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Dossiê | Encontros à beira do abismo: psicanálise,

gênero e estudos queer


• Gilson Iannini e Vinícius Moreira Lima disse:


2 de junho de 2021 


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Fefa Lins, Broderagem, 2021. Óleo FOTO DE SOFIA LUCCHESI/CEDIDA PELA GALERIA AMPARO 60 sobre tela,

“Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar
longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”

(Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal)

O motorista para o carro em frente à praça e pergunta ao anelinha: “Tudo bem, irmão? Tem como dar uma
informação aqui? Tô perdidinho, cara… Tava lendo Heidegger e quei na dúvida, quando ele fala o conceito
de Dasein […] Fiquei na dúvida, que porra é essa?”. Diante do espanto do anelinha, que simplesmente
exclama “Oi?”, ele contextualiza melhor: “O Lacan critica Heidegger exatamente neste lugar”. Devidamente
situado, o anelinha responde: “Ih, rapaz, tu me complica; é que não sou lacaniano!” e convoca Jaime, seu
colega de pro ssão. Jaime entra em cena e informa o caminho correto: primeiro Husserl, depois Heidegger,
pra só então cair em Lacan. E detalha: primeiro você pega Husserl, “aí tu vai desembocar direto no Ser e
tempo, aí tem Freud, tu vai vê, tu pega. Freud não tem erro! Tu vai vê, tu vai sabê! Pegô Freud, vai pra
Lacan”. Aliviado, o motorista responde: “Então é isso, acho que peguei Lacan no sentido errado”, ao que
Jaime conclui: “Ah, isso acontece muito”. Essa cena faz parte de um esquete do humorístico Porta dos
fundos. Gregório Duvivier assina o roteiro.  

Muitas vezes o debate entre psicanálise, teorias de gênero e estudos queer lembra uma cena mais ou
menos desse tipo. Uns perdidos, outros desinformados, e segue-se a comédia de erros. Não é incomum que
estudiosos do gênero ou ativistas queer recusem a psicanálise, identi cando-a imediatamente a um saber
que reitera padrões da sociedade cis-heteronormativa. Ao mesmo tempo, não é incomum que psicanalistas
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retruquem: “Você pegou Lacan no sentido errado!”. En m, como lembra Jaime: “Isso acontece muito!”.
Aplausos entusiastas, indiferença brutal ou cancelamentos sumários pululam aqui e ali quando os campos se
aproximam demais. O abismo está sempre ali, à espreita. Basta um passo em falso.

O dossiê que o leitor tem em mãos não pretende colocar os pingos nos is, a nal nem todo i tem pingo; e,
para quem sabe escutar, pingo é letra. Assim, não se trata de corrigir esta ou aquela perspectiva. A nal,
quem nos daria a metalinguagem, o lugar neutro de onde poderíamos avaliar com uma medida-padrão quem
merece viver ou morrer, lacrar ou ser cancelado? Nesse sentido, o mais importante não é saber se os
psicanalistas leram a última Judith Butler ou se os butlerianos leram o ultimíssimo Jacques Lacan. E tão
importante quanto reconhecer os epistemicídios da cultura eurocêntrica é não cair na igualmente – ou ainda
mais – perigosa cultura da epistemofobia. 

