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• De Paul Ricoeur
• De Sigmund Freud
N- A negativa.
R- “Repressão”, in Metapsicologia.
PRIMEIRA PARTE
O DISCURSO FREUDIANO
Advertimos ao leitor que, embora o nosso objetivo nesta primeira parte seja
realizar uma exegese dos textos de Freud, não deixaremos de recorrer a outros teóricos,
sobretudo, J. Laplanche (1966, 1978, 1979) e J.-B. Pontalis (1979) e , mas também J.
Lacan (1978) e S. Leclaire (1966; 1977), para indicar alguns pontos críticos do discurso
freudiano, pontos estes que sofreram profunda revisão teórica. Na conclusão deste
trabalho, confrontaremos a leitura de Freud proposta por Ricoeur com a nossa própria,
do que se evidenciarão algumas discrepâncias de interpretação.
1
“Ao fazer do sonho não somente o primeiro objeto de sua investigação, mas um modelo (...) de todas as
expressões dissimuladas, substituídas e fictícias do desejo humano, Freud convida a procurar no próprio
sonho a articulação do desejo e da linguagem” (I, p. 16s/Fr., p. 15).
2
“Ingressaremos na psicanálise por aquilo que ela tem de mais exigente, pela sistemática, que o próprio
Freud chamou de sua ‘metapsicologia’” (I, p. 60/Fr., p. 68s).
3
“Os escritos de Freud se apresentam de imediato, como o discurso misto, até mesmo ambíguo, que ora
enuncia conflitos de força justificando uma energética, ora relações de sentido justificando uma
hermenêutica. Gostaria de mostrar que essa ambiguidade aparente é bem fundada, que esse discurso é a
razão de ser da psicanálise” (I, p. 67/Fr. p. 75).
4
“Longe de ser apenas uma explicação dos resíduos da existência humana, dos avessos do homem, ela [a
psicanálise] mostra sua intenção verdadeira quando, fazendo estourar o quadro limitado da relação
terapêutica do analista e de seu paciente, eleva-se ao nível de uma hermenêutica da cultura” (CI, p.
105/Fr., p. 122).
5
“A interpretação da cultura será o grande desvio que revelará o modelo do sonho segundo sua
significação universal (...). A psicanálise vale na medida em que a arte, a moral e a religião são figuras
análogas, variantes da máscara onírica. Toda a dramática do sonho encontra-se, assim, generalizada às
dimensões de uma poética universal” (I, p. 141/Fr. p. 164).
2
CAPÍTULO I
Influenciado por Aristóteles, que afirma serem os sonhos a vida mental dos que
dormem, Freud investiga a relação entre sono e sonho. O que é o sono? É um estado em
que há um completo desinteresse pelo mundo externo. Parece que no sono a função
biológica de recuperação das energias vitais é acompanhada de uma função psicológica
do sonho, a saber: “a suspensão do interesse pelo mundo”. Nós não somos capazes de
tolerar o mundo ininterruptamente. Por causa disso, “de tempos em tempos nos
retiramos para o estado de pré-mundo, para a existência dentro do útero”, isto é, o sono
(CIP II, p. 111). Qual a relação entre o sono, que é uma fuga do mundo, e o sonho? No
entender de Freud, o sonho é o guardião do sono (CIP II, p. 156). Com efeito, em geral
não conseguimos um estado de repouso de tal ordem em que os resíduos da vida de
vigília sejam completamente afastados. Frequentemente tais resíduos permanecem
ativos durante o sono, estimulando a vida psíquica. A função dos sonhos seria
justamente impedir que tais estímulos nos despertem, transformando-os em imagens.
6
Substituímos sinal por signo nesta citação.
7
Veremos adiante (p.26) que ao descobrir o simbolismo onírico, Freud recorre à interpretação simbólica,
sem abandonar, obviamente, a interpretação associativa, rigorosamente psicanalítica (Cf. CIP II, p. 181).
5
“Um sonho”, diz Freud, “(...) é a maneira como a mente reage aos estímulos que
a atingem no estado de sono” (CIP II, p. 112). Em lugar de nos acordar, os estímulos
externos e internos se metamorfoseiam em sonhos. Pode-se até provar isto
experimentalmente. Freud se refere a um pesquisador que observou e relatou alguns de
seus sonhos produzidos artificialmente pelo ruído da campainha de um despertador.
Num sonho, a campainha se transforma num repicar de sinos; num outro, no tilintar de
cincerros de trenós; e, finalmente, num terceiro, numa pilha de louças, que se espatifa ao
solo. “O sonho não reconhece o despertador – e sequer este aparece no sonho – mas
substitui o ruído do despertador por outro; interpreta o estímulo que está pondo fim ao
sono, contudo o interpreta de forma diferente em cada uma das vezes” (CIP II, p. 117).
Como se vê, o sono não é interrompido pelo ruído, desde que este se transforme em
imagem onírica. Observe-se ainda que esta pluralidade de sonhos, formada a partir de
um único fator determinante, revela que os estímulos somáticos só podem explicar uma
pequena parte do sonho e não o total da reação onírica. Por que o ruído externo é
transformado em tal imagem e não em outra? Isto as teorias reducionistas da época não
podiam entender. Todo o esforço de Freud, conforme veremos, se orienta exatamente
nesta direção: demonstrar que o sonho é, essencialmente, um processo psíquico e não
somático. Como observa um comentador:
Freud relata alguns exemplos de sonhos produzidos por crianças de tenra idade.
Um menino de 19 meses, mantido durante todo o dia sem alimento, por ter sido vítima
de uma crise de vômitos, durante o sono, após dizer o próprio nome, acrescentou:
“Molangos, molangos, omelete, pudim!” Sonhava, portanto, com uma refeição.
Hermann, menino de apenas 22 meses, fora obrigado a presentear seu tio com um cesto
de cerejas, do qual só pudera tirar um único fruto. Ao despertar, comunicou a seus pais:
“Hermann comeu todas as cerejas”. Quer dizer, viu em sonho o seu desejo realizado.
Uma garota de 3 anos fez uma viagem por um lago. Ficou desgostosa quando teve que
deixar o barco, pois desejava continuar o passeio. Na manhã seguinte, sonhou que havia
continuado a sua viagem interrompida (IS, p. 136-142; CIP II, p. 154s). Todos estes
exemplos constituem simples e indisfarçada “realização de desejos” (Wunscherfüllung).
2) A CENSURA ONÍRICA
8
Consultar o que diremos adiante a respeito da distinção entre pulsão, desejo e necessidade (p. 177s;
269s). Freud nos textos citados confunde, ao que parece, necessidade e desejo.
8
9
Sobre o método da livre associação, cf. ,adiante, p. 67.
10
Sobre aparelho psíquico consultar, adiante, p. 80 .
11
Consultar p. 148 deste trabalho. O “Complexo de Édipo” deve ser pensado como condição de
possibilidade da cultura, embora os extratos de Freud citados sugiram, equivocadamente, que ele seja
posterior à cultura, pois os padrões éticos e estéticos que mobilizam a censura, pressupõe a constituição
da ordem moral (Cf., adiante, p. 246-272, o que diremos sobre o Complexo de Édipo com base no
discurso lacaniano).
9
justamente, realizar tais desejos de um modo imaginário e com isto garantir um relativo
equilíbrio do indivíduo. O objetivo da censura, como sustenta Freud, é preservar nossa
saúde mental (IS, p. 604).
certas partes, cuja revelação seria altamente comprometedora do ponto de vista ético-
social. A analogia com o texto escrito salta aos olhos.
É preciso, contudo, que se tomem as devidas precauções para que não se entenda
de um modo antropomórfico o conceito de censura. Não existe uma espécie de
homúnculo que seria o “censor dos sonhos” (CIP II, p. 170). Trata-se, antes, de uma
força ou tendência psíquica que se opõe a outra. Uma força constrói o desejo e a outra, a
censura, acarreta uma distorção na expressão deste (IS, p. 153s).
Freud, como se vê, tem uma concepção essencialmente conflitante e, por isso
mesmo, dinâmica da vida psíquica: “Na mente”, diz-nos ele, “há lugar para existirem
lado a lado, intenções opostas, contradições” (CIP II, p. 175). É este dilaceramento
interno do ser humano que, em última instância, explica os sonhos de conteúdo aflitivo.
Como um desejo realizado pode ser doloroso, desagradável? O homem está em
contradição consigo mesmo. Há desejos que, uma vez satisfeitos, podem impedir a
realização de outros. O que é prazer num lugar é desprazer em outro (R, p.60).
Quando a censura não é eficaz para impedir a expressão de tais desejos, eles
tendem a desembocar na consciência e provocam ansiedade. Este afeto doloroso
substitui a censura na função de bloquear a invasão do desejo na consciência. Só que a
ansiedade exerce esta função de modo inadequado, pois em lugar de garantir a
continuidade do sono, desperta o que dorme (CIP II, p. 258s).
entender que todo sonho é realização de desejo, urge distinguir o conteúdo manifesto do
conteúdo latente, aplicando ao primeiro a técnica da interpretação psicanalítica.
3) MATERIAIS DO SONHO
retirado de sua experiência. Sonhou certa vez com um homem de um olho só, baixa
estatura, forte e com a cabeça enterrada até os ombros, o qual lhe deveria prestar um
serviço. Pelo contexto, concluiu tratar-se de um médico. Resolveu, então, pedir a sua
mãe uma descrição do médico de sua terra natal. Esta lhe traçou o esboço de uma
pessoa idêntica a do sonho. Soube, ainda, do mesmo modo, que este médico lhe havia
atendido na infância por ocasião de um acidente (CIP II, p. 241s).
Durante o sono o organismo pode ser perturbado por excitações somáticas. Tais
excitações são classificadas do seguinte modo: sensorial externa, sensorial interna e
orgânica. As excitações sensoriais externas são as provocadas por objetos externos
durante o sono. Exemplos: uma luz intensa, um ruído forte, um odor pronunciado ou a
exposição de partes do corpo a um frio excessivo (IS, p.24).
subjetivas da retina (as manchas luminosas que costumamos ver quando fechamos os
olhos) (IS, p. 35).
4) O TRABALHO DO SONHO
4.1) A CONDENSAÇÃO
Freud enumera três tipos possíveis de condensação. Pode ocorrer: 1º) pela
supressão de determinados elementos latentes; 2º) pela aparição no sonho manifesto de
apenas um fragmento de todo o complexo do conteúdo latente; 3º) pela reunião e
composição de vários elementos latentes, possuidores de algo em comum, numa só
unidade (CIP II, p. 204s). Talvez somente este último processo mereça ser designado
por “condensação”. É comum a representação em sonhos de personagens compostos.
Um personagem, deste tipo, “pode, talvez, assemelhar-se a A, contudo, pode estar
vestido como B, executar algo que lembre C, e ao mesmo tempo podemos saber que é
D” (CIP II, p. 205; IS, p. 342s). Esta composição não se dá apenas com pessoas, mas
também com lugares e coisas (CIP II, p. 205; IS p. 344). Pode-se sonhar, por exemplo,
com uma casa realmente existente, que tenha mobílias de outra e esteja situada num
lugar diferente de seu originário.
Freud, certa vez, teve um sonho, cuja análise revelou a presença deste
mecanismo. Vamos citá-lo como exemplo. Em geral, para expor a análise de seus
sonhos, ele apresenta um “preâmbulo”, no qual descreve as circunstâncias do dia
anterior – e de sua vida em geral – que motivaram o sonho; em seguida, relata o
12
Uma das teses principais de J. Lacan afirma que o inconsciente se estrutura como uma linguagem. No
entender do célebre psicanalista francês, os mecanismos da condensação e do deslocamento são
perfeitamente indicáveis em termos linguísticos. A condensação pode ser compreendida como metáfora e
o deslocamento como metonímia (Consultar p. 258 deste trabalho).
15
I. Meu amigo R. era meu tio – tinha por ele um grande sentimento de afeição.
II. Vi seu rosto diante de mim, algo mudado. Era como se tivesse sido
repuxado no sentido do comprimento. Uma barba amarela que o circundava
se destacava de maneira nítida (IS, p. 147).
O rosto alongado com a barba amarela correspondia ao do tio Josef. Porém, seu
amigo R. começava a ficar grisalho e sua barba também estava amarelecida. Freud
comparava, assim, no sonho, seu tio com o colega. O que poderia haver de comum entre
os dois? O tio era tido como um simplório e, assim, a aproximação dos dois indicava o
desejo de que o amigo tivesse esta mesma qualidade negativa. Por outro lado, a técnica
da livre associação trouxe à presença um novo personagem: o amigo N., judeu e
aspirante ao mesmo cargo. Este tinha também algo em comum com Josef: uma
condenação na justiça. O sonho manifesto, portanto, reuniu ou condensou numa só
imagem três pessoas: os amigos R. e N. e o tio Josef. A figura deste último serviu de
mediação para a formação do quadro onírico.
Que conclusão tirar desta análise? É o próprio Freud quem o explica, para
interpretar o sonho: “Meu tio Josef representava meus dois colegas que não haviam sido
nomeados para o cargo de professor – um como simplório, e o outro como criminoso”
(IS, p. 149). Quer dizer, o sonho expressava, deformadamente, o desejo de que a
16
rejeição de seus amigos não ocorrera por razões sectárias (antissemitismo), mas por
serem ambos incompetentes para o cargo. Com isto, na fantasia de Freud, permanecia
aberta a possibilidade de sua nomeação, já que motivos sectários não teriam interferido.
4.2) O DESLOCAMENTO
13
Influenciado por L.Strümpel, estudioso dos sonhos, Freud denomina “valor psíquico” à intensidade
psíquica dos pensamentos oníricos (IS, p. 56). Citando Nietzsche, Freud afirma: “o fato é que uma
completa transposição de todos os valores psíquicos se verifica entre o material dos pensamentos oníricos
e o sonho” (IS, p. 351).
17
4.3) A FIGURAÇÃO
14
Cf., adiante, p. 163.
18
15
Freud distingue “representação de coisa” de “representação de palavra”. A primeira é essencialmente
visual, a segunda acústica. O inconsciente só contém representações de coisa, ao passo que “as
representações de palavras são introduzidas numa concepção que liga a verbalização e a tomada de
consciência. Assim, desde o Projeto de uma Psicologia (...) que encontramos a ideia de que é associando-
se a uma imagem verbal que a imagem mnésica pode adquirir o índice de qualidade específico da
consciência” (VP, p. 585).
19
Freud nos adverte de que “nem tudo contido num sonho se origina dos
pensamentos oníricos” (IS, p. 523). É possível adotar diante do sonho, no momento
mesmo em que sonhamos, uma postura crítica que nos leve, por exemplo, a afirmar: “é
apenas um sonho!”. Em casos como este, o pensamento de vigília se introduz nos
pensamentos oníricos (conteúdo latente), com a finalidade de “reduzir a importância do
que acabou de ser experimentado e tornar possível tolerar o que vem a seguir” (IS, p.
522). A intromissão destes elementos estranhos está, portanto, a serviço da censura.
“Não pode haver dúvida de que o agente da censura, cuja influência até agora somente
reconhecemos em limitações e omissões no conteúdo do sonho, é também responsável
por interpolações e acréscimos” (IS, p. 523).
não suporta o caos, isto é, o que não encontra lugar no seu sistema de referência. O
estranho é logo incorporado a um todo inteligível, mesmo à custa de uma adaptação
artificial e forçada. Esta tendência a racionalizar nossas experiências encontra-se
também nos sonhos. É o que Freud denomina elaboração secundária. “O elemento que
distingue e ao mesmo tempo revela essa parte da elaboração do sonho é a sua finalidade
(...). Como resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de absurdidade e
desconexão e se aproxima do modelo de uma experiência inteligível” (IS, p. 524). A
elaboração secundária é, assim, um mecanismo que introduz elementos do pensamento
de vigília nos pensamentos oníricos, com a finalidade de remodelar ou revisar o sonho
manifesto, de tal modo que este se apresente como “uma história relativamente coerente
e compreensível” (VP, p. 198).
