No entender dos articulistas, deve-se distinguir a pulsão de morte da agressividade. Esta não se opõe à
vida, mas é apenas a outra face de Eros, ou seja, a manifestação negativa da libido (Cf. IEP, p. 111, nota
1). Na verdade, os autores têm uma concepção peculiar da pulsão de morte (articulam-na com o complexo
de castração), concepção esta que, a nosso ver, não coincide exatamente com a de Freud.
129

o momento de discutir a natureza dos representantes pulsionais, pois, como é de nosso


conhecimento, a pulsão em si, no seu lado somático, não constitui objeto de estudo da
psicanálise: “não é sobre ela que opera o recalque, ela não é nem consciente nem
inconsciente e não entra no circuito da vida psíquica senão pela mediação dos
Vorstellungs Repräsentanz” (IEP, p. 111). Este termo (que, no singular, pode ser
traduzido, em português, por “representante ideativo”, “representante representativo” ou
ainda, seguindo a sugestão de Ricoeur para a tradução francesa, por “presentação
representativa”) distingue-se da pulsão, que é orgânica, e do afeto, já que a mesma carga
de afeto pode ser investida em diferentes representações. Na verdade, o afeto é uma
outra modalidade de representante pulsional com um destino peculiar, distinto do da
representação ideativa (Cf. R, p. 66s), como, aliás, já estudamos158.

Vejamos dois exemplos de representantes ideativos extraídos do sonho de


Philippe. Podemos começar pela lembrança do gesto de beber água com as mãos em
concha. Este gesto, que evoca a pulsão oral, está gravado “como uma imagem” na
mente de Philippe (tanto que o paciente o reproduziu automaticamente numa das
sessões ao relatar suas lembranças infantis). Se tal gesto é apto a representar sua sede é
porque evoca, para cada um de nós, bem antes que Philippe o tivesse reinventado, o
gesto do mendigo em súplica e do crente em oração e, mais profundamente, “a forma
complementar, inversa em sua concavidade, da agradável e plena concavidade do seio”
(IEP, p. 111s). O segundo exemplo é a fórmula: “Eu estou com sede”. Mais claramente
que o significante anterior, ela assinala a oralidade da pulsão. Observe-se que a fixação
deste representante deu-se pela mediação de Lili.

Este gesto e esta fórmula, que deixaram uma marca indelével na mente de
Philippe, são, portanto, os representantes psíquicos de uma pulsão que é oral em sua
fonte.

Qual o desejo que, pelo menos provisoriamente, é realizado pelo sonho?


Philippe diz “estou com sede” diante de Lili. Logo, é de Lili que ele tem sede. Lili
lembra “lolo” (em francês), tanto na acepção vulgar (seio) como na infantil (leite). Por
outro lado, este apelido era reservado para uso exclusivo de seu marido, com o qual ela
formava um “bom par”, em contraste com as relações mais difíceis dos pais de Philippe.

158
Cf., acima, p. 123-128.
130

Além do mais, o fonema “Li”, que também se encontra em “Li-corne”, evoca a palavra
“lit” (leito). É para Lili, portanto, que se orienta o desejo de Philippe.

O núcleo do sonho se encontra na figura do Licorne: “animal fabuloso,


compósito, meio cervo, meio cavalo, símbolo evidente da força viril exposta” (IEP, p.
112), isto é, do falo159.

Não é por acaso que este animal mítico aparece no sonho. Todas as associações
conduzem a ele e ele conduz “ao lugar de beber, ao instante de beber onde culmina e se
esvai o desejo”.

Tudo o que foi dito, portanto, confirma: a sede orgânica é um mero pretexto (ou
apoio), uma maneira de figurar a sede mais radical de Philippe. A fórmula “estou com
sede”, pronunciada diante de Lili, expressa o desejo

de estabelecer uma ligação, de fazer a ponte, de ocultar uma fenda, de


impedir a catástrofe de uma ferida, de esconder a todo preço o que pode
evocar a castração seja lá como for (IER, p. 113).

O nível do desejo e de sua força é o do imaginário (no caso, do mito), desde que
seja apto a mascarar a pulsão de morte, isto é, a castração. No sonho, o licorne aparece
como uma admirável metonímia do desejo de Philippe. Expliquemo-nos melhor a
respeito deste termo que, juntamente com o de metáfora, Lacan toma de empréstimo à
linguística de R. Jakobson160, para repensar a teoria freudiana do inconsciente.

As palavras, graças ao poder metafórico e metonímico da linguagem, veiculam


múltiplos sentidos além do que é imediatamente visado.

Como F. Saussure nos ensinou no Cours de linguistique générale (1972, p. 97-


100), o signo possui dupla face: a do significante e a do significado. O significante é o
aspecto sensível (acústico) do signo linguístico, ou seja, “a linguagem em sua textura
mais material” (IEP, p. 116). O significado, na concepção de Lacan, não pode ser
reduzido ao conceito, como supostamente pretendia o linguista suíço. Influenciado por
sua formação de analista, como observa A. Lemaire, o autor dos Écrits dá prioridade
não ao significado, mas ao significante na constituição da linguagem. A rede de

159
Observe-se que “o ‘falo’ não se reduz ao sexo biológico, para o qual Lacan reserva o nome ‘pênis’. O
falo é um significante, um significante metafórico: é a metáfora paternal” (Fages, 1977, p. 27). Veremos
adiante o significado desta última expressão.
160
Cf. R. Jakobson, Essais de linguistique gènèrale, T. I, trad. fr., Paris: Minuit, ps. 61-69.
131

significantes comanda o conjunto dos significados, pois este último surge pela
substituição (metafórica ou metonímica) de um significante por outro. “A significação
nasce da tomada do conjunto dos termos com jogos múltiplos de reenvios de
significantes a significantes” (Lemaire, 1979, p. 80). Esta substituição, observe-se, não é
arbitrária, mas obedece às leis do sistema linguístico:

Se o significante remete ao significado, não é senão pelo conjunto do sistema


significante e não há qualquer significante que não remeta à ausência dos
outros e que não se defina por sua situação no sistema... (IEP, p. 117)

Para Lacan, o significante age separadamente de sua significação e à revelia do


sujeito. O que Freud denomina “representante ideativo” (Vorstellungs Repräsentanz) da
pulsão, quer dizer, as imagens (fantasias e lembranças) inconscientes – que podem, no
entanto, se tornar conscientes – Lacan pensa como significante. Não existe significado
no sistema inconsciente, mas apenas significantes.

Retornemos às noções de metáfora e metonímia. Como entender tais figuras de


estilo? A primeira consiste na substituição de um significante por outro, sendo que o
novo significante retém algo do antigo (uma semelhança que pode ser expressiva ou
apenas formal). Tomemos alguns exemplos: “place” ao substituir “plage” (semelhança
formal) e “areia” ao substituir “poeira” (semelhança expressiva) no sonho de Philippe;
“leão” ao substituir “corajoso”, na proposição: “Pedro é um leão” (semelhança
expressiva). Em todos esses casos, o significante suplantado assume o lugar de
significado do novo significante. Como diz Lacan, “a metáfora se produz no ponto
preciso em que o sentido se produz no sem sentido” (1978, p. 239).

A metonímia “substitui um termo por outro na base de um laço de proximidade,


de conexão de sentido entre dois termos” (Lemaire, p. 83). Nesta figura, um significante
suplanta outro com o qual mantém uma relação de contiguidade. Por exemplo: dizer
Champagne, por vinho da província de Champagne (toma-se o continente pelo
conteúdo); trinta velas por trinta navios (a parte pelo todo); fulano vive de seu trabalho,
por fulano vive do fruto de seu trabalho (a causa pelo efeito).

Para Jakobson, a metáfora e a metonímia constituem os dois grandes eixos da


linguagem, especialmente da linguagem poética. Retomando a intuição de Freud,
segundo a qual as leis do sonho são equivalentes às da poesia e identificando a metáfora
com a condensação e a metonímia com o deslocamento, Lacan pode afirmar: “é toda a
132

estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (1978,


p. 225).

No sonho de Philippe, o licorne aparece como uma metonímia que remete à


fonte e a sua legenda e a todo um complexo circuito de associações. “Do li(t) de Lili ao
corne (corno) que Philippe deseja ter nos pés, licorne retém no intervalo de suas duas
primeiras sílabas os elementos intermediários da cadeia inconsciente” (IEP, p. 115)161.
Por isto, licorne é uma esplêndida metonímia que indica, tanto na palavra como na
efígie, a condensação da cadeia de significantes, bem como o deslocamento e o
intervalo que separa os termos que esta cadeia reúne. O licorne, como portador do
símbolo fálico, designa e mascara a abertura do sujeito, isto é, sua “castração
originária”.

A metonímia (...) por sua inesgotável possibilidade de deslocamento é


propriamente feita para marcar e mascarar a fenda em que nasce e se mascara
perpetuamente o desejo, sobre o rochedo da pulsão de morte (IEP, p. 115).

Justamente porque o inconsciente se estrutura como uma linguagem, a sua


origem “deve ser procurada no processo que introduz o sujeito no universo simbólico”
(EIP, p. 121). O momento em que se inicia a simbolização do real coincide
necessariamente com a formação do inconsciente, ou seja, com a clivagem do
psiquismo em dois sistemas: o inconsciente e o pré-consciente/consciente. Veremos
adiante que esta cisão resulta do recalque originário. Para compreendermos a introdução
da criança na ordem simbólica (linguagem), a clivagem do psiquismo e a natureza do
recalque originário – três aspectos de um único processo – vamos recorrer a um
esquema algébrico criado por Lacan e retomado, de forma um tanto modificada, por
seus discípulos, Laplanche e Leclaire162.

Procurando pensar um primeiro estágio hipotético da vida psíquica, anterior ao


recalque originário, no qual estágio não haveria a diferenciação entre inconsciente e
consciente, os autores imaginam o mito ou “ficção” (para falarmos como Freud) de uma
linguagem originária, que se desenvolveria num só plano, num só discurso sem
metáforas e equívocos. Recorrem à linguística de Saussure para se explicarem. A

161
Os autores se referem à cicatriz facial de Philippe, a qual no sonho aparece em um de seus pés. O
termo licorne retém entre suas duas sílabas extremas (li e ne) toda a cadeia ou complexo significante (li[t]
= Lili, leito, leite, seio e corne = corno, cicatriz, foice). Isto sem falar na figura do licorne, que, como
vimos, é um símbolo fálico.
162
Convém lembrar que enquanto Leclaire se manteve sempre fiel a Lacan, Laplanche pode ser
considerado como o seu primeiro discípulo dissidente.
133

fórmula S/s, na qual S é o significante e s é o significado, é apta para representar esta


linguagem fictícia. A barra que separa S e s indica a possibilidade de transposição de
um estágio para outro e dá conta dos “efeitos de sentido” ou daquilo que a
fenomenologia denomina “abertura de significações”. É na barra que reside “o essencial
do problema”. Conforme veremos, na linguagem metafórica, a barra não é apenas um
fenômeno linguístico que coloca em jogo o significante e o significado, mas “exprime o
recalque que impede a passagem” (Ricoeur, CI, p. 320/Fr.391).

Com a introdução da metáfora, um novo significante S’ expulsa o anterior, o que


pode ser representado por S’/s. Mas S não desparece: fica no lugar do significado e se
perpetua como significante latente. Isto pode ser simbolizado S’/S. Temos, assim, uma
fórmula mais complexa, cujo resultado foi obtido do seguinte modo:

S’ X S S’/s
S s S/S

O que vemos nesta fórmula é “o esquema mesmo do recalque, onde se encontra


conservado numa linha, o que aparentemente foi simplificado no discurso pré-
consciente” (IEP, p. 119).

Vejamos como deve ser entendida a fórmula final e como ela se torna
operacionalmente relevante para a psicanálise.

Os dois andares inferiores, que constituem a cadeia inconsciente, estão em


posição de significado em relação à cadeia pré-consciente. É surpreendente que o
significante primitivo, que foi expulso pelo novo, seja tratado como um termo duplo
(S/S), quer dizer, o mesmo elemento está em posição de significante e significado. A
intenção dos autores é explicar o que Freud denomina representação de coisa163. Este
tipo de representação caracteriza a linguagem dos sonhos, cuja regressão tópica conduz
a expressão figurativa. Ela se distingue da representação de palavras (traços acústicos),
que é peculiar ao pré-consciente/consciente. Na verdade, como nos esclarece Freud, “a
representação consciente abrange a representação da coisa mais a representação da

163
Freud, como já dissemos, distingue “representação de coisa” de “representação de palavra” Cf., acima,
p..... [[ A primeira é essencialmente visual, a segunda acústica. O inconsciente só compreende
representações de coisa, ao passo que “as representações de palavras são introduzidas numa concepção
que liga a verbalização e a tomada de consciência. Assim, desde o Projeto de uma Psicologia (...) que
encontramos a ideia de que é associando-se a uma imagem verbal que a imagem mnésica pode adquirir o
índice de qualidade específico da consciência” (VP, p. 585).]]
134

palavra que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente é representação de


coisa apenas” (INC, p. 120)164. Por exemplo, o sonho de Philippe entrelaça a homofonia
G de plage (praia) e j’ai soif (estou com sede), o que pode ser representado na fórmula
G/G. O mesmo fonema, que é o ponto de cruzamento de dois significantes, é apto a
significar e figurar o desejo de Philippe, na medida em que introduz uma rede de
significantes, a qual, mediante uma série de deslocamentos metonímicos, conduz ao
imago do licorne.

Porque este esquema, que é o da metáfora, é apto para representar o recalque?


