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r a r a

CLARA RÊGUMA RAPPAPORT ■ : (Coordenadora)

Reis - Magalhães - Gonçalves


TEORIAS DA
PERSONALIDADE EM
. FREUD, REICH .
^w E JUNG

o a Volume 7
Temas Básicos de Psicologia
Coordenadora: Clara Regina Rappaport

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP

Reis, Alberto Olavo Advincula.


R298t Teorias da personalidade cm Freud, Reich e Jung/
Alberto O. Advincula Reis, Lúcia Maria Azevedo Magalhães,
Waldir Lourenço Gonçalves. — São Paulo: EPU, 1984.
(Temas básicos de psicologia, v. 7)
Bibliografia.
1. Freud, Sigmund, 1856-1939 2. Jung, Carl Gustav,
1875-1961 3. Personalidade 4. Reich, Wilhelm, 1897-1957
1. Magalhães, Lúcia Maria Azevedo. II. Gonçalves, Waldir
Lourenço.
Ul. Título.

84-0955 CDD-15 5.2

índices para catálogo sistemático:


1. Personalidade: Teorias: Psicologia individual 155.2
2. Teorias da personalidade: Psicologia individual 155.2
ALBERTO O. ADVINCULA REIS
LÜCIA MARIA AZEVEDO MAGALHÃES
WALDIR LOURENÇO GONÇALVES

TEORIAS DA
PERSONALIDADE
EM FREUD, REICH
EJUNG

Í.M , * Ri ©ITOM KD8GOGICB


fe I € ■HOSITMM1 UDH
Sobre os Autores

Alberto O. Advincuh Reis é psicólogo formado pela Universidade de Pans VII*


Sorbonne Mestrado e especialização em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia
da Universidade de Pans V-Sorbonne. Tese de doutoramento em preparação, com D.
Anóeu. sobre “Psicanálise e Obra de Arte**.
Professor de Psicologia na Faculdade de Medicina - PUC/Sorocaba; Professor
titular da cadeira de Psicologia de Desenvolvimento do Instituto Unificado Paubsta
(Objetivo).

Lúcia Maria Azevedo Magalhães é psicóloga formada pelo Instituto de Psicologia


da Universidade de São Paulo.
Psicoterapeuta infantil e de adultos. Pertence ao grupo de analistas em formação
na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.

Waldir Lourenço Gonçalves é psicólogo e pós-graduado pelo Instituto de Psicolo­


gia da Universidade de São Paulo.
Psicoterapeuta e professor universitário. Com experiência em trabalhos psicote-
npêuticos de abordagem corporal, tendo participado de atividades terapêuticas e
workshops coordenados por Gerda Boyesen, Eva Reich e Ed Svastas.
Coordenador de Grupos Operativos, desenvolvendo cursos e análise de grupos em
empresas e escolas.

Capa: Paulo Hiss

2? Reimpressão

ISBN 85-12-62170-2

© E.P.U. - Editora Pedagógica e Universitária Lida., São Paulo, 1984. Todos os direi­
tos reservados. A reprodução desta obra, no todo ou em parte, por qualquer meio, sem
autorização expressa da Editora, sujeitará o infrator, nos termos da Lei n? 6.895, de
17.12.1980, às penalidades previstas nos artigos 184 e 186 do Código Penal, a saber:
reclusão de um a quatro anos.
E.P.U - Praça Dom José Gaspar, 106 - 39 andar - Caixa Postal 7509 - 01047 São
Paulo, Brasil Tel.: (011) 259-9222
Impresso no Brasil Printed in Brazil
Sumário

Prefácio geral da C o le ç ã o ................................................................................... IX


P refácio...................................................................................................................... XI
Parte I — Teorias da personalidade em Sigmund Freud (Al*
berto 0 . Advincula R eis)............................................... 1
1. Sigmund Freud: um hom em , uma o b r a ................................................. 3
2. Estrutura da person alid ad e........................................................................ 7
2.1. Uma estrutura biológica da personalidade: sonho e delírio
em F reud............................................................................. 7
22. Uma estrutura psicológica da personalidade: sonho em
F r e u d .................................................................................. 9
2.3. Uma concepção geral e abrangente da personalidade............. 17
3. Gênese da personalidade............................................................................. 19
3.1. L ibido................................................................................................. 19
3.2. Diferenciação do aparelhopsíquico............................................ 20
4. Personalidade e caráter............................................................................... 24
4 .1 . Caráter, caráter normal e caráter reativo.................................... 25
42. Sexualidade e caráter.................................................................... 26
43. Sexualidade oral e caráter............................................................. 27
4.4. Sexualidade anal e caráter............................................................ 30
4.5. Sexualidade fálicae caráter......................................................... 33
4.6. Complexo de Édipo e personalidade......................................... 37
4.7. Complexo de castração e complexo de É d ip o ........................ 38
4.8. Complexo de Édipo m asculino.................................................... 39
4.9. Complexo de Édipo f e m in in o .................................................... 40
4.10. Período de latência e genitalidade............................................. 40
4.11. Genitalidade e caráter.................................................................... 41
5. Narcisismo................................................................................................... 42
5.L Libido do Ego e libido do o b j e t o ............................................ 42
6. Revolução na revolução.......................................................................... 47
6.1. Uma nova estrutura da Personalidade: a 2 a t ó p ic a ............... 47
6.2. Superego, Ideal do Ego e Ego-Ideal........................................... 52
63. Relações entre a realidade externa, o Id, o Superego e 0
Ego................................................................................................... 53
7. Tipos libidinais........................................................................................... 55
8. Pulsão de vida e pulsão de m o r t e ......................................................... 58
8.1. Pulsão de morte e estrutura da personalidade...................... 60
9. Bibliografia............................................................................................... 61

Parte I I — Teoria da personalidade em W ilhelm Reich


(Waldir Lourenço G o n ç a lv e s )........................................... 63
10. Reich: um homem, uma obra................................................................. 65
10.1. Obras consultadas*........................................................................ 71
11. Freud e Reich: da psicanálise à orgonoterapia................................... 72
12. Uma teoria do caráter à guisa de teoria da personalidade............... 78
12.1. A gênese da couraça..................................................................... 78
12.2. Caráter gcnital e caráter n e u r ó tic o ......................................... 81
1 2 3 . Aspectos qualitativo e quantitativo do caráter..................... 82
12.4. Algumas formas de caráter descritas por R e ic h ................... 84
1 23. Potência e impotência orgástica: a função do orgasmo . . . 93
12.6. Couraça caracterológica e couraça m uscular........................ 96
12.7. O caráter masoquista e o princípio do p r a z e r ..................... 98
12.8. A descoberta da energia orgônica........................................... 104
12.9. A estrutura segmentada da couraça........................................ 106
12.10. Conclusão..................................................................................... 108
13. Psicanálise e materialismo dialético: retomada e revisão dos con­
ceitos freudianos................................................................................ 110
13.1. Sublimação ouformação reativa?.............................................. 110
13.2. O princípio da realidade........................................................... 114
133. A organização social e o in co n scien te.................................... 116
13.4. A organização social e o complexo de É dipo......................... 118
14. Referências bibliográficas....................................................................... 122

Parte I I I — Teoria da personalidade em Carl Gustav Jung


(Lúcia Maria Azevedo M agalhães).................................... 123
15. Biografia.................................................................................................... j25

V)
16. A teoria psicológica de Jung: principais c o n c e ito s ............................. 132
16.1. Libido - energética psíquica..................................................... 133
16.2. Estrutura psíquica........................................................................ 135
163. Relação consciente-inconsciente. Funções do inconsciente 143
16.4. Processo de in divid uação.......................................................... 147
16.5. A teoria dos tipos psicológicos.................................................. 152
17. Conclusão - Freud e Jung: semelhançasc d iferen ças....................... 163
18. Referências bibliográficas e bibliografia................................................ 166

V II
Prefácio geral da Coleção

A Coleção Temas Básicos de Psicologia tem por finalidade apresentar de


forma didática e despretensiosa tópicos que são ministrados em várias disci­
plinas dos cursos superiores de Psicologia ou outros em cujo curriculum
constem disciplinas psicológicas.
O objetivo fundamental é o de oferecer leituras introdutórias que sir­
vam como roteiro básico para o aluno e que ajudem ao professor na elabo­
ração e desenvolvimento do conteúdo programático.
Neste sentido, selecionamos autores com vasta experiência didática em
nosso meio, os quais, em virtude da profundidade de seus conhecimentos
e de contato prolongado com alunos, cientes da dificuldade de adaptação da
literatura importada para o nosso estudante, se dispuseram a colaborar co­
nosco.
Esperamos, assim, contribuir para a formação de profissionais psicólo­
gos ou não, sistematizando e transmitindo, de forma simples, o conhecimen­
to acadêmico e prático adquirido por nossos colaboradores ao longo dos
anos, e também tornando a leitura um evento produtivo e agradável.

Clara Regina Rappaporr


Coordenadora

IX
Prefácio

A Freud coube o mérito de ser o primeiro a levar a sério a noção de in­


consciente e, assim, revelar-lhe a estrutura. Esta postura o incluiu naquela
“raça de austeros sábios germânicos que fundaram a fisiologia e a filologia,
renovaram a lógica, a física, a história e a filosofia” (Anzieu). Abriu-se
um caminho novo no estudo da Personalidade. Através dele puderam vir
outros pesquisadores.
Escolhemos apresentar também, neste volume, as idéias de dois Outros
autores que, além de Freud, perscrutaram corajosamente os segredos desta
vereda. O que os une, consequentemente, em uma identidade de con­
cepções é o fato deles terem centrado o estudo da personalidade tomando
como ponto focal o inconsciente. Isto pode, hoje, parecer banal. Mas repre­
sentou, para a Psicologia, uma revolução equivalente àquela efetuada por
Copémico, na Astronomia, e por Darwin, na Antropologia. Copémico re­
tirou o homem do centro do universo. Darwin destronou-o, ao situá-lo na
cadeia animal e Freud revelou o inconsciente, aquela parte que o sujeito
ignora de si mesmo, erigindo-o como pedra fundamental sobre o qual se
apóia o edifício da Personalidade. “Foram três feridas profundas na auto-
estima da humanidade” (Freud).
Os autores, Freud, Reich e Jung, que ora apresentamos, refletem, tam­
bém, diferenças fundamentais. Mas estas diferenças, pelo seu teor, fazem de­
les pontos de referência de um amplo arco onde se situam todos aqueles
que visam a circunscrever a noção de Personalidade dentro de uma aborda­
gem que podemos classificar de dinâmica.
As diferenças básicas entre Freud, Reich e Jung pertencem a órbitas
cujo centro gravitacional é a noção de sexualidade. Enquanto Jung dessexua-
liza, progressivamente, a noção freudiana de libido, Reich tende a concen­
trar a idéia de sexualidade, cada vez mais, nos limites estreitos da genitali-
dade para, finalmenlc, dissolvê-la numa concepção cósmica e fantástica.

XI
A partir das diferenças e do que é comum entre as três concepções
apresentadas, o estudante de psicologia, para quem esta obra é dirigida,
poderá ter uma visão clara do horizonte onde se perfila a noção de perso­
nalidade. Deste modo, não tivemos a intenção de apresentar nenhum es­
b oço que refletisse a generalidade de cada uma das teorias âs quais nos re­
ferimos. Tentamos, simplesmente, extrair, do conjunto geral de cada uma
delas, uma concepção específica de personalidade.

A lberto O. Advincula R eis


PARTE I
TEORIAS DA PERSONALIDADE EM
SIGMUND FREUD
Alberto O. Advincula Reis
1
Sigmund Freud: um homem, uma obra

Sigismund Freud nasceu a 6 de maio de 1856, recebendo, em confor­


midade com o costume judaico, o nome de Schlomo. Mais tarde, aos 22
anos, Freud escolherá uma forma mais concisa para seu nome: Sigmund. Os
psicanalistas não deixaram escapar a ocasião de relacionar tal escolha com a
utilização sistemática que Freud fazia do termo mais conciso “ Narcismo” ,
para “ Narcisismo” .
Quando Freud tinha três anos, seu pai Jacob Freud, aos 44 anos, viu-
se arruinado pela crise econômica. Obrigado a deixar a cidade de Freiberg,
instala a fam ília Freud em Viena. Aos 16 anos, S. Freud retomará a Freiberg
para passar as férias. Aos 17 anos, termina seus estudos secundários de ma­
neira brilhante. Indeciso quanto â carreira que pretende seguir, S. Freud
pensa, inicialmente, em estudar D ire ito ; abandona, em seguida, tal idéia e
decide-se pelos estudos biológicos. Os estudos secundários de Freud foram
acelerados e coroados de êxito. Em contrapartida, seus estudos universitá­
rios alongaram-se mais do que o normal, retratando o mal-estar que sentira
em sua formação profissional. Freud permaneceu durante seis anos no Ins­
titu to de Fisiologia da Universidade de Viena como estudante de Biologia.
Somente após este tempo é que decidiu, finalmente, trocar a Biologia pela
Medicina. Em 1885, graças a uma recomendação de seu ex-professor £.
Brücke, obtém uma bolsa de estudos no exterior. Escolhe Paris, onde estu­
da com Charcot, no hospital da Salpêtriére. A li observa as manifestações da
histeria e os efeitos da hipnose e da sugestão. “ Charcot cria e suprime sin to­
mas pela palavra, mas não se trata de magia; ele mostra como os fenômenos
histéricos obedecem a leis” .
Freud retorna a Viena em 1886 e apresenta em conferência o resulta­
do de suas observações ju n to a Charcot. É criticado e ironizado pelo círculo

3
médico, arredio às novas idéias clínicas a respeito da histeria. Freud, que
atingira a idade de 30 anos, casa-se com Martha Bernays. A jovem esposa
de Freud possui uma amiga de nome Bertha Pappenhcim que fora paciente
de Breuer. prestigioso médico vienense com o qual Freud se ligara.
Freud pede a Breuer que lhe com unique as anotações do trabalho
terapêutico que realizara com B. Pappenheim e depara-se, então, com algo
extremamente original. Breuer conseguira que Bertha, sob hipnose, encon­
trasse por si só as origens ou a explicação de seus sintom as. Uma vez alcan­
çada a explicação, os sintomas se dissolviam! Breuer chamava este método
de catártico. assimilando-o a uma purgação das lem branças e idéias retidas
num suposto núcleo isolado da consciência. O caso de Bertha Pappenheim
foi publicado mais tarde e passou a ser conhecido com o o “ caso de Ana O .“ .
O método catartico, onde o paciente conduz o tratam ento longe das
sugestões do médico, constituiu-se em ponto de partida da Psicanálise.
Freud escreve, em 1923: “O método catartico é o precursor im ediato da
Psicanálise; a despeito de toda extensão que a experiência tom ou depois e
de todas as modificações que a teoria recebeu, a Psicanálise ainda contém
esse método em seu núcleo**.
Os estudos sobre a histeria realizados por Freud haviam perm itido que
ele se livrasse da hipnose e da sugestão, descobrisse o m étodo da livre asso­
ciação e vislumbrasse o papel da sexualidade na etiologia da neurose.
A partir do momento em que Freud se cala e deixa seus pacientes
associaram livremente, eles começam, naturalmente, a contar-lhe sonhos.
Freud interessa-se pelos sonhos. Surge, então, em 1900, o magistral livro
á Interpretação dos Sonhos. Em 1905, publica os seus Três Ensaios sobre
a Teoria da Sexualidade, em cujo prefácio (4? edição) escreve que “se a
humanidade fosse capaz de instruir-se pela observação direta das crianças,
eu poderia ter economizado a fadiga de escrever este livro**. Para Freud,
a sexualidade e os diferentes mecanismos que se acoplam à sexualidade
infantil constituem a origem da formação do caráter e da personalidade.
Até 1906, durante um período de praticamente pouco mais de 10
anos, Freud manteve-se solitário, isolado em sua atividade. Trabalhou,
escreveu, publicou e escandalizou o público com suas idéias. A lguns pou­
cos interessados, entre eles Fedem e Stekel, com eçam a reunir-se em tom o
dele. O que Freud transmite a estes discípulos é um conjunto de conheci­
mentos que constituem uma concepção global da vida m ental. A base des­
tes conhecimentos é representada pela dualidade dos im pulsos de auto-
conservação e impulsos sexuais; pela representação de um m odelo de perso­
nalidade, constituído por instâncias topológicas denom inadas, respectiva­
mente, de inconsciente, pré-consciente e consciente; por p rin cíp io s de fun-

4
cionamento da personalidade que tendem a reduzir as tensões internas atra­
vés de um processo de descarga exterior, ou por meio de processos internos
de defesa.
Em fevereiro de 1907, Freud recebe a visita de Carl Gustav Jung, que
já havia tomado conhecimento das obras psicanalíticas. A adesão do suíço
Jung à Psicanálise representou, para Freud, a esperança de veicular esta no­
va disciplina em direção aos países mais ocidentais, além do fechado círcu ­
lo judaico da Europa central. A colaboração destes dois homens durará cer­
ca de 6 anos. Este período foi marcado por contribuições mútuas, senti­
mentos intensos e complementares, discussões profícuas e término emocio­
nalmente dilacerante, para ambos. Esta adesão temporária da Escola de
Zurique teve, entretanto, diversos efeitos duradouros. “ Inicialmente, dela
restou algo no plano do reconhecimento internacional; depois, valeu a Freud
adesões importantes como a de Bnll, de Pfister e, sobretudo, de Abraham,
jovem psiquiatra berlinense que trabalhara em Zurique. Se a Escola de Z u ­
rique contribui com algo na extensão da Psicanálise âs psicoses, tal fato não
se deu por Jung ou Bleuler, mas por Abraham, sobretudo através de sua alu­
na Melanie K lein ” (Mannoni).
Do ponto de vista da teoria, a ruptura com Jung deu-se em função do
abandono, por parte deste, da centralidade da noção de sexualidade na com­
preensão da personalidade humana. Do ponto de vista técnico, a ruptura ex­
plica-se pela ênfase dada por Jung à compreensão dos conflitos atuais, em
detrimento da análise dos conflitos passados.
Em 1914, Jung demite-se, formalmente, da Sociedade Psicanalítica.
Neste mesmo ano, Freud publica o importantíssimo artigo “ Introdução
ao Narcisismo”, que foi motivado, inicialmente, pela necessidade de dar uma
resposta psicanalítica às construções teóricas junguianas. A “ Introdução
ao Narcisismo” também preparava o terreno para as modificações capitais
que iriam ser introduzidas a partir de 1920, na teoria psicanalítica. Estas
modificações constituíram-se numa verdadeira revolução que abrangeu,
sobretudo, dois pontos básicos da doutrina:
1. A teoria das pulsões é modificada. A nova teoria opõe as pulsões
de Vida (sexualidade, libido, Eros) às pulsões de Morte (Thanatos). Alguns
biógrafos relacionaram esta nova formulação da teoria das pulsões, onde a
morte é colocada em primeiro plano, com a experiência da enorme carni­
ficina que fora a I Guerra Mundial, terminada recentemente; com a morte
de Sofia, filha de Freud, ocorrida no início de 1920 e com as suspeitas de
câncer, que se confirmariam mais tarde.
2. Um novo modelo de constituição da personalidade é proposto. Este
modelo assimila as noções de consciente, pré-consciente e inconsciente. Pas-

S
sa, porém, a considerar a personalidade co m o fo rm ad a p o r trés instâncias:
o Id ,o Egoe o Superego.
\ p a r t i r desta mesma época, 1 9 2 0 , e co m o té rm in o recente da I Guer­
ra Mundial, a Psicanálise começa e desenvolver-se no plano internacional.
Em Viena, Freud recebe, já , a terceira geração de psicanalistas. Entre
eles, está o jovem W ilhelm Reich, que se destacará n o m o vim en to psicana-
lític o por dar continuidade, de m aneira sistem ática, aos trabalhos de Freud,
Abraham e outros, relativos á form ação e à análise do caráter. Cabe, tam­
bém, a Reich o m érito de ter ousado p ro p o r, de m o d o p io n e iro , uma síntese
entre o freudismo e o m arxism o. Esta ú ltim a parte da investigação reichiana
será brilhantemente retomada por H erb ert M arcuse. A m entalidade conser­
vadora da maioria dos psicanalistas será, p arcialm en te, responsável por sua
exclusão da Sociedade Psicanalítica. Esta exclusão leva R eich a rom per os
laços teóricos que o uniam a F reu d . V ale acrescentar q u e , ta n to Freud como
Abraham (Jones), apoiaram com entusiasmo a atividade de R eich enquanto
este permaneceu psicanalista. R eich dirá, mais tard e, que rom pera com
Freud devido às suas teses referentes ás pulsões de M o rte , visto que estas
consistiam num abandono da teoria sexual. Trata-se de u m estranho argu­
mento, quando se sabe que Reich aderira à Psicanálise precisam ente no ano
em que Freud publicara sua nova teoria das pulsões!
Em 1923, Freud publica O I d e o E g o e submete-se a um a prim eira
operação destinada a extirp ar o câncer que se m anifestara em sua m andíbu-
la. Até o final de sua vida, ele se subm ete a trin ta e trés operações destinadas
a deter a doença que se expandia. E m 1 9 3 3 , os nazistas, n u m verdadeiro
auto-da-fé, queimam as obras de F reu d , em B erlim .
Em 1938, a Áustria é anexada à A lem an h a. A casa de Freud é por
duas vezes invadida, mas tanto Roosevelt co m o M ussolini intervém em seu
favor. Em 1938 foi-lhe possível, en tão , p a rtir para Lon dres, onde faleceria
a 23 de setembro de 1939.

6
2
Estrutura da personalidade

2.1. Uma estrutura biológica da personalidade:


sonho e delírio em Freud

Na Psicanálise, o conceito de personalidade ocupa um espaço im por­


tante. Isto porque, enquanto psicoterapia, “ a Psicanálise é uma relação de
pessoa a pessoa; enquanto psicologia, ela dá uma importância de prim eira o r­
dem à história individual e, nesta, às relações interpessoais” (Lagache). De*
corre daí o fato de a Psicanálise ser uma das raras formas de psicologia que se
têm preocupado com a estrutura da personalidade ou aparelho psíquico.
Esta preocupação com a personalidade é tão antiga quanto a própria
Psicanálise. Retomando-se os escritos de Freud, percebe-se que, na prim ei­
ra descrição da estrutura da personalidade, ou do aparelho psíquico, ele ten­
tou seguir a linha e o sentido do pensamento de seu mestre e professor de
Fisiologia, Brücke. Na verdade, essa primeira descrição da personalidade re­
presentava um empenho de Freud em estabelecer um “ modelo em que toda
discussão psicológica repousasse sobre modificações fisiológicas e sobre aqui­
lo que é fisicamente mensurável’* (Freud).
Esta tentativa foi concretizada no famoso Esboço de uma Psicologia
Científica, conhecido também como Projeto de uma Psicologia para N euro­
logistas (1895). Nele, Freud estuda a percepção, a memória, o pensamento,
a afetividade, a psicopatologia da vida cotidiana e, igualmente, a sua prim ei­
ra teoria dos sonhos. Mas, trata-se, antes de tudo, de uma tentativa coerente
destinada a reduzir o funcionam ento do aparelho psíquico (K ns) a um siste­
ma de neurônios e conceber, em suma, todos os processos psíquicos como
modificações quantitativas.
A declaração inicial do esboço resume toda a perspectiva desta primei­
ra teoria da personalidade concebida como um aparelho mental, isto é, uma
máquina mental: “Neste Esboço nós procuramos fazer a Psicologia entrar no
quadro das ciências naturais, isto é, representar os processos psíquicos
como estados quantitativamente determinados de partículas materiais dis­
tinguíveis. Este projeto comporta duas idéias principais:
l?)aquilo que distingue a atividade do repouso é de ordem quantita­
tiva. A quantidade (Q) encontra-se submetida às leis gerais do movimento.
2?) as partículas materiais em questão são neurônios.”
A concepção de personalidade que pode ser retirada deste ensaio onde
Freud tenta abordar o universo inteiro da Psicologia, nos limites estreitos de
uma teoria biológica, parece ser a de um aparelho composto de neurônios
dotado de uma certa quantidade de energia (Q). A origem desta energia,
entendida como análoga à energia física, provém tanto das excitações ex-
temas quanto das excitações internas (Freud referia-se a ela como “uma
corrente que circula” , que “ ocupa” , que “preenche” , “evacua” e “cane-
ga” os neurônios). No aparelho psíquico, a energia deve submeter-se ao
princípio de constância. Ou seja, sempre que ela aumentar, o aparelho psí­
quico funcionará no sentido de descarregá-la. Isto porque qualquer aumen­
to na quantidadeMe energia significa um aumento de tensão e, portanto,
de desprazer. Da ipesma forma, toda descarga de energia equivale a uma di­
minuição da tensão e, assim, há prazer. Consequentemente, Prazer e Despra­
zer são os reguladores do aparelho mental. Em síntese, pode-se dizer que,
nesta primeira descrição da personalidade, o aparelho mental era conce­
bido como um sistema biológico, sujeito a excitações externas e internas,
que propiciavam o aparecimento de quantidades maiores ou menores de
energia. Esta quantidade de energia, por sua vez, seria regulada pelo prin­
cípio de constância, segundo o qual o aparelho psíquico deve procurar o
prazer e evitar o desprazer.
Para se captar esta tentativa de Freud de elaborar uma psicologia que
entendesse a personalidade como um sistema mecânico de neurônios é pre­
ciso retomar o universo cultural berlinense e vienense de sua época. Lá, a
Biologia era compreendida através de uma teoria físico-fisiológica, regida
pelo princípio de conservação de energia e embasada nas idéias de força,
atração e repulsão. Freud teve a oportunidade de estudar com o represen­
tante vienense dessa escola. Decorre deste contato seu sonho de introduzir
a teoria físico-fisiológica num terreno ainda indevassado: a do estudo da
personalidade.
Segundo O. Mannoni, o Esboço é a última tentativa de Freud de des­
crever anatomicamente suas descobertas. Representa, desta forma, um adeus

8
à anatomia sob a forma de uma anatomia fantástica. Embora concordemos
que o Esboço sintetiza um sonho e um delírio de Freud, parece-nos tam­
bém que, através dele, abriu-se o caminho para uma primeira concepção
psicológica da personalidade. Muitas noções e princípios nele formulados
serão preservados e utilizados como noções-chaves e princípios diretores
para toda sua obra.

2.2. Uma estrutura psicológica da personalidade: sonho em


Freud

Em 3 de janeiro de 1899, Freud havia quase terminado sua monumen­


tal obra Interpretação dos Sonhos. Faltava-lhe escrever o famoso capítulo
V II, referente à teoria do funcionamento do aparelho psíquico. Nele, pela
primeira vez, Freud fala da personalidade utilizando-se de um modelo pura­
mente psicológico. A personalidade passa a ser compreendida como um apa­
relho psíquico e não mais neurológico. Freud abandona, na Interpretação
dos Sonhos (1900), seu doce delírio de construir uma “Psicologia Neuro­
lógica” . O que ele expõe em seu capítulo V II é um modelo fictício e sem
referência concreta a nenhuma biologia. Na construção deste modelo de
personalidade figuram, de maneira bem demarcada, três instâncias: o cons­
ciente, o pré-consciente e o inconsciente. Quando Freud fala dessas instân­
cias ou “lugares” , ele o faz num sentido metafórico que nada tem a ver com
as famosas localizações cerebrais.
O aparelho psíquico figurado possui uma extremidade sensitiva (P),
dotada de um sistema encarregado de receber as percepções, e uma outra
extremidade, onde se localiza um sistema que abre acesso à motricidade
(M). A atividade psíquica, partindo de estímulos externos e estímulos in ­
ternos (E ), percorre o aparelho psíquico indo, em geral, da extremidade
perceptiva em direção à extremidade motora. Para Freud, as extremidades
P e M podem ser consideradas como constitutivas do sistema consciente.

Figura 2.1

9
Figura 2 .2

Ora, acontece que este aparelho não é uma caixa preta, posto que
tudo aquilo que nos atinge enquanto percepção (extremidade de P), interna
ou externa, deixa em nosso aparelho um traço m ném ico (S). Desta forma,
temos que considerar que a estrutura do aparelho psíquico é constituída não
só pelos pólos perceptivo (P) e motor (M) mas, também, por outro sistema,
destinado a conservar os traços dos estím ulos que o atravessam no sentido
dePaM .
Assim, Freud propõe a existência de um terceiro sistema denominado
“sistemas S”, através do qual se esclarece o processo que se desenvolve no
interior do aparelho psíquico. A postulação desses “sistemas S” justifica-se
pelo fato de que o pólo perceptivo (P), tendo uma função receptora, deve
conservar-se sempre apto e livre para poder receber, continuamente, novos
estímulos de proveniência externa e interna. De fato, um mesmo sistema se­
ria incapaz de executar, simultaneamente, as funções de recepção e arma­
zenamento (registro), sem entrar em colapso.
Este terceiro sistema (S), tal com o Freud o descreve, é formado por
vários subsistemas (donde a utilização do plural, sistemas S), todos eles
empenhados em fixar e organizar as excitações que os atravessam, sob a
forma de traços mnémicos. O primeiro subsistema deverá reter e organizar
estes traços através de relações de simultaneidade, e os posteriores fixá-los-
ão através de relações de semelhança. Estes traços, gravados e organizados
por relações de semelhança e de simultaneidade em nossa personalidade,
são de natureza inconsciente e constituem a base sobre a qual repousa nosso
caráter.
Desta forma, existe inscrita em nossa personalidade uma série de tra­
ços mnémicos, radicados em sensações perceptivas (tateis, visuais etc.) expe­
rimentadas em nossa infância que, tomando-se criticáveis em nossa vida
adulta, são impedidos de se realizarem de maneira consciente e voluntária.
Estes traços, embora inconscientes, permanecem ativos e marcam nossa ma­
neira de ser, determinando nosso caráter.

10
Percepção Conicléncla Pré-coniciente

Figura 2.3.

Ora, se os traços mnémicos, apesar de poderem “tornar-se conscien­


tes” , permanecem inconscientes, isto se dá por força de uma “instância p sí­
quica que submete a atividade inconsciente a uma crítica ” , impedindo seu
acesso à consciência. Esta instância crítica é o princípio que norteia nossa
vida, desperta e dirige nossas ações voluntárias, engindo-se como verdadeira
barreira entre a parte criticada de nossa personalidade e a consciência.
O sistema encarregado da crítica encontra-se na extremidade motora
da personalidade e é assimilável ao que Freud descreve como pré-consciente.
No esquema final do aparelho psíquico (ílg. 2.3), esta configuração pode ser
observada.

2.2.1. Os três sistemas da personalidade: inconsciente, pré-consciente e


consciente

Na teoria psicanalitica, a concepção de personalidade é frequentemen­


te identificada com este modelo de aparelho psíquico que acabamos de des­
crever. Entretanto, a concepção de um aparelho psíquico estruturado em
três instâncias distintas, a saber, inconsciente, pré-consciente e consciente,
não constitui o único modelo psicanalítico construído para tentar abraçar
a noção de personalidade. Freud, posteriormente, construiu um outro mode­
lo (trabalhando, agora, com as noções de Id, Ego e Superego) sem, contudo,
abandonar esta primeira descrição que, embora limitada, guardou um grande
valor explicativo.
Ao examinar o primeiro modelo de personalidade (também denomi­
nado de primeira tópica), observa-se que suas três instâncias (inconsciente,
pré-consciente e consciente) são nitidamente demarcadas por barreiras que
as separam entre si. A barreira que separa o inconsciente do pré-consciente
é constituída por um ato bem preciso, o recalcamento. O recalcamento con­
siste em excluir da consciência toda representação psíquica que a crítica for­
mulada pelo princípio que norteia nossa vida desperta e voluntária julgue
inaceitável. O processo de separação entre as instâncias psíquicas é estabele-

11
cido, além do recalcamento, pelo fato de cada uma das instâncias apresentar
modos diferentes de funcionamento.
Entretanto, referir-se à personalidade com o um aparelho psíquico
composto de trés sistemas, demarcados por m odos diferentes de funciona­
mento, é insuficiente. No nosso entender, o essencial da Psicanálise reside
na ousadia de postular a existência desses trés sistemas p síq u icos, im plican­
do em uma ruptura com toda tradição psicológica que, desde Descartes, de­
fine a personalidade tomando a consciência com o ponto de referência. Em ­
bora Freud não estabeleça o centro da personalidade na consciência, ele não
compreende esta última como fenômeno pouco im portante. A consciência
continua sendo, para ele, um dado inegável da experiência hum ana. Mas são,
precisamente, as lacunas da consciência que o levam a postular a existên­
cia dessa outra instância denominada inconsciente.

Inconsciente

O inconsciente não é uma negação do consciente, define-se com o um


outro território ou uma outra cena da personalidade. Este território incons­
ciente é ativo, organizado por leis e p rincípios que lhe são próprios, e sub­
metido a um regime de funcionamento energético que lhe é específico. Este
sistema constitui o núcleo ativo da personalidade.
Considera-se o inconsciente como sendo co n stitu íd o de dois aspectos
principais:
l. Um conteúdo definido pela presença de atos psíquicos que care­
cem de consciência. Por ato psíquico (idéia), entende-se traços mnêmicos
devidamente investidos de energia libidinal. “ O conteúdo do inconsciente con­
siste, pois, em impulsos canegados de desejo” (Fre u d , 1915). O conteúdo
do núcleo do inconsciente são as formações herdadas (protofantasias)*e

* Protofantasia ou fantasia originária são, na concepção freu d ian a, precipitados psí­


quicos de eventos reais ocorridos na aurora da hum anidade. Estes precipitados foram ,
em seguida, transmitidos de geração em geração, passando a co n stitu ir o núcleo do
inconsciente de cada indivíduo. A fantasia de castração é um a protofantasia. Para
Freud, ela teria ongem na separação real dos seres humanos em indivíduos sexualmente
diferentes: masculino e feminino. Freud supõe, baseado na an ato m ia com parada, onde
se notaria a equivalência entre o clitóris e o pênis, a próstata e o ú tero e tc ., que o ser
humano primordial ou original era bissexual. A p a rtir de um m o m e n to , houve uma
diferenciação em indivíduos idênticos e sexos diferentes. A marca deste m om ento
crítico existiría em nosso inconsciente enquanto protofantasia.

12
transmitidas de geração em geraçío (Freud, 1915). Esta opinião de Freud
relativa ao núcleo do inconsciente assemelha-se integralmente às noções de
inconsciente e arquétipo, de Jung. A essas formações herdadas junta-se tu­
do aquilo que foi descartado durante o desenvolvimento infantil e que não
é admitido no consciente do adulto. Em geral, uma divisão definitiva entre
o conteúdo dos sistemas inconsciente e consciente só ocorre após a puber­
dade.
2 . Um modo de funcionamento que o define, então, enquanto um sis­
tema organizado. Percebe-se, em decorrência disso, que o inconsciente apre­
senta características que não são encontradas em nenhum outro sistema.
Essas características consistem nos seguintes aspectos:
- Os conteúdos do inconsciente são coordenados entre si sem, con­
tudo, se influenciarem mutuamente. Assim é que, quando dois impulsos
psíquicos carregados de desejo tomam-se ativos, eles não se anulam nem
se reduzem, mesmo se suas finalidades se revelam incompatíveis entre si.
O sistema inconsciente funciona, consequentemente, isento de todo e
qualquer tipo de contradição.
- O sistema inconsciente desconhece a dúvida e a negação. Ele tende
unicamente à satisfação afirmativa de seus desejos. Este sistema é regulado
exclusivamente pelo princípio de prazer.
- O inconsciente dispensa toda e qualquer referência à realidade, ele
ignora a realidade.
— Os processos inconscientes são atemporais. A atemporalidade do
inconsciente envolve basicamente dois aspectos. Em primeiro lugar, seus
conteúdos não são organizados em função da ordem de suas ocorrências, vis­
to que a dimensão da temporalidade é desconhecida por ele. Em segundo lu ­
gar, tais conteúdos não se alteram ao longo da história de vida do sujeito,
uma vez que esta é, em última análise, fruto da passagem do tempo. Assim,
os conteúdos inconscientes são sempre idênticos a si mesmos e imortais. En ­
contra-se a í a explicação de como eventos que ocorreram na infância po­
dem» a partir de seu registro no inconsciente, exercer plenamente seus efei­
tos na vida do sujeito adulto.
— Esses conteúdos estão sempre ativos e permanecem presentes no
inconsciente, mesmo quando passam para o sistema consciente (veja, a este
propósito, esquema da fig. 2.4).
- Embora a dimensão temporal não exista no inconsciente, ele contu­
do não carece de organização. É estruturado por relações de semelhança
e contigüidade.
— As relações de semelhança e contigüidade coincidem, respectiva­
mente, com os processos de condensação e deslocamento. Na condensação.

13
Figura 2.4. No primeiro esquema observa-se que aquilo que é de interesse para a psica­
nálise não é a pulsão em si, que é um conceito essencialmente de caráter biológico, mas
seu efeito no aparelho psíquico denominado de “ representante psíquico da pulsão".
0 representante psíquico da pulsão presente no inconsciente pode tam bém apresentar-
se no consciente e vir, então, a ser observado, notado, pela consciência (o lh o ). Chama­
mos, sobretudo, atenção para a localização simultânea do representante psíquico da
pulsão no inconsciente e no consciente. O segundo esquema ilustra, parcialm ente, o
mecanismo do recalcamento. O representante psíquico não se apresenta mais no cons­
ciente, figurando apenas no inconsciente.

14
uma idéia pode apropriar-se dos investimentos energéticos de várias outras
idéias, reunindo-as num todo único. No deslocamento, uma idéia pode ceder
a outra sua intensidade energética.
- O regime energético presente no sistema inconsciente é caracteri­
zado por seu aspecto móvel e livre. É este regime livre e móvel que permite,
por exemplo, o funcionamento estruturante das operações de condensação
e deslocamento.
- Os processos inconscientes não são aptos a passarem diretamente
para o consciente e, a partir daí, realizam-se na realidade. O sistema "in­
consciente não seria sequer capaz, em condições normais, de provocar atos
musculares adequados à exceção dos já organizados como reflexos" (Freud,
1915).
O inconsciente é concebido, desse modo, como um sistema que possui
um conteúdo e um modo de funcionamento, cujas características básicas
encontram-se:
- na ausência de contradição, de negação e de temporalidade;
— na presença de um processo primário (mobilidade dos investimen­
tos libidinais orientados peb serie prazer-desprazer) e
- na possibilidade de substituir a realidade externa pela realidade
psíquica.

Pré-consciente

O consciente divide-se em dois sistemas: o pré-consciente e o conscien­


te propriamente dito. Estes sistemas possuem basicamente as mesmas carac­
terísticas. A distinção existente entre eles, embora fundamental, é apenas de
cunho funcional. O pré-consciente é um sistema situado entre o consciente
e o inconsciente. Por sua vez, entre o pré-consciente e o inconsciente existi-
ria uma “censura", cuja função é impedir que certos conteúdos, presentes
no sistema inconsciente, tenham livre acesso aos demais. Esta censura é res­
ponsável pelo recalcamento, processo que afeta, essencialmente, as idéias,
na fronteira do sistema inconsciente com o pré-consciente.
A distinção entre um sistema inconsciente e um sistema pré-consciente
esclarece, por inteiro, a situação dos atos psíquicos no interior da personali­
dade. Podemos, segundo Freud, dizer que todo ato psíquico passa por duas
etapas, entre as quais se interpõe a censura. Como já foi visto, na primeira
delas o ato psíquico é inconsciente e pertence, pois, ao sistema inconsciente.
Ao tentar passar para o sistema pré-consciente, o ato psíquico é submetido
à ação da censura. Caso lhe seja barrado o acesso a esta segunda etapa, diz-se
que houve recalcamento. Entretanto, se a censura libera-lhe a passagem, o

15
ato psíquico em questão passa a pertencer ao sistema pré-consciente. Tal ato
adquire, desta maneira, a capacidade de se tomar consciente, desde que cer­
tas condições mínimas sejam atendidas. Uma vez no pré «consciente, não há
necessidade de o ato psíquico enfrentar nenhuma resistência maior para se
tornar consciente. Neste sentido, cabe ao pré-consciente acolher e organizar
os atos psíquicos susceptíveis de se tornarem conscientes, podendo assim ser
comparado a uma sala de espera, onde as idéias se reúnem na esperança de
serem recebidas e notadas por um soberano ilustre, ou seja, a consciência.
Em resumo, o pré-consciente constitui-se, a exemplo do inconsciente,
em um sistema da personalidade, no interior do qual podemos distinguir um
conteúdo e um processo que regem o seu funcionamento. O conteúdo do
pré-consciente é formado por representações (atos psíquicos) que lograram
transpor a censura e integrar-se aos princípios do processo secundário. Estas
representações mostram-se aptas, nestas condições, a se tornarem conscien­
tes. O processo de funcionamento do sistema pré-consciente (o processo
secundário) caracteriza-se pela forma de seu regime de energia e pela nature­
za de seu próprio processo de funcionamento.
Ao regime de energia pré-consciente dá-se o nome de energia ligada (em
oposição â energia livre do sistema inconsciente). A energia ligada refere-se
a um funcionamento energético que pressupõe um grau mais elevado na es­
truturação da personalidade. Assim, no pré-consciente, ao contrário do que
ocorre no inconsciente, a energia não busca uma descarga imediata, direta e
rápida. O processo secundário possui um movimento controlado, operando
no sentido de inibir a tendência, própria das idéias investidas libidinalmente,
de procurar uma descarga (satisfação) imediata. Este processo, que posterga
e inibe a tendência à satisfação imediata, associa-se integralmente ao prin­
cípio de realidade.
Diz-se que o princípio da realidade opõe-se ao princípio de prazer,
que é dominante no inconsciente. Opor-se ao princípio de prazer signi­
fica obter prazer em conformidade com as condições oferecidas, ou impos­
tas, pela realidade. Em virtude da consideração que o pré-consciente tem pe­
la realidade, torna-se necessário que ele possua o controle do acesso à mo-
tilidade (pólo motor). Ele é, então, responsável pela execução adequada das
ações motoras efetuadas pelo sujeito.
0 funcionamento do sistema pré-consciente atinge não só o controle
da motilidade como também o pensamento ágil, a atenção, a memória e o
raciocínio. Além dessas funções, o pré-consciente é responsável pela censura
que bloqueia o livre acesso dos conteúdos inconscientes ao consciente e à
realidade. Entretanto, quando assimilados pelo pré-consciente, os atos psí­
quicos são imediatamente organizados e coordenados através das categorias
de espaço e tempo e associados, finalmente, a um código representacional.

16

J
Consciente

Ao consciente dá-se o nome de sistema percepção-consciência (Pcpt-


Cs). Nele, a consciência aparece como uma qualidade momentânea que se
caracteriza pelo fato da personalidade dispensar, temporariamente, atenção
a certas representações pré-conscientes. Para Freud, é como se este sistema
se situasse na periferia do aparelho psíquico. Sua função principal consiste
na recepção de excitações provenientes do mundo externo ou do interior do
sujeito. Entretanto, ao contrário do que ocorre no pré-consciente, bem co­
mo no inconsciente, o consciente não se deixa marcar por nenhuma excita­
ção (sistema dos traços mnêmicos). Os mesmos processos que regem o pré-
consciente encontram-se também no sistema consciente. A censura que
separa o consciente do pré-consciente é simplesmente uma censura “ funcio­
nal” , que deixa passar os elementos psíquicos pré-conscientes que interes­
sam â consciência num dado momento.

2.3. Uma concepção geral e abrangente da personalidade

A contribuição freudiana ao estudo da personalidade não se limita


apenas â descrição sistemática das instâncias psíquicas do inconsciente, do
pré-consciente e consciente, nem tampouco das do Id, Ego e Superego, for­
muladas posteriormente. Sabe-se que o aprofundamento das motivações hu­
manas conduziu Freud a articular uma concepção geral e abrangente de
personalidade, denominada Metapsicologia. Meta psicologia significa a
psicologia que “consegue descrever um processo psíquico em suas relações
dinâmicas, tópicas e econômicas” (Freud, 1915). O estudo psicanalítico da
personalidade envolve, conseqüentemente, a obrigatoriedade de considerá-
la sob estes três pontos de vista.
Desta forma, quando nos referimos ao aspecto tópico da personali­
dade, estamos nos reportando a uma concepção que a encara como sendo
dividida em territórios ou localizações distintas. Por sua vez, o aspecto di­
nâmico nos chama a atenção para os processos específicos que se passam no
interior de cada um dos territórios da personalidade. Finalmente, o aspecto
econômico ressalta o fato de que as quantidades de energia de cada um dos
processos são distribuídas de maneiras distintas. São, portanto, regidas por
diferentes regimes.
Além das três dimensões acima, deve-se assinalar uma outra que in­
troduz, aliás, uma noção extremamente moderna no domínio da Psicologia:
a de gênese. A perspectiva genética, aberta por Freud, mostra que a perso-

17
nalidade se constrói através dos cam inhos e descam inhos do desejo. A o a fir­
mar que é pela história de nossos desejos que fo rja m o s nossa personalidade,
a Psicanálise tom a esta noção m u ito p ró x im a da de in d iv id u a lid a d e e de
história de vida.
Ao considerar a personalidade co m o u m sistema geral que se con strói
através das vicissitudes de nossos im pulsos, F re u d ressalta alguns m o m en to s
críticos e certos pontos nodais. Estes m o m en to s decisivos na fo rm a ç ã o do
caríter e na edificação da personalidade são as fases lib id in a is pré-genitais
c os complexos correlativos (co m p lexo de C astração e c o m p le x o de É d ip o ).