Ressalte-se que estes elementos externos ao conteúdo latente não raro são
extraídos de fantasias ou sonhos diurnos. Freud anota as seguintes semelhanças entre os
sonhos noturnos e os devaneios de vigília: uns e outros são realizações de desejos,
fundamentam-se em grande parte nas impressões de experiências infantis e beneficiam-
se de um certo relaxamento da censura. Os sonhos diurnos, contudo, em contraste com
os noturnos, são sempre muito coerentes, ou seja, enquadram a fantasia num todo
inteligível. Ora, parece que a elaboração secundária não faz mais do que moldar os
materiais oníricos “em algo semelhante a um sonho diurno”. Para desempenhar
eficazmente esta função, nada mais oportuno do que utilizar as fantasias já produzidas
no estado de vigília, introduzindo-as no conteúdo dos sonhos (IS, p. 526s).
são: amnésia, anestesia de uma parte do corpo, paralisia, rigidez muscular, perturbação
16
da fala etc. Diferentemente da histeria, os sintomas obsessivos não são somáticos,
mas psíquicos. Os neuróticos obsessivos são, por assim dizer, perseguidos por ideias
absurdas. Ficam preocupados com coisas que não lhes interessam, experimentam
impulsos que lhes parecem estranhos e realizam atos cuja execução não lhes
proporciona qualquer prazer, mas dos quais não podem escapar (CIP III, p. 306). As
representações obsessivas frequentemente são absurdas e exigem, por parte dos
enfermos, um considerável desgaste intelectual e psíquico. O doente se preocupa com
coisas insignificantes como se fossem problemas de vital importância. Os atos
obsessivos consistem, não raro, em repetições, ações rituais e cerimoniosas, realizadas
na hora de dormir ou de se levantar, de se vestir ou se lavar etc. Tais atos acabam se
tornando exigências dolorosas só com muito sacrifício satisfeitas.
Freud demonstrou que estas duas neuroses têm origem psíquica e não somática.
A técnica psicanalítica, revelando as lembranças inconscientes dos neuróticos e
possibilitando-lhes uma descarga emocional, conseguiu remover os sintomas e assim
indicar o verdadeiro móvel da doença, que é de ordem psíquica. Além disso, a
experiência analítica demonstrou que, tal como ocorre com os sonhos, os sintomas
neuróticos não são absurdos nem aparecem por acaso: ao contrário, têm um sentido. O
que nos interessa no momento não é o estudo das neuroses, mas o método da livre
associação, essencial à terapia psicanalítica e à interpretação dos sonhos. Vamos relatar,
no entanto, um caso de histeria para facilitar a compreensão desse método.
16
Sobre neurose obsessiva consultar pp 241s, 300 e 313s deste trabalho.
22
17
Posteriormente Freud descobriu a etiologia sexual das neuroses e situou a origem do conflito psíquico
na situação edipiana (Cf. p. 218 deste trabalho).
23
Como se vê, para Freud a consciência não monopoliza o sentido. Por detrás do
sentido consciente há o sentido inconsciente. Traímo-nos por todos os lados. Todo ato
humano “tem um sentido”. Expressamo-nos, mesmo quando não pensamos fazê-lo. O
sem sentido apenas mascara um sentido oculto. Assim, se em determinada situação,
recordamo-nos de algo, esta lembrança não está solta em nossa mente. Ao contrário, ela
se liga a outras lembranças aparentemente esquecidas, que pouco a pouco podem aflorar
na consciência. Daí a eficácia do método da livre associação que consiste justamente em
deixar o paciente expor, com toda a liberdade, isto é, sem autocrítica, as ideias que lhe
ocorrem, para que o analista possa, no trabalho de interpretação, concatenar tais ideias,
apresentando as relações ocultas que as unem. Esta técnica, desde que habilidosamente
dirigida, permite a reconstituição da experiência traumática e, com isto, a eliminação
dos sintomas neuróticos (DVE, p. 290s)19.
18
Sobre recalque e inconsciente, cf. adiante, p. 104-128.
19
Mais adiante vamos nos referir à resistência, um outro elemento fundamental da relação terapêutica
(Cf. p. 97 deste trabalho).
24
6) O SIMBOLISMO ONÍRICO
Foi uma aparente falha no emprego do método associativo que conduziu Freud à
descoberta de uma vigorosa simbólica que atua nos sonhos, embora ultrapasse o
domínio onírico. Com efeito, os pacientes, ao comunicarem as sequências de ideias que
lhes ocorrem esbarram frequentemente com certas representações que impedem o
prosseguimento das associações. É verdade que, muitas vezes, após algumas tentativas,
brotam algumas ideias. “Não obstante, restam casos nos quais deixa de surgir uma
associação, ou, se essa é obtida, não nos dá o que dela esperávamos” (CIP II, p. 180).
Quando a interpretação esbarra com “esses elementos oníricos mudos” é sinal de que
está diante de algum tipo de símbolo. O que é um símbolo no entender de Freud? É um
modo de representação que se caracteriza por uma relação permanente entre o signo
(elemento do sonho manifesto) e o que ele significa (sua “tradução”) (CIP II, p. 181).
Esta relação se fundamenta principalmente na analogia (forma, grandeza, função,
ritmo), mas também em alguns casos na simples alusão (VP, p. 629).
da linguagem” (CIP II, p. 199), que as relações simbólicas sejam resíduos de um meio
arcaico de expressão, o qual se servia basicamente de representações sexuais. Isto
explicaria porque a grande maioria dos símbolos tem caráter erótico (CIP II, p. 184).
CAPÍTULO II
A METAPSICOLOGIA
avanço do conhecimento”, diz Freud, “(...) não tolera qualquer rigidez” (IV, p.27). Esta
é a tônica do discurso metapsicológico.
No que diz respeito à terminologia psicanalítica, Freud observa que trabalha com
uma “linguagem figurativa, peculiar à psicologia (ou, mais precisamente, à psicologia
profunda)” e acrescenta: “As deficiências de nossa posição provavelmente se
desvaneceriam se nos achássemos em posição de substituir os termos psicológicos por
expressões fisiológicas ou químicas”. Reconhece, contudo, que até mesmo as ciências
naturais empregam uma linguagem metafórica, com a qual, porém, já estamos
familiarizados (Cf. APP, p. 79).
20
Consultar p. 164 deste trabalho.
30
fotográfico ou algo deste tipo” (IS, p. 572). O modelo neurônico é substituído, portanto,
pelo modelo ótico. Vejamos a estrutura e funcionamento deste novo aparelho.
21
Sobre o conceito de energia psíquica consultar p. 163 deste trabalho.
22
Reflexo é a reação automática (involuntária, portanto) de um organismo a uma excitação. O arco
reflexo é o conjunto de mecanismos nervosos (cadeias de neurônios) que está na base da atividade
reflexa.
31
Não faz da memória a ideia de um puro e simples receptáculo, (...) mas fala
de sistemas mnésicos, desmultiplica a recordação em diversas séries
associativas e designa por fim pelo nome de traço mnésico, menos uma
‘impressão fraca’ que permanece numa relação de semelhança com o objeto,
do que um signo sempre coordenado com outros (...). Nesta perspectiva, a
Vorstellung de Freud já foi aproximada da noção linguística de significante
(VP, p. 583)25.
23
“É um fato familiar que retemos permanentemente algo mais que o simples conteúdo das percepções
(...). Nossas percepções se acham mutuamente ligadas em nossa memória...” (IS, p.575).
24
Abreviação empregada por Freud para designar o sistema perceptivo.
25
Sobre Vorstellung (representação) e sua aproximação por J. Lacan da noção linguística de significante,
consultar p. 257 deste trabalho.
26
Freud admite duas modalidades de inconsciente: o virtual (pré-consciente) e o sistemático e dinâmico
(inconsciente propriamente dito) (Cf., adiante, p.....).
32
Dissemos que a censura atua durante a vigília, ou seja, que ela é um componente
de nosso psiquismo, estando presente quer nos casos patológicos quer no
funcionamento normal da mente. Na verdade, o sistema inconsciente “não conhece
outro objetivo que não seja a satisfação dos desejos”. Não apenas os sonhos, mas
também os sintomas “devem ser encarados como realização de desejos inconscientes”
(IS, p. 606). Em síntese: “somente um desejo é capaz de colocar o aparelho em
movimento...” (Cf. IS, p. 636)28. Ora, se o desejo é o móvel da vida psíquica e, por
outro lado, não pode ser realizado sem colocar em risco o aparelho como um todo,
compreende-se que a censura deva atuar continuamente, exigindo a deformação da
expressão primeira do desejo, mediante os mecanismos já estudados (condensação,
deslocamento etc.).
..….. M
27
Conforme veremos, a representação é representação-meta (ou ideia-intencional), quer dizer, ela é
atravessada por uma intenção consciente ou inconsciente (Cf. p. 113 deste trabalho).
28
Sobre a noção de desejo consultar p. 104 deste trabalho.
33
29
O pré-consciente, diz Freud, “detém a chave do movimento voluntário” (IS, p. 577).
30
“A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece nos sonhos é dizendo que a excitação se
movimenta numa direção para trás. Em vez de ser transmitida na direção da extremidade motora do
aparelho, ela se movimenta no sentido da extremidade sensória e atinge finalmente o sistema perceptivo”
(IS, p. 578).
31
Cf., adiante, p. 109-115.
34
que foi suplantado” (IS, p. 604). Quer dizer, o sonho adulto é uma espécie de resíduo
arqueológico do funcionamento primitivo da mente.
Até aqui temos falado de vários sistemas. A partir de agora é oportuno nos
limitarmos a dois: “[eles] são o germe daquilo que no aparelho integralmente
desenvolvido, descrevemos como o Inc. (inconsciente) e o Pcs. (pré-consciente/
consciente)” (IS, p. 637, os parênteses são nossos). A transformação do mundo só pode
vir do segundo sistema, pois o primeiro “é incapaz de fazer qualquer coisa que não seja
desejar” (IS, p. 639), ou por outra, só busca o prazer, isto é, o alívio das tensões
produzidas pelas excitações e é impotente para sair do curto circuito regressivo
(alucinação)32. Para atuar sobre a realidade externa, o segundo sistema deve: 1º)
“possuir a totalidade do material de memória livremente a seu comando”; 2º) “manter a
maior parte de suas catexias [ou investimentos] de energia num estado de quiescência e
33
empregar apenas uma pequena parte no deslocamento” (IS, p. 637) . Enquanto a
atividade do primeiro sistema (Ics) “se dirige para garantir a livre descarga das
quantidades de excitações, (...) o segundo sistema, por meio das catexias [ou
investimentos] que dele emanam, obtém êxito em inibir a descarga e em transformar a
catexia [ou o investimento], numa catexia [ou investimento] quiescente” (IS, p. 637s).
32
Sobre o conceito de prazer, consultar ps. 169-178 deste estudo.
33
Sobre investimento e energia psíquica, consultar adiante, p. 179-183.
35
O que Freud nos está dizendo com esta terminologia de cunho fisicalista, mas
rigorosa, é que no inconsciente a energia flui livremente, como dão testemunho os
mecanismos do deslocamento, da condensação e da figuração (Cf. IS, p. 633-637), ao
passo que no pré-consciente/consciente, a energia não pode ser descarregada totalmente,
já que uma parte dela deve ser retida ou armazenada para que o aparelho tenha
condições de transformar o mundo e obter os objetos de que necessita. Em outros
termos: o aparelho psíquico, para atuar sobre a realidade, deve transformar a energia
livre em energia ligada.
34
Sobre a terminologia freudiana, consultar, acima, p. 79.
35
“... o princípio do desprazer regula claramente o curso da excitação no segundo sistema tanto quanto no
primeiro” (IS, p. 639).
36
Sobre recalque consultar, adiante, ps. 104-123.
36
37
Sobre energia livre e energia vinculada consultar p. 130 deste trabalho e sobre processos primários e
secundários, p. 129.
37
termos acesso direto ao inconsciente, não é justo negar a sua existência. É perfeitamente
legítimo inferi-la de suas manifestações ou de seus efeitos38.
Temos, assim, dois sistemas psíquicos, cada um dotado de leis próprias. Há uma
ordem peculiar ao inconsciente e uma outra ao consciente. O inconsciente não é o lugar
da desordem, mas uma outra maneira de se organizar os processos mentais frente à
ordem do consciente. A própria metáfora do aparelho psíquico, constituído por sistemas
diversos com funções peculiares, indica que na mente não há lugar para a desrazão e o
acaso. “O psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental.
38
“Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor – devido a
algum motivo tal qual o inferimos a partir de seus efeitos –, mas do qual nada sabemos” (NCIP, p.90).
39
O que foi originalmente recalcado, contudo, jamais tem acesso à consciência (sobre o conceito de
recalque originário, cf. adiante ps. 119-123)
39
Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou causal nas manifestações psíquicas”
(CCP, p. 46)40.
Já que se trata de dois sistemas, cada um com sua legalidade própria, Freud
compara o inconsciente a um outro sujeito que atropela o sujeito consciente: “todos os
atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de
minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser
explicados por uma via mental atribuída a essa outra pessoa” (INC, p. 85. Cf. NCIP, p.
90).
1.2.2) A RESISTÊNCIA
O que vem a ser esta resistência a que se refere Freud? A descoberta deste
mecanismo está ligada ao emprego do método da livre associação. A resistência sempre
aparece durante o processo terapêutico. Sua função é impedir o acesso do analisando ao
inconsciente. “Quando nos empenhamos em curar um doente”, diz Freud, “de
desembaraçá-lo de seus sintomas mórbidos, ele nos opõe uma resistência violenta,
40
Contudo, já o vimos, Freud se refere também ao sentido dos processos psíquicos, quer conscientes ou
inconscientes. “Queremos dizer com isso tão somente a intenção à qual serve a sua posição em uma
continuidade psíquica. Na maioria das nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por ‘intenção’
ou ‘propósito’” (Cf. CIP I, p. 57). Há que se articular, portanto, o determinismo psíquico com o sentido
dos atos psíquicos (Cf. IS, p. 563 e p. 636).
40
teimosa, que se mantém durante toda a duração do tratamento” (CIP III, p. 337).
Quando o analista pensa ter superado uma resistência descobre, decepcionado, que ela
apenas se metamorfoseou em outra. Freud enumera vários exemplos: o esquecimento do
que se queria dizer, a desvalorização do material a ser apresentado, acanhamento,
excesso ou ausência de ideias, argumentos teóricos contra a psicanálise etc (Cf. CIP III,
p. 338-342). A intensidade da resistência tende a crescer quando surge na análise um
tema novo, alcança o ponto máximo quando a elaboração do tema é mais satisfatória e
decresce quando o tema se esgota (Cf. CIP III, p. 343).
resistência”. O que está por detrás de tal atitude? “A causa da dificuldade é haver o
paciente transferido para o analista intensos sentimentos de afeição...” (CIP III, p.
513)41.
Nos homens, contudo, encontra-se bem mais amiúde do que nas mulheres a
transferência hostil ou negativa. “Os sentimentos hostis indicam, tal qual os afetuosos,
haver um vínculo afetivo, da mesma forma como o desafio, tanto como a obediência,
significa dependência, embora tendo a sua frente um sinal ‘menos’ e, lugar de um
‘mais’” (CIP III, p. 516). Inconscientemente, o paciente transfere ou desloca44 para o
relacionamento com o analista as atitudes e sentimentos que mantém para com o próprio
pai. O terapeuta toma o lugar do pai. O paciente sente-se tolhido pelo analista,
41
Substituímos, nas citações de Freud, o termo “médico” por analista.
42
Sobre ambivalência emocional, ver os. 206; 209; 241s; 315-317 deste trabalho.
43
Sobre bissexualidade, consultar p. 152 deste trabalho.
44
Consultar p. 60 deste trabalho.
42
Observe-se que a neurose não é uma coisa acabada, mas algo que está em
desenvolvimento, como um organismo vivo. Em determinado momento da terapia, ela
se concentra num único ponto: a relação do analisando com o terapeuta. Quando a
transferência atinge este grau não é incorreto dizer que a neurose originária se
transforma numa outra atual e artificial. “Todos os sintomas do paciente abandonam seu
significado original e assumem um novo sentido que se refere à transferência...” (Cf.
CIP III, p. 517s). O que é repetido e atuado (acted out), e não apenas recordado, na
neurose transferencial, é a vida sexual infantil ou, mais precisamente a situação
edipiana (Cf. APP, p. 30).
Discorremos até aqui sobre a resistência. Já sabemos, porém, que ela é, por
assim dizer, a face visível do recalque. Como nos diz Freud,
“as mesmas forças que hoje, como resistência, se opõem a que o esquecido
volte à consciência, deveriam ser as que antes tinham agido, expulsando da
consciência os acidentes patogênicos correspondentes. A esse processo por
mim formulado, dei o nome de recalque e julguei-o demonstrado pela
presença inegável da resistência.” (CLP, p. 35)46
45
Freud observa em Análise Terminável ou Interminável (1937) que o desejo de possuir um pênis por
parte da mulher e a luta do homem contra sua atitude passiva ou feminina diante de outro homem
constituem “dificuldades extraordinárias” na relação terapêutica. A bissexualidade, ao que tudo indica, é a
mais forte resistência contra a psicanálise. “Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre mais da
sensação positiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita de que estivemos
‘pregando ao vento’ ...”, desabafa Freud. O desejo de ter um pênis não se expressa na análise sob a forma
de transferência; já a “recusa a submeter-se a um substituto paterno” deve ser vista como “uma das mais
fortes resistências transferenciais” (Cf. ATI, p. 286).