Se pudéssemos resumir a posição dos organizadores deste dossiê, diríamos o seguinte. Assim como a não
existência da relação sexual harmônica não impede as pessoas de transarem ou de se casarem, mais ou
menos o mesmo pode valer aqui. Não há casamento feliz possível entre esses campos heterogêneos da
psicanálise, das teorias de gênero e dos estudos queer. Contudo, a indiferença tampouco é possível.
Historicamente, estudos de gênero e teoria queer não seriam possíveis sem a psicanálise. Além disso,
perderiam hoje – e muitas vezes perdem de fato – muito de sua desejada pujança crítica caso desdenhem
de alguns conceitos e perspectivas psicanalíticas, como a vocação intrinsecamente queer do corpo pulsional
em sua disposição polimor camente perversa. Por sua vez, uma psicanálise não pode ser indiferente a
algumas críticas oriundas desses campos, em particular ao risco sempre presente de postular a diferença
sexual segundo uma desavisada recognição de normas tácitas de gênero; além disso, uma psicanálise do
século 21 não pode ser imune às transformações do laço social contemporâneo, parte delas implicadas pela
incidência de movimentos feministas, queer, antirracistas e LGBTQ+ na cultura, sob o risco de se
desconectar do horizonte da subjetividade de nossa época. Assim como sujeitos dedicados ao ativismo
político nos mais diversos movimentos de insurgência podem se bene ciar da re nada escuta clínica que
extrai da singularidade um real que escapa à própria consciência pessoal de cada um. 
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Fefa Lins, Tempos de Cascata, 2021. Óleo sobre tela
Nesse sentido, em que pese a heterogeneidade interna tanto da psicanálise como das teorias de gênero e
dos estudos queer, algumas convergências precisam ser destacadas, como pedras de toque que tornam
possível propor um debate além  do narcisismo das pequenas – e mesmo das grandes – diferenças.
Destacam-se alguns pontos, como o reconhecimento da variedade e da legitimidade de vivências sexuais
divergentes em relação à norma cisgênero e heterossexual; a defesa in exível da necessidade urgente de
combater violências e práticas segregativas relacionadas ao sistema sexo-gênero hegemônico; e mesmo a
concepção de que nossa identidade 

e nossa orientação sexual não se reduzem à distinção biológica entre os sexos, envolvendo determinações
socialmente construídas e processos inconscientes extremamente singulares em camadas que se
superpõem e se interpenetram. 

Os autores convidados para este dossiê apostam, cada um à sua maneira, num diálogo possível diante
desse casamento impossível entre psicanálise, teorias de gênero e estudos queer. Ao contrário de quem
prefere um fechamento confortável e ilusório dentro do próprio campo, considerando inviável o debate e
jogando a poeira para debaixo do tapete, buscamos aqui valorizar a heterogeneidade de perspectivas acerca
de como – e se – é possível transpor esses campos e os abismos entre eles. Lembrando sempre que,
quando olhamos para o abismo do outro campo, ele também nos olha. A nal, da mesma maneira que não
existe uma única psicanálise, também os estudos queer e as teorias de gênero são compostos de
perspectivas múltiplas e tensões internas que não permitem que se dê uma última palavra nesse debate.
Pensamos, então, este dossiê como um convite para sustentar a complexidade que faz parte dessa
conversa. As perspectivas aqui apresentadas tampouco são homogêneas, mas desenham um campo de
problemas que vão desde a política até a clínica, sem esquecer de suas superposições e cruzamentos.

Nos textos a seguir, Vinícius Moreira Lima articula a psicanálise e os estudos queer a partir da fala de Paul B.
Preciado, recorrendo a um ponto que aproxima esses campos: o fracasso fundamental de toda operação
normativa, que nunca se constitui sem deixar restos. Rafael Cavalheiro e Carla Rodrigues argumentam que
o debate com a psicanálise está posto desde o surgimento dos estudos queer, procurando desfazer o falso
problema que pergunta se esse debate seria possível. Em seguida, Maíra Marcondes Moreira discute os
modos de fazer política numa interface entre psicanálise e feminismo, sustentando que uma política feminina
(no sentido da lógica da sexuação lacaniana) orienta-se não pela homogeneização das identidades, mas
pela singularidade do sexual, que não se deixa reduzir às normas socialmente estabelecidas. Por seu turno,
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Patricia Porchat Knudsen propõe pensar três respostas possíveis da psicanálise aos gêneros não binários,
em interface com as provocações e contribuições queer de Butler e Preciado. Na sequência, Jésus Santiago
e Cristiane Grillo discutem o papel da escansão temporal em dois fragmentos clínicos de adolescentes
atravessadas por questões com o gênero, atendidas em um serviço de saúde. Fechando o dossiê, Pedro
Ambra provoca um debate sobre apropriações possíveis da empreitada queer numa psicanálise brasileira,
por meio das torções da língua que, sendo inerentes a um percurso analítico, podem ser potencializadas ao
se deixarem atravessar por sua amefricanidade.

No aforismo 146 de Além do bem e do mal, Nietzsche escreve: “Quem combate monstruosidades deve
cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também
olha para dentro de você”. Que o alerta de Nietzsche em seu prelúdio a uma loso a do futuro nos sirva de
horizonte para pensarmos uma psicanálise do futuro. 