18
Gênese da personalidade

3.1. Libido

Nós sabemos que o núcleo ativo da personalidade, na concepção psica-


nalítica, é constituído pelo inconsciente. Este, por sua vez, também possui
um núcleo constituído por formações herdadas que passam de geração em
geração. Estas formações são as fantasias originárias ou protofantasias.
A estas formações mentais originárias agregam-se todos os elementos
que impressionaram o sujeito no curso de seu desenvolvimento e que fo­
ram rejeitados, posteriormente, pelo consciente. Estes elementos rejeita­
dos permanecem, entretanto, ativos no inconsciente. Estas impressões in­
conscientes (traços mnémicos) são precisamente aquelas que agirão de ma­
neira mais forte no indivíduo. Para Freud, estas impressões que raramente
se tornam conscientes são, em essência, de natureza sexual. A Psicanálise,
entretanto, entende, pelo termo sexual, algo que difere da idéia corrente
de “sexo” e é mais abrangente do que a noção restrita à genitalidade. Esta
é efetivamente uma expressão da sexualidade, embora a sexualidade não
seja redutível â genitalidade.
De maneira geral, concebe-se a noção de sexualidade como sendo
correlativa à noção de impulso. Como vimos anteriormente, o aparelho
mental é submetido a excitações (E) de procedência tanto externa quan­
to interna. Ao representante psíquico das excitações internas dá-se o nome
de impulso. Assim, na definição freudiana, impulso é um conceito ener­
gético, situado entre o somático e o psíquico, que se define por quatro
características básicas: origem, especificidade, objetivo e objeto.
Toda energia, ou todo impulso, possui uma origem. A origem desta
energia é somática, localizada na região do corpo onde nasce a excitação.

19
Além disto, a energia possui uma especificidade, ou seja, ela exerce uma
força contínua no sentido de sua satisfação, que nada mais é do que uma
diminuição da intensidade da pressão ocasionada pela excitação. O objeti­
vo do impulso é, assim, alcançar sua satisfação através de um modo ou
maneira específica e, para tanto, ele irá necessitar de um objeto.
Existe uma infinidade de im pulsos (de ver, sentir, de se alimentar,
de conhecer, os sexuais, os agressivos etc.). A Hm de se evitar o inconve­
niente de listá-los, incorrendo em uma ação desprovida de sentido prático
e interesse explicativo, Freud optou por agrupar os im pulsos em catego­
rias. Assim, em um primeiro m om ento, ele estabeleceu dois grupos de
impulsos: os de autoconservação e os sexuais.
Os impulsos de autoconservação são aqueles destinados a preservar
a vida do indivíduo, podendo-se assinalar, entre eles, por exe m p lo , a fome.
Os impulsos sexuais ignoram completamente a finalidade própria dos im ­
pulsos de autoconservação e destinam-se exclusivam ente a preservar a vida
da espécie. É nesta medida que eles estão associados, direta ou indireta­
mente, à função de reprodução. Desta form a, os dois grupos de impulsos
tém em comum o fato de estarem ambos em penhados na atividade vital,
seja do indivíduo, seja da espécie.
Na realidade, o que os diferencia é o fato de os im pulsos sexuais, ao
contrário dos impulsos de autoconservação, não estarem ligados a nenhu­
ma satisfação de necessidades fisiológicas de sobrevida. A pressão dos im ­
pulsos sexuais é, entretanto, tão poderosa e im perativa quanto a dos im pul­
sos de autoconservação.

Excitação Interna ----- Impulso sexual pré-genital

Externa autoconservação genital

3J . Diferenciação do aparelho psíquico

A distinção que acabamos de estabelecer entre im pulsos de autocon­


servação e impulsos sexuais é de grande valor na com preensão da gênese da
complexa e contraditória personalidade humana. Vejam os por quê.
Postula-se, inicialmente, que o aparelho mental do bebê recém-nasci­
do seria relativamente simples, homogêneo e onipotente em seu funciona­
mento. A este modo inicial de funcionam ento, cuja característica prim ordial
é a ausência de contradição, Freud chamou de processos m entais prim ários:

20
“o que chamamos de processos mentais inconscientes são os processos mais
antigos, primários, resíduos de uma fase do desenvolvimento em que eram
o único tipo de processo mental*’ (Freud). Assim, pode-se dizer que os pro­
cessos mentais primários constituem, no bebé, a única forma de funciona­
mento do aparelho mental. São, portanto, anteriores à divisão da personali­
dade em sistemas conscientes e inconscientes.
Os processos mentais primários são orientados exclusivamente pelo
princípio de prazer. Neste sentido, eles esforçam-se por alcançar o prazer
(reduzindo a tensão gerada pelas excitações internas, no aparelho psíquico),
afastando-se de toda situação que possa suscitar desprazer (acúmulo de ten­
são, provocada pelas excitações internas, no aparelho psíquico). Assim, o
aparelho mental do bebé satisfaz as exigências dos impulsos, ignorando a
realidade.
Freud explica esta possibilidade de satisfação imediata dos impulsos
do recém-nascido, que descarta os limites impostos pela realidade, da se­
guinte forma: a primeira obtenção de uma satisfação ocasional, através de
um impulso qualquer, deixa uma marca no aparelho psíquico do bebê, sob
a forma de traço mnémico. Quando, novamente, o aparelho psíquico for
perturbado por uma excitação interna (aumento da tensão equivalente ao
desprazer), o recém-nascido alcançará satisfação imediata por meio de uma
alucinação. Esta alucinação nada mais é do que a revivescência perceptiva
(P) do traço mnémico referente à primeira experiência de satisfação.
Poderiamos, então, dizer que o aparelho psíquico do bebê toma seus
desejos por realidade. É neste sentido que ele é onipotente. Porém, a frus­
tração e a decepção, decorrentes da inocuidade das satisfações alucinatórias,
induzem o aparelho psíquico a, gradativamente, levar em consideração a
realidade e abandonar a alucinação como meio exclusivo de satisfação. O
bebê é, assim, impelido a levar em conta o real, mesmo se este se apresenta
como desagradável. Desta forma, um novo princípio no funcionamento do
aparelho mental é introduzido ao lado do princípio de prazer: o princípio
de realidade.
O princípio de realidade, ao obrigar a criança a levar em consideração
a realidade na tentativa de satisfação de seus desejos, vai obrigá-la a poster­
gar a satisfação de ímpeto imediato. Esta é submetida por uma satisfação
tardia, porém mais segura, que incorre em menor risco para a integridade
da personalidade do indivíduo. Uma série de funções colocam-se, então, â
disposição do princípio de realidade e atuam no sentido de investigar a rea­
lidade exterior, agenciando ou ligando os impulsos internos “livres” a possi­
bilidades concretas de satisfação. Essas funções, que são a consciência do
real, a atenção, a memória consciente, o pensamento racional etc., estão

21
regidas pelo princípio de realidade e constituem um todo, um novo sistema
de funcionamento psíquico que co-existirá ao lado dos processos primários.
Este novo sistema é denominado processo secundário, por derivar do
processo primário. Desta form a, com a introdução do prin cípio de realidade,
a personalidade toma-se mais com plexa, distinguindo-se em dois sistemas:
um, regido pelo princípio de realidade, sede dos processos secundários, do­
tado de funções apropriadas à satisfação segura, porém mais limitada, dos
desejos; outro, regido pelo p rin cíp io de prazer, sede dos processos primários
que ignoram a realidade que, em decorrência, tendem a satisfazer o desejo
de maneira imediata, sem postergação, e de forma alucinatória. Enquanto
o primeiro sistema utiliza-se, sobretudo, de um modo de pensar consciente
para atingir seus fins, o segundo sistema utiliza-se de um m odo de pensar
inconsciente que denominamos fantasia. A fantasia está presente nas brin­
cadeiras e jogos infantis, nos sonhos dos adultos, nos sintomas dos neuró­
ticos, constituindo o fundo dinâm ico da personalidade de todos nós.
Esta diferenciação no interior da personalidade prim itiva não se esta­
belece repentinamente, mas sim no decorrer de um processo, ao longo do
qual ela se torna cada vez mais com plexa. A o diferenciar-se em modos au­
tônomos de funcionar, a personalidade é dotada, por assim dizer, de duas
formas distintas de pensar: a primeira denominada fantasia, regida pelo
princípio de prazer e de natureza inconsciente e, a segunda, regida pelo
principio de realidade, constituída pelos processos cognitivos de natureza
consciente.
O advento do princípio de realidade não determina, porém, apenas a
diferenciação da personalidade em dois sistemas mas, também, implica em
uma diferenciação progressiva na econom ia, na topologia e na dinâmica
psíquica dos dois grupos de impulsos (autoconservação e sexuais) que, no
início da vida, encontravam-se im brincados um no outro. Os primeiros im­
pulsos a cair sob o domínio do princípio de realidade são os impulsos de
autoconservação. A razão disto pode ser demonstrada de maneira evidente
e clara. Estes impulsos de autoconservação, tais com o a fome e a sede, exi­
gem, com efeito, uma satisfação mais concreta e ajustada à realidade. Um
viajante sedento, perdido no deserto, pode, durante algumas horas, satis­
fazer-se com a miragem de um oásis repleto de água e tâmaras. Esta aluci­
nação, porém, em breve se esvanecerá. Caso ele não procure meios reais
que possam satisfazer seu desejo de beber, seguramente perecerá.
Já os impulsos sexuais, por se comportarem de maneira auto-erótica,
podem subtrair-se facilmente às exigências da realidade. Assim , podem en­
contrar condições de satisfação no próprio corpo quando estas condições
se revelam inexistentes ou árduas no mundo externo. Um exemplo dessa

22
situação pode ser fornecido através da consideração da masturbação. Em vir­
tude disso, “o impulso sexual, em seu desenvolvimento psíquico, permanece
muito mais tempo sob o domínio do princípio de prazer do qual, em muitas
pessoas, nunca é capaz de afastarse” (Freud).
É, pois, a existência do auto-erotismo que torna possível a satisfação
imediata e imaginária, em relação ao objeto sexual, em lugar da satisfação
real, que exige esforço e adiamento. Em consequência destas condições,
surge uma vinculação mais estreita entre o impulso sexual e a fantasia. Am­
bos, com efeito, por se desligarem e ignorarem as exigências da realidade,
associam-se entre si. Os impulsos de autoconservação e as atividades da cons­
ciência, por sua vez, também estabelecem vínculos. A parte consciente da
personalidade, associada aos impulsos de autoconservação, necessita, tão-so­
mente, lutar pelo que é útil e resguardar-se contra possíveis danos e ameaças.
Esta identificação ou vinculação estreita entre fantasia e impulsos
sexuais de um lado, e atividades conscientes e impulsos de autoconserva­
ção de outro lado, não é primária: ela se dá ao longo do desenvolvimento
e diferenciação da personalidade. É no processo de desenvolvimento psíqui­
co que toda fantasia toma-se fantasia sexual, constituindo o fundo dinâmi­
co da personalidade humana.

23
4
Personalidade e caráter

0 termo ‘'personalidade"denva de Persona*,que significa máscara. Es­


tá em relação estreita com as noções de pessoa e personagem, ao passo que
caráter origina-se do grego kharasséin ou kharakter significando, respectiva­
mente, gravação e marca. A primeira destas noções, a de personalidade, é
usada, na teoria psicanalítica, no sentido de compreender os interesses gerais
da pessoa e o jogo conflitivo destes interesses enquanto se acordam ou se
opõem. Personalidade é, tomada, então, como sinônimo de aparelho psíqui­
co ou aparelho mental. Já o termo caráter é mais específico. Implica na
aquisição e estruturação de um certo número de traços ou marcas, deixadas
no sujeito ao longo de seu processo de desenvolvimento,e que determinam,
no interior da personalidade, uma postura típica face aos diferentes aconte­
cimentos e situações da vida.
Os traços indeléveis, precipitados no inconsciente durante o processo
de desenvolvimento são, sobretudo, decorrentes dos impulsos sexuais. De
fato, observa-se que, entre o início e o término do processo de gênese da
personalidade, ocorre uma série de fases através das quais os impulsos se­
xuais se organizam. A seguir, os traços psíquicos dos impulsos sexuais,
oriundos deste processo de organização, são depositados no inconsciente e
transformados em traços manifestos de comportamento, definindo, então,
um tipo específico de caráter. Em função disto, fala-se em fontes orais,
anais, fálicas e genitais do caráter.

* Ver parte UI desta obra, "Teoria da Personalidade em Jung”.

24
4.1. Caráter, caráter normal e caráter reativo

A teoria psicanalítica apresenta duas concepçOes ligeiramente diferen­


tes dc caráter. Sc. de um lado, esta noção é apresentada através de uma ver­
tente que se pode qualificar de normal, dc outro lado ela é apresentada atra­
vés de uma outra que faz ressaltar seu aspecto patológico.
A primeira destas concepções liga-se às formulações de Freud presen­
tes na Interpretação dos Sonhos (1900). A í. ele afirma que tudo aquilo
que nos ocone ao longo da vida permanece inscrito cm nosso inconsciente
sob forma de traços mnémicos indeléveis. É sobre os traços das primeiras
experiências, que agiram em nós da maneira mais impressionante, que se
constrói o caráter. Decorre daí que caráter pode ser definido, então, como
uma transformação do precipitado, relativamente estável e estruturado,
resultante do desenvolvimento das organizações libidinais pré-genitais e
genital.
Os mecanismos que operam esta transformação, determinando a for­
mação de um caráter, são a sublimação e a formação reativa.

4. L 1. Sublimação e caráter normal

A sublimação é o mecanismo predominante na formação do caráter


normal. Ela se define como derivação do impulso sexual em direção a um
objetivo não sexual. Desta forma, a sublimação visa sempre a objetos so­
cial ou culturalmente valorizados. Esta transformação do impulso sexual
em atividades culturalmente valorizadas é particularmente nítida no
trabalho intelectual ou na criação artística. “ O impulso sexual coloca à
disposição do trabalho cultural quantidades de força extraordinariamente
grandes. Isto em virtude de sua particularidade de deslocar seu objetivo, sem
perder sua intensidade” (Freud). É importante, ainda, assinalar que a subli­
mação incide eletivamente sobre os impulsos sexuais pré-genitais (Freud,
1904) que não lograram integrar-se na sexualidade genital total: “ Os im pul­
sos sexuais pré-genitais que não participam da sexualidade genital são, pos­
teriormente, sublimados e irão constituir a gama de comportamentos está­
vel e estruturada que nós denominamos caráter” (Freud).

4.1.2. Formação reativa e caráter reativo

A segunda concepção de caráter percorre a vertente clínica dos tex­


tos psicanalíticos e refere-se ao caráter, enquanto este revela uma certa or­
ganização patológica. Neste caso, caráter passa a designar toda neurose as-

25
sintomática. Trata-se de um tipo de neurose onde o conflito defensivo no
interior da personalidade n lo se traduz pela formação de sintomas, mas
apresenta-se através de traços de caráter ou modos de comportam ento. As­
sim, caráter é entendido como uma formação essencialmente defensiva, des­
tinada a reagir face aos impulsos sexuais e a opor-se ao aparecimento de
sintomas. Este caráter reativo distingue-se do caráter normal por seu aspecto
rígido, acentuadamente estático, forçado e, por isso mesmo, frágil. Um cará­
ter constituído por traços de comportamento onde nenhuma flexibilidade
cabe pode romper-se diante de uma situação particularmente intensa, dei­
xando a personalidade à mercê das forças incontroláveis (livres) do incons­
ciente.
0 meçanismo predominante na formação deste caráter é a formação
reativa. A formação reativa é uma atitude ou hábito de sentido oposto a
um desejo inconsciente. Freud fornece alguns exemplos de formações rea­
tivas através da análise do pudor, que se opõe às tendências exibicionistas,
do nojo, opondo-se às tendências anais, e da piedade, como reação contra
as tendências sádicas do sujeito. “ Em termos econômicos, a formação rea­
tiva é um contra-investimento de um elemento consciente de força igual e
oposta a um investimento inconsciente. A formação reativa exclui da cons-
aêncà tanto a representação sexual inaceitável como a condenação que ela
suscita?*

4.2 Sexualidade e caráter


A distinção entre caráter reativo e caráter normal possui apenas um
valor prático e descritivo, visto que a base sobre a qual ambos se edificam
é a mesma. Esta base é formada pelos “ elementos da sexualidade infantil
excluídos da vida sexual do adulto e sofrem uma transformação que os
converte em certos traços de caráter” (A braham ). O que dá um aspecto
normal ou então patológico ao caráter é o mecanismo de transformação
dominante da sexualidade pré-genital: a sublimação ou a formação reativa.
A Psicanálise estabelece que o critério afetivo, isto é, o comporta­
mento do indivíduo face a seus objetos de amor ou objetos sexuais, é o cri­
tério central na avaliação do desenvolvimento do caráter humano. Impõe-
se, assim, a necessidade de se entender o processo de desenvolvimento
psicossexual como condição para se compreender a formação do caráter.
Sabe-se, neste sentido, que Freud assinalou que os objetos sexuais de um in­
divíduo transformam-se de maneira sucessiva. Não é, entretanto, somente
sobre os objetos de satisfação sexual que incide tal transformação. O tipo de
relação que o indivíduo entretém com seu objeto sexual também varia pe­
riodicamente. Freud, em conclusão, estabeleceu três grandes momentos que

26
revelam os aspectos essenciais das relações com os objetos sexuais no curso
do desenvolvimento.
O primeiro deles é o momento auto-erótico, o segundo é o narcisista
c, finalmente, o terceiro é o das relações objetais. 0 momento auto-erótico
coincide com o primeiro segmento da fase oral. O momento narcisista abran­
ge a parte final da fase oral, a fase anal e a fase fálica. Enfim, o momento das
relações objetais refere-se à fase genital.
O auto-erotismo, no sentido psicanalítico do termo, refere-se ao com­
portamento sexual infantil precoce, onde a satisfação é obtida sem que haja
recurso a um objeto exterior. Isto em um momento em que a criança não
possui ainda uma imagem unificada de seu corpo. A sucção do seio materno
passa a ser o protótipo do auto-erotismo.
O seio materno no interior da boca da criança não é percebido, neste
momento da vida do bebé, como algo separado dela. £ sentido como parte
da cavidade oral e confundido com a mucosa bucal, gengiva e língua. Embo­
ra, do ponto de vista do observador, o seio materno seja considerado um
objeto exterior, pode-se dizer, em contrapartida, que do ponto de vista da
criança ele é parte de seu corpo. A aparente contradição em denominar a suc­
ção do seio materno de auto-erótica explica-se pelo fato de que a psicanálise
refere-se não ao observável mas á significação psicológica que diferentes
eventos adquirem para o sujeito.
O período narcisista é aquele caracterizado pela emergência de uma
imagem unificada do corpo. Esta imagem é investida pela libido e toma-se o
objeto de amor da criança. Os limites desta imagem são variáveis e relativa­
mente flutuantes. Nos primeiros anos de vida, por exemplo, a criança englo­
ba nesta imagem todos os objetos através dos quais ela obtém satisfação de
seus impulsos sexuais. No caso da sexualidade anal infantil, o objeto de sa­
tisfação, as fezes, é parte integrante de seu corpo. £ através das fezes, neste
caso, que ela obtém satisfação. Mas este objeto assimila-se totalmente a seu
Ego, tomado como objeto de amor.
A relação objetai só é alcançada quando o indivíduo é capaz de amar
e obter prazer através de um objeto percebido como exterior, total e inde­
pendente dele. Trata-se do amor genital adulto.

4.3. Sexualidade oral e caráter

A etapa oral da organização da libido constitui o primeiro momento


do desenvolvimento psicossexual onde o prazer está ligado à excitação da ca­
vidade oral, dos lábios, da língua e regiões circunvizinhas. O objeto de satisfa­
ção desta etapa é o seio materno, com o qual a criança estabelece uma rela-

27
çâo definida pela sucção. Esta atividade, utilizada para sc obter satisfação
dos impulsos sexuais orais, constituir-se-á em modelo de todo m odo de rela­
ção incorporativo, onde o que é visado é a introjeção do objeto amado. Fo i
Karl Abraham quem procurou» em seus estudos sobre a depressão, diferen­
ciar os tipos de relação em obra no estágio oral da libido.
No primeiro momento desta fase, o modo de satisfação prevalente é
a sucção. Este modo de satisfação caracteriza o estágio oral precoce auto-
erótico. No segundo momento, o modo de satisfação é a devoração. Freud
e Abraham denominaram de fase oral-canibálica este segundo momento da
organização da libido pré-genital. Esta sub*fasc do desenvolvim ento psicosse-
xual coincide com o aparecimento dos dentes. O m odo de relação com o
objeto, neste estágio, a devoração. a incorporação e a m ordida, im plica que
o sujeito, ao obter prazer do objeto (incorporação), é levado simultanea­
mente a destruí-lo (mordida). O crime passional seria um exem plo, no adul­
to. deste modo de relação oral canibálica. Nele, o sujeito destrói, ao querer
conservar em si. o seu objeto amado.

4.3.1. Caráter oral

0 caráter oral é aquele que se constrói a partir das transform ações dos
impulsos orais em traços de comportamento. Não é fácil observar este cará­
ter posto que a oralidade funde-se m uito bem com a genitalidade. Mas ape­
sar de seus elementos ocultarem-se em manifestações aparentemente geni-
tais, pode-se extrair algumas características marcantes deste caráter. In icia l­
mente, estabelecendo uma diferenciação do caráter oral, tom ando com o ba­
se a sub-divisão da organização oral em duas etapas: a fase oral precoce auto-
erótica e a fase oral canibálica. Em outros termos, pode-se efetuar uma dife­
renciação de dois tipos iniciais de caráter, o prim eiro sendo expressão da
tendência inconsciente de sugar e o segundo de m order (devorar). Para me­
lhor compreender esta diferenciação, deve-se levar em conta que o prazer
inicial de sucção é, em grande medida, um prazer de tom ar ou receber algo.
Assim, as sensações oriundas da sucção são o fundam ento do prazer psíq u i­
co presente em todo tipo de possessão. Possuir um objeto sign ifica, original­
mente para a mente infantil, incorporá-lo, isto é, intro duzi-lo no interior do
corpo.
Observa-se, desta forma, que um dos traços mais marcantes do caráter
oral de um indivíduo é a certeza de possuir tudo que é necessário para sua
sobrevivência. Em suma, tratam-se de indivíduos que enfrentam a vida com
um otimismo imperturbável e ingênuo. Eles trazem consigo, com o Panglós,
a convicção fundamental arraigada de que tudo irá sempre bem no melhor

28
dos mundos. Este otim ism o reveste-se na espera, tida com o certa, de um ser
protetor e continente que cuidará do sujeito e proverá tudo aquilo que lhe
for necessário na vida. Trata-se da idéia de um representante do seio m ater­
no que o am am entou na infância. Esta crença otim ista condena o in d ivíd u o ,
muitas vezes, a uma inatividade, na m edida em que ele não realiza nenhum
esforço c desdenha ocupações concretas que lhe perm itam ganhar a vida. O ti­
mismo, generosidade, despreocupação, desprezo pela realidade e confiança
cega no futuro constituem os traços desse caráter.
Mas encontramos, tam bém , uma categoria diferente de indivíduos
cujos traços de com portam ento derivam não de um increm ento da atividade
tibidínal oral, mas dos efeitos de uma sucção insatisfatória. Em seu co m p or­
tam ento, estes indivíduos parecem estar sempre pedindo algo sob form a de
solicitação ou exigência im perativa. “ A maneira com o expressam seus dese­
jos tem algo do caráter de uma persistente sucção; não conseguimos afas­
tá-los com argumentos nem atos duros. Podemos dizer que se agarram aos
outros como sanguessugas" (A b rah am ). O apego in fan til em experim entar
uma gratificação oral, utilizando-se da sucção, transforma-se em desejo
permanente de tudo obter. Observa-se, nestas mesmas pessoas, outros tra­
ços de caráter originados de transformações peculiares da sexualidade oral
precoce. A impaciência, nelas, é típica. C oncom itantem ente, a relação com
as pessoas efetua-se através de uma descarga oral. Trata-se, no caso, de uma
intensa urgência de falar, de um flu xo aparentemente inesgotável de pensa­
m ento. Este tipo de caráter apresenta, na esfera social, uma característica
precisa: ele está sempre apto para absorver novas idéias e valores.
A capacidade para absorver novas idéias desdobra-se, quase sempre,
em comportamentos de aspecto mais positivo. Se, de um lado, o in d ivíd u o
pode-se tornar mais inform ado, menos obtuso, de o u tro , pode transform ar-
se em consumista e modista. Tudo isto dependerá da predom inância dos
mecanismos em jogo (sublimação e formação reativa) e da intensidade dos
impulsos orais. A derivação do prazer de sucção para a esfera intelectual
possui grande interesse prático. A grande capacidade m ental para absorver
transforma-se, em muitas pessoas, em especial inclinação para a observação
científica. E n fim , um caráter arraigado, deste m odo, no erotism o oral, e n ­
volve tanto o conjunto das condutas individuais, como incide sobre a esco­
lha de profissões ou influencia o tipo de predileção dom inante no sujeito.

4,3.2. Caráter oral canibálico

O processo de irrupção dos dentes leva a criança a substituir o prazer


de sucção pelo prazer de m order. Este deslizamento do m odo de satisfação
oral inaugura o período canibálico da fase oral. Nesta fase aparece, pela pri-

29
meira vez, uma relação com o objeto sexual que é marcada pela ambiva*
léncia. A coexistência de duas valências afetivas opostas, dirigidas ao mes­
mo objeto, prazer (incorporação) e destruição (m ordida), configura o sa­
dismo na relação afetiva.
A derivação do sadismo oral em traços de caráter pode ser apreendi­
da no uso agressivo da linguagem. Assim , atribui-se a tal in d iv íd u o um ca­
ráter mordaz ou língua ferina. Neste caso, o im pulso de falar significa pra­
zer e desejo de aniquilar, destruir.
O caráter sádico-oral é marcado, em todos os seus traços, pela coexis­
tência de tendências amistosas e hostis dirigidas ao objeto de satisfação ou
de amor. A inveja, a hostilidade, ciúmes, enquanto sc constituem em traços
do caráter sádico-oral, impossibilitam a preponderância de sentim entos de
gratidão e comportamentos generosos em relação ao objeto am ado. Senti­
mentos positivos, opostos ao ciúme e á inveja, podem entretanto surgir sob
forma de formações reativas. Socialm ente, o caráter can ib álico apresenta-se
como agressivo, mal-humorado e inacessível. Tem -se, na figura m ítica do vam ­
piro, a melhor expressão que a humanidade crio u para designar tal caráter.

4.4. Sexualidade anal e caráter

Os 9/10 dos elementos que compõem a relação de um a criança entre 1


e 3 anos com os adultos referem-se, direta ou indiretam ente, aos cuidados
oro-alimentares ou à aprendizagem do controle esfincteriano. Po r volta do
segundo ano de vida, sem abandonar com pletam ente o prazer oral, a crian­
ça começa a privilegiar as excitações provenientes da zona anal, decorrentes
do jogo fecal e mictório. “ A libido, que provocava a sucção lú d ica da fase
oral, provocara agora a retenção lúdica das fezes ou da urina” (D o lto ).
É bem verdade que, durante a evacuação, a criança m antém as nádegas
e regiões vizinhas em contato com a urina quente e excrem entos pastosos
que lhe propiciam sensações agradáveis. Observa-se, am iúde, que a criança
começa a denotar sinais de desprazer somente quando os produtos excre­
tados esfriam-se contra seu corpo. Considera-se, tam bém , que o prazer da
excreção compreende, além dessas sensações física s, um a gratificação psí­
quica no ato em questão*. Quando o aprendizado da higiene e a educação

* Jones (1916) destaca a relação entre a auto-estima elevada na criança e seus atos cx-
cretores. Podemos nos referir, como ilustração, ao caso de um garoto de dois anos, em
pré-escola, que sentia-se particularmente poderoso por ter conseguido urinar na tomada
de eletricidade da sala e ter feito explodir, através de um curto circuito, a iluminação
do estabelecimento. Neste caso, a realidade veio confirmar suas fantasias narcisistas oni­
potentes.

30
vêm exigir, da parte da criança, uma estreita regularidade das excreções,
uma dupla norma se impõe:

1. A criança não deve sujar-se com excrementos e urina.

2. As excreções devem-se efetuar rm horas mais ou menos estabelecidas.

Como resultado deste processo, o narcisismo infantil recém-estabele­


cido vê-se submetido a uma primeira e dupla prova. De toda maneira, a
maioria das crianças adapta-se a essas exigências, assumindo o prazer de figu­
rar na estima dos pais.
Foi Abraham quem distinguiu, de maneira precisa, dois momentos no
interior da fase anal. O prim eiro foi caracterizado pela evacuaçío inconti-
nenti e o segundo pela retenção intempestiva das fezes, na ocasião em que a
criança acede ao controle voluntário dos esfíncteres. No primeiro desses m o­
mentos, o modo de satisfação da criança consiste na obtenção do prazer pela
passagem livre das fezes através da mucosa anal.

A partir desses dois modos diferentes de relação com o objeto sexual


da fase anal, as fezes, são descritas duas subfases: a fase sádica anal precoce
e a fase anal tardia. Na primeira subfase, a criança obtem prazer expulsando
seu objeto sexual; na segunda, ela o obtém retendo e controlando o objeto.

4.4.1. Caráter anal

É a partir das transformações da sexualidade anal em traços estáveis


e homogêneos de comportamento que surge o caráter anal. A literatura
psicanalítica clássica referente a este caráter é particularmente rica. Freud,
Sadger, Jones, Abraham e Reich forneceram contribuições decisivas para o
entendimento de sua formação. Os estudos de Freud assinalaram, de modo
específico, que o caráter anal decorre do prazer infantil experimentado na
evacuação intestinal e na manipulação fecal. Este prazer anal sofre, mais tar­
de, uma repressão que o obriga a derivar, via sublimação ou via formação
reativa, por exem plo, em prazer de pintar ou modelar ou em obsessão por
limpeza.

A consulta bibliográfica revela, assim, que a direção deste caráter em


questão abrange um certo número de traços. Estes se referem a três carac­
terísticas básicas: ordem, parcimônia ou economia e obstinação.

A ordem exprime-se pelo colecionismo, a preocupação de tudo classi­


ficar, o apego à minúcia. A ordem doméstica, por exem plo, quando confun­
dida com a limpeza excessiva e exagerada constitui-se como um dos traços
marcantes deste caráter. Neste caso, trata-se de uma formação reativa tí-

31
picamente anal (exageração de um traço de caráter - limpeza - com o rea­
ção contra uma tendência inversa - gosto pela atividade anal e interesse pe­
las matérias fecais tidas como ‘*sujas” ). A ordem expressa-sc, também, como
gosto pela simetria, intolerância pela assimetria.
Na vida prática, pessoas com tais traços dividem todas as coisas; um
marido, por exemplo, fará cálculos para demonstrar à esposa que seus gastos
respectivos nâo são iguais. 0 perpétuo desejo de estar em paridade com os
outros, isto é. de nada dever a ninguém, é um elem ento expressivo da parci­
mônia anal. Ao contrário disso, observa-se pessoas com tendência a esque­
cer dívidas (sobretudo se se trata de pequenas somas). Neste último caso,
considera-se que tal atitude exprimiria um erotism o anal não sublimado.
A parcimônia revela-se como expressão do prazer anal em reter e con­
servar as fezes e que foi. em seguida, deslocado para outras áreas do compor­
tamento. A parcimônia possui o sentido de economia exagerada que se con­
fina na avareza. Pode-se observá-la no prazer acentuado de guardar bens e
possuir coisas; na exigência para si daquilo que se recusa aos outros, na au­
sência de generosidade, sobretudo nas pequenas coisas. A parcimônia mos­
tra-se, ainda, através da avareza de palavras, que configura um medo de se
revelar ao outro, ou na economia de tempo: pontualidade minuciosa e in­
quieta, exatidão minuciosa. Uma mulher fará questão, alegando motivos
plausíveis, de repartir equitativamente uma conta de restaurante com o ma­
rido apegando-se â exata divisão dos centavos.
A obstinação, em sua expressão psíquica, pode ser considerada com o
um prazer em dominar os outros, acompanhado do m edo de se deixar in­
fluenciar pelo outro. A obstinação, em todo caso, significa apego e retenção
mental de uma idéia, independente de seu valor social ou cultural. A obsti­
nação está em estreita relação com este m odo de satisfação anal que é a re­
tenção, o controle, que permanece ativo no inconsciente. Tal m odo de rela­
ção com o objeto sexual expressa-se, por derivação, na vida manifesta, pela
ânsia mais ou menos marcada com que um indivíduo im põe seu próprio sis­
tema em todas as coisas. Tal característica anal pode, entretanto, desenvol­
ver-se em direções diferentes: a inacessibilidade e a teim osia, de um lado, e a
perseverança e a escrupulosidade, de outro. A inacessibilidade e a teimosia
são condutas, em última análise, improdutivas e anti-sociais, ao passo que
a perseverança e a escrupulosidade possuem características sociais valiosas.
É evidente, entretanto, que essas duas últimas características só possuem
valor social na medida em que não chegam a extrem os clínicos ou ao limite
de um funcionamento improdutivo, tal com o a observação pedante de for­
mas rígidas, onde a preocupação pela forma exterior supera o interesse pelo
objeto em si. Tem-se exemplos no com portam ento de juristas que se apegam

32
à letra da lei cm detrimento do espírito da lei, ou dc leitores de romance que
fixam atenção na devida colocação de pronomes e sc esquecem do interesse
c valor geral da obra.
A afabilidade, a concórdia sistemática, o liberalismo sem princípio no
trato das relações humanas podem ser vistas como expressões da transforma­
ção do controle, retenção e agressividade anal pelo mecanismo de formação
reativa.
Observa-se, também, no caráter anal, um traço muito frequente, cons­
tituído pelo hábito dc adiar decisões, conclusões e ações. Associado a ele,
encontra-se outro lado caracterizado pela interrupção de toda tarefa inicia­
da. Mais frequente, trata-se dc resistir ao máximo ao início de uma tarefa a
qual, uma vez iniciada, toma-sc verdadeira obsessão para o sujeito, escravi­
zando-o. Estas atitudes seriam derivações do antigo prazer infantil em reter as
fezes durante algum tempo, em vista de um acréscimo de prazer na evacuação.

4.5. Sexualidade fálica e caráter

A fase fálica inicia-se ao término do segundo ano de vida, quando a


criança renuncia ao prazer obtido na manipulação das matérias fecais. A ul-
trapassagem da fase anal e o acesso à fase fálica não se dá de maneira espon­
tânea. Mas sim quando a criança se vé obrigada, em nome de uma estética
( “sujo” , “ feio**, “caca” ), a abandonar seu objeto de prazerías fezes. Mas es­
te abandono somente pode ser efetivado com sucesso quando a mãe se reve­
la amante e amável, isto é, capacitada a substituir as fezes tidas, até então,
como objeto de satisfação.
Freud percebeu que o desenvolvimento da organização da libido, no
menino e na menina, ocorre, em grande parte, de maneira idêntica. Isto
equivale a dizer que, do ponto de vista psicológico, nao há diferença sexual.
Inexiste separação psíquica dosgénerosmasculino e fem inino.Esta semelhan­
ça sexual entre o menino e a menina é de fácil entendimento quando se aborda
a sexualidade oral e anal, mas torna-se de uma compreensão mais árdua quan­
do se trata de explicar a etapa fálica do desenvolvimento da sexualidade.
Esta identidade pode, entretanto, ser esclarecida, basicamente, a partir
de dois pólos de reflexão:
1. Para a criança, na fase fálica, existe “um só órgão, ou mais precisa­
mente, uma única espécie de órgão sexual: o/àZo ” (Safonan). Na antiguidade
greco-latina o termo falo designava a “ representação figurada, esculpida etc.
do órgão viril. Esta representação simbólica do pênis era objeto de venera­
ção, desempenhando um papel central nas cerimônias de iniciação’* (Laplan-

33
che e Pontalis). Nesta época, o falo em ereção traduzia o poder soberano c
mágico e não uma variação do poder do macho.
Em Psicanálise, o termo falo conserva o significado da expressão gre­
co-latina. Boa parte, aliás, da incompreensão fem inista da leitura de Freud
decorre do entendimento demasiadamente concreto, pragm ático e pouco
erudito do termo em questão. 0 falo não é o pênis. Sign ifica, precisamente,
um órgão genital comum, em sua espécie, ao gênero hum ano; tratando-se,
consequentemente, de um órgão esscncialmente im aginário. É frcqüente,
contudo, que meninos e meninas vislumbrem, respectivamente, este falo
no pênis ou no clitóris. A criança, efetivamente, com eça a atribuir à região
genital. devido à influência primária das excitações provenientes da micção,
uma importância crescente na manifestação de sua sexualidade. Esta sexua-
lídade associa-se, então, a fantasias de poder m ágico, de realizações imagi­
nárias que desconhecem barreiras, de conquistas que não adm item limites.
É necessário ainda dizer que o falo, por se tratar de um órgão imaginário,
possui, na mente infantil, a característica de ser destacável do corpo, trans­
posto, presenteado, retirado etc.
2. O segundo pólo de reflexão refere-se ao fato de que, tanto para o
menino como paia a menina, a mãe se tom a um objeto de desejo. É claro
que a mãe sempre se constituiu enquanto objeto de am or. Mas era vista co­
mo um objeto parcial, isto é, como um seio que satisfaz ou m ão que acari­
cia. Neste momento, porém, os diferentes im pulsos sexuais, a saber, orais,
anais, escópicos* etc., tendem a se agregar numa totalidade submetida à
função genital. Ora, concomitantemente, a esta unificação dos diferentes
impulsos sexuais, a mãe passa, e somente então, a sign ificar um objeto
total de satisfação geral. A relação da criança com a mãe é, na fase fálica,
uma relação inscrita sob o signo do narcisism o: sob a influ ência de fanta­
sias onipotentes, a mãe é percebida com o mera extensão do E go infantil.
A mãe, um objeto total em direção ao qual o desejo in fa n til estende-se
sem barreiras nem limites, passa a ser envolvida, assim , narcisicam ente, no
Ego infantil.
Estes dois pólos aos quais acabamos de fazer referência, a saber, a zo ­
na erógena concebida como falo e a eleição da mãe com o objeto de desejo,
colocam a criança numa situação de cujo em aranhado, co m o veremos, será
mais fácil para o menino desfazer-se. Certam ente, o m enino deverá renun­
ciar à mãe substituindo-a futuramente por um a m ulher; a m enina deverá
não só efetuar esta mesma renúncia, com o também su b stitu ir a mãe por um

* Impulso sexual de olhar ou ser visto: “exib icion ism o ou voyeu rism o" .

34
objeto de amor do outro sexo. Além disso, o pênis contínua, no menino, a
desempenhar função de zona erógena, ao passo que a menina deverá, ainda,
descobrir libidinalmentc a vagina. Será o drama do complexo de Édipo que
permitirá à criança efetuar essas renúnciase adquirir uma identidade psicos*
sexual própria, atribuindo-sc um lugar na rede de relações elementares da
cultura humana.

4.5.1. O caráter fálico

O caráter fálico foi descrito por Wilhelm Reich em um trabalho apre­


sentado à Sociedade Psicanalítica Vienense, em outubro de 1926. Trata-se,
portanto, da contribuição de um psicanalista que dá continuidade aos tra­
balhos de Frcud (1908) e se insere, nesta medida, no esforço para o avanço
do pensamento psicanalítico da época. O destino posterior de Reich, que o
fará se afastar da Psicanálise, é ainda estranho às atividades que, neste mo­
mento, ele desempenhava no interior do movimento liderado por Freud.
Desta forma, achamos legítimo adicionar suas idéias a respeito do caráter fá­
lico, no âmbito geral da compreensão freudiana do caráter e da personalidade.
O caráter fálico constitui uma das expressões do narcisismo. Reich o
descreve ocupando uma posição intermediária entre os traços obsessivos de
controle, depressão e inibição e os traços histéricos de nervosismo, apreen­
são e labilidade. E , justamente por ocupar esta posição intermediária entre
os traços obsessivos e histéricos, o caráter fálico pode ser descrito, essencial­
mente, pelos seus aspectos de segurança, arrogância e vigor. Na trama que
liga os indivíduos de caráter fálico aos objetos (incluindo a í o objeto amoro­
so) domina o elemento narcisista, notando-se, amiúde, a presença quase
constante de traços sadios que, de maneira mais ou menos disfarçada, colo­
rem suas relações afetivas.
O caráter fálico corresponde à expressão da fixação na fase fálica do
desenvolvimento libidinal, que se situa no término da fase anal. Esta fixação
indica, antes de tudo, que o indivíduo não atingiu ainda uma posição Libidi­
nal propriamente objetai e que, conseqüentemente, não superou o impasse
de sua relação narcisista. Segundo Reich, “este narcisismo fálico revela-se
por uma concentração orgulhosa no próprio genital” e, em sua forma típica,
a análise revela uma identificação, do Ego como um todo, ao falo. A concen­
tração do orgulho no próprio falo revela-se, assim, como uma concentração
orgulhosa do próprio Ego.
Compreende-se, pois, que uma ameaça ao falo, isto é, ao pênis mágico
capaz de todas as realizações, é vivida pelo sujeito como uma ameaça à pró­
pria integridade do Ego. Em função desta identificação da totalidade do Ego

35
a um objeto parcial (falo), tudo se passa como se houvesse uma substituição
do Ego pelo Falo. Originam-se daí condutas de exibição do Ego que equiva­
lem, a nível inconsciente, à exibição do pênis imaginário.
A conduta de ostentação de si revela uma fantasia subjacente de pos­
suir um pênis mágico e todo-pode roso. Fantasia, pois, comum tanto a mu­
lheres e homens de caráter fálico. Segundo Reich, quando o impulso fálico é
severamente reprimido ele pode irromper, episodicamente, sob forma de
acentuado sentimento de vergonha e rubor facial (eritrofobia).
Da aliança que se estabelece entre impulsos extremamente vigorosos e
fantasias de onipotência, resulta que as defesas alinhadas pelo caráter fálico
constituem-se em defesas muito poderosas, encarregadas, antes de tudo, de
manter a sobrevivência psicológica do sujeito identificada à integridade do
falo. Mas devemos sempre distinguir, com atenção e cuidado, os impulsos
que encontram uma gratificação direta nas condutas emanadas do caráter
fálico, daqueles impulsos que se estruturam, por formação reativa, em um
verdadeiro aparelho de proteção narcísica.
No caso dos primeiros há a predominância da sublimação na gênese do
caráter fálico, o que acarreta, na existência individual, um sentido de reali­
zação pessoal determinante. Estes indivíduos revelam-se extremamente pro­
dutivos e enérgicos empreendedores, graças à transformação da agressão em
ações socialmente construtivas.
Já nos segundos, onde a formação reativa ocupa largo espaço na estru­
turação do caráter, o esforço de realização pessoal toma-se peculiar, desem­
bocando, não raramente, num sistema de tipo paranóide fechado, circular,
de pouco valor social ou cultural. De fato, vivendo sob a ameaça constante
de ser agredido (ansiedade de castração), o indivíduo de caráter fálico de­
fende-se constantemente. Desta forma, ele reage atacando, antecipadamente,
toda e qualquer agressão imaginada ou esperada.
Um outro fator a ser mencionado é que a vaidade fálica ferida resulta
em depressão instantânea ou determina uma agressão viva. Neste sentido, a
agressão defensiva fálica ê uma agressão onde predomina a forma sobre o
conteúdo. A agressão está muito mais no como do que naquilo que ê efeti­
vamente feito ou dito.
Finalmente, poderiamos estabelecer que, para o homem de caráter fá­
lico, o pênis não se encontra a serviço do amor: ê utilizado enquanto instru­
mento de ataque e vingança contra a mulher. As mulheres de caráter fálico
são, por outro lado, predominantemente motivadas pelo desejo de tom ar o
homem impotente ou de fazê-lo parecer impotente.
Em ambos os sexos, o caráter fálico revela-se também pela poligamia
neurótica e o ativo esforço em causar decepções ao outro.

36
4.6. Complexo de Édipo e personalidade

O complexo dc Édipo constitui a noçfo central da teoria freudiana


da personalidade. É ela que arregimenta e dá significado unitário ao con*
junto dos conceitos psicanalíticos. Toma-se compreensível que uma noção
a este ponto diretora seja particularmentc fecunda c, por isso mesmo, nem
sempre de fácil manejo. Há, mesmo, inicialmcnte uma questão terminológi­
ca que deve ser devidamente esclarecida; Frcud referiu-se ao complexo de
Édipo para elucidar tanto a questão da personalidade feminina quanto da
masculina. A expressão complexo de Eletra, muitas vezes utilizada para
anunciar o drama vivido pela mulher num momento fundamental de sua
infância, é estranha ao vocabulário psicanalítico. Pertence, aliás, à escola
de Carl Jung, onde é empregada num sentido bem peculiar.
Em seguida, há que se precisar, de maneira clara, o plano onde Freud
situa os termos constitutivos do triângulo do complexo de Édipo. Este plano
é o do terreno psicológico. O terreno psicológico não recobre nem coincide,
necessariamente, com o terreno biológico.

Desta forma, quando Freud se refere à atração sexual0 que a criança


sente pela mãe, ele não está, necessariamente, referindo-se à mãe biológica,
mas sim à função maternal que é um conceito eminentemente psicológico.
Ora, a função maternal pode encarnar-se em qualquer pessoa de qualquer se­
xo, ou mesmo num determinado aparelho institucional, tal como creche etc.
Evidente mente, a função maternal ou, mais sucintamente, “a mãe” ,
conforme a terminologia psicanalítica, assume uma importância de primeira
grandeza no desenvolvimento infantil. O homem é, dentre os animais, aquele
que nasce em um maior estado de incompletude, responsável, aliás, por uma
infância marcadamente longa, durante a qual ele se perfaz não só psíquica,
mas também biologicamente. Esta fraqueza constitucional faz com que o
homem dependa, para a sua sobrevivência, de uma função maternal que su­
pra suas necessidades básicas. A criança, assim, acopla-se â pessoa que de­
sempenha a função materna], constituindo com ela uma unidade que, do
ponto de vista infantil, é auto-suficiente. A história das fases do desenvol­
vimento, que marcam de maneira tão nítida o caráter humano, é a história
deste acoplamento materno-infantil; fa T oral, anal e fálica.

* Ver o sentido de sexual, empregado por Freud, no capítulo 3 deste livro.