46
Substituímos nesta citação o termo repressão por recalque.
43
Numa famosa comparação, Freud nos diz que a teoria do recalque é a pedra
angular sobre a qual repousa todo o edifício da psicanálise (Cf. HMP, p. 26). Na
verdade, o conceito de inconsciente foi obtido pela teoria do recalque. “O reprimido [ou
recalcado]”, diz Freud, “é para nós o protótipo do inconsciente” (EI, p. 15). O que é o
recalque? Vamos responder a esta questão, absolutamente central, por etapas.
Inicialmente trataremos da pulsão, em seguida do desejo e finalmente do recalque48.
Freud menciona inúmeras vezes a distinção entre estímulos externos (ou exógenos) e
estímulos internos (ou endógenos). Tomemos alguns exemplos: uma luz forte que
incide sobre a vista é um tipo de excitação oriunda de fora do organismo; “a secura da
membrana mucosa da faringe ou a irritação da membrana mucosa do estômago” (R, p.
28), quer dizer, a sede e a fome são excitações oriundas de dentro do aparelho. Estas
últimas constituem um impacto permanente e não um impacto momentâneo, como
ocorre com a primeira. Em virtude disto, em relação aos estímulos internos, ao contrário
do que ocorre com os externos, não é possível a fuga ao desprazer (Cf. R, p. 59). Fome,
47
O conceito de pulsão, como veremos adiante (Cf. p. 104), é dinâmico.
48
Na seção seguinte trataremos da distinção fundamental entre recalque originário e recalque secundário.
44
sede, respiração e sexo constituem exigências vitais prementes em relação às quais não
é possível qualquer escapismo. Freud chamou estas grandes necessidades vitais de
pulsões. Portanto, a pulsão (Trieb) corresponde às excitações internas do organismo (Cf.
IV, p. 28).
Contudo, se a pulsão tem uma origem somática, seu destino é psíquico. Segundo
uma conhecida definição de Freud, a pulsão é um conceito situado na fronteira entre o
psíquico e o somático (Cf. IV, p. 32). Esta situação fronteiriça precisa ser investigada
mais profundamente. Comecemos destrinchando os elementos da pulsão. São em
número de quatro: a pressão (Drang); o objetivo (Ziel); o objeto (Objekt) e a fonte
(Quelle).
Recorramos a um exemplo para nos fazer entender. Quando estamos com fome,
sentimos uma estimulação excessiva na membrana mucosa do estômago (fonte).
Seguindo o princípio de constância51, que orienta o aparelho psíquico no sentido de
reduzir o excesso de estimulação (que provoca insatisfação) ou de manter este excesso
49
Laplanche e Pontalis observam que o que caracteriza essencialmente a pulsão e “o fato de ser um
impulso a que não se pode fugir, exigindo do aparelho psíquico um certo trabalho e pondo em movimento
a motricidade” (VP, p. 39). Justamente por isto o id da segunda tópica, conforme veremos, é concebido
como o polo pulsional da personalidade (ver p. 132 deste trabalho).
50
Sobre a distinção freudiana entre prazer (desejo) e satisfação (necessidade), relevada por vários teóricos
franceses (Laplanche, Pontalis, Lacan etc), nem sempre respeitada por seu autor, cf. adiante, p. 173.
51
Sobre princípio de constância consultar abaixo, p. 164-169.
45
no mais baixo nível possível (Cf. IV, p. 30), empenhamo-nos para encontrar uma
refeição (objeto), que alivie as tensões do organismo, dando origem a uma experiência
de satisfação (objetivo).
Observe-se que em relação à fome, sede, micção, respiração etc., quer dizer, a
tudo o que diz respeito à autoconservação, a única solução possível para se reduzir as
tensões do organismo é a realização de determinados “atos específicos”, mediante os
quais se obtém diretamente, sem qualquer mediação e sem demora excessiva, a
satisfação. Não há como eliminar a sede e a fome senão através de líquidos e refeições
sólidas (objetos reais e predeterminados) e não se pode protelar em demasia a
satisfação de tais excitações (objetivos imediatos), bem localizados no organismo
(fontes fixas), sem que se provoque a morte do indivíduo. Por isto mesmo, trata-se em
todos esses casos de necessidade vitais. O mesmo, porém, não ocorre em relação à
sexualidade. Como mostraremos adiante em nossa abordagem da teoria da libido (cf.
p...), as fontes da sexualidade situam-se em diversas partes do corpo (zonas erógenas) -
Freud se refere mesmo ao “corpo erógeno” -, seus objetos são flexíveis e mutáveis e
seus objetivos, proteláveis (Cf. NCIP, p. 121s). Talvez por isto fosse melhor reservar o
termo pulsão (Trieb)52 para a sexualidade e destinar o termo necessidade para as demais
exigências vitais, como sugerem, entre outros, Laplanche e Pontalis (Cf. VP, p. 68).
Freud, porém, emprega Trieb num sentido englobante. Na sua primeira classificação das
pulsões, distingue as pulsões de autoconservação das pulsões sexuais e, na segunda
classificação, submete a autoconservação à libido, reunindo-as em Eros (pulsões de
vida) e contrapondo-as às pulsões de morte (Tânatos) (Cf., adiante, ps - ).
52
Sobre a distinção entre os termos Trieb (pulsão) e Instinkt (instinto) ver p. deste trabalho.
53
O representante ideativo é o que até o momento temos chamado simplesmente de representação, via a
tradução francesa (ou ideia, via tradução inglesa). Para sermos mais precisos, trata-se da “representação
ou grupo de representações em que a pulsão se fixa no decurso da história do indivíduo e por intermédio
46
da qual se inscreve no psiquismo” (VP, p. 588). Observe-se que representação (Vorstellung) é um termo
que Freud sempre utilizou em contraposição a afeto. A concepção linguística (Lacan) aproxima o
representante ideativo da noção saussuriana de significante (consultar p. 257 deste trabalho).
54
Sobre os destinos do afeto, consultar p. 123 deste trabalho.
55
“Um instinto [ou pulsão] nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a ideia que o representa
pode” (INC, p. 93).
47
e dá pontapés impotentemente” (IS, p. 602; cf. DPFM, p. 169, nota 1). A pulsão não é
satisfeita deste modo. Somente a posse de um objeto é capaz de proporcionar à criança
uma experiência (ou vivência) de satisfação56, ou seja, o apaziguamento das tensões
(prazer). Esta experiência de satisfação fica inscrita na mente, ou seja, deixa um traço
mnésico (Cf. IS, p. 602). Quando a tensão reaparece (o retorno da fome, por exemplo),
surge imediatamente um impulso psíquico que reinveste o traço mnésico e reaviva a
representação da percepção agradável experimentada anteriormente. “Um impulso desta
espécie é o que chamamos de desejo” (IS, p. 603). O desejo é sempre desejo de prazer,
ou seja, a tendência a retornar a uma experiência de satisfação vivida no passado57.
Ocorre que nos primeiros meses de vida a criança confunde a imagem ou lembrança
da percepção com a própria percepção. Não é capaz de distinguir o objeto imaginário do
objeto real, exatamente como ocorre com o adulto quando sonha. Quer dizer, para a criança
recém-nascida a lembrança (ou representação) tem um caráter alucinatório. “Nada nos
impede de presumir que houve um estado primitivo do aparelho em que (...) o desejo
terminava em alucinação” (IS, p. 603).
56
Befriedigungerlebnis. Sobre a distinção freudiana entre satisfação e prazer, nem sempre respeitada pelo
mestre vienense, cf. adiante, p. 177.
57
Observe-se que uma experiência ainda não vivida pelo indivíduo pode também ser desejada, desde que
ele se identifique com alguém que já a tenha vivenciado. Trata-se, por assim dizer, de uma experiência
indireta de satisfação. Uma criança que nunca andou de bicicleta pode desejar fazê-lo. Para tanto, deve
identificar-se com um amiguinho possuidor deste veículo. É desta forma que se dá o amadurecimento e
evolução da personalidade.
58
Freud define a noção de identidade de percepção, que expressa o funcionamento do aparelho no nível
dos processos primários, do seguinte modo: “uma repetição da percepção que se achava ligada à
satisfação da necessidade” (IS, p. 603).
48
61
Consultar p. 169 deste trabalho.
62
“A ideia de realidade psíquica está ligada à hipótese freudiana referente aos processos inconscientes;
não só estes não levam em conta a realidade exterior, como a substituem por uma realidade psíquica.
Empregada na sua acepção mais rigorosa a expressão realidade psíquica designaria o desejo inconsciente
e o fantasma que lhe está ligado” (VP, p. 549).
63
Consultar p. 269 deste trabalho.
50
São quatro os destinos das pulsões65: reversão a seu oposto (ou inversão em seu
oposto); retorno sobre si mesmo; recalque e sublimação. Só vamos nos referir,
64
Entende-se por defesa o “conjunto de operações cuja finalidade é reduzir, suprimir qualquer
modificação susceptível de por em perigo a integridade do indivíduo biopsicológico”. O ego é o sujeito e
o objeto das operações defensivas. “A defesa, de um modo geral, incide na excitação interna (pulsão) e,
de preferência, numa das representações (recordações, fantasmas) a que ela está ligada, numa situação
capaz de desencadear essa excitação na medida em que é incompatível com este desequilíbrio, (...). Os
afetos desagradáveis, motivos ou sinais da defesa, podem também ser objeto dela” (VP, p. 150).
65
Pelo menos Freud os enumera assim no artigo Os instintos e suas vicissitudes (1915), que acabamos de
mencionar, onde trata do assunto (Cf. IV, p. 37).
51
brevemente, aos dois primeiros, porquanto o recalque foi estudado acima e a sublimação
será abordada em outra seção (cf., adiante, p.....). Desnecessário dizer que todos estes
mecanismos compactuam com a defesa.
O recalque não é uma defesa que esteja presente desde o início. Só aparece após
a cisão entre a atividade psíquica consciente e inconsciente. Antes da cisão, a tarefa de
rechaçar as tendências pulsionais cabia a outras vicissitudes, como, por exemplo, “a
reversão no oposto ou o retorno em direção ao próprio eu (self) do sujeito” (R, p. 60s).
52
O recalque propriamente dito (sentido que temos empregado até aqui) não se
limita a repudiar certas representações desprazíveis, mas exige também, para operar, “a
atração exercida por aquilo que foi primevamente repelido”. Quer dizer, compreende
tanto uma força de repulsão que atua no sentido do Pcs-Cs para o Ics, como uma força
de atração que atua no sentido inverso: do Ics para o Pcs-Cs. “Caso essas duas forças
não cooperassem, caso não existisse algo previamente reprimido [ou recalcado] pronto
para receber aquilo que é repelido pelo consciente”, o recalque, provavelmente falharia
(Cf. R, p. 61s).
66
Sobre a noção de investimento ,consultar p. 179 deste trabalho.
53
67
Para maiores esclarecimentos sobre este tema, consultar p. 262 deste trabalho.
54
[ou recalque]”, diz Freud, “atua de um modo altamente individual (...): um pouco mais ou
um pouco menos de distorção altera totalmente o resultado” (R, p. 63s).
68
Sobre o ponto de vista econômico, consultar p. 163 deste trabalho.
55
69
O caso Ana O., já estudado (consultar p. 68s deste trabalho), é um exemplo deste tipo de neurose.
56
70
Consultar p. 67 deste trabalho para maiores esclarecimentos sobre esta neurose. Convém considerar,
também, a analogia estabelecida por Freud entre o sintoma obsessivo e o ritual religioso (cf. p. 300-303)
71
“Atitude ou hábito psicológico de sentido oposto a um desejo recalcado e constituído em reação contra
ele (o pudor a opor-se a tendências exibicionistas, por exemplo)”. Do ponto de vista econômico, “a
formação reativa constitui um contrainvestimento permanente” (VP, p. 258s).
72
Na citação substituímos repressão e reprimido respectivamente por recalque e recalcado.
57
(Cf. INC, p. 105; APP, p. 45; IS, p. 637s). “Esta livre circulação de energia que
caracteriza os processos primários é regida pelo princípio de prazer. É ela que se acha
inibida pelos processos secundários à medida que o princípio de realidade toma a frente
do princípio do prazer” (Brabant, 1977, p. 67). Freud considera esta distinção como “a
compreensão interna (insight) mais profunda [alcançada] até agora a respeito da
natureza da energia nervosa...” (INC, p. 106).
1. 3) A SEGUNDA TÓPICA
75
Sobre o conceito de identificação, conferir, adiante, p....
59
1.3.1) O ID
O pouco que sabemos a respeito desta instância nos é fornecido pelo estudo da
elaboração onírica e da formação do sintoma neurótico. Em verdade, conhecemo-la
através de analogias: “caos”, parte “obscura” e “inacessível” da personalidade,
“caldeirão cheio de agitação fervilhante” (Cf. NCIP, p. 94). Segundo “as distinções
populares com que estamos familiarizados”, convém afirmar que “o ego representa o
76
O id está repleto de energias que a ele chegam das pulsões (Cf. NCIP, p. 94).
60
que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as
paixões” (EI, p. 37; cf. NCIP, p.98).
1.3.2) O EGO
77
As analogias empregadas por Freud (“caos”, “caldeirão” etc.), bem como a declaração de que “as leis
lógicas do pensamento não se aplicam ao id” (NCIP, p. 94), podem sugerir que esta instância não tem
uma organização ou estrutura interna. Contudo, como sublinham Laplanche e Pontalis, “a ausência de
organização do id é apenas relativa” às leis de estruturação do ego. O próprio fato de Freud retornar, na
descrição do id, às propriedades que definem o sistema inconsciente na primeira tópica, indica que a
instância constitui um modo positivo e original de organização (Cf. VP, p. 287).
61
78
Consultar p. 189 deste trabalho.
62
esperar, retirar a libido do objeto perdido e investi-la em outro, preferiu investi-la no seu
próprio ego. Como se explica isto? Segundo Freud, na melancolia, o ego do paciente,
desejando recuperar imaginaria e inconscientemente o objeto perdido, se identifica com
ele, imita-o, torna-se de alguma forma semelhante a ele e, ao mesmo tempo, se pune e
se autorrecrimina, na medida em que seu antigo amor se tornou desprezível por tê-lo
decepcionado. O paciente não pode amar-se porque o seu ego se identifica com o objeto
odioso. O conflito entre o ego e a pessoa amada/odiada se interioriza, opondo o ego a si
próprio. A autorrecriminação do melancólico, portanto, é apenas um disfarce de seu
ódio recalcado.
79
“A transformação de libido do objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica o
abandono de objetos sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade,
surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à
sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a
libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo” (EI, p. 42). Sobre
narcisismo consultar p. 221 deste trabalho e sobre sublimação, ps. 157, 212s, 278, 282, 332.
64
No entanto, esta fraqueza do ego80 não nos deve impedir de reconhecer a sua
força. Com efeito, ele “está encarregado de importantes funções” 81. Já nos referimos a
algumas delas: perceber a realidade, controlar o acesso à motricidade e harmonizar o id
com o mundo externo. Mas o ego exerce, ainda, outras tarefas fundamentais. Na
verdade, todos os processos secundários são agora efetuados pelo ego.
O ego é sede não apenas das percepções externas, mas também internas. Estas
últimas revelam os processos psíquicos como dotados das qualidades de prazer ou
desprazer (Cf. EI, p. 33). Conforme já vimos, diante de uma ameaça externa o
mecanismo adequado para evitá-la é a fuga. Quando se trata, porém, de excitações
internas de desprazer (oriundas do id, podemos dizer agora), sendo impossível a fuga, o
mecanismo do recalque pode ser acionado. É do ego, portanto, que “procedem as
repressões [ou recalques], por meio das quais se procura excluir certas tendências da
mente” (EI, p. 27). Se o recalque vem do ego, a resistência também procede desta
instância, como, aliás, já mostramos anteriormente. A bem dizer, não apenas o recalque
e a resistência, mas os mecanismos de defesa em geral. Se o id é o polo pulsional da
personalidade, pode-se afirmar que, “do ponto de vista dinâmico, o ego representa (...) o
polo defensivo da personalidade” (VP, p. 171).