No entender de Freud, conforme já vimos165, o recalque exige duas operações
conjugadas para se efetuar: por um lado, a representação a recalcar sofre uma repulsa do
pré-consciente/consciente; por outro, é atraída por representações anteriormente
recalcadas. A primeira ação (repulsa) é caracterizada em termos econômicos pelo
desinvestimento (o sistema Pcs-Cs retira o investimento de determinada representação,
ocorrendo, então, uma ruptura na cadeia superior) e pelo contrainvestimento (uma nova
representação é investida para ocupar o lugar da anterior e impedir que a mesma tenha
de novo acesso ao sistema Pcs-Cs). Esta descrição coincide, no essencial, com o
mecanismo da metáfora, que Lacan, na esteira de Jakobson, define como sendo a

implantação numa cadeia significante, de um outro significante, pelo qual


aquele que este suplanta caia na posição de significado e, como significante
latente, perpetue ali o intervalo onde uma outra cadeia de significante possa
ser enxertada (Lacan apud IEP, p. 118).

A segunda ação revela que não pode haver qualquer recalque sem que a
representação afastada do Pcs-Cs entre em conexão com alguma outra representação
anteriormente recalcada. Quer dizer, o recalcado, para se tornar tal, deve encontrar seu
lugar numa cadeia de representações (ou significantes) inconscientes. Em outros termos:
o recalque já supõe a existência do sistema inconsciente. Daí a necessidade de se
distinguir o recalque originário (Urverdrängung), que cinde o psiquismo em dois
sistemas, e o recalque secundário (Nachdrängen) ou recalque propriamente dito.

Com o recalque originário, cujas representações nunca foram nem podem se


tornar consciente, “produz-se uma fixação”, diz Freud. Fixação deve ser entendida aqui

164
Substituímos “apresentação”, na tradução portuguesa da editora Imago, por "representação”, termo que
corresponde mais adequadamente ao alemão Vorstellung que se encontra nas expressões Sachvorstellung
(representação de coisa) e Wortvorstellung (representação de palavra) (Cf. VP, p. 564s).
165
Consultar p. 120s deste trabalho.
135

não no sentido genético, mas como “o modo de inscrição de certos conteúdos


representativos (experiências, imagos, fantasmas) que persistem no inconsciente e a que
a pulsão permanece ligada” (VP, p. 251).

Freud caracteriza a energia do recalque originário como sendo de contra-


investimento. O que poderia justificar esta hipótese, se no recalque originário o
inconsciente, por não estar ainda constituído, não exerce qualquer atração sobre as
representações a serem recalcadas? A resposta, via Lacan, seria:

Toda energia dos sistemas, tanto a do pré-consciente como a do inconsciente,


provém desta espécie de clivagem originária, tal como (...) uma partícula de
eletricidade negativa e uma partícula positiva se formariam por cisão a partir
de um nada de energia. Mas o gesto criador provém, apesar de tudo, segundo
Freud, de uma certa energia que ele denomina contrainvestimento; no
esquema da metáfora, é preciso conceber a existência de certos significantes-
chaves colocados em posição metaforizante, aos quais é devolvida, em
virtude de sua força particular, a propriedade de colocar em ordem todo o
sistema da linguagem humana. Como se vê, fazemos alusão aqui, em
particular, ao que Lacan denomina metáfora paternal (IEP, p. 120)166.

Para explicar esta última expressão é oportuno investigar a fase do espelho, tal
como Lacan a concebe (Cf. Lacan, 1977, p. 21-28; Fages, 1977, p. 23-26).

A criança pequenina não se vê inteira, não se apreende como unidade corporal.


Só tem uma imagem parcial ou esfacelada de si mesma (pulsões parciais). Este corpo
retalhado pode reaparecer, no adulto, em sonhos e sintomas de histeria e esquizofrenia.
Jerônimo Bosch, o pintor visionário do século XV, fixou “para sempre” este estado de
“desintegração agressiva do sujeito”. Por volta dos seis meses, contudo, numa situação
de descoordenação motora, incapaz ainda de andar e em tudo dependente da mãe, posta
diante de sua imagem no espelho, a criança vive uma experiência fatigante, mas
“lúdica” e “jubilatória”: antecipa imaginariamente a apreensão e o domínio de sua
unidade corporal.

Esta experiência se desdobra em três momentos: 1º) inicialmente a criança reage


como se a imagem apresentada pelo espelho fosse real ou a imagem de um outro e não a
sua própria; 2º) em seguida, deixa de tratar a imagem como objeto real: não a procura
mais por detrás do espelho; 3º) finalmente, reconhece este outro como sua própria

166
Lemaire esclarece: “a pulsão de morte é a energia específica que permite o contrainvestimento
necessário ao recalque originário criador do inconsciente” (1979, p. 217).
136

imagem. A fase do espelho assinala, assim, a “constituição do primeiro esboço do ego”


(VP, p. 236).

Este estádio deve ser entendido “como uma identificação, no sentido pleno que a
análise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando este
assume uma imagem ...” (Lacan, 1977, p. 22). Esta identificação primeira é a matriz de
todas as outras. É dual, imediata, direta, narcísica. “A criança se identifica com um
duplo de si mesma, a uma imagem que não é ela própria, mas que lhe permite
reconhecer-se” (Fages, 1977, p. 24). Este primeiro esboço do ego é, assim, puramente
imaginário.

Diante de seus amiguinhos ou na posse de algum boneco a criança adota uma


atitude agressiva: deseja decapitá-los, esquartejá-los, dividi-los. No fundo, é uma atitude
homóloga à percepção do corpo no espelho. Continua a ser uma relação dual que se
caracteriza pela confusão de si com o outro. Estamos ainda no nível do imaginário.

A identificação com a imagem especular e a agressividade para com os


semelhantes apenas continuam a relação primeira com a mãe. A criança sente
necessidade de ser cuidada, acariciada e aleitada pela mãe, mas, sobretudo, de ser o
complemento dela, isto é, de ocupar o lugar do que falta à mãe: o falo.

Embora o estádio do espelho represente um primeiro passo na estruturação do


sujeito, a criança, conforme estamos vendo, encontra-se ainda submissa a um símile de
si mesma e à sua própria mãe, com quem se identifica, a ponto de fundir-se com ela. Só
consegue vencer esta submissão ao imaginário e superar esta “identidade alienante”
quando é capaz de pronunciar sua situação no mundo. O sujeito se constitui na e pela
linguagem.

Como se dá o acesso da criança à ordem simbólica? Como emerge a linguagem


para cada um de nós? Até aqui vimos que a criança se identifica com a mãe, confunde-
se com ela. É o primeiro estádio da situação edipiana. Num segundo momento o pai
intervém. É o executor da ameaça de castração. Corta a relação dual com a mãe, priva a
criança desta identificação, mostrando-lhe que não é o falo da mãe, e priva a mãe de um
pseudo falo, o filho (seu complemento). O segundo tempo de Édipo é, assim, o encontro
da lei paterna. O terceiro tempo surge da identificação da criança com o pai (a
identificação primária com a mãe é substituída pela identificação secundária com o pai).
137

É neste momento que o ser humano se introduz na ordem simbólica. Com efeito, a
criança que até então vivia numa relação simbiótica com a mãe, que era uma com ela,
passa pela experiência da privação da mãe. Desencadeia-se, assim, a crise da primeira
identificação, a crise do imaginário. “O desenlace desta crise será na criança a aptidão
para nomear a causa das ausências da mãe, para nomear o pai e, nomeando-o, integrar
sua lei”. A criança se torna capaz de pronunciar o “Nome-do-Pai”: um novo significante
expulsa o anterior, provoca a ausência da mãe e empurra para o inconsciente o
significado do falo (Cf. Fages, 1977, p. 28).

O Nome-do-Pai, portanto, é um significante metafórico que cinde o psiquismo


em dois sistemas. Com efeito, o significante primeiro (falo = complemento materno),
com a introdução da metáfora paternal, passa para o segundo plano, ou seja, se perpetua
na latência do inconsciente. A metáfora paternal pode ser concebida, por conseguinte,
como o recalque originário. É um significante chave que “coloca em ordem todo o
sistema da linguagem humana” (IEP, p. 120).

Para ilustrar a tese lacaniana, tomemos o célebre exemplo do “Fort-da”,


apresentado por Freud em Para além do Princípio do Prazer (cf., p. 4-6). Trata-se de
uma brincadeira inventada por um menininho bem comportado de um ano e meio. A
criança apanhava qualquer objeto a seu alcance e jogava para detrás de sua cama,
gritando “ó-ó-ó-ó-ó”, som que sua mãe e Freud entenderam como um fonema do
advérbio alemão fort, o qual indica saída, movimento para fora. Certo dia, o menino
utilizou um carretel de madeira: lançou-o ao som de seu habitual “ó-ó-ó-ó-ó” e depois,
ao puxá-lo de volta, disse com grande satisfação: da (aí).

A brincadeira, como se vê, tinha dois momentos: o arremesso do objeto e seu


festejado retorno. Como interpretar esta atividade lúdica? Levando em conta que a mãe
se ausentava algumas horas durante o dia, o sentido do jogo salta aos olhos: “ele se
relaciona”, observa Freud, “à grande realização cultural da criança, à renúncia (...) que
efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar” (APP, p. 25). A criança compensava e
dominava sua frustração, simbolizando as idas e vindas, ausências e retornos da mãe.

No entender de Freud, o jogo ilustra a compulsão à repetição, isto é, uma


necessidade imperiosa de repetir uma experiência dolorosa, que contraria os desejos do
138

indivíduo e constitui, assim, um “além do princípio do prazer”, que deve ser concebido
como manifestação da pulsão de morte.

Lacan interpreta a seu modo a brincadeira do Fort-da. No seu entender, o caso


ilustra a inserção do homem na ordem simbólica. O sujeito não apenas domina a
ausência da mãe, mas eleva seu desejo à “segunda potência” da linguagem. “O
momento em que o desejo se humaniza”, diz Lacan, “é também aquele em que nasce
para a linguagem”. E continua: “O símbolo se manifesta primeiro como o assassínio da
coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização do desejo” (1978, p. 183s). Quer
dizer, por um lado, a criança que vivia imersa no imaginário, escrava da presença
materna, é capaz agora de objetivar a presença e a ausência da mãe. Emprega o próprio
imaginário (representantes pulsionais ou significantes) para nomear a mãe presente ou
ausente. Com isto, rompe com o imediato, mata a coisa, porque se torna capaz de
significá-la. É o advento do símbolo. O imaginário deixa de ser apenas imaginário para
se tornar simbólico. Por outro lado, o desejo se eterniza, porque perde seu objeto
primeiro (a mãe), mas ganha, por sua inscrição no simbólico, infinitos substitutos
metonímicos (o que Lacan chama de demanda).

Aqui julgamos oportuno apresentar algumas distinções estabelecidas por Lacan


que versam sobre a necessidade, a falta, a pulsão, o desejo e a demanda (Cf. Lacan,
1978, p. 313-335; Lemaire, 1979, p. 211-219; Fages, 1977, p. 41-49).

A necessidade é orgânica: necessidade de ar, de água etc. Freud aceita esta


concepção corrente, mas intercala entre a necessidade e o desejo, a pulsão. Em si
mesma, a pulsão é uma força orgânica que visa um objetivo orgânico: suprimir as
tensões no nível da fonte pulsional. Contudo, pode intervir no psiquismo por intermédio
de seus representantes (significantes). Para Lacan, a necessidade está em correlação
com a falta. O homem, desde o nascimento, é um ser incompleto. Expulso do ventre
materno, perde seu complemento anatômico. Sua existência, portanto, é falta, vazio,
“hiância”. Esta falta provoca a necessidade. Qual a relação entre necessidade e pulsão?
Lacan retoma o mito platônico do andrógino, o ser humano anterior à diferenciação dos
sexos. Assim, como o andrógino foi dividido por Zeus em dois seres sexuados
incompletos, a criança, arrancada da placenta, se encontra separada de parte de si
mesma. Não sem humor, Lacan compara o recém-nascido a um ovo que se derrama em
omelete. A pulsão é um empuxo que invade a criança e traduz sua falta originária. Para
139

poder expandir-se, para superar o fechamento do corpo, a pulsão é canalizada pelas


zonas erógenas, que são válvulas abertas para o exterior, graças à mediação da mãe. A
pulsão introduz, assim, um coeficiente erótico na necessidade.

No entender de Freud, o desejo é a força que põe o aparelho psíquico em


movimento e o orienta na percepção do prazer e do desprazer. Para atuar, exige um
representante pulsional. Segundo Lacan, “o desejo sucede à falta essencial vivida pela
criança separada de sua mãe, sucede à necessidade orgânica e à pulsão, pois o desejo é o
que vira a pulsão quando alienada em um significante” (Lemaire, p. 213). O desejo
tende a preencher a falta, tende a ocultar a separação (castração) entre a mãe e seu
complemento: o filho. “A criança deseja ser o falo da mãe, o desejo do desejo da mãe, o
complemento de sua falta” (Fages, p. 42). Incapaz de completar a falta ou recuperar o
objeto originário (a mãe), o desejo se dedica a substitutos, ou seja, se inscreve na ordem
simbólica (linguagem). É então que surge a demanda. Com este termo, Lacan designa
“o lugar simbólico, significante, onde o desejo se aliena progressivamente” (Lemaire, p.
213). Pela demanda o sujeito se engaja, no dizer de Lacan, “no desfile radical do
discurso”. Sua pulsão primitiva, que era ser tudo para a mãe, se torna desejo de ter,
conhecer e possuir. Mediante sublimações, deslocamentos infindos de significante a
significante (metonímia), o desejo primeiro e inconsciente se aliena na demanda. “As
demandas sempre insatisfeitas, remetem aos desejos sempre recalcados e estes desejos
tecem entre si um texto de infindas associações. Um texto cada vez mais indecifrável à
medida que outros desejos vêm se enlaçar ao longo da vida” (Fages, p. 43).

Por ser totalmente incapaz de recuperar seu objeto inconsciente – a mãe –, o


desejo, conforme dissemos, se dedica a infinitos substitutos. Por isto mesmo, nunca se
volta para a realidade, mas para a fantasia167. A necessidade, não o desejo, é presa do
real.