37
4.7. Complexo de castração e complexo de Edipo

O complexo de Édipo refere-se a um drama vivido intensamente pela


criança» num período geralmente situado entre o terceiro e o quinto ano de
vida.
Em plena fase fálica» a criança transfere o interesse total de seu Ego
para o Falo» que passa então a representá-lo. Convém lembrar também que,
neste momento, os diferentes impulsos sexuais orais, anais, escópicos etc.
tendem a se agregar numa totalidade submetida à função genital. Concom i­
tantemente a esta unificação dos impulsos sexuais, a mãe passa a ser vista
como um objeto global de satisfação geral. A partir do falo onipotente, a
criança passa a dirigir sua libido para a mãe. O paradoxo consiste no fato
de que este momento maior do desenvolvimento das relações libidinais que
unem a criança e a mãe traz consigo o germe da desilusão! A mãe sadia, ao
se revelar inteira para a criança, mostra-se também como mulher, isto é, co ­
mo pessoa que procura (concreta ou imaginariamente) num outro o amor
genital, que a criança não poderá oferecer-lhe ou substituir. Esta recusa assi­
nala que existe na mãe um espaço afetivo que a criança não pode preencher.
É um espaço destinado a alguém outro. Esta recusa foi denominada por
Freud como proibição do incesto.
Na fantasia infantil, tal recusa não pode vir da mãe, englobada que é
no Ego da criança, mas sim de um alguém. Este alguém que desempenha a
função psicológica da proibição foi identificado por Freud pelo vocábulo
Pai.
As funções paternal (proibição) e maternal (objeto de amor) podem
ou não coincidir com pai e mãe biológicos. Tais funções podem estar até in ­
cluídas numa mesma e única pessoa. Trata-se, antes de tudo, de um confron­
to psíquico entre uma proibição e o desejo fálico todo-poderoso. Entretan­
to, em qualquer situação, a criança não se conforma com tal amputação de
seu desejo e, com toda a força de sua fantasia, procura eliminar aquele que
lhe parece constituir-se em obstáculo. A eliminação do rival ou, ainda no
vocabulário próprio de Freud, “o desejo de morte em relação ao pai” tam­
bém fracassa, face à manutenção da “ proibição do incesto” . O pai revela-se
mais forte que o falo todo-poderoso. Neste confronto, o falo é sentido co­
mo ameaçado e, face a isto, a criança se vé obrigada a renunciar às suas pre­
tensões libidinais em relação â mãe. Seu desejo por ela esbarra na lei do pai.
Se antes a criança tomava seus desejos por realidade, agora ela é obrigada
a considerar a realidade como irredutível a seus desejos. A criança deverá,
então, conformar-se à realidade ou decidir a transformá-la a fim de obter a
satisfação de seus desejos.

38
. 0 drama ediplano tem como significado o destronamento do narcisis-
mo infantil. É através dele, desta profunda ferida aberta na onipotência das
fantasias infantis, que a criança terá acesso, ao mesmo tempo, ao mundo e à
possibilidade de transformá-lo. £ no interior desta ferida narcisista que se
incrustará o protótipo de todas as normas e leis futuras, que constituem a
base e a essência da cultura. A fissura ocorrida neste narcisismo é vivida pela
criança por aquilo que se convencionou chamar de complexo de castração.
Desta forma, o complexo de castração constitui o cerne do complexo de
Édipo.

4.8. Complexo de Édipo masculino

A criança de sexo masculino vislumbra o poder do falo nas excitações


genitais. Estas excitações concentram todo o interesse libidinal e são. pri­
mordialmente, dirigidas à mãe. Entretanto, as pretensões eróticas infantis es­
barram na presença paterna, que se revela como rival na disputa pela posse
da mãe. Os sólidos laços que mantém o interesse erótico da mãe pelo pai
despertam um profundo ódio na criança. Este ódio se traduz por um desejo
de morte do pai. Este, entretanto, ao triunfar sobre o desejo da criança, co­
loca-se face ao filho como um ser poderoso e indestrutível, apto não só a so­
breviver a seus ataques mortíferos como a vingar-se deles. Esta vingança to­
ma a forma, no pensamento infantil, de uma possibilidade de castração. £
desta forma, em todo caso, que a criança de sexo masculino explica a au­
sência de pênis nas crianças de sexo feminino: elas foram mutiladas pelo pai.
Colhida entre o desejo pela mãe e as angústias da castração, a criança preci­
pita-se num drama intenso. Nele, a própria figura paterna é ambivalente: se,
de um lado, ela é temida, por outro ela é admirada por sua força e poder.
Decorre daí o processo de identificação com o pai. Esta identificação per­
mitirá ao menino resolver o conflito no qual ele se viu inserido. A identi­
ficação consiste em introjetar as qualidades essenciais do pai, transformando
o Ego infantil em função destas qualidades introjetadas. Ora, as qualidades
essenciais do pai consistem naquilo que o define enquanto tal: a proibição
do acesso erótico à mãe. A criança passa então, ela mesma, a proibir-se aqui­
lo que anteriormente o pai lhe barrava.

Finalmente, vale ressaltar, a ansiedade de castração faz com que o ga­


roto abandone a relação incestuosa com a mãe e supere o complexo edipia­
no. Esta superação, que se dá via identificação com pai, estrutura sua perso­
nalidade numa identidade psicossexual finalmente definida.

39
4.9. Complexo de Edipo feminino

A criança, c, antes de vivenciar o complexo de Édipo do ponto de


vista das polaridades psíquicas masculino/feminino, indiferenciada. A meni­
na vislumbra o poder do falo nas excitações clitorianas c, tal como nos me­
ninos, é para a mãe que são dirigidos seus impulsos eróticos. O interesse pela
região genital fará com que ela se interrogue a respeito da diferença anatô­
mica dos sexos, até então desapercebida. A esperança que o clitóris cresça
e se transforme num pênis c. entretanto, logo abandonada. A esta desilu­
são segue-se uma hostilidade pela mãe, visto que ela foi incapaz de fomecer-
Uie um pênis. Por sua vez, a constatação da ausência de um pênis materno,
isto é, a descoberta dos gêneros masculino e feminino, fará com que a meni­
na adicione à hostilidade uma enorme decepção para com a mãe. Seu inte­
resse erótico dirigir-se-d, então, ao pai, encarado como apto a fornecer-lhe
um pênis ou um substituto deste. A menina dá-se conta neste momento, de
que a vagina é um órgão capaz de acolher aquilo que ela almeja: o pênis do
pai. Desta forma, se no menino é a castração que o faz superar o complexo
edipiano, na menina é pela castração que tem início o Édipo. A posição fe­
minina é particularmente árdua: não só ela se vê obrigada a deslocar a zona
erógena do clitóris para a vagina, como também a trocar o objeto de amor
materno pelo paterno. Finalmente, é identificando-se com a mãe que a
menina passa a assumir a identidade feminina e buscar, nos homens, simi­
lares do pai.

4.10. Período de latência e genitalidade

O declínio do complexo de Édipo coincide com o início da constitui­


ção do Superego. Este elemento estrutural da personalidade resume-se na
internalização daquilo que é visto como interdição paterna. Neste sentido,
o Superego de cada um é formado sobre o modelo do Superego dos pais.
A internalização das interdições resulta tanto num abrandamento
da exuberância da atividade sexual infantil bem como em esquecimento
que recobre, progressivamente, este período de efervescência erótica pré-
edipiana. Este período de calmaria, inaugurado pela ação do Superego,
denomina-se período de latência. Durante este período, os impulsos sexuais
adormecem. Somente na adolescência, irão despertar com fulgor. A estória
infantil “ A Bela Adormecida” pode ser, em parte, interpretada como perso­
nificação lendária desta história sexual do indivíduo.
Ressalte-se, entretanto,que os impulsos pré-genitais que não lograram
êxito na tentativa de se englobar na sexualidade genital serão, a partir de en-

40
tão, recalcados ou transformados em atividades socialmente produtivas (su-
blimação). Os impulsos pré-genitais recalcados poderão retomar mais tarde,
sob efeito de alguma circunstância particular, interna ou externa, manifes­
tando-se em contradição com os interesses éticos, estéticos ou morais do in ­
divíduo adulto. Neste caso, tem-se, então, a eclosão de um quadro de sinto­
mas neuróticos, ou a estruturação de um caráter reativo. Quando, entretan­
to, os impulsos pré-genitais são devidamente sublimados, transformam-se em
poderosos motores para o desenvolvimento do caráter do indivíduo e para o
progresso cultural da sociedade.
£ompreende-se, desta forma, que o complexo de Édipo se constitua
naquilo que Freud definiu como o núcleo da neurose e da cultura. Esta for­
mulação, sucinta e ambígua, que faz pousar sobre um mesmo terreno a e x­
pressão da patologia e da criação cultural, resume toda compreensão freudia­
na da personalidade.
O período de laténcia, que se dissolve na puberdade sob o efeito de
uma série de fatores, permitirá, então, uma retomada da vida sexual. O ado­
lescente, tendo superado o complexo de Édipo, poderá fazer, finalmente,
uma escolha de um objeto de amor ao qual ligar-se-á genitalmente.

4.11. Genitalidade e caráter

A resolução do complexo de Édipo coloca um fim ao reinado do nar-


cisismo sob a vida afetiva infantil, possibilitando que o sujeito, uma vez libe­
rado do autofascínio, abra-se para o mundo, em busca da aventura de sua
auto-realização. O sujeito torna-se, pela primeira vez, apto a amar alguém au­
tônomo, sem desejo de submeté-lo a situações afetivas que simplesmente tra­
duzem fantasias onipotentes. O sujeito atinge, finalmente, aquilo que se de­
nomina de amor objetai.
Nas etapas do desenvolvimento libidinal anteriores ao complexo de
Édipo, isto é, nas etapas narcísicas, a criança percebe o outro apenas como
extensão de seu Ego. 0 amor, que, em última analise, ela parece dedicar a
este outro, resume-se num amor ao próprio Ego. Ao dominar, porém, seu
narcisismo, a criança adquire a possibilidade de transferir seus sentimentos
afetuosos às outras pessoas, fazendo verdadeiras escolhas de objeto de amor.
Ao tornar-se apta a amar o outro, ela poderá, então, estender seus sentimen­
tos, progressivamente, ao conjunto dos elementos que constituem seu meio
cultural.

41
5
Narcisismo

5.1. Libido do Ego e libido do objeto

Quando, em 1914, Freud introduziu a questão do narcisismo, ele tez


intervir uma distinção na noção de libido, estabelecendo o que se denomi­
nou de ‘libid o do Ego” e “ libido do objeto” . Esta alteração no vocabulá­
rio psicanalítico não acarretou nenhuma transformação essencial no signi­
ficado do termo libido. Este permanece, para Freud, como uma quantidade
determinada de energia de natureza sexual. Na verdade, a libido torna-se
“ libido do Ego” quando investida e localizada no Ego. De igual maneira,
quando a libido, ou parte dela, é transmitida aos objetos (ou seja, neles in­
vestida), ela é denominada “ libido do objeto” . Entretanto, é importante res­
saltar que é a partir do Ego, considerado agora como um reservatório, que a
libido é enviada em direção aos objetos.

Impulsos

Autoconservaçâo Sexuais (libido)

Libido do Ego Libido do o b jeto

Figura 5.1. Classificação dos impulsos.

42
Na concepção de Freud, a libido do Ego e a libido do objeto se encon­
trariam em estreita relação, uma vez que entre elas operaria o que ele deno­
minou de “ Princípio de Conservação e Energia Libidinal": “ Quanto mais
uma é empregada, mais a outra se esvazia" (Freud, 1914). Quando a libido
está investida principalmente no Ego, tem-se o que Freud classificou como
um estado de luto. Assim, um indivíduo em tal estado deixa de se interessar
pelas coisas do mundo a seu redor, na medida em que não dizem respeito ao
seu sofrimento. Por outro lado, quando a libido está investida nos objetos,
caracteriza-se o caso dos estados amorosos: observa-se um desinteresse dos
sujeito por si mesmo e uma atenção concentrada no objeto de amor.

Ego Objeto

"Concentrada está sua alma no estreito "Um a pessoa que ama priva-eo de seu
orifício do m olar." narcisismo. Torna-se humilde."
O poeta com dor da dente, de W. Bresh, (Freud. 1914)
citado por Freud (19141

Figura 5.2. Relação entre libido do Ego e libido do objeto.

A idéia de Freud é a de que o Ego é originalmente investido, preenchi­


do, ocupado pela libido, constituindo-se então uma situação de narcisismo
primário. 0 narcisismo primário é um processo normal, necessário, que ocor­
re num determinado momento do curso regular do desenvolvimento libidi­
nal. Este momento é situado por Freud entre o auto-erotismo e o amor objetai.
Por auto-erotismo entende-se o estado inicial da libido, num momento
em que o Ego, enquanto unidade organizada, ainda não existe. O Ego é uma
categoria psicológica, uma imagem, que tem que ser desenvolvida a fim de
preencher suas funções, que são principalmente as de síntese, contato e de­
fesa. As primeiras realizações do indivíduo são indiferenciadas e auto-eróti-
cas. Somente quando o Ego se desenvolve, o indivíduo se toma narcisista.
Esta primeira manifestação do narcisismo - denominada de narcisismo pri­
mário — é abandonada quando a criança, na impossibilidade de manter-se
como seu próprio objeto de amor, volta-se, finalmente, para um objeto exte­
rior, desenvolvendo o que se chama de “ amor objetai".

43
Compreende-se. neste sentido, que o narcisismo prim áno esteja em
oposição ao amor objetai, pois somente quando o narcisismo prim áno term i­
na o sujeito sc encontra em posição de fazer escolhas objetais. O ra, para que
tais escolhas sejam feitas, é preciso que o indivíduo tenha percorrido os d ife­
rentes estágios pré-genitais do desenvolvimento da lib id o , incluindo, natural*
mente, a elaboração do complexo de Êdipo. Desta maneira, a superação do
narcisismo primário coincide com a realização do desenvolvimento psicos*
sexual.
Entretanto, mesmo após uma escolha objetai ter sido feita, o in d iví­
duo pode, acidentalmcntc, retom ar a um estado narcisista. Esta volta aci­
dental ao narcisismo original, num m om ento da vida cm que sc suporia estar
ele definitivamente abandonado, foi denominado narcisismo secundário, su­
blinhando-se seu aspecto clínico patológico.
O estudo do narcisismo secundário e suas produções patológicas corre*
latas levou Freud a examinar, de maneira mais precisa, o mecanismo da esco­
lha objetai. Ele distingue, então, dois tipos de escolha - a anaclítica e a nar*
cisista - levando-nos a uma compreensão mais profunda da estrutura da
personalidade. Sabe-se que o indivíduo, ao atingir o nível genital da organi­
zação da libido e após liquidar seu complexo de Êdipo, escolhe seus prim ei­
ros objetos sexuais tendo como parâmetro pessoas que, na infância, se ocupa­
ram, protegeram ou cuidaram dele. Freud caracteriza essa escolha de objeto de
amor como sendo de tipo anaclítico.^ Mas, ao invés de fazer uma escolha
de objeto calcado sobre o modelo de pessoas que o protegeram em seus m o ­
mentos de desamparo in fan til, o indivíduo pode fazer uma escolha diferente
de objeto de amor, denominada de narcisista. Neste ú ltim o tip o , o sujeito faz
sua escolha amorosa tomando como modelo seu próprio Ego.
Para Freud, o amor objetai de tipo narcisista é mais característico do
sexo feminino. O desenvolvimento das características próprias deste sexo
(seios, curvas etc.), em larência ate' a puberdade, parece, neste m om ento,
incrementar o narcisismo originário. O narcisismo, manifestando-se pode­
rosamente, inflexiona a escolha objetai em direção ao tipo narcisista. Mas,
de fato, um ou outro tipo de escolha pode ser efetuada por indivíduos de
ambos os sexos.
A questão central envolvida no mecanismo de escolha objetai é que,
em função de se optar por um ou outro tipo (anaclítico e narcisista), dife­
rentes personalidades podem se definir. Decorrem d a í duas formas de amar,

* Anaclítico - que se apóia sobre. Escolha de objeto de tipo anaclítico - que se


apoia sobre as figuras dos pais.

44
bastante distintas. No amor em conformidade com o tipo narcisista, o indi­
víd uo ama alguém que apresenta características bastante próximas às que
ele próprio possui ou possuiu, alguém cujos atributos ele gostaria de ter ou,
ainda, alguém que foi. uma vez. parte dele mesmo. Já no amor em confor­
midade com o tipo anaclítico. o indivíduo busca, como objeto de am or, a
mulher que um dia o alimentou ou o homem que uma vez o protegeu. Em
resumo, o tipo narcisista procura no outro sua própria imagem, ao passo que
o tipo anaclítico procura um parceiro de tipo narcisista que o faz gozar de
um narcisismo a que ele mesmo já renunciou.
A tese do narcisismo fornece, antes de tudo, uma solução psicanalí-
tica a algumas questões proposta por Jung, tais como a relativa ao tipo in tro ­
ve rtid o * e aos arquétipos do feminino e do masculino (anima e a n im u s )*,
sem que haja necessidade de abandonar a referência central à sexualidade.
Mas o conceito de narcisismo introduzido por Freud tem uma conseqüência
ainda mais profunda; uma série de conceitos, tais como Ego, defesa do Ego,
idea) do Ego, “ agente crítico observador" etc., serão colocados em gravita-
ção em to m o da noção de narcisismo. Esta aglutinação de noções e concei­
tos deslocou o ed ifício da Psicanálise de tal maneira, que é possível antever
nela a grande reforma conceptual que iria ser promovida a partir de 1920,
quando fo i elaborada a nova teoria dos impulsos (de Vida e de M orte) e a
postulação de uma nova estrutura da personalidade (Id , Ego e Superego).
D entro desta perspectiva, a noção de ideal do Ego é de grande im por­
tância para se compreender a nova descrição da estruturada personalidade.
Ora, nós já sabemos que os impulsos sexuais estão, quase sempre, sujeitos
a alguma espécie de repressão. Esta repressão é fruto do conflito que opõe
os imperativos dos impulsos sexuais às exigências éticas do Ego. Podemos
dizer, então, que a repressão é maior naquele indivíduo que fixou um ideal
em si mesmo, que ele usa para m edir, avaliar e apreciar seu próprio Ego. Este
Ideal do Ego, por ser dotado de todas as qualidades, constitui o fator condi-
cionante da repressão.
Freud dirá que aquilo que o sujeito projeta diante de si como sendo
seu ideal é, na verdade, o substituto do narcisismo perdido da infância, onde
o sujeito era seu próprio ideal. O narcisismo residual do indivíduo, ao deixar
a infância, desloca-se para esse ideal do Ego que se acha, assim, possuído de
toda a perfeição possível. Freud postula, então, a existência de uma função
psíquica especial, responsável por assegurar a satisfação narcisista do Ideal

Ver parte III deste Livro.

45
do Ego. Esta função consiste na observação do Ego real, m ed in d o o e com­
parando-o com o Ideal do Ego. Desta forma, é possível dizer que a satisfa­
ção narcisista é garantida através de uma função observa d ora crítica, em
relação ao Ego real. Esta função toma-se um agente de censura do Ego. na
medida em que o compara ao Ego ideal. O Ideal do Ego e a função auto-
observa dora a ele relacionada constituirão a base daquilo que será descri­
to como Superego.

46
6
Revolução na revolução

6.1. Uma nova estrutura da Personalidade: a 2? tópica

Vim os que o enriquecimento da teoria psicanalítica a partir da intro­


dução do conceito de narcisismo provocou, desde 1914, um considerável re-
manejamento dos conceitos e termos até então empregados. Na sequência
deste remanejamento, Freud elabora, em 1923, uma nova concepção da es­
trutura da personalidade, a fim de melhor apreender fenômenos que, até es­
ta data, escapavam do enfoque restrito da concepção anterior, baseada nas
instâncias de inconsciente, pré-consciente e consciente. Masé necessário fri­
sar que, ao invés de abandonar a primeira concepção da personalidade, ele
irá integrá-la na nova concepção, denominada 2* tópica ou concepção estru­
tural da personalidade.
A 2? tópica divide personalidade em trés regiões que. apesar de não se
agruparem em pares harmônicos, entre têm relações mútuas: o íd ,o Ego e o
Superego. Falamos, em seguida, de cada uma delas:
O I d - em alemão “es” , é a forma latina do pronome neutro “isto” .
A expressão já fora empregada antes pelo filósofo alemão F. Nietzsche. Era
também o títu lo de um livro de inspiração psicanalítica do médico G. Grod-
deck, o Livro do I d Este pronome impessoal parece a Freud especialmente
bem talhado para expressar a característica dessa região da mente - é alheia
ao Ego.
O Id se constitui, efetivamente, como a parte obscura, “a parte inaces­
sível de nossa personalidade” . Ele é descrito como estando aberto, no seu
extrem o, a influências somáticas e encerrando, em seu interior, as expressões
psíquicas dessas influências somáticas, isto é, as expressões psíquicas das ex­
citações biológicas. ’

47
0 Id , neste sentido, nffo se distingue da descrição de inconsciente feita
por Freud desde 1900, a nío ser por este seu aspecto radical, que o vincula
à essência biológica do homem. É esta abertuda do Id em direção ao biológi*
co que fará dele a expressão dos impulsos de morte e de vida que Freud verá
presentes em todo organismo vivo. Concebc-sc, o Id assim, repleto de ener­
gias que lhe chegam dos impulsos e lutando, cxclusivamente, por conseguir
satisfazê-los. Orientando-se unicamente pelo princípio de prazer, o Id não co­
nhece nenhum julgamento de valor, ignorando o bem, o mal e a moralidade.

Podemos descrever as características do Id como sendo as seguintes:

- As leis lógicas do pensamento não se aplicam a ele. Assim, por


exemplo, no que se refere à lei da contradição, impulsos contrários (ódioe
amor) coexistem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um
diminua o outro.

- No Id não há nada que se possa comparar á negação. Ele não é


autocontrolado como o é o inconsciente postulado por Gustav Jung. O
Id de Freud tende, inapelavelmente, a aprimorar suas satisfações.
- O conteúdo do id é de impulsos apenas, em busca de descarga afetiva.
- Nenhuma alteração em seus registros dos processos mentais é pro­
duzida pela passagem do tempo. “ Impulsos plenos de desejos, que jamais
passaram além do Id e, também, impressões, que foram mergulhadas no
Id pelos recalcamentos, não virtuaimente imortais, depois de se passarem
décadas, despertam como se tivessem ocorrido há pouco 1’ (Freud, 1932).
Desta maneira, os elementos recalcados não se alteram com o passar do tempo.
- O fator econômico, que está intimamente vinculado ao princípio
de prazer, domina todos os processos do Id. Isto significa que os impulsos
em busca de satisfação estão submetidos a um regime de energia móvel. Este
regime permite que o acento energético possa passar, constante e livremente,
de uma representação a outra, caracterizando o mecanismo de deslocamen­
to. Impulsos contrários podem convergir, formando conciliações momentâ­
neas, com vistas à descarga afetiva. Tal situação, denominada condensação,
só se torna possível neste regime econômico caracterizado pela mobilidade
energética. Em suma, “ para adotar um modo popular de fa la r,. .. diriamos
que o Id significa as paixões indomadas” (Freud, 1932).
O Ego - No pensamento freudiano, o Ego não está presente no início
da vida do indivíduo, devendo ser desenvolvido. Na ótica genética, uma par­
te do Id é adequadamente modificada pela proximidade e contato com o
mundo externo, sendo este o fator decisivo na formação do Ego. Neste sen-

48
tid o, pode-se dizer que o Ego c aquela parte do Id que, modificada pela pro­
xim idade c influência do mundo que circunda o sujeito, está apta tanto a re­
ceber estímulos como a funcionar como escudo protetor contra tudo aqui­
lo que ameaça o aparelho mental.
O Ego, enquanto sistema, encontra-se voltado princípalmente para o
meio externo, sendo o instrumento perceptivo básico daquilo que surge de
fora. Constituindo-se como o órgão sensorial de toda a personalidade, o
Ego é, entretanto, receptivo também às excitações provenientes do interior
do sujeito. É, portanto, durante seu funcionamento que suige o fenômeno
da consciência. Este aspecto do Ego coincide com o pólo perceptivo (P) do
prim eiro esquema do aparelho psíquico (ver fig. 2 3 ) , também denominado
por Freud, num determinado m om ento, de percepção-consciência (Pcpt-Cs),
cuja função maior era a de receber tanto os estímulos externos quanto os
internos.
Em decorrência de sua posição, o Ego tem a incumbência de observar
o m undo externo, devendo estabelecer um quadro do mesmo nos traços da
memória. Para tai, é preciso que ele separe aquilo que é oriundo do mundo
externo, daquilo que provém de fontes internas de excitação (separação
das realidades interna e externa). Adicionalmente, cabe também ao Ego
controlar o acesso dos impulsos provenientes do Id à motilidade. Neste
aspecto, há coincidência do pólo m otor (M ) do primeiro esquema da perso­
nalidade com esta instância psicológica (ver fig. 2.3).
O controle do acesso dos impulsos à motilidade é efetuado, principal­
m ente, pela atividade do pensamento. Este se interpõe, no Ego, entre o im ­
pulso e a ação. Desta form a, deve-se observar que o Ego sofre, cm seu desen­
volvim ento, uma evolução que vai da mera percepção dos impulsos, ao exer­
cício gradativo de controle sobre os mesmos. Em resumo, poder-se-ia dizer
que o Ego destrona o princípio de prazer (que domina sem qualquer restri­
ção o curso dos eventos do Id ), cumprindo sua atribuição ao descobrir as
circunstâncias em que tais intenções possam ser realizadas com um m ínim o
de conflito.
Entretanto, para exercer esta função básica, o Ego necessita de uma
certa quantidade de energia, ou libido, que será por ele retirada do Id. Mas
para que esta retirada de energia seja possível, é preciso que o Ego recorra
a um artifício ou subterfúgio. Como já se sabe, todo investimento libidinal
de objeto, embora oriundo do Id , passa necessariamente pelo Ego. É este
que decide, em últim a instância, a respeito das condições adequadas para
sua satisfação. A artimanha do Ego para prover-se da energia consiste em
identificar-se com o objeto de desejo libidinal, ou seja, em colocar-se em seu
lugar, desviando, desta maneira, para si próprio, a libido do Id. Na verdade,

49
o que particularmente caracteriza o Ego é uma tendência à síntese de seu
conteúdo, à combinação e à unificação em seus processos mentais, atri­
butos que não se encontram, de forma alguma, presentes no Id .
Embora muitas características, até agora atribuídas ao Ego, coinci­
dam com aquelas que pertencem ao consciente, devc-sc deixar claro que
muitas de suas parles são inconscientes. Tal é o caso dos mecanismos de
defesa, instrumentos do Ego para lidar com os conflitos emanados dos in ­
teresses e exigências contraditórias entre o Id , o Supcrego c a realidade.

6.1.1. Mecanismos de defesa do Ego

Os mecanismos de defesa do Ego têm por objetivo auxiliá-lo em sua


tarefa de enfrentar os assaltos do Id, as injunções do Superego e as lim ita­
ções impostas pela realidade externa. Estes mecanismos, por pertencerem à
zona inconsciente do Ego, operam de maneira velada, subtraindo-se à per­
cepção vigilante do consciente do sujeito. Em seu livro O Ego e seus Meca­
nismos de Defesa, Ana Freud faz um levantamento dos mecanismos descri­
tos por Freud que atuam como salvaguardas do Ego.
Os principais mecanismos de defesa seriam o recalcamento, a repres­
são, a regressão, a formação reativa, a sublimação, o isolamento, a anulação
retroativa, a denegação, a projeção, a introjeção, a volta contra si e a inver­
são do impulso.
A fim de melhor situá-los, para o leitor, daremos, de cada um deles,
uma definição sucinta:
Recalcamento - consiste numa operação, através da qual o represen­
tante ideativo (ato psíquico, idéia) do impulso psíquico é exclu íd o do cons­
ciente e mantido no inconsciente, por força de um contra-investimento.
Repressão - é um mecanismo consciente que desempenha sua ação
a nível da “ censura” funcional situada entre o consciente e o pré-consciente.
Trata-se de uma inibição do ato psíquico, e sobretudo do afeto, a nível cons­
ciente, não envolvendo sua passagem para o inconsciente. As motivações
morais desempenham um papel importante na repressão.
Regressão - designa um retomo do sujeito a etapas passadas de seu
desenvolvimento libidinal (regressão temporal), ou a um modo de funciona­
mento mental arcaico (regressão tópica).
Formação reativa - diz respeito ao aparecimento, sob forma de traços
de caráter ou alterações permanentes do Ego, de uma oposição manifesta d i­
rigida contra um impulso psíquico. “Na formação reativa, tanto a represen­
tação sexual quanto a revolta que ela provoca são excluídas da consciência
e substituídas por virtudes morais extremadas” (Freud, 1902).

50
Sublimaçâo - trata-se da derivação do impulso sexual em direção a
um modo de satisfação não sexual que passa, então, a visar objetos social­
mente valorizados. A sublimação seria uma atividade do Ego subjacente às
atividades artísticas e à investigação intelectual.
Isolamento - importa num mecanismo que procura isolar um compor­
tamento ou um pensamento, a fim de romper suas conexões com outros
pensamentos, ou com o restante da existência do sujeito.
Anulação retroativa - implica a anulação das consequências psicoló­
gicas de um comportamento, através de um comportamento seguinte e
oposto ao primeiro. Pode-se, amiúde, pensar em colocar em mesma linha
de filiação a anulação retroativa e um outro mecanismo de defesa, que de­
sempenha um papel fundamental na teoria kleniana da personalidade, a
reparação.
Denegação - trata-se de um mecanismo de defesa bem analisado por
Freud em seu artigo “ A (Dcjnegação", de 1925. No dicionário contemporâ­
neo da língua portuguesa, Caudas Aulete, lê-se que o termo denegação
designa uma “declaração pela qual se sustenta que um fato é falso". Verifi­
ca-se, ainda, que o sinônimo de denegar é desmentir. Assinalamos que o
antônimo de denegar é reconhecer, ao passo que o verbo negar tem por
antônimo o verbo afirmar. Estas precisões da língua são importantes para se
esclarecer aquilo que há de específico neste mecanismo de defesa. A denega­
ção estabelece, com efeito, uma relação negativa com a verdade. Sabemos
que a verdade, em Psicanálise, é designada por aquilo que desponta no in­
consciente de cada um. A cura psicanalítica consiste no ato preciso de assu­
mir esta verdade que, quando recalcada, tenta se expressar através dos sinto­
mas. Ora, a denegação encontra-se em obra, sobretudo nos primeiros mo­
mentos da cura quando se delineia um reconhecimento, apenas intelectual,
do desejo recalcado. Deste modo, toma-se consciência de um desejo sem,
entretanto, reconhecê-lo em toda plenitude, persistindo, pois, o essencial
do trabalho do recalcamento. Na expressão, aliás frequente na clínica psica­
nalítica, “Ontem, sonhei com uma margarida; não era minha irmã ", fica
evidente que o fato de desmentir assinala que o sujeito pelo menos pensou
que tal elemento representasse afirmativamente sua irmã.
Projeção — indica a operação, através da qual o sujeito coloca no ex­
terior certas qualidades, desejos ou sentimentos que ele ignora e recusa em si
mesmo.
Introjeção - diz respeito à operação em função da qual o sujeito faz
entrar em seu Ego partes do mundo exterior (objeto, situações ou pessoas),
transformando-as em objeto de suas fantasias inconscientes (Fcrenczi,
1909).

51
Volta contra si - refere-se ao processo onde um objeto do impulso
psíquico é substituído pela própria pessoa. Quando, no impulso sádico, o
objeto é substituído pela própria pessoa (volta contra si), aparece o maso-
quismo.
Inversão do impulso - indica o mecanismo que transforma a ação do
impulso psíquico em seu contrário. Por exem plo, transformação de ativida­
de em passividade.

6.2. Superego, Idea) do Ego e Ego-Idcal

Freud, em um estudo datado de 1921 e referente à psicologia coletiva,


introduziu a noção de Superego. Foi este, finalm ente, o nome dado à “agên­
cia crítica’' de nossa personalidade. O Superego forma-se, durante o declí­
nio do complexo de Édipo, a partir da interiorização das imagens idealiza­
das dos pais. Ora, sabemos que a imitação (Lacan) desempenha um papel de
primeira importância no desenvolvimento da Personalidade e da linguagem.
A criança imita um modelo que é, inicialmente, exterior a ela. Este m odelo,
elaborado a partir da imagem que ela faz dos pais, tom a-se, em seguida, in­
terior, isto é, ele é introjetado no Ego. Esta introjeção acarreta uma crispa-
ção e uma diferenciação permanentes no Ego infantil. A parte diferenciada
do Ego constitui-se no Superego.
Decorre deste processo que a parte referente à imagem idealizada (dos
pais) transmuta-se, no interior do Ego, em imagem idealizada de si mesm o, e
a parte referente á função paterna constitui-se em agente crítico do Ego
dotado, pois, de todas as características de severidade e proibições que a
criança atribuía aos pais.
Conclui-se, assim, que o Superego exerce não somente uma função crí­
tica e normativa, mas, também, revela-se com o base de todo ideal humano.
Desta forma, parece claro que o Superego é uma instância com plexa, forma­
da por um núcleo crítico, em torno do qual gravitam vários segm entos que
lhe pertencem.
Daniel Lagache estabeleceu, a partir da leitura das obras de Freud,
uma distinção existente entre as noções referentes a estes segm entos supere-
góicos.
Em primeiro lugar, temos o Ideal do Ego, que compreende tudo aqui­
lo que o sujeito deve ser para responder às exigências do Superego. Este
Ideai do Ego forma a base de todo ideal elevado (ético, estético e religio­
s o . . .).
Em segundo lugar, temos o Ego-Ideal que corresponde ao que o pró­
prio sujeito espera de si a fim de responder, favoravelmente, às exigências

52
de uma ilusão infantil de onipotência. Este Ego-Ideal é de origem arcaica.
Corresponde a um estágio do desenvolvimento, onde a relação da criança
com os pais, vistos como onipotentes, era de natureza fusional.
Podemos, assim, concluir que o Superego situa-se face ao Ego como
modelo c obstáculo. Modelo, se é o “ Ideal", obstáculo, se é o “proibido” .
Ele é, finalm ente, responsável pela origem da consciência moral, sentimen­
tos de auto-estima e de culpa.

6.3. Relações entre a realidade externa, o Id,


o Superego e o Ego

Como já foi dito, a função básica do Ego é tentar conciliar e sintetizar


as exigências contraditórias, e mesmo incompatíveis, emanadas do Id, do
Superego c da realidade externa. Ao exercer sua função, o Ego é, de um la­
do, observado com severidade pelo Superego, que estabelece padrões defi­
nidos para sua conduta, sem levar em conta as demandas do Id. Por outro
lado, o Id também luta pela satisfação plena de seus impulsos, permanecen­
do rígido e intolerante no desconhecimento das imposições do Superego e

Figura 6.1. Alguns aspectos devem aqui ser ressaltados. Entre eles, destaca-se o fato do
Superego manter relações próximas com o Id, do Id relacionar-se com o mundo exter­
no somente através do Ego, e do Ego constituir-se em um sistema de percepçâo-cons-
ciência.

53
0 tipo narcisista: este terceiro tipo tem características de cunho sobre­
tudo negativo. Não existe tensão entre Ego e Superego e nem predominam
as necessidades eróticas. Este tipo está orientado no sentido da sua auto-
conservação; trata-se de pessoas independentes e que não sc deixam inti­
midar. O Ego. neste caso, dispõe de uma considerável carga de agressivida­
de que se converte em uma disponibilidade para a ação. No plano amoroso,
preferem amar a ser amadas. Impressionam os demais por sua forte perso­
nalidade; são particularmente aptas para servir de apoio ao próxim o, para
assumir o papel de condutores da sociedade, proporcionar novos estímulos
ao desenvolvimento cultural ou revolucionar as condições existentes.
Esses tipos, em estado puro, são raros. Encontramos com maior faci­
lidade os tipos mistos, onde características dos tipos puros se encontram
combinadas. Temos, assim, o erótícoobsessivo, o erótico-narcisista e o nar-
cisista-obsessivo.
No tipo erótico-obsessivo, a importância dos impulsos libidinais é res­
tringida pela preponderância do Superego. A dependência deste tipo volta-
se tanto para as pessoas que desempenham um papel atua) importante em
suas vidas, como para aquelas que exerceram, no passado, tal função (pais,
educadores etc.).
0 tipo erótico-narcisista é o mais comum dos tipos. Ele reúne em si
características contrastantes que se atenuam mutuamente. Por exemplo,
este tipo consegue combinar o interesse por si com o interesse pelos outros.
O tipo narcisista-obsessivo representa a variante mais valiosa do ponto
de vista cultural. Nele, encontram-se combinadas tanto a independência em
relação a fatores do mundo externo (elemento narcisista), como a submis­
são aos imperativos da consciência (elemento obsessivo) e a capacidade para
a ação enérgica. Desta forma, é possível dizer que, neste caso, o Ego se en­
contra fortalecido e, portanto, em condições de enfrentar as exigências do
Superego.
Na verdade, se fosse possível postular a existência de um tipo ideal,
este seria o que chamaríamos de erótico-obsessivo. A combinação harmô­
nica de atributos dos três tipos acima se tomaria, entretanto, não mais um
tipo e sim a norma absoluta. Isto porque o que define um tipo nada mais
é do que a distribuição da Libido favorecendo a economia psíquica de uma
das três instâncias (Id - Ego - Superego), em detrimento das outras. A
distribuição eqüitativa da libido, como no nosso caso ideal, opõe-se, por­
tanto, à própria noção de tipo que, em seu estado puro, notabiliza-se pelo
predomínio do investimento libidinal em uma das instâncias psíquicas aci­
ma mencionadas.
Os tipos podem existir sem que haja, como já foi dito, a presença de
patologia. Aliás, através de seu estudo, não é possível desvendar nenhum

S6
aspecto marcante relativo à gênese nem das neuroses nem das psicoces. Os
tipos puros, onde predomina o investimento libidinal em uma única instân­
cia psíquica, não são, em geral, propensos a conflitos psíquicos condicio-
nantes da neurose ou psicose.
Entretanto, no caso de descncadeamento de perturbações na persona­
lidade, os tipos eróticos evoluiriam para a histeria, enquanto que os tipos
obsessivos voltar-se-iam, predominantemente, para a neurose obsessiva. As
pessoas de tipo narcisista, pela independência que mostram em relação ao
m undo externo, estariam mais propensas à psicose, além do fato de poderem
apresentar alguns fatores essenciais que o condicionam à criminalidade.

57
na ignorância dos limites impostos pela realidade externa. Esta última, por
sua vez, permanece indiferente aos anseios, desejos e restrições que emanam
e são criados pelo próprio sujeito.
Assim, o Ego pressionado pelo Id, confinado pelo Supcrego, repelido
pela realidade, luta para exercer cficientcm ente sua incumbência de conci­
liar as forças que atuam nele e sobre ele. Entretanto, se o Ego fracassa no
exercício desta função, ele irrompe cm ansiedade: ansiedade rcalística refe­
rente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao Supercgo que se
manifesta através de intensos sentimentos de culpa c dc inferioridade (por
comparação ao Ideal do Ego, dotado de todas as perfeições) - c ansiedade
moral referente às forças das paixões do Id. Frcud, no esquema da figura
6.1, procurou ilustrar como se configuram as relações entre as diferentes es*
tmturas de personalidade.
Devido às pressões, de naturezas distintas, que recaem sobre o Ego, o
propósito da abordagem clínica psicanalítica da personalidade é fortalecê-lo,
tomando-o mais independente do Supercgo, ampliando seu campo de per­
cepção e expandindo sua organização, dc maneira a poder apossar-se dc no­
vas partes do Id. Para que se dé este processo, é necessário que tratemos, em­
bora ligeiramente, do que Freud chamou "tipos libidinais” (1 9 3 1 ).

54
7
Tipos libidinais

Os seres humanos se constituem em variedades de quase infinita multi-


formação. Podemos, entretanto, delimitar alguns tipos psicológicos gerais,
fundamentando-nos no estudo da libido. Deve-se, por outro lado, ressaltar
que a descrição de tipos não mantém, para Freud, nenhuma relação com a
psicopatologia, muito embora, em suas expressões extremas, possam apro­
ximar-se dos quadros clínicos, vedando, assim, a brecha entre normal e pa­
tológico. Com tal ressalva feita, é possível descrever trés tipos libidinais
básicos, de acordo com a localização predominante da libido em diferentes
setores da personalidade: o erótico, o obsessivo e o narcisista.
O tipo erótico: segundo Freud, este tipo é constituído por pessoas
cujo interesse principal está concentrado na vida amorosa. Amar, mas par­
ticularmente ser amado é, para um indivíduo deste tipo, aquilo que existe
de mais importante na vida. As pessoas com tal característica são domina­
das pelo temor de perder o amor. Encontram-se, em função deste fator, em
estreita dependência daqueles que podem privá-los dele. Este tipo é muito
comum. Existem variantes que são constituídas por combinações, mais ou
menos consideráveis, de elementos agressivos. Do ponto de vista sócio-cul-
tural, este tipo rep isenta as reivindicações do Id, às quais as outras instân­
cias psíquicas se curvam.
O tipo obsessivo: este tipo caracteriza-se pelo predomínio do Superego
que se separou do Ego. As pessoas deste tipo encontram-se dominadas pela
angústia diante da consciência, ao invés do medo de perder o amor. A de­
pendência que rranifestam não se situa em relação aos outros, como é o caso
do tipo erótico. Trata-se, ante' de tudo, de uma dependência interna, decor­
rente de injunções morais e educativas, das quais não podem se livrar. Social­
mente, são portadores da cultura com orientação predominantemente con­
servadora.

55
8
Pulsão de vida e pulgão de morte

A partir de 1920, Freud começa a efetuar uma verdadeira revolução


no interior daquilo que Marthe Robert denominou de “a revolução psica-
nalítica” . Esta profunda transformação no interior da teoria deu-se pela
introdução das noções de pulsão de vida e pulsão de morte e, em seguida,
pela construção do novo modelo teórico da personalidade constituído pelas
noções de Id, Ego e Superego. Não poderiamos, porta' o, finalizar esta ex­
posição da visão freudiana da personalidade, sem art zer menção à nova
teoria das pulsões.
Deve-se dizer, contudo que “ a teoria freudiana dos impulsos de vida c
morte nunca recebeu adesão completa do conjunto dos membros do movi­
mento psicanalítico" (Jones). Determinou, ao c itrário, discussões que se es­
tenderam até os dias atuais. Seria, em todo caso, extremamente instigante
retraçar os percalços, o impacto e as conseqüé cias dessas idéias no movi­
mento psicanalítico. Uma edição francesa, estabelecida pelo psicanalista
Michel Guibal e pelo historiador J . Nobécourt, e efetuada a partir de docu­
mentos descobertos por dois psicanalistas italianos, mostra, claramente,
como estas idéias a respeito da vida e da morte já circulavam nas especu­
lações teóricas de alguns psicanalistas, antes mesmo que Freud as tivesse,
finalmente, adotado (Guibal e Nobécourt).
A questão básica que fornecerá a Freud a ocasião para deixar-se, en­
fim, seduzir pelas especulações a respeito da existência de impulsos de vida e
de morte é uma questão clínica. Esta questão pode ser assim formulada:
considerando que o princípio de prazer seja o motor básico do funciona­
mento da personalidade humana, como pode o homem, então, repetir situa­
ções, em sonhos ou atos, mesmo que estas lhe sejam extremamente desagra­
dáveis?

58
Freud começa a respondê-la supondo que toda pulsão tende a restabe­
lecer um estado antigo, anterior, que o sujeito foi obrigado, um dia. a aban­
donar. A partir daí, Freud. num grande salto que ele mesmo qualifica como
especulativo, emite, então, a hipótese da existência de uma pulsão de morte
que tende a reconduzir os seres vivos a um estado anterior à vida, ou seja, ao
estado da matéria inorgânica. Freud encontra, então, uma explicação para
estas compulsões cm repetir situações antigas que estariam em contradição
com o princípio de prazer, tais como elas se revelam nos repetidos pesadelos
onde são retratados eventos traumáticos ou, ainda, em situações de vida on­
de o sujeito fracassa, invariavelmente, segundo um mesmo modelo, nos mo­
mentos mesmo em que ele reunira todas as condições para obter algum su­
cesso ou triunfo. Como se vê, Freud liga a pulsão de morte à compulsão de
repetição.
A finalidade última da pulsão de morte é a redução de toda tensão ao
ponto zero, o que só pode ser obtido na recondução do ser vivo a um estado
de inorganicidade. Esta pulsão visa, consequentemente, à destruição da ma­
téria orgânica, da vida e de tudo aquilo que representa união, conjunção e
unidade- O impulso de morte encontra-se, inicialmente9 investido no interior
do organismo (autodestruição, masoquismo etc.) e ê, em seguida, flexiona­
do, em grande parte para o exterior (destruição, agressividade, sadismo etc.).
A i aportância da formulação do conceito “ desta pulsão que opera em silên-
o " refere-se à in;rodução, na teoria psicanalítica, de um princípio distinti­
vo capaz de explicar os fatos da repetição de eventos dolorosos, do ódio, da
agressividade, do fracasso e da culpa.
Como já vimos, a teoria das pulsões precedente opunha os impulsos
de autocT âServação, também denominados impulsos do Ego, aos
im pul^» sexuais ou libidinais. Os primeiros eram vistos como destinados a
preservar a vida do indivíduo, na medida em que visavam, justamente, aos
interesses do Ego. A fome foi mostrada por Freud como protótipo dos im­
pulsos de autoconservação. Os impulsos sexuais, submetidos em grande es­
cala ao princípio de prazer, constituíam, então, o segundo grupo de pulsões.
Eles eram vistos, no quadro desta primeira teoria, como destinados, em últi­
ma instância, à procriação, à preservação da vida da espécie. Com a reformu­
lação da teoria das pulsões, Freud irá aglutinar ambos os grupos de impulsos
sob a grande categoria de Pulsão de Vida ou Eros. Estas pulsões de vida são
vistas não só como 'tendendo a preservar as unidades vitais existentes, mas,
também, destinadas a constituir unidades cada vez mais englobantes (união
dos indivíduos de sexo oposto, dando origem a um novo ser, organização
biológica harmônica etc.). Decorre daí que o trabalho dos impulsos vitais
não se restringe, exclusivamente, à preservação da vida, isto é, à manuten-

59
ção de um certo limite de organização vital. Destina-se, inclusive, a construir
a vida, a qual se define tanto pela organização e diferenciação das formas de
atividade, como pelo aumento da diferença de nível energético entre o or­
ganismo e o meio.
A antiga oposição entre impulsos de autoconservação c im pulsos se­
xuais encontra-se substituída pela oposição entre impulsos de vida e im­
pulsos de morte. O barulho da construção da vida, da diferença de tensão,
opõe-se ao trabalho silencioso do impulso de m orte. Mas apesar da oposi­
ção existente, a pulsão de morte pode também incorporar-se à pulsão de
vida. Esta dialética da vida e da morte abre um vasto ten itórío de pesquisa
no campo do estudo da personalidade humana.