82
Sobre a teoria do narcisismo, consultar p. 221 deste trabalho.
83
Na Ego Psychology, afirmam Laplanche e Pontalis, “o ego é concebido antes de mais nada como um
aparelho de regulação e de adaptação à realidade, cuja gênese se procura descrever, por processos de
maturação e de aprendizagem, a partir do equipamento senso-motor do latente” (VP, p. 184).
84
Sobre fantasma (ou fantasia) consultar pp. 66; 326 deste trabalho.
66
1.3.3) O SUPEREGO
85
Sobre narcisismo primário e secundário consultar pp. 225-228 deste trabalho. Para compreensão da
concepção lacaniana do ego remetemos o leitor ao que dissemos adiante (pp. 264-269).
86
Freud enraíza a especulação filosófica nesta atividade auto-observadora da mente (Cf. SNI, p. 113s).
67
instância. Cabe-nos agora realizar a tarefa mais árdua, isto é, explicar a gênese do
superego.
Mostramos que a identificação está na origem do ego. Agora podemos dizer que
o superego – esta diferenciação no interior do ego – resulta também deste mesmo
processo. Por detrás do ideal do ego87, afirma Freud, “jaz oculta a primeira e mais
importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai em sua própria
pré-história pessoal” (EI, p. 43). Talvez fosse melhor dizer que o superego resulta da
identificação da criança com os pais (Cf. ibid., nota 2), ou ainda, com a “instância
parental”, expressão muito empregada por Freud em Novas Conferências Introdutórias
à psicanálise (Cf., por exemplo, ps. 81 e 83).
87
Freud em O Ego e o Id trata como sinônimos superego e ideal do ego (Cf. EI, p. 40; VP, p. 289).
Contudo, conforme indicamos acima, em Novas Conferências Introdutórias concebe o ideal do ego como
uma função do superego. Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução (p. 112s) – antes, portanto, da
introdução do termo superego na metapsicologia – distingue nitidamente o “agente da censura” do “ideal
do ego”. Para maiores esclarecimentos, consultar p. 227 deste trabalho.
68
sexual de objeto tenha sido feita” (PGAE, p. 56). Contudo, as identificações que
resultam de escolhas objetais, como mostraremos a seguir, são fundamentais para a
resolução do complexo de Édipo e vêm completar e reforçar as identificações primárias
da criança (Cf. EI, p. 44).
Seguindo a trilha indicada pelo próprio Freud (Cf. EI, p. 43, nota 2, e p. 44),
vamos, inicialmente, apresentar a formação e resolução do complexo de Édipo e a
gênese do superego, seu herdeiro, tomando como modelo o caso da criança de sexo
masculino. Em seguida, enfocaremos a resolução do conflito edipiano da menina.
A psicanálise nos revela que “as experiências dos cinco primeiros anos de uma
pessoa exercem efeito determinante sobre sua vida”. Tais experiências, contudo, caem
no esquecimento e, em geral, o paciente só toma conhecimento delas na análise, através
do método da livre associação de ideias (Cf. LM, p. 149). Procuraremos apresentar, a
seguir, a reconstituição de nossa infância psíquica, seguindo, naturalmente, as
indicações minuciosas de Freud.
69
O pai que, até então, era um modelo com o qual a criança se identificara
(identificação primária positiva) com a intensificação da escolha objetal pela mãe, passa
a ser um rival, do que resulta uma nova identificação hostil (identificação secundária
negativa) com a figura paterna. Os sentimentos que ligam o menino ao pai, portanto, se
tornam ambivalentes: a antiga admiração passa a coexistir com o ódio intenso. Esta
ambivalência já se encontra em esboço na fase oral, “em que o objeto que prezamos e
pelo qual ansiamos, é assimilado pela ingestão” (incorporação), fase, aliás, em que o
canibal se fixa, sem conseguir ultrapassá-la, pois, como nos explicam os antropólogos,
“ele só devora as pessoas de quem gosta” (Cf. PGAE, pp 55-57)90.
A ambivalência para com o pai e a relação objetal amorosa para com a mãe
“constituem o conteúdo do complexo de Édipo positivo simples de um menino” (EI, p.
88
Consultar p. 189 deste trabalho.
89
Consultar p. 195 deste trabalho.
90
Cf. adiante, pp. 203-206.
70
91
A noção de bissexualidade, introduzida na psicanálise por Freud sob a influência de seu amigo Fliess,
indica que todo ser humano tem constitucionalmente disposições sexuais masculinas e femininas. A teoria
se fundamentou, inicialmente, em dados anatômicos e da embriologia. Fliess dava à bissexualidade
biológica toda ênfase. Embora Freud em alguns textos pareça inclinar-se para esta concepção, em outros
condena esta tendência biologicista, reconhecendo a importância psicológica da bissexualidade (Cf. VP,
p. 88s). “... Ninguém se limita à modalidades de reação de um único sexo; há sempre lugar para as do
sexo oposto, da mesma maneira que o corpo carrega juntamente com os órgãos plenamente desenvolvidos
de determinado sexo, rudimentos atrofiados, e com frequência inúteis, dos do outro. Para distinguir entre
masculino e feminino, na vida mental, usamos o que é, sem dúvida alguma, uma equação empírica,
convencional e inadequada: chamamos de masculino tudo que o que é forte e ativo, e de feminino tudo o
que é fraco e passivo” (EP, p. 216; cf. TETS, pp 31-34).
71
um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e
uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas (...) também se comporta como
uma menina e apresenta uma atitude afetuosa feminina para com o pai e um
ciúme e uma hostilidade correspondente em relação à mãe (EI, p. 45s)92.
Dissemos que a situação edipiana ocorre na fase fálica. Esta fase se organiza
tanto para o menino como para a menina sob o império do falo (Cf. EP, p. 179). Ter ou
não ter falo, eis a questão. O menino imagina que todos os seres humanos têm um órgão
semelhante ao seu. A menina, conforme veremos, é tomada por uma inveja de pênis e
imagina que o seu clitóris deverá crescer e se tornar um órgão igual ao do menino (Cf.
TETS, p. 90s; NCIP, p. 85; ACDAS, p. 314).
Vimos que a criança masculina se sente sexualmente atraída pela mãe. Esta
atração pouco a pouco vai sendo percebida pelos pais a ponto de exigir deles a
interdição. A mãe, ao se dar conta da excitação sexual do menino, proíbe-o de
manipular seu pênis. Em seguida, juntamente com o pai, adota uma atitude mais severa.
Os dois,
92
Podemos completar esta citação com uma outra esclarecedora: “O complexo de Édipo ofereceu à
criança duas possibilidades de satisfação, uma ativa e outra passiva. Ela poderia colocar-se no lugar de
seu pai, à maneira masculina, e ter relações com a mãe, como tinha o pai, caso em que cedo teria sentido
o último como um estorvo, ou poderia querer assumir o lugar da mãe e ser amada pelo pai, caso em que a
mãe se tornaria supérflua” (DCE, p. 220).
72
(NCIP, p. 109). O importante não é a castração real, mas a simples fantasia da castração.
Mesmo quando imaginária, ela é ameaçadora, provoca ansiedade e configura o
“complexo de castração”. Diante deste perigo real ou imaginário – este último o que de
fato interessa à psicanálise – o que resta a criança? Para “preservar seu órgão sexual,
renuncia a posse da mãe...” (EP, p. 219). O menino inicialmente não leva muito a sério a
ameaça e, consequentemente, não obedece aos pais. Contudo, um belo dia, vê os órgãos
genitais femininos. Esta visão rompe a descrença da criança em relação à decisão dos
pais e determina a renúncia libidinal da mãe (Cf. DCE, 219s). Agora ele se assegurou de
que a castração é possível.
Até esbarrar com o pai castrador, guardião da lei, porta-voz da cultura, a criança
vivia em pleno gozo sua relação íntima com a mãe (Cf. TETS, p. 119). A emergência da
figura paterna provoca a ruptura desta relação, na medida em que impõe como condição
da posse do pênis a renúncia da mãe. Ao abandonar os investimentos libidinosos no
objeto materno, o menino faz sua a interdição do pai. Introjeta a lei do pai, introduz,
pelo mecanismo da identificação, a autoridade paterna em si mesmo, do que resulta um
precipitado de identificações em seu ego, a saber, o superego93. A criança toma de
empréstimo a força do pai e traz para dentro de si o obstáculo que a impede de realizar
seus desejos:
93
Como ressaltam Laplanche e Pontalis, “é difícil determinar, entre as identificações, as que estariam
especificamente em jogo na construção do superego, do ideal do ego, do ego ideal, e mesmo do ego” (VP,
p. 645).
73
O superego retém o caráter do pai (...) [e] quanto mais poderoso o complexo
de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão [ou ao recalque] (sob a
influência da autoridade, do ensino religioso, da educação escolar e da
leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o
ego, sob a forma de consciência ou, talvez, um sentimento inconsciente de
culpa (EI, p. 47).
Do ponto de vista econômico, existe uma íntima ligação do superego 95 com o id.
Com efeito, erigindo o ideal do ego e, assim, dominando o complexo de Édipo, o ego,
94
Sobre sublimação e amor inibido em sua finalidade (ou em seu objetivo), consultar p. 282 deste
trabalho.
95
Neste parágrafo, estamos tomando o termo superego no sentido de O Ego e o Id, onde ele engloba as
funções de interdição (censura) e de ideal.
74
recebido um (Cf. EP, p. 221s) e procura alguma compensação (Cf. DCE, p. 123). Se ela
insiste em seu primeiro desejo, quer dizer, transformar-se numa criança masculina,
pode-se tornar homossexual, ou pelo menos, apresentar “traços marcadamente
masculinos” (Cf. EP, p. 222). Em geral, porém, segue um outro caminho. Tal como o
garoto, ela tem como primeiro objeto de amor a mãe (SF, p. 262), que é “o prótipo de
todas as relações amorosas posteriores” (EP, p. 217). Na verdade, “o amor infantil é
ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo” (SF, p. 66).
No entanto, no momento em que percebe sua inferioridade em relação à criança
masculina, a menina desenvolve um relacionamento hostil para com a mãe. Não pode
perdoar a quem lhe gerou desprovida de pênis e, em seu ressentimento, se desliga da
mãe, mas se identifica com ela e imaginariamente toma seu lugar na relação com o pai,
ou seja, faz do pai sua nova escolha. Estabelece, assim, uma nova relação com o pai,
inicialmente motivada pelo desejo de ter um pênis, depois, de ter um filho por
intermédio dele (Cf. EP, p. 222). A menina “desliza – ao longo de uma equação
simbólica, poder-se-ia dizer – do pênis para um bebê (...). Os dois desejos – possuir um
pênis e um filho – permanecem fortemente catexizados [ou investidos] no inconsciente
e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior” (DCE, p.
223s).
97
Besetzung, no original no alemão.
98
Recorremos algumas indicações de Wollhein (1977, p. 44-66) na apresentação do que segue.
78
99
Cf. acima, p. 80-29.
79
O Projeto de 1895, como já lembramos, é uma obra incompleta que Freud nunca
publicou em vida. Ele evidencia uma tendência a localizar fisiologicamente os
processos psíquicos, tendência esta que, de resto, como já tivemos a oportunidade de
afirmar, nunca se ausentou por completo do pensamento de Freud. “Todas as nossas
ideias provisórias em psicologia”, dizia ele em 1914, “presumivelmente algum dia se
basearão numa estrutura orgânica” (SNI, p. 95). Não obstante esta tendência
80
reducionista, muito comum no século XIX e início do século XX, Freud nunca
conseguiu realizá-la. Na verdade, como vimos, abandonou rapidamente o aparelho
neurônico, para substituí-lo pelo aparelho psíquico. Inspirando-se nas ciências da
natureza, em particular na físico-matemática, criou novos modelos, para explicar os
fatos observados na clínica, que são irredutíveis a fatos puramente naturais. O que
importa no aparelho neurônico, portanto, não é o seu caráter organicista ou fisicalista,
mas o seu valor de modelo. Neste sentido, ele é tão importante para a metapsicologia
quanto o “aparelho psíquico” do capítulo VIIº da Interpretação de Sonhos. Aliás, muitas
das ideias desenvolvidas no Projeto foram retomadas com algumas modificações na
obra posterior e daí passaram para o arsenal de conceitos da teoria psicanalítica. Os
sistemas neurônicos deram lugar aos sistemas psíquicos; a “Quantidade” (Q) foi
substituída pelo investimento hipotético de energia psíquica; os princípios de inércia e
de constâncias se tornaram a expressão econômica dos princípios de prazer e realidade;
a energia livre, própria dos processos primários, e a energia vinculada, própria dos
secundários, continuaram a circular do mesmo modo nos sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente.
100
Nesta citação substituímos “impulsos instintivos” por “tendências pulsionais”.
101
Nem sempre, contudo, Eros é empregado no sentido econômico, ou seja, como sinônimo de libido (Cf.
VP, p. 206).
81
“descobrir que espécie de relação existe entre o prazer e o desprazer, por um lado, e
flutuações nas quantidades de estímulo que afetam a vida mental, por outro” (IV, p. 31).
Em Além do Princípio de Prazer (1920), no entanto, volta a reconhecer a
correspondência entre o aumento e a diminuição da quantidade de excitação com os
afetos de desprazer e prazer, respectivamente (Cf. APP, p. 16), e chega a formular o
princípio de prazer do seguinte modo: “[O curso dos eventos mentais] é invariavelmente
colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que
seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de
desprazer e uma produção de prazer” (APP, p. 15). Diz ainda que “o princípio de prazer
decorre do princípio de constância” (APP, p. 17). Na mesma obra, introduzindo o
“princípio de Nirvana”, declara:
Estas novas tensões introduzidas por Eros, na medida em que podem ser, no
dizer do próprio Freud, agradáveis, sem dúvida abalam a hipótese econômica do prazer.
Esta hipótese, contudo, não obstante seu caráter problemático, nunca foi afastada por
Freud, devido ao interesse operacional que reveste para a teoria psicanalítica,
inconcebível sem a admissão da noção de prazer inconsciente. A interpretação
econômica dos afetos de prazer e desprazer, com efeito, “permite enunciar um princípio
104
Laplanche e Pontalis observam que Freud, na obra citada, define o princípio de constância de modo
equívoco, ou seja, confunde-o com o princípio de inércia: “a tendência para redução absoluta e a
tendência para a constância são consideradas equivalentes” (VP, p. 460).
105
Consultar p. 229 deste trabalho.
83
válido, quer para as instâncias inconscientes da personalidade, quer para os seus aspetos
conscientes” (VP, p. 467). Como é possível se referir a um prazer inconsciente? Apenas
do ponto de vista econômico, ou seja, como redução do nível de tensão. Na verdade, o
afeto de prazer é sempre necessariamente consciente; apenas seu substrato energético e
quantitativo pode ser inconsciente.
Já vimos que na criança pequenina o aparelho funciona de tal modo que o desejo
desemboca na alucinação: a percepção e a lembrança, o objeto real e o objeto
imaginário se confundem. É a frustração e o desapontamento que leva o pequenino ser a
abandonar esta tentativa de satisfação alucinatória. O aparelho psíquico tem de
representar as “circunstâncias reais do mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas
106
Cf.,acima, p. 114, o conceito de teste (ou prova) de realidade.
84
107
“Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade de pensamento foi
separada; ela foi liberada do teste de realidade e permaneceu subordinada somente ao princípio de prazer.
Esta atividade é o fantasiar...” (DPFM, p. 171). Cf. acima, p. 115.
108
“Nunca nos devemos permitir ser levados erradamente a aplicar os padrões da realidade a estruturas
psíquicas reprimidas [ou recalcadas] e, talvez, por causa disso, a menosprezar a importância das fantasias
na formação os sintomas, sob o pretexto de elas não serem realidades, ou a remontar um sentimento
85
neurótico de culpa a alguma outra fonte, por não haver provas de que qualquer crime realmente tenha sido
cometido” (DPFM, p. 175).
109
Consultar p. 185 deste trabalho.
86
110
“O princípio de prazer persiste por longo tempo como método de funcionamento empregado pelos
instintos [ou pulsões] sexuais, que são difíceis de educar, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego,
com frequência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo”
(APP, p. 18s). “A atividade sexual torna uma criança ineducável...” (TETS, p. 74).
111
Consultar p. 195 deste trabalho.
112
Devemos este título a Clancier (1977, p. 70).
113
Besetzung, em alemão.
114
Consultar p. 60 deste trabalho.