Para concluir, retornemos ao texto do Congresso de Bonneval ou, mais


precisamente, à distinção entre recalque originário e recalque secundário. Vimos que o
primeiro cinde o psiquismo em dois sistemas e que o recalque secundário só pode atuar
a partir desta clivagem. Contudo, os articulistas discordam quanto ao momento e à
natureza do recalque originário. Laplanche distingue dois níveis de simbolização, sendo
que no primeiro – uma etapa puramente mítica – “a rede das oposições significantes é

167
Consultar p. 177s deste trabalho.
140

lançada sobre o universo subjetivo; mas nenhum significado particular cai numa rede
particular” (IEP, p. 121). O Fort-da seria um exemplo deste primeiro nível de
simbolização. Leclaire, diferentemente de Laplanche, admite que esta etapa inicial já
teria o poder de gerar o inconsciente, coincidindo com o recalque originário. Quer dizer,
para ele o recalque originário não é ainda a metáfora, mas a condição do funcionamento
posterior desta. Esta discordância, observe-se, marca o começo da separação entre
Laplanche, por um lado, e Lacan/Leclaire, por outro.
141

CAPÍTULO 3

A PSICANÁLISE DA CULTURA168

Freud não se limitou à investigação dos fenômenos clínicos e à elaboração de


uma teoria complexa para explicar a mente, mas procurou aplicar os modelos
metapsicológicos no domínio dos fenômenos culturais. O mesmo desejo que dinamiza o
aparelho psíquico e produz sonhos, sintomas e atos falhos está por detrás das mais
elevadas produções humanas, isto é, da arte, da religião e da moral. Contudo, a
interpretação da cultura é mais do que uma psicanálise aplicada, pois a própria
metapsicologia foi modificada sob o impacto do dado não clínico. Com efeito, nem a
segunda tópica nem a última classificação das pulsões seriam viáveis se a atenção de
Freud não tivesse se desviado do recalcado para o recalcador, do desejo para a
autoridade, da clínica para a cultura (Cf. NCIP, p. 76).

Inicialmente trataremos das relações entre sexualidade, agressividade e cultura,


dando relevo à conclusão pessimista de Freud: a felicidade é incompatível com a
civilização; em seguida, enfocaremos duas questões fundamentais: primeiro, a
introjeção da ordem moral; segundo, a gênese e a estrutura da “ilusão” religiosa;
prosseguindo, abordaremos a hipótese do Édipo histórico e de seu estatuto no discurso
psicanalítico; finalmente, trataremos da criação estética e de seu valor psicossocial, ou
seja, de seu poder para conciliar a existência humana com as exigências da vida
comunitária.

1) CULTURA E REPRESSÃO169

A cultura, isto é, “tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua
condição animal”, apresenta dois aspectos: a) o controle da natureza pelo conhecimento
e pelo trabalho, tendo em vista a satisfação das necessidades humanas; b) os

168
A palavra alemã Kultur é empregada por Freud tanto para designar civilização como cultura (Cf. FI, p.
16). Em vista disso, utilizaremos indiferentemente os dois termos.
169
Vimos que Freud distingue o recalque originário do recalque secundário e sabemos que este último
pressupõe o primeiro para operar. Considerando o largo uso, em português, do termo repressão, para
designar a coibição, opressão e violência sociais e tendo em vista que este emprego se articula com o
discurso psicanalítico da cultura, no qual Freud trata o recalque sobretudo como um mecanismo
psicossocial (e não apenas individual) com caráter opressor, utilizaremos repressão como sinônimo de
recalque secundário neste capítulo.
142

regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens entre si e organizar a


distribuição das riquezas (Cf. FI, p. 16).

O homem já conseguiu em parte dominar a natureza, mas permanece impotente


diante do sofrimento oriundo de suas relações sociais. “Não podemos perceber porque
os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção
e benefício para cada um de nós” (MEC, p. 43), lamenta Freud. O homem não se sente
feliz como ser social, mas não pode dispensar a vida civilizada. Daí a tragicidade da
condição humana.

Não há civilização sem normas que regulem os relacionamentos sociais. Num


primeiro estágio, estas normas foram impostas à maioria por uma minoria detentora dos
meios físicos de poder e coerção (Cf. FI, p. 17 e MEC, p. 53). Mais tarde, modificadas
segundo os interesses da maioria, passaram a ser endossadas e respeitadas por quase
todos.

A vida humana em comum só se torna possível quando reúne uma maioria


mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra
todos os indivíduos isolados. O poder desta comunidade é então estabelecido
como “direito”, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como “força
bruta” (MEC, p.53).

A civilização exige, portanto, o triunfo da comunidade sobre o indivíduo. O


preço da vida social é o sacrifício das satisfações pulsionais. “Todo indivíduo é
virtualmente inimigo da civilização” e a civilização precisa proteger-se do indivíduo
(Cf. FI, p. 16).

Freud distingue frustração, interdição e privação. O primeiro termo designa o


fato de uma pulsão não poder ser satisfeita; o segundo, o regulamento pelo qual esta
frustração é estabelecida; o terceiro, a condição produzida pela interdição. As privações
são desigualmente distribuídas na civilização. Algumas afetam a todos, outras apenas a
grupos, classes ou indivíduos isolados. “Essas privações ainda são operantes e ainda
constituem o âmago da hostilidade para com a civilização” (FI, p. 21).

Há quem admita a possibilidade de um remanejamento das relações sociais que


remova as fontes de insatisfação e introduza uma era de abundância e de distribuição
adequada de riquezas. Pessimista, Freud discorda: “... é discutível se tal estado de coisas
pode ser tornado realidade. Parece, antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a
143

coerção e a renúncia ao instinto [ou pulsão] ...” (FI, p. 17). O máximo que se pode
almejar é a redução para uma minoria da maioria que ainda é hostil à civilização (Cf. FI,
p. 16).

A questão decisiva, no que diz respeito à vida civilizada, consiste, portanto, “em
saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais [ou
pulsionais] impostos aos homens ...” (FI, p. 17). Em Mal Estar na Civilização (1930),
Freud investiga esta questão, chegando a uma conclusão pessimista. Acompanhemos
sua argumentação.

O projeto básico da existência humana é alcançar a felicidade. “O que decide o


propósito da vida é o programa do princípio do prazer”. Contudo, este programa está em
desacordo com o mundo inteiro, tanto com o microcosmo como com o macrocosmo.
“Não há possibilidade alguma de ele ser executado. Todas as normas do universo são-
lhe contrárias” (MEC, p. 32s).

O sofrimento ameaça o homem a partir de três direções: de seu próprio corpo,


condenado à dissolução; do mundo externo, com seu poder de destruição; e, finalmente,
de nossos semelhantes, ou seja, da vida social (MEC, p.33). O sofrimento oriundo desta
última fonte, conforme dissemos, é o mais penoso de todos e o mais difícil de ser aceito.
A civilização já conseguiu mitigar os sofrimentos oriundos da natureza e de nosso
próprio organismo. Contudo, não tem sido bem sucedida para controlar a terceira fonte
de sofrimento, quer dizer, as relações sociais (Cf. MEC, p. 43 e 45).

Já que o projeto de ser feliz é inexequível, o homem se empenha mais em evitar


o sofrimento do que propriamente em conquistar a felicidade. Para tanto utiliza vários
recursos, que Freud alista do seguinte modo:

1º) Isola-se de modo a evitar as relações sociais (é o caso do eremita);

2º) Submete a natureza à sua vontade, graças aos prodígios da ciência e da


tecnologia;

3º) Tendo em vista que o sofrimento não é mais que sensação, há os que
procuram influir nos próprios órgãos sensórios mediante substâncias tóxicas (Freud
lamenta que este recurso grosseiro, mas eficaz, exaltado, não obstante os perigos, por
povos e indivíduos, tenha sido tão pouco estudado pela ciência) (Cf. MEC, p. 34s);
144

4º) Há pessoas que conseguem agir sobre as próprias pulsões, quer controlando-
as, como ocorre na ascese cristã, quer aniquilando-as, como se prescreve na mística
oriental. No controle, não se abandona o objetivo do prazer, mas apenas se fortalece a
resistência da mente ao desprazer. Contudo, se o controle, por um lado, conduz a uma
certa independência em relação às exigências pulsionais, por outro, diminui
consideravelmente a qualidade do prazer. “O sentimento de felicidade derivado da
satisfação de uma selvagem tendência pulsional não domada pelo ego”, sustenta Freud,
“é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de uma pulsão que
já foi domada” (MEC, p. 36)170;

5º) Um outro recurso para aliviar o sacrifício pulsional exigido pela vida
comunitária é a sublimação. No entender de Freud, este processo “constitui um aspecto
particularmente evidente do desenvolvimento cultural.” (MEC, p. 56). A alegria do
artista em dar corpo às suas fantasias e a do cientista em solucionar problemas
comprovam o grande valor cultural da sublimação. “Contudo, sua intensidade se revela
muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de tendências
pulsionais grosseiras e primárias; ela não convulsiona o nosso ser físico”171. O mais
lamentável, no entanto, é que este método só é acessível a uma minoria, pois “pressupõe
a posse de dotes e disposições especiais” (MEC, p. 36s);

6º) O trabalho também pode ser uma técnica muito eficaz para reduzir o
sofrimento, pois é capaz de desviar para fins sociais “uma grande quantidade de
componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos” (MEC, p.
37, nota 1). O trabalho fixa o indivíduo à realidade, fornece-lhe um lugar seguro na

170
Substituímos “instinto” e” impulso instintivo” nesta citação respectivamente por “pulsão” e “tendência
pulsional”.
171
Aqui Freud é pego em sua própria armadilha. Esta identificação da felicidade com a satisfação
convulsiva ou selvagem de nosso ser físico corresponde à concepção econômica ou quantitativa do
prazer, como redução de tensão. Contudo, há que se reconhecer que o próprio Freud, não obstante o valor
operacional desta hipótese, leva-nos a questioná-la ao admitir tensões agradáveis introduzidas por Eros
(Cf. APP, p. 82). Como nos lembra Rollo May, Eros trabalha no sentido “oposto ao princípio do prazer”
(1973, p. 95s). Segundo H. Marcuse, com a emergência do princípio de realidade ocorre uma
“transubstanciação do próprio prazer”. Isto não é uma perda para o homem, mas um imenso ganho, pois
“o âmbito dos desejos humanos e a instrumentabilidade para sua gratificação foram, assim,
incomensuravelmente aumentados...” (1975, p. 35s). O princípio de realidade, como sustenta ainda este
pensador, é histórico. Assim como existe uma realidade sociocultural opressora é legítimo imaginar e
buscar uma outra (utopia), em que a dominação tenha sido extinta e a sublimação deixe de ser o privilégio
de uma minoria (cf. o próximo item ) para se tornar um direito de todos. De acordo com a releitura do
discurso freudiano proposta por alguns teóricos franceses, há que se distinguir, como já estudamos, o
prazer obtido pela realização do desejo (nível imaginário e simbólico) da satisfação das necessidades
vitais (nível real). Freud, nos textos citados, parece “esquecer-se” da sua primeira classificação das
pulsões, que distingue, como mostramos, a ordem sexual do desejo da ordem biológica das necessidades.
145

comunidade humana e, ao mesmo tempo, quando livremente escolhido, é capaz de


satisfazer, de modo sublimado, a vida pulsional. Contudo, Freud lamenta que o trabalho
não seja suficientemente valorizado pelas massas como caminho para a felicidade: “a
grande maioria das pessoas só trabalha sob pressão da necessidade, e essa natural
aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis” (MEC, p.
37. Grifo nosso)172;

7º) Um outro meio para manter afastado o sofrimento e, mais do que isto,
procurar positivamente a felicidade é a arte de amar e ser amado. Contudo, esta
“técnica” tem o seu lado desalentador. Não obstante o amor sexual ser capaz de
proporcionar “a mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer...”,
há que se reconhecer que nunca nos sentimos tão desamparados e infelizes quando
perdemos nosso objeto de amor (Cf. MEC, p. 39), a ponto de muitos desistirem de amar
exatamente para não sofrerem as terríveis consequências da separação;

8º) finalmente, uma outra maneira de buscar a felicidade é a fruição da beleza na


arte, na natureza e na ciência. Contudo, pessimista, Freud observa que a atitude estética,
não obstante ser altamente compensadora, não protege suficientemente o ser humano
contra as ameaças do sofrimento (Cf. MEC, p. 40).

O que concluir desse inventário minucioso dos “métodos” e “técnicas”


empregados pelos homens para evitar o desprazer e buscar positivamente o prazer?
Freud o diz, em poucas palavras:

A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível,


constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma
regra de ouro que se aplique a todos: o homem tem de descobrir por si
mesmo de que modo específico pode ser salvo (MEC, p. 41).

172
Freud não questiona radicalmente esta aversão ao trabalho, que de modo algum é natural, mas
histórico-cultural, pois resulta da dominação de uma classe por outra, como defende K. Marx. Segundo
Marcuse – autor a quem Ricoeur cita e presta homenagem (Cf. I, p. 2; p. 372, nota 37 / Fr., p. 8; p. 443,
nota 37) – existe um vínculo entre repressão e exploração do trabalho. Ele se refere inclusive a uma
“mais-repressão” (um excesso de repressão) necessária à preservação da dominação social. Além do
“trabalho alienado”, estudado e denunciado por Marx, há que se reconhecer, como propõe Marcuse
articulando Marx e Freud, o “trabalho libidinal” (ou erótico), vale dizer, o trabalho prazeroso, cujo
modelo pode ser considerado como a criação estética. A aversão das massas só se dá em relação ao
primeiro e não ao segundo (Cf. Marcuse, Eros e Civilização, p. 51-60). A limitação a uma minoria
privilegiada das disposições necessárias à sublimação é também um fato histórico vinculado à dominação
social. Nada tem de natural e insuperável (Cf. K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844,
coleção Os Pensadores, nº XXXV, São Paulo: Abril, 1974).
146

Quer dizer, a felicidade é possível ao homem civilizado, mas em grau limitado e


de modo precário. Cada um deve buscar o seu próprio caminho.