8.1. Pulsão de morte e estrutura da personalidade

Freud não estabeleceu nenhum estudo sistem ático assimilando a se­


gunda tópica - que apresenta a estrutura da personalidade sob um novo ân­
gulo, estratificada em instâncias denominadas Id, Ego, Superego - , e a se­
gunda teoria das pulsóes - que opõe os impulsos de m o rte,d estin a d o s,ex ­
clusivamente, a um retorno a um estado anterior, nostálgico, aos impul­
sos de vida, que constituem o princípio de união. Preocupado, entretanto,
com a questão do “sentimento de culpa do inocente” que é apresentado
de maneira explícita no Livro de Jó, Freud irá articular a questão da pul­
são de morte com o Superego e abrir, deste m odo, um novo flanco contra
o qual o Ego deverá, ainda, debater-se.
Se o inocente se cré culpado é porque, efetivamente ele é um crimi­
noso; mas seu crime reside na intenção, isto é, nas “fantasias e desejos
culpáveis da infância" (Mannoni). A culpa advem das satisfações exigi­
das pela pulsão de morte. Estas satisfações aparecem sob a forma de sin­
tomas de culpa que corroem o indivíduo. Aquelas personalidades que fra­
cassam ao triunfar podem ser compreendidas, então, a partir desta assi­
milação da pulsão de morte ao Superego.

60
9
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61
PARTEn

T E O R IA D A PERSON ALIDADE EM
W1LHELM REICH
Waldir Lourenço Gonçalves
10
Reich: um homem, uma obra

A vida de Wilhelm Reich foi marcada por uma entrega total às últimas
consequências de suas idéias, sempre buscando compatibilizar a sua prática
psicanalítica e social com suas propostas teóricas revolucionárias. 0 resulta­
do, em um contexto marcado inicialmente pela oposição entre socialismo
» nazi-facismo e, mais adiante, entre capitalismo e comunismo, não poderia
ser outro: intensas rivalidades, contestações c perseguições, cujo corolário
* assinalado pela sua morte na prisão.
O destino de suas obras não foi menos tumultuado. Hoje, há quase
trinta anos de sua morte, mantêm-se as controvérsias sobre suas obras, mui­
tas perdidas, outras jamais publicadas, outras alteradas profundamente por
evisões ou omissões, que valem acusações de censura ideológica contra
Vlery Higgihs, administradora da Fundação herdeira dos direitos sobre
«us livros.
Resumiremos, nesta introdução, alguns aspectos marcantes que darão
ima primeira visão do que foi a vida e a obra deste autor.
Reich nasceu a 24 de março de 1897, na Galícia ucraniana, parte do
.mpério Austro-Húngaro. Filho de pais camponeses, divide seu tempo entre
o trabalho no campo e os estudos. A vida familiar é atribulada, pois sua mãe
não se realiza no casamento e acaba dando um fim trágico a sua vida. 0
pai, ressentido c melancólico, morre quando Reich tinha 17 anos. Tendo vi-
venciado intensamente tal drama familiar, em 1915 é recrutado para o
exército, onde chega a tenente, mas perde todos os bens com o desfecho
da guerra.
Arruinado economicamente, ingressa na Faculdade de Medicina da
Universidade de Viena (1918) onde se destaca brilhantemente nos estudos.

65
Participando ativamente dos Seminários de Sexologia prom ovidos pelos alu*
nos, acaba por ser eleito para a diretoria desses sem inários. É quando vem a
conhecer Freud, Stekel e Adler (1919).
A partir daí podemos ressaltar tris m om entos em sua vida c obra:
1919 - 1926 - Momento de dedicação à Psicanálise, com progressiva
atenção à miséria sexual do operariado e sua relação com as neuroses.
1927 - 1935 - Momento de crítica à psicanálise ortodoxa: proposta
de uma prática psicanalítica revolucionária, pela aproxim ação com o mar
xismo.
1936 - 1957 - Abandono gradua] da práxis político-psicanalítica.
Incursão pela fisiologia e biologia até chegar a uma cosm ogonia, aparente*
mente metafísica e pseudocientífica: m om ento de delírio.
No primeiro momento que definim os, Reich ingressa na Sociedade
Vienense de Psicanálise e tomasse discípulo de Freud (1 9 2 0 ). Especializa*
se em neuro*psiquiatria, forma-se doutor em Medicina (1 9 2 2 ) e passa a tra*
balhar como psicanalista, em seu consultório.
Freud, que já havia ressaltado, em 1918, a necessidade de clínicas po­
pulares gratuitas, como a dirigida por Karl Abraham, em Berlim, funda, em
1922, a Policlinica Psicanalítica, em Viena, apesar das contestações da classe
médica, tomando Reich como seu primeiro assistente. Este destaca-se nes­
te trabalho, mostrando crescente interesse pela miséria sexual du operário,
frente à proibição do aborto e controle de anticoncepcionais. Percebe a
relação entre a ansiedade ligada ao risco da procriação e a etiologia das neu­
roses. Esta experiência fundamentará toda sua obra psicanalítica e socio­
lógica. Nessa linha, publica seus primeiros trabalhos e realiza conferências
em congressos psicanalíticos, já encontrando resistência dos psicanalistas
ortodoxos a suas idéias sobre p o tê n c ia orgástica” e “couraça caractero-
lógica". Mesmo assim, estes conceitos formarão a base de publicações
posteriores como a Análise do Caráter e A Função d o Orgasmo.
Apesar das oposições a suas teorias, Reich ainda é bem conceituado
no círculo psicanalítico, assumindo, entre 1924 e 1930, a direção dos Semi­
nários de Psicoterapia, e sendo nomeado subdiretor da Policlínica Psicana­
lítica, entre 1928 e 1930.
Participa cada vez mais do m ovim ento socialista, em favor do proleta­
riado, opondo-se ao nazi-fascismo nascente. Em 1927, em Schattendorf,
pequena cidade austríaca, ocorrem distúrbios numa reunião do partido
socialista, onde dois operários foram mortos. Em 14 de setem bro deste ano,
os assassinos foram julgados e absolvidos, causando revolta nos operários.
Reich participa de uma manifestação de repúdio, dois dias depois, onde
houve um choque com a polícia, sendo massacradas dezenas de operários.

66
Nessa mesma noite, inscrevesse no Partido Comunista austríaco e inten­
sifica seus estudos sobre Marx tentando aproximar Materialismo Dialético
e Psicanálise.
Por essa época, inicia-se a segunda fase que descrevemos. Em 1928,
funda a Associação Socialista para a Investigação e Ajuda Sexual. Abre,
em janeiro de 1929, seis centros de Higiene Sexual, compostos por quatro
psicanalistas, trés obstetras c um advogado, nos subúrbios de Viena, man­
tendo, com o m eta, a legalização do H orto. Estes centros expandem-se com
numeroso afluxo de operários. Rcich passa, cada vez mais, para a psicopro-
filaxia das neuroses, buscando uma revolução sexual que elimine o grande
fator, a seu ver, gerador da psicopatologia: a repressão imposta pela mo­
ral conservadora.
Em 1929, vai conhecer a União Soviética. Em 1930, estabelece-se
em Berlim, vinculando-se ao Partido Comunista Alemão.
Conferências, palestras, novos textos publicados e, em 1931, funda a
Associação para uma Política Sexual Proletária, a SEXPOL. O sucesso do
empreendimento é espantoso, arregimentando 20 mil membros, em um ano,
por toda a Alemanha.
A am plitude do m ovim ento assusta os dirigentes do P.C., que come­
çam a exercer pressão contra suas atividades. Reich funda, para neutralizar
esta oposição, uma editora própria: a Verlag für Sexualpolitik, ou Sexpol-
Verlag (E dições de Política Sexual) (1 9 3 2 ). No entanto, a difusão de seus
textos com eça a ser proibida pelo Partido. Em 1933 é expulso do P.C. e
perseguido pelos nazistas, que assumem o poder. Inicia um longo exílio
pela Europa, sendo rejeitado pelos psicanalistas vienenses por descaracte­
rizar a Psicanálise, utilizando-a para fins comunistas. Em 1934, é expul­
so da Associação Psicanalítica Internacional. É obrigado a abandonar os
diversos países em que se exila, acusado, pela direita, de revolucionário,
pela esquerda, de agitador. Continua publicando textos, alguns com pseu­
dônimos de Ernst Parrel e Karl Teschitz. Gradativamente, vai abandonan­
do as questões ligadas ao Materialismo Dialético e se aproximando da Fi-
siologia e da B iofísica, a partir de 1935, iniciando sua terceira fase.
Envereda pela pesquisa sobre os bions e o orgone cósmico. Em 1939,
vai para os Estados Unidos e aprofunda suas pesquisas, funda a editora
Orgone Institute Press e m onta um laboratório em Nova York, lança o
International Journal f o r S ex-E conom y and Orgone Research (1942). Co­
meça a ser perseguido pelo F.B.I., que entende suas pesquisas sobre a ener­
gia orgônica com o espionagem nazista ou comunista.
Cria, em 1 9 4 4 , aparelhos acumuladores de orgone, que seriam usa­
dos na prevenção e cura de doenças físicas e mentais.

67
0 Orgone Institute transformou-se na Wilhetm Reich Foundation,
em 1949. *
Em 1954, com o advento da caça aos comunistas, por MacCarlhy,
Reich é condenado, por ‘'venda ilegal de objetos terapêuticos*', pela Federal
Food and Droog Administration. É preso cm 1957, ano em que morre na
prisão.
Esta última fase foi marcada pelo abandono total da Psicanálise e do
Marxismo, fundando toda a compreensão dos fenômenos psicológicos e
sociológicos sobre a influência de forças poderosas, resultantes de diferen­
tes concentrações do orgone cósmico, ou de uma energia negativa denomi­
nada DOR-Deadly Orgone (orgone mortal). Este seu trabalho deixa trans­
parecer os processos paranóicos a que chegou, não sem motivos.
Durante toda sua vida, manteve freqüentes publicações e reedições
revistas de suas obras. Muitas foram destruídas pelos nazistas, outras pelos
americanos.
0 Wilhelm Reich Foundation transformou-se no W .R. Infant Trust
Found, herdeiro e responsável pelas publicações.
Porém, muitas obras mantêm-se não editadas. Muitas outras foram
reeditadas em versões “ corrigidas” , amenizadas em seu conteúdo político,
o que deu ensejo a inúmeras “edições-piratas” , na Europa, dos textos
originais.
As obras de Reich seguem seu trajeto biográfico de forma extrema­
mente coerente: inicialmente, ele se aprofunda na perspectiva psicanalíti-
ca, com importantes contribuições, até que passa a compreender a neurose
como resultante da energia sexual (libido) submetida à moral social repres-
sora, o que já lhe valem as primeiras objeções do círculo psicanalítico. Esta
visão das neuroses leva-o à aproximação com o Marxismo, na análise dos
processos sociológicos da repressão, e com a Biologia, no estudo da energia
sexual. Esta percepção teórica integra-se com sua prática política junto ao
P.C. e sua atuação a favor do aborto e da difusão do uso de anticoncepcio­
nais, buscando uma política sexual libertadora, dirigida ao proletariado e
àjuventude.
Por fim, após anos de resistência enérgica às pressões e persegui­
ções, sucumbe ao processo paranóico, coincidente com seu estabelecimento
nos Estados Unidos. Sempre coerente com suas idéias - agora sobre a
biofísica orgõnica - , permanece ativo, criando e difundindo os acumulado­
res orgônicos e publicando os resultados de suas pesquisas, o que lhe vale,
desta vez, prisão e morte.
Esta sequência pode ser acompanhada pela série de textos que relacio­
namos a seguir, em ordem de publicação:

68
1920 - “ Der Koitus und dic Gcschlechtcr” (O coito c os sexos), em Zeit­
schrift fü r Scxualwisscnschaft
1923 - “ Z u r Tricb -E n crg ctik” (Sobre a energia do instinto), em Zeitschrift
fü r Scxualwissenschaft
1924 - “ Der T ic ah Onanic aquivalcnt” (O tique como equivalente do onam *
m o), cr Z eitsch rift fu r Sexualwissenschaft.
“ Ubcr G c n ita lità t” (Sobre a genitalidade), cm Internationaler Zeitschrift fü r
Psychoanalyse.
1925 - D e r tricb h arftc Charakter Eine Studie 2ur Psychopathologie des íchs
(O caráctcr puhional Um estudo sobre a psicopatologia do EuX Viena. Intcrnationaler
psychoanalytischcr Vcrlag
1926 - “Ubcr dic Q ucllcn der ncurotischcn Angst" (Sobre a ongem da neurose
da angústia), cm In tc rn atío n ale r Zeitschrifte fü r Psychoanalyse
1927 - “ Dic Rollc des G cn italitãt in der Neurose nthcrapie” (A função da ge­
nitalidade na terapia das neuroses), cm AH A r2 tl fü r Psychoterapie
“ Strafbcdürfnis und ncurothchcr Prozcs", em ínternationaler Zeitschrift fü r
Psychoanalyse
“ E ltcm ais E rzichcr” , cm Zeitschrift fü r Psychoanalyse Pedagogik
Dic F u n k tio n des Orgasmus - Psychopatologie des Geschlechtelebens (A fun­
ção do orgasmo - Uma psicopatologia da sexualidade). Viena. IntemationaJer Psy-
choanalytischer Vcrlag.
1928 - “ Ucbcr Charaktcranalysc (A propósito da análise do caráter), em In-
ternationaler Z eitsch rift f ü r Psychoanalyse
1 92 9 - “ D er genitalc und der neurotischc Charakter” ( 0 caráter genital e o ca­
ráter neurótico), cm Ín te rn atio n ale r Zeitschrift fü r Psychoanalyse
Sexualrregung und Sexualbefriedigung (Tensão e satisfação sexuais), Viena.
Münster-Vcrlag.
D ialcktischer M aterialism us und Psychoanalyse (Materialismo dialético e psica­
nálise), Viena, Münster-Vcrlag. Publicado simultaneamente em Under dem Bannerdes
Marxismus (Sob a bandeira do Marxism o), Moscou.
1 93 0 - Geschlechtesreife, Enthaltsam keit, Ehemorol - Eine Kritik der bürger-
licher Sexualreform (M aturidade sexual, continência, moral matrimonial - Uma crítica
da reform a sexual burguesa). V iena, Münster-Vcrlag.
1 9 3 2 - “ D er masochistische Charakter” (O caráter masoquista), em Internado-
nater Zeitsch rift f ü r Psychoanalyse.
D er sexuelle K a m p f der Jugend (O combate sexual da juventude), Berlim.
Viena. Lcipzig, Vcrlag fü r Sexualpolitik.
D er Einbruch der Sexualm oral - Z u r Geschichte der sexueüen Oekonomie. (A
irrupção da m oral sexual - Sobre a história da economia sexual). Berlim. Viena.
Leipzig, Vcrlag fü r S exualpolitik.
1 9 3 3 - Charakteranalyse - Technik und Grundlagen - Für srudierend und
praktizierende A n a ly tik e r (Análise do Caráter - A sua técnica e bases - Para analistas
futuros e em e xe rc íc io ), Copenhague, Scxpol-Verlag.
1 93 4 - Massenpsychologie des Fascismus - Z u r Sexualoekonomie der poh-
hscher - R eakrio n und zu r proletarischen Sexualpolitik (A psicologia de massas do fas­
cismo - Sobre a econom ia sexual da reação política e sobre a política sexual proletá­
ria), Copenhague. Scxpol-Verlag.
“ Was ist Klassenbewusstein? - Ein Beitrag zur Diskussion über die Neufomiie-
ning der Arbciterbcw cgung” (O que c a consciência de classe? - Uma contribuição

69
para o renascimento do movimento operário), em Politirchpsychologische Schriftenrei-
he. número 2, Copenhaguc. Praga. Zunque, Sexpol-Verlag.
"Der Urgcgcnsatz des vegetativen Lcbcns" (A arquiantinom ia da vida vegetati-
va), em Zcitschrift fü r pohtische, Psychologic und Scxualockonom ic, números 1 ,2 , 3 e
4.
1935 - "Psychistu Kontakt und Vcgctalivc Strõm ung" (Contacto psíquico c
corrente vegetatíva). cm Abhandlungen zur pcrsonellen Sexuabckonom ic, número 3.
Copcnhaguc, Scxpol-Verlag.
"Rcligión, Kirchc Religionstrcit in Dcutschland" (Religião. Igreja c qucrcla reli­
giosa na Alemanha), cm Politisch-pxychotogischc Schcriftcnrcihc. núm ero 3. Copenha-
guc. Scxpol-Verlag (Publicado sob o pseudônimo de Karl Tcschitz).
1936 - *'Dic Sexualitat in Kulturkam pf-zur sozialistischcn Um struktuqcrung
des Mcnschcn" (A sexualidade no combate cultural - A propósito da reestrutura socia­
lista do homem).
1937 - "Expcrimentelle Ergcbniss über dic clcktrischc b u n ktio n von Sexualitat
und A n p t” (Resultados experimentais a propósito da função elétrica da sexualidade e
da angústia), cm Abhandlungen zur personellen Sexualockonomic, número 4 , Cope-
nhaguc. Scxpol-Verlag.
“Orgasmusreflcx, Muskclhaltung und Kõrpcrausdruck - Z u r T e c h n ik d c r charak-
teranalytischcn Vcgctothcrapie" (R eflexo orgástico, tônus muscular c expressão cor­
poral - Sobre a técnica da vegetoterapia caratcroanajítica)
"D er Diakktischc Matenalismus in der Lcbcnsforschung*Bencht über dic Bion*
Versuchc" (O materialismo dialético na investigação sobre a vida - In fo rm e acerca
da experiência sobre os bions). em Abhandlungen zur personellen Sexualoekonomie,
número S.Copenhague, Sexpol-Verlag.
1938 - “ Die Bione" (Os bions), em Klinische und experim ente He Berichte,
número 6,Copenhague, Sexpol-Verlag.
1939 - “ Bion Experiments on the Câncer Problems. D rei Versuchc am statis-
schen Elcktroskop" (Experiências sobre os bions a propósito do problema do câncer.
Três ensaios com o eletroscópio estático), em Klinische und experim entelle Berichte,
número 7, Copenhague, Sexpol-Verlag.
1942 - The Function o f the Orgasm: Sex-Economic Problems o f Biological
Energy. V o l 1: The Discovery o f the Orgone (A função do orgasmo: Problemas eco-
nômicos-sexuais da energia biológica. V o l. 1: A descoberta do O rgone), New Y o rk .O r*
gone Institute Press. Nota: não confundir com o texto de 1927.
1944 - “The "living produebon power, working pow er’ o f Karl M a n ” (A “ força
da produção viva, força de trabalho" de Karl M a n ), em In tern atio n al Journal o f Sex-
Economy and Orgone Research, número 3, New Y o rk , Orgone Institute Press.
“Orgonotrc Pulsation" (Pulsação orgonótica), em Intern atio n al Journal o f Sex-
Economy and Orgone Research. New Y o rk, Orgone Institute Press.
1945 - “ The Emotional Plague" (A peste emocional) em In tern atio n al Journal
o f Sex-Economy and Orgone Research, New Y o rk . Orgone Institute Press.
The Sexual Revolution-Toward a selfgovem ing character strueture (A revolu­
ção Sexual - Para uma autonomia caracterial do hom em ), New Y o rk , Orgone Insti­
tute Press.
‘Analysis o f Character** (Análise do caráter), versão americana, revista e corri­
gida pelo autor, de Análise Caracterial. . . (publicado em 1933) e de Contacto psíqui­
co e corrente vegetatíva (publicado em 1935), aumentado com O sofrim ento emocio­
nal (publicado oeste mesmo ano), New Y o rk , Orgone Institute Press.

70
1946 - The M an Prychology o f Fasctsm (A psicologia dc massa do fascismo),
New York, Oçonc Institute Press
1948 - ‘ T h e Câncer Biopathy” Volume II de The Discovery o f lhe Orgone
(Biopatia do Câncer. A descoberta do Orgonc), New York. Orgone Institute Press.
“ Listcn. Littlc M an!” (Escuta. Zé Ninguém!) (escrito em 1946), New York,
Orgonc Institute Press
1951 - Ether, God and Devil (O céu, Deus e o Diabo). New York. Orgone
Institute Press
1953 - People In Trouble (Gente angustiada). New York. Orgone Institute
Press.
The Murder o f Christ (O assassinato de Cristo). New York. Orgone Institute
Press.
1957 ~ Contacf with Space (Contato com o espaço). New York. Orgonc Ins­
titute Press.

10.1. Obras consultadas

Frcnkcl, Boris. Rcich, Etapas de Ia Vida e Bibliografia dc Reich. In: El Psicanalista


Revolucionário (compilação) B. Aires, Ediciones Sintesis, 1976, cap. V I.
Krawctz, Marc. Las Ediciones dc Rcich. In: El Psicanalista Revolucionário (compila­
ção). B. Aires, Ediciones Sintesis, 1976, cap. V II.
Rcich, W. Reich habla de Freud. Barcelona, Editorial Anagrama, 1970.
Reich, W. Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual (Die Funktion des Orgasmus).
Porto, Publicações Escorpião, 1977.

71
11
Freud e Reich: da psicanálise à orgonoterapia

Por volta de 1915, Freud propõe uma classificação das neuroses, se­
parando-as em psiconeuroses (neuroses com causação psíquica, cujos sinto­
mas são expressão simbólica de conflitos infantis) e neuroses atuais (causa­
das por uma disfunção somática atual, originada a partir da insatisfação
sexual, cujos sintomas somáticos não passam por uma intermediação psí­
quica).
Embora as neuroses atuais não fossem de interesse para a Psicanálise,
Freud propõe uma relação destas com as psiconeuroses, ao supor que toda
a psiconeurose possua um ''núcleo neurótico atual” . Ou seja, com o as neu­
roses atuais puras são raras e, muitas vezes, misturam-se com as psiconeuro­
ses, Freud conclui que o sintoma da neurose atual é, muitas vezes, o núcleo
e o precursor do sintoma psiconeurótico. Esquematicam ente, te ríamos:

Fator atual frustração estase Libidinal


(pressões morais, (do desejo
sociais) sexual)

Sintom a neurótico
atual

Psiconeurose desencadeia (N úcleo neurótico


(conflitos infantis) atual)

72
Os psicanalistas da época, como Stekcl, rejeitaram tais idéias de
Freud, alegando que toda neurose é de origem psíquica, e não somática.
Freud não se preocupa com essa discordância, mas tampouco retoma sua
proposta de um núcleo neurótico atual. Porém, estas questões vão se tor­
nar o ponto de partida dc Reich.
Nessa época, a ênfase cmpiricista trazia à tona a questão da objeti­
vidade científica. A filosofia questionava a posição da Psicanálise entre
as Ciências Naturais: Jaspcrs, por exemplo, dizia que o “sentido” só po-
deria ser entendido filosoficamente, e nâo por algum método científico
como a interpretação.
A psicologia experimental, de Wundt, seria a única forma de aproxi­
mação entre a Psicologia c a Ciência Natural: por exemplo, a quantificação
da mente humana, através da medição do intervalo de tempo necessário
para uma pessoa reagir a uma palavra.
Ê neste contexto que Reich se defronta com os conceitos freudia­
nos, destacando os seguintes:
a) a relação entre origem psíquica e origem somática; entre idéias
e excitação somática;
b) o conceito freudiano da libido como uma energia psíquica;
c) a idéia de que um núcleo neurótico atual, resultante da frustra­
ção sexual, pudesse ser atuante na psiconeurose.
A partir destes temas, Reich formula uma primeira questão básica
para a elaboração de sua teoria: de onde a psiconeurose retira sua energia
para os sintomas?*
Dedica-se à análise de seus dois casos clínicos, com esta questão em
mente, chegando a alguns dados substanciais. Descobre que a intensidade
de uma idéia psíquica depende do grau de excitação somática a que se acha
conectada, ou seja:
- indivíduos com baixa excitação sexual tém dificuldade maior em
fazer aparecer em suas mentes uma idéia sexual. As fantasias evocadas sur­
gem sem colorido ou intensidade.
- indivíduos que estejam com alto nível de excitação sexual evocam
facilmente idéias sexuais vividas e intensas.
- após a satisfação sexual, novamente, as idéias aparecem tênues,
imprecisas.
- se impedirmos a continuidade de uma idéia sexual, durante o seu
aparecimento em indivíduos com alta excitação, esta não diminui.
Destes fatos, Reich conclui que, se uma excitação energiza uma idéia,
e se esta é incompatível com a consciência (por razões morais), será inibida

73
e se frustrará, enquanto a energia se acum ula (e s ta s e )* sem realizar-se. Es­
ta energia terá que se associar a o u tra idéia para “ descarrcgar-se". Poderá,
então, conectar-se com idéias associadas a co n flito s in fa n tis , gerando sin­
tomas neuróticos.
Assim, a neurose estásica é um tra n sto rn o so m á tic o devido à frus­
tração e consequente desvio da energia sexual. O desvio da energia é sem­
pre resultante de uma inibição psíquica.

Esquema ticam ente. temos:

Energia Idéia

Se ocorre uma inibição:

idéias atuais (em sua origem não


patológicas; mas. agora, sobrecar­
regadas de energia sexual)

Reich conclui, p o rta n to , que as psiconeuroses e seu co n teú d o sexual


in fan til aparecem sobre a base de urna in ib ição sexual atu al. Desta form a,
desaparece a distinção entre neurose atual e psiconeurose, p o is a psiconeuro-
se tem um núcleo neu ró tico atu al e as neuroses atuais té m u m a superestru-
tura psiconeurótica.

* Estase é um conceito utilizado por R eich. tom ado do term o grego stasis, que signi­
fica estagnação ou parada de qualquer flu id o circulante. Reich seguirá a proposta freu­
diana da libido como energia psíquica, funcionalm ente idêntica a uma energia biológi­
ca. A questão da natureza dessa energia biológica será compreendida, inicialm ente, co­
mo uma energia bioelétrica (ver “Couraça caracterológica e couraça muscular, item
12.6), e. por volta de 1939, como uma energia cósmica que se concentra em todo or­
ganismo vivo (ver “ A Descoberta da Energia Orgônica". item 12.8).

74
Com estas conclusões. Reich procura mostrar que Freud estava mais
certo do que pensava. Percebe que outros teóricos começam ase distanciar
deste caminho pela negação da sexualidade com o eixo mestre da neurose;
acusa Jung de transformar a libido em um conceito m ístico, espiritual;
vc, em Adlcr, a substituição da sexualidade pelo conceito de “vontade de
poder” , enquanto Rank estaria negando a sexualidade infantil. Analisa tais
desvios com o uma submissão dos teóricos à crescente oposição da moral re-
pressora da sociedade c resolve levar adiante suas descobertas.
Como resultado dessa insistência, chegará à proposta da eliminação da
estase libidinal pela realização sexual, o que será a base de sua teoria da
“Economia Sexual” .
Na medida em que conclui que a moral repressiva, inibidora das idéias
sexuais e da realização sexual, causa a estase responsável pela neurose, Reich
levanta duas questões:
a) terapêutica: o que fazer quando o cliente e o terapeita se cons*
cientizam da frustração sexual com o fonte econômica da n eu roe, principal­
mente se não houver m eios imediatos de satisfação?
b) profilática: o que fazer para eliminar a causa das ncureses na socie­
dade?
A Economia Sexual, com Reich, aponta a solução mais evidente: a
eliminação da moral sexual repressiva e o estabelecimento da ilena satis­
fação orgástica. Reich demonstra que era exatamente esse o rumo .iue Freud
seguia quando, em 1908, escreve Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervo­
sa Moderna (Freud, 1974, v. IX). Mas, se a própria afirmação do papel da
sexualidade na etiologia das neuroses já causou tanta revolta no início da
Psicanálise, Reich não esperava aplausos pelo rumo que seguia. Freud havia
encontrado uma outra solução, que não implicava em transformação social
mais ampla: a sublimação do impulso sexual, que. como vimos na parte I, é
um mecanismo adaptado de defesa que descarrega a energia sexual através
de seu investim ento sobre objetos socialmente aceitáveis e valorizados, como
o trabalho intelectual, a arte etc. Desta forma, o papel da Psicanálise toma-
se consonante com os princípios morais, sem prejuízos. Mas Reich crê que a
sublimação, se mal compreendida, é mais um artifício do que uma solução real.
Desenvolvendo sua teoria, chega a seu conceito de caráter e atitude
vegetativa. Percebe que a energia sexual não liberada não se descanega to­
talmente. Acumula-se em certos grupos musculares, resultando em um “ca
ráter neurótico” . Ou seja, criam-se tensões específicas que vão refletir-se
na maneira de agir do indivíduo, sem a formação dos sintomas neuróticos
propriamente ditos. Reich percebe que, quando desaparece o sintoma, au­
menta a genitalidade do indivíduo. Mas há ocasiões em que isto não aconte-

75
ce, porque a energia foi situar-se nos traços de caráter - que acabam sendo
socialmente aceitos como “natureza” da pessoa.
Contrapõe, então, o caráter neurótico ao “caráter gcnital” . Com
isto, modifica a técnica de interpretração do conteúdo psíquico (Freud),
passando a interessar-se pela form a cm que o conteúdo surge (atitude do
indivíduo).
0 objetivo da Psicanálise náoé mais apenas transformar o inconsciente
em consciente (Freud). mas, sim, restabelecer o equilíbrio biofísico pela des­
carga da potência oigástica. Isto é, transformar o inconsciente cm conscien­
te. liberando as energias vegetativas. Não se trata mais dc descobrir meca­
nismos afetivos inconscientes, mas. sim, de descobrir mecanismos físico-
vegetativos (base física da enfermidade m ental), modificando-os c libe­
rando os conteúdos afetivos inconscientes que assim se expressavam.
Com isto, a técnica muda: não mais se centra na fala (associação li­
vre), mas nos afetos e sentimentos vegetativos. Não mais se fica atrás do
cliente. Agora, ele é olhado de frente, e seu corpo é analisado.
Assim, a vegetoterapia e a análise do caráter, chamados de “ Econo­
mia Sexual” , afastam-se gradativamente da teoria e técnica psicanalíti-
cas, buscando ser, não uma Psicologia, mas sim uma Sexologia, enquanto ciên­
cia dos processos biológicos, fisiológicos, emocionais, sociais da sexualidade.
Por isso mesmo, nas fases finais de sua vida, Reich irá desistir do tra­
balho árduo do tratamento individual das neuroses, e investirá seu esforço
na direção da psico-higiene e prevenção das mesmas, buscando a criação de
condições para o desenvolvimento do caráter genital.
Enquanto isso, Freud defronta-se com o mesmo problem a, ou seja, o
do recalcamento da pulsão sexual, e acaba levantando uma hipótese teóri­
ca que mudaria o rumo da Psicanálise. Em 1920, como foi visto em Maiz
Além do Princípio do Prazer, Freud propõe a existência do impulso de
morte, que se contrapõe à pulsão de vida, criando uma oposição de forças
inerente ao indivíduo. Assim, desloca-se, segundo Reich, a repressão da so­
ciedade para o próprio mecanismo psíquico. Por outro lado, justifica a emer­
gência, na sociedade, da agressão ou do Mal-Estar na Civilização (1930),
em função da dificuldade de repressão a esta pulsão. O papel da sociedade
e do terapeuta toma-se o de levar o indivíduo a conter seus próprios impul­
sos - critica Reich.
Para ele, este elemento teórico assume o papel de conciliador da
Psicanálise com a sociedade burguesa, tirando a força da sexualidade e a
ênfase sobre a repressão moral.
Neste período Reich sente a necessidade de compreender as forças
sociais atuantes e adentra pela Sociologia e a Economia Política. Encontra
em Marx o complemento social da Psicanálise, ou da Economia Sexual.

76
Busca uma mudança social, ingressando no Partido Comunista com uma
proposta dc liberação sexual da juventude. C bem aceito pelo movimento,
trazendo cerca de quarenta mil jovens á organização (1 930 ). Mas, quando
envereda pelas conseqücncias práticas da Economia Sexual, é expulso e
acusado de “ contra-rcvolucionário freudiano e an ti marxista” . pelos co­
munistas.
Ao mesmo tem po, é acusado pelos psicanalistas de tentar destruir
a teoria freudiana, por ordens de Moscou. Ê expulso também da Associa­
ção Psicanalítica Internacional, em 1934. Sua crítica a Freud é a sua posi­
ção declaradamente “ a-política” - na verdade, política conservadora e
resignada.
Do ponto de vista da Psicanálise da época, as principais críticas à
teoria de Reich eram as de que ele era louco, psicopata, esquizofrênico.
Ridicularizaram suas teorias sobre orgone (energia). Acusaram-no de an-
trifreudiano pela sua incursão pela Economia Política.
Reich relata que, até perto da sua separação definitiva de Freud
(1 9 3 0 ), este ouvia interessado as proposições teóricas sobre a energia se­
xual. Porém, nunca sequer mencionou a Economia Sexual em suas obras.
Assim, pela análise das obras de Freud, é possível perceber que ele pri­
vilegia uma técnica psicológica (sem intervenção física), que irá atuar sobre
o nível somático (idéia que se esboça sob o termo “submissão somática” ,
base orgânica que possibilita a expressão do conflito em um sintoma físi­
co). O corpo é levado em consideração na análise do sintoma, mas apenas
seu conteúdo psíquico é que deve ser tomado como elemento de investi­
gação (não a fo rm a ).
Por outro lado, ainda a nível da técnica, a abordagem corporal é
hoje tomada pela PsicanaTise como uma intervenção desnecessária, que
coloca o paciente como objeto da ação do terapeuta, não permitindo
que seja sujeito de suas descobertas. Tais intervenções destroem o “setting”
psicanalítico e implicam em problemas transferenciais criados pelo terapeuta.
Quanto à abordagem social, algumas correntes psicanalíticas estão
propondo a análise institucional, como uma forma de levar ás últimas con-
seqüências o papel da Psicanálise na sociedade, apesar da visível influência
de Reich nesta linha de pensamento e atuação.
Mas, nessa linha, as questões do instinto de morte e da sublimação
precisam ser discutidas enquanto pressupostos teóricos, uma vez que confli-
tam com uma visão econômico-política da sociedade.

77
12
Uma teoria do caráter à guisa de
teoria da personalidade

12.1. A gênese da couraça

Reich não desenvolve propriamente uma teoria da personalidade.


Porém, sua proposta da análise do caráter inclui a noção do desenvolvi­
mento da couraça caracterológica, que poderemos tomar com o gênese
da personalidade.
A perspectiva genética (n o sentido histórico) existente na teoria
reichiana é, explicitamente, tomada da proposta freudiana. A gênese do
caráter tem por base o conflito entre as demandas pulsionais e o meio
exterior Este conflito será originalmente enfrentado no com plexo de
Édipo, quando as funções de defesa do ego estabelecem o recalçamento
das pulsões libidinais. Mediante o perigo da emergência de tais pulsões,
o recalcamento torna-se crônico e autom ático. A este m odo autom ático
de defesa, Reich denomina “caráter” ou “couraça caracterológica”. Durante
a vida do indivíduo, repetem-se os conflitos entre o desejo libidinal e as
pressões do meio exterior. O Ego, cuja função é exatam ente a de mediação
entre as demandas internas (Id) e externas (internalizadas no Superego),
estrutura cada vez mais o caráter ou o m odo de defesa adotado. N o en­
tanto, a energia libidinal não realizada se concentra (estase), e adquire maior
força que a couraça. Do ponto de vista econôm ico, uma parte desta energia
do Id será utilizada pelo Ego, sob a forma de formação reativa. Ou seja, o
Ego utiliza-se da mesma energia para reprimi-la. Em um círculo vicioso, a
inibição aumenta a estase, que força o Ego a aumentar as forças repressivas,
tomando cada vez mais crônica a couraça caracterológica.
Com o aumento da energia estásica, a libido cria brechas através da
couraça, buscando realização. Um novo trabalho de defesa egóica leva a um

78
disfarce dos desejos sexuais, através da criação dos sintomas neuróticos ou
de novos traços de caráter. Desta forma, a personalidade total é composta
de diversos estratos de caráter. Estes vão se formando na medida em que o
estrato anterior falha em sua função defensiva, gerando angústia,
Esqueinaticamentc. teremos:

4 — Inibição por pressões externas

4 - Energia libidinal

Formação reativa: parte da energia é utilizada para


inibir o desejo ...

Pulsão
reprimida

3. A ♦ * Traço do caráter

... e aparece no com portam ento, como um traço de caráter que


busca a gratificação indireta do desejo, servindo, assim, para
dim inuição da tensão in tem a.

4. Este traço se m antem , ate que novas pressões externas o forcem a uma inibição ■

^ Inibição

Um a nova formação reativa passa a impedir a emergência


de tal traço, dando origem a um novo comportamento...

79
6. ... c assim, mccwivaniente. ate o indivíduo encontrar um traço de caráter
relativo socialmentc aceito e adequado.

Traço superficial de caráter, que atinge uma conciliação parcial


entre a realização indireta do desejo c as demandas sociais

Esta realização, indireta e parcial, das pulsões sexuais torna-se


possível através de brechas, mais ou menos fixas, na couraça que se inter­
pôs entre o Ego e o mundo exterior. Através dessas “ fendas” , a libido pode
fluir, de modo pouco móvel, para o meio exterior (libido ob jetai), ou refluir
para o Ego (libido narcísica). Tal expansão e retração podem ser compara­
das -p a ra maior clareza - aos movimentos de uma tartaruga: sua carapaça
a protege dos perigos reais, como a couraça protege o Ego dos perigos
eminentemente internos, embora causados pelo meio externo (a couraça
protege o Ego da ansiedade interior, causada pela inibição das pulsões
Libidinais); em seu contato com a realidade, a tartaruga expande seu corpo
através de pequenas frestas, assim como a Libido objetai expande-se através
das brechas da couraça; mediante os perigos externos, o animal se contrai,
assim como a libido narcísica se retrai de volta ao Ego. N o entanto, e este
é o ponto básico, a motilidade do animal fica extremamente limitada pela
carapaça, assim como o contato do indivíduo encouraçado é fixo e restrito,
sem a mobilidade necessária para a real adaptação às exigências internas
e externas.
Devido à realização apenas parcial da libido, a energia represada
aumenta, levando à cronicidade e rigidez da couraça, à diminuição do prazer
sexual e da capacidade de descarga. A falta de satisfação sexual gera angús­
tia; de outro lado, a frustração dos desejos leva a uma reação agressiva, que
também acaba sendo inibida, novamente gerando angústia. Assim, apesar
de o indivíduo satisfazer às exigências exteriores com seu caráter social­
mente aceito, internamente vive intensa angústia e insatisfação.
Desta forma, é importante perceber o sentido genético da couraça,
cujo caráter atual condensa em si toda a história dos conflitos enfrentados
pelo indivíduo e suas resoluções. Reich fala em “estratificação da couraça” .

80
onde a personalidade total do indivíduo é a somatória funcional de toda
sua história, incorporada ao presente sob a forma de atitude de caráter. Esta
se expressa em todos os modos de reação do indivíduo, desde seu posiciona­
mento quanto a valores morais, até sua forma de falar, expressão corporal,
postura etc. Por outro lado, é importante salientar que. embora possa haver
um componente hereditário na forma inicial do caráter, esta será modi­
ficada historicamente a partir das pressões ambientais. A forma final já
estará, basicamente, determinada por reação às pressões do meio exterior.
Reich vai enfatizar sempre o papel da repressão social à plena realiza­
ção da energia sexual. Assim, como havíamos dito, a distinção entre neurose
atual e psiconeurose deixa de ter sentido, uma vez que a angústia atual
(gerada pelo bloqueio da realização da libido genital) concorre para aumen­
tar a angústia decorrente da energia libidinal estásica (que, por sua vez, é
a fonte da psiconeurose).

12.2. Caráter genital e caráter neurótico

O resultado do processo descrito é o que Reich denomina “caráter


neurótico” . Neste, o encouraçamento crônico leva a atitudes rígidas diante
das 'diferentes demandas, com um modo de reação estereotipado e não
adaptativo. A energia estásica gera uma constante angústia e, por conse­
guinte, um medo da excitação 4 ue aumentaria a energia acumulada. A
capacidade de amar torna-se reduzida e as gratificações sexuais só podem
se realizar através do retorno às satisfações pré-genitais. Ou seja, a energia
sexual não pode descanegar-se pela plena descarga orgástica, devido às
repressões, canalizando-se para pontos de fixação infantis, pré-genitais. O
prazer só pode ser obtido por outras atividades sexuais que não o coito ge­
nital, como sexo oral, anal, jogos sado-masoquistas, homossexualismo,
“voyeurismo” , masturbação; ou, ainda, não é obtido de forma alguma, le­
vando à abstinência sexual.
A ausência de descarga aumenta a estase e as fixações pré-genitais,
contaminando todas as atividades sociais e culturais. O trabalho passa a
ser executado de modo rígido e não-prazeroso, transformando-se em um
dever, onde se incluem atos obsessivos, competição, necessidade de provar
potência, sentimentos de inferioridade etc.
Reich çofitrapoé ao caráter neurótico o “caráter genital” . Neste, a partir
da resolução do conflito edípico e em função do desenvolvimento de maior
tolerância à frustração, o Ego estabelece uma relação não repressiva sobre as
pulsões sexuais, permitindo, em parte, sua realização direta e, de outro lado,

81
inibindo outros, de forma a perm itir a sublimação. Enquanto no caráter
neurótico a repressão dá lugar à formação reativa e à estase, no caráter
genital há a realização direta da energia, ou indireta, pela sublimação. E n­
quanto a estase e o bloqueio da genitalidade levam à catcxia pré-genital. no
caráter genital estabelece-se a primazia genital e a plena descarga orgástica.
Como resultado da sublimação, as atividades sociais e culturais podem
realizar-se prazerosamente pelo querer - não pelo dever —. perm itindo um
fluir da energia entre a relação sexual e as atividades sublimatórias. As
pulsões pré-genitais canalizam-se para as realizações genitais, e estabelecem,
com elas, uma unidade. Algumas formações reativas podem estabelecer-se,
como no caso da vergonha. Porém, a couraça resultante torna-se móvel
e adaptativa.
Esquematicamente. o caráter genital poderia ser representado assim:

realização
sexual

12.3. Aspectos qualitativo e quantitativo do caráter

A formação do caráter é uma função egóica de proteção, ligada às


pulsões de autoconservação; portanto, em sua essência, é um mecanismo
de proteção narcisista.
O caráter é definido, por Reich, do ponto de vista tópico, como o
modo típ ico de reação do Ego frente ás pressões do Id (pulsões sexuais) e às
do mundo exterior (exigências do Superego). Do ponto de vista biológico,
representa uma função autoplástica (m odificação de si mesmo) do orga­
nismo, como forma de se defender frente às estimulações desagradáveis
provenientes do meio exterior; no caso, é a defesa contra as frustrações e
punições do meio social às tentativas de realização das pulsões sexuais. A
limitação ou impedimento das gratificações gera, no indivíduo, o que Freud
denominou Realangst, angústia frente a um perigo real, ou, simplesmente,
angústia real.

82
Assim, embora em sua origem a couraça tenha tido a função de
defesa contra o meio exterior, assume a forma de defesa contra os perigos
interiores: as exigências do Id e a angústia real. Passamos, portanto, ao
ponto de vista econômico: caráter, ou couraça caracterológica, resume-se
na utilização de parte da energia do Id . pelo Ego. contra-investindo-a sobre
as próprias pulsõcs (formação reativa), desgastando parte de sua energia
para sua própria inibição. Para tanto, o Ego pode prescindir das pressões
externas, através da introjeção dos objetos frustrantes, compondo o
Supcrego.
O caráter é, então, um fator dinâmico, representado pela “soma total
dos modos de reação com que opera o Ego, específicos de uma persona­
lidade dada (...), que sc manifesta em uma aparência específica (andar,
expressão, postura, modo de falar, outros modos de conduta)” (Reich,
1976, p. 4 1 ).
Apesar do encouraçamento rígido que pode resultar do caráter, este
ainda opera pelo princípio do prazer, buscando a maior gratificação possível
dentro da estrutura resultante.
O resultado desta estruturação depende, basicamente, de dois as­
pectos: qualitativo e quantitativo.

12.3.1. Aspecto qualitativo

A qualidade do caráter depende de quais impulsos se desgastam nas


formações reativas e quais podem ser liberados.
Como dissemos, a couraça caracterológica inclui fendas ou brechas
que permitem investimento da libido narcísica em objetos exteriores (libido
objetai). Porém, como parte desses impulsos são inibidos e desgastados, em
sua energia, pelas formações reativas, apenas parte se acha liberada para o
investimento no Ego ou no objeto externo.
A qualidade final do caráter varia conforme o condicionamento
histórico de cada indivíduo, ou seja, o estágio de fixação da libido que
causou conflitos mais intensos na história de seu relacionamento com o
mundo exterior. Portanto, um dos fatores primordiais para a especificidade
caracterológica está ligado ao tipo de caráter dos pais e educadores e à etapa
do desenvolvimento em que se produzem as frustrações decisivas.
Reich aponta alguns tipos de caráter, segundo a fase de fixação que
provocou maior intensidade de conflitos, afetando mais caracteristicamente
a formação da couraça caracterológica:

83
I. fixação oral: caráter depressivo;
II. fixação anal-sádica: caráter compulsivo,
UI. fixação fálica: caráter genital-narcisista ou fálico-narcisista;
IV. fixação genital-inccstuosa: caráter histérico.