87
Nas funções mentais deve ser distinguida alguma coisa – uma quota de afeto
ou soma de excitação – que apresenta todas as características de uma
quantidade (embora não disponhamos de meios para medi-la), capaz de
crescimento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os
traços de memória [ou traços mnésicos] das ideias, tal como uma carga
elétrica se expande na superfície de um corpo (ND, p. 73).
Tais fatos, especialmente este último (conversão), levaram Freud a postular uma
espécie de “princípio de conversão de uma energia nervosa”, o qual princípio foi
sistematizado no Projeto para uma Psicologia Científica. Neste ensaio, como tivemos a
oportunidade de mostrar, o investimento é concebido como o ato de carregar um sistema
neurônico, isto é, um conjunto de células nervosas. Em Interpretação de Sonhos, Freud
se liberta dos esquemas neurológicos e a quantidade (Q) se transforma numa “energia
psíquica” que circula num “aparelho psíquico”. A noção de investimento, como se vê,
pouco a pouco foi ganhando um sentido metafórico, analógico, embora, na verdade,
Freud nunca tenha abandonado completamente a referência neurofisiológica. Sob este
aspecto, o termo Besetzung (investimento) sempre apresentou uma ambiguidade que,
aliás, a metapsicologia nunca dissipou. Há que se reconhecer, portanto, que, não
obstante ser um componente nuclear do aparelho conceptual da psicanálise, a noção de
investimento não recebeu de Freud um tratamento rigoroso. Seja como for, ela é
indispensável, sobretudo do ponto de vista terapêutico, pois explica numerosos dados
clínicos e possibilita ao analista acompanhar a evolução do tratamento (Cf. VP, p. 331-
334). É incontestável, portanto, o seu valor operacional.
115
Consultar p. 123 deste trabalho.
116
Sobre “histeria de conversão”, cf. acima, p. 126.
117
Consultar pp. 69 e 126s deste trabalho.
88
Urge articular a noção de Besetzung com o ponto de vista tópico. Freud admite
que cada sistema investe de um modo peculiar. Vejamos como se combinam tais
investimentos no aparelho como um todo.
118
Consultar p. 121 deste trabalho.
119
Conferir com o que dissemos acima a respeito do método de livre associação (p. 67) e da resistência
(p. 97).
89
Foi, portanto, considerando esta dinâmica mental que Freud chegou ao termo e
ao conceito do inconsciente (Cf. EI, p. 24). Os fenômenos psíquicos resultam, pois, do
conflito e também da composição de forças que, em última instância, são de origem
pulsional (Cf. VP, p. 165).
Como o conceito de pulsão já foi estudado120, vamos nos limitar, nesta seção, a
investigar as duas classificações pulsionais elaboradas por Freud (pulsões sexuais e
pulsões do ego, na primeira; pulsões de vida e de morte, na segunda), dando especial
relevo à teoria da libido, tendo em vista que a sexualidade sempre foi considerada como
um dos polos do conflito psíquico. Intercalaremos, porém, entre as duas classificações a
teoria do narcisismo, que está na raiz da virada conceptual de Freud.
120
Cf. acima, p. 104-109.
90
O mestre vienense chega a afirmar que a teoria das pulsões é uma espécie de
mitologia da psicanálise (Cf. NCIP, p. 119). Ele recorre ao mito quer para confirmar as
intuições dos poetas e filósofos (Empédocles, Platão, Shopenhauer, Schiller), quer para
assinalar os limites de suas interrogações. Em carta a Einstein, chega a afirmar que toda
ciência tem um caráter mítico: “Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias
uma espécie de mitologia (...). Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma
espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da
sua física?” (PG, p. 254).
O que teria levado nosso autor à primeira classificação das pulsões? Por que
122
separar a sexualidade da autoconservação, a libido dos interesses do ego? Freud
apresenta vários motivos. Consideremos os dois principais: 1º) Do ponto de vista
biológico, pode-se afirmar que a autoconservação visa apenas a fins individuais, ao
passo que a sexualidade tem finalidade dupla: o prazer individual e a manutenção da
121
Cf. abaixo, p. 293-307, nossa discussão de O Futuro de uma Ilusão, obra em que Freud expõe sua
teoria da religião.
122
“... Pulsões do ego significa pulsões de conservação de si mesmo, pois o ego como instância é a
agência psíquica a que está entregue a conservação do indivíduo” (VP, p. 514. Cf. APP, p. 69).
91
espécie ou, mais amplamente, da substância viva (Cf. SNI, p. 94s; CIP III, p. 482; APP,
p. 56); 2º) Do ponto de vista clínico, pode-se afirmar que o conflito patogênico é um
conflito entre as pulsões do ego e as pulsões sexuais (Cf. CIP III, p. 409). Freud admite
que a neurose é formada a partir de três fatores: a frustração da libido; a fixação da
mesma em algum estágio de seu desenvolvimento; finalmente o conflito entre as
exigências libidinais e os interesses do ego. O ego pode tanto aceitar a fixação da libido
e tornar-se pervertido, como reagir a isto. Nesse último caso, “o ego experimenta uma
repressão [ou recalque] ali onde a libido sofreu uma fixação” (CIP III, p. 408).
TEORIA DA LIBIDO
O termo libido designa a energia das pulsões sexuais (Cf. NCIP, p. 120). Trata-
se “de uma força quantitativa, variável que poderia servir de medida do processo e das
transformações que ocorrem no campo da excitação sexual” (TETS, p. 113). A libido,
contudo, nunca foi de fato medida, o que levou Freud a admitir que ela “não [é]
presentemente mensurável” (PGAE, p. 38). Na verdade, a energia psíquica nunca
poderá ser medida, porque é uma metáfora ou, para empregarmos um termo que, como
já mostramos , o próprio Freud utiliza para referir-se ao aparelho psíquico, contrapondo-
o ao aparelho neurônico, trata-se de uma “ficção” (Cf. IS, p. 572; 642). Nunca é demais
insistir sobre o caráter analógico do conceito de energia psíquica e dos princípios
homônimos aos da física (inércia e constância) que a regulam, os quais já foram
estudados em nossa apresentação do ponto de vista econômico (cf., p....).
Esta inovação terminológica se justifica por não existir em alemão uma palavra
equivalente à “fome” para designar a atração sexual (Cf. TETS, p. 25). “Em exata
analogia com a ‘fome’”, diz Freud, “empregamos ‘libido’ como nome da força (...) pela
qual a pulsão se manifesta” (CIP III, p. 366)124. A libido, portanto, é a “fome” sexual.
123
“Podemos perguntar”, indagam os autores do Vocabulário de Psicanálise, “se, numa terminologia
mais rigorosa, não conviria designar aquilo a que Freud chama ‘pulsões de autoconservação’ pelo termo
‘necessidades’, diferenciando-as assim melhor das pulsões sexuais” (VP, p 68).
124
Substituímos instinto por pulsão, nesta citação.
93
como sexual tudo aquilo que, com vistas a obter prazer, diz respeito ao corpo
e, em especial, aos órgãos sexuais de uma pessoa do sexo oposto, e que, em
última instância, visa à união dos genitais e à realização do ato sexual. (CIP
III, p. 355; Cf. TETS, p. 25).
125
Cf. o que foi exposto acima sobre os elementos da pulsão (p. 106s).
94
126
“Constatamos ser impossível tomar o partido da moralidade sexual convencional ou ter em apreço a
forma pela qual a sociedade procura regular na prática o problema da vida sexual” (CIP III, p. 506s).
127
“Não podemos deixar de observar com olho crítico...” (CIP, p. 506s)
95
condenadas moralmente (Cf. CIP III, p. 377), o que evidencia que as noções de
sexualidade e normalidade do senso comum são enganosas.
128
Consultar p. 177s deste trabalho.
129
Como afirma o próprio Freud, “a psicanálise jamais se esqueceu de que há também forças instintuais
[ou pulsionais] que não são sexuais” (CIP III, p. 410).
97
130
Sobre narcisismo primário, cf. p. 226 deste trabalho.
98
Ainda que a teoria freudiana seja uma das que, na história da psicologia, mais
contribuíram para promover a noção de fase, não parece que ela se
harmonize, na sua inspiração fundamental, com o uso que a psicologia
genética fez desta noção, postulando, a cada nível da evolução, estrutura de
conjunto de caráter integrativo (VP, p. 245).
99
para designar o modo de relação do indivíduo com seu mundo, relação que é
o resultado complexo e total de uma determinada organização da
personalidade, de uma apreensão mais ou menos fantasmática dos objetos e
de certos tipos privilegiados de defesa (VP, p. 576).
Assim, para cada fase e cada zona correspondente, existe um objeto típico
(objeto oral, anal etc.). Diferentemente da psicologia evolucionista, importa frisar que
no discurso freudiano os objetos típicos não são abandonados numa fase posterior ou
passam a integrar a fase genital, mas coexistem no adulto e determinam sua escolha
objetal. Assim, por exemplo:
131
Esta não é, contudo, a principal noção de tempo empregada por Freud. Temos de reconhecer com
Ricoeur que há no discurso freudiano um “arcaismo do sujeito”, segundo o qual o passado tende a
determinar o futuro. É preciso, então, completar a “arqueologia do sujeito” com uma “teleologia do
100
impressões passadas que podem ser remodeladas posteriormente - portanto, podem ser
resignificadas -, em função de novas experiências ou do acesso a outro grau de
desenvolvimento. O passado, portanto, é sempre passível de receber um novo sentido no
futuro e, ainda, uma eficácia psíquica. O tempo não corre, portanto, do passado para o
futuro, mas do futuro para o passado. É o próprio Freud quem o afirma:
sujeito”, que se inspira na “fenomenologia do espírito” de Hegel, na qual é sempre a última figura que dá
sentido às anteriores (Cf. I, p.....).
101
sua existência. Somente nos casos patológicos tornam-se elas ativas e reconhecíveis à
observação superficial” (TETS, p. 93).
A FASE ORAL
Esta citação nos traz a importante noção de apoio ou anáclise (Anlehnung), a que
já nos referimos anteriormente. Freud compara a satisfação/prazer obtida pela criança ao
orgasmo do adulto:
Ninguém que já tenha visto um bebê reclinar-se saciado no seio e dormir com
as faces coradas e um sorriso feliz pode fugir à reflexão de que o quadro
persiste como o protótipo da expressão da satisfação sexual na vida posterior
(TETS, p. 76).
132
“Qualquer (...) parte da pele ou membrana mucosa pode assumir as funções de uma zona erógena”
(TETS, p. 78); “Podemos decidir considerar a erogenicidade como uma característica geral de todos os
órgãos e, então, podemos falar de um aumento ou diminuição dela numa parte específica do corpo” (SNI,
p. 100); “As partes mais proeminentes do corpo de que esta libido se origina são conhecidas pelo nome de
zona erógena, embora, de fato, o corpo inteiro seja uma zona erógena deste tipo” (EP, p. 176).
102
FASE SÁDICO-ANAL
133
“Somos (...) obrigados a admitir que existe uma diferença dentro da fase oral da libido, tal como dentro
da fase sádico-anal. No nível primário daquela fase, a libido da criança está ligada ao ato de sugar (...). O
nível secundário desta fase difere do primeiro pelo fato de a criança trocar sua atividade de sugar pela de
morder´(Abraham, 1970, p. 111).
103
com a satisfação oriunda da realização desta necessidade vital: “a zona anal acha-se
bem adaptada, por sua posição, a atuar como um meio através do qual a sexualidade
pode ligar-se a outra função somática” (TETS, p.80).
Este prazer obtido no ato de defecar encontra logo a barreira da civilização que
exige ordem e limpeza (Cf. MEC, p. 55). Pela primeira vez, portanto, o bebê deve
defrontar com “o mundo externo como força inibidora, hostil, ao seu desejo e prazer”
(CIP III, p. 368).
134
Substituímos instinto por pulsão na passagem citada.
104
FASE FÁLICA136
135
Ambivalência é a “presença simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, atitudes e de
sentimentos opostos, por excelência, amor e ódio”. Ela aparece nas psicoses, neuroses e nos estados de
luto e melancolia. Conforme mostramos, está presente nas fases oral e anal, nas quais coexistem amor e
destruição do objeto (Cf. VP, p. 49s). Cf., adiante, p. 239-245; 287-293.
136
Como já estudamos os principais episódios e mecanismos desta fase (complexo de Édipo, complexo
de castração, identificação, formação do superego, etc.), vamos nos limitar aqui a ressaltar certos dados
omitidos na exposição anterior (consultar p. 148 deste trabalho).
105
apenas do clitóris para obter prazer e imagina que este órgão crescerá, transformando-se
num pênis (EP, p. 179; TETS, p. 117s; ACDAS, p. 314).
No entender de Freud, a fase fálica deve ser concebida como genital, pois
“apresenta um objeto sexual e certo grau de convergência dos impulsos sexuais sobre
esse objeto”. Contudo, a maturidade sexual só é alcançada na puberdade, quando a
criança tem de fato acesso à diferenciação entre os sexos (Cf. TETS, p. 95, nota 1).
PERÍODO DE LATÊNCIA
137
“Não há que se falar de qualquer abolição real das impressões da infância, mas antes de uma amnésia
semelhante àquela que os neuróticos exibem em relação a eventos ulteriores e cuja essência consiste em
simplesmente afastar estas impressões da consciência, ou seja, em reprimi-las [ou recalcá-las]” (TETS, p.
69). Sobre o declínio do complexo de Édipo consultar p. 157s deste trabalho.
106
encontrar e convergir para um mesmo objeto138. Quando isto não ocorre, ou seja,
quando a ternura se desvincula da sexualidade, o amor se torna impossível (Cf. TETS,
p. 96).
138
“Uma vida sexual normal só é assegurada pela exata convergência da corrente afetiva e da corrente
sensual ambas dirigidas para o objeto sexual e o objetivo sexual” (TETS, p. 103).
139
“Não há no curso do desenvolvimento sexual outras influências que se possam comparar em
importância com as liberações de sexualidade, onda de repressão [ou recalque] e sublimações” (TETS, p.
136).
107
FASE GENITAL
140
Consultar acima, p. 106.
141
Consultar, adiante, p. 149s.
108
genital” (TETS, p. 122). O caminho mais simples para a criança seria escolher seus
objetos sexuais entre aqueles que cuidam dela. Contudo, o período de latência
possibilita a construção de uma poderosa “barreira contra o incesto”, mediante a qual a
criança introjeta os preceitos morais que excluem de sua escolha objetal as pessoas que
amou em sua infância. Esta barreira é, antes de tudo, uma exigência cultural.
... Esses sintomas são substitutos – transcrições, por assim dizer – de diversos
processos psíquicos, desejos e vontades que, por obra de um processo
psíquico especial [recalque], foram impedidos de obter descarga em atividade
psíquica admissível para a consciência. (TETS, p. 56)
142
Sobre a noção de pulsão parcial, cf. acima, p. 197-203.
110
Entende-se, assim, que Freud tenha podido afirmar que “os sintomas se formam
em parte à custa da sexualidade anormal; as neuroses são, por assim dizer, o negativo
das perversões” (TETS, p. 58). A perversão, portanto, se apresenta quer sob a forma
positiva (a perversão propriamente dita), quer sob uma forma negativa (a neurose). No
segundo caso, as tendências perversas são recalcadas.
Freud verificou que inúmeros fenômenos clínicos poderiam ser explicados pelo
que Paul Näcke, em 1899, denominou narcisismo. Os homossexuais, por exemplo,
escolhem “inequivocamente” a si mesmos como objeto de amor, ou seja, “procuram um
rapaz que se pareça com eles próprios e a quem eles possam amar como eram amados
por sua mãe” (TETS, p. 35, nota 1; Cf. SNI, pp 89;104; PGAE, p. 59). Mas o narcisismo
não se encontra apenas no comportamento desviante. Pode ser verificado nas neuroses
atuais (hipocondria, por exemplo) e transferenciais (histeria e obsessão) e ainda, de
111
forma acentuada, a ponto de conduzir a uma ruptura dos vínculos com a realidade, nas
psicoses, quer dizer, na paranoia e na esquizofrenia. Esta última afecção se caracteriza
por dois fatores interdependentes: megalomania e desinteresse pelo mundo (coisas e
pessoas). No esquizofrênico, a libido deixa de investir em objetos externos e regressa
vigorosamente sobre o próprio ego, dando origem a um estado de megalomania ou
exaltação excessiva do próprio ego, “atitude”, diz Freud, “que pode ser denominada de
narcisismo” (SNI, p. 90s).
segundo o modelo das pessoas que cuidam, protegem e alimentam as crianças. O amor
anaclítico é, essencialmente, paternal ou maternal.