Mostramos que todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, pois o


convívio social exige a repressão das pulsões. Esta afirmação deve ser compreendida no
quadro da revisão teórica de 1920. Quer dizer, a vida civilizada requer tanto a repressão
da sexualidade como da agressividade.

No que diz respeito à repressão sexual, Freud observa, de início, que o primeiro
passo no caminho da civilização foi a estruturação da família. Quando a necessidade
sexual deixou de ser um hóspede passageiro e se alojou como um inquilino permanente,
o macho passou a desejar a fêmea junto a si e esta não quis separar-se de seus rebentos
(Cf. MEC, p. 57). A exigência de estabilidade afetiva e sexual gerou, assim, a família.
Para que a civilização surgisse, no entanto, foi necessário que a libido sofresse um
desvio de modo a transformar o amor genital no que Freud denomina “amor com o
objetivo inibido”, cujo protótipo se encontra na solidariedade universal de Francisco de
Assis (Cf. MEC, p. 60). Com esta modificação pulsional a sensualidade se transforma
em ternura e amizade. O Eros individual é, assim, socializado, isto é, cria laços com
pessoas estranhas à família (Cf. MEC, p. 61). Enquanto a inibição dos objetivos
pulsionais, transformando-o de prazer genital em prazer afetivo, não altera os objetos
(as pessoas desejadas), a sublimação modifica tanto os objetivos como os objetos,
retirando-os do âmbito do estritamente sexual para o vasto campo da cultura. Na
verdade, como observa Marcuse, tudo aquilo que Freud denomina “destinos (ou
vicissitudes) das pulsões” está à serviço da cultura:

as vicissitudes dos instintos [ou pulsões] são as vicissitudes da engrenagem


mental na civilização. Sua ‘localização’ (fonte) original no organismo e sua
direção básica continuam sendo as mesmas; contudo, seus objetivos e
manifestações estão sujeitos à transformação. Todos os conceitos
psicanalíticos (sublimação, identificação, projeção, repressão, introjeção)
implicam mutabilidade dos instintos [ou pulsões] (Marcuse, Eros e
Civilização, p. 33. Parênteses nossos).

Diante do que acabamos de expor, entende-se que uma boa quota de energia
necessária à civilização é retirada da sexualidade (Cf. MEC, p. 63). A economia social
se fundamenta na economia psíquica, pois sem repressão sexual não há trabalho.

O móvel da sociedade humana é, em última análise, econômico; como não


possui previsões suficientes para manter vivos todos os seus membros, a
147

menos que trabalhem, ela deve limitar o número deles e desviar suas energias
da atividade sexual para o trabalho (CIP III, p. 364s).

Há, portanto, um nítido conflito entre as exigências da civilização e as


exigências sexuais do indivíduo. Freud chega a comparar a atitude da civilização frente
à sexualidade com a exploração das classes oprimidas pela classe dominante (Cf. MEC,
p. 63). A civilização é, assim, uma verdadeira exploradora da energia sexual. As
restrições são tantas que acabam por nivelar as diferenças e impor “um tipo único de
vida sexual para todos”, o que “cerceia em bom número deles, o gozo” e se torna “fonte
de grave injustiça”.

Freud chega a admitir que, longe de estar em desenvolvimento, a vida sexual do


homem civilizado encontra-se em processo de regressão como função, “tal como parece
acontecer com nossos dentes e cabelos” (MEC, p. 63s).

Contudo, não obstante todas estas restrições, há que se reconhecer, em


consonância com o que já expomos acerca da teoria freudiana da libido (cf. p......),
várias saídas psicossociais capazes de conduzir o homem ao reencontro de um certo
grau de felicidade além da repressão. É o caso do amor inibido em seu objetivo (ou em
sua finalidade), da sublimação (que possibilita a filosofia, a ciência e a arte), do trabalho
libidinal, em oposição ao trabalho alienado, e da própria religião, que, como veremos,
pode proteger o homem da enfermidade psíquica. O inimigo número um da felicidade
humana, portanto, não é propriamente a repressão sexual. Mais grave e mais dolorosa é
a repressão à agressividade. “A restrição à agressividade do indivíduo”, afirma Freud,
“é o primeiro e talvez o mais severo sacrifício que dele exige a sociedade” (NCIP, p.
137).

A sociedade civilizada prescreve: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.


Mais exigente ainda, ordena: “Ama os teus inimigos”. Freud se pergunta pelo sentido
de tais máximas - segundo ele, manifestamente impossíveis de serem praticadas -, e
conclui: é tanta e de tal magnitude a destrutividade humana que se tornou necessária a
edificação de tais normas absurdas e inexequíveis, como defesas contra nossos desejos
homicidas173. “Os homens”, pondera Freud, “não são criaturas gentis que desejam ser

173
Convém contrapor às afirmações de Freud, algumas outras de dois grandes clássicos da literatura que
podem trazer alguma luz sobre o significado da proposta cristã de amar os próprios inimigos: “Escreveu
Göethe: ‘um coração que ama alguém, não pode odiar ninguém’; e bem antes dele, Dante, ao falar de sua
Beatriz, disse: quando ela apareceu, ‘não havia mais para mim nenhum inimigo’. Quando esse alguém é
148

amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacados; pelo contrário, são
criaturas entre cujos dotes instintivos [ou pulsionais] deve-se levar em conta uma
poderosa quota de agressividade” (MEC, p. 71).

O próximo é para o homem, não apenas um colaborador ou parceiro sexual, mas


também um indivíduo cujo trabalho pode ser explorado, o corpo torturado, as emoções
violentadas, a vida destruída. Homo homini lupus174.

Contudo, é possível argumentar: estas tendências agressivas, que estão


“presentes em todos os homens”, não seriam antes “o resultado de defeitos nos
regulamentos culturais” do que a razão de ser destes mesmos defeitos? (Cf.FI,p.17s).Há,
inclusive, os que advogam o fim da propriedade privada, para extirpar “a má vontade e
a hostilidade (...) entre os homens”. Freud, porém, nos adverte: “A agressividade não foi
criada pela propriedade. (...) Já se apresenta no quarto da criança, quase antes que a
propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária” (MEC, p. 73).

Já estudamos a teoria da fusão e desfusão das pulsões e tomamos ciência de que


as tendências destrutivas (pulsões de morte) inerentes à vida, são expulsas para o
exterior por Eros e podem ser integradas, como agressividade, à autoconservação e à
sexualidade175. Portanto, longe de ser puramente destrutiva, como às vezes certos textos
de Freud sugerem, a agressividade é a força do amor, o vigor de Eros. Contudo, esta
coesão pulsional pode desintegrar-se, Tânatos pode afastar-se de Eros. Quando isto se
dá? Em que condições a morte triunfa sobre a vida? Esta questão nos coloca em cheio
nas relações entre agressividade, sentimento de culpa e moral, que estudaremos a seguir.

2) A INTROJEÇÃO DA ORDEM MORAL

Deus e Beatriz for figurativa do Absoluto, então se pode compreender que o amor a Deus implica o amor
a todos os que Ele ama, até os inimigos...” (L. Boff, A graça libertadora do mundo, Petrópolis: Vozes,
1977, p. 128).
174
Freud cita Hobbes, o que indica que a tese da maldade original da natureza humana é apenas a
retomada de um tema antigo. Na verdade, a antropologia contemporânea nos mostra que o natural no
homem está em contínuo processo de aculturação. Como observam Laplanche e Pontalis, a originalidade
da teoria freudiana da agressividade deve ser buscada alhures: “... fazendo da autoagressão o próprio
princípio da agressividade, Freud destrói a noção de agressividade, classicamente descrita, e já há muito
tempo, como de relação com outrem, violência exercida sobre outrem” (VP, p. 415). Em outros termos: a
originalidade de Freud não está em afirmar que “o homem é o lobo do homem”, mas que o homem pode
ser o lobo de si mesmo.
175
Consultar p. 238s deste trabalho.
149

A psicanálise foi muito criticada, nos seus primórdios, por só ver o lado sórdido
da existência humana e ignorar o que ela tem de mais “elevado, moral e suprapessoal”.
Freud se defende observando por um lado, que desde o início atribuiu “às tendências
morais e estéticas a função de incentivar a repressão” (EI, p. 48) e, por outro, que não
havia como investigar o sublime do ser humano, quando apenas o recalcado era objeto
de estudo da psicanálise.

É com o advento da noção de superego que emerge o problema moral no


discurso psicanalítico. Esta instância, com efeito, reúne tudo “o que é catalogado como
o aspecto mais elevado da vida humana” e, efetivamente, “representa as exigências da
moralidade”. O sentimento moral de culpa não é mais que a expressão de uma tensão
entre o ego e o superego (Cf. NCIP, p. 86; 79).

Em contraste com a vida sexual humana, a consciência moral não existe desde o
início. “As crianças de tenra idade são amorais (...). O papel que mais tarde é assumido
pelo superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pelos pais” (NCIP, p.
80).

Já vimos como se dá esta introjeção da autoridade paterna. Com esta autoridade,


porém, é a própria ordem moral que é interiorizada. Inicialmente a criança obedece aos
pais por temor de castigo, em especial, o pior dos castigos: a perda do amor. Pouco a
pouco ela interioriza as normas, sendo capaz de obedecer na ausência dos pais. A partir
de então, “o superego ameaça o ego, exatamente da mesma forma como anteriormente
os pais faziam com a criança” (NCIP, p. 81)176.

A introdução na ordem moral exige da criança um sacrifício libidinal


imensamente penoso.

O florescimento precoce da vida sexual infantil está condenado à extinção


porque seus desejos são incompatíveis com a realidade (...). Esse
florescimento chega ao fim nas mais aflitivas circunstâncias e com o
acompanhamento dos mais penosos sentimentos (APP, p. 32).

A ruptura da relação da criança com a mãe – “o maior trauma” da existência


humana (Cf. EP, p. 110) – deixa marcas profundas e irremovíveis. Mas é desta ferida
176
“Este desenvolvimento, pelo qual as lutas originalmente conscientes com as exigências da realidade
(os pais e seus sucessores na formação do superego) se transformam em reação automática e inconsciente,
é da máxima importância para a civilização (...). A adesão a um status quo ante é implantada na estrutura
instintiva. O indivíduo se torna instintivamente [ ou pulsionalmente] re-acionário – tanto no sentido literal
como no figurativo” (Marcuse, Eros e Civilização, p. 49).
150

dolorosa, desta terrível frustração que emerge o humano no homem. Ao recalque,


segue-se a sublimação. “A transformação da libido de objeto em libido narcísica
obviamente implica um abandono de objetos sexuais, uma dessexualização – uma
espécie de sublimação portanto” (EI, p. 42). Freud se pergunta se este processo, quer
dizer, a substituição da escolha de objeto (libido objetal) pela identificação (libido
narcísica), não seria “o caminho universal á sublimação” (EI, ibid.).

Contudo, se a sublimação, por um lado, é benéfica à sexualidade, por outro, cria


condições para a liberação da agressividade. Com efeito, “após a sublimação, o
componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com
ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à
destruição” (EI, p. 69).

A agressividade inerente ao ser humano, inicialmente fundida à libido177,


desliga-se desta e passa a atuar por si mesma. Enquanto a sexualidade sublimada, apesar
dos penosos sacrifícios exigidos ao ser humano, tem um destino feliz: cria cultura (Cf.
MEC, p. 56), a agressividade, dissociada de Eros, introduz a destruição, que pode tanto
voltar-se para fora como para dentro, transformando-se, então, neste último caso, em
sentimento de culpa.

Vejamos mais de perto esta interiorização da agressividade e suas


consequências. De que meios se serve a civilização para inibir a agressividade, que,
totalmente liberada, poderia destruí-la? Como cada indivíduo torna seu poder destrutivo
inofensivo à civilização? Simplesmente, retorna sua agressividade para o lugar de
origem, direciona-a no sentido do ego, numa palavra, interioriza-a. Uma parte do ego –
o superego – coloca-se contra si mesmo e, sob a forma de consciência, “está pronta para
por em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de
satisfazer sobre outros indivíduos a ele estranhos” (MEC, p. 84). Surge, então, o
sentimento de culpa que se expressa sob a forma de “necessidade de punição”.

Em relação a quê as pessoas se sentem culpadas? A resposta parece ser: o


sentimento de culpa surge da intenção de se concretizar um ato que a consciência
considera como mal (e não necessariamente da realização do ato). O que é o mal? Não
existe uma capacidade inata de julgar o bem e o mal moral. A consciência (a faculdade

177
Sobre a teoria da fusão e desfusão das pulsões consultar p. 239s deste trabalho.
151

do juízo moral) e o imperativo categórico (Kant) surgem num determinado momento da


evolução da personalidade, a saber, com o declínio do complexo de Édipo e a formação
do superego (Cf. NCIP, p. 80 e EI, p. 41). Mal e bem absolutos não existem. Do ponto
de vista psicanalítico, mal “é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir
ameaçados. Por medo dessa perda, deve-se evitá-lo” (MEC, p. 85s).

Os valores morais, portanto, revelam-se originariamente à vida afetiva. A


compreensão crítica e reflexiva destes valores só surge muito tempo depois. Na maioria
dos casos, porém, o comportamento moral é ideológico e acrítico (Cf. Fromm, 1974, p.
20).