Em seu livro Analise do Caráter (Reich, 1975a) encontramos uma


descrição pormenorizada das características de alguns destes caracteres, que
explanaremos mais adiante.
A qualidade do caráter reporta-sc, ainda, à solidez maior ou menor da
estrutura, que define a abertura possível (brechas da couraça) para contato
da libido com o meio exterior. Neste sentido, por exemplo, o “caráter
compulsivo" bloqueia todos seus afetos, com raras possibilidades de contato
com o meio exterior; o “caráter agressivo" possui brechas mais móveis,
possibilitando maior contato, embora limitado a reações impulsivas agres­
sivas e paranóides; o "caráter passivo-feminino” possibilita apenas a expres­
são de submissão e docilidade etc.
Por fim, a qualidade do caráter depende do modo de gratificação da
libido, que terá implicação na forma de inibição dos impulsos: a gratificação
pelo orgasmo genital diminui a tensão pré-genital, facilitando a sublimação;
a gratificação pré-genital implica a contenção da libido genital que, por sua
vez. intensifica as pulsões pré-genitais, exigindo formações reativas inibi-
tórias. Do modo de gratificação depende a diferenciação básica de caráter
genital (indivíduo saudável, com equilíbrio econômico-sexual), ou de
caráter neurótico, respectivamente.

123.2. Aspecto quantitativo

A formação do caráter é afetada pela economia da libido. Esta, evi­


dentemente, repousa sobre o modo de gratificação. O aspecto qualitativo
relaciona-se ao grau de realização das pulsões. Se o modo de realização é
pré-genital, o caráter neurótico defronta-se com uma crescente inibição da
libido. Se o modo de gratificação é genital, o caráter genital vive um fluxo
alternado entre tensão-gratificação, onde não apenas a libido genital se
realiza, mas também a pré-genital, seja durante a relação sexual, nas ativi­
dades que precedem o orgasmo, seja através de sublimações.

12.4. Algumas formas de caráter descritas por Reich

Em seu livro Análise do Caráter (Reich, 1975a), Reich descreve alguns


tipos de caráter, baseado em Freud e outros psicanalistas, como Abraham,

84
Joncs e Ophuijsen. revendo as descrições anteriores em função de sua teoria
da gênese do caráter. Abreviaremos as descrições, uma vez que muitas destas
características já foram abordadas na primeira parte deste livro.
Como acabamos de ver. a qualidade do caráter está ligada á fase do
desenvolvimento da sexualidade, onde as frustrações mais intensas deter*
minaram formações reativas defensivas mais firmemente estruturadas, im­
pondo certas características à couraça caracterológica.
Considerando a fase de fixação, portanto, definimos o caráter segundo
os tipos histérico, compulsivo, fálico. genital-narcisista e depressivo. 0
caráter masoquista, no entanto, é de especial interesse na teoria reichiana.
Coloca em questão a explicação freudiana da hipótese de uma pulsão de
morte nas bases do masoquismo. Reich nega a necessidade deste arcabouço
teórico para explicar os atos autodestrutivos, criticando esta hipótese como
conciliadora da Psicanálise com a moral sexual repressiva da sociedade
- uma vez que retira a responsabilidade da repressão sexual na gênese do
masoquismo e dos atos agressivos.
A agressividade é reação da libido ao bloqueio de sua realização.
Assim, o sadismo pode ocorrer como resultante do recalcamento libidinal
em qualquer fase pré-genital do desenvolvimento, não sendo característico
de formações reativas de fixação anal, como se pensava anteriormente.
Temos, pois, sadismo oral (morder, despedaçar), anal (amassar, pisotear,
golpear), fálico (perfurar, atravessar). O sadismo é. portanto, um traço de
caráter que se integra com os demais referentes a um determinado
caráter. Em suas formulações iniciais, Freud afirma que o estabelecimento
de formações reativas intensas contra o sadismo determina um tipo
específico de caráter, cujo traço essencial seria o masoquismo, como
oposição ao sadismo. Reich descreve, a partir desta formulação, o "caráter
masoquista", contrapondo*se às formulações posteriores de Freud sobre
a existência de um masoquismo primário ligado a uma pulsão autodestru-
tiva. O masoquismo seria mesmo resultante de formações reativas contra
pulsões sexuais pré-genitais. ativadas pela estase da energia genital inibida
pela repressão social. Os traços característicos do caráter masoquista, e de
alguns outros, serão abordados a seguir.

12.4.1. O caráter histérico

Este caráter diferencia-se dos demais. Sua fonte de energia é o próprio


impulso genital. e não formações reativas pré-genitais.
O histérico atinge, em seu desenvolvimento, a fase genital, onde o
desejo do incesto torna-se a grande ameaça geradora de ansiedade. No

85
entanto, por sua natureza distinta dos impulsos pré-genitais, a pulsa o genital
não se presta a sublimações ou formações reativas, exigindo gratificação
direta. N o caráter histérico, uma vez atingida a primazia genital, ocorrem
raras regressões a fixações pré-genitais.* Desta form a, é a própria energia
genital que assumirá a função de defesa contra a angústia genital.
Por isso mesmo, a principal característica do histérico é a sua conduta
sexual evidente: nas mulheres, o andar, o falar, o olhar são sexualmente
provocantes; nos homens, além disso, notam-sc o com portam ento e expres­
são facial femininos, o maneirismo cortês e doce. O histérico é facilmente
excitável, sexualmente.
Porém, como a sexualidade aparece, a í, em sua função de defesa, estes
traços completam-se por uma apreensividade mais ou menos declarada. A
melhor compreensão de como atua esta defesa é possível, se atentarmos para
o fato de que o indivíduo se vê perseguido pela angústia decorrente da
ameaça do incesto genital. O comportam ento provocante tem a finalidade
de pesquisar se os perigos temidos se realizarão e de onde partem . A provo­
cação põe a descoberto o desejo e o “ ataque” sexual do o u tro , facilitando
a defesa - donde a apreensão constante.
Quando o perigo se materializa ou torna-se prestes a ocorrer, outros
traços aparecem, evidenciando a função defensiva: a atividade sexual trans­
forma-se em passividade e surge a angústia, podendo, mesmo, resultar em
fuga ou afastamento concreto da situação.
Por isso, o histérico é m uito suscetível a sugestões, podendo convén-
cer-se de que ocorreram, ou estão para ocorrer, os fatos mais improváveis.
Mas, ao mesmo tempo, a sugestionabilidade implica em inconstância das
reações: assim como se convence de um fato, logo pode convencer-se do
oposto, abandonando as convicções tão facilmente como as to m o u. A
concordância e aquiescência invertem-se em desprezo e desvalorização,
igualmente sem fundamento. A sugestionabilidade im plica, tam bém , em
rica imaginação, confundida com, e percebida como realidade, levando
à mentira patológica.
Enquanto os demais caracteres pré-genitalizam a experiência genital,
ou seja, os genitais passam a representar a boca, o seio, ou o ânus, o caráter
histérico genitaliza as pulsões pré-genitais: o excesso de energia genital

* As descrições que aqui serão feitas referem-se ao caráter puro que, naturalmente,
é raro. Normalmente, encontramos traços de outros caracteres em cada couraça especí­
fica, embora possamos falar de um caráter específico, segundo a prevalência de deter­
minados traços.

86
presente, determinado pela sexualidade preponderante, sem realização
direta, invade as pulsôes pré-genitais. dotando-as de uma carga energética
tão intensa que não permite as sublimaçôcs. ou formações reativas destes
impulsos. Portanto, invertendo as características dos outros caracteres, o
histérico genitaliza as zonas erógenas pré-genitais. principalmente a oral,
donde é comum a boca absorver o papel de genital, no que Freud denomina
“ deslocamento da parte inferior para a superior do corpo” (ver, por exem­
plo, o “ caso D ora” em Fragmento da Análise de um Caso de Histeria, Freud,
1974, v. V I I ) .

Como a libido genital não encontra gratificação direta, devido à


inibição, que atua como defesa à angústia genital incestuosa, e como, por
sua natureza*, não se presta a sublimações ou formações reativas, a energia
sexual investe-se nas inervações somáticas, gerando os sintomas de conver­
são histérica (Histeria de Conversão). Quando isto não acontece, a libido
estásica livre gera intensa angústia e, secundariamente, acaba por ligar-se a
objetos externos, determinando as fobias (sintoma fóbico da Histeria de
A n g ú s tia ).**

A falha de gratificação sexual e a descarga, via excitações somáticas,


determinam que a energia não se invista amplamente em realizações inte­
lectuais nem, tampouco, no encouraçamento do caráter. Isto explica
o fato da agilidade corporal e vivacidade, contrastantes com a rigidez de
outros caracteres, como o compulsivo (a relação entre o caráter e as carac­
terísticas corporais é melhor explicada, quando Reich propõe a identidade
funcional entre couraça caracterológica e couraça muscular, o que será
exposto adiante no item 12.6).

A psicoterapia carátero-analítica terá efeito no caráter histérico, a


partir da interpretação da angústia genital infantil, o que liberará a energia
sexual genital para catexizar-se sobre objetos externos, permitindo a grati­
ficação direta pela descarga orgástica.

* Esta “ natureza” não seria devida, segundo Reich, a uma qualidade específica
da pulsão genital, mas à sua quantidade: como a energia genital descarrega-se pelo
orgasmo - mecanismo inexistente nas outras pulsôes parciais - , o “quantum” de
energia que é gerado na excitação genital é, particularmente, intenso,exigindo investi­
mento ou gratificação diretos, dificultando as sublimações e formações reativas e
genitalizando todas as pulsôes.
* * Ver, por exemplo, o caso do “Pequeno Hans” em Análise de uma Fobia em
um Menino de Cinco Anos, Freud, 1974. v. X .

87
12.4.2. O cará ter compulsivo (obsessivo)

A neurose obsessiva foi, na literatura psicanalítica, um dos processos


mais estudados e mais bem descritos. Segundo a intensidade das repressões,
historicamente vividas nas fases anal e anal-sádica, o indivíduo desenvolverá
uma conduta contínua, que vai desde o caráter compulsivo, marcado por
traços atitudinais específicos, até a neurose obsessiva, marcada pelos
sintomas característicos.
Por outro lado, uma relativa repressão anal, em conjunto com a
intensa inibição de outro impulso pré-genital, dotará um outro caráter
de alguns traços característicos do caráter compulsivo, como o sadismo, por
exemplo. Nestes casos, não se justifica a denominação de caráter com*
pulsivo. Falamos, em vez disso, em traços orais sádicos do caráter histérico
(na fixação predominantemente genital-incestuosa, que catexiza as pulsões
orais), ou do sadismo fálico*narcisista (na fixação predominante sobre as
pulsões pré-genitais da fase fálica).
As características do caráter obsessivo-compulsivo já foram clara­
mente expostas na primeira parte deste livro. Portanto, limitar-nos-emos
às contribuições específicas de Reich, no que diz respeito à resistência
caracterológica no processo psicoterapéutico da análise do caráter.
Reich aponta, como Freud, que alguns traços característicos do
caráter compulsivo, como preocupação pedante pela ordem, avareza,
pensamento ruminativo, autocontrole etc., vinculam-se a formações
reativas dos impulsos anais recalcados. No entanto, sublinha, sempre, que
o recalcamento sob as pressões do Superego nada mais é do que a intro-
jeção da repressão da moral sexual da sociedade. Assim, tais formações
reativas são resultado da educação familiar, que impõe, por exemplo, o
controle esfincteriano de modo intenso e precoce.
De outro lado, Reich demonstra que os impulsos anais irrompem,
por vezes, diretamente, sem formações reativas, resultando em outros
traços compulsivos opostos aos anteriores, como a compulsão à desordem
e a incapacidade de lidar com dinheiro.
Mas a principal contribuição reichiana foi destacar o aspecto form al
do caráter compulsivo, demonstrando que o bloqueio afetivo do obsessivo
determina, através de um complexo sistema de forças, uma maneira
característica de lidar com a realidade, ou seja, a indecisão, a dúvida e a
desconfiança.
Reich demonstra que estes traços formais do caráter atuam, com toda
sua força defensiva, no processo psicanalítico. Portanto, propõe uma revisão
da técnica analítica centrada no conteúdo ideativo, que busca a interpre-

88
tação das pulsões anais-sádicas. Se o bloqueio afetivo não for elaborado
antes, tais interpretações serão recebidas com dúvida c desconfiança, devido
à resistência à irrupção das mesmas pulsões. Ou, simplesmente, serão admi­
tidas em seu aspecto lógico, mas completamente desligadas dos afetos
correspondentes, pelo mecanismo do isolamento (dissociação pensa-
mento-emoção, determinado pelo bloqueio afetivo). A este processo. Reich
denomina “resistência caracterológica” à terapia.
A técnica da análise do caráter deve, portanto, adiar a interpretação
do conteúdo, interpretando, antes, a resistência caracterológica. repre­
sentada pelo aspecto formal da couraça. Isto vale para a análise de qualquer
caráter. Mas, no caso do compulsivo, é especificamentc importante, devido
ao núcleo central da defesa, representado pelo isolamento dos afetos. O
bloqueio afetivo estrutura-se como defesa contra a energia agressiva,
vinculada aos impulsos anais-sádicos: as formações reativas anais, como
autocontrole, suprem a função de impedir a liberação da energia agressiva.
Esta, por sua vez, intensifica as formações reativas, pela estase, impedindo
a irrupção direta dos impulsos anais; a frustração pulsional gera maior
agressividade. Este círculo vicioso estabelece o bloqueio afetivo. O conflito
entre a agressão e pulsão sexual pré-genital, ou seja, entre ódio e amor,
determina a ambivalência expressa na dúvida do compulsivo.
A análise da ambivalência entre amor e ódio, que determina os inten­
sos sentimentos de culpa e que se expressa na resistência formal às inter­
pretações, permite a separação dos diferentes impulsos e a consequente
dissolução do bloqueio afetivo. Como resultado, diminui a resistência
caracterológica, pela irrupção, primeiramente, dos impulsos agressivos
(reação terapêutica negativa). Esta liberação permite a cristalização dos
impulsos libidinais pré-genitais. Só então é possível a análise dos conteúdos
inconscientes e a liberação dos afetos a eles ligados.
Portanto, podemos dizer que uma contribuição essencial de Reich
à teoria psicanalítica do caráter é a sua descrição da resistência caractero­
lógica, ou seja, a presença do aspecto formal da couraça, como defesa contra
a interpretação e elaboração do conteúdo inconsciente ligado aos traços
caracterológicos ou aos sintomas neuróticos.
A centração da atenção do analista, sobre a forma sob a qual o
paciente traz o conteúdo psíquico, levou Reich à análise das expressões
não-verbais da resistência, como atitude corporal, postura, expressão
facial etc. Por sua vez, a percepção do paralelismo entre estas expressões
corporais e a resistência caracterológica levaram-no à descrição pormeno­
rizada do aspecto físico do paciente. A busca das explicações desta relação
entre expressão psíquica e expressão corporal determinam a elaboração do

89
conceito de couraça muscular como equivalente funcional da couraça
caracterológica (caráter). Estas relações serão abordadas adiante.
No caso do caráter compulsivo, o bloqueio afetivo, que seria um
“espasmo** do Ego. utiliza-sc dos espasmos somáticos. Daí. todos os
músculos do corpo permanecem cronicamente rígidos e hipcrtônicos, em
especial os músculos da pélvis, assoalho pélvico, ombros e rosto. A sensação
que temos, ao observar o compulsivo, é a da rigidez corporal e de uma
dureza fisionômica que se assemelha a uma máscara (para melhor com­
preensão desta especificidade, veja o item 12.9, “ A Estrutura Segmentada
da Couraça").

12.4.3. O caráter fálico-narcisista

Os indivíduos que apresentam este tipo caracterológico, tal como o


compulsivo, abandonam o modo de realização anal da libido e adentram
pela fase fálica. No entanto, enquanto o compulsivo regressa ao estágio anal,
o fálico-narcisista utiliza-se de defesas fálico-sádicas contra a regressão à
analidade passiva.
Este caráter situa-se, portanto, a meio caminho entre o histérico
(posição genital-incestuosa) e o compulsivo (fixação anal).
Vejamos, primeiramente, os traços característicos deste encouraça-
mento para, em seguida, compreendermos sua dinâmica e economia.
A atitude do fálico-narcisista demonstra segurança e vigor, mes­
clados com um ar arrogante e dominador. À diferença do compulsivo, não
é rígido, mas elástico o suficiente para adaptar-se às diferentes situações,
colocando-se em posição de liderança e comando, o que lhe permite boas
realizações no campo do trabalho. No entanto, neste aspecto, difere do
caráter genital, uma vez que suas ações são determinadas por motivos
irracionais, apesar de sua autoconfiança.
Mostra-se altaneiro, frio e reservado.
O tipo físico é marcado pelo porte atlético e masculino. Por vezes, a
expressão facial pode ser feminina, mas a postura geral imprime uma
aparência de masculinidade, bastante atraente para as mulheres.
Estes traços são todos transpassados por uma alta agressividade,
presente, basicamente, na forma pela qual fala e age, e não no que diz
ou faz. Os impulsos sádicos são relativamente disfarçados pela atitude
provocativa, sardònica; estes indivíduos antecipam-se aos ataques espera­
dos, atacando antes. A agressividade está na base de sua postura forte e
enérgica.

90
Apesar do narcisismo evidente, normalmente ligam-sc aos objetos
e pessoas de forma marcante.
A sexualidade é caracterizada pelo homossexualismo ativo, embora
os homens exibam sua alta potência eretiva em relações heterossexuais,
despertando o interesse das mulheres. Porém, estes traços são complemen­
tados, contraditoríamente. pela “ impotência orgástica" (term o adotado,
por Reich, para caracterizar a ausência de descarga da energia sexual
prazerosamente, mesmo ocorrendo o orgasmo).* Além disso, a atitude
dos homens cm relação às mulheres, mesmo em um relacionamento sexual,
é de um profundo desprezo.
Também nas mulheres fálico-narcisistas, o homossexualismo ativo
está presente, com alta sexualidade clitorídea, complementada pela con*
fiança em si e cm sua beleza e vigor físico.
Estas características, em parte, aparentemente contraditórias, são
claramente explicadas, por Reich, pela compreensão da gênese estrutural
deste caráter.
A estrutura familiar dos indivíduos que apresentam esta couraça carac*
terológica é característica: mãe dominadora e pai ausente, ou falecido
precocemente, na vida da criança.
Além disso, a história de repressão sexual da criança aparece, marcada*
mente, no início da fase fálica, pela proibição materna sobre as tendências
masturbatórias e fálico-exibicionistas. 0 recalcamento das pulsões sexuais,
disto resultante, leva à fixação libidinal na fase transitória entre a posição
anal-sádica e a libidinal objetai. Deriva daí o investimento narcisista da
libido sobre o Ego, o que explica os traços de autoconfiança e orgulho de
si e do seu falo (real u fantasiado). Este investimento fáJvO leva o homem
a uma identificação com a mãe forte, fantasiada como possuindo o fa’o.
A identificação tem a função de defesa contra a frustração e a decepção,
causad-. pela repressão materna aos impulsos exibicionistas. Consequente*
me .e, o homem renuncia à mulher, objeto da identificação narcisista, e
dirige a libido fálica em relação ao pai. Este processo determina o homos*
sexualismo ativo (fálico ) que, na verdade, emerge como defesa contra o
homossexualismo passivo (submissão ao falo fantasiado da mãe); determina,
também, a agressão fálico*sádica, a necessidade de provar potência e o desejo
de vingança contra a mulher, degradando-a, destroçando-a, desprezando-a.
O pênis é o instrumento de vingança.

Para melhor compreensão deste conceito, ver o item 12.5, “ Potência e Im ­


potência Orgástica’ 1.

91
conscientização dos conflitos inconscientes e da angústia leva, num trata*
mento psicanalítico, à eliminação dos sintomas. Assim, a angústia é a causa
da perturbação da sexualidade genital.
Reifh inverte esta relação, propondo que a perturbação da genitali-
dade leva a estase da energia libidinal, gerando angústia. Assim, um conflito
atual gera uma perturbação na descarga genital (núcleo neurótico atual).
A energia sexual não é liberada e investe no conflito psíquico, aumentando,
viciosamente, a estase. Esta fornece energia para a reedição dos conflitos
edípicos infantis, em si não patológicos, mas tornados núcleos da neurose
pela energia estásica. Desta form a, não basta à Psicanálise tornar conscientes
os conflitos infantis. É necessário, ainda, eliminar a fonte da energia que
sobre eles investe, ou seja, a perturbação da descarga orgástica.
Seguindo este pressuposto, Reich encontra uma contradição em sua
prática clínica: o conflito ainda se mantém energetizado mesmo após o
restabelecimento de relações sexuais normais pelo paciente. Este fato
leva-o à análise da função do orgasmo como elemento de descarga ener*
gética. Propõe que não basta haver relações sexuais para a descarga da
plena potência orgástica. Quando esta ocorre, o orgasmo é pleno e segue
uma curva de tensão-relaxamento, composta de uma prim eira fase de
controle voluntário dos movimentos do corpo, após a penetração; uma
fase seguinte, de contrações musculares involuntárias, aumentando a exci­
tação (carga energética); um crescimento súbito da excitação, seguido do
orgasmo; uma queda da excitação (descarga), seguida de relaxamento.

Orgasmo

Figura J2J.

94
A plena potência orgástica dá-se em indivíduos (masculinos ou
femininos) capazes de atingir a fase dos movimentos involuntários ondu-
latórios do corpo, onde ocorre uma concentração da energia libidinal sobre
o sistema vegetativo e consequente descatexização do sistema psíquico,
seguida da descarga orgástica. Numa relação sexual onde não ocorra a pri­
mazia genital. é exigido um investimento de grande parte da energia sobre o
sistema psíquico na elaboração de fantasias pré-genitais. Desta forma, a
descarga não é total, mantendo grande parte da energia em estase, o que
alimenta a angústia e a couraça caracterológjca defensiva.
Em síntese, a impotência orgástica, gerada por uma estase resultante
de um núcleo atual, aumenta a quantidade de energia acumulada, gerando
angústia e realimentando a pré-genitalidade. A frustração, por uma reação
natural do organismo, gera agressividade e angústia. Estas, por formações
reativas, enriquecem a couraça caracterológica neurótica.
Por outro lado, a plena descarga de potência o ica permite maior
tolerância às frustrações e a canalização da agressividade v H ta n te , pela
sublimação, para atividades culturais.

Caráter neurótico Caráter genital

Repressão social

núcleo neurótico atual energia libidinal


perturbação
(abstinência, coito
orgástica
interrompido etc. .,..)

inibição
(frustração
estase da
sem
energia libidinal
recalca mento)
impotência
orgástica
conflitos infantis
pré-genitalidade

sublimação potência
orgástica
sintomas (genital idade)
formações reativas,
agressividade, caráter
neurótico

Figuro J2.2.

95
12.6. Couraça caracterológica e couraça muscular

Na medida em que propõe a função de descarga energética do orgasmo,


Reich aproxima-se, cada vez mais, do campo biológico. A libido pode ser
entendida, enquanto energia sexual, como energia bioelétrica, que atua no
campo psíquico. Enquanto este campo é responsável pelo conteúdo simbólico
das idéias, fantasias e afetos, o campo biológico é quem prove uma energé­
tica. Corpo e mente, psíquico e somático são vistos como uma unidade
funcional. A sexualidade está para a excitação agradável como a moralidade
está para o espasmo muscular. A energia, se canalizada para a descarga
sexual, permite a potência orgástica e a sublimação psíquica, se acumulada,
canaliza-se para outros sistemas vegetativos, como o cardiovascular, gerando
os sintomas físicos e psíquicos da angústia estásica (neurose atual, em
Freud), e ativa os conteúdos infantis e pré-genitais (psiconeurose).
A repressão mora) atua na inibição dos afetos, gerando e m antendo a
rigidez nas atitudes de caráter. Do ponto de vista biológico, a energia está­
sica desvia-se para grupos musculares, aumentando a tensão e levando a
uma rigidez também crônica, perturbando o eq uilíb rio vegetativo e a m oti-
lidade. Isso explica a relação entre os traços de caráter e determinadas
características posturais, motoras, de expressão facial etc. A energia apri­
sionada no sistema vegetativo corresponde ao afeto reprim ido. A unidade
entre o psíquico e o somático implica em que toda a rigidez muscular
contém, ao mesmo tem po, o afeto e sua história de repressão, onde o signi­
ficado é dado pela psique. Assim, os sintomas de conversão somática podem
m elhor ser entendidos em sua gênese.
Freud falava em uma "submissão somática” ao conteúdo psíquico.
Não desenvolveu m elhor, porém , os caminhos biológicos da energia. Reich
amplia a relação entre corpo e m ente, falando, não de uma submissão, mas
de uma unidade funcional entre os dois âmbitos. Então, tal relação se
estende não mais apenas aos sintomas histéricos, mas a toda a formação do
caráter. Cada sublimação ou formação reativa envolve correspondentes no
sistema vegetativo. O conjunto de couraça caracterológica tem seu corres­
pondente no sistema de tensões crônicas ou móveis, nas relaxações comple­
tas ou parciais, de acordo com maiores ou menores repressão e estase pre­
sentes na história individual.
Reich chama este sistema de tensões de "couraça m uscular", que
funciona em unidade, portanto, com a couraça caracterológica (caráter).
O espasmo muscular, ao mesmo tem po, é o correspondente do processo
de repressão e concorre para sua manutenção. Desta form a, um processo
terapêutico terá êx ito se:
a) possibilitar a conscientização do co n flito inconsciente (F re u d );

96
b) concorrer para a dissolução dos extratos sucessivos dos traços
reativos de caráter (couraça caracterológica);

c) liberar, assim, os afetos reprimidos, através da eliminação da


energia concentrada nas tensões musculares (dissolução da couraça
muscular);

d ) eliminar a fonte da energia estásica, ou seja, restabelecer a pri­


mazia genital e a plena descarga da potência orgástica.

O restabelecimento do caráter genital não significa a dissolução de


toda a couraça, mas, sim, da cronicidade e rigidez da mesma. A adaptação
ao meio exige a inibição de impulsos e sua sublimação. em determinados
contextos, e a realização, em outros. Assim, é necessária uma mobilidade
da couraça, o que só é possível pela eliminação das repressões e das for­
mações reativas crônicas.

Com a inclusão do biológico, Reich separa-se gradativamente da


Psicanálise, entrando no que chama de “vegetoterapia carátero-analítica” ,
dentro da Economia Sexual, com alterações técnicas visando à inclusão
da análise do caráter e dissolução da couraça muscular na terapia.

Através da vcgetoterapia. Reich define um postulado que se torna


central na evolução posterior da Economia Sexual: a energia biológica flui,
no organismo, durante o orgasmo, do centro vegetativo para a periferia;
na angústia, pelo contrário, flui desta para o cerne biológico.• A sexuali­
dade nada mais é do que a função biológica de expansão, antitética à
angústia. A energia bioelétrica flui, através do sistema vasovegetativo. “ para
fora” c “ para dentro” , em direções opostas, dentro de um mesmo processo
de excitação somática. O processo psíquico seria o correspondente funcional
qualitativo desse processo quantitativo biológico de excitação.

A hipertensão muscular crônica, ou couraça muscular - e sua cor­


respondente funcional que é a couraça caracterológica - , nada mais é,
portanto, senão um obstáculo ao fluxo e refluxo da energia: constitui uma
inibição biológica do movimento para a periferia (excitação: sexualidade,
agressividade), e do movimento em direção ao centro (retração: angústia).

O cerne biológico está localizado, provavelmente, no conjunto ganglionar da


região do plexo solar abdominal.

97
12.7. O caráter masoquista e o princípio do prazer

A partir de sua descoberta dos fluxos energéticos do centro para a


periferia. Reich pôde compreender a causa da busca do sofrimento maso­
quista, representado por fantasias de rompcr-sc. de derreter-sc. ou por
desejos de rasgar a pele ou ser açoitado nas nádegas. Ou seja, o desprazer
masoquista resultaria de um processo vegetativo semelhante ao prazer: a
energia sexual, gerada pela excitação, flui para o sistema vegetativo perifé­
rico. com a consequente vasodilatação. O prazer corresponde à descarga
desta tensão através do orgasmo. O sofrimento masoquista corresponde à
propriocepçâo desta tensão periférica; esta não pode descarregar-se devido à
inibição do prazer genital e o conseqüente encouraçamento causado, em
última instância, pela repressão moral. O correspondente vegetativo do
sofrimento masoquista - a estase da energia libidinal no sistema periférico —
gera, portanto, a necessidade da descarga, ou da obtenção do prazer pelo
relaxamento. Porém, como a função orgãstica está bloqueada, ao nível
fisiológico a solução parece ser romper a pele, com o correspondente idea-
tivo que é o desejo de ser rasgado, açoitado, ferido.
A compulsão à repetição não seria, portanto, estimulada por um
princípio do desprazer ou por um impulso destrutivo original voltado contra
si próprio, mas, ao contrário, pelo desejo do prazer sexual, vinculado à
relaxaçâo, pela descarga energética.
Não é, portanto, necessária à compreensão do caráter masoquista a
postulação de um Impulso de Morte, que levaria ao restabelecimento do
estado original de repouso. Esta necessidade de repouso é inerente à própria
libido e é a base fisiológica do prazer.
Por sua vez, a morte não é resultado do predomínio de uma pulsão
específica. Pelo contrário, resulta naturalmente da involução fisiológica do
organismo, pelo declínio da função do aparelho sexual.
O que há por compreender no caráter masoquista não parece ser,
portanto, por que busca o desprazer, ou por que sente prazer com situações
desprazerosas — pois, na verdade, busca o prazer, e as situações despra-
zerosas são sentidas como tal, e não como prazer.* O que Reich conclui

* Em certa ocasião, diante das súplicas de um cliente masoquista para que Reich
batesse nele, o analista tomou uma régua e bateu4he nas nádegas. Com surpresa, viu
o paciente gemer de dor, sem demonstrar prazer algum. Desta experiência tão pouco
psicanalítica, Reich foi capaz de retirar as bases para sua crítica à formulação freudiana de
que o masoquista sente prazer na dor, pois realmente o que sente é desprazer.

98
é exatamente o contrário: o masoquista busca excitações prazerosas, mas,
por um mecanismo específico, que tem a ver com sua história de repressão
pulsional, experimenta estas excitações como desprazer. Ou seja, não tolera
a tensão psíquica e a carga energética nos sistemas periféricos - normal*
mente sentidas como excitações prazerosas - pois estas se torn..ram crônicas
com o encouraçamento. o que impossibilita a descarga e o relaxamento.
Os principais traços do caráter masoquista são: queixas constantes
derivadas de uma sensação crônica de sofrimento, tendências ou fantasias
de autoflagelação; autodesvalorização e automenosprezo; compulsão à
destruição do outro, acompanhada por intensos sentimentos de culpa; falta
de tato no relacionamento social; comportamento provocativo; demanda
intensa de carinho, permeada por um alto erotismo epidérmico, especial*
mente na pele das nádegas; fantasias de romper-se (nos homens, é freqüente
a fantas-a de o pênis derreter se ou explodir; nas mulheres, fantasias de
violentação sexual).

12.7.1. A gênese do caráter masoquista

Apesar da exigência constante de carinho, freqüentemente encontra*


mos, na história infantil dos indivíduos masoquistas, mães superprotetoras,
que deram extrem a atenção à alimentação e às atividades excretórias da
criança, o que incentivou a fixação no erotismo oral, anal e uretral. No
entanto, um adestramento precoce e exagerado do controle esfincteriano
antepõe, ao prazer retentivo, o temor do castigo face ao descontrole. Este
assume a forma fantasiosa de a bexiga urinária ou os intestinos rompe*
rem-se, estourarem.
Em seu desenvolvimento, a libido atinge a fase genital exibicionista.
Mas, ao contrário do incentivo anterior, estes impulsos são fortemente
reprimidos pela educação familiar; isto impede todo o desenvolvimento
libidinal ulterior, com incremento da angústia genital. Aqui está a base do
embaraço e falta de tato nas relações pessoais, tão características do
masoquista.
A repressão social ao exibicionismo leva a diversas consequências.
Em prim eiro lugar, pelo não desenvolvimento da libido genital, não
pode haver sublimação das pulsões exibicionistas, que levariam, como no
caráter genital, à autoconfiança e segurança. Pelo contrário, estas pulsões
são inibidas através de formações reativas que determinam o aparecimento
de traços opostos, ao nível do caráter: a tendência ao automenosprezo, ao
impedir-se de destacar-se, ao fingir-se ou parecer estúpido. Resulta, ainda,
em um medo do elogio vindo de outrem, pois este é uma provocação ao
exibicionismo e gera imediata angústia genital.

99
Por outro lado, o evitar angústia e castigo, vinculados à frustração
- fantasiada ou real — das exigências de carinho, constitui a base de um
desejo de atenção e cuidados impossíveis de satisfazer, face â regressão à
voracidade oral. Uma combinação específica destes componentes orais
com a fixação anal e o erotismo epidérmico, ligados ao impedimento da
realização libidinal pela repressão à potência orgástica, incentivam o medo
do abandono, a passividade anal, a demanda de carinho c contato corporal.
Ou seja, impedida da realização gcnital, a libido reflui aos componen­
tes pulsi onais pré-genitais. sem possibilidade de sublimação. O indivíduo
busca evitar a angústia genital, representada pela punição, através da auto-
desvalorização, de queixas e lamentações, de parecer infeliz, como forma
de conseguir carinho e atenção. A necessidade de carinho aparece disfar­
çada desta forma, anal-passiva, uma vez que a demonstração ou exigência
direta de carinho traz de volta a angústia: “Posso ser envergonhado, casti­
gado. menosprezado".
Portanto, o comando “Castigue-me!“ é a expressão encoberta do
“Proteja-me!". Neste sentido, as constantes provocações masoquistas ao
castigo não tomam sentido da busca do desprazer. A provocação tem a
função de uma avaliação da realidade: “Até onde posso ir sem ser castigado,
sem perder carinho, sem ser abandonado?" - ou seja, são regidos pelo prin­
cípio do prazer.
A passividade e o automenosprezo chocam-se, no entanto, com
um ideal egóico fálico, ativo, exibicionista, o que reforça o sofrimento
masoquista.
Como dissemos, as características do masoquismo são decorrentes de
uma combinação específica desta economia libidinal; embora os mesmos
componentes de angústia e fixação anal-passiva possam ser encontrados no
caráter histérico ou compulsivo, podendo incentivar alguns traços maso­
quistas nestes, apenas a presença e a interação conjunta destes traços podem
justificar falar-se em um caráter tipicamente masoquista.
Neste sentido, a história de fixação anal do masoquista imprime
aspectos marcantes e especiais neste caráter. Como vimos, a retenção anal
e uretral, incentivada pela educação para o controle esfincteriano, acom­
panha-se do medo da punição, do castigo ameaçado em nome do pai. Daí
a presença do medo de explodir e de atitudes passivo-femininas frente ao
homem. Com o desenvolvimento da libido genital e a repressão ao exibicio­
nismo, a regressão anal imprime suas características retentivas à angústia
genital: a intensificação da excitação genital passa a ser refreada pela contra*
ção da musculatura do piso pélvico, com seu correspondente psíquico que é
o medo de explodir, de “sujar-se”, e o medo da punição que inflinja danos
aos genitais.

100
Aqui. Rcich nos apresenta um caso esclarecedor de como tais temores
acabam-se transformando no desefo de ser castigado.
Em seu livro Análise do Caráter (Reich, 1975a), apresenta-nos frag­
mentos da história clínica de um cliente, que se recorda de uma situação
traumática: aos tres anos, brincando no jardim , suja suas calças. Como havia
visitas cm casa, seu pai. furioso, leva-o para um quarto e prepara-se para
castigá-lo. A criança deita-se numa cama virando-se imediatamente em de-
cúbito vcntral. aguardando ansioso o castigo. Após pesada surra sobre suas
nádegas, advém-lhc uma sensação de alívio.

Mais adiante, na análise, foi possível compreender que tal alívio não
sc tratava dc um desejo de castigo, mas. pelo contrário, de um temor de que
o castigo se aplicasse aos genitais. A posição adotada objetivava proteger
seu pênis. As pancadas nas nádegas foram menos desastrosas do que o
castigo fantasiado.
Este caso perm itiu a Reich determinar como o erotismo anal atua
como defesa à angústia genital. Por outro lado, a união deste com o ero­
tismo epidérmico explica as fantasias de castigo centradas na pele das
nádegas.
Cabe, ainda, compreender tal erotismo epidérmico exagerado. Isto
se torna possível pela análise do fluxo energético do centro para a periferia,
formulado por Reich como correspondente fisiológico da excitação
prazerosa.

Na verdade, os traços masoquistas correspondem a um conjunto de


esforços para evitar a disposição à angústia genital. Mas, estes esforços
tornam-se infrutíferos porque o espasmo da musculatura, sem realização
orgástica, mantém a alta tensão periférica interna, determinando a fixação
da libido sobre a periferia, mais especificamente sobre a pele das nádegas,
por um deslocamento defensivo da frente para trás ( “Castigue-me. mas
não mc castrei” ).

Por outro lado, Reich volta sempre a frisar que o masoquista é tam­
bém movido pela busca do prazer, que acaba se transformando no desejo
de ser castigado. Agora isto pode ser melhor compreendido, pela análise
sequencial do processo:

a) Inicialm ente, o indivíduo busca excitações prazerosas.

b) A excitação aumenta a concentração da libido na periferia. 0


fluxo da energia bioclétrica é possível pela vasodilatação do sistema vege-
tativo periférico. Este já se encontrava sobrecarregado pela estase. resul­
tante da inibição da potência orgástica. Em decorrência, advém uma

101
sensação de calor epidérmico, correspondente fisiológico da necessidade
de contato corporal e do erotismo e p id é rm ic o /
c) O aumento da excitação, movido pelo p rin cíp io do prazer, c por
analogia ao prazer anal, leva ao desejo de romper-se. de explo dir. Este
componente ideativo não decorre da introjeção de conteúdos sociais, mas
da propriocepção fisiológica da tensão periférica interna, causada pelo
aumento da excitação-carga bioelétrica. N o entanto, o encouraçamento
muscular espástico do piso pélvico, gerado como defesa à angústia de cas­
tração. impede a “ explosão" orgástica. Reich descreve a sensação resultante
como se o indivíduo fosse uma bexiga viva, supcrinflada. impedida de
romper-se, pela resistência ou endurecimento da superfície externa, como
ilustra a figura 1 2 . 3 / •

~ Cerne biológico

Oposição pela
tensão da superfície
(encouraçamento)

Figura 12.3

• A formulação posterior da eneigia orgônica. em substituição à energia bio-


elétrica (v. item 1 2 3 ), leva Reich a c preender a necessidade de contato corporal
como uma troca energética entre dois * eternas orgonóticos, ou seja, a busca do equi­
líbrio da energia orgônica por um fluxo de uma pessoa a outra, através da pele.
** O desenvolvimento destas idéias e sua relação com as inervações simpáticas
e parassimpáticas não serão detalhados aqui, pois fogem aos objetivos deste trabalho.
Podem .no entanto, ser encontrados cm Reich (1975b, cap. VII).

102
d) A angústia genital causada pela internalização das repressões
sociais, por analogia com o medo de castigo da fase anal, transforma o
desejo de romper-se no medo de explodir. As sensações que seriam, normal­
mente. prazerosas, tornam-se desprazerosas: a sensação de calor no pênis,
por exem plo, pode levar à fantasia angustiante de que este estaria se der­
retendo. A angústia é aumentada, pois a excitação genital próxima ao
ápice, diferentem ente da excitação anal, eleva-se repentina e intensamente.
A sensação de derreter-se ou romper-se é sentida como o castigo temido
e antecipado.
e) Com o defesa, o indivíduo inibe a excitação, através da contração
muscular, que mantém a estase e a carga sem possibilidade de relaxamento.
O objetivo prazeroso original transforma-se em resultado desagradável e
temido.
f) O indivíduo passa a evitar excitações prazerosas, não por um
impulso de buscar o desprazer. mas pelo contrário, para evitar o desprazer
final. Assim, as exigências de carinho são encobertas pelo automenosprezo:
“ Sou tão desgraçado, ame-me!” De outro lado, explica-se a prática comum
do masoquista em masturbar-se até quase atingir o orgasmo e bloqueá-lo
pela contração dos músculos pélvicos, retomando a masturbação, em seguida.
g) Por fim , a analogia com a bexiga viva permite a compreensão do
desejo de ser castigado dentro do princípio do prazer. Tal bexiga desejaria
romper-se; mas, impossibilitada de fazê-lo por si, desejaria que uma fonte
externa arranhasse, até rasgar, sua superfície. Esta sensação de “ bexiga
inflada” leva o masoquista a fantasias de ser furado, rasgado, flagelado de
forma a explodir ( = descarga - relaxamento). Novamente, uma analogia
com a história do prazer anal serve como referência: em situação de retenção
urinária ou fecal, um fato assustador pode provocar o descontrole esfinctc-
riano, podendo a criança sujar-sc sem sentir-se culpada. Assim, também, em
estado de excitação genital, a dor resultante de um castigo físico pode
provocar o descontrole e o orgasmo. D a í a fantasia frequente - que aumenta,
próxima ao ápice orgástico - de ser golpeado no pênis, no caso do homem,
ou de ser violentada, no caso da mulher masoquista. Em qualquer caso, o
orgasmo pode realizar-se p o r culpa do outro.
Assim, Reich explica os traços masoquistas a partir de sua vegeto-
terapia carátero-analítica, pela unidade funcional entre o somático e o psí­
quico, dentro do suposto básico do princípio do prazer, refutando a neces­
sidade de um constructo, como a pulsão de Morte, para tal compreensão.
Neste ponto, resta-nos ainda ressaltar a questão de como o caráter
masoquista reage ao tratam ento analítico como resistência caracterológica.
As queixas freqücntcs de sofrimento, feitas ao analista, encobrem
uma crítica à ineficiência do tratam ento. O analista deve trazer á tona a

103
índole sádica envolvida neste comportamento masoquista. Assim, inverte-se
o processo histórico da gênese desse caráter, transformando o masoquismo
(sadismo voltado para o próprio indivíduo) em sadismo voltado para o
exterior. Assim, as fantasias anais passivas invertem-se. Tornam-se fantasias
fálico-sádicas ativas, trazendo de volta a angústia gcnital.
Durante o tratamento, ressalta Reich, as menores frustrações levarão
à recorrência da atitude masoquista. Isto só será eliminado pela definitiva
supressão dos espasmos da musculatura pélvica e anal e pela resolução da
angústia de castração, o que possibilita a plena descarga orgástica.

12.8. A descoberta da energia orgônica

A análise da função do orgasmo e do problema do masoquismo


tornou-se possível pela proposição da fórmula geral da descarga da energia
bioelétrica sexual. A fórmula do orgasmo é dada em quatro etapas, a saber:
1. Tensão mecânica: os órgãos sexuais enchem-se de fluidos orgânicos,
ocorrendo a ereção. A energia bioelétrica flu i, do centro do organismo, para
a periferia.
2. Carga elétrica: os órgãos periféricos carregam-se de energia, com a
equivalente excitação psíquica.
3. Descarga elétrica: orgasmo envolvendo convulsões musculares in­
voluntárias. descarregando a excitação com sensações prazerosas.
4. Relaxação mecânica: os fluidos do corpo refluem e a musculatura
relaxa; os genitais são distensionados e a sensação de prazer se m antém .
Esta fórmula inverte a hipótese freudiana de que a sexualidade é uma
função da necessidade biológica de procriação. Agora, a necessidade bio­
lógica é a descarga da energia bioelétrica pelo orgasmo, onde a procriação
torna-se conseqüéncia.
A fórmula tensão-carga auxilia Reich na sua investigação da natureza
dessa energia sexual, inicialmente suposta como uma energia bioelétrica.
Reich realizou experimentos buscando a mensuração dessa energia em
diversas situações de excitações, confirmando sua hipótese do m ovim ento
das cargas do centro para a periferia. Constatou sua presença, sob a form a
de diferença de potencial elétrico, na pele, em situação de excitação (por
exemplo, cócegas), e nos genitais.
Em 1934, prossegue suas pesquisas acrescentando novas informações
sobre a energia:
I . Sua velocidade aproxima-se da velocidade da luz (3 0 0 .0 0 0 km /s),
m uito superior à da energia elétrica (que não ultrapassa um centím etro
por segundo).

104
2. A energia provoca efeitos ondulatórios em um galvanõmctro, o que
chamou de “ fenômeno titilante” .

3. Os materiais não-vivos não possuem tal energia, mas podem ser


carregados - mesmo os não condutores, como a borracha - . quer pela
aproximação da mão humana, quer pela exposição aos raios solares. A
energia solar, pelo aquecimento e ditalação de corpos como areia, borracha
c algodão, carrega-os com uma energia com as mesmas características da
energia do ser vivo.

Reich chama tal energia de “ orgone” , já por volta de 1 9 3 9 .0 orgone


é uma energia cósmica biofísica existente na Natureza, e que se concentra
no cerne biológico dos organismos vivos.
A energia orgônica permite a unificação da análise do caráter e da
vegetoterapia, a que Reich chamará de orgonoterapia.
A análise do caráter preocupava-se com a formação da base caractero-
lógica de reação, envolvendo as couraças caracterológica e muscular,
analisando as perturbações da economia sexual egóica. Esta deve buscar
o eq uilíb rio, sem desgaste desnecessário de energia, entre as pulsões do Id e
as exigências sociais representadas pelas forças superegóicas.
Por outro lado, a vegetoterapia buscava a liberação da energia bio­
lógica sexual, de forma a perm itir sua mobilidade e fluidez entre centro
e periferia, recolhendo-se ou expandindo-se adequadamente, de acordo com
as demandas exteriores. A rigidez da couraça impede a mobilidade do fluxo
plasmático, perturbando a função orgástica de tensão-carga-descarga-
relaxamento. O objetivo da vegetoterapia carátero-analítica era o restabele­
cimento da plena potência orgástica.
A descoberta do orgone permite, como dissemos, a unificação destes
dois pontos de vista: entendendo a economia sexual como a busca do
equilíbrio orgonótico, pela eliminação da estase energética, o papel do
plasma biológico neste processo é o de condutor do orgone corporal, pos­
sibilitando, por sua fluidez, o movimento para a periferia e a descarga.
Este é o processo de funcionamento do caráter genital.
N o caráter neurótico, a repressão social internalizada implica na
repressão do fluxo orgonótico, através das formações reativas do caráter,
levando à estase da energia, que se concentra sobre certos grupos muscula­
res, com a conseqüente rigidez da couraça. Esta provoca imobilização do
fluxo plasmático condutor do orgone, gerando uma tensão interna sem
possibilidade de descarga (impotência orgástica). Isto aumenta a estase,
angústia e formações reativas num círculo vicioso, podendo resultar em
sintomas ou traços caracterológicos neuróticos.