Que se ressalte, porém: o modo feminino de amar não é exclusivo das mulheres,
nem o masculino, dos homens: “Estou pronto a admitir”, diz Freud, “que existe um
número bem grande de mulheres que amam de acordo com os moldes do tipo
masculino...” (SNI, p. 106). As escolhas anaclítica e narcísica independem, portanto, do
sexo biológico. Afinal, já o vimos, a teoria da bissexualidade é essencial à psicanálise.
Neste último caso, o outro pode ser amado segundo o modelo do que se é, do que se foi
ou do que se gostaria de ser. A escolha narcísica se manifesta ainda no amor materno: a
mãe ama o filho porque este foi parte de si mesma.
O terceiro tipo de escolha narcísica, quer dizer, a que se manifesta como amor a
um ego ideal, isto é, o ego que se gostaria de ser, merece certos esclarecimentos
suplementares.
143
Cf. adiante (p. 308-325) nossa exposição e discussão desta obra.
144
Freud compreende de dois modos o narcisismo primário. Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução
distingue-o do autoerotismo e concebe-o como contemporâneo da formação de um primeiro esboço do
ego (Cf. SNI, p. 93). No quadro da segunda tópica, suprime a diferença entre autoerotismo e narcisismo,
considerando este último como um estado de fusão da criança com o mundo, anterior à formação do ego.
Registre-se que Lacan fica com a primeira concepção e situa o narcisismo primário na fase do espelho
(Cf. VP, 367-370). Sobre a fase do espelho, cf. adiante, p....
114
É no ensaio Para além do Princípio do Prazer (1920) que Freud introduz o novo
dualismo pulsional, a saber, pulsões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tânatos)145.
Nesta obra, ele nos comunica a descoberta de alguns fenômenos clínicos que revelam
uma tendência do psiquismo a repetir não apenas experiências de prazer, mas também
de desprazer. Vejamos alguns exemplos desta estranha “compulsão à repetição”, que
145
Freud nunca utilizou em seus escritos o termo grego Tânatos para designar as pulsões de morte.
Contudo, segundo seu biógrafo Ernest Jones, empregou-o em conversação (CF. VP, p. 651).
116
questiona o próprio princípio de prazer, princípio este cuja relevância no quadro teórico
da psicanálise já tivemos a oportunidade de estudar 146.
146
Cf. acima, p. 169-178.
117
criança na ordem simbólica147. Por ora queremos apenas sublinhar que a brincadeira
repete uma experiência profundamente dolorosa para o pequeno: a ausência da mãe. Por
que em suas atividades lúdicas o menino insiste em rememorar uma situação dolorosa?
Sua mente não estaria sendo conduzida por um “além do princípio do prazer”?
Essas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm
como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo
e de seus derivativos, e são invariavelmente atuados (acted out) na esfera da
transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as coisas
atingem esta etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi substituída por
outra nova, pela neurose de transferência. (APP, p. 30)
Não há dúvida de que a resistência é regulada pelo princípio do prazer, pois evita
a ansiedade intolerável que adviria da liberação brusca do recalcado. A função do
analista é levar o paciente a suportar, gradualmente, e não de uma só vez, o desprazer
necessário à eliminação do sintoma. Nesse sentido, o terapeuta é a encarnação do
princípio de realidade e sua técnica em nada contraria o princípio do prazer. Contudo –
e isto é um fato inusitado – a compulsão à repetição que se dá na esfera da transferência
revive não apenas experiências de prazer, mas também “experiências que não incluem
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram
satisfação...”. Neste último caso devem ser mencionadas, principalmente, as frustrações
libidinosas vivenciadas no período de formação do complexo de Édipo. “Os pacientes
repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas,
revivendo-as com a maior engenhosidade” (Cf. APP, p. 32).
147
Consultar p. 269 deste trabalho.
148
Cf., acima, p. 97-104.
118
cujas amizades resultam sempre em traição por parte do amigo; o amante cujos casos
amorosos frustrados atravessam sempre as mesmas fases e chegam às mesmas
conclusões. Em todas estas situações dá-se uma “perpétua recorrência da mesma coisa”
e o que se repete não é o prazer, mas o desprazer (Cf. APP, p. 33s).
Ora, esta compulsão à repetição tem um caráter pulsional. Não se pode fugir a
suspeita, pondera Freud, de que “deparamos com a trilha universal dos instintos e
talvez da vida orgânica em geral...”. A tendência à repetição, ou seja, “a restaurar um
estado anterior de coisas”, longe de ser fortuita, estrutura a vida instintiva (Cf. APP, p.
51s).
149
Freud usa Instinkt no original e não Trieb (Cf. NCIP, p. 133, nota 1). Levando em consideração esta
nomenclatura, estamos empregando o primeiro termo (instinto) para designar as tendências vitais no
sentido mais amplo, reservando pulsão para a esfera humana.
119
Observe-se que a morte a que tendem os seres vivos não é motivada por fatores
externos, mas resulta de fatores internos. A morte por pressão externa é evitada pelos
instintos de autoconservação. Na verdade, o organismo tende a morrer, mas apenas a
seu próprio modo (Cf. APP, p. 55).
substância viva (Cf. APP, pp 80, nota 1). “A libido de nossos instintos sexuais”, diz
Freud, “coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas
as coisas vivas” (APP, p. 68).
Os instintos de vida têm muito mais contato com nossa percepção interna,
surgindo como rompedores da paz e constantemente produzindo tensões cujo
alívio é sentido como prazer, ao passo que os instintos de morte parecem
efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade,
servir aos instintos de morte (APP, p. 83).
A maior parte do que dissemos até aqui se fundamenta mais na biologia que na
psicologia. Não deixa de ser estranha esta incursão de Freud no domínio da
“especulação” biológica, porquanto, conforme sabemos, a pulsão só pode ser decifrada
nos seus representantes psíquicos. É tempo, portanto, de retornarmos à clínica e
procurarmos nela os representantes das pulsões de morte.
150
Ver acima citação da p. 172 sobre princípio de Nirvana.
121
Freud cria a hipótese de fusão, união ou mistura das pulsões de vida e de morte.
Os dois grupos “raramente – talvez nunca – aparecem isolados um do outro, mas (...)
estão mutuamente mesclados em proporções variadas e mais diferentes, tornando-se
assim irreconhecíveis para nosso julgamento” (MEC, p. 79). Pode-se atribuir à
dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões em suas manifestações reais, o motivo
que levou Freud a só reconhecer tardiamente o papel da agressividade na vida psíquica,
como um fator distinto da sexualidade (Cf. PG, p. 252).
Uma determinada mistura dessas duas tendências está incluída nas relações
sexuais normais, e falamos em perversões quando estas deslocam para o
plano secundário os fins sexuais e os substituem por seus próprios fins.
(NCIP, p. 130)
151
Parece-nos oportuna esta distinção entre agressividade e destrutividade, embora ela nem sempre se
encontre no discurso de Freud.
122
A essência de uma regressão (da fase genital para a anal-sádica, por exemplo)
reside numa desfusão de instintos [ou pulsões], tal como, inversamente, o
avanço de uma fase anterior para a genital (...) estaria condicionado a um
acréscimo de componentes eróticos (EI, p. 55; Cf, p. 68).
O ego não arrisca a fazer objeção; admite sua culpa e submete-se ao castigo
(...). Na neurose obsessiva, o que estava em questão eram impulsos
censuráveis que permaneciam fora do ego, enquanto que na melancolia o
objeto a que a ira do superego se aplica foi incluído no ego mediante
identificação. (EI, p. 64s)
Nesta última afecção, o superego é dominado por “uma cultura pura do instinto
[ou pulsão] de morte”, o que não raro conduz o paciente ao suicídio, se a mania153 não
vier a tempo salvar o ego (Cf. EI, p. 67s). O crudelíssimo sentimento de culpa do
melancólico se explica, portanto, por uma desfusão máxima das pulsões: a
agressividade se desvincula quase que completamente de Eros e, em estado de pureza,
se empenha para destruir o ego.
Procuremos recapitular o que foi exposto a respeito da segunda classificação das
pulsões: 1º) Freud descobre na clínica a compulsão à repetição, isto é, a tendência
psíquica a repetir experiências de desprazer; 2º) Saindo do plano rigorosamente
psicanalítico e se introduzindo nos domínios da biologia, ele especula a respeito dos
152
Ver pp. 144-157 deste trabalho
153
“O ciclo maníaco-depressivo é o ciclo que medeia entre os períodos de acréscimo e decréscimo os
sentimentos de culpa, entre sentimentos de ‘aniquilamento’ e de ‘onipotência’, de punição e novo ato”.
Há que se distinguir, porém, o modelo normal de triunfo da mania patológica. Os exageros da mania
esmagam o ego tanto quanto a severa autopunição do superego (Cf. Fenichel, 1981, p. 38s).
124
instintos/pulsões de vida e de morte. Conclui que ambos têm uma tendência regressiva,
isto é, visam a recuperação de um estado anterior de coisas, sendo que Eros quer
conservar as tensões necessárias à vida e Tânatos quer eliminar tais tensões e regressar
ao estado inanimado, ou seja, à morte. Há, portanto, uma luta entre Eros – a tendência à
união e à complexificação – e Tânatos – a tendência à desunião e à autodestruição; 3º)
Abandonando suas especulações, Freud procura indicar alguns representantes das
pulsões de morte na clínica, pois a psicanálise perderia sua especificidade caso
pretendesse se limitar ao estudo biológico das pulsões, em lugar de procurar decifrá-las
através de seus representantes psíquicos. Investiga, então, a perversão sadomasoquista, a
neurose obsessiva e a melancolia, sob o ângulo da destrutividade da pulsão de morte;
4º) Em síntese, ele descobre o seguinte: a) Tanto no nível biológico como no
psicológico a destrutividade inerente aos seres vivos é expulsa por Eros para o exterior;
b) Na vida psicológica, a destrutividade que se volta para fora (a agressividade) pode
integrar-se ou não à sexualidade e à autoconservação; c) A integração ou fusão das
pulsões de vida com as de morte é altamente positiva para o psiquismo e ocorre, em
condições normais, na fase genital. Nas fases sádico-oral e sádico-anal, que se
caracterizam pela ambivalência de tendências e sentimentos, as pulsões encontram-se
ainda em estado de desfusão; d) A perversão sadomasoquista, a neurose obsessiva e a
melancolia, na medida em que apresentam nítida característica de desfusão pulsional,
podem ser consideradas como regressão aos estágios pré-genitais de organização da
libido; e) O sentimento de culpa que se manifesta na obsessão neurótica e na melancolia
pode ser explicado como o retorno da agressividade, que havia sido expulsa por Eros
para o exterior, na direção do próprio ego, graças à mediação do superego; f) Não é,
contudo, apenas o sentimento de culpa patológico que resulta de uma repressão da
agressividade. Na verdade, a repressão e a interiorização da agressividade são uma
exigência da civilização: representam “o mais severo sacrifício” a que se submete o
indivíduo para conviver em sociedade (Cf. NCIP, p. 137); g) Do sentimento de culpa
resulta, consoante o título do famoso ensaio de Freud, que estudaremos adiante (cf.
p.....), um permanente “mal-estar na civilização”.
125
4) INCONSCIENTE E LINGUAGEM
154
Ricoeur resume, comenta e endossa as teses de J.Laplanche e S.Leclaire (Cf. I, p. 320-322/Fr. 390-
394).
155
Cf. G. Politzer, Critique des fondements de la psychologie . I. La psychologie et la psychanalyse,
Rieder, 1928.
126
156
Sobre a noção de apoio, consultar ps. 195s deste trabalho
128
Um garoto de doze anos cai num buraco e se fere. Grita forte. Alguém se
aproxima (o psicanalista) para ver onde está a ferida. Aparece no calcanhar um
arranhão em forma de vírgula, que não sangra. O garoto se feriu com um objeto
em forma de foice no interior do buraco.
Dissemos que o grito do sonho manifesto não resulta da dor, não expressa o
sofrimento da vítima. Resulta sim, podemos dizer agora, da situação catastrófica
introduzida pela pulsão de morte (a castração). Na verdade, é um grito de ansiedade
frente à morte, grito desesperado pela vida. E a dor indica a sobrevivência do indivíduo
à castração, ou seja, já é um sinal de vida (Cf. IEP, p. 110).
157
No entender dos articulistas, deve-se distinguir a pulsão de morte da agressividade. Esta não se opõe à
vida, mas é apenas a outra face de Eros, ou seja, a manifestação negativa da libido (Cf. IEP, p. 111, nota
1). Na verdade, os autores têm uma concepção peculiar da pulsão de morte (articulam-na com o complexo
de castração), concepção esta que, a nosso ver, não coincide exatamente com a de Freud.
129
Este gesto e esta fórmula, que deixaram uma marca indelével na mente de
Philippe, são, portanto, os representantes psíquicos de uma pulsão que é oral em sua
fonte.
158
Cf., acima, p. 123-128.
130
Além do mais, o fonema “Li”, que também se encontra em “Li-corne”, evoca a palavra
“lit” (leito). É para Lili, portanto, que se orienta o desejo de Philippe.
Não é por acaso que este animal mítico aparece no sonho. Todas as associações
conduzem a ele e ele conduz “ao lugar de beber, ao instante de beber onde culmina e se
esvai o desejo”.
Tudo o que foi dito, portanto, confirma: a sede orgânica é um mero pretexto (ou
apoio), uma maneira de figurar a sede mais radical de Philippe. A fórmula “estou com
sede”, pronunciada diante de Lili, expressa o desejo
O nível do desejo e de sua força é o do imaginário (no caso, do mito), desde que
seja apto a mascarar a pulsão de morte, isto é, a castração. No sonho, o licorne aparece
como uma admirável metonímia do desejo de Philippe. Expliquemo-nos melhor a
respeito deste termo que, juntamente com o de metáfora, Lacan toma de empréstimo à
linguística de R. Jakobson160, para repensar a teoria freudiana do inconsciente.
159
Observe-se que “o ‘falo’ não se reduz ao sexo biológico, para o qual Lacan reserva o nome ‘pênis’. O
falo é um significante, um significante metafórico: é a metáfora paternal” (Fages, 1977, p. 27). Veremos
adiante o significado desta última expressão.
160
Cf. R. Jakobson, Essais de linguistique gènèrale, T. I, trad. fr., Paris: Minuit, ps. 61-69.
131
significantes comanda o conjunto dos significados, pois este último surge pela
substituição (metafórica ou metonímica) de um significante por outro. “A significação
nasce da tomada do conjunto dos termos com jogos múltiplos de reenvios de
significantes a significantes” (Lemaire, 1979, p. 80). Esta substituição, observe-se, não é
arbitrária, mas obedece às leis do sistema linguístico:
161
Os autores se referem à cicatriz facial de Philippe, a qual no sonho aparece em um de seus pés. O
termo licorne retém entre suas duas sílabas extremas (li e ne) toda a cadeia ou complexo significante (li[t]
= Lili, leito, leite, seio e corne = corno, cicatriz, foice). Isto sem falar na figura do licorne, que, como
vimos, é um símbolo fálico.
162
Convém lembrar que enquanto Leclaire se manteve sempre fiel a Lacan, Laplanche pode ser
considerado como o seu primeiro discípulo dissidente.
133
S’ X S S’/s
S s S/S
Vejamos como deve ser entendida a fórmula final e como ela se torna
operacionalmente relevante para a psicanálise.
163
Freud, como já dissemos, distingue “representação de coisa” de “representação de palavra” Cf., acima,
p..... [[ A primeira é essencialmente visual, a segunda acústica. O inconsciente só compreende
representações de coisa, ao passo que “as representações de palavras são introduzidas numa concepção
que liga a verbalização e a tomada de consciência. Assim, desde o Projeto de uma Psicologia (...) que
encontramos a ideia de que é associando-se a uma imagem verbal que a imagem mnésica pode adquirir o
índice de qualidade específico da consciência” (VP, p. 585).]]
134
A segunda ação revela que não pode haver qualquer recalque sem que a
representação afastada do Pcs-Cs entre em conexão com alguma outra representação
anteriormente recalcada. Quer dizer, o recalcado, para se tornar tal, deve encontrar seu
lugar numa cadeia de representações (ou significantes) inconscientes. Em outros termos:
o recalque já supõe a existência do sistema inconsciente. Daí a necessidade de se
distinguir o recalque originário (Urverdrängung), que cinde o psiquismo em dois
sistemas, e o recalque secundário (Nachdrängen) ou recalque propriamente dito.