Gilson Iannini é professor do Departamento de Psicologia da UFMG e editor da coleção Obras incompletas


de Sigmund Freud (Autêntica).

Vinícius Moreira Lima é psicanalista, mestrando em Estudos Psicanalíticos



pela UFMG e pesquisador  em psicanálise, estudos queer e masculinidades.

A subversão pelos dejetos


• Vinícius Moreira Lima disse:


2 de junho de 2021 


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Fefa Lins, Exposição, 2020. Óleo sobre tela.

O lósofo trans Paul B. Preciado tem se destacado nos últimos anos pela maneira de articular estudos queer,
transfeminismo e pensamento decolonial para interrogar as estruturas de poder que organizam a sociedade
ocidental. Ao se endereçar a nós, psicanalistas, em uma jornada da Escola da Causa Freudiana (Paris,
2019), o lósofo nos incita, por seu estilo polêmico, a uma tomada de posição em relação às normas binárias
da tradição hétero-patriarcal-colonial e às formas de vida mutantes que interrogam nossas gramáticas de
enquadramento do humano. Mas como prosseguir a conversa sem cair nas armadilhas que o próprio
endereçamento e estilo provocam?

As multidões queer surgiram nos Estados Unidos, ao longo da década de 1980, como uma aposta política
que se organizava em pelo menos duas vertentes. Por um lado, elas denunciavam a sociedade cis-
heteronormativa, que, em meio à epidemia da aids, considerava descartáveis as vidas que não se
adequavam às normas sexuais hegemônicas. Por outro lado, criticavam também uma parcela da
comunidade gay que teria se incorporado aos ideais do capitalismo estadunidense, deixando de lado outros
dissidentes de gênero e sexualidade em favor da ilusão de assimilação que marcadores sociais como a
branquitude e o poder de consumo lhes forneciam.

À medida que mais e mais homens gays brancos, de classe média alta e com empregos estáveis
acreditavam fazer parte da sociedade cis-heteronormativa contra a qual se haviam originalmente insurgido,
tal operação de inclusão – certamente ilusória, porque a epidemia da aids logo os lembraria de que ainda
eram considerados aberrações – deixava como resto um conjunto de corpos que não se adaptavam a esse
novo padrão. Pessoas trans e travestis, homens gays negros, lésbicas chicanas, entre outras tantas formas
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de vida que não se encaixavam nesse ideal gay, eram relegadas ao lugar de resíduo abjeto, objeto-dejeto do
social.

Nesse contexto, o que particularizou o movimento queer não foi propor ideais identitários alternativos. Pelo
contrário, o movimento se serviu de sua condição de resto para interrogar os ideais sociais que prescreviam
que sua sobrevivência estaria condicionada a uma adequação a certos padrões cis-heteronormativos de
identidade. As multidões queer interrogavam o próprio ideal de normalização que havia permitido a
incorporação de parte da comunidade gay aos padrões estadunidenses. Com esse gesto, elas reivindicavam
a possibilidade de existir como seres “fora da norma”, que não precisam orientar-se por ideais hegemônicos
para poderem viver uma vida digna.

Nessa direção, a operação queer parece ter sido convocar a sociedade cis-heteronormativa a reconhecer
que a norma não se constitui sem deixar restos ou sobras, con gurando não apenas o brilho de seus ideais,
mas também os campos de abjeção. Assim, tratava-se de evidenciar que a verdadeira subversão da norma
talvez não se desse pela via festiva do ideal, mas antes, quem sabe, pela via dos dejetos. O que estava em
jogo era mostrar de que forma a sociedade ocidental, ao erigir seus ideais de cis-heterossexualidade e de
branquitude, expunha (e ainda hoje continua a expor) à violência e à morte toda uma parcela da população
não branca, não cis e não heterossexual que não se enquadrava nos parâmetros normativos que
reconhecem alguém como ser humano.