105
12.9. A estrutura segmentada da couraça

0 movimento ondulatório do orgasmo está ligado ao fluxo e descarga


da energia ondulatória orgônica. Esse movimento, segundo Reich, pode ser
encontrado em todos os organismos vivos e é visível nos animais inferiores,
como a minhoca.
O fluxo do orgone se dá em sentido longitudinal, em qualquer orga­
nismo vivo. A análise da couraça muscular levou Reich a perceber que a
estase da energia imobiliza certos grupos musculares, no ser humano, exata­
mente no sentido oposto, ou seja, transversalmente ao eixo longitudinal
do corpo.
A couraça muscular possui uma estrutura segmentada, isto é, deter­
minados segmentos ou grupos musculares são tipicamente afetados. Estes
segmentos são em número de sete. Pela sua disposição transversal. Reich os
denomina “anéis musculares", a saber: anel ocular, oral, cervical, toráxico,
diafragmático. abdominal e pélvico. Cada grupo muscular é responsável,
dinamicamente, pela expressão de determinado conjunto de emoções. A
repressão de tal ou qual emoção corresponde, funcionalmente, à estase
orgonótica e imobilização mais específica de alguns anéis musculares.
Passaremos, assim, à análise dos significados psíquicos, ou das emoções, e
de suas correspondentes expressões ou bloqueios musculares.
Os movimentos de um indivíduo são altamente expressivos. Mas
nem sempre a linguagem do corpo pode ser expressa em linguagem verbal.
Ressaltada esta limitação, fica claro que, para Reich, a observação atenta
dos movimentos expressivos apreende melhor a sua significação do que a
exposição que faremos a seguir.
Um outro aspecto a enfatizar é que o movimento expressivo envolve
todos os segmentos musculares que veremos, embora, didaticamente, seja
necessária a exposição específica de cada anel muscular.
Do ponto de vista terapêutico, a dissolução das couraças dos anéis
musculares parte do extremo superior do corpo (anel ocular) para a região
pélvica, uma vez que o fluxo orgonótico deve seguir daquela para esta
durante o orgasmo.
Assim, a dissolução de um anel anterior permite o fluxo de energia
para o anel seguinte - o que intensifica, no indivíduo, a sensação de encou-
raçamento neste último segmento, facilitando o trabalho terapêutico. Por
outro lado, a dissolução de um anel muscular torna-se d ifícil e sem efeito
se o(s) anel (is) anterior (es) não se dissolveu (ram).
Na verdade, o processo não é tão mecânico e regulado. £ muito mais
dinâmico, pois um anel já trabalhado libera um certo fluxo de energia que

106
atinge e é bloqueado pelo seguinte, embora o espasmo anterior não tenha
sido totalmente dissolvido.
Passemos à descrição dos anéis:
I. A nel ocular: é formado por todos os músculos ao redor da cabeça
na altura dos olhos, incluindo estes, as pálpebras, glândulas lacrimais etc.
Os olhos são responsáveis por muitos movimentos expressivos como
a tristeza, o choro, o sorriso, a desconfiança etc. Em um indivíduo encou-
raçado. os olhos são inexpressivos, o olhar vazio ou triste, dando a impres­
são de máscara.
2. A n el oral: envolve músculos da boca, queixo, garganta e região
occipital.
Os movimentos expressivos da boca, como morder (raiva), chupar,
chorar, fazer caretas etc., estão extremamente vinculados ao anel ocular.
Ambos os anéis, encouraçados. diminuem a possibilidade da expressão
facial, ressaltando a aparência de uma máscara rígida e inexpressiva.
3. A n e l cervical: musculatura do pescoço e nuca, da língua e laringe.
Novamente, as expressões de raiva ou choro envolvem este anel. Os
espasmos dessa musculatura implicam no “ engolir” as emoções deste tipo,
impedindo o seu fluxo e expressão. O vomitar, em seus sentido literal e
simbólico (pòr para fora, descarregar), é impedido pelo espasmo desta
musculatura (em conjunto com tórax e diafragma).
4. A n el peito ral ou toráxico: músculos peitorais, intercostais,
ombros etc.
A respiração assume parte importante na expressão de todas as
emoções, na fluidez dos sentimentos. A rigidez deste anel expressa auto­
controle. a imobilidade, a impassividade - como na postura militar. Reich
encontrou, com freqüéncia, na dissolução deste segmento da couraça, um
fluir de emoções, como soluços, “ choro que despedaça o coração” , desejos
intoleráveis, ou raiva destruidora. O encouraçamento deste anel expressa
emoções “ frias” e desprezo pelo choro ( “ homem não chora” ).
Ligam-se a este grupo muscular os movimentos expressivos dos braços
e mãos (abraçar, alcançar).
No indivíduo com este segmento encouraçado, são frequentes a
sensação de um “ nó no peito” e dificuldades em trabalhos manuais, nas
mulheres, insensibilidade nos seios e dificuldade de amamentar.
O m ovim ento de jogar os cotovelos para trás expressa uma atitude
básica deste anel: “ sai!” ou “ não quero!” , também representada pelas
cócegas excessivas na região das costelas: “ sai de perto!” ou “ não me toque!”
(após a dissolução de couraça, o medo de cócegas desaparece).
O caminho para a descarga orgástica inclui um movimento do tórax
para frente, expressando um “ dar-se” ou “ entregar-se” .

107
5. A nel diafragma tico: envolve os músculos diafragmáticos c órgãos
envolvidos nas funções biológicas gastro-intestinais (vô m ito , diarréia), e
respiratórias (inspiração-expiração): diafragma, estômago, plcxo solar,
fígado.
Deste anel em diante, torna-se cada vez mais d ifícil traduzir em
palavras o movimento expressivo.
O pulsar diafragmático afirma emoções de prazer ou angústia. Sua
rigidez implica na negação desses sentimentos.
Por outro lado, na expiração ou no vôm ito ocorre um m ovim ento
expressivo de curvar-se para frente que, funcionalmente, é idêntico às
contrações orgásticas. Ao mesmo tempo, um anel não encouraçado permite
o fluxo de energia deste centro para cima (vôm ito, expiração), ou para baixo
(como no orgasmo).
Este segmento encouraçado impede tais fluxos e movimentos essen­
ciais ao estabelecimento da potência orgástica.
6. A nel abdominal: envolve os músculos abdominais e laterais entre
as costelas e a pélvis.
Este anel, segundo Reich, é de fácil dissolução e concorre para a plena
expressão orgástica, intermediando o fluxo energético entre diafragma
e pélvis.
7. A n el pélvico: envolve todos os músculos da pélvis, região glútea
e ânus.
Sua principal expressão é a da sexualidade, envolvendo ainda a raiva, o
golpear ou atravessar. Seu encouraçamento atua em toda ordem de proble­
mas sexuais, como dessensibilização erógena, ejaculação precoce, leucorréia,
vaginismo etc.
Embora algumas emoções estejam mais vinculadas especificamente a
alguns anéis, todos concorrem, como já dissemos, para o m ovim ento expres­
sivo não-encouraçado. A principal característica emocional do caráter
genital é a capacidade de dar, a gratidão, o entregar-se. O encouraçamento
bloqueia tais expressões afetivas e a raiva é sempre resultante de qualquer
frustração ou bloqueio emocional. Por isso, na dissolução das couraças, num
trabalho terapêutico, a raiva é uma das emoções mais liberadas, pois o
indivíduo conscientiza-se cada vez mais das frustrações ou limitações
impostas, pela sua própria couraça, à expressão afetiva.

12.10. Conclusão
Como havíamos dito no começo desta parte do livro, Reich não
desenvolve propriamente uma teoria da personalidade, mas sim uma teoria
da formação do caráter.

108
Podemos distinguir» em sua obra, três momentos distintos que se
intercruzam:
a) /t análise do caráter. Este é o momento em que sua teoria mais se
aproxima de uma teoria da personalidade. A forma total da personalidade
é dada pela couraça caracterológica, ou pelos caracteres genital e neurótico.
Neste momento, ele ainda se mantém cm acordo com o movimento psica*
nalítico, apesar de alguns pontos de conflito.
b) /I vegetoterapia e a função do orgasmo. Aqui, não apenas se
separa da Psicanálise como também da Psicologia, propondo o campo da
Sexologia ou Economia Sexual - onde inclui a Psicologia, mas também a
Biologia, Economia Política etc.
c) A descoberta do orgone e a orgonoterapia. Neste momento acaba
se afastando da Psicoterapia. Avança no campo da pesquisa biofísica,
tentando relacionar sua descoberta do orgone com todos os aspectos das
Ciências Naturais e Humanas.
Desnecessário dizer que esta última parte de seu trabalho não foi
levada a sério por muitos de seus seguidores. Mesmo hoje em dia, há
pouquíssimas experiências de cunho científico divulgadas, que busquem
comprovar a existência de uma energia com as características do orgone.
Apesar disso, ao nível da Psicoterapia, a contribuição de Reich faz-se sentir,
como eixo-mestre, nas várias abordagens de Psicoterapia e mobilização
corporal. Várias técnicas visando ao desencouraçamento foram desenvol­
vidas e são aplicadas, buscando o equilíbrio energético e o livre fluxo da
energia. Mas pouco se tem pesquisado, ou quase nada, sobre uma das pre­
ocupações centrais de Reich, ou seja, a de qual a natureza dessa energia.
Parece-me que a proposta do orgone enquanto “ energia cósmica” não é
aceita ou, muitas vezes, é adotada sob um ponto de vista metafísico, o que
diverge da própria concepção de Reich (ao menos sob o ponto de vista dele,
que sempre procurou bases experimentais científicas).

109
13
Psicanálise e materialismo dialético: retomada
e revisão dos conceitos freudianos

Tendo até aqui delineado os principais aspectos da teoria do caráter


e suas implicações na Psicoterapia, resta-nos retomar alguns destes conceitos,
uma vez que implicam em séria crítica à Psicanálise. Tanto mais que tal
crítica leva Reich, em suas últimas consequências, a entrar pela Economia
Política, provocando não apenas uma revisão de pontos-chave da teoria
psicanalítica, mas também um posicionamento político frente à sociedade
capitalista.
Os conceitos a que nos referimos são: o processo de sublimação, o
princípio da realidade, a formação do Inconsciente e do complexo de
Édipo. É o que veremos a seguir.

13.1. Sublimação ou formação reativa?

A questão essencial levantada por Reich, que o leva à proposta revo­


lucionária da Economia Sexual, reporta-se ao destino das pulsões incons­
cientes tornadas conscientes pela Psicanálise. Tendo tomado consciência
do desejo sexual e eliminado suas inibições, o indivíduo defrontar-se-á,
novamente, com a mesma repressão social que o levou à neurose. A restrição
à plena realização sexual é um fato social. As jovens terão que enfrentar
a restrição às relações genitais, pois a sociedade defende a virgindade até
o casamento.* Este culto à virgindade tem como conseqüéncia imediata

* Estaremos falando, a partir de agora, sobre como Reich via a moral sexual
de sua época. £ verdade que, em determinados grupos sociais, muita coisa mudou:
há moças que, em seu grupo, envergonham-se de serem virgens. Porém, embora, apa-

110
o desenvolvimento da prostituição. Assim, os rapazes dispõem das pros­
titutas para as relações sexuais e das “ moças direitas*' para amarem o que
cria uma cisão crônica entre amor e sexo. De outro lado, o controle dos
anticoncepcionais incentiva a abstinência ou o coito interrompido, impe*
dindo a plena realização sexual. Os interesses econômicos burgueses mantém
as doenças venéreas, não levando a cabo maiores esforços para sua erradi­
cação total, tirando proveito de seu fantasma persecutório como forma de
controle das relações sexuais livres.
Igualmentc, a carência de espaços físicos disponíveis para as relações
sexuais dos adolescentes é fator neurotizante.
Dentro do casamento, a proibição do aborto, ligado ao controle dos
anticoncepcionais, c a defesa do casamento monogâmico - contra o divór­
cio e em favor da fam ília - implicam em restrições sociais diretas à realiza­
ção sexual*, criando o adultério.
Diante deste quadro social, como pode o paciente, que toma cons­
ciência de seus desejos sexuais recalcados, não retornar à neurose?
A Psicanálise, com Freud, deixa claro que o objetivo do tratamento
psicanalítico não trata da “ livre expansão" da sexualidade. Ou seja, a
tomada de consciência de seus desejos sexuais liberta o indivíduo da deter­
minação inconsciente, mas, sem dúvida, tais pulsões são naturalmente anti­
sociais. O princípio da realidade deve, portanto, estabelecer-se a>. pos-
bilitando ao sujeito dominar seus impulsos sem, no entanto, recalcá-los
de volta ao inconsciente. A repressão ao pré-consciente, ou a condenação
voluntária dos desejos anti-sociais permitirá o desvio de tais impulsos para
fins socialmente valorizados, através da sublimação.
Desta form a, a condenação dos impulsos sexuais transforma-se, com
a sublimação, no grande m oto r da Civilização.
Reich, por sua vez, tendo concluído que a energia sexual genital
represada (estásica) só pode realizar-se totalmente pela descarga orgástica,

rentem ente, vivamos em um clima de “ liberação’’ sexual, uma análise mais aprofundada
verá quão atuais são as críticas reichianas: freqüentemente encontramos, em nossa
prática clínica, sob com portam entos tão “ abertos** em termos de relacionamento
sexual, uma culpa assediante que revela a mesma moral conservadora de que Reich
nos fala. Da parte dos rapazes, apesar de manterem, com frequência, relacionamento
sexual com amigas ou namoradas, a perspectiva de casamento só aparece, na grande
maioria dos casos, diante de moças virgens ou, ao menos, diante da exigência de que
ele tenha sido “ o primeiro**.
* Mais adiante, analisaremos como a ideologia marxista ajuda Reich a compre­
ender a determinação econôm ico-política da moral sexual repressiva, levando-o a uma
revisão do com plexo de É dipo.

111
entende que a sublimação, assim proposta, na verdade, nada mais é que
uma nova formação reativa: um novo comportamento surge para impedir
a realização de um impulso inibido (ver esquema na p. 79-80). Assim, há
um desvio de parte da energia, que se contrapõe ao impulso original, e
apenas parte dela realizar-sc-á pelo comportamento adequado socialmcnte.
Mas a concentração dessa energia não liberada reativa os impulsos pré-
genitais. restabelecendo a neurose ou os atos anti-sociais (perversões).
Portanto, não há outra solução: o indivíduo que toma consciência
de seus desejos sexuais genitais deve realizá-los. Esta é a única condição
para o desaparecimento da neurose, uma vez que se retira desta a energia
que a movia, ou que determinava as regressões aos impulsos pré-genitais.
Com o desenvolvimento normal do indivíduo, estabelece-se a pri­
mazia dos impulsos genitais sobre os pré-genitais. Estes não deixam de
existir, mas obtêm sua realização integrados com os impulsos genitais
durante o coito - ou, primordialmente, nos jogos sexuais prévios à inten­
sificação das sensações genitais próximas ao orgasmo.
De outro lado, para Reich, o homem é um ser natural e espontanea­
mente social. Não é necessária, portanto, a repressão social para impedir
os crimes sexuais.* Uma vez retirada a energia genita) estásica dos im­
pulsos pré-genitais, pela plena descarga da potência orgástica, estes perdem
sua primazia e podem realizar-se nos jogos sexuais, como dissemos, ou
através de sublimações. Estas, evidentemente, implicam numa inibição â
realização direta desses impulsos. Mas no indivíduo são, é possível que
ocorra sem repressão social ou recalcamento, espontaneamente, uma vez que
implicariam em ações anti-sociais contrárias à própria natureza humana.
Diferentemente de Freud, para Reich, tal auto-regulação só é possível
na medida em que o indivíduo consegue realizar-se totalmente através
da plena descarga orgástica. Sente-se, assim, potente e capaz de amar, de
modo que os impulsos pré-genitais (por exemplo um impulso sádico, ou
de violação) tornam-se descoloridos e de menor importância, podendo, o
indivíduo deles prescindir, naturalmente, desviando (sublimando) sua
energia para o trabalho social.

* Os crimes sexuais resultam, exatamente, da repressão sexual, que impede a


realização genital e reforça as puisões pré-genitais Por outro lado, a participação da
pre-genitalidade em outros crimes é evidente, como, por exemplo, no sadismo, e na
prática comum, nos furtos, de defecar na residência assaltada (obviamente, esta visão
não pretende excluir a compreensão dos complexos fatores sociais de classes deter­
minantes da delinquência e do crime).

112
Como consequência, teremos, em Reich. uma diferenciação entre o
trabalho reativo e o trabalho econômico-sexual aulo-regulado. Neste últim o,
não há oposição entre sexualidade e trabalho. Ambos influenciam-se mutua­
mente, possibilitando ao indivíduo uma sensação de potência em suas
realizações, uma capacidade de amar e de entregar-se. O objeto sexuaJ é
definido c diferenciado do objeto do trabalho; mas a capacidade de dar-se
aparece em ambas as atividades, ocorrendo um fluir, sem recalcamento, da
energia libidinal. entre um e outro (ver gráfico na p. 82). O desempenho
social dcscnvolve-se por um querer, e não pelo dever, o que possibilita
maior criatividade e espontaneidade, mas, ao mesmo tempo, uma neces­
sidade de auto-rcgulação, ao invés da submissão. Neste sentido, o indivíduo
auto-regulado, embora não seja anti-social, desenvolverá uma atitude crítica
à sociedade autoritária e repressora.
Por outro lado, o desempenho reativo no trabalho se dá de modo
mecânico, autom ático e levado pelo sentido do dever. O trabalho se opõe
reativamente à sexualidade, o que impossibilita a descarga da energia sexual
pela atividade. Por isso, esta energia, por vezes, toma conta do indivíduo
durante o trabalho, levando-o a fantasias (primordialmente pré-genitais),
que novamente atrapalham seu desempenho, sua concentração e capacidade
de trabalho. Mecanismos neuróticos têm que ser usados para recalcar tais
fantasias, atingindo diretamente a espontaneidade e a criatividade em rela­
ção ao que faz (com o o trabalho realizado obsessivamente, por exemplo).
O baixo rendimento resultante derruba o sentimento de autocon­
fiança. O indivíduo torna-se incapaz de se auto-regular, perpetuando a
submissão, ou a onipotência (reativa) dominadora.
Assim, repressão gera repressão; ou seja, o indivíduo reprimido social­
mente por uma moral sexual autoritária acaba mantendo esta mesma moral
repressiva em sua relação com os outros, quer a nível sexual ou a nível
das atividades sociais.
A estase da energia sexual, que não pode realizar-se genitalmente,
provê de força os impulsos pré-genitais que, se inibidos, geram a neurose;
se realizados, geram as perversões e atos criminosos. Estes, novamente,
precisam ser obstaculizados por sua natureza anti-social, o que será feito
por uma maior repressão sexual. Assim consecutivamente, em um círculo
vicioso, a repressão se auto-reforça.
Em síntese, Reich basicamente retoma as colocações iniciais de
Freud sobre a sublimação, pois, segundo este, são os impulsos pré-genitais
que são sublimados. No entanto, no desenvolvimento posterior da Psica­
nálise, as formações reativas, que se opõem à sexualidade genital, acabam
sendo tomadas como sublimações - segundo Reich confundindo o

113
princípio da realidade com a submissão à moral sexual repressiva das classes
dominantes. Embora tais formações reativas possam não se constituir em
uma neurose sintomática, estão longe de se qualificarem como equilíbrio
econômico-sexual. Embora o caráter resultante possa se confundir com uma
“ natureza” do indivíduo relativamente adaptada ao grupo social, a rigidez
da couraça caracterológica evidencia a desorganização do flu xo energético
sexual. A vegetoterapia caráctero-analítica, ou a orgonoterapia demonstram,
nestes casos, como este caráter (neurótico) se erige às expensas da estase
energética. As conseqüências são dramáticas para o indivíduo (sentimentos
de impotência, ausência de prazer, incapacidade de entregar-se, de amar etc.),
e para a Civilização (trabalho reativo, manutenção da ideologia de classes,
incapacidade crítica etc.).

13.2. O princípio da realidade

A partir desta revisão da sublimação, um outro conceito freudiano


precisa ser retomado: o princípio da realidade.
Como vimos, em Freud, as pulsões sexuais, movidas pelo princípio
do prazer, trantformam-se evolutivamente, de energia livre em “ energia
ligada” ; ou seja, as pulsões passam, gradativamente, através da gênese do
Ego, a serem reguladas por outro princípio — o da realidade. Passam do
sistema inconsciente, dominado pelo processo prim ário, para o sistema
pré-consciente-consciente, orientado pelo processo secundário. Assim, as
pulsões sexuais buscarão sua satisfação, ainda pelo prin cípio do prazer.
Mas não de forma auto-erótica ou alucinatória, através de fantasias, e
sim no contato com a realidade exterior. Para isto, toma outros cami­
nhos que não a gratificação direta, como o adiamento da gratificação» em
função das condições impostas pelo meio exterior, ou a frustração e a
condenação das pulsões anti-sociais. O adiamento do resultado desejado
não é um processo passivo, mas impõe a transformação apropriada da reali­
dade, no sentido do princípio do prazer. Esta é uma atividade egóica que
envolve fatores como pensamento, razão, m em ória, ação social etc.
As pulsões egóicas de conservação são as primeiras, historicamente,
a se regularem pelo princípio da realidade. As pulsões sexuais defron­
tam-se com este princípio mais tarde, no desenvolvimento ontogenético. Na
verdade, nunca se regulam totalm ente pelo mesmo, m antendo, sempre, uma
atividade de fantasia realizadora do prazer.
A questão que se coloca, prim eiram ente, é: de onde o Ego retira
energia para o princípio da realidade? Do exterior não pode ser, pois a
única energia de que o organismo dispõe é a das pulsões do Id. Logo, esta

114
energia do princípio da realidade será derivada secundariamente das pulsões
sexuais, que se voltarão contra a mesma, de uma forma dessexualizada.
Mas este é o processo da formação reativa. Segundo Reich. ele levará,
inevitavelmente, à estase da energia libidinal. Assim, a energia que será
efetivamente empregada na transformação social pelo princípio egóico da
realidade, entrará nas características descritas do desempenho reativo, sem
transformação efetiva, com uma baixa na capacidade geral, devido a um
sentim ento de impotência etc.
O adiamento da realização das pulsões sexuais, im posto pela repres­
são sexual vigente na moral social burguesa autoritária, é fator neurotizante,
enquanto formação reativa. Reich não discute a existência de um princípio
auto-regulador da realidade; mas este deve formar par com o princípio
do prazer - com o proposto pelo próprio Frcud - e não submetê-lo à
realidade, entendida com o a moral dominadora existente na sociedade
- com o decorre do caminho adotado pelos psicanalistas, seguindo a idéia
da condenação ou repressão. O próprio Freud propõe ambas as alternati­
vas: de acordo com o princípio da realidade, ou o Ego adia e desvia a
satisfação direta das pulsões, ou, consciente ou pré-conscientemente,
reprime-as pela atividade da razão.
Estabelece-se, desta forma, uma oposição entre Natureza e Civili­
zação, com o se uma só se realizasse com certo prejuízo da outra. A
própria Ciência, com o produto do trabalho humano, pode acabar se sub­
metendo ãs exigências da Civilização. Para Reich, foi esse o destino final
da Psicanálise: as pressões sociais contra a revolução sexual - consequência
natural da teoria da libido - levaram os psicanalistas à crescente des-
xualização da energia sexual, adotando propostas teóricas que possibilitavam
a conciliação entre libido e moral sexual repressiva.
Para Reich, o princípio da realidade está diretamente ligado ao que
chama de "natureza social do hom em ” . Ou seja, com sua economia sexual
equilibrada — que supõe a realização dos impulsos genitais - , o homem
será capaz, por si só, de inibir seus impulsos anti-sociais, que são as pulsões
pré-genitais, sem necessidade de repressão. Isto porque estas pulsões perdem
sua prevalência com a realização genital. Podem, então, submeter-se ao
princípio da realidade, gratificando-se satisfatoriamente, quer pela su-
blimação, quer pelos jogos sexuais integrados ã relação sexual genital. Este
princípio da realidade implica na ação social crítica em favor da liberação
sexual e m anutenção de uma sociedade não repressora, onde seja possível
a auto-regulação do próprio grupo social. Assim, desenvolve-se a Civilização
em com plem entariedade com a Natureza Humana, sem prejuízo de parte
a parte. A energia sexual flui livremente entre o trabalho e a relação sexual,
predominando a capacidade de amar e o sentimento de potência.

115
13.3. A organização social e o inconsciente

Reich destaca que o inconsciente, para Freud, não é uma entidade


metafísica, mas um produto da relação do indivíduo com a sociedade.
0 homem possui, ao nascer, duas pulsôes básicas: a de autoconser*
vação (fom e-nutrição) e a sexual. Todas as demais são derivativas secundá­
rias destas. A pulsão sexual apóia-sc. de alguma form a, sobre a de auto-
conservação.
Reich tenta relacionar esta últim a afirmação com a tese semelhante
de M arx, segundo a qual a necessidade de alimentar e o modo de produção
adotado para satisfazé-la são a base infraestrutural de toda a formação da
superestrutura social, inclusive da mora) reguladora da satisfação sexual.
A relação das pulsôes sexuais com esta superestrutura social pode
ou não envolver contradições, segundo a forma de organização da socie­
dade. O que vemos na sociedade capitalista é a existência de uma superes­
trutura mora! inibidora dos processos sexuais naturais. Desta oposição,
veiculada, desde o nascimento, por uma educação repressora social - con­
centrada, já de in ício, na célula fam iliar, que reproduz a moral social —,
nasce a necessidade, no indivíduo, de impedir a própria realização sexual.
Este im pedim ento é tanto maior no bebê, na medida em que seu Ego é
fraco e está ainda em formação. A o nível psicológico» tal impedimento
constitui-se no processo denominado, por Freud, de recalcamento origi­
nário ou primário (Urverdrangung). Este processo torna-se possível por
um sistema de “ pára-excitações" (em alemão, Reizschutz, que, literal­
m ente, significa proteção contra excitação). O mecanismo do recalcamento
originário seria, basicamente, o de contra-investimento, ou seja, a utilização
de uma energia pulsional que se liga a uma representação, uma situação, um
com portam ento m otor etc., investida contra si própria, de forma a impedir
o acesso à consciência de tal representação ou m otilidade. Desta forma,
ocorre um bloqueio à excitação e à sua resposta (pára-excitação), fixando
a energia ao seu objeto, porém, sem acesso à consciência. Os primeiros
contra-investimentos resultantes das pára-excitações constituem o recalca­
m ento originário e, portanto, a origem do inconsciente.
Segundo Reich, a ligação deste processo, que se opera nas pulsôes
sexuais, com as pulsôes de autoconservação é evidente: o recalcamento origi­
nário serve à função autopreservadora de im pedir as sensações ou excitações
desagradáveis, criadas pela repressão do meio social à pulsão (pára-excitações
servindo ao princípio do prazer).
Para Freud, todo o recalcamento posterior, o recalcamento propria­
mente dito, dá-se por duas forças de mesmo sentido: uma pressão do meio

116
exterior sobre o conteúdo a recalcar (repulsão da consciência), e uma
atração exercida pelos núcleos inconscientes antes constituídos (como resul­
tado do recalcamento prim ário).

Partindo das formulações freudianas sobre recalcamento primário,


Reich busca deixar sempre claro que a formação do inconsciente deve*se à
repressão social das pulsões sexuais. De outro lado, vê uma distinção básica
no mecanismo energético das duas pulsões. que explica por que as pulsões
sexuais movem a força produtiva do homem e do seu psiquismo. enquanto
as pulsões de conservação constituem, apenas, a base da necessidade sobre a
qual se assentam a ideologia e o modo de produção, não desempenhando
nenhum papel im ediato na formação do psiquismo: a necessidade alimentar
corresponde a uma diminuição da tensão interna pelo acúmulo de energia, a
necessidade sexual corresponde a uma diminuição da tensão pela descarga
da energia (ver fórm ula tensão-carga-relaxamento, à p. 102).

Assim, a energia sexual é o agente organizador do psiquismo, e o seu


recalcamento é responsável pela origem do Inconsciente. Outra diferença
básica entre a pulsão sexual e a de conservação, é que esta não pode ser
“ recalcada", pois exige satisfação direta para a sobrevivência do organismo;
já a pulsão sexual é m uito mais móvel, permitindo adiamentos ou desvios
em seu trajeto, até a satisfação.

P ortanto, as pulsões sexuais, de um lado, e os sistemas sociais, de


outro, são os responsáveis pela formação do conjunto psíquico. Porém,
assim como a superestrutura social não foi sempre como a conhecemos,
comportando uma gênese dialética, da mesma forma, os processos psí­
quicos não com portaram sempre os mesmos conteúdos hoje conhecidos.
Esta compreensão coloca em cheque, por um lado, conceitos fundamen­
tais como o com plexo de Édipo - fundado que está em uma superestru­
tura social específica, organizada sobre a família compulsória e o casa*
mento monogámico, de que deriva a situação triangular. De outro lado, a
perspectiva de uma gênese do “ modo de produção" psíquico nos per*
mite avaliar as origens históricas da neurose (o nascimento da moral
sexual autoritária que provê, através do recalcamento e das formações rea­
tivas, a energia sexual necessária para reativação das fixações pré-geni-
tais) e antever mudanças sociais que viriam a eliminar suas fontes, psico-
profilaticam ente.

A análise das origens da neurose coloca em questão as origens do


complexo de É dip o, que assume, para Freud, papel central na estrutura­
ção psíquica, bem como as origens da família triangular que está em
sua base.

117
13.4. A organização social e o complexo de Edipo

Em contato com o materialismo dialético marxista, Reich localiza


a função da Psicanálise: Marx vê o fenômeno material como determinante
da ideologia social. Porém, não é objeto da Economia Política, mas da
Psicologia, descobrir como a infraestrutura econômica se infiltra no
sistema psíquico, de tal forma que, em seu grupo social, o indivíduo repro-
duza, com seu comportamento, a ideologia da classe dominante.
A determinação social do inconsciente descrita acima vem. justa­
mente. estabelecer esta relação. O estudo comparativo da Psicanálise e do
Marxismo mostra o acordo de seu modelo teórico com os princípios da
dialética materialista. Por exemplo, o desenvolvimento do sintoma neuró­
tico é dialético, pois é dado pela contradição pulsão-recalcamento, que é
superada pelo - e simultaneamente contida no - sintoma neurótico; a libido
narcísica e a libido objetai seguem o princípio dialético da identidade dos
contrários etc. •
No entanto, o único princípio que parece fixo e imutável, fugindo
às leis da dialética, é o complexo de Edipo. Isto parece contrário a toda
a explicação dialética dos processos mentais. Nessa linha de pensamento,
ou o Édipo é uma forma a-histórica, imutável na natureza humana, ou a
estrutura familiar que constitui a base triangular do complexo é que
permanece imutável. A primeira hipótese contradiz a perspectiva dialética
dos fatos psíquicos; a segunda contradiz a dialética dos fatos sociais.
A solução deste impasse aparente está na análise da sociedade em
que Freud se baseou para a postulação da situação triangular como base
da vida psíquica. De fato, a família assim estruturada compõe a base da
sociedade patriarcal, onde predominam os direitos da propriedade privada,
mantidos através do casamento monogâmico. No entanto, na sociedade
matriarcal a situação é bem outra. Reich analisa “A origem da família",
de Engels, e o estudo etnológico de um povo primitivo, habitante das ilhas
Trobriand, a noroeste da Melanésia, realizado por Bromislaw Malinovski.
Estas análises ratificaram a conclusão de que a estruturação familiar cons­
titui realmente a superestrutura ideológica de uma infraestrutura econômica,
submetendo as pulsões sexuais a um modo de produção específico, vincula­
do à satisfação das pulsões de autoconservação (Reich, s/d).

* Não nos alongaremos nesta comparação. Remetemos o leitor interessado ao


livro Materialismo Dialético e Psicanálise (Reich, 1977).

118
Os trobriandeses constituem, inicialmente, uma sociedade onde o
modo de produção é comunista (comunismo prim itivo), onde as necessida­
des alimentares são supridas por um sistema de trocas e organização do
trabalho. O sistema social é constituído por clãs e subclãs, a partir da
m ulher, cujo pape! na gestação dos filhos é reconhecido. A participação
do homem na geração de filhos não é compreendida, e o “ pai” é entendido
como um amigo do clã. Não há situação triangular, donde as pulsões
sexuais não se organizam em torno do complexo de Édipo. A moral sexual
é liberal desde a infância, não havendo repressão social às relações sexuais
adolescentes. Não se valoriza a virgindade, ou a castidade, ou a mono-
gamia. Em contrapartida, Reich não encontra, na descrição de Malinovski.
sinais de perversões ou neuroses.
Com a evolução da tecnologia de produção e da necessidade de
trocas com outras tribos, surge a necessidade de acúmulo de bens para
troca, o que se torna possível dentro de um clã.
A origem do casamento monogâmico é bastante complexa e foge a
nossos objetivos neste livro. Porém, cabe estabelecer a relação entre o
acúmulo de bens de troca e a origem do dote m atrimonial. O casamento
prim itivo é criado a partir da necessidade de troca de produtos com outros
clãs, com uma espécie de contrato representado pelo dote matrimonial
da m ulher. A necessidade de acumulação dessas primitivas mercadorias
(bens de uso transformados cm bens de troca) leva à exigência de mono-
gamia, que possibilita a concentração da riqueza. D a í deriva a transição
da sociedade m atriarcal, ou de herança m atrilinear, para a patriarcal. A
propriedade privada de bens de troca impõe uma ordem nos laços sexuais
e, “grosso m o d o ” , dá origem aos primórdios da repressão sexual, exi­
gindo a monogamia (que cria o adultério) e a virgindade da mulher até o
casamento (que dá origem á prostituição para satisfazer o homem).
Este processo é, evidentemente, extremamente intrincado, mas
importa-nos as conclusões tiradas por Reich a partir destes estudos:
1. A organização da vida sexual na sociedade é determinada por
relações econômicas, que tém a ver com as pulsões de conservação ou
necessidades alimentares.
2. O complexo de Édipo não é inerente à natureza humana, mas,
sim, resultado de uma determ inada organização econômica, com sua con-
seqüente organização sexual: casamento compulsório monogâmico e proibi­
ção do incesto.
3. A origem da repressão sexual remonta á passagem da sociedade
matriarcal para a patriarcal, com o surgimento da mercadoria como bem de
troca e da propriedade privada, substituindo historicamente o comunismo
prim itivo pelos prim órdios do capitalismo.

119
4. A regulação moral da vida sexual, dada a economia específica da
sociedade burguesa, é condição para a manutenção deste modo de produção.
Portanto, o recalcamento das pulsões sexuais é necessário, não por estes
impulsos serem anti-sociais, mas por serem contrários à organização espe­
cífica do modo de produção capitalista.
5. A família monogâmica compulsória constitui o núcleo básico de
propagação da ideologia da classe dominante, através da educação sexual
repressiva. O complexo de Êdipo origina-se aí. com base na repressão das
pulsões sexuais, mediante uma condição superestrutural específica do modo
de produção capitalista. Este estabelece um modo de satisfação das pulsões
sexuais, pela forma de estruturação da família.
6. A inibição precoce das pulsões sexuais, submetidas, portanto, a um
modo de satisfação das pulsões de conservação, modifica a estrutura psí­
quica, enraizando no indivíduo a ideologia conservadora. O que permitirá,
por sua vez, que ele constitua nova família, quando adulto, perpetuando
esta ideologia.
7. Do ponto de vista psíquico, o recalcamento das pulsões sexuais é
possível através de formações reativas, que impedem a plena descarga sexual.
Cria-se uma estase da energia libidinal, que irá ativar os impulsos pré-geni-
tais, dando origem a perversões e atos criminosos — quando não inibidas
e a sintomas neuróticos, ou à formação do caráter neurótico, aparente­
mente adaptado ao social - quando inibidas.
8. A Psicanálise tem por efeito tornar as pulsões - recalcadas no
inconsciente — conscientes e atuantes, restabelecendo o pleno equilíbrio
econômico-sexual e a plena potência orgástica, bem como restabelecendo
a capacidade criativa de trabalho e ação social, através da sublimação das
pulsões pré-genitais. No entanto, o livre fluxo da energia sexual implicará
um padrão moral conflitante com a repressão social da sexualidade, que
mantém o modo de produção capitalista.
9. A Civilização não exige o recalcamento das pulsões sexuais para
seu desenvolvimento. Pelo contrário, a evolução cultural torna-se possível
pela capacidade de trabalho não-reativo, resultante do livre fluir energético.
Aqui, Civilização não é entendida como sinônimo de Sociedade Capitalista.
10. Um trabalho no campo da psicoprofüaxia das neuroses é neces­
sário e possível, através da Revolução Sexual, eliminando o casamento
compulsório e monogâmico; possibilitando à juventude uma evolução sexual
libertadora; criando infra-estrutura social para uma relação sexual livre
de tensões, ou seja, propiciando espaços adequados acessíveis para a
prática sexual, tornando disponíveis métodos anticoncepcionais seguros
e eliminando a proibição do aborto. Porém, a mudança da moral sexual

120
está diretamente condicionada à mudança do modo de produção capita*
lista para o comunista, pela abolição da economia mercantil.
Assim. Reich antevê a possibilidade da existência de um Novo
H om em , obrigando-nos a rever os parâmetros de nossa compreensão da
personalidade humana.

I? 1
14
Referências bibliográficas

Freud. S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio
de Janeiro. Imago. 1974.
Reich. W. Analisisde! Caracter. 5?ed. Buenos Aires, Paidós, 1975a.
Reich. W. >4 Função do Orgasmo. São Paulo, Brasiliense, 1975b.
Reich, W. El Caracter G enitaly Caracter Neurotíco. Buenos Aires, Paidós, 1976.
Reich. W. Matehalismo Dialético e Psicanálise. 3?cd. Lisboa, Presença, 1977.
Reich, W. A Irrupção da Moral Sexual Repressiva. São Paulo, Martins Fontes, $/d.

122
PARTE
TEORIA DA PERSONALIDADE EM
CARL GUSTAV JUNG
Lúcia Maria A zevedo Magalhães
15
Biografia

Carl Gustav Jung nasceu em 26-07-1875, na Turgóvia, Suíça. Aos


4 anos, sua fam ília mudou-se para Klein-Huningen, nos arredores de
Basiléia, onde Jung fez todos os seus estudos.
Desde m uito cedo, Jung interessou-se por Ciências Naturais, Filosofia
e Arqueologia. Sentiu também, desde criança, uma profunda inquietação
religiosa, que não podia ser compartilhada com seu pai, pastor luterano
que, a seus olhos, prendia-se à fé e aos dogmas. Assim, com uma grande
quantidade de interesses e anseios, a escolha de uma profissão não foi fácil.
Em suas Memórias (Jung, 1981), conta que o tentavam os estudos de
História, Filosofia e Arqueologia. Porém, seus recursos só permitiam que
estudasse em Basiléia. Desta forma acabou se decidindo por medicina, pois
pensava que podería se especializar, futuramente, em direções que melhor
o satisfizessem.
Ao se formar, estava ainda indeciso sobre qual especialidade seguir.
Aparecera uma boa oportunidade de ser assistente de um de seus profes­
sores. Porém, ao estudar para o exame final, deparou-se com o tratado de
psiquiatria de K rafft-E bing. Ao ler o prefácio encontrou idéias que o
tocaram profundamente, e compreendeu que devería escolher Psiquiatria:
“ Somente nela poderíam confluir os dois rios do meu interesse, cavando seu
leito num único percurso. Lá estava o campo comum da experiência dos
dados biológicos e dos dados espirituais, que até então eu buscara inutil­
mente” (p. 104). F oi, portanto, a partir do seu interesse pelo homem,
tanto em sua dimensão biológica quanto espiritual, que Jung chegou à
Psicologia.
Em 1900, Jung concluiu o curso médico e deixou Basiléia para ocupar
o cargo de segundo assistente no Hospital Psiquiátrico Burgholzli. em

125
Zurique. Este hospital vivia então um período de intensa atividade cientí­
fica, sob a direção de Eugen Bleuler. Blculer tentava proporcionar à Psi­
quiatria uma base psicológica, não se contentando com a simples descrição
dos sintomas das doenças mentais. Recorria-se, na época, à teoria do associa-
cionismo, que explica a vida psíquica por combinação de elementos mentais
segundo leis de contigüidade, semelhança etc. Na base dessa teoria, eram
feitas experiências de associação verbal, que permitiram a Bleuler. com seus
colaboradores (entre os quais Jung) descobrir que o distúrbio comum às
diversas formas da então chamada demência precoce é a dissociação psí­
quica, propondo o termo esquizofrenia.
Nestas experiências de associação, o experimentador preparava uma
lista de palavras isoladas (palavras indutoras) e solicitava ao sujeito que
respondesse a cada uma com uma única palavra, a primeira que lhe ocor­
resse (palavra induzida), medindo-se o tempo de reação deconido entre a
palavra indutora e a induzida.
Jung, porém, desde o início da sua carreira psiquiátrica havia se
interessado pelos estudos de Freud. Já havia lido ^ Interpretação dos
Sonhos em 1900.
Ao fazer essas experiências, Jung começou a se interessar pelos vários
incidentes que ocorriam; tempos de reação muito longos a palavras, reações
do sujeito tais como rir, corar, responder com uma frase. A partir destas
observações, levantou a hipótese de que as palavras que despertam essas
reações deveríam estar atingindo algum conteúdo emocional da pessoa, ou
áreas de bloqueio afetivo, sem que o sujeito tivesse consciência do que se
passava, ou qual o conteúdo que havia sido despertado. Jung viu que suas
descobertas estavam em concordância com as de Freud sobre o inconsciente
e os mecanismos de repressão. Foi a partir disso que se aproximou da
Psicanálise.
A partir destas descobertas, os experimentos de associação transfor­
maram-se, em suas mãos, em um método de exploração do inconsciente.
Jung começa a observar quais as palavras indutoras que despertavam reações
emocionais, tentando a partir destas descobrir qual o conteúdo emocional
inconsciente que estava sendo atingido. Formulou o termo “complexo
psíquico” para designar estes conteúdos, definindo-os como um “agrupa­
mento de conteúdos psíquicos carregados de afetividade” .
O complexo originar-se-ia de uma situação psíquica incompatível
com a atitude e a atmosfera consciente habituais, começando com um
núcleo possuidor de intensa carga afetiva que, secundariamente, vai estabe­
lecendo associações com outros elementos afins, formando uma verdadeira
“psique parcelada'1.

126
Todos estes conceitos estavam em concordância com a teoria de
Freud do inconsciente reprimido. Jung interessou-se, particularmente, pelo
grau relativo de autonomia do complexo, com sua capacidade de irromper
na consciência, provocando atos falhos, perturbações na memória, distra­
ções, ou sintomas.
Em 1906, Jung publica o Estudo sobre Associações, que envia a
Freud, marcando o início de uma correspondência entre os dois. Prosse­
guindo seus trabalhos, publica, em 1 907,/I Psicologia da Demência Precoce
e, cm 1908, O Conteúdo das Psicoses. Nestes estudos, conclui que, na
demência precoce, não há sintoma desprovido de base psicológica ou
significação.
Em 1907, Jung entra em contato pessoal com Freud, visitando-o em
Viena. Deste contato nasceu uma estreita colaboração, que durou de 1907
a 1912. Freud via em Jung um sucessor, alguém que poderia continuar a
sua obra. E Jung via em Freud como que um pai espiritual, ou um mestre.
Por isso, conta-nos em suas memórias que, apesar das reservas que fazia à
teoria sexual de Freud, e de sentir que a formação e as “atitudes mentais’’
de ambos eram muito diferentes, não se animava a expor seus pensamentos
e confrontá-los dirctamentc com ele.
Em 1909, por ocasião do 209 aniversário da Clark Univcrsity. ambos
foram convidados para dar conferências e viajaram juntos para os EUA.
Ali Freud pronunciou as famosas “Cinco Conferências sobre Psicanálise”
e Jung apresentou seus trabalhos sobre associações verbais. Durante essa
viagem, Jung teve um sonho que foi particularmente importante para o
desenvolvimento posterior de sua teoria e para o rompimento com Freud.
O sonho era o seguinte: “Encontrava-se em uma casa de dois andares,
que era a sua casa. Inicialmente, está no 29 andar, decorado com quadros
e móveis do século XVIII. Descendo as escadas, chega ao andar térreo, cuja
atmosfera é medieval, datando do século XV ou XVI. Ao explorá-lo, en­
contra uma porta e, ao abri-la, encontra uma escada que conduz à adega.
Ali encontra uma sala antiga, com teto em abóbada e piso de pedra, remon­
tando à época romana. No chão, encontra uma argola de feno; puxando-a,
desloca uma pedra sob a qual encontra outra escada. Descendo, vai dar a
uma gruta, em cujo solo encontra restos de cerâmica, ossos espalhados e
dois crânios humanos” .
Jung interpretou esse sonho como um diagrama estrutural da psique.
0 segundo andar representaria sua situação consciente, sendo que o mobi­
liário condizia bem com a sua formação cultural, ligada aos autores do
século XVIII e início do século XIX. Os andares inferiores indicavam
épocas anteriores e níveis de consciência ultrapassados. Quanto mais descia.