164
Substituímos “apresentação”, na tradução portuguesa da editora Imago, por "representação”, termo que
corresponde mais adequadamente ao alemão Vorstellung que se encontra nas expressões Sachvorstellung
(representação de coisa) e Wortvorstellung (representação de palavra) (Cf. VP, p. 564s).
165
Consultar p. 120s deste trabalho.
135
Para explicar esta última expressão é oportuno investigar a fase do espelho, tal
como Lacan a concebe (Cf. Lacan, 1977, p. 21-28; Fages, 1977, p. 23-26).
166
Lemaire esclarece: “a pulsão de morte é a energia específica que permite o contrainvestimento
necessário ao recalque originário criador do inconsciente” (1979, p. 217).
136
Este estádio deve ser entendido “como uma identificação, no sentido pleno que a
análise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando este
assume uma imagem ...” (Lacan, 1977, p. 22). Esta identificação primeira é a matriz de
todas as outras. É dual, imediata, direta, narcísica. “A criança se identifica com um
duplo de si mesma, a uma imagem que não é ela própria, mas que lhe permite
reconhecer-se” (Fages, 1977, p. 24). Este primeiro esboço do ego é, assim, puramente
imaginário.
É neste momento que o ser humano se introduz na ordem simbólica. Com efeito, a
criança que até então vivia numa relação simbiótica com a mãe, que era uma com ela,
passa pela experiência da privação da mãe. Desencadeia-se, assim, a crise da primeira
identificação, a crise do imaginário. “O desenlace desta crise será na criança a aptidão
para nomear a causa das ausências da mãe, para nomear o pai e, nomeando-o, integrar
sua lei”. A criança se torna capaz de pronunciar o “Nome-do-Pai”: um novo significante
expulsa o anterior, provoca a ausência da mãe e empurra para o inconsciente o
significado do falo (Cf. Fages, 1977, p. 28).
indivíduo e constitui, assim, um “além do princípio do prazer”, que deve ser concebido
como manifestação da pulsão de morte.
167
Consultar p. 177s deste trabalho.
140
lançada sobre o universo subjetivo; mas nenhum significado particular cai numa rede
particular” (IEP, p. 121). O Fort-da seria um exemplo deste primeiro nível de
simbolização. Leclaire, diferentemente de Laplanche, admite que esta etapa inicial já
teria o poder de gerar o inconsciente, coincidindo com o recalque originário. Quer dizer,
para ele o recalque originário não é ainda a metáfora, mas a condição do funcionamento
posterior desta. Esta discordância, observe-se, marca o começo da separação entre
Laplanche, por um lado, e Lacan/Leclaire, por outro.
141
CAPÍTULO 3
A PSICANÁLISE DA CULTURA168
1) CULTURA E REPRESSÃO169
A cultura, isto é, “tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua
condição animal”, apresenta dois aspectos: a) o controle da natureza pelo conhecimento
e pelo trabalho, tendo em vista a satisfação das necessidades humanas; b) os
168
A palavra alemã Kultur é empregada por Freud tanto para designar civilização como cultura (Cf. FI, p.
16). Em vista disso, utilizaremos indiferentemente os dois termos.
169
Vimos que Freud distingue o recalque originário do recalque secundário e sabemos que este último
pressupõe o primeiro para operar. Considerando o largo uso, em português, do termo repressão, para
designar a coibição, opressão e violência sociais e tendo em vista que este emprego se articula com o
discurso psicanalítico da cultura, no qual Freud trata o recalque sobretudo como um mecanismo
psicossocial (e não apenas individual) com caráter opressor, utilizaremos repressão como sinônimo de
recalque secundário neste capítulo.
142
coerção e a renúncia ao instinto [ou pulsão] ...” (FI, p. 17). O máximo que se pode
almejar é a redução para uma minoria da maioria que ainda é hostil à civilização (Cf. FI,
p. 16).
A questão decisiva, no que diz respeito à vida civilizada, consiste, portanto, “em
saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais [ou
pulsionais] impostos aos homens ...” (FI, p. 17). Em Mal Estar na Civilização (1930),
Freud investiga esta questão, chegando a uma conclusão pessimista. Acompanhemos
sua argumentação.
3º) Tendo em vista que o sofrimento não é mais que sensação, há os que
procuram influir nos próprios órgãos sensórios mediante substâncias tóxicas (Freud
lamenta que este recurso grosseiro, mas eficaz, exaltado, não obstante os perigos, por
povos e indivíduos, tenha sido tão pouco estudado pela ciência) (Cf. MEC, p. 34s);
144
4º) Há pessoas que conseguem agir sobre as próprias pulsões, quer controlando-
as, como ocorre na ascese cristã, quer aniquilando-as, como se prescreve na mística
oriental. No controle, não se abandona o objetivo do prazer, mas apenas se fortalece a
resistência da mente ao desprazer. Contudo, se o controle, por um lado, conduz a uma
certa independência em relação às exigências pulsionais, por outro, diminui
consideravelmente a qualidade do prazer. “O sentimento de felicidade derivado da
satisfação de uma selvagem tendência pulsional não domada pelo ego”, sustenta Freud,
“é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de uma pulsão que
já foi domada” (MEC, p. 36)170;
5º) Um outro recurso para aliviar o sacrifício pulsional exigido pela vida
comunitária é a sublimação. No entender de Freud, este processo “constitui um aspecto
particularmente evidente do desenvolvimento cultural.” (MEC, p. 56). A alegria do
artista em dar corpo às suas fantasias e a do cientista em solucionar problemas
comprovam o grande valor cultural da sublimação. “Contudo, sua intensidade se revela
muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de tendências
pulsionais grosseiras e primárias; ela não convulsiona o nosso ser físico”171. O mais
lamentável, no entanto, é que este método só é acessível a uma minoria, pois “pressupõe
a posse de dotes e disposições especiais” (MEC, p. 36s);
6º) O trabalho também pode ser uma técnica muito eficaz para reduzir o
sofrimento, pois é capaz de desviar para fins sociais “uma grande quantidade de
componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos” (MEC, p.
37, nota 1). O trabalho fixa o indivíduo à realidade, fornece-lhe um lugar seguro na
170
Substituímos “instinto” e” impulso instintivo” nesta citação respectivamente por “pulsão” e “tendência
pulsional”.
171
Aqui Freud é pego em sua própria armadilha. Esta identificação da felicidade com a satisfação
convulsiva ou selvagem de nosso ser físico corresponde à concepção econômica ou quantitativa do
prazer, como redução de tensão. Contudo, há que se reconhecer que o próprio Freud, não obstante o valor
operacional desta hipótese, leva-nos a questioná-la ao admitir tensões agradáveis introduzidas por Eros
(Cf. APP, p. 82). Como nos lembra Rollo May, Eros trabalha no sentido “oposto ao princípio do prazer”
(1973, p. 95s). Segundo H. Marcuse, com a emergência do princípio de realidade ocorre uma
“transubstanciação do próprio prazer”. Isto não é uma perda para o homem, mas um imenso ganho, pois
“o âmbito dos desejos humanos e a instrumentabilidade para sua gratificação foram, assim,
incomensuravelmente aumentados...” (1975, p. 35s). O princípio de realidade, como sustenta ainda este
pensador, é histórico. Assim como existe uma realidade sociocultural opressora é legítimo imaginar e
buscar uma outra (utopia), em que a dominação tenha sido extinta e a sublimação deixe de ser o privilégio
de uma minoria (cf. o próximo item ) para se tornar um direito de todos. De acordo com a releitura do
discurso freudiano proposta por alguns teóricos franceses, há que se distinguir, como já estudamos, o
prazer obtido pela realização do desejo (nível imaginário e simbólico) da satisfação das necessidades
vitais (nível real). Freud, nos textos citados, parece “esquecer-se” da sua primeira classificação das
pulsões, que distingue, como mostramos, a ordem sexual do desejo da ordem biológica das necessidades.
145
7º) Um outro meio para manter afastado o sofrimento e, mais do que isto,
procurar positivamente a felicidade é a arte de amar e ser amado. Contudo, esta
“técnica” tem o seu lado desalentador. Não obstante o amor sexual ser capaz de
proporcionar “a mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer...”,
há que se reconhecer que nunca nos sentimos tão desamparados e infelizes quando
perdemos nosso objeto de amor (Cf. MEC, p. 39), a ponto de muitos desistirem de amar
exatamente para não sofrerem as terríveis consequências da separação;
172
Freud não questiona radicalmente esta aversão ao trabalho, que de modo algum é natural, mas
histórico-cultural, pois resulta da dominação de uma classe por outra, como defende K. Marx. Segundo
Marcuse – autor a quem Ricoeur cita e presta homenagem (Cf. I, p. 2; p. 372, nota 37 / Fr., p. 8; p. 443,
nota 37) – existe um vínculo entre repressão e exploração do trabalho. Ele se refere inclusive a uma
“mais-repressão” (um excesso de repressão) necessária à preservação da dominação social. Além do
“trabalho alienado”, estudado e denunciado por Marx, há que se reconhecer, como propõe Marcuse
articulando Marx e Freud, o “trabalho libidinal” (ou erótico), vale dizer, o trabalho prazeroso, cujo
modelo pode ser considerado como a criação estética. A aversão das massas só se dá em relação ao
primeiro e não ao segundo (Cf. Marcuse, Eros e Civilização, p. 51-60). A limitação a uma minoria
privilegiada das disposições necessárias à sublimação é também um fato histórico vinculado à dominação
social. Nada tem de natural e insuperável (Cf. K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844,
coleção Os Pensadores, nº XXXV, São Paulo: Abril, 1974).
146
No que diz respeito à repressão sexual, Freud observa, de início, que o primeiro
passo no caminho da civilização foi a estruturação da família. Quando a necessidade
sexual deixou de ser um hóspede passageiro e se alojou como um inquilino permanente,
o macho passou a desejar a fêmea junto a si e esta não quis separar-se de seus rebentos
(Cf. MEC, p. 57). A exigência de estabilidade afetiva e sexual gerou, assim, a família.
Para que a civilização surgisse, no entanto, foi necessário que a libido sofresse um
desvio de modo a transformar o amor genital no que Freud denomina “amor com o
objetivo inibido”, cujo protótipo se encontra na solidariedade universal de Francisco de
Assis (Cf. MEC, p. 60). Com esta modificação pulsional a sensualidade se transforma
em ternura e amizade. O Eros individual é, assim, socializado, isto é, cria laços com
pessoas estranhas à família (Cf. MEC, p. 61). Enquanto a inibição dos objetivos
pulsionais, transformando-o de prazer genital em prazer afetivo, não altera os objetos
(as pessoas desejadas), a sublimação modifica tanto os objetivos como os objetos,
retirando-os do âmbito do estritamente sexual para o vasto campo da cultura. Na
verdade, como observa Marcuse, tudo aquilo que Freud denomina “destinos (ou
vicissitudes) das pulsões” está à serviço da cultura:
Diante do que acabamos de expor, entende-se que uma boa quota de energia
necessária à civilização é retirada da sexualidade (Cf. MEC, p. 63). A economia social
se fundamenta na economia psíquica, pois sem repressão sexual não há trabalho.
menos que trabalhem, ela deve limitar o número deles e desviar suas energias
da atividade sexual para o trabalho (CIP III, p. 364s).
173
Convém contrapor às afirmações de Freud, algumas outras de dois grandes clássicos da literatura que
podem trazer alguma luz sobre o significado da proposta cristã de amar os próprios inimigos: “Escreveu
Göethe: ‘um coração que ama alguém, não pode odiar ninguém’; e bem antes dele, Dante, ao falar de sua
Beatriz, disse: quando ela apareceu, ‘não havia mais para mim nenhum inimigo’. Quando esse alguém é
148
amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacados; pelo contrário, são
criaturas entre cujos dotes instintivos [ou pulsionais] deve-se levar em conta uma
poderosa quota de agressividade” (MEC, p. 71).
Deus e Beatriz for figurativa do Absoluto, então se pode compreender que o amor a Deus implica o amor
a todos os que Ele ama, até os inimigos...” (L. Boff, A graça libertadora do mundo, Petrópolis: Vozes,
1977, p. 128).
174
Freud cita Hobbes, o que indica que a tese da maldade original da natureza humana é apenas a
retomada de um tema antigo. Na verdade, a antropologia contemporânea nos mostra que o natural no
homem está em contínuo processo de aculturação. Como observam Laplanche e Pontalis, a originalidade
da teoria freudiana da agressividade deve ser buscada alhures: “... fazendo da autoagressão o próprio
princípio da agressividade, Freud destrói a noção de agressividade, classicamente descrita, e já há muito
tempo, como de relação com outrem, violência exercida sobre outrem” (VP, p. 415). Em outros termos: a
originalidade de Freud não está em afirmar que “o homem é o lobo do homem”, mas que o homem pode
ser o lobo de si mesmo.
175
Consultar p. 238s deste trabalho.
149
A psicanálise foi muito criticada, nos seus primórdios, por só ver o lado sórdido
da existência humana e ignorar o que ela tem de mais “elevado, moral e suprapessoal”.
Freud se defende observando por um lado, que desde o início atribuiu “às tendências
morais e estéticas a função de incentivar a repressão” (EI, p. 48) e, por outro, que não
havia como investigar o sublime do ser humano, quando apenas o recalcado era objeto
de estudo da psicanálise.
Em contraste com a vida sexual humana, a consciência moral não existe desde o
início. “As crianças de tenra idade são amorais (...). O papel que mais tarde é assumido
pelo superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pelos pais” (NCIP, p.
80).
177
Sobre a teoria da fusão e desfusão das pulsões consultar p. 239s deste trabalho.
151
do ego com o superego: a totalidade de sua agressividade volta-se para fora. (Cf. MEC,
p. 92, nota).
3) A ILUSÃO RELIGIOSA
178
Tais ideias, que “passaram por um longo processo de desenvolvimento”, só são válidas para as
religiões ocidentais, especialmente as cristãs (Cf. FI, p. 31).
179
Rubens Alves, comentando este sumário da religião elaborado por Freud, observa: “... descrever a
experiência religiosa tomando suas cristalizações institucionais e dogmáticas como ponto de referência é
o mesmo que tentar compreender a vida através do cadáver. Existe um abismo entre as formas reificadas
da religião e a experiência que lhes deu origem. Poder-se-á compreender o amor pela instituição do
casamento? (...) O mesmo podemos dizer da infinita distância que separa a experiência religiosa,
essencialmente emocional e existencial, dos objetos que eventualmente surgiram desta experiência”
(Alves, 1975, p. 98).
153
As ideias religiosas não podem ser demonstradas nem refutadas, quer dizer, não
pertencem ao corpo do saber científico, o que, aliás, diga-se de passagem, não é a
pretensão delas. Justamente por isto, ninguém é obrigado a crer ou a descrer. Com esta
constatação, porém, Freud não pretende nem de longe legitimar o ato de fé. “Nenhuma
pessoa sensata”, afirma ele, “pode contentar-se com fundamentos tão débeis para suas
opiniões” 181 (Cf. FI, p. 45).
A ilusão religiosa fantasia a realidade e toma como real o que é apenas produção
imaginária. Neste sentido distingue-se tanto da arte como da ciência. Tal como a criação
artística, a religião é uma satisfação substitutiva, que visa tornar a vida mais suportável
(Cf. MEC, p. 31). Todavia, enquanto as fantasias estéticas mantêm-se afastadas do real,
tendo o artista plena consciência da distinção entre os dois registros (Cf. ECD, p. 150), a
ilusão religiosa equivale a um “delírio de massa”, à correção de um aspecto insuportável
180
Demonstrando acreditar que a ciência possa um dia criar um mundo mais humano, Freud pondera:
“talvez as esperanças que confessei sejam de natureza ilusória”, mas “minhas ilusões não são como as
religiosas, incapazes de correção. Não possuem o caráter de um delírio” (FI, p. 67).
181
Freud reconhece que o ato de fé é um ato livre, uma decisão, que ultrapassa o domínio da verificação
científica. Contudo, considerando muito mal fundadas as concepções religiosas, admite que só os
insensatos lhes possam dar adesão. Esta afirmação, um tanto apressada, não resiste à verificação. Quer
sejamos religiosos ou não temos de reconhecer que inúmeros sábios (Pascal, Pasteur, Einstein, por
exemplo) têm aderido incondicionalmente aos ensinamentos religiosos ou pelo menos à crença em Deus
ao longo da história.
154
do mundo por ação de um desejo que identifica o imaginário com o real (CF. MEC, p.