Ao se submeter, graças aos mecanismos da identificação, introjeção e


sublimação à ordem moral, o ser humano, conforme ressaltamos acima, realiza um
imenso sacrifício libidinal. As frustrações oriundas da repressão desenvolvem na
criança “uma quantidade considerável de agressividade contra a autoridade”. Esta
agressividade, porém, não pode escoar-se livremente: também ela deve ser inibida.
Portanto, dupla insatisfação para a criança: sexual e agressiva. A agressividade
reprimida, não podendo ser liberada, volta-se contra o ego (Cf. MEC, p. 91).

Observe-se que a agressividade do superego não representa a agressividade que


emana dos pais (objeto da agressão), mas antes “nossa própria agressão para com eles”
(MEC, p. 92). Quer dizer, é a própria agressividade da criança que se expressa
mascaradamente na agressão do superego ao ego. Por conseguinte, quanto maior a
agressividade para com a autoridade paterna e seus derivados, maior poderá ser também
a agressividade do superego para com o ego. Por isto mesmo, as pessoas tidas como
santas são as mais severas para consigo mesmas. Com efeito, se nelas a frustração dos
desejos é maior, maior será também a tendência destrutiva, a qual, em lugar de se dirigir
à autoridade, transforma-se em autodestruição. Daí os “santos” se considerarem sempre
como grandes pecadores (Cf. MEC, 87 e 90).

Ressalte-se, ainda, que a severidade do superego não corresponde à severidade


dos pais. Ao contrário, pais muito brandos podem intensificar a severidade do superego,
pois, nestes casos, a criança não tem como escoar sua agressividade senão para dentro
de si mesma (como agredir pais tão bons e amáveis?). Experiências demonstram que
delinquentes, por serem desprovidos de amor paterno, não apresentam qualquer conflito
152

do ego com o superego: a totalidade de sua agressividade volta-se para fora. (Cf. MEC,
p. 92, nota).

A agressividade, transfigurada em sentimento de culpa e de autopunição,


“representa uma grande desvantagem econômica na construção de um superego” (MEC,
p. 89). Com efeito, enquanto a sublimação “constitui um aspecto particularmente
evidente do desenvolvimento cultural” (MEC, p. 56), o destino da agressividade é
transformar “uma ameaça de felicidade externa” numa “permanente infelicidade interna,
pela tensão do sentimento de culpa” (MEC, p. 89). O sentimento de culpa instala um
mal estar permanente e quiçá insolúvel na civilização.

“Pobre ego!”, exclama Freud. Além de se ver limitado pelo desprazer da


realidade e pelas exigências pulsionais do id, o ego deve submeter-se ao severo
superego, “que estabelece padrões definidos para sua conduta, sem levar na mínima
conta suas dificuldades relativas ao mundo externo e ao id ...”. Temos de reconhecer,
portanto, com Freud: “‘A vida não é fácil!’ Se o ego é obrigado a admitir sua fraqueza,
irrompe em ansiedade – ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade
moral referente ao superego e ansiedade neurótica referente à força das paixões do id”
(Cf. NCIP, p. 99s).

3) A ILUSÃO RELIGIOSA

Segundo as ideias religiosas, a alma é imortal, Deus é onisciente, onipotente e


previdente e a justiça será plenamente realizada numa vida futura, post-mortem: os
maus serão condenados e os bons, salvos (Cf. FI, p. 31) 178. Tais concepções são
transmitidas de geração a geração e assimiladas pelos indivíduos “como a tabuada de
multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. Por serem supostamente de
origem divina, não podem ser questionadas ou discutidas: ninguém ousa colocar em
dúvida o que o próprio Deus revelou aos homens (Cf. FI, p. 33s)179.

178
Tais ideias, que “passaram por um longo processo de desenvolvimento”, só são válidas para as
religiões ocidentais, especialmente as cristãs (Cf. FI, p. 31).
179
Rubens Alves, comentando este sumário da religião elaborado por Freud, observa: “... descrever a
experiência religiosa tomando suas cristalizações institucionais e dogmáticas como ponto de referência é
o mesmo que tentar compreender a vida através do cadáver. Existe um abismo entre as formas reificadas
da religião e a experiência que lhes deu origem. Poder-se-á compreender o amor pela instituição do
casamento? (...) O mesmo podemos dizer da infinita distância que separa a experiência religiosa,
essencialmente emocional e existencial, dos objetos que eventualmente surgiram desta experiência”
(Alves, 1975, p. 98).
153

Na verdade, segundo Freud, não obstante serem proclamadas como


ensinamentos, as ideias religiosas não podem ser comprovadas empiricamente: “são
ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O
segredo de sua força reside na força desses desejos” (FI, p. 43).

Para se delimitar o estatuto epistemológico da ilusão, convém diferençá-la do


erro.
A crença de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem no esterco (...) era um erro
(...). Por outro lado, foi uma ilusão de Colombo acreditar que descobriu um novo
caminho marítimo para as Índias (...). O que é característico das ilusões é o fato de
derivarem de desejos humanos. (FI, p. 43s)

A ilusão é mascaramento do real, ao passo que o erro é falha no conhecimento


do real. A ilusão pode impedir o desvelamento do objeto, já o erro é um componente do
saber científico, uma etapa importante na constituição da ciência. A ilusão talvez seja
um primeiro momento necessário, que pode até orientar descobertas futuras180.
Contudo, na medida em que se torna um obstáculo epistemológico, deve ser
ultrapassada, isto é, reconhecida como tal, para dar origem ao saber científico.

As ideias religiosas não podem ser demonstradas nem refutadas, quer dizer, não
pertencem ao corpo do saber científico, o que, aliás, diga-se de passagem, não é a
pretensão delas. Justamente por isto, ninguém é obrigado a crer ou a descrer. Com esta
constatação, porém, Freud não pretende nem de longe legitimar o ato de fé. “Nenhuma
pessoa sensata”, afirma ele, “pode contentar-se com fundamentos tão débeis para suas
opiniões” 181 (Cf. FI, p. 45).

A ilusão religiosa fantasia a realidade e toma como real o que é apenas produção
imaginária. Neste sentido distingue-se tanto da arte como da ciência. Tal como a criação
artística, a religião é uma satisfação substitutiva, que visa tornar a vida mais suportável
(Cf. MEC, p. 31). Todavia, enquanto as fantasias estéticas mantêm-se afastadas do real,
tendo o artista plena consciência da distinção entre os dois registros (Cf. ECD, p. 150), a
ilusão religiosa equivale a um “delírio de massa”, à correção de um aspecto insuportável

180
Demonstrando acreditar que a ciência possa um dia criar um mundo mais humano, Freud pondera:
“talvez as esperanças que confessei sejam de natureza ilusória”, mas “minhas ilusões não são como as
religiosas, incapazes de correção. Não possuem o caráter de um delírio” (FI, p. 67).
181
Freud reconhece que o ato de fé é um ato livre, uma decisão, que ultrapassa o domínio da verificação
científica. Contudo, considerando muito mal fundadas as concepções religiosas, admite que só os
insensatos lhes possam dar adesão. Esta afirmação, um tanto apressada, não resiste à verificação. Quer
sejamos religiosos ou não temos de reconhecer que inúmeros sábios (Pascal, Pasteur, Einstein, por
exemplo) têm aderido incondicionalmente aos ensinamentos religiosos ou pelo menos à crença em Deus
ao longo da história.
154

do mundo por ação de um desejo que identifica o imaginário com o real (CF. MEC, p.
38 e 42). Na medida em que o artista trabalha suas fantasias e as distingue do real,
permanece aberto o espaço para o saber científico. A ciência, portanto, não é
incompatível com a arte e sim com a religião, pois esta última, confundindo o real com
as fantasias, interfere no saber objetivo, impedindo o avanço do conhecimento182.

Além de corresponder a desejos arcaicos, prementes e poderosos, as ideias


religiosas correspondem, também, a exigências de ordem prática. O pensamento,
observa Freud fazendo eco a Marx, não é “simplesmente a expressão de uma
curiosidade desinteressada”, mas “possui motivos práticos” (Cf. FI, p. 34). O homem
criou a civilização para se defender da natureza. Em grande parte já alcançou este
objetivo. Mas ainda há muito que fazer: terremotos, inundações, doenças e a própria
morte continuam a ameaçá-lo (Cf. FI, p. 27). Nos primórdios, bem antes do advento da
sociedade tecnológica, como se defendia o homem dos poderes superiores da natureza e
do destino? Num primeiro momento, ele humanizou as forças naturais, criando deuses.
Se a natureza é composta de seres semelhantes aos homens, pode-se conviver com ela
da mesma forma como nos relacionamos na vida social. Quer dizer, nesta perspectiva, é
possível tratar as forças naturais como seres que nos são familiares e não como
entidades estranhas, ameaçadoras e incontroláveis (Cf. FI, p. 28).

Esta atitude frente à natureza equivale à relação da criança para com o pai. Há
uma perfeita correspondência entre o desamparo infantil diante da vida e o desamparo
do adulto frente à natureza. É este último que gera as ideias religiosas em consonância
com o “complexo paterno”183.

Como se sabe, inicialmente cabe à mãe nutrir e proteger o recém-nascido. Ela é


o primeiro objeto de amor da criança. “Nesta função (de proteção) a mãe é logo
substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância” (FI, p.
36). O pequeno mantém para com o pai uma atitude ambivalente, isto é, um misto de
amor e ódio, de temor e admiração. Esta atitude se prolonga na relação com os deuses e,
no monoteísmo, com o Deus-Pai.

182
“Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes
intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação
religiosa que tem grande parte da culpa por esta relativa atrofia?” (FI, p. 61).
183
“Expressão usada por Freud para designar uma das principais dimensões do complexo de Édipo: a
relação ambivalente com o pai” (VP, p. 123).
155

A impressão terrificante do desamparo na infância despertou a necessidade


de proteção – de proteção através do amor –, a qual foi proporcionada pelo
pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou
necessário aterrar-se à existência de um pai, dessa vez, um pai mais
poderoso”. (FI, p. 43)

É, portanto, o desejo de um pai, ou antes, de um superpai que gera tanto os


deuses da antiguidade como o Deus da tradição judaico-cristã. Em ambos os casos, os
seres sobrenaturais protegem o justo e castigam o ímpio e, por isto, são amados e
temidos, admirados e invejados.

Ao criar deuses (ou Deus) a mente humana opera de modo análogo ao que
conduz à produção do sonho. Assim, por exemplo, se alguém durante o sono é tomado
por um pressentimento da morte, a elaboração onírica pode transformar “esse terrível
evento numa realização de desejo: aquele que sonha vê-se a si mesmo numa antiga
sepultura etrusca a que desceu, feliz, por satisfazer seus interesses arqueológicos” (FI, p.
28). O desejo transfigura a perturbadora experiência da proximidade da morte numa
situação atraente e agradável. A ilusão religiosa opera uma metamorfose análoga:
transforma a insegurança do destino numa experiência aconchegante, guiada e protegida
pela providência divina.

Dissemos que as ideias religiosas têm um caráter prático. Agora já estamos em


condições de enunciar a tríplice função da religião: 1ª) exorcizar os temores da natureza;
2ª) reconciliar os homens com a crueldade do destino (particularmente com a morte); 3ª)
compensá-los pelos sofrimentos e privações exigidas pela civilização (em especial, o
recalque das pulsões sexuais e a inibição da agressividade) (Cf. FI, p. 29).

Pouco a pouco os homens começaram a aceitar o destino (Moira, na Grécia)


como mais poderoso que os próprios deuses e, assim, a limitar a atividade destes à
última função indicada (3ª), que tem uma dimensão social. A esfera do divino se
vinculou, então, fortemente à esfera da moralidade (Cf. FI, p. 30). Sob este aspecto,
aliás, a religião tem prestado relevantes benefícios à civilização (Cf. FI, p. 50).

As ideias religiosas, portanto, surgiram “da necessidade que o homem tem de


tornar tolerável seu desamparo” e foram construídas “com o material das lembranças do
desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (FI, p. 30).
156

Freud compara o comportamento religioso com os sintomas obsessivos.


Vejamos de que modo esta analogia pode ser estabelecida. Ao se introduzir na cultura, a
criança passa necessariamente por uma fase neurótica. Isto ocorre porque as suas
exigências pulsionais não podem ser evitadas mediante o emprego racional do intelecto,
mas somente através de meios repressivos, o que gera a ansiedade. A maior parte das
neuroses infantis (inclusive as obsessivas) é superada no decorrer do desenvolvimento
do indivíduo e somente em alguns casos os sintomas permanecem no adulto, embora,
possam ser eliminados pela análise. Assim como se pode detectar no homem adulto
resíduos de uma neurose infantil, é possível descobrir no homem civilizado
remanescentes de experiências vividas num passado remoto. Parece “que a humanidade
como um todo, em seu desenvolvimento através de eras, tombou em estado análogo as
neuroses” (FI, p. 57), pois as renúncias pulsionais exigidas pela civilização não podiam
contar com a razão para se efetivarem, mas somente com as emoções. Daí ser lícito
conceber a gênese e estrutura da religião de modo análogo à gênese e estrutura do
sintoma. “Os ensinamentos religiosos são relíquias neuróticas” (FI, p. 58), assevera
Freud. Tal como a neurose infantil, a religião deriva do complexo de Édipo. Na verdade,
“o pai primevo constitui a imagem original de Deus, o modelo a partir do qual as
gerações posteriores deram forma à figura de Deus” (Cf. FI, p. 56) 184. Comparando-se o
cerimonial obsessivo185 com o ritual religioso, e levando-se em conta o caráter privado e
altamente individual do primeiro e o caráter público e universal do segundo, é possível
descrever “a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose
obsessiva universal” (Cf. AOPR, p. 130). Assim como a superação da neurose
individual exige o apelo à razão e à realidade, encarnadas na pessoa do analista, a
superação da religião, esta neurose social, só se efetiva por meio do conhecimento
objetivo ou científico186. A era da razão estabelecerá por si, naturalmente dentro dos
limites em que a realidade externa (Ananké) o permitir, os mesmos objetivos que o
crente espera de Deus. O ser supremo, criado à imagem e semelhança do pai, será
substituído por logos, a razão científica. “Nosso Deus, logos”, diz Freud, “atenderá
todos os desejos que a natureza a nós externa permita...” (FI, p. 68).