127
mais se aprofundava em mundos antigos, até chegar a uma espécie de
caverna pré-histórica, isto é, o mundo do homem primitivo que existia
nele, e que não podia ser atingido pela consciência.
Por causa deste sonho, pensou pela primeira vez na existência de um
a priori coletivo da psique pessoal. Desenvolveu c consolidou esta idéia,
mais tarde, na teoria dos arquétipos.
Este sonho também despertou seu antigo interesse pela Arqueologia,
pela Mitologia e pela Filosofia. De volta a Zurique, dedicou-se a estudar um
amplo material m itológico e gnóstico. Queria investigar os sím bolos que os
homens vêm usando com objetivos religiosos ou mágicos. Quando fazia este
trabalho, deparou-se com um estudo de caso publicado por Floum oy, que
trazia a descrição de fantasias de uma jovem americana, Miss Miller. Jung
impressionou-se com o caráter m itológico dessas fantasias. Tom ou então
este material e utilizando-se de paralelos m itológicos, elaborou temas
significantes. Deste trabalho, nasceu seu livro M etam orfoses e S ím bolos
da Libido, publicado em 1912. Este livro marcou a sua ruptura com Freud,
que já se esboçava. A í apresentava pontos de vista profundamente diver­
gentes, principalmente quanto à energia psíquica e ao papel da sexualidade
na Psicologia.
A partir desse m om ento, começa para Jung uma fase difícil. Ao
romper com Freud e com o m ovim ento psicanalítico, encontra-se, em certo
sentido, órfão, tendo que se decidir a seguir sozinho seu próprio caminho.
Para isso, deveria tentar alcançar as raízes do seu envolvim ento pessoal
com suas pesquisas. Sente-se perdido, e toma então a decisão de abando­
nar-se, conscientem ente, ao impulso do inconsciente.
Neste processo, surgiram lembranças de sua infância, acompanhadas
de certa emoção. Eram lembranças de um período em que costumava fazer
brincadeiras de construção. Decide seguir essas lembranças, atualizá-las.
Depois de vencer grandes resistências, começa a colecionar pedras e a brincar
com elas, com o quando criança. Gradualmente, sua imaginação vai se tor­
nando mais nítida e mais rica. Aos poucos, cessa de relacionar-se à brinca­
deira. Jung utiliza escrita, pintura e escultura para clarificar os produtos de
suas vivências interiores, sonhos e fantasias.
Neste processo de confronto com o inconsciente, a atitude de manter
a consciência sempre vigilante, firmemente enraizada na realidade externa,
no seu trabalho e na família, deu a Jung o apoio necessário para deixar os
conteúdos inconscientes emergirem. Vivenciando com tal intensidade este
processo interno, assaltado por fantasias e sonhos impressionantes, Jung
compreendeu que suas buscas científicas eram a única possibilidade de sair
do caos de imagens. Procurou, então, transformar cada imagem, cada

128
conteúdo, compreendê-los na medida do possível e, principalmente,
realizá-los na vida.
Pode-se dizer que toda sua obra foi o resultado de elaborar c com­
preender as coisas que experimentava, dentro da ótica científica: “Todos os
meus trabalhos, tudo o que criei no plano do espírito provém das fantasias
c dos sonhos iniciais. Isso com eçou em 1912, há cerca de cinquenta anos.
Tudo o que fiz posteriormente em minha vida está contido nestas fantasias
preliminares, ainda que sob a forma de em oções ou de imagens” (Jung,
1981, p. 170).
Este período de ativação e confronto com o inconsciente durou até
1917. Jung, então, começava a tomar uma posição objetiva com relação
às suas imagens e refletir sobre elas. O primeiro problema que se propunha
era: ” 0 que fazer com o inconsciente?” Em resposta, nasceram vários
ensaios e conferências, dos quais se destaca “A Estrutura do Inconsciente” ,
publicado em 1916, em Paris, e posteriormente ampliado num livro de
fundamental importância para a compreensão da sua teoria psicológica,
O Eu e o Inconsciente, publicado em 1928.
Paralelamente, dedica-se aos trabalhos preparatórios do seu livro
Tipos Psicológicos (1 9 2 0 ). Na gênese desta obra, teve papel importante
uma tentativa de explicar as diferenças entre sua psicologia, e a de Freud
e de Adler, a partir das diferenças nas atitudes básicas de cada um para com
os objetos, os outros, e consigo mesmo.
À medida em que Jung vai se aprofundando em suas vivências inte­
riores e tenta compreendê-las, começa a buscar premissas, raízes históricas
deste processo, analogias em outras épocas e outras culturas. Começava
já a perceber que o inconsciente é um processo e que a relação do Ego
consciente com os conteúdos inconscientes desencadeia uma transforma­
ção, cuja meta é a realização da personalidade total. No entanto, faltava-lhe
uma base histórica para estas idéias, pois se este desenvolvimento é algo
inerente à natureza humana, deveria encontrar um testemunho histórico
que o confirmasse.
Em 1928, seu amigo Richard Wilhelm, sinólogo, envia-lhe um tratado
alquimista chinês de origem taoísta, ”0 Segredo da Flor de Ouro” , pedin­
do-lhe para escrever um comentário (publicado em 1929). Este livro for­
neceu uma confirmação inesperada de suas reflexões, e permitiu-lhe apro­
ximar-se da alquimia. Assim, seu interesse por esta antiga ciência, consi­
derada apenas uma precursora obscura da Química, nasceu da necessidade
de relacionar o que vivenciava internamente a uma fonte paralela. Ao apro­
fundar seu estudo dos antigos filósofos alquimistas, começa a encontrar
cada vez mais analogia entre as suas percepções e aquelas imagens. Foi

129
uma investigação lenta e árdua, que o ocupou por mais de dez anos, da qual
surgiu o trabalho Psicologia e A Iquimia, publicado em 1944.
Desde m uito cedo, as preocupações de Jung relacionavam-se com a
concepção do mundo e com o confronto da Psicologia com o problema
religioso. Jung concebia a religiosidade como uma função psíquica natural
e, como tal. objeto de interesse da Psicologia. Discordando de Freud. Jung
via na religiosidade um impulso vital e tão natural quanto a sexualidade, e
não um fru to da repressão e da sublimação do instinto. Ele próprio, um
homem religioso, tentou abordar cientificamente o problema psico­
lógico da experiência religiosa. A este respeito, escreveu o livro Psicologia
e Religião.
Em suas pesquisas sobre alquimia, Jung já encontrara uma base e um
paralelo para suas idéias sobre o processo de desenvolvimento e transforma*
ção da personalidade. Prosseguindo seus estudos, procurou encontrar
também uma correspondência ao processo que ocorria especificamente
durante a psicoterapia. Este processo centra-se no problema da transferên­
cia. Na alquimia, Jung encontra uma analogia na representação de con-
ju nctio (união) e desenvolveu-a no livro Psicologia da Transferência
(1946).
Aprofundando e ampliando ainda mais suas pesquisas sobre o pro­
blema religioso, escreve A io n (1951), em que retoma o problema de Cristo
e sua simbologia; e Resposta a Jó (1952), em que reflete sobre o lado claro
e o lado escuro da imagem de Deus.
Em 1955, quando tinha 80 anos, publica M ysterium Conjunctionis,
que constitui a conclusão do confronto da alquimia com a Psicologia do
inconsciente. Sobre este livro, Jung (1981, p. 194) escreveu: “ Só com o
Mysterium Conjunctionis minha psicologia fo i definitivamente colocada
na realidade e estabelecida em seu conjunto, graças aos seus fundamentos
históricos. (...) No momento em que atingi o fundo sólido, toquei ao mesmo
tempo o lim ite extremo daquilo que era, para m im , cientificamente atin­
gível: o transcendente, a essência do arquétipo em si mesmo, a propósito
do qual não se podería form ular mais nada de cie ntífico” .
Jung permaneceu ativo até quase a sua m orte, escrevendo ainda
sobre os acontecimentos contemporâneos, interessando-se pelo fenômeno
dos discos voadores, pelos recentes desenvolvimentos da Física, e contri­
buindo ainda para a compreensão da esquizofrenia. Seu últim o livro é a
autobiografia, onde se percebe com clareza como sua vida e sua obra são
inseparáveis.
Em 1961, Jung adoeceu, e morreu em 6 de junho, quando estava
com quase 86 anos, legando-nos uma obra vastíssima, que abrange 18
volumes na edição inglesa. Sobre seu trabalho, ele escreveu em suas

130
m em ó rias: “ M inha vida, impregnada, tecida, unificada por uma obra, foi
cen trad a num objetivo: o de penetrar no segredo da personalidade. Tudo
se exp lica a partir desse ponto central, e toda a minha obra se relaciona
c o m esse tem a” .

131
16
A teoria psicológica de Jung:
principais conceitos

Jung concebia a personalidade como sinônimo da dimensão psíquica


do ser humano, em sua totalidade. Para ele, a Psicologia é uma ciência que
tem como objeto a psique, a totalidade da estrutura anímica do ser humano
englobando, portanto, tanto fenômenos conscientes quanto inconscientes.
Jung começou fazendo experimentos da associação, continuou com
a prática da Psicanálise e, posteriormente, com sua própria auto-análise. Na
base dessas experiências, desenvolveu generalizações sobre as estruturas
e processos psíquicos.
Um dos pontos fundamentais de sua obra, e que o levou a novo
enfoque na Psicologia, foi a noção de que, assim como os conteúdos cons­
cientes podem mergulhar no inconsciente, há conteúdos novos, que jamais
foram conscientes, que podem surgir do inconsciente. Assim, Jung for­
mulou a idéia de que o inconsciente não é mero depositário de experiên­
cias passadas, desejos ou instintos reprimidos. Também é criativo, no
sentido de que pode conter as sementes de futuras situações psíquicas e
idéias novas. Para Jung, o inconsciente é uma parte tão vital e tão real
da vida de uma pessoa quanto a consciência e o mundo do Ego.
Um dos exemplos desta capacidade do inconsciente é que em nossa
vida diária, os dilemas e conflitos com que nos defrontamos, muitas vezes,
resolvem-se a partir de inspirações surpreendentes, que aparecem prove­
nientes do inconsciente. Muitos artistas, filósofos e cientistas devem algu­
mas de suas idéias a este tipo de inspiração, ou a sonhos ou visões.
Ao se ocupar dos processos inconscientes que ocorriam em seu
íntimo, assim como no de seus pacientes, Jung percebeu que o incons­
ciente se transforma e provoca transformações. Esta transformação não
é aleatória. A despeito das diferenças individuais, segue uma determinada

132
direção que. aos poucos, foi se tornando clara para ele. Esta transforma*
çâo, este desenvolvimento psíquico, é um crescimento em direção ao
“ si-mcsmo" (scl/Y que Jung define como a expressão da totalidade
psíquica (consciente e inconsciente). É. ao mesmo tempo, o centro desta,
assim como o Ego é o centro da consciência. Este processo de desenvolvi­
mento e totalização da personalidade foi chamado por Jung de “processo
de individuação".
Este conceito é a transposição, para a Psicologia, da idéia de que
“ todo scr tende a realizar o que nele existe em germe, a crescer, a comple*
tar-sc. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal.
Assim é para o homem, quanto ao corpo e quanto â psique” (Silveira,
1971).
0 hom em , porém , possui a consciência e, através dela, é capaz de
participar ativamente de seu desenvolvimento. Deste modo, a partir do
confronto e do relacionamento entre consciente e inconsciente, vai
surgindo um novo amadurecimento e uma síntese cada vez maior.
O processo de individuação é o eixo de toda a Psicologia junguiana,
e é o ponto Ge referência para a melhor compreensão das suas conceituações.

16.1. Libido — energética psíquica

Um dos pontos fundamentais de discordância entre a Psicologia


analítica e a Psicanálise está na definição de libido. Foi no livro Metamor­
foses e Sím bolos da L ib id o que Jung apresentou seu conceito de libido.
Para ele, ela equivale à energia psíquica, entendida de modo amplo, e não
com significação em inentemente sexual, como para Freud?
Temos numerosos impulsos: de conquista, agressivos, eróticos,
fome etc. Todos são motivados por um tipo de manifestação de energia,
e o significado específico da sexualidade se dissiparia, se todos esses
diferentes impulsos e comportamentos fossem incluídos em sua definição.
A energia é a quantidade, ou carga, que pode manifestar-se através
da sexualidade ou de qualquer ou tro instinto. A libido é compreendida,
então, como a intensidade do processo psíquico, o valor energético que se
manifesta em qualquer área, como na da fome, do poder, do ódio, da
sexualidade, da religião etc., sem que se restrinja a uma pulsão específica.

Lembremos que estamos nos referindo a Freud em 1912, ano em que houve o
rompimento com Jung.

133
Jung concebe o psiquismo com o um sistema energético fechado,
possuidor de um potência) que permanece o mesmo durante toda a vida
do indivíduo. Isto advém do fato de considerar “psique” com o a totalidade
da estrutura psicológica do ser humano, a “área” onde se dão os fenô­
menos psíquicos, como que representando um espaço interno. A energia
deste espaço é a libido, que é então a energia dos processos vitais.
A lei da conservação de energia (potencial constante) só vale se
considerarmos consciente e inconsciente. Quando se rebaixa o nível
da consciência, o inconsciente se aviva correspondentemente, como por
exemplo na atividade onírica, ou nas fantasias, devaneios etc.
Quando a energia se dirige para a consciência e dali investe sobre
objetos externos, este movimento é chamado de progressão. Ao contrário,
quando a libido se afasta dos objetos externos e viví fica conteúdos incons­
cientes, isto é chamado de regressão. Para Jung, a psique está em constante
dinamismo, em constante movimento. Tanto o m ovim ento de progressão
quanto o de regressão são movimentos normais, que ocorrem continua­
mente. Somente em casos em que há uma fixação ou estagnação da libido
é que se tem uma condição patológica.
0 conceito de processo psíquico é fundamental para a compreensão
do modelo teórico de Jung. Todas as manifestações vitais são compre­
endidas como consequência do entrechoque de forças antagônicas, em
contínua tensão dinâmica. Desta tensão entre os opostos é que surge a
energia para as atividades humanas. Em inúmeros sistemas filosóficos e
religiosos, encontramos a mesma noção do princípio de opostos. Pode­
mos citar como exemplo os opostos de Yang e Yin, da filosofia chinesa,
que traduzem as polaridades macho e fêmea, dia e noite, calor e frio,
espírito e matéria etc.
Os conflitos que vivemos originam-se da colisão de duas pulsões, por
exem plo, dois deveres fundamentais, ou entre um dever e um desejo,
fidelidade para consigo mesmo ou fidelidade para com outro etc. Muitas
vezes, um dos pólos do conflito é inconsciente, e só podem os verificar
indiretamente a sua carga energética, ou seja, a sua intensidade.
Quanto maior é a tensão entre os pares de opostos, maior a energia
liberada. Sem oposição, não há manifestações energéticas. Os contrários
têm também uma função reguladora, expressa no fato de que tudo que é le­
vado a um extremo tende a transformar-se no seu contrário. Por exem plo, a
cólera levada a seu extremo é seguida de calma, a pessoa que leva uma
existência extremamente reprimida pode ter rompantes de liberação etc.
Assim, a regressão é um quadro oposto ao da progressão, e uma se trans­
forma na outra, se a libido não for bloqueada.

134
Desta form a, o im portante para nosso desenvolvimento é se a partir
do co nflito entre os opostos, estamos construindo novas sínteses que, por
sua vez, irão polarizar uma outra situação, e assim por diante. Deste ponto
de vista, o processo de individuaçâo é considerado um “ processo constante
de criação de novas sínteses, de integração progressiva de conteúdos
inconscientes carregados de energia, que leva a uma síntese continuamente
crescente entre consciente (com o Ego como centro) e inconsciente”
(Lacaz, 1978).
O m ovim ento de progressão surge da necessidade vital de adaptação
ao meio. Se, por alguma dificuldade da existência, este movimento em
direção aos objetos externos fica bloqueado ou impedido, a libido se detém.
Como conseqüência reativará conteúdos do mundo interno. Estes tanto
podem ser os conteúdos reprimidos, pulsões sexuais infantis, atitudes ou
desejos incompatíveis com a atitude moral consciente, quanto conteúdos
inconscientes que nunca haviam sido “ energetizados” o suficiente para
emergir. Estes conteúdos se apresentam à consciência sob forma de sím­
bolos, que são a “ linguagem” do inconsciente. É importante notar aqui
que, para Jung, a linguagem simbólica do inconsciente não é o resultado
do co nflito entre o desejo e a repressão, como para Freud, ou, “grosso
m odo” , uma representação disfarçada do desejo, mas sim a melhor repre­
sentação possível do inconsciente que se torna disponível para a consciência.
Os símbolos são multideterminados ç contém inúmeros significados, pos­
suindo, po rtanto, a capacidade de estimular a consciência a desenvolver
novos significados a partir deles.
A partir do confronto e da elaboração destes conteúdos que se
apresentam à consciência sob a forma simbólica, o Ego pode integrá-los,
removendo-se bloqueios e estagnações. Desta forma, as fases regressivas
conduzem não apenas à recuperação de possibilidades anteriores não
aproveitadas e elaboração de problemas anteriormente represados, mas
também a uma autêntica renovação, sendo os símbolos o veículo desta
renovação, verdadeiros transformadores de energia.

16.2. Estrutura psíquica

A partir da descoberta, no decorrer dos experimentos de associação,


de que existem fenômenos inconscientes que podem interferir em nossa
vida consciente, Jung foi aos poucos aprofundando seus conhecimen­
tos sobre a psique humana e sobre as relações entre o consciente e o
inconsciente.

135
Para Jung, então, a psique compreende tanto o campo da cons­
ciência quanto o inconsciente. No campo da consciência, temos o Ego
como centro, sendo que este é o sujeito de todos os atos pessoais da cons­
ciência. Qualquer conteúdo psíquico consciente deve estar cm relação com
o Ego. Esta conexão é o próprio critério da consciência, pois para que um
conteúdo seja conhecido ele deve ser representado para um sujeito. Desta
forma, o Ego não é equivalente ao campo da consciência, mas antes é o
seu ponto de referência.
O inconsciente é definido por Jung, portanto, pela falta de um
atributo, pela falta de consciência. Na medida em que o limite da cons­
ciência é o desconhecido, chamamos tudo aquilo que não conhecemos,
portanto não relacionado com o Ego, de inconsciente.
0 Ego, apesar de consciente por excelência, não é um fator simples.
É complexo, dotado, porém, de unidade bastante coesa para transmitir
impressão de continuidade e identidade consigo mesmo. É adquirido,
empiricamente falando, durante a vida do indivíduo. Apesar de Jung não
ter se detido muito sobre o Ego e como ele se desenvolve, interessando*
se mais pelos fenômenos inconscientes e seu relacionamento com o pro­
cesso de amadurecimento da personalidade, deixou algumas indicações
a este respeito.
Para ele, o Ego se estrutura a partir do insconsciente, diferencian­
do-se e sempre se modificando no decorrer da vida; jamais é um produto
acabado. Uma criança viria ao mundo num estado cm que não existe Ego.
A partir da colisão com o ambiente, do que Jung chamou “ fator somático",
definido como a totalidade dos estímulos endosomáticos (perceptíveis ou
subliminares), forma-se aos poucos um "sujeito", que a princípio é identifi­
cado com o corpo. Uma vez estabelecido como sujeito, continua a se desen­
volver a partir de colisões subsequentes com o mundo externo e o mundo
interno.
Dentro do campo da consciência, o Ego possui o que chamamos
vontade livre, não de um ponto de vista filosófico, mas antes psicológico,
do sentimento subjetivo de liberdade e livre escolha. Mas assim como
nossa liberdade se confronta com as exigências do mundo externo, também
é limitada pelos eventos do mundo interno subjetivo. Da mesma forma
que os eventos externos nos "acontecem", também o inconsciente age
sobre o Ego como uma oconência objetiva, diante da qual nossa vontade
pode fazer muito pouco. Podemos citar como exemplo os sonhos, fan­
tasias, idéias que nos "ocorrem", sentimentos que nos assaltam, ou mesmo
lapsos verbais e sintomas.
Como um fator consciente, o Ego podería ser descrito de forma
exaustiva, pelo menos em teoria. Porém, isto nos daria um quadro apenas

136
incompleto da personalidade consciente, pois todas as características des­
conhecidas ou inconscientes para o sujeito estariam faltando.
Assim, a personalidade como um fenômeno total não coincide com
o Ego. ou com a personalidade consciente. É uma entidade que tem de ser
distinguida destes.0 A esta personalidade total Jung chamou de self, ou
si-mesmo.
O estudo e a descrição do si-mesmo é intrinsecamente limitado. Por
um lado, não é possível fazer uma descrição geral do Ego, apenas uma
descrição form al, já que uma de suas principais características é a indivi­
dualidade. Isto significa que o resultado da combinação dos diversos ele­
mentos que compõem o Ego é sempre algo individual e único, compor­
tando diferentes graus de clareza, colorido emocional etc. Por outro lado,
uma descrição do inconsciente é impossível, uma vez que este é, por
definição, inconsciente. Somente temos acesso aos conteúdos incons­
cientes de maneira indireta, através das suas manifestações e representações
à consciência. Por isto, muitas das conceituações acerca dos fenômenos
inconscientes partiram da observação clínica de pessoas neuróticas ou
psicóticas. Nestes distúrbios, o inconsciente se manifesta de forma mais
direta e autônom a, fugindo ao controle da consciência, apresentando-se
muitas vezes de forma incompreensível a nossos olhos.
Foi Freud quem primeiro apagou a linha de demarcação, antes consi­
derada tão nítid a, entre a psique normal e a patológica, estendendo as suas
descobertas no campo patológico também às estruturas e processos da
psique “ norm al” .
Com o o Ego é o centro da consciência, é o sujeito de todas as adap­
tações do indivíduo ao meio. Sendo seu papel tão importante, não é de se
estranhar que por m uito tempo fosse considerado o centro da personalidade,
e a personalidade consciente a única existente. Por isto, as alterações
patológicas da vida mental eram vistas como algo inteiramente estranho
à personalidade normal.
A partir do final do século X IX , com o desenvolvimento da Psico­
logia, ficou provado empiricamente a existência de uma psique fora da
consciência. Com esta descoberta, a posição do Ego tomou-se relativiza ja.
Vale dizer, embora seja o centro da consciência, é questionável se realmente
é o centro da personalidade total.
Para Jung, o Ego, sendo apenas uma parte do self (todo), é subor­
dinado a este por definição.

* Estamos usando aqui o termo personalidade como Jung o utilizou, ou seja,


como sinônimo de dimensão psíquica do ser humano.

137
Do ponto de vista da psicologia da consciência, o inconsciente pode se
dividir em três grupos de conteúdos:
1. Conteúdos inconscientes, mas facilmente acessíveis à consciência.
Por um esforço de vontade, podemos nos lembrar de coisas, ou trazer à
consciência conteúdos que antes não estavam nos ocupando. Corresponde
ao pré-consciente de Freud.
2. Conteúdos inconscientes não acessíveis voluntariamente. A exis­
tência deste grupo é inferida a partir das irrupções espontâneas do incons­
ciente (por exemplo, em sonhos, lapsos ou sintomas).
3. Conteúdos inconscientes que não são capazes de se tornarem cons­
cientes. Este é um grupo hipotético, estabelecido a partir da existência do
segundo.
Do ponto de vista da psicologia da personalidade total (self), porém,
Jung estabelece uma outra divisão:
1. Uma psique extraconsciente cujos conteúdos são pessoais.
2. Uma psique extraconsciente cujos conteúdos são impessoais e
coletivos.
Este segundo grupo seria um substrato da psique, uma hipótese,
segundo Jung. “ baseada nos dados empíricos e na alta probabilidade de
que a similaridade geral dos processos psíquicos, em todos os indivíduos,
deve ser baseada em um princípio igualmente geral e impessoal, assim
como o instinto que se manifesta no indivíduo é apenas uma manifestação
parcial de um substrato instintivo, comum a todos os homens” (Jung, 1982).

1 6.2.1. Inconsciente pessoal

O inconsciente pessoal compreende as percepções e sentimentos sub­


liminares, traços de acontecimentos passados perdidos pela memória cons­
ciente e todo material que não atinge a consciência, por não possuir sufi­
ciente energia ou não estar devidamente diferenciado. A maior parte dos
conteúdos do inconsciente pessoal, porém, são os conteúdos rejeitados
pela consciência, ao longo da vida pessoal de cada um. É todo um conjunto
de material mental e afetivo que, por ser incompatível com as intenções,
ideais, ou sentimentos morais conscientes, são impedidos de se conscienti­
zarem e tornam-se, conseqüentemente, separados do Ego. Este impedimento
da consciência se dá através dos mecanismos de defesa, dos quais a repressão
é um exemplo.
Estes conteúdos inconscientes formam então os complexos, que Jung
começou a estudar a partir dos experimentos de associação verbal. A noção

138
de inconsciente pessoal de Jung corresponde aproximadamente ao
conceito do inconsciente de Freud, sendo que a importante contribuição
de Jung neste campo foi com relação à autonomia dos complexos, e sua
tendência a personalizarem-se. formando verdadeiras “psiques parceladas” .
Sua descrição é. cm linhas gerais, a seguinte: Os complexos originar-se-iam
de um conflito, principalmentc dos vivcnciados na infância, embora também
।possam se originar de conflitos ou traumas posteriores. Em virtude desse
conflito, um determinado conteúdo, carregado de intensa carga afetiva,
scpara-sc da consciência c do Ego. permanecendo no inconsciente; esta­
belece numerosas relações secundárias com elementos afins, formando
um todo relativamente coeso, uma verdadeira “entidade psíquica” , como
Jung o chamava.
Estas entidades possuem marcada autonomia. Aparecem e desapare­
cem independentemente da vontade do Ego, podendo irromper na estru­
tura da consciência. Neste momento, há uma diminuição da intensidade da
consciência, e a pessoa pode se tornar desatenta, distraída, sem poder
explicar o que se passa. Os primitivos referem-se a isto dizendo que uma
alma os deixou, o que realmente exprime o fato de uma parcelada energia
consciente ter se transferido para o complexo inconsciente.
Este complexo, então, pode causar perturbações verbais, estados de
excitação, fantasia, transtornos somáticos etc. Momentaneamente existe
uma assimilação do eu ao complexo, isto é, uma modificação inconsciente
do Ego, que se identifica com o complexo.
Esta noção é a mesma da possessão, conhecida na Idade Média; há
apenas uma diferença de grau. Na verdade, não somos nós que temos o
complexo, este é que nos tem. Na linguagem comum, temos várias ex­
pressões que exemplificam este fenômeno. Quando alguém se encontra
afetado ou dominado por uma emoção, dizemos: “que bicho te mordeu9 "
ou “parece que está com o diabo no corpo” , ou “algo lhe subiu à cabeça”.
Os complexos, então, do ponto de vista do Ego, tendem a ser per­
cebidos como uma entidade alheia, que se apodera de nós, razão pela qual
Jung fazia uma analogia com os gnomos e duendes do folclore (o saci,
no Brasil), diabretes que fazem “travessuras” em nossa casa (quer dizer,
em nossa consciência habitual). Quanto maior a autonomia de um com­
plexo, maior a sua tendência para se personificar como uma entidade
separada. É o caso de algumas psicoses, em que os complexos “falam
alto” , e o doente os ouve como vozes de personalidades estranhas.
A maior ou menor autonomia de um complexo depende de sua
conexão com a totalidade da vida psíquica, isto é, é a própria incons­
ciência do complexo que lhe confere a sua autonomia.

139
Apesar de Jung ter iniciado suas descobertas dos complexos no
campo da Patologia, isto não significa que a existência de um complexo
seja sempre algo patológico. Um complexo pode se tornar patológico,
pois, ao dominar a consciência em maior grau, pode gerar a dissociação
neurótica da personalidade (ou, em casos extremos, a dissolução psicó­
tica). Porém, a existência de um complexo é encarada como um fenômeno
natural da psique. Indica que há algo não assimilado, muitas vezes con-
flitivo, mas que, se for integrado, pode abrir caminho para novas possibi­
lidades de realização.

16.2.2. Inconsciente coletivo

Além do inconsciente pessoal Jung concebe um substrato inconsciente


mais profundo, que é comum a todos os seres humanos, denominado por
ele inconsciente coletivo. Esta idéia é a transposição, para o plano psíquico,
da identidade anatômica e fisiológica existente entre os homens, indepen*
dente das diferenças raciais, culturais e individuais. Assim, do mesmo modo
como possuímos a potencialidade de termos dois braços, duas pernas, um
coração, um fígado etc., também temos a potencialidade de nos desen­
volvermos o suficiente para cuidarmos de nós mesmos e de outros, de nos
separarmos do mundo dos pais, de escolhermos uma profissão etc.
No nosso processo de crescimento, do mesmo modo que temos
padrões herdados em termos de desenvolvimento físico, herdamos padrões
de estruturação da personalidade, nas diferentes fases da vida: a infância,
a adolescência, relação conjugal e profissional, velhice, preparação para
a morte.
Estes padrões foram chamados por Jung de arquétipos, os quais
constituem o inconsciente coletivo. Para explicar o que são os arquétipos,
Jung utilizou a comparação com os padrões herdados de comportamento
nos animais. “ O modo como os pássaros fazem o ninho, por exemplo, é um
código inato, assim como certos fenômenos simbióticos entre insetos e
plantas. Da mesma maneira, o homem nasce com um certo funcionamento,
um certo padrão de comportamento que o torna especificamente humano.
Este padrão está expresso nas imagens arquetípicas, ou formas arquetípi-
cas” (Evans, 1964).
Aqui é importante fazer uma distinção. Apesar de muitas vezes
falarmos, em Psicologia Analítica, de imagens, símbolos ou idéias arque*
típicas, na verdade o arquétipo não é uma imagem ou idéia inata, mas antes

140
uma possibilidade herdada, uma matriz onde configurações análogas ou
semelhantes tomam forma. Neste sentido, o arquétipo é uma virtualidade
que toma form a, traduzindo-se em imagens, a partir da interação com o
ambiente, ou seja, ao ser preenchida por materiais da realidade.
Os arquétipos são propensões à formação de representações típicas
de processos inconscientes, que poderiamos comparar com os mitos. A
Mitologia é, então, para Jung. “ a expressão de uma série de imagens por
meio das quais se formula a vida dos arquétipos” Assim, o arquétipo seria
uma tendência a formar representações de um motivo, que podem variar
m uito em detalhe sem perder seu modelo básico. Por exemplo, o motivo
da hostilidade entre irmãos: o motivo é sempre o mesmo, em diferentes
culturas e épocas, embora as representações variem muito. Por isto, da
mesma forma que o biólogo necessita da ciência da anatomia comparada,
o psicólogo precisa de uma “ anatomia comparada da psique” , para chegar
aos motivos comuns, e isto lhe é proporcionado pela Mitologia.
“A noção de arquétipo, postulando a existência de uma base
psíquica comum a todos os humanos, permite compreender por que em
lugares e épocas distantes aparecem temas idênticos, nos contos de
fadas, nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia,
nas produções do inconsciente de modo geral - seja nos sonhos de pessoas
normais, seja em delírios dos loucos” (Silveira, 1971).
Jung chegou ao conceito do inconsciente coletivo e dos arquétipos
a partir tanto da observação clínica de seus pacientes quanto de suas
vivências internas. Ele relatou que, uma vez, deparou-se com um doente
esquizofrênico paranóide, que o chamou para contar que “se movesse”
a cabeça de um lado para outro, o pênis do sol mover-se-ía também, e
este movimento era a origem do vento” . Quatro anos mais tarde. Jung
encontrou a seguinte descrição de visões de adeptos de Mithra, em um
manuscrito grego recém-descoberto.
“E também será visto o chamado tubo, origem do vento predomi­
nante. Ver-se-á no disco do sol algo parecido a um tubo, suspenso. E na
direção das regiões do Ocidente é como se soprasse um vento do leste infi­
nito. Mas se outro vento prevalece na direção das regiões do Oriente, ver-se-á
da mesma maneira o tubo voltar-se para aquela direção.” Esta experiência
forneceu-lhe uma primeira idéia sobre a existência de um substrato psíquico
comum a todos os homens. Além disto, havia o sonho da casa que des­
crevemos em sua biografia. A partir dessas primeiras experiências, Jung foi
se aprofundando em seus estudos, coletando mais material mitológico e
histórico, comparando-o tanto com o material de sonhos e fantasias de
seus clientes quanto com os seus próprios.

141
Quando Jung utilizou as fantasias de uma jovem americana (caso
relatado por Floumoy), analisou-o a partir de paralelos mitológicos, análise
esta que apontava já para certas conclusões com relação à natureza coletiva
do inconsciente. A partir daí, Jung separa-se bastante da concepção de
Freud, em que o inconsciente se constitui principalmentc dc conteúdos
rejeitados pela consciência. Em outras palavras, Jung começa a aceitar a
“existência do inconsciente como um fato real, um fator autônomo, capaz
de ação independente'1 (Evans, 1964). Esta idéia é fundamental para a com­
preensão de como atuam os arquétipos. O fato de considerar o incons­
ciente como fator independente da consciência levou Jung a chamá-lo, em
várias obras, de “psique objetiva".
Além disto, a seu ver, o inconsciente tem uma função potencial­
mente construtiva. Isto porque contém os arquétipos, que são os elementos
necessários à auto-regulação da psique.
É importante fazer a distinção teórica entre inconsciente pessoal e
inconsciente coletivo, mas isto não é tão fácil em suas manifestações. Em
todo material inconsciente que surge na consciência, sejam sonhos, fanta­
sias. emoções etc., há sempre algo de pessoal e algo de arquetípico. Isto é
assim porque a própria dimensão pessoal se desenvolve a partir da dimen­
são coletiva, arquetípica. Assim, a relação de uma criança com sua mãe
estará sempre determinada pelo campo de ação do arquétipo materno, assim
como pela realidade individual e particular daquela criança com aquela
mãe. Num complexo também, apesar de os termos visto ligados ao in­
consciente pessoal, sempre podemos vislumbrar um fundo arquetípico. Esta
noção faz parte da posterior elaboração de Jung da teoria dos complexos.
Quando começou a estudá-los, a questão do inconsciente coletivo ainda
não se colocava, datando da época em que ainda não havia se distanciado
da Psicanálise.
Evidentemente, há conteúdos inconscientes, sonhos por exemplo,
que apresentam de modo mais evidente o lado pessoal, específico, e os que
tratam mais claramente de problemas gerais da humanidade. Jung os dis-
tinguia, chamando os primeiros de “pequenos sonhos" e os últimos de
“grandes sonhos". Mesmo na prática clínica, Jung fazia uma distinção.
Considerava que havia, normalmente, uma primeira fase da análise que
girava mais em torno dos problemas individuais e pessoais, reminiscências
e fantasias infantis. Só depois disto ter se esgotado é que se entrava em
contato com a “camada" do inconsciente coletivo e dos problemas mais
impessoais, que afetam a humanidade como um todo. (O problema
religioso, por exemplo, considerado de fundamental importância por Jung,
nesta fase.)

142
Embora esta distinção exista, com a continuação da obra de Jung
por seus sucessores, principalmentc com a elaboração de uma teoria de
desen volvim ento arque típica, isto é, com o estudo de como os determi­
nantes arquctípicos regem as diferentes fases de desenvolvimento infantil,
é possível começar a integrar melhor essas duas “camadas" do inconsciente,,
sem considerá-las com o duas coisas tão separadas.

16.3. Relação consciente-inconaciente.


Funções do inconsciente

Para Jung, os dois sistemas dentro da psique, consciente e incons­


ciente, são concebidos com o agindo de modo compensatório, de maneira
que a psique, com o um todo, se diz auto-regulada. Quando esta regulação
falha, o resultado é uma disfunção patológica (neurose, psicose, desordem
de caráter etc.).
O inconsciente não é algo estático, ou imutável, mas está sempre
em m ovim ento; esta atividade do inconsciente se coordena com a cons­
ciência numa relação compensadora. A relação é compensadora e não de
oposição porque, com o já dissemos, consciente e inconsciente se comple­
mentam m utuam ente, para formar uma totalidade, o self ou si-mesmo.
Porém, nesta totalidade, não é só a função inconsciente que é com­
pensadora e reativa com respeito à consciência: a consciência também se
encontra subordinada ao inconsciente. Os processos inconscientes não
constituem apenas um “espelhar reativo" dos processos conscientes, mas
uma atividade produtiva e autônom a, que é orientada para uma finalidade.
Esta finalidade é o desenvolvim ento da personalidade total ou self.
Foi através do estudo dos sonhos e de sua interpretação que Jung
melhor explicou as funções do inconsciente e como se estabelecem as
as relações entre a consciência e o inconsciente.
Os sonhos são vistos por ele com o uma manifestação de processos
inconscientes, do pon to de vista do inconsciente, ou seja, seriam uma auto-
representação, sob a forma sim bólica, da situação do inconsciente. Assim, o
sonho traz a representação de alguns conteúdos inconscientes que se
atualizam, cristalizam e selecionam ( “constelam", termo usado por Jung)
em correlação com o estado da consciência. “A função geral dos sonhos
seria o tentar restabelecer o equilíbrio psicológico, produzindo material
onírico que restabeleça de forma sutil o total equilíbrio psíquico."
Assim, sempre que a atitude consciente tornar-se demasiadamente
unilateral ou exagerada, surgem sonhos compensadores, indicando a função
de auto-regulação da psique.

143
Em suas obras, Jung cita vários exemplos de casos deste tipo. Um
destes* é o caso de um homem extremamente arrogante, que criticava m uito
seu irmão. Porém, sonhava sempre com o irmão nos papéis dc Bismarck,
Napoleão. Júlio César. Neste caso, o inconsciente necessitava exaltar o
irmão. Portanto. Jung pôde deduzir que o paciente estava sc superesti­
mando e depreciando o irmão de modo exagerado. Além disto, como as
figuras usadas no sonho eram de heróis coletivos, concluiu que o paciente
se superestimava não só com relação ao irmão, mas com relação a todos,
sendo isto depois confirmado.

Um outro exemplo ilustrativo é o de uma jovem que amava m uito


a mãe, mas que sonhava sempre com a mãe como bruxa ou perseguidora.
Na verdade, a mãe a mimava exageradamente e por isso a filha não podia
reconhecer conscientemente a influência nociva disto.

O sonho, ao mesmo tempo que compensa a unilateralidade da cons­


ciência, também pode advertir sobre os perigos desta atitude. Como
exem plo* *, Jung relata o caso de um homem que se encontrava envolvido
com certos negócios obscuros. Com o uma espécie de compensação,
desenvolveu uma paixão por escaladas perigosas de montanhas, como que
buscando “ chegar mais acima de si mesmo” . Em um sonho, viu-se escalando
uma montanha, até chegar ao cume, ficando possuído de tal êxtase que
continuou escalando no ar. Jung conta que, ao ouvir o sonho, tratou de
adverti-lo contra o perigo que corria, mas não fo i ouvido. Seis meses depois,
este homem morreu, em um acidente, numa de suas escaladas.

Sonhos deste tipo ilustram uma outra função do sonho, segundo


Jung, chamada função prospectiva. Isto não quer dizer que o inconsciente
tenha capacidade de profetizar o fu turo. Mas pode acontecer que apareça,
no inconsciente, uma antecipação da futura atividade consciente. Na ver­
dade, observando-se uma seqüência de sonhos, pode-se prever a eclosão de
um transtorno psíquico, como uma psicose, ou mesmo prever doenças
somáticas. O que acontece é que esses processos já vêm ocorrendo m uito
antes que se manifestem à consciência, porém de modo subliminar, isto
é, inconsciente. São impressões, sensações, sentimentos, pensamentos
subliminares que são apreendidos inconscientemente e se manifestam
no sonho.

O Eu e o Inconsciente, Jung, 1978.


O Homem e seus Símbolos, Jung, 1980.

144
Assim, para Jung, o sonho é algo bastante diferente da concepção
da Psicanálise. Esta o ve como uma realização disfarçada de um desejo.
Mas para ele “ um sonho é sempre a melhor interpretação de si mesmo*'.

Para compreender os sonhos, em particular, e os conteúdos incons­


cientes de modo geral, Jung parte sempre de dois pontos de vista, a sua
causalidade e a sua finalidade.

A abordagem causai visa descobrir as origens da manifestação incons­


ciente, o porqu ê t a partir da análise de suas diferentes partes. No caso
do sonho, a análise partirá dos seus elementos constitutivos e, através da
cadeia de associações que estes despertam, tenta chegar até o complexo
reprimido que lhe deu origem, no centro do qual estará o desejo. É então
uma técnica essencialmente redutiva, que visa a atingir um ponto X. causa
última do sonho.

A abordagem finalista ou sintética, por outro lado, visa a descobrir


o para que do sonho, a sua finalidade. Esta abordagem pressupõe um ponto
de vista teleológico, conseqücncia da hipótese de Jung de que o incons­
ciente contém uma função potencialmente construtiva, devida ao fato
de abranger os organizadores inatos do desenvolvimento psíquico, os
arquétipos. Esta hipótese é radicalmente diferente da posição psicana-
lítica mais tradicional, em que o inconsciente se apresenta como um
conjunto de pulsões mais ou menos desordenadas ( “o inconsciente só sabe
desejar"). Por isto é que a Psicanálise utiliza sempre a via analítica de
interpretação. A abordagem finalista ou prospectiva é a especial contri­
buição de Jung para a compreensão dos fenômenos inconscientes.

No caso da interpretação de um sonho, o método sintético con­


sistiría em explorar os conteúdos do sonho em todas as direções possíveis,
amplificando-os e enriquecendo-os, não só a partir das associações do
sonhador, mas utilizando paralelos mitológicos ou analogias com motivos
semelhantes encontrados em outras culturas, no folclore etc. A partir do
trabalho complementar das atitudes analíticas e sintéticas surge o Mentido
do sonho, isto é, a expressão das forças do inconsciente no exercício de
suas funções auto-reguladoras” (Silveira, 1971).

Para compreender melhor a atitude de Jung com relação aos sonhos


e ao inconsciente, é necessário esclarecer qual a sua atitude e sua concep­
ção dos sím bolos, pois são eles a expressão da vida inconsciente que se
torna acessível à consciência. O sím bolo, para Jung, é sempre uma forma
extremamente complexa, que contém tanto elementos conscientes quanto

145
inconscientes. Ou melhor, é através do símbolo que se faz a ligação do
inconsciente com a consciência. Embora possamos estabelecer consciente*
mente algumas significações para um símbolo, nunca o poderemos apreen*
der como um todo, pois sempre restará algo de inconsciente.
Na compreensão de um símbolo, sempre se deverá levar em conta
sua dimensão pessoa) e coletiva. Um símbolo sempre contém uma deter­
minada energia; quanto mais corresponder a uma representação arque-
típica, ou brotar das camadas mais profundas do inconsciente coletivo,
maior será a fascinação e a força que exercerá sobre a consciência, que
geralmente se apresenta sob a forma de um afeto. Por isso, a mera com­
preensão racional dos símbolos não basta para sua integração à consciência.
Para Jung. os símbolos que não são individuais, mas coletivos, em sua
natureza e origem, são principalmente os símbolos religiosos, cuja função
é dar sentido à vida do homem.
0 próprio fato de o símbolo conter uma multiplicidade de significados
possíveis, faz com que atue sobre a consciência, impulsionando para além
de si mesmo, na direção de um sentido.
Se, para Freud, a simbolização surge como resultado do conflito
entre a repressão e o desejo, Jung vê nos símbolos uma ação mediadora,
uma tentativa de conciliação de opostos movida pela tendência incons­
ciente à individuação.
A partir do confronto do Ego consciente com os conteúdos incons­
cientes, traduzidos em símbolos, deve ocorrer uma assimilação destes
conteúdos. Por assimilação, Jung entende a “ interpenetração recíproca
dos conteúdos conscientes e inconscientes, e não a avaliação, sujeição e a
deformação unilateral dos conteúdos inconscientes pela consciência” .
Nesta assimilação, que seria melhor designada por integração, nem a cons-
aéncia nem o inconsciente perdem sua integridade: “Nunca se trata da
alternativa: isto ou aquilo, mas sempre da aproximação disto ou daquilo” .•
Neste processo de assimilação, a consciência se amplia e se modi­
fica. De modo paralelo, os processos inconscientes também se modificam.
0 que ocorre é uma verdadeira transformação da personalidade, o processo
de individuação.

O Homem à Descoberta de aia Alma, Jung, 1975.

146
16.4. Procciwo dc individuação

Através do processo dc individuação o homem torna-se o ser único


que de fato é, realiza a sua potencialidade. Em outras palavras, torna-se
“ si-mesmo".
Ê importante fazer a distinção entre individuação e individualismo,
tornar-sc um indivíduo verdadeiro e completo não significa tornar-se
egoísta, prcocupar-se apenas consigo mesmo e isolar-se dos problemas
coletivos. Esta confusão advém do fato de identificarmos indivíduo com
Ego; mas para Jung a individuação supõe a relativização do Ego frente
à dimensão maior da personalidade total.
O individualismo enfatiza as peculiaridades individuais em oposição
às considerações coletivas. 0 conceito junguiano de individuação pres­
supõe, porém, a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas
do ser humano. Na verdade, é a consideração adequada, e não o esqueci­
mento das peculiaridades individuais, o fator que leva ao melhor rendimento
social. Sem esta consideração, o homem torna-se massa, presa fácil de uma
coletividade indiferenciada. No outro extremo, temos o egoísmo.
Embora o processo de individuação seja algo único para cada pessoa,
existem arquétipos que se manifestam sempre, de uma forma ou dc outra.
A tarefa da consciência, como já dissemos, será sempre a de confrontar
estes símbolos, transformá-los e integrá-los. Assim, não agirão mais de
forma independente, originando complexos autônomos, mas serão veículos
de transformação da personalidade.
No processo de individuação, na segunda metade da vida, tal como
Jung o observou e descreveu a partir da análise clínica de seus pacientes e
de si mesmo, os principais arquétipos são: a Persona, a Sombra, a Anima,
o Animus, e o Self.