Mas, junto com esse aspecto, podemos considerar que a abjeção aponta para uma estranheza íntima nos
processos de normalização social: se a norma precisa ser constantemente reiterada por meio da contínua
exclusão desses sujeitos-abjetos para assumir uma aparente consistência, talvez isso revele que, no fundo,
a norma é também falha em seu interior, onde poderíamos supor o conforto de uma vida dentro dos
parâmetros normativos de subjetivação. Se a norma produz (e é produzida por) ideais, mas mesmo seus
sujeitos fracassam em alcançá-los plenamente, isso signi ca que ela é parasitada internamente por alguma
coisa que não funciona tão bem, algo que faz fracassar sua plena materialização. Não seria preciso, então,
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situar os fenômenos sociais da violência homotransfóbica e racista como uma tentativa ilusória de dar
consistência a um conjunto de normas que é, desde sempre, furado, inconsistente, incoerente? Uma
tentativa de eliminar a diferença encarnada pelo Outro, mas que fracassa em reconhecer a alteridade íntima
do próprio sujeito, que a psicanálise recolhe a cada vez?

Talvez tenha sido essa mesma inquietação que conduziu o lósofo Tim Dean a a rmar, não sem uma dose
de provocação, que a teoria queer começou com Sigmund Freud. Não é à toa que a obra do psicanalista
serviu tão bem a alguém como Judith Butler para mostrar, com o conceito de melancolia de gênero, que a
própria heterossexualidade normativa pode ser constituída pelo resíduo de desejos homossexuais não
reconhecidos como tais. Relendo uma série de textos freudianos, Butler propôs a hipótese de que a
heterossexualidade normativa acaba por incorporar o amor pelas pessoas do mesmo sexo/gênero em seus
processos de identi cação: ao a rmar sua heterossexualidade pela recusa radical de qualquer indício de
homossexualidade, o sujeito se torna o homem (ou a mulher) que “nunca” amou ou nunca pôde amar. Essa
estratégia, no entanto, preservaria a homossexualidade no interior mesmo da “identidade” heterossexual,
sem que o sujeito se dê conta disso.

Dessa maneira, um importante eixo partilhado entre a psicanálise e os estudos queer reside em evidenciar
que a própria heterossexualidade não é tão heterossexual quanto poderíamos supor. Não foi Freud quem,
em 1905, argumentou que a pulsão sexual não seria, de início, ligada a nenhum objeto especí co, de modo
que cada sujeito teria uma predisposição à bissexualidade? E ainda que a pulsão teria, por estrutura, um
caráter perverso-polimorfo, com a consequência de que a uni cação da satisfação sexual em torno dos
genitais seria um processo sempre inacabado? Como resultado, a heterossexualidade – ou mesmo qualquer
posição sexuada – só poderia ser alcançada de maneira precária, ao cabo de um longo processo que não
acontece sem deixar restos, pois ela é sempre atravessada por identi cações e desejos incoerentes em
relação ao ideal que a organiza.
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Nessa direção, como a rma Jacques Lacan, o que a psicanálise recolhe é o fato de que, “mesmo entre as
pessoas mais normais e no interior da aplicação plena e inteira, e de boa vontade, das normas, bem! Isso
não funciona”. Há alguma coisa que não vai bem no interior da norma, apontando para um fracasso
estrutural na sexualidade humana.

Parece ter sido justamente essa a constatação de Freud quando escrevia seus Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade como resposta à psicopatologia de sua época, que buscava segregar as ditas “inversões
sexuais” como “aberrações”, em oposição a uma pretensa normalidade heterossexual. O que a clínica
ensinava ao psicanalista, pelo contrário, é que a “perversão” (entendida como um modo de satisfação
pulsional que não está orientada pela genitalidade reprodutiva) não era exceção, mas regra. A própria
sexualidade humana deveria ser considerada como aberrante, na medida em que a pulsão sexual é
estruturalmente desviada, tanto do ideal biológico da reprodução como do ideal cultural da
heterossexualidade – fato que levou Butler a falar de um “movimento queer da pulsão” –, uma vez que não
há nenhuma norma a priori capaz de determinar a qual objeto a pulsão irá se ligar. Seus objetos não são
nem mesmo inteiramente determinados pelo gênero: podemos desejar alguém por um certo brilho no olhar,
uma modulação especí ca da voz, um sorriso, um jeito de andar, a performance sexual, um traço enigmático
que nos lembra outra pessoa (“mas quem seria mesmo?”), entre outras tantas formas possíveis da causa do
desejo que não podemos prever de antemão e que podem transitar entre os mais variados gêneros.
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Fefa Lins, Quando o tesão passa, 2019. Óleo sobre tela
Por envolverem a dimensão do inconsciente, nossos modos de gozo nem sempre são coerentes com nossos
ideais, e o desejo frequentemente nos surpreende com sua irrupção inesperada em objetos que talvez
preferíssemos não desejar. Não é disso que se trata em Grande sertão: veredas, quando Riobaldo se vê
apaixonado pela delicadeza de Diadorim, que se apresentava como um jagunço de seu bando? Se não
tivermos em mente o caráter queer da pulsão, que pode se ligar a objetos que não fazem parte da
representação narcísica que o sujeito tem de si mesmo e de seu desejo, como dar conta do fato de o Brasil
ser, ao mesmo tempo, o país que mais mata travestis e transexuais e também o que mais consome
pornogra a vinculada a essa população? Assim, cabe pensar a violência a partir da falha estrutural da norma
– e dos efeitos de angústia que ela produz – ao tentar conformar seus sujeitos aos ideais que veicula.