184
Conforme veremos na próxima seção, Freud forjou a hipótese audaciosa de um Édipo histórico, ou
seja, do assassinato do pai primevo.
185
O neurótico se sente obrigado a realizar certos atos aparentemente absurdos, como lavar-se várias
vezes durante o dia, dispor os objetos do quarto e da cama numa certa ordem antes de dormir, não provar
certos alimentos ou não tocar em certos objetos etc, etc. (Cf. pp ..... deste trabalho).
186
“Chegou a hora, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da repressão pelos
resultados da operação racional do intelecto” (FI, p. 58).
157

Freud, contudo, não deixa de reconhecer os limites desta analogia entre neurose
e comportamento religioso. “É fácil perceber onde se encontram as semelhanças entre
cerimoniais neuróticos e atos sagrados do ritual religioso (...). Mas as diferenças são
igualmente óbvias, e algumas tão gritantes que tornam qualquer comparação um
sacrilégio” (AOPR, p. 123).

Entre as diferenças mais significativas podemos ressaltar: 1ª) o caráter privado


dos sintomas e o caráter público e comunitário das práticas religiosas; 2ª) o sem-sentido
aparente dos atos obsessivos e o sentido simbólico que atravessa, em todos os
momentos, os mínimos detalhes das cerimônias religiosas; 3ª) O caráter doloroso
(desprazer) dos sintomas e o “alívio enorme para a psique individual” (FI, p. 43),
alcançado pelas práticas religiosas. Na verdade, as pessoas de fé são protegidas do risco
de enfermidade mental: “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de
elaborar uma neurose pessoal” (FI, p. 58).

Os dois fenômenos, portanto, por mais que se aproximem entre si, são
irredutíveis um ao outro, devendo reconhecer-se a cada um sua especificidade. Freud
parece admitir isto com maior clareza ainda, quando, em Totem e Tabu, ampliando os
termos da comparação, observa:

As neuroses, por um lado, apresentam pontos de concordância notáveis e de


longo alcance com as grandes instituições sociais, a arte, a religião e a
filosofia. Poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma
obra de arte, que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que
um delírio paranoico é a caricatura de um sistema filosófico. A divergência
reduz-se, em última análise, ao fato de as neuroses serem estruturas associais;
esforçam-se para conseguir, por meios particulares, o que na sociedade se
efetua através do esforço coletivo (TT, p. 89).

Quer dizer, o ser humano, ao longo de um penoso e lento trabalho coletivo,


conseguiu criar meios para superar seus distúrbios psíquicos e a ansiedade que os
acompanha, desenvolvendo a criação de objetos estéticos, doutrinas religiosas e
sistemas filosóficos. O neurótico, contudo, permanece à margem destas grandes
soluções culturais. Seu destino individual é consumido pelo conflito permanente entre o
desejo e a interdição, conflito cuja tragicidade se manifesta no sintoma.

Freud, como se sabe, é ateu, mas reconhece que o desejo humano é


fundamentalmente desejo de Deus, ou melhor, daquilo que ele representa: um Pai Todo
Poderoso. “Seria muito bom se existisse um Deus que tivesse criado o mundo, uma
158

Providência benevolente, uma ordem moral no universo e uma vida posterior; constitui,
porém, fator bastante notável que tudo isso seja exatamente como estamos fadados a
desejar que seja” (FI, p. 46).

Aliás, no seu entender, a questão do sentido da existência humana só pode ser


colocada no âmbito da religião: “Dificilmente incorremos em erro ao concluirmos que a
ideia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso”
(MEC, p. 32).

Com estas observações Freud não pretende nem de longe aderir aos
ensinamentos religiosos. Ele admite que tanto o ateu quanto o crente vivem a
experiência do desamparo, da impotência e da insignificância do homem frente à vida e
ao universo. Contudo, enquanto o crente, regredindo psiquicamente à infância, recorre á
ilusão religiosa, o ateu “não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno
papel que os seres humanos desempenham no grande mundo” (FI, p. 46). Freud,
portanto, como observa Berger, adota uma atitude estoica frente à religião.

Quase não se precisa dizer que este tipo de estoicismo merece o mais
profundo respeito e, de fato constitui uma das mais impressionantes atitudes
de que o homem é capaz. A coragem tranquila de Freud frente à barbárie
nazista e em sua própria doença pode ser citada como um primoroso exemplo
desta realização humana.

Contudo, continua o autor,

parece haver uma esperança recusadora da morte no próprio cerne de nossa


humanitas. Enquanto a razão empírica indica que esta esperança é uma
ilusão, há algo em nós que, embora envergonhado numa época de
racionalidade triunfante, continua a dizer “não!” às contínuas explicações tão
plausíveis da razão empírica. (Berger, 1973, p. 88)

Este “algo” a que se refere o sociólogo é bem conhecido de Freud e dos


psicanalistas em geral: trata-se do desejo. Não deixa de ser estranho que em O futuro de
uma ilusão, o mesmo autor de A interpretação dos Sonhos, impregnado da ideologia
positivista e evolucionusta, faça uma verdadeira apologia da razão científica e conceba
o homem segundo o modelo metafísico, isto é, como animal racional. Ora, uma das
principais contribuições da psicanálise é mostrar que a existência é desejo e que o objeto
do desejo não é real, mas imaginário e simbólico, e isto de tal forma que, afinal, o que
conta para o homem não é a realidade empírica, mas o que Freud denominou realidade
159

psíquica, isto é, o desejo e seus fantasmas187. Não são os fatos que determinam a
maneira humana de ser, mas “os fatos transfigurados pela emoção. O homem é um
sonhador, mesmo acordado. Esta é uma das contribuições mais importantes do pai da
psicanálise para a compreensão do enigma do homem” (Alves, 1975, p.22).

Camus certa vez observou: “O homem é a única criatura que se recusa a ser o
que é”. Ora, como conceber a imaginação humana senão como a recusa do real, a
revolta contra a facticidade, a afirmação enfática de que o que não é deve ser? “A
imaginação é a consciência de uma ausência, a saudade daquilo que ainda não é, a
declaração de amor pelas coisas que ainda não nasceram” (Alves, op. cit., p.19). Pois
bem, a religião se inscreve no registro da imaginação. Como sustenta oportunamente
Rubens Alves na esteira de Ludwig Feuerbach e do próprio Freud, “ as entidades
religiosas são entidades imaginárias” (Alves, 1981, p. 30). A experiência religiosa – e
não as instituições que a sufocam – nos fala originariamente não de objetos externos,
nem mesmo do próprio Deus, mas das profundezas do coração humano: “A verdade da
religião não está na infinitude do objeto, mas antes na infinitude da paixão” (op. cit.,
p.27). Freud percebeu isto muito bem. O desejo se estrutura de tal forma que nenhum
objeto real é capaz de preenchê-lo: há sempre um déficit entre o que ele demanda e o
que efetivamente alcança (Cf. APP, p. 58). Daí os deslocamentos incessantes, as
infinitas substituições imaginárias e simbólicas, porque o verdadeiro objeto jamais é
alcançado. O prazer apenas se anuncia188 nas funções vitais e na própria sexualidade,
mas nunca é totalmente alcançado. Pode-se duvidar da existência de Deus, mas não de
que o desejo humano é fundamentalmente desejo de Deus. O reconhecimento da
existência de Deus, ou melhor, a adesão a esta existência é um ato de fé, de decisão
pessoal, portanto. Como reconhece Freud, “assim como ninguém pode ser forçado a
crer, também ninguém pode ser forçado a descrer” (FI, p. 45). Pascal já o tinha visto
bem antes: o homem religioso é o que aposta na existência de Deus. Ora, esta aposta,
como qualquer outra, não é desprovida de riscos. No jogo da fé, o crente, num lance
decisivo, arrisca sua existência inteira na esperança de ganhar a única coisa que importa
realmente, isto é, o sentido. As certezas da fé não vêm a priori, mas a posteriori, falam
mais ao coração que a razão. Afinal, como Freud nos ensinou, Eros e não logos é o
fundamento da existência.

187
Consultar pp 177s e 188 deste trabalho.
188
Consultar a noção de apoio (p. 195s desta dissertação).
160

4) O ÉDIPO HISTÓRICO

A moral e a religião resultam, em última análise, do complexo de Édipo. Este


momento crucial de nossa evolução – momento em que nos introduzimos na cultura e
nos humanizamos – não tem apenas um caráter pessoal e individual, mas também um
alcance coletivo e histórico. A psicanálise articula a hipótese ontogenética (sobre a
gênese do indivíduo) com a hipótese filogenética (gênese do gênero)189, admite além do
Édipo individual, o Édipo histórico. É no ensaio Totem e tabu (1914) que surge a
audaciosa hipótese de que o ato fundador desta civilização de que tanto nos orgulhamos
é um gravíssimo e hediondo crime: o assassinato do pai primevo.

Freud recolhe alguns dados da antropologia para construir sua hipótese acerca da
origem da cultura. Basicamente, seu propósito é interpretar o fenômeno do totemismo e
os tabus (ou proibições) a ele vinculados. As tribos são compostas de pequenos grupos,
ou clãs, cada um dos quais é denominado segundo seu totem. “O que é um totem? Via
de regra é um animal (comível e inofensivo ou perigoso e temido) e mais raramente um
vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relações
peculiares com todo o clã”.

Não é um indivíduo isolado, mas uma classe de objetos. Por ser “o antepassado
comum do clã”, protege-o e concede-lhe seus favores. Os integrantes do clã estão na
obrigação sagrada de não matar nem destruir o totem. De tempos em tempos são
celebrados festivais, nos quais eles procuram imitar os movimentos e atributos do totem
(Cf. TT, p. 15). Maclennan, em 1869, foi o primeiro a levantar a hipótese de que grande
número de costumes e práticas sociais, comuns em sociedades antigas e modernas, são
remanescentes de um época totêmica (Cf. TT, p. 119).

O que é um tabu? A palavra “tabu” é de origem polinésia e significa o que é


perigoso e proibido, e também o que é sagrado e consagrado. O inverso de “tabu” é
“noa”, quer dizer, o comum, o ordinário. “Assim, ‘tabu’ traz em si um sentido de algo

189
Referindo-se ao caráter regressivo do sonho, que faz ressurgir de alguma forma a infância, Freud
assevera: “Por trás desta infância do indivíduo é-nos prometido o quadro de uma infância filogenética –
um quadro do desenvolvimento da raça humana, do qual o desenvolvimento do indivíduo é, na realidade,
uma recapitulação abreviada, influenciada pelas circunstâncias fortuitas da vida” (IS, p. 585). Esta
perspectiva ontogenética e filogenética endossada por Freud é oriunda, como se sabe, do evolucionismo
positivista peculiar ao século XIX. Constitui, sem dúvida, um elemento ideológico do discurso freudiano.
161

inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições” (TT, p. 32).


Diante do tabu, o primitivo é invadido por uma espécie de “temor sagrado”: sente
atração e repulsa. A proibição-tabu, para nós civilizados, parece absurda e sem
fundamento, mas os primitivos encaram-na como necessária e indiscutível. No entender
de Wundt, o tabu representa “o código de leis não escrito mais antigo do homem” (apud
Freud, TT, p. 32). Os tabus são mais antigos que a crença em deuses e que a própria
religião.

A violação do tabu, mesmo quando involuntária, implica nas mais severas


punições. Não raro um transgressor inocente, a partir do momento em que toma
consciência de seu “crime”, cai em depressão, chegando mesmo à morte. Ele próprio se
torna um tabu. Contudo, por ser transmissível, o tabu pode também ser expulso e o
transgressor purificado mediante ritos adequados (Cf. TT, p. 34-36).

Os principais tabus são os relativos ao totemismo, a saber, as proibições de


matar e destruir o totem e manter relações sexuais com pessoas do mesmo clã. A
interdição do casamento entre indivíduos de um mesmo clã e totem, ou seja, a
instituição da exogamia (Cf. TT, p.17), visa a impedir as relações incestuosas, pois para
o primitivo “o laço totêmico é mais forte do que o de família, em nosso sentido” (TT, p.
125). “Todos os que descendem do mesmo tabu são parentes consanguíneos. Formam
uma família única e, dentro dela, mesmo o mais distante grau de parentesco é encarado
como impedimento absoluto para as relações sexuais” (TT, p. 19). O primitivo,
portanto, “tem um horror excepcionalmente intenso ao incesto”, bem maior do que o do
homem civilizado. Em geral, a violação deste tabu é punida com a morte, mesmo
quando se trata de casos amorosos passageiros (Cf. TT, p. 17s).

Outros tabus, além dos totêmicos, merecem ser lembrados, a saber, os que
regulam as relações dos membros da tribo com os inimigos assassinados, com seus
chefes e governantes e com seus mortos queridos. Consideremos cada um deles.

A alma do inimigo morto deve ser apaziguada e aquele que o matou, por ser
impuro, deve sofrer restrições, realizar individualmente atos de expiação e participar de
cerimônias públicas de purificação (Cf. TT, p. 49s). Como se vê, “os impulsos que
expressam para com um inimigo não são unicamente hostis. São também manifestações
162

de remorso, de admiração pelo inimigo e de consciência pesada por havê-lo matado”


(TT, p. 53).