16.4.1. Persona

Toda sociedade organiza-se de forma tal que existem papéis deter­


minados, colocados à disposição dos indivíduos que dela participam. Estes
papéis se definem, a partir das funções que cada pessoa exerce no relacio­
namento com as outras pessoas.
Por exemplo, no âmbito das relações familiares, existem os papéis de
mãe, de pai, de filho etc. Na verdade são concepções de como uma mãe, por
exemplo , deve ser, de como deve se comportar, do que deve fazer e, muitas
vezes, até do que deve sentir, o mesmo ocorrendo para os outros papéis.

147
Também isso existe, de forma ainda mais clara, para os papéis do âmbito
profissional: existem idéias e concepções a respeito de como aquele profis­
sional deve ser, de como deve agir, de que modo deve sc vestir etc.
Cada indivíduo, então, para se adaptar ao mundo cm que vive, assume
os papéis disponíveis e que lhe cabem nas diferentes situações cm que se
encontra. Tenta preenchê-los e corresponder ao que é esperado dele.
No entanto, cada pessoa, como individualidade única, não pode
adaptar-se completamente a estas expectativas. Deste interjogo, entre a
personalidade individual e a sociedade, com suas expectativas coletivas,
nasce a persona, que é como uma máscara que o indivíduo assume para
satisfazer a estas expectativas. Porém, as expectativas sociais coletivas
são introjetadas. Deste modo, a persona também é descrita como a imagem
ideal do homem, tal como ele quer ser. É a imagem que ele apresenta ao
coletivo, por trás da qual forma-se aquilo que chamamos “vida particular” .
A persona é arquetípica, uma vez que existe em toda sociedade e se
estabelece em toda relação entre pessoas. É natural e adaptativo que o
indivíduo construa uma persona adequada. Porém, o papel que o indivíduo
exerce e a sua identidade não devem ser confundidos. Muitas vezes, o Ego se
identifica com a persona, em maior ou menor grau, sendo isto uma fre­
quente fonte de neurose, pois nenhuma pessoa pode caber inteiramente
dentro dos moldes determinados pela consciência coletiva.
Para que a pessoa se desenvolva, é preciso que aprenda a se distinguir
da persona, a fim de encontrar sua identidade mais profunda.

16.4,2. Sombra

Na medida em que o Ego se diferencia da persona, da imagem ideal


que tem de si mesmo e que tenta apresentar aos outros, começa a ter que se
confrontar com seu lado mais escuro, com todos os defeitos e impulsos que
gostaria de negar em si mesmo.
Este lado foi chamado de “sombra", por Jung, pois é justamente a
contraparte do lado “iluminado" da consciência. Compõe a sombra tudo
que é considerado fraqueza, defeito, aspectos imaturos e infantis, enfim, os
complexos reprimidos. No entanto, também existem na sombra, muitas
vezes, características valiosas que não puderam se desenvolver ou alcançar
a consciência devido às circunstâncias da vida da pessoa.
A sombra corresponde ao inconsciente pessoal, como já descrevemos.
Porém, falamos também em uma sombra coletiva, na medida em que, em
toda sociedade, existem sempre características humanas não desenvolvidas,
negligenciadas ou reprimidas. Quais são e, portanto, qual a natureza dos

148
conteúdos sombrios dc cada indivíduo, vai depender das características da
sociedade. Por exem plo, em nossa cultura, um dos aspectos mais reprimidos
no ser humano é a sexualidade. Não é por acaso que a Psicanálise e a des*
coberta do inconsciente profundo tenham se centrado no problema da
sexualidade.
Assim com o conteúdos da sombra pessoal são freqüentemcnte proje­
tados nos outros (vem os os defeitos e problemas dos outros mas não vemos
que estes são também nossos), os conteúdos da sombra coletiva são projeta­
dos cm bodes expiatórios, “encarregados” de portar todos os defeitos e a
culpa por tudo de mal que ocorre.
0 confronto com a sombra, portanto, não é algo fácil. Sempre suscita
problemas morais e éticos de grande importância, tanto individuais quanto
coletivos.

16.4.3. A nim a e anim us

Para Jung, estes são os arquétipos do feminino e do masculino


Poderiam os dizer que o ser do homem, biologicamente falando,
pressupõe a existência da mulher, e vice-versa. A nível psíquico, isto se
traduziría pelos arquétipos da anima e do animus. Seriam, então, com­
ponentes contra-sexuais inconscientes: na medida em que a consciência
de um homem é masculina, haverá uma contraparte feminina em seu
inconsciente, o contrário acontecendo para a mulher.
Em diferentes culturas e épocas, sempre existiram concepções, idéias
ou imagens sobre o fem inino e o masculino, expressas nos mitos, contos
de fada, folclore etc.
A anima costum a ser representada com o sereia, princesa, fada,
feiticeira, animal, ninfa etc. O anim us pode aparecer como príncipe,
demônio, herói, feiticeiro, animal. As personificações são múltiplas, valo­
rizando um ou outro aspecto do comportam ento desses arquétipos.
Assim com o a sombra, então, o m odo com o esses arquétipos se
expressam também será fortem ente influenciado pelos padrões culturais,
pelo que é considerado naquela sociedade com o especificamente feminino
ou masculino, o que pode variar amplamente.
Jung, ao descrever anim a t animus, tom ou o que era correntemente
considerado, cm sua época, com o características femininas e masculinas.
Assim, a anima seria a personificação de todas as tendências psico­
lógicas femininas na psique do hom em . C om o, normalmcntc, identificava-se
a consciência masculina com o sendo dotada de pensamento desenvolvido
e discriminado, lógica e objetividade, essas características femininas apa-

149
reciam no inconsciente como o oposto: vagos sentimentos e estados de
humor» sensibilidade, irracionalidade.
No caso da mulher, aconteceria o contrário: sua consciência seria basica­
mente voltada para as relações humanas, para os sentimentos, c não para
o mundo do pensamento. Assim, o animus personificaria as características
masculinas, ligadas a pensamentos rígidos ou indcfercnciados. Jung dizia:
assim como a anima produz “ caprichos” , o animus produz “opiniões’*.
Estas opiniões são sempre coletivas e negligenciam as pessoas e os julga*
mentos individuais. Baseiam-se em pressupostos inconscientes, que não
são questionados.
Estas descrições das características do animus e da anima são, como
já dissemos, relativas. O importante é notar que são componentes psí­
quicos da máxima importância, pois são os arquétipos que regem o en­
contro do eu com o outro, com o diferente, já que traduzem a polaridade
feminino-masculino.
Enquanto inconsciente, estes componentes são geralmente projetados.
No caso do homem, a mãe é o primeiro receptáculo da anima e, para a
mulher, o animus será projetado no pai. Posteriormente, estas projeções
deverão ir se desfazendo e transferindo-se para outras mulheres e outros
homens, muitas vezes provocando paixões e idealizações dos parceiros.
Se a anima não for transferida para outras mulheres, ficará ligada à imago
da mãe, o que pode prejudicar muitos relacionamentos. O mesmo se dá
para o animus e a imago do pai.
Se no decorrer do processo de individuação, estas forças forem
atentamente tomadas em consideração, se o Ego confrontá-las e aprender
a diferenciar-se destas imagens, gradativamente suas personificações se
desfazem, e seus movimentos autônomos desaparecem. Assim, transfor­
mam-se em funções psicológicas da mais alta importância e passam a fazer
a ligação entre o consciente e o inconsciente.

16.4.4, S e lf

O self é o arquétipo central. Para Jung, é o centro organizador que


rege o desenvolvimento psíquico. É o arquétipo da orientação e do sentido.
A meta do processo de individuação é o se lf Jung utilizou a mesma palavra
para designar a totalidade psíquica e o centro desta. Quando queremos
diferenciar uma coisa da outra usamos o termo “ si-mesmo” para a totalidade
e “ arquétipo central” para o centro.
Jung pesquisou e descreveu um rico simbolismo, proveniente tanto de
fontes coletivas (mitos, religiões, folclore etc.), quanto de fontes individuais
(sonhos, fantasias).

150
A existência deste centro interior, do qual emana a orientação para a
vida, é uma vivência registrada em muitas sociedades. Os gregos, por exem-
pio, falam no daimon interior do homem; em muitas sociedades primitivas,
considera-se a existência de um espírito tutelar de cada pessoa, encarnado
cm um animal, por exemplo.
Na medida cm que o processo de individuação é uma aproximação
c um diálogo entre consciente e inconsciente, o Ego não poderá mais ser o
centro. Este se constituirá num novo ponto, um ponto de equilíbrio que,
devido à sua posição entre consciente e inconsciente, garante uma base mais
sólida à personalidade.
0 self pode ser simbolizado, em sonhos, por figuras de um velho ou
velha sábia, dependendo se o sonhador é homem ou mulher. Aparece como
uma figura superior, de quem emana autoridade e bondade, que serve como
guia c orientador. Às vezes, pode aparecer como um jovem, ou mesmo como
planta ou pedra. Por exemplo, um motivo mais ou menos comum em
lendas é o da planta que cura todas as doenças. Encontra-se num lugar
inacessível, e o herói tem que passar por mil peripécias para encontrá-la.
Neste caso, a planta é o símbolo do se lf e o herói é o Ego na sua luta pela
individuação. No resumo da biografia de Jung, mencionamos que começou
a se interessar pela alquimia depois de ter recebido um tratado alquímico
chinês denominado O Segredo da Flor de Ouro, traduzido pelo sinólogo
R. Wilhelm. Este tratado apresenta as etapas para se encontrar a “flor de
ouro” , que é um símbolo do self. Estas etapas coincidem com o que Jung
já estava pensando a respeito do processo de individuação. A cor dourada
e o ouro geralmente estão associados ao self e à totalidade. Na interpre­
tação de Jung, a obra alquímica é análoga ao processo de individuação, e
a pedra filosofal é um símbolo do self.
O si-mesmo pode também ser representado por formas abstratas.
Tanto o quadrado quanto o círculo são símbolos da totalidade. Jung
constatou que o padrão quaternário está presente no simbolismo religioso
e mitológico associado à idéia de totalidade (os quatro “cantos” do mundo,
por exemplo), sendo, portanto, um padrão arquetípico.
A mandala é um símbolo do self que Jung muito utilizou e estudou.
Mandala é uma palavra sãnscrita que significa círculo. São círculos com
imagens concentricamente dispostas, divididos geralmente em quatro ou
oito partes. Jung utilizou esta palavra para designar imagens que represen­
tam a totalidade. Nestas mandalas, o centro do círculo equivale ao arqué­
tipo central e o próprio círculo é a imagem da totalidade. Durante muito
tempo Jung desenhou essas mandalas. Utilizava-as para avaliar seu estado
psíquico; se estava bem equilibrado, harmônico etc.

151
Assim, a mandala é um símbolo da ordem interna. Sempre é utilizada
neste sentido, seja para significar a ordenação dos inúmeros aspectos do
Universo num plano cósmico, seja para ordenar os diferentes aspectos
da psique. Segundo Jung. é um símbolo que aparece espontaneamente,
como uma compensação, em períodos de desordem e caos, e vem trazendo
a possibilidade da ordenação em torno de um centro, que nâo é mais
o Ego.

16.5. A teoria dos tipos psicológicos

As tentativas humanas de construir grupos e, com isso, estabelecer


unia ordem na multiplicidade de indivíduos são certamentc muito antigas.
Temos, por exemplo, a Astrologia, com os trígonos dos 4 elementos: ar,
água, tena e fogo. É uma idéia antiquíssima a de que quem nasce sob o
signo pertencente a um destes trígonos participará da sua natureza (airosa,
ígnea etc.) e terá temperamento e destino correspondentes.
Outro exemplo é a chamada “ doutrina dos 4 temperamentos’*, de
Hipócrates, que identificou 4 tipos de pessoas, associando a cada tipo um
determinado caráter e humor. Os 4 tipos são: sanguíneo, colérico, fleu-
má tico e melancólico.
Mais recenlemente, Kretschemer distinguiu 3 tipos fundamentais
baseando-se em medidas antropométricas e observações morfológicas:
leptossõmico, pícnico e atlético. A cada tipo são associadas determinadas
características psicológicas.
Jung, preocupado com o esclarecimento das particularidades indi­
viduais, do problema do indivíduo no seu confronto com o outro, propôs-
se à elaboração de uma tipologia psicológica. Tiveram papel importante
na motivação deste estudo a sua ruptura com Freud e a observação das
diferenças existentes entre as várias “psicologias” : a sua, a de Freud e a de
Adler. Examinou então, em primeiro lugar, a condição da consciência
humana, que seria originadora das várias maneiras de encarar as coisas, das
diversas abordagens possíveis.
Freud partia do princípio de que as coisas evoluíam segundo as
diretrizes do instinto sexual. Adler, porém, concedia a primazia ao instinto
do poder. Sem dúvida, tanto Freud quanto Adler viam um sujeito em
relação a um objeto; mas em Adler a ênfase é posta num sujeito que se
afirma e procura manter sua superioridade sobre os objetos. Em Freud
ao contrário, a ênfase é posta nos objetos, que, conforme suas caracte­
rísticas, são proveitosos ou prejudiciais ao desejo do sujeito. (Com o desen­
volvimento posterior da psicologia do Ego e da teoria da libido na Psica-

152
nálise, estas observações não são mais tão válidas. Porém, a controvérsia
existia na época e serviu, em parte, como paradigma para o desenvolvimento
da teoria dos tipos de Jung.)
Para Jung, esta disparidade de colocações só poderia ser devida a
uma diferença de temperamento, uma oposição entre dois tipos de pessoa,
num dos quais o efeito determinante provém principalmente do sujeito, e
no outro, do objeto.
Esta questão constituiu sua preocupação por muito tempo. Final­
mente, fundamentado em numerosas observações, chegou aos dois tipos
fundamentais de comportam ento ou atitude humanos, chamando-os de
introversão c extrovcrsão.
Estes conceitos referem-se então a disposições ou atitudes do sujeito
em relação ao objeto, ou, em outras palavras, à direção do fluxo de libido, à
maneira como se processa o movimento da libido em relação ao objeto
(libido entendida aqui no sentido genérico junguiano). A energia da pessoa
cuja disposição é mais extrovertida flui de maneira natural, sem embaraços,
para o objeto, o mundo externo. N o introvertido, a libido recua frente ao
objeto, fluindo preferencialmente em direção ao seu mundo interno.
Naturalm ente, todas as pessoas apresentam as duas atitudes, porém
algumas tendem a favorecer mais um tipo e outras o outro. Assim, dizer
que alguém é extrovertido ou introvertido significa que esta é a sua atitude
mais habitual, a que a pessoa apresenta com maior frequência.
Para Jung, porém, a psique é um sistema auto-regulado, e o incons­
ciente tende sempre a compensar a atitude consciente. Desta forma, na
pessoa cuja atitude consciente é habitualmente extrovertida, existirá
um fluxo de libido inconsciente dirigindo-se sempre para o sujeito. No
introvertido, há um flu xo de energia inconsciente que se dirige para o
objeto. Em outras palavras: existe sempre uma circulação da libido; um
movimento inconsciente de introversão, naquele cuja personalidade
consciente é extrovertida, e um movimento inconsciente de extrovcrsão,
naquele cuja personalidade consciente é introvertida.
Para esclarecer estes movimentos, Jung dá um exemplo (Jung,
1978Ò): Dois rapazes caminham pelo campo e chegam a um velho castelo.
Ambos gostariam de vê-lo por dentro. O introvertido diz: “Gostaria de
saber como é por dentro” . O extrovertido, por sua vez, diz: “Vamos entrar” ,
e vai entrando. O introvertido o detém: “Talvez seja proibida a entrada” ,
imaginando vagamente uma série de problemas, como guardas, multas,
cachorros bravos etc. O extrovertido nem se preocupa, imaginando velhos
porteiros afáveis, castelões hospitaleiros e possíveis aventuras românticas.
Porém, ao entrar, percebem que o castelo foi reformado, possuindo
apenas poucas salas, com uma coleção de manuscritos antigos. Por acaso,

153
Fluxo da libido - E rtro w rtó o consciente

Fluxo da libido — In tro ven ío "inferior"

Fluxo da libido - In t r o w t f o consciente

Fluxo da libido — Extroverião "inferior"

Figuro 16.1.

Consciente

Inconsciente

introvertido

Figuro 16.2. Tipo pensamento extrovertido.

essa é a paixão do introvertido. Imediatamente absorve-se na contem plação


dos manuscritos, entusiasma-se, pede informações ao porteiro etc. En­
quanto isto, a animação do extrovertido só diminui: nada de porteiros
afáveis, hospitalidade cavalheiresca ou aventuras românticas. Os manus­
critos cheiram a biblioteca, o que ele associa a estudos e exames, uma
ameaça. O objeto toma-se negativo, e ele quer sair. A situação vai se agra­
vando até que os dois acabam brigando.

1S4
0 que aconteceu? Ambos haviam caminhado juntos e os dois quise­
ram entrar no castelo. O introvertido pensou cm faze-lo e o extrovertido
ativo abriu caminho. Uma vez dentro, porém, o tipo se inverte. 0 intro­
vertido, que hesitava em entrar, não quer mais sair, fica fascinado pelo
objeto. O extrovertido amaldiçoa o momento em que entrou - ficou
preso em seus pensamentos negativos. Com o introvertido acontece que
o objeto toma posse dele, c ele se entrega docilmente ao poder exercido
pelo objeto. Mas, no momento em que o objeto sobrepuja o sujeito, sua
atitude perde o caráter social. Esquece-se da presença do amigo, não o
inclui mais. Com o extrovertido, acontece o contrário, ficou cativo de
um sujeito mal humorado; também perde a consideração pelo outro, no
momento cm que sua expectativa não é satisfeita, retraindo-se em suas
idéias e sentimentos subjetivos.
Podemos formular o que aconteceu da seguinte forma: por influência
do objeto, apareceu uma extroversão inferior no introvertido, ao passo
que uma introversão inferior substituiu a atitude social do extrovertido.
Isto acontece porque, com uma atitude consciente exageradamente
extrovertida, os impulsos subjetivos (pensamentos, desejos, afetos, neces­
sidades etc.), dotados de pouca energia, não atingem normalmente a
consciência. Tomam, então, um caráter regressivo, de acordo com o grau
de inconsciência. (Por isso falamos de introversão inferior.) No caso
oposto, a atitude consciente exageradamente introvertida pode levar a uma
subjetivização, o que leva a surgir, no inconsciente, uma relação compen-
sadora com o objeto, porém também indiscriminada, infantil, por não ter
sido adequadamente desenvolvida (extroversão inferior).
Após a conceituação das duas atitudes básicas, Jung tentou explicar
a enorme diferença entre as pessoas de um mesmo grupo, seja extrovertido
ou introvertido. Essas diferenças, segundo ele, se devem à função psíquica
utilizada preferencialmente pela pessoa, seja para se relacionar com o
mundo extemo ou com o mundo interno. As funções psíquicas postuladas
por Jung são quatro: o sentimento, a sensação, o pensamento e a intuição.
Estas funções constituem uma espécie de quatro pontos cardeais para a
orientação da consciência.
Cada pessoa tende a reagir mais comumente com a função que se
tornou mais desenvolvida. Esta função predominante caracteriza então
um hábito de reação, e constitui o tipo da pessoa.
A questão de como esse tipo é formado, ou seja, por que determinada
pessoa tem uma disposição extrovertida com pensamento predominante,
por exemplo, c não outra, é complexa. Jung admite um conjunto de

155
influências internas e externas: a herança genética, as influências familiares
e culturais, as experiências por que cada um foi passando etc., tudo isso vai
determinando o modo preferencial de uma pessoa reagir ao mundo.
Porém, para Jung, a definição de um tipo é sempre dinâmica e encerra
um sentido de desenvolvimento. Apesar da idéia por trás da tipologia ser
a de encontrar regularidades relativamente estáveis dentro da psique, a
palavra tipo pode dar a idéia de algo estático, que não pode ser alterado. No
entanto, ao associar a tipologia com a teoria da individuação. Jung trans­
formou-a em algo dinâmico, abrindo a perspectiva de que, com o desenvol­
vimento c o evoluir da personalidade, cada um vá atingindo um maior
equilíbrio, uma menor rigidez e preponderância entre as atitudes de extro-
versão e introversão, assim como na utilização das suas quatro funções.
Assim. Jung nunca deu um sentido redutivo à sua teoria, de “en­
quadrar" um indivíduo em um tipo ou outro, desconhecendo a sua especi­
ficidade e características únicas. Para ele, isto não tem senão uma impor­
tância prática, como orientação:
"Todo o meu plano tipológico consiste, meramente, numa espécie de
orientação. Existe um fator, a introversão: existe outro fator, a extro-
versão. A classificação de indivíduos nada significa. Trata-se apenas de um
instrumento, ou aquilo a que chamo ‘psicologia prática', usada, por
exemplo, para explicar o marido a uma esposa ou vice-versa” (Evans).
Vejamos agora no que consistem as quatro funções. O pensamento
é a função que esclarece o que são os objetos. Julga, classifica, discrimina
uma coisa de outra. O pensamento, para avaliar os objetos, deve se basear
em critérios impessoais, lógicos e objetivos. Para tal, é necessário excluir
o valor afetivo que o objeto possa ter para a pessoa; se a atrai ou não, o que
é domínio do sentimento. É através do sentimento, então, que o sujeito
faz uma estimativa sobre o objeto, também um julgamento, porém que
funciona com uma outra lógica, a "lógica do coração” .
Podemos ver, então, que pensamento e sentimento formam um par
de opostos. Para que o pensamento se diferencie, o sentimento deverá ser
relegado a segundo plano, o mesmo acontecendo no caso contrário. À
função mais utilizada, e portanto a mais consciente e diferenciada, Jung
chamou de função superior, e à função oposta, que será mais inconsciente
e indiferenciada, função inferior. Assim, se uma pessoa tiver como função
superior o pensamento, sua função inferior será o sentimento, e vice-versa.
A estas duas funções, Jung denominou “racionais” , pois ambas
introduzem um julgamento, uma consideração sobre o objeto. Parece
estranho chamar o sentimento de racional, mas isto se deve às caracterís­
ticas de nossa cultura, que supervaloriza o pensamento e a sua lógica
peculiar, classificando de "ilógico” ou "irracional” tudo o que foge disto.

156
As outras duas funções, sensação e intuição, foram chamadas de
irracionais, por Jung, devido ao fato de apreenderem a situação direta*
mente, sem a mediação dc um julgamento ou avaliação (seja esta prove­
niente do pensamento ou do sentim ento).
A sensação constata a presença dos objetos que nos cercam e, através
dos nossos sentidos, informa sobre suas características. Já a intuição é uma
percepção via inconsciente. Cada coisa que percebemos tem uma história.
Seu passado e seu futuro estão contidos, de algum modo, em algumas
características presentes no m om ento da observação. Estas características
são captadas pela intuição, é a função que nos informa sobre de onde vém
os objetos e qual o possível curso dc seu desenvolvimento. Ccralmente, nos
chega na forma de “ pressentimentos” , “ palpites” ou “ inspirações” .
Desta forma, a sensação e a intuição formam também um par de
opostos. A sensação capta e se prende ao imediatamente dado, naquele
m om ento, e é isto justamente o que a intuição tem que excluir, para apreen­
der os m ovimentos e possibilidades contidos em cada situação. Assim, se
a função superior numa pessoa for a sensação, a intuição será a função
inferior, e vice-versa.
Naturalmente, cada indivíduo tem as quatro funções com o poten­
cialidades. Mas utiliza normalmente, com maior freqüéncia, a função prin­
cipal, pois é com ela que consegue melhores resultados de adaptação à vida.
A função principal está portanto a serviço do Ego, dando à atitude cons­
ciente sua direção principal. A função oposta a ela, então, será mais in­
consciente, sendo mais primitiva e menos desenvolvida, na medida em que
é menos utilizada. Assim, a função inferior pode escapar ao manejo cons­
ciente, apresentando um maior ou menor grau de autonomia em relação
ao Ego. Mas, justamente por isto, esta função faz a ponte para o incons­
ciente e para o mundo simbólico. Reveste-se então de grande importância
para o trabalho terapêutico, que pode utilizá-la para restaurar a comunicação
entre o consciente e o inconsciente.
Geralmente, as outras duas funções também não apresentam graus
de desenvolvimento iguais; uma delas será um pouco mais desenvolvida, e
auxiliará a função principal, sendo chamada de função auxiliar. A outra,
geralmente apenas parcialmente consciente, é chamada de terciária e
utilizada com menor freqüéncia que a função auxiliar.
Estas quatro funções se associam às duas atitudes básicas de extro-
versão e introversão. Assim, se uma pessoa tem com o função predominante
o pensamento, e é extrovertida, com o conseqüéncia, a sua função inferior, o
sentimento, apresentará características introvertidas. O mesmo se dá com
as outras funções. Se a pessoa tem com o função principal a sensação intro­
vertida, sua função inferior é a intuição, que se referirá principalmente aos

157
Intuição introvertida, função superior

Figuro 16.3. Tipo intuição introvertida.

objetos e situações externos (extroversão), compensando a atitude cons­


ciente. Desta combinação, temos então oito tipos básicos: o pensamento
extrovertido, pensamento introvertido, sentimento extrovertido» sentimento
introvertido, sensação extrovertida, sensação introvertida, intuição extro­
vertida, intuição introvertida.
Faremos a seguir apenas uma descrição, bastante sumária, dos oito
tipos, para se ter uma idéia mais aproximada de como funcionam as funções
e quais características costumam conferir à personalidade.

16.5.1. Tipo pensamento extrovertido

A pessoa deste tipo tende, preferencialmente, a estabelecer uma ordem


lógica, clara, entre as coisas externas; preocupa-se em distinguir o que é
essencial e o que não é, dentro das situações externas. Porém, o raciocínio
abstrato não a atrai; a ênfase é sempre nos objetos, e não nas idéias. Geral­
mente, este tipo tende a pautar sua conduta por um determinado sistema de
conclusões intelectuais, ao qual tenta também submeter os outros, tornan­
do-se no extremo uma pessoa autoritária, sem consideração pelos senti­
mentos dos outros ou nuances pessoais.
Seu ponto fraco é o sentimento. Embora capaz de ligações afetivas
profundas, tanto a idéias quanto a pessoas, tem grande dificuldade de
expressá-las, justamente pela característica introvertida da sua função
inferior. Por isso, estas pessoas podem ser taxadas de frias pelo observador.

158
Quanto mais exagerado for o tipo, isto é. quanto mais a pessoa se
utiliza apenas do pensamento extrovertido, sua função superior, mais o
sentimento se torna inconsciente e assume características absolutas e
arcaicas, podendo irromper como um fanatismo ou uma súbita conversão.
Também não são raras as explosões repentinas e violentas de afeto, que
espantam as pessoas que conhecem apenas o lado objetivo e racional das
pessoas deste tipo.

16.5.2. Tipo pensamento Introvertido

Ao contrário do tipo anterior, este é principalmente atraído pela


organização e clarificação de idéias. O pensador introvertido interessa-se
mais pelas abstrações teóricas do que pelos fatos em si, estes o interessam
apenas secundariamente. Não se contenta em ordenar objetos ou idéias
já existentes, mas interessa-se pela produção de novas abstrações ou de
hipóteses originais. Classicamente, o cientista, o filósofo ou o matemático
representam melhor este tipo.
Seu sentimento manifesta-se de modo intenso e pouco diferenciado,
já que é a função inferior: é sempre amor ou ódio, branco ou preto. Além
disto, este sentimento dirige-se sempre a objetos externos, pois é basica­
mente extrovertido. Pessoas deste tipo dificilmente compreendem aquelas
que possuem o sentimento mais diferenciado, conseguindo discernir
nuances ou qualidades positivas em meio às negativas, ou vice-versa. O
tipo pensamento costuma encarar isto como um mero oportunismo ou
“fazer média” ; ele rejeita abruptamente pessoas ou situações ou as aceita
incondicionalmente.

16.5.3. Tipo sentimento extrovertido

Este tipo mantém uma relação adequada com os objetos exteriores,


adaptando-se a eles por meio de uma avaliação basicamente afetiva. Suas
relações não são guiadas por princípios lógicos, mas por valores e ideais
afetivos. O sentimento é bastante discriminado, indo muito além do
“amor-ódio” do tipo pensamento.
São pessoas geralmente muito afetuosas, que demonstram o que
sentem pelas pessoas de modo expansivo. Costumam ter muitos amigos.
Tém grande capacidade de sentir a situação de outras oessoas, e captar o
que elas necessitam, sendo caoazes de se sacrificarem por elas.

159
Seu ponto fraco é o pensamento, nrinciDalmente o raciocínio
abstrato. Pelo fato da função inferior ser introvertida, seus pensamentos
muitas vezes se voltam contra o sujeito, assumindo uma característica
negativista. Pensam então que sua vida não vale nada, que é incanaz etc.
Geralmente, a pessoa tipo sentimento extrovertido não gosta de ficar só,
pois isto propicia a introversão, que lhe traz estes pensamentos negativos.
Algumas vezes, um sistema de pensamento iá definido é adotado, mas
raramente este é questionado, ou a pessoa se interessa em criar algo novo,
dar uma contribuição pessoal etc.

16.5.4. Tipo sentimento introvertido

São pessoas eeralment* calmas, retraídas e silenciosas, em geral d ifí­


ceis de serem compreendidas, porque seus sentimentos, embora muito
diferenciados, não se exprimem externamente. Assim, as suas ações, que
são motivadas por sentimentos profundos que se desdobram em seu
ín tim o , não são geralmente bem compreendidas pelos outros. E como seu
pensamento extrovertido é inferior, têm m uita dificuldade de expressarem
suas motivações.
Porém, esse tipo costuma possuir um desenvolvido padrão de valores,
discriminando m uito bem o que realmente é im portante, através de seu
sentimento introvertido bem desenvolvido. Por isso, pode muitas vezes
exercer uma certa influência moral ou ascendência sobre as pessoas com
quem convive.
0 pensamento extrovertido, por ser a função in ferior, tende a ser
rígido, o que o leva a querer im por suas idéias sobre os fatos, ou a querer
explicar tudo por meio de um único pensamento.

16.5.5. Tipo sensação extrovertida

São as pessoas que têm ótim a capacidade de perceber os objetos do


m undo externo, relacionando-se de m odo prático e concreto com eles. Por
seu agudo senso de realidade, geralmente são pessoas bastante eficientes no
lidar com as situações. 0 in divíd uo deste tip o tem prazer na apreciação
sensorial das coisas, gosta de comer bem , de se vestir bem etc.
Mas como só se move à vontade na realidade palpável, geralmente
repele as questões teóricas de caráter mais geral, ou mesmo manifestações
subjetivas. É aquele que sempre tende a explicar uma mudança de hum or

160
ou um sintoma pela mudança do tempo ou por alguma coisa que comeu
no almoço.
Sua função inferior sendo a intuição, muitas vezes este tipo não
consegue perceber uma possibilidade de desenvolvimento de uma situação,
sendo pego de surpresa pelas mudanças. Além disto, a intuição inferior
introvertida pode se manifestar sob a forma de pressentimentos ou pre­
monições negativas sobre si mesmo, achando que desgraças ou doenças
podem lhe acontecer. Às vezes, também é atraído por histórias de fantasmas
ou superstições, deixando de lado todo o realismo de sua função superior.

16,5,6. Tipo sensação introvertida

Este tipo, como o anterior, possui uma ótima capacidade de apre­


ender impressões provenientes dos objetos, mas sua atenção e interesse
está primordialmente voltada para a percepção de acontecimentos internos
e subjetivos. Seu comportamento está, então, mais sintonizado com a
sensação interna, despertada nele por um objeto ou fato, do que com
o “ aqui e agora", com os fatos concretos do mundo externo. Por exemplo,
um colecionador pode pagar uma fortuna por um objeto cujas qualidades
estéticas o atinjam profundamente.
Sua percepção sensorial é extremamente diferenciada. Pode captar
muito bem as sensações internas - não só o prazer estético, mas também
as mínimas reações de seu organismo. São pessoas que se preocupam muito
com o próprio corpo.
A função inferior é a intuição, com caráter extrovertido. Quando
esta irrompe, de modo primitivo, pode ter pressentimentos ou fantasias
de ser vítima de forças externas, ou de que outros podem ter alguma
influência negativa sobre si. Muitas vezes sentem-se inseguras quando uma
fantasia ou imagem os assalta. Não estão aptos a lidar com este tipo de
coisas, sentindo-se como se o seguro chão da realidade estivesse fugindo
sob seus pés.

16.5,7, Tipo intuição extrovertida

Como a intuição é a função que apreende principalmente o movimento


das coisas, as possibilidades, as pessoas deste tipu geralmente são inovadoras.
Sendo extrovertidas, sua intuição lhes diz o que vai acontecer, quais as
potencialidades das situações no mundo externo. Por exemplo, um intuitivo
extrovertido pode ser um grande jogador na bolsa ou fazer ótimos negócios.

161
utilizando seu “faro" para o que pode dar certo. No campo da ciência,
sempre se interessa pelas últimas aquisições. Nunca está parado, sempre está
empreendendo alguma coisa nova. Mas, muitas vezes, abandona seus pro­
jetos, pois não suporta a rotina ou as situações estáveis. Em virtude disto,
raras vezes colhem o que plantam.
Como a função inferior é a sensação introvertida, a pessoa deste
tipo raramente percebe o que está acontecendo com seu corpo, demora a
perceber que está cansado ou com fome, por exemplo. Estas sensações
interiores podem tomar, então, um aspecto negativo e passarem a exigir
sua atenção através de sintomas físicos, por exemplo.

16.5.8. Tipo intuição introvertida

Assim como o tipo intuição extrovertida, as pessoas deste tipo


também estão sempre atrás das futuras possibilidades. Mas como são intro­
vertidas. geralmente são os acontecimentos subjetivos que as atraem mais.
É o tipo do sonhador místico, dos artistas visionários. Os mais altos expoen­
tes deste tipo são os criadores de novas filosofias ou religiões. Muitas vezes
considerados excêntricos, possuem no entanto a capacidade de apreender
os movimentos ainda incipientes de transformação de toda uma cultura,
como no caso dos profetas.
Como é altamente solicitado pelo mundo interno, sua percepção
da realidade objetiva é fraca e indiscriminada. É o pior tipo de pessoa para
descrever um acontecimento externo ou prestar testemunho, pois pode
contar absurdos, sem nenhuma intenção, levado pela sua falta de concen­
tração no mundo externo e fantasia muito viva. Às vezes, chega a fugir da
realidade, tomando-se desadaptado e levando uma vida excessivamente
simbólica. Para o intuitivo introvertido, a perda de contato com o real,
com o mundo objetivo, pode ser uma ameaça, da qual ele só escapa se
aceitar trabalhar mais com a sua função inferior, a sensação extrovertida.
Muitos artistas, por exemplo, quando passam a ser sustentados por
um mecenas e não tém mais que se preocupar com o lado prático da vida
(sensação extrovertida), perdem muito de sua criatividade.

162
17
Conclusão
Freud e Jung: semelhanças e diferenças

Jung aproximou-se da Psicologia através da Psicanálise e do seu rela­


cionamento com Freud. Assim, a obra de Freud foi o ponto de partida de
Jung. É o ponto de referência principal para compreendê-lo e às m odifi­
cações que foi introduzindo.
Na verdade, Jung utilizou as mesmas palavras e conceitos que Freud.
Porém, a partir de um certo momento, tentou imprimir-lhes um significado
um pouco diferente. A noção de energia psíquica ou libído é um exemplo,
assim como a noção de Inconsciente, que Jung achou necessário dividir
em Inconsciente pessoal e coletivo.
A grande diferença entre os dois enfoques é exemplificada pela
diferença entre os conceitos de self e superego. Em Freud, a preocupação
é com o agente repressor que é introjetado devido a proibições culturais.
O instinto sexual buscaria basicamente o incesto que, ao ser proibido, leva
à sublimação do instinto nas diversas atividades culturais.
Jung, por outro lado, postulou a existência de um “ instinto” psí­
quico principal, que é a tendência da personalidade a realizar-se plenamente.
Esta força é basicamente criativa, e seria a fonte tanto da sexualidade
quanto da moral e das produções culturais, entre elas a religião.
Para Ju ng,o incesto é apenas um entre os muitos arquétipos existentes;
e a proibição do incesto é também arquetípica ou natural, ou seja, faz parte
da bagagem que torna o homem especificamente humano, e que é inata.
Assim, se para Freud a civilização é um resultado da repressão, para
Jung, numa visão mais otimista do ser humano, é o resultado da tendência
do homem a se desenvolver e realizar. Jung via, inclusive, um desenvolvi­
mento arquetípico da civilização, considerando as transformações que a
consciência humana vem sofrendo desde o início da História como uma

163
espécie de “ individuação" da humanidade. Por outro lado, advertia cons*
tantemente sobre os perigos que a civilização e o homem moderno estariam
correndo, devidos à unilateralidade da nossa cultura, que só valoriza a
consciência e o Ego, e ao enorme poder que esta tem conseguido sobre a
natureza.
Jung procurava, no homem, sobretudo o universal, o arquetípico.
Devido a esta visão, ele resgatou, para o estudo psicológico, enorme quan­
tidade de símbolos, mitos, religiões e as mais variadas produções culturais,
de diferentes culturas e épocas. Entre estas, talvez o estudo da Alquimia
tenha sido uma das contribuições mais importantes.
Para a Psicologia e a prática psicoterapêutica, a conseqüéncia mais
im portante da mudança de enfoque que Jung proporcionou é a visão do
prospectivo e da normalidade.
A Psicanálise, com Freud, baseia-se no “ por que“ médico científico
— procura as causas das manifestações inconscientes. Jung introduziu a
pergunta “ para que“ , pois considerava sempre a tendência para o desen­
volvim ento da personalidade.
Assim, um símbolo para Jung não vai ser um substituto de algo
que ficou no passado, mas um gerador de energia, um veículo do que a
pessoa vai atingir no futuro.
A diferença é uma conseqüéncia do conceito do inconsciente. Se,
para Freud, o inconsciente é o reprim ido, ele vai procurar, nas manifesta­
ções inconscientes, a causa destas, que será o desejo subjacente. Porém,
se, para Jung, o inconsciente é criativo, a manifestação inconsciente vai
ser a própria expressão desta criatividade, no sentido do desenvolvimento
da personalidade.
Além disto, o conceito de arquétipos e do processo de individuação
ajuda a tirar um pouco a ênfase no patológico, pois conceitua-se um
potencial instintivo na psique que pode atuar paralelamente a traumas
e vivências patologizantes, no sentido de contorná-los e ultrapassá-los.
Na prática terapêutica, Jung valorizava mais o encontro entre duas
pessoas, terapeuta e cliente, do que uma técnica bem definida. Nunca
sistematizou uma técnica terapêutica; pelo contrário, dizia que não havia
regras, e que com cada cliente faria o que achasse melhor. Então tanto
podia dar conselhos sobre a vida do cliente, quanto analisar a transferência.
Evidentemente, em sua prática, a análise dos sonhos tinha um papel
fundamental. Duas técnicas foram desenvolvidas por ele para lidar com
o Inconsciente. Uma delas é a amplificação, que consiste em se relacionar
um sím bolo com todas as manifestações e analogias que possa ter em outras
culturas, m itos, rituais etc. Através disto, ficaria mais claro qual o sentido
do sím bolo, isto é, a direção para a qual ele aponta.

164
A outra é a imaginação ativa. Através desta técnica, a pessoa evoca
as imagens do inconsciente e pode dialogar com elas. É uma técnica que
ajuda o Ego a sc desidentiflear com as imagens inconscientes, objetivá-las
e relacionar-se com elas de forma ativa. Esta, para Jung, é uma atitude
essencial para o desenvolvimento da personalidade.

165
18
Referências bibliográficas e bibliografia

Referências

Evans. L R. Entrevistas com Cart G Jung e as Reações de Ernest Jones. Rio de Janeiro,
Livraria Eldorado. 1964.
Jung, C. G. Aion - Escudo sobre o Simbolismo do si mesmo. Petrópolis. Vozes, 1982.
Jung. C .G . O Homem à Descoberta de sua Alma. 2? ed. Porto. Livraria Tavares
Martins. 1975.
Jung. C. G Psicologia do inconsciente. Petrópolis. Vozes. 1978 a.
Jung. C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis, Vozes. 1978 b.
Jung.C. G. Memórias. Sonhos e Reflexões. 4? ed. Rio dc Janeiro, Nova Fronteira,
1981.
Jung.C. G .e col. O Homem e seus Sím bolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
Lacaz.C. R. M. Por que psicologia analítica. Temas. 14. 21-32, 1978.
Silveira. N.Jung - Vida e Obra 7? ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971.

Bibliografia

Embora a obra completa de Jung nâo se encontre traduzida para o português,


indicamos a seguir os livros disponíveis, além dos já citados acima. Apresentamos
também uma relação de livros sobre Psicologia Analítica publicados em português.
Freud/Jung. Correspondência Completa. São Paulo. Imago, 1976.
Jung. C .G . A Energia Psíquica.Peuópohs, Vozes, 1984.
Jung, C. G. ^4 Natureza da Psique. Petrópolis, Vozes, 1984.
Jung, C .G . Fundamentos de Psicologia Analítica (As Conferências de Tavistock).
Petrópolis. Vozes, 1972.
Jung.C. G. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Petrópolis, Vozes,
1978.
Jung. C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis, Vozes, 1981.
Jung, C. G. e Wilhelm, R. O Segredo da Flor de Ouro. 2? ed. Petrópolis, Vozes, 1984.
Jung. C. G. O Sím bolo da Transformação na Missa. Petrópolis, Vozes, 1979.
Jung, C. G. Prática da Psicoterapia. Petrópolis, Vozes, 1981.
Jung, C. G. Psicologia e Religião Petrópolis, Vozes, 1978.
Jung, C. G. Psicologia e Religião Oriental. 2.a ed. Petrópolis, Vozes, 1982.
Jung, C. G. Resposta a Jó. Petrópolis, Vozes, 1979.

166
Jung. C. G. Tipos Psicológicos. 4.a cd. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
Jung, C. G. Sincronicidadc: Um Principio de Conexões A causa Is. Pctrópolis. Vozes.
1984.

Sobre Jung e sua obra

Fordham Fricda. introdução à Psicologia de Jung. Lisboa. Coleção Pelicano. 1972.


Hall c Nordhy introdução à Psicologia Junguiana. São Paulo. C u ltrix , 1980.
Storr Anthony. As idéias de Jung. São Paulo. EDUSP, 1978.

Sobre Psicologia Analítica

(Diversos autores). Pais e Mães. São Paulo, Ed. Sím bolo. 1979
Franz. Maric Louisc von. interpretação dos Contos de Padas Achiam c. 1981.
Guggcnbuhl-Craig, Adolf O Abuso do Poder na Psicoferapia. Achiam c, 1978
Guggcnbuhl-Craig, Adolf. O Casamento esfã M orto. Viva o Casam ento.1 S ím b o lo ,
1980.
Hiliman, James. Estudos de Psicologia Arquetípica. Achiamc', 1981.
Junguiana. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia A nalítica. São Paulo. 1983.

167
Impresso na

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editora e gráfica Itda
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Temas Básicos de Psicologia reúne aurores com vasta expe­
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introdutórios e servirão como roteiro básico para os alunos,
além de auxiliar os professores na preparação e desenvolvi­
mento do programa de suas disciplinas.
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v. 2 Pcnna: Introdução à Psicologia Cognitiva ISBN 85-12-62120-6
V. 3 P ’Oliveira; Ciência c Pesquisa cm Psicologia ISBN 85*12-62130*1
Sugestões dc atividades ISBN *5 I2-622M X
v. 4 Camacho: Psicologia Organizacional ISBN 85-12-62140-0
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v. 5 Van Kolck: Ibslcs Projetivos Gráficos rio Diagnóstico Psico-
;lógico ISBN «5-12-62150-8
v. 6 Andrade: Distúrbios Psicomotores ISBN R5-I2-62F6O-5
V. 7 Reis c cols.: Teoria da Personalidade em Freud, Reich e Jung
ISBN 85-12-62170-2
v. 8 Amiralian: Psicologia do Excepcional ISBN 85-12-62180-X
v. 9-1 W itter/Lom ônaco: Psicologia da Aprendizagem ISBN 85 12-62190-7
v. 941 W itter/Lom ônaco: Psicologia da Aprendizagem — Áreas de
aplicação ISBN «5-12 62 320 9
v. 9-1II Witter/Lomônaco: Psicologia da Aprendizagem - Aplicações
na Escola ISBN «5-12-62330-6
v. 10-1 Simões/Tiedemann: Psicologia da Percepção ISBN «5-12-62200-8
v. 10-11 Simões/Tiedemann: Psicologia da Percepção ISBN 8 5-12-62 300-4
v. 31 Trinca e cols.: Diagnóstico Psicológico ISBN 85-12-62210-5
v. 12 Krüger: Psicologia Social ISBN 85-12-62220-2
v. 13 Ades e Otta: Motivação Humana ISBN «5-12-62250-4
v. Í4 Knobel: Psicoterapia Breve ISBN 85-I2-6226O-I
v. 15 Guirado: Psicologia Institucional ISBN «5 12-62270-9.
v. <6 1 Gorayeb: Psicopatologia Infantil ISBN «5-12-62580-6
v. 16-11 Gorayeb: Psicopatologia Infam il ISBN 85-12-62310-1
v. 17 Simon: Introdução à Psicanálise — Melanie Klein
ISBN 85-12-62290-3
v / 18 Trinca: Investigação Clínica da Personaliaade ISBN «5-12-62340-3
v. 19 Chiarottino: Psicologia e Epistemologia Genética de J. Pia-
get ISBN 85-12-62350-0
v. 20-1 Ancona-Lopez e cols.: Avaliação da Inteligência ISHN «5-12-62 360 8
v. 20-11 Ancona-Lopez e cols.: Avaliação da Inteligência ISBN 85-12-62400-0
v. 21 Rosenberg e cols.: Aconselhamento Psicológico Centrado
na Pessoa ISBN 85-12-62370-5
y. 22 Reis: Introdução à Leitura de Jacques Lacan ISBN 85 ]2-62380-2
V, 23 Rappaport e cols.: Introdução à Prática da Psicanálise
ISBN 85-12-623 90-X

€H. (D liM W Ó G i a
€ « l * K r t M LTM.
ISBN 85-12- 621702

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