38 e 42). Na medida em que o artista trabalha suas fantasias e as distingue do real,
permanece aberto o espaço para o saber científico. A ciência, portanto, não é
incompatível com a arte e sim com a religião, pois esta última, confundindo o real com
as fantasias, interfere no saber objetivo, impedindo o avanço do conhecimento182.
Esta atitude frente à natureza equivale à relação da criança para com o pai. Há
uma perfeita correspondência entre o desamparo infantil diante da vida e o desamparo
do adulto frente à natureza. É este último que gera as ideias religiosas em consonância
com o “complexo paterno”183.
182
“Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes
intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação
religiosa que tem grande parte da culpa por esta relativa atrofia?” (FI, p. 61).
183
“Expressão usada por Freud para designar uma das principais dimensões do complexo de Édipo: a
relação ambivalente com o pai” (VP, p. 123).
155
Ao criar deuses (ou Deus) a mente humana opera de modo análogo ao que
conduz à produção do sonho. Assim, por exemplo, se alguém durante o sono é tomado
por um pressentimento da morte, a elaboração onírica pode transformar “esse terrível
evento numa realização de desejo: aquele que sonha vê-se a si mesmo numa antiga
sepultura etrusca a que desceu, feliz, por satisfazer seus interesses arqueológicos” (FI, p.
28). O desejo transfigura a perturbadora experiência da proximidade da morte numa
situação atraente e agradável. A ilusão religiosa opera uma metamorfose análoga:
transforma a insegurança do destino numa experiência aconchegante, guiada e protegida
pela providência divina.
184
Conforme veremos na próxima seção, Freud forjou a hipótese audaciosa de um Édipo histórico, ou
seja, do assassinato do pai primevo.
185
O neurótico se sente obrigado a realizar certos atos aparentemente absurdos, como lavar-se várias
vezes durante o dia, dispor os objetos do quarto e da cama numa certa ordem antes de dormir, não provar
certos alimentos ou não tocar em certos objetos etc, etc. (Cf. pp ..... deste trabalho).
186
“Chegou a hora, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da repressão pelos
resultados da operação racional do intelecto” (FI, p. 58).
157
Freud, contudo, não deixa de reconhecer os limites desta analogia entre neurose
e comportamento religioso. “É fácil perceber onde se encontram as semelhanças entre
cerimoniais neuróticos e atos sagrados do ritual religioso (...). Mas as diferenças são
igualmente óbvias, e algumas tão gritantes que tornam qualquer comparação um
sacrilégio” (AOPR, p. 123).
Os dois fenômenos, portanto, por mais que se aproximem entre si, são
irredutíveis um ao outro, devendo reconhecer-se a cada um sua especificidade. Freud
parece admitir isto com maior clareza ainda, quando, em Totem e Tabu, ampliando os
termos da comparação, observa:
Providência benevolente, uma ordem moral no universo e uma vida posterior; constitui,
porém, fator bastante notável que tudo isso seja exatamente como estamos fadados a
desejar que seja” (FI, p. 46).
Com estas observações Freud não pretende nem de longe aderir aos
ensinamentos religiosos. Ele admite que tanto o ateu quanto o crente vivem a
experiência do desamparo, da impotência e da insignificância do homem frente à vida e
ao universo. Contudo, enquanto o crente, regredindo psiquicamente à infância, recorre á
ilusão religiosa, o ateu “não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno
papel que os seres humanos desempenham no grande mundo” (FI, p. 46). Freud,
portanto, como observa Berger, adota uma atitude estoica frente à religião.
Quase não se precisa dizer que este tipo de estoicismo merece o mais
profundo respeito e, de fato constitui uma das mais impressionantes atitudes
de que o homem é capaz. A coragem tranquila de Freud frente à barbárie
nazista e em sua própria doença pode ser citada como um primoroso exemplo
desta realização humana.
psíquica, isto é, o desejo e seus fantasmas187. Não são os fatos que determinam a
maneira humana de ser, mas “os fatos transfigurados pela emoção. O homem é um
sonhador, mesmo acordado. Esta é uma das contribuições mais importantes do pai da
psicanálise para a compreensão do enigma do homem” (Alves, 1975, p.22).
Camus certa vez observou: “O homem é a única criatura que se recusa a ser o
que é”. Ora, como conceber a imaginação humana senão como a recusa do real, a
revolta contra a facticidade, a afirmação enfática de que o que não é deve ser? “A
imaginação é a consciência de uma ausência, a saudade daquilo que ainda não é, a
declaração de amor pelas coisas que ainda não nasceram” (Alves, op. cit., p.19). Pois
bem, a religião se inscreve no registro da imaginação. Como sustenta oportunamente
Rubens Alves na esteira de Ludwig Feuerbach e do próprio Freud, “ as entidades
religiosas são entidades imaginárias” (Alves, 1981, p. 30). A experiência religiosa – e
não as instituições que a sufocam – nos fala originariamente não de objetos externos,
nem mesmo do próprio Deus, mas das profundezas do coração humano: “A verdade da
religião não está na infinitude do objeto, mas antes na infinitude da paixão” (op. cit.,
p.27). Freud percebeu isto muito bem. O desejo se estrutura de tal forma que nenhum
objeto real é capaz de preenchê-lo: há sempre um déficit entre o que ele demanda e o
que efetivamente alcança (Cf. APP, p. 58). Daí os deslocamentos incessantes, as
infinitas substituições imaginárias e simbólicas, porque o verdadeiro objeto jamais é
alcançado. O prazer apenas se anuncia188 nas funções vitais e na própria sexualidade,
mas nunca é totalmente alcançado. Pode-se duvidar da existência de Deus, mas não de
que o desejo humano é fundamentalmente desejo de Deus. O reconhecimento da
existência de Deus, ou melhor, a adesão a esta existência é um ato de fé, de decisão
pessoal, portanto. Como reconhece Freud, “assim como ninguém pode ser forçado a
crer, também ninguém pode ser forçado a descrer” (FI, p. 45). Pascal já o tinha visto
bem antes: o homem religioso é o que aposta na existência de Deus. Ora, esta aposta,
como qualquer outra, não é desprovida de riscos. No jogo da fé, o crente, num lance
decisivo, arrisca sua existência inteira na esperança de ganhar a única coisa que importa
realmente, isto é, o sentido. As certezas da fé não vêm a priori, mas a posteriori, falam
mais ao coração que a razão. Afinal, como Freud nos ensinou, Eros e não logos é o
fundamento da existência.
187
Consultar pp 177s e 188 deste trabalho.
188
Consultar a noção de apoio (p. 195s desta dissertação).
160
4) O ÉDIPO HISTÓRICO
Freud recolhe alguns dados da antropologia para construir sua hipótese acerca da
origem da cultura. Basicamente, seu propósito é interpretar o fenômeno do totemismo e
os tabus (ou proibições) a ele vinculados. As tribos são compostas de pequenos grupos,
ou clãs, cada um dos quais é denominado segundo seu totem. “O que é um totem? Via
de regra é um animal (comível e inofensivo ou perigoso e temido) e mais raramente um
vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relações
peculiares com todo o clã”.
Não é um indivíduo isolado, mas uma classe de objetos. Por ser “o antepassado
comum do clã”, protege-o e concede-lhe seus favores. Os integrantes do clã estão na
obrigação sagrada de não matar nem destruir o totem. De tempos em tempos são
celebrados festivais, nos quais eles procuram imitar os movimentos e atributos do totem
(Cf. TT, p. 15). Maclennan, em 1869, foi o primeiro a levantar a hipótese de que grande
número de costumes e práticas sociais, comuns em sociedades antigas e modernas, são
remanescentes de um época totêmica (Cf. TT, p. 119).
189
Referindo-se ao caráter regressivo do sonho, que faz ressurgir de alguma forma a infância, Freud
assevera: “Por trás desta infância do indivíduo é-nos prometido o quadro de uma infância filogenética –
um quadro do desenvolvimento da raça humana, do qual o desenvolvimento do indivíduo é, na realidade,
uma recapitulação abreviada, influenciada pelas circunstâncias fortuitas da vida” (IS, p. 585). Esta
perspectiva ontogenética e filogenética endossada por Freud é oriunda, como se sabe, do evolucionismo
positivista peculiar ao século XIX. Constitui, sem dúvida, um elemento ideológico do discurso freudiano.
161
Outros tabus, além dos totêmicos, merecem ser lembrados, a saber, os que
regulam as relações dos membros da tribo com os inimigos assassinados, com seus
chefes e governantes e com seus mortos queridos. Consideremos cada um deles.
A alma do inimigo morto deve ser apaziguada e aquele que o matou, por ser
impuro, deve sofrer restrições, realizar individualmente atos de expiação e participar de
cerimônias públicas de purificação (Cf. TT, p. 49s). Como se vê, “os impulsos que
expressam para com um inimigo não são unicamente hostis. São também manifestações
162
No que diz respeito às relações com seus governantes, duas normas básicas
orientam a conduta dos primitivos: devem proteger seus chefes e ser protegidos contra
eles. Os governantes são dotados de um poder mágico e misterioso que, transmitido ao
homem comum, provoca-lhe a ruína ou mesmo a morte. Daí a necessidade de isolar os
chefes e sacerdotes do restante da comunidade, necessidade esta que sobrevive ainda
hoje sob a forma do cerimonial de corte. Porém, o isolamento dos governantes não
significa apenas uma proteção contra eles, mas também uma proteção para eles. “A
necessidade de proteger o rei contra toda forma possível de perigo decorre de sua
imensa importância para seus súditos (...). É a sua pessoa que, estritamente falando,
regula todo o curso da existência” (TT, p. 58). Contudo, as homenagens e os cuidados
dedicados aos chefes resultam para estes numa terrível privação de liberdade. Os tabus,
frequentemente, são tão complexos, variados e minuciosos que transformam a
existência dos reis num fardo insuportável, “muito pior que a de seus súditos” (TT, p.
65). Algumas das exigências são tão cruéis que “fazem lembrar as restrições impostas
aos assassinos” (TT, p. 65), a ponto de, não raro, os líderes destas sociedades fugirem
para não assumirem a realeza (Cf. TT, p. 61s).
Até aqui nos limitamos a apresentar os dados da etnologia, tais como foram
recolhidos por Freud nas mais autorizadas fontes da época, hoje, porém, diga-se de
163
Consideremos um caso obsessivo típico, em que esta fobia aparece com nitidez. O
paciente na mais tenra infância revelou um forte desejo de tocar em seus órgãos
genitais. Este desejo deparou de pronto com uma proibição externa, que logo foi
introjetada. A proibição, contudo, não abole o desejo, mas o recalca. Tanto a proibição
como o desejo persistem: este, porque foi apenas recalcado; aquela, porque caso fosse
suspensa forçaria o ingresso do desejo na consciência. Cria-se, assim, um conflito
permanente – que pode ser considerado como uma fixação psíquica – entre o desejo e a
interdição.
A principal característica da constelação psicológica que dessa forma se torna
fixa é algo que poderia ser descrito como a atitude ambivalente do sujeito
com um objeto determinado. Ele deseja constantemente realizar esse ato (o
tocar) e o considera seu gozo supremo, mas não deve realizá-lo e também o
detesta (TT, p. 43).
A hostilidade é (...) feita calar no grito, por assim dizer, por uma
intensificação excessiva da afeição, que se expressa em solicitude e se torna
compulsiva, porque de outro modo seria inadequada para desempenhar a
missão de manter sob repressão a corrente de sentimento contrária e
inconsciente.” (TT, p. 64)190
190
Eis aí um exemplo do que Freud denomina formação reativa (consultar p. 127 deste trabalho).
191
Observe-se que a analogia entre o sintoma e o tabu indica, implicitamente, a analogia entre o sonho e o
tabu, pois existe, conforme sabemos, uma grande proximidade entre sonho e neurose. Por detrás de todas
estas manifestações, quer individuais quer coletivas, o que temos é “a realização disfarçada de um desejo
recalcado”.
166
nos referir ainda a algumas descobertas da antropologia para fundamentar com maior
solidez a hipótese do Édipo histórico.
Atkinson viu nesta luta do macho mais forte para possuir com exclusividade as
mulheres do grupo a origem da instituição da exogamia, que inicialmente pode ter sido
expressa nesta lei: “nenhuma relação sexual entre os que partilham de um lar comum”.
Com o advento do totemismo, a lei se transformou em: “nenhuma relação sexual dentro
do totem” (TT, p. 147).
Agora já podemos entender o que a psicanálise tem a nos dizer a respeito dos
tabus totêmicos. Freud observa que “há uma grande semelhança entre as relações da
criança e dos homens primitivos com os animais” (TT, p. 148). Em geral, os pequenos
gostam de animais e se sentem bem entre eles. Vez por outra, porém, esta relação
amistosa é rompida e surge uma fobia por determinado animal. Na maioria das vezes o
167
Transpondo estes dados clínicos para a interpretação dos tabus totêmicos, Freud
nos diz:
192
Consultar, acima, p. 125s.
193
Consultar, acima, pp. 148-162.
168
os dois tabus – não matar o totem e não desposar as mulheres do mesmo totem –
equivalem a proibição dos dois crimes de Édipo. Ao que tudo indica, portanto, “o
sistema totêmico (...) é um produto das condições em jogo do complexo de édipo” (TT,
p. 153).
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e
devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram
a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido
impossível fazer individualmente (...). O violento pai primevo fora sem
dúvida o temido e invejado modelo de cada um (...); e, pelo ato de devorá-lo,
realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de
sua força. A refeição totêmica (...) seria assim uma repetição e uma
comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas
coisas: da organização social, das restrições morais e da religião. (TT, p. 164)
Contudo, não obstante a aparente vitória dos filhos, o verdadeiro vencedor foi o
pai. “O pai morto”, diz Freud lapidarmente, “tornou-se mais forte que o fora vivo” (TT,
p. 165). Com efeito, satisfeito o ódio e o desejo de vingança, o amor que até então
estivera reprimido, retornou sob a forma de remorso e sentimento de culpa. Por ser
impossível a cada um dos filhos ocupar o mesmo lugar do pai na posse de todas as
mulheres do grupo e por desejarem aliviar a consciência culposa, os filhos rebeldes
renunciaram ao que tão arduamente tinham conquistado e introjetaram a lei do pai,
instituindo a interdição do incesto e a proibição de matar o totem, o substituto do pai
assassinado. “Dessa maneira, salvaram a organização que os tornara fortes” (TT, p.
166s).
Aqueles que estranham que um crime possa estar na origem de nossa civilização
ou que duvidam da veracidade do assassinato do pai primevo, Freud adverte: “O
simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia plena de desejo
de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o
totemismo e o tabu” (TT, p. 183).
194
Infelizmente não temos condições aqui – pois ultrapassaria nossos objetivos – de desenvolver a
interessante perspectiva aberta por Leclaire na obra citada. Lembramos apenas que para este autor a
função do pai assegura a clivagem entre o corpo biológico (universal) e o corpo erógeno (singular) (Cf.
op. cit. p. 23-28).
170
Nós leigos sempre sentimos uma intensa curiosidade (...) em saber de que
fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como
consegue impressionar-nos com o mesmo e desperta-nos emoções das quais
talvez nem nos julgássemos capazes. (ECD, p. 149)
Ora, a matéria prima da produção estética são, sem dúvida, as ricas e prodigiosas
fantasias do artista.
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de
fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o
mesmo e a realidade. (ECD, p. 150)195
195
Embora Freud se refira ao escritor, na verdade o que diz é válido para qualquer tipo de criação estética.
Como ele próprio o reconhece: “sabemos que muitas obras imaginativas guardam boa distância do
modelo do devaneio ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais
afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma sequência ininterrupta de casos
transicionais” (ECD, p. 155).
196
“... Uma total separação dos dois sistemas [Ics e Pcs-Cs] é o que acima de tudo caracteriza uma
condição de doença” (INC, p. 113).
197
“A obra de arte é ao mesmo tempo o sintoma e a cura”, afirma Paul Ricoeur (Cf. I, p....).
198
Freud continua, afirmando que “o amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido
em sua finalidade. ‘Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto sexual” (MEC, p. 40)
172
que comanda a criação estética e, mais do que isto, a objetivação da cultura em suas
múltiplas formas.
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1
Indicaremos entre parênteses, logo após o título, o ano de publicação e/ou redação das obras de S. Freud.
2
Empregaremos esta sigla para designar a Pequena coleção das obras de S. Freud, trad. br., Editora
Imago.
3
Empregaremos esta sigla para designar a Edição Standartd Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de S. Freud, trad. br., Editora Imago.
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