No que diz respeito às relações com seus governantes, duas normas básicas
orientam a conduta dos primitivos: devem proteger seus chefes e ser protegidos contra
eles. Os governantes são dotados de um poder mágico e misterioso que, transmitido ao
homem comum, provoca-lhe a ruína ou mesmo a morte. Daí a necessidade de isolar os
chefes e sacerdotes do restante da comunidade, necessidade esta que sobrevive ainda
hoje sob a forma do cerimonial de corte. Porém, o isolamento dos governantes não
significa apenas uma proteção contra eles, mas também uma proteção para eles. “A
necessidade de proteger o rei contra toda forma possível de perigo decorre de sua
imensa importância para seus súditos (...). É a sua pessoa que, estritamente falando,
regula todo o curso da existência” (TT, p. 58). Contudo, as homenagens e os cuidados
dedicados aos chefes resultam para estes numa terrível privação de liberdade. Os tabus,
frequentemente, são tão complexos, variados e minuciosos que transformam a
existência dos reis num fardo insuportável, “muito pior que a de seus súditos” (TT, p.
65). Algumas das exigências são tão cruéis que “fazem lembrar as restrições impostas
aos assassinos” (TT, p. 65), a ponto de, não raro, os líderes destas sociedades fugirem
para não assumirem a realeza (Cf. TT, p. 61s).

O tabu sobre os mortos é particularmente incômodo. Uma das principais


proibições a que estão sujeitos os que cuidam ou mantém alguma forma de contato com
os mortos é a de tocar em alimentos, do que resulta a necessidade de serem alimentados
por outras pessoas, sobre as quais também recaem, indiretamente, as restrições do tabu.
As proibições se estendem aos que tocam apenas metaforicamente nos mortos, como,
por exemplo, as viúvas que sofrem (são tocadas) pela ausência do esposo. O nome de
um morto não pode ser pronunciado. Os primitivos “tratam as palavras, em todos os
sentidos, como coisas” (TT, p. 71), de modo que declinar o nome de um morto é o
mesmo que invocá-lo, do que resulta sua presença imediata. Ora, os selvagens são
tomados de um profundo medo dos mortos, cujas almas se transformam em demônios.
Como observa Westermach, para eles “os mortos são mais comumente encarados como
inimigos que como amigos” (apud Freud, TT, p. 74).

Até aqui nos limitamos a apresentar os dados da etnologia, tais como foram
recolhidos por Freud nas mais autorizadas fontes da época, hoje, porém, diga-se de
163

passagem, ultrapassadas. Chegou o momento de seguir Freud em seu empenho para


aproximar os dados da antropologia com os da psicanálise, comparando a proibição-
tabu com o sintoma obsessivo.

Os neuróticos obsessivos sofrem de perturbações psíquicas em tudo análogas ao


comportamento do homem primitivo frente às restrições dos tabus. “Se não estivesse
habituado a descrever essas pessoas como pacientes ‘obsessivos’”, comenta Freud,
“verificaria que a ‘doença do tabu’ seria a expressão mais apropriada para a condição
deles” (TT, p. 40). Tal como ocorre com os tabus, as proibições neuróticas são
destituídas de motivo, “misteriosas” em suas origens, e se introjetam de tal forma na
mente que não necessitam de ameaça externa para serem cumpridas: “há uma certeza
interna, uma convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à desgraça
insuportável” (TT, p. 40). A principal proibição, o núcleo da neurose, diz respeito ao ato
de tocar. Daí a doença ser também conhecida como delire du toucher. Não se trata
apenas de contatos físicos, mas a proibição arrasta consigo até os contatos em
pensamento, ou seja, metafóricos. A analogia com o tabu salta aos olhos. As proibições
deslocam-se de um objeto para outro, de uma pessoa para outra e o mundo inteiro
parece contaminado. Qualquer contato é ameaçador e deve ser evitado (Cf. TT, p. 41).

As proibições obsessivas, como as do tabu, não obstante envolverem


profundamente as pessoas por elas atingidas, podem ser suspensas, desde que certos
atos, que têm um caráter de obrigação, sejam realizados. Esses atos, porém, tal como as
cerimônias vinculadas aos tabus, longe de libertarem o neurótico acabam se tornando
uma nova escravidão. O mais comum dos atos obsessivos é a “mania de lavar-se”. A
purificação pela água é tão importante no ritual obsessivo como nas cerimônias
totêmicas dos povos primitivos.

Generalizando, podemos apontar quatro pontos de concordância entre tabu e


sintoma obsessivo: 1º) a ausência de motivo explícito para proibição; 2º) a
interiorização das proibições; 3º) o fácil deslocamento das proibições para pessoas e
objetos e o risco de contágio; 4º) a necessidade de atos de purificação ou de um
verdadeiro ritual expiatório (Cf. TT, p. 43).

O que diz a psicanálise a respeito da neurose obsessiva? Referimo-nos acima ao


fato de o núcleo da neurose estar ligado à “fobia de contato” (delire de toucher).
164

Consideremos um caso obsessivo típico, em que esta fobia aparece com nitidez. O
paciente na mais tenra infância revelou um forte desejo de tocar em seus órgãos
genitais. Este desejo deparou de pronto com uma proibição externa, que logo foi
introjetada. A proibição, contudo, não abole o desejo, mas o recalca. Tanto a proibição
como o desejo persistem: este, porque foi apenas recalcado; aquela, porque caso fosse
suspensa forçaria o ingresso do desejo na consciência. Cria-se, assim, um conflito
permanente – que pode ser considerado como uma fixação psíquica – entre o desejo e a
interdição.
A principal característica da constelação psicológica que dessa forma se torna
fixa é algo que poderia ser descrito como a atitude ambivalente do sujeito
com um objeto determinado. Ele deseja constantemente realizar esse ato (o
tocar) e o considera seu gozo supremo, mas não deve realizá-lo e também o
detesta (TT, p. 43).

Tanto o desejo inconsciente quanto a proibição se deslocam constantemente:


aquele, para novos objetos e atos que substituem os proibidos; esta, para novos
objetivos que o impulso proibido possa adotar.

Tal como ocorre na obsessão neurótica, os tabus decorrem de antigas proibições


“contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos” (TT, p. 49).
Qual a natureza de tais desejos? O que a psicanálise nos diz a respeito deles? Sigamos
passo a passo o percurso de Freud para responder a esta questão. Os mais antigos tabus
conhecidos vinculam-se ao sistema totêmico e, conforme dissemos, proíbem a
destruição do totem e as relações sexuais com os membros de um mesmo clã. O que
Freud almeja em Totem e Tabu é descobrir os poderosos desejos que estão por detrás de
tais interdições. A interpretação dos tabus totêmicos, porém, deve ser precedida pela
interpretação dos demais tabus, já mencionados, das sociedades primitivas, a saber, os
referentes aos inimigos assassinados, aos chefes e governantes e aos entes queridos
mortos. A investigação destes últimos, como veremos, abre o caminho para a
compreensão dos tabus totêmicos.

As proibições-tabus têm um ponto em comum: a ambivalência emocional. Os


tabus referentes aos inimigos assassinados, por exemplo, revelam, como vimos, que os
primitivos simultaneamente lhes dedicam ódio e admiração. O mesmo se diga do
comportamento da tribo em relação a seus chefes. Conforme mostramos, a proteção aos
governantes indica que estes são honrados e venerados, mas também cerceados em sua
liberdade. O mesmo comportamento se nota nas neuroses obsessivas: a excessiva
165

solicitude para com as pessoas vem acompanhada de uma agressividade latente. Na


verdade, os cuidados apenas mascaram uma rejeição inconsciente.

A hostilidade é (...) feita calar no grito, por assim dizer, por uma
intensificação excessiva da afeição, que se expressa em solicitude e se torna
compulsiva, porque de outro modo seria inadequada para desempenhar a
missão de manter sob repressão a corrente de sentimento contrária e
inconsciente.” (TT, p. 64)190

Em relação aos mortos, observa-se o mesmo mecanismo: os entes queridos, uma


vez mortos, se tornam inimigos temíveis. As perturbações dos neuróticos podem uma
vez mais nos esclarecer a respeito deste comportamento do homem primitivo. Ao
perderem um parente próximo, estes pacientes, não raro, ficam atormentados por
dúvidas atrozes que dizem respeito à possibilidade de eles próprios terem sido os
responsáveis pela morte da pessoa querida. O que significam tais dúvidas? “Em quase
todos os casos em que existe uma intensa ligação emocional com uma pessoa em
particular, descobrimos que por detrás do terno amor há uma hostilidade oculta no
inconsciente” (TT, p. 77);

No primitivo, esta hostilidade latente não se manifesta sob a forma de


sentimento de culpa, mas de projeção. Trata-se de um mecanismo de defesa, presente
tanto na vida psíquica sadia como patológica, pelo qual o indivíduo expulsa de si e
desloca para um outro, pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos ou desejos que ele
desdenha em si (Cf. VP, p. 478). Assim, o primitivo desloca para a alma dos mortos a
hostilidade inconsciente que sempre lhes dedicou em vida. É como se dissessem: não
somos nós que alimentamos sentimentos agressivos contra os mortos, mas, ao contrário,
eles é que nos hostilizam e procuram nos prejudicar de todos os modos, sobretudo no
período de luto (Cf. TT, p. 76s).

Como se pode depreender do que acabamos de expor, há uma forte analogia


entre a estrutura do sintoma obsessivo e a estrutura do tabu191. Em ambos os casos
deparamos com o fenômeno da ambivalência emocional: a agressividade inconsciente
aparece sob a forma de veneração, cuidado excessivo, sentimento de culpa ou projeção.
Estas considerações já nos permitem elucidar os tabus totêmicos. Temos, porém, que

190
Eis aí um exemplo do que Freud denomina formação reativa (consultar p. 127 deste trabalho).
191
Observe-se que a analogia entre o sintoma e o tabu indica, implicitamente, a analogia entre o sonho e o
tabu, pois existe, conforme sabemos, uma grande proximidade entre sonho e neurose. Por detrás de todas
estas manifestações, quer individuais quer coletivas, o que temos é “a realização disfarçada de um desejo
recalcado”.
166

nos referir ainda a algumas descobertas da antropologia para fundamentar com maior
solidez a hipótese do Édipo histórico.

O primeiro dado etnológico que nos interessa é a descrição dos festivais e


refeições totêmicos. Em certos períodos especiais, as proibições-tabus são levantadas e
tudo o que habitualmente não é permitido passa então a ser realizado. Nos festivais
totêmicos, os participantes – vestidos à semelhança do totem, imitando-o em seus
movimento e sons – matam o animal para em seguida devorá-lo cru (sangue, carnes,
ossos). “Um festival”, observa Freud, “é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório,
a ruptura solene de uma proibição (...). O excesso faz parte da essência do festival; o
sentimento festivo é produzido pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido”
(TT, p. 162). Segue-se, porém, à matança e à refeição o luto obrigatório, imposto pelo
temor de uma desforra ameaçadora. Segundo Robertson Smith, o objetivo principal do
luto é “renegar a responsabilidade pela matança” (TT, p. 162).

O segundo dado da etnologia que, sob o aspecto aludido, interessa à psicanálise,


diz respeito ao comportamento sexual do homem primitivo. Freud procura combinar
uma hipótese de Darwin com uma outra de Atkinson. Segundo Darwin, à semelhança
do gorila,

o homem primevo vivia originalmente em pequenas comunidades, cada um


com tantas esposas quantas podia sustentar e obter, as quais zelosamente
guardava contra todos os outros homens (...). Os machos mais novos, sendo
(...) expulsos e forçados a vaguear por outros lugares, quando por fim
conseguiam encontrar uma companheira, preveniram também uma
endogamia muito estreita dentro dos limites da mesma família (Darwin, apud
Freud, TT, p. 146s)

Atkinson viu nesta luta do macho mais forte para possuir com exclusividade as
mulheres do grupo a origem da instituição da exogamia, que inicialmente pode ter sido
expressa nesta lei: “nenhuma relação sexual entre os que partilham de um lar comum”.
Com o advento do totemismo, a lei se transformou em: “nenhuma relação sexual dentro
do totem” (TT, p. 147).

Agora já podemos entender o que a psicanálise tem a nos dizer a respeito dos
tabus totêmicos. Freud observa que “há uma grande semelhança entre as relações da
criança e dos homens primitivos com os animais” (TT, p. 148). Em geral, os pequenos
gostam de animais e se sentem bem entre eles. Vez por outra, porém, esta relação
amistosa é rompida e surge uma fobia por determinado animal. Na maioria das vezes o
167

animal fóbico é doméstico: cavalo, cão, gato, raramente um pássaro e frequentemente


bichos pequenos, como besouro e borboleta. A psicanálise demonstrou que em todos os
casos em que a criança era um menino, “o medo, no fundo, estava relacionado com o
pai e havia sido simplesmente deslocado para o animal” (TT, p. 149). O caso mais
conhecido é o do pequeno Hans, ao qual Freud dedicou um importante ensaio: Análise
de uma fobia num menino de cinco anos (1909). Esta criança tinha fobia a cavalos.
Recusava-se a sair à rua e temia que algum cavalo entrasse em seu quarto para mordê-
la. Na análise, procurou-se inicialmente remover o medo que o menino sentia pelo pai.
Uma vez recuperada a situação de confiança entre o filho e o pai, evidenciou-se que a
criança expressava em sua fobia o desejo inconsciente da ausência do pai (em viagem
ou morte). O pequeno Hans, diz Freud, “encara o pai (como deixou bem claro) como
um competidor nos favores da mãe, para quem eram dirigidos os obscuros prenúncios
de seus desejos sexuais” (TT, p. 150). O complexo de Édipo – que Freud concebe como
complexo nuclear das neuroses – se revela aqui em toda sua força192.

A relação da criança para com o pai na situação edipiana, conforme vimos193,


não é simples, linear, mas extremamente complexa. O ódio pelo pai resulta do amor da
criança pela mãe. Contudo, a relação filho-pai não se limita à disputa do afeto feminino.
O pai, até o episódio edipiano, é admirado e amado. Daí a ambivalência emocional: o
menino simultaneamente odeia e ama o pai, alimenta temores e admiração por ele. Ora,
nos casos patológicos a que nos referimos, a ambivalência é deslocada para o animal
fóbico. A criança, ao mesmo tempo, odeia o animal, que é visto como um inimigo, e o
admira, chegando a imitá-lo, ou seja, a identificar-se com ele.