Diante disso, a psicanálise produz o reconhecimento da dimensão abjeta do gozo que faz parte de cada um
de nós, fazendo ver que mesmo a heterossexualidade é atravessada por desejos e identi cações
incoerentes. Essa operação subverte, do interior, a distinção rígida entre o dentro e o fora da norma, ao
expor a participação íntima da abjeção no coração da “normalidade”, drenando sua consistência normativa.
O caráter desviante da pulsão revela a estranheza da vida psíquica, que cava oculta sob o véu da hipocrisia
burguesa na Viena de Freud.

Tal gesto, mesmo datando da virada do século 19 para o 20, continua estranhamente atual, a ponto de
Preciado se endereçar hoje aos psicanalistas de um lugar que ele mesmo situa como monstruoso, rebotalho
do social, por desa ar os critérios binários de enquadramento do humano que ainda vigoram, mesmo depois
de cem anos de psicanálise – que, em sua operação inaugural, expôs, a despeito de si mesma, o grão de
estranheza não binária que habita cada um de nós.

Nesse sentido, se levarmos em conta os pontos de atravessamento entre a psicanálise e as multidões queer,
as respostas dos analistas à interpelação de Preciado não deveriam se pautar por um embate imaginário
entre perspectivas supostamente rivais, tampouco por uma disputa estritamente epistêmica em que se
trataria de a rmar uma teoria sobre outra.

A nosso ver, a psicanálise deveria ser capaz de mostrar como pode enfrentar a segregação e a violência
dirigidas a dissidentes de gênero e sexualidade (que, ao modo de Preciado, atravessaram a fronteira daquilo
que conta como humano) e desnudar os mecanismos do ódio em jogo no racismo e na homotransfobia,
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apontando para a incoerência e a inconsistência estruturantes da própria norma. Isso certamente só será
possível se nos servirmos também da radicalidade antinormativa que orienta nosso trabalho clínico, podendo
funcionar como uma ferramenta de transformação para sujeitos das mais diversas identi cações de gênero e
sexualidade, por deixar aparecer, no gozo de cada ser falante, um ponto de opacidade que escapa à
regulação pelos ideais.

Talvez por isso, o psicanalista Jacques-Alain Miller pôde dizer que a psicanálise, diferentemente da tradição
ocidental, que sempre pensou a salvação pelos ideais, abriu a via inédita de uma salvação pelos dejetos. Ao
dar lugar àquilo que sobra, que cai como resto de nossas formas de subjetivação, a psicanálise encontra um
importante ponto de contato com as multidões queer – que, na outra ponta do século 20, também
propuseram, à sua maneira, um modo singular de subversão pelos dejetos.

Vinícius Moreira Lima é psicanalista, mestrando em Estudos Psicanalíticos



pela UFMG e pesquisador  em psicanálise, estudos queer e masculinidades.

As vozes das mulheres e o indizível da Mulher


• Maíra Marcondes Moreira disse:


2 de junho de 2021 


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Fefa Lins, Ostras à trois, 2018. Óleo sobre painel.