Transpondo estes dados clínicos para a interpretação dos tabus totêmicos, Freud
nos diz:

A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do


pai (...). A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o
complexo-pai em nossos filhos e com tanta frequência persiste na vida adulta,
parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai
(TT, p. 163).

A ambivalência emocional aparece nitidamente nos festivais totêmicos, quando


a proibição da morte do animal é suspensa e a matança se torna simultaneamente uma
ocasião de festa e de luto, de alegria e dor. Se admitirmos que o totem representa o pai,

192
Consultar, acima, p. 125s.
193
Consultar, acima, pp. 148-162.
168

os dois tabus – não matar o totem e não desposar as mulheres do mesmo totem –
equivalem a proibição dos dois crimes de Édipo. Ao que tudo indica, portanto, “o
sistema totêmico (...) é um produto das condições em jogo do complexo de édipo” (TT,
p. 153).

Contudo, ainda não satisfeito com os resultados alcançados, Freud se esforça


para confirmar sua hipótese com um fato real e histórico. Articulando as sugestões de
Darwin e Atkinson acima referidas, afirma:

A tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos


contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos-pai
ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o
pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e
aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. (TT, p. 165)

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e
devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram
a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido
impossível fazer individualmente (...). O violento pai primevo fora sem
dúvida o temido e invejado modelo de cada um (...); e, pelo ato de devorá-lo,
realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de
sua força. A refeição totêmica (...) seria assim uma repetição e uma
comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas
coisas: da organização social, das restrições morais e da religião. (TT, p. 164)

Contudo, não obstante a aparente vitória dos filhos, o verdadeiro vencedor foi o
pai. “O pai morto”, diz Freud lapidarmente, “tornou-se mais forte que o fora vivo” (TT,
p. 165). Com efeito, satisfeito o ódio e o desejo de vingança, o amor que até então
estivera reprimido, retornou sob a forma de remorso e sentimento de culpa. Por ser
impossível a cada um dos filhos ocupar o mesmo lugar do pai na posse de todas as
mulheres do grupo e por desejarem aliviar a consciência culposa, os filhos rebeldes
renunciaram ao que tão arduamente tinham conquistado e introjetaram a lei do pai,
instituindo a interdição do incesto e a proibição de matar o totem, o substituto do pai
assassinado. “Dessa maneira, salvaram a organização que os tornara fortes” (TT, p.
166s).

A sociedade humana, tal como a conhecemos hoje, se fundamenta, assim, “na


cumplicidade de um crime comum”. Com efeito, a organização social deriva da lei
contra o incesto; a religião, dos sentimentos filiais de gratidão, culpa e obediência diante
do totem (Cf. TT, p. 167); a moralidade, da proibição do fratricídio, o qual se articula
com a proibição de matar o totem, o substituto do pai: “Garantindo (...) a vida uns dos
169

outros, os irmãos (...) estavam evitando a possibilidade de uma repetição do destino do


pai” (TT, p. 168).

Aqueles que estranham que um crime possa estar na origem de nossa civilização
ou que duvidam da veracidade do assassinato do pai primevo, Freud adverte: “O
simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia plena de desejo
de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o
totemismo e o tabu” (TT, p. 183).

Não obstante esta hipótese referente à origem da sociedade humana apoiar-se em


dados estranhos à psicanálise e, em grande parte, superados, é preciso reconhecer e
situar o seu valor no discurso psicanalítico. Depois de se referir às duras críticas sofridas
por Freud por causa desta reconstrução audaciosa da pré-história da humanidade,
Marcuse, por exemplo, observa:

Usamos a especulação antropológica de Freud apenas neste sentido: pelo seu


valor simbólico. Os eventos arcaicos que a hipótese estipula poderão estar
para sempre fora do alcance da verificação antropológica; as consequências
alegadas desses eventos são fatos históricos, e a sua interpretação, à luz da
hipótese de Freud, empresta-lhes um significado até hoje omitido, que aponta
para o futuro histórico. Se a hipótese desafia o senso comum, proclama, no
entanto, à sua revelia, uma verdade que esse mesmo senso comum tem sido
treinado a esquecer (Eros e civilização, p. 70).

Esta verdade é a de que a sociedade humana foi organizada, e continua sendo,


por dominação.

Na verdade, é no registro mítico que se deve ler Totem e tabu. Freud


utilizou, além dos dados etnológicos, um farto e complexo material clínico, constituído
pelas fantasias de seus pacientes, para construir o mito do assassinato do pai primevo.
Para Serge Leclaire, este mito representa “o assassinato da função do Pai”, isto é, do pai
genitor (o que gera o corpo erógeno da criança), guardião da lei (protege contra o
mundo e, sobretudo, contra a mãe), fruidor (extrai o gozo da mãe e das mulheres e
detém a possibilidade de interditá-las) e iniciador (guarda em seu poder a possibilidade
de acesso ao mundo do gozo, como castrador) (Cf. Leclaire, 1979, p. 23)194.

194
Infelizmente não temos condições aqui – pois ultrapassaria nossos objetivos – de desenvolver a
interessante perspectiva aberta por Leclaire na obra citada. Lembramos apenas que para este autor a
função do pai assegura a clivagem entre o corpo biológico (universal) e o corpo erógeno (singular) (Cf.
op. cit. p. 23-28).
170

5) A LIBERTAÇÃO PELA ARTE

Já sabemos que nosso psiquismo é movido por desejos ou, na expressão de


Freud, que o “âmago do nosso ser é desejar”. Temos ciência, também, de que o objeto
capaz de realizar provisoriamente nossos desejos não é real, mas antes, como diria
Lacan, imaginário e simbólico. A realidade, para o homem, é sempre afetada da
qualidade “psíquico”: é aí que nos movemos, existimos e somos. Quer dizer, a realidade
não nos aparece nua e crua, mas modelada por nossos fantasmas. “O que perturba e
alarma o homem”, diz Epiteto, “não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias a
respeito das coisas”. Segundo Freud, é nessa dinâmica do desejo e da fantasia que se
inscreve também a obra de arte:

Um artista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque não


pode concordar com a renúncia à satisfação instintual [ou pulsional] que ela
em princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosos
completa liberdade na vida de fantasia. Todavia encontra o caminho de volta
deste mundo de fantasia para a realidade fazendo uso de dons especiais que
transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo, que são
valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade. (DPFM, p.
174)

Sabemos que o inconsciente psicanalítico é dinâmico e produtivo. As


representações recalcadas não permanecem estáticas no inconsciente, mas produzem
vários derivados ou rebentos. Sabemos também que dentre tais rebentos existem alguns
que pertencem tanto ao inconsciente como ao pré-consciente/consciente. Tais estruturas
mistas são, justamente, as fantasias (ou fantasmas).

Com a introdução do princípio de realidade, apenas uma das funções secundárias


permanece subordinada apenas ao princípio do prazer. “Esta atividade é o fantasiar, que
começa já nas brincadeiras infantis e posteriormente, conservadas como devaneio,
abandona a dependência de objetos reais” (DPFM, p. 171s). No domínio da fantasia,
todos os desejos podem ser realizados: os limites do real desabam e o prazer,
finalmente, triunfa.

Há que se diferençar as fantasias estéticas das fantasias neuróticas, não obstante


a estrutura comum que as une. “Quando as fantasias se tornam exageradamente profusas
e poderosas, estão assentes as condições para o desencadeamento da neurose ou da
psicose” (ECD, p. 154). Contudo, este imaginário prodigioso e complexo se, por um
lado, representa a desgraça do neurótico, por outro, é a salvação do artista.
171

Nós leigos sempre sentimos uma intensa curiosidade (...) em saber de que
fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como
consegue impressionar-nos com o mesmo e desperta-nos emoções das quais
talvez nem nos julgássemos capazes. (ECD, p. 149)

Ora, a matéria prima da produção estética são, sem dúvida, as ricas e prodigiosas
fantasias do artista.

O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de
fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o
mesmo e a realidade. (ECD, p. 150)195

Enquanto o neurótico mantém suas fantasias trancadas a sete chaves no


inconsciente196, o artista é capaz de direcionar seus rebentos pulsionais, trabalhar seus
fantasmas e transformar o imaginário no simbólico. Do ponto de vista psicanalítico,
portanto, a linguagem estética tem uma função eminentemente terapêutica: libertar as
fantasias enclausuradas no inconsciente. O artista é aquele que produz beleza ali onde se
esperava o sintoma197.

A capacidade de fantasiar o real, como se vê, encontra-se tanto no neurótico e no


homem comum como no artista. Contudo, enquanto as fantasias dos dois primeiros,
quando reveladas, geram vergonha e repulsa, o devaneio deste último, tornado público,
provoca um prazer singular (Cf. ECD, pp 151, 157s). É exatamente ali onde o artista
trabalha seu imaginário, transformando-o em objeto de prazer estético, que reside o
núcleo mais essencial e, também, o mistério da obra de arte. Como lembra Freud, a
propósito do escritor, o ato de criar constitui o “segredo mais íntimo” do artista (Cf.
ECD, p. 158). Na verdade, a interpretação analítica não avança muito na compreensão
da beleza emergente no objeto estético. “A psicanálise, infelizmente, (...) pouco
encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do
sentimento sexual” (MEC, p. 40)198.

195
Embora Freud se refira ao escritor, na verdade o que diz é válido para qualquer tipo de criação estética.
Como ele próprio o reconhece: “sabemos que muitas obras imaginativas guardam boa distância do
modelo do devaneio ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais
afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma sequência ininterrupta de casos
transicionais” (ECD, p. 155).
196
“... Uma total separação dos dois sistemas [Ics e Pcs-Cs] é o que acima de tudo caracteriza uma
condição de doença” (INC, p. 113).
197
“A obra de arte é ao mesmo tempo o sintoma e a cura”, afirma Paul Ricoeur (Cf. I, p....).
198
Freud continua, afirmando que “o amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido
em sua finalidade. ‘Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto sexual” (MEC, p. 40)
172

O artista – este artesão do sonho – é necessariamente um insatisfeito: está


sempre aquém de seu ideal narcísico. “A pessoa feliz nunca fantasia, somente a
insatisfeita. As forças motivadoras das fantasias são desejos insatisfeitos, e toda fantasia
é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (ECD, p.152). Ao
fantasiar a realidade, o artista busca o futuro, mas, paradoxalmente, retornando ao
passado: “o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do
passado, um quadro futuro” (ECD, p. 153). Os três momentos do tempo “são
entrelaçados pelo fio do desejo”, mas que se ressalte: dos três, o mais fundamental é o
passado. O artista é estimulado por um evento presente, representa sua obra num
momento futuro, mas o móvel dessa projeção imaginária e desta criação simbólica é o
desejo de retornar a um prazer passado. Todas as produções humanas, das mais elevadas
às mais humildes, das mais saudáveis às mais doentias, têm um caráter regressivo.

Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um impulso


incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido
como resultado da repressão [ou recalque] instintual [ou pulsional] em que se
baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana. O instinto [ou
pulsão] reprimido [recalcada] nunca deixa de esforçar-se em busca da
satisfação completa, que consistiria na repetição de uma experiência primária
de satisfação. Formações reativas e substitutivas, bem como sublimações, não
bastarão para remover a tensão persistente do instinto [ou pulsão] reprimido
[recalcado], sendo que a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação
que é exigida e a que é realmente conseguida, é que fornece o fator
impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições
alcançadas, mas, nas palavras do poeta, “pressiona para frente, indomado”.
(APP, p. 58)

Aprendamos a lição do caleidoscópio, debrucemo-nos sobre sua humilde


sabedoria. Os fragmentos de vidro colorido, que se encontram no fundo do cilindro e
devem ser vistos contra a luz, podem receber as mais diferentes formas, compor
infinitos desenhos, sempre, porém, no interior de um mesmo círculo. Qual o segredo
deste instrumento lúdico? Como é possível infinitas variações no interior de uma
superfície rigorosamente determinada? O segredo do caleidoscópio é uma pequena
falha, um espaço não preenchido por qualquer fragmento, a necessária imperfeição de
suas composições. O instrumento seria rigorosamente inexequível se suas figuras
fossem compactas e plenas. Não outro é o segredo da existência humana. O desejo é
esta falha necessária, esta imperfeição visceral que “pressiona sempre para frente”, este
nada que suporta e possibilita a aventura humana. Há sempre um déficit entre o que se
almeja e o que se consegue; há sempre um vazio entre o que o desejo alcança e o que
ele efetivamente demanda. Este vazio é o espaço de humanização do homem, é a falta
173

que comanda a criação estética e, mais do que isto, a objetivação da cultura em suas
múltiplas formas.

As realizações humanas obedecem a lei do eterno retorno, constituem uma busca


infinda do arcaico do sujeito, uma regressão incansável ao passado infantil. “... Nada é
tão difícil para o homem, quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na
realidade, nunca renunciamos; apenas trocamos uma coisa por outra” (ECD, p. 151).
Sob este aspecto o objeto estético parece gozar de um certo privilégio. Comparece no
grande drama da cultura investido de missão especial.

A obra de arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais


profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo serve, como
nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem
de fazer em benefício da civilização (FI, p. 25. Grifo nosso).

Em verdade, quando nos entregamos à sublimação estética, “o destino pouco


pode fazer contra nós” (MEC, p. 36).

(FALTA UMA CONCLUSÃO PARA ESTE CAPÍTULO E PARA A PARTE I)


174

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1
Indicaremos entre parênteses, logo após o título, o ano de publicação e/ou redação das obras de S. Freud.
2
Empregaremos esta sigla para designar a Pequena coleção das obras de S. Freud, trad. br., Editora
Imago.
3
Empregaremos esta sigla para designar a Edição Standartd Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de S. Freud, trad. br., Editora Imago.
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