Propõe-se, de início, uma leve torção no célebre slogan feminista “O pessoal é político” para “O feminino é
político”. Em meados dos anos 1970, esse jargão ecoou em diversos locais acadêmicos e fora deles,
servindo também como algo que guiava os encontros feministas e as rodas de conversa, nos quais speak
bitterness (“falar amargamente”) era um modo de as mulheres circularem suas vozes, a m de mapear o que
havia de comum no mal-estar que experimentavam, mas que ainda não tinha nome. Essa prática importava
não só para a conscientização feminista, mas também para a elaboração de uma metodologia feminista
crítica e implicada em traçar estratégias de ação política. Há certo empirismo nas produções feministas que
muito interessa às elaborações teóricas e ao engajamento coletivo e político de outros grupos minoritários. 

Veri ca-se, então, uma potência nessa pluralidade de vozes para a transformação do mal-estar feminino em
novos horizontes e potencialidades de existência. Mas não só. Há também outro lugar, e que muito dialoga
com o feminismo, em que falar sobre esse mal-estar abriu caminhos produtivos. No divã de Sigmund Freud,
ao qual se reservava o lugar de escutar um sofrimento feminino típico de sua época, nasceu a psicanálise.

Enquanto muitos elogiam Freud pelo pioneirismo em dispor-se a ouvir o caráter sexual por trás do
adoecimento das histéricas, é preciso dar às primeiras pacientes de Freud os devidos créditos, pois é de
uma coragem sem tamanho que essas mesmas mulheres, tão submetidas às imposições da moral vitoriana,
tenham se permitido falar e que tenham demandado do psicanalista que as ouvisse.

Nas origens tanto do feminismo como da psicanálise havia algo das vozes das mulheres em jogo. Ainda
assim, veri ca-se uma série de impasses e discordâncias entre os dois campos. A psicanálise sofreu críticas
duras e acertadas do movimento feminista quanto a seus desenvolvimentos sobre a feminilidade. Apesar de
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haver em sua teoria algo de subversivo e inovador, há uma ambiguidade inerente à psicanálise que faz com
que, por vezes, Freud esbarre no equívoco de se prestar a certos ideais civilizatórios, ao mesmo tempo que
sua teoria faz com que eles caiam por terra.

São de sua autoria as teses sobre o caráter perversamente polimorfo da sexualidade infantil, a presença de
um componente sexual na histeria, os diferentes ns e meios que a sexualidade pode assumir,
concomitantemente às teses sobre a eleição de uma feminilidade dita “normal”, compatível com o casamento
e a maternidade, e a insistência na centralidade do romance familiar na formação do sujeito. Pode-se dizer
que Freud desagradou tanto às alas mais conservadoras, ao articular discursos sobre a sexualidade fora do
registro disciplinar e da moral vigente, como aos setores feministas e progressistas, por não se prestar, como
bem desejava, por exemplo, a psicanalista Karen Horney, a uma teoria emancipatória apoiada na identidade
da mulher, ou seja, a um “novo” ideal, suprimindo sua leitura das consequências imaginárias da diferença
anatômica no sujeito. A recepção de sua obra pelo feminismo gerou re exões críticas, produtivas e, por
vezes, caricatas.

Mas não se trata aqui de “cancelar” Freud ou de fazer uma análise moral sobre suas propostas. O fato é que,
como bem lembra Jacques Lacan, a psi-canálise deve estar à altura de seu tempo. A psicanálise, tão
interrogada pelo feminismo, pelo movimento LGBTQIAP+ e hoje pelo movimento negro e pela perspectiva
decolonial, se quiser estar à altura da subjetividade de sua época precisa de mais um esforço.

Entre os diferentes tratamentos dados à questão do feminino, a política é via de eleição não só para as
mulheres mas também para os psicanalistas. O que isso quer dizer? Há certo desconforto inicial ao ver os
termos “feminino” e “política” assim relacionados: “O feminismo é político”. No entanto, se foi exposta a
relevância das vozes das mulheres tanto para o feminismo como para a clínica psicanalítica, há ainda outro
ponto de convergência entre as duas práticas e teorias para re etir sobre a política: a questão da
universalidade.
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Para a psicanalista Maria Jose na



Sota Fuentes, o maior entrave

intelectual no feminismo diz

respeito à tentativa de criar

um universal Mulher, de

dizer “a Mulher”.
 

Essa foi uma tarefa que em parte viabilizou uma série de demandas políticas, ao mesmo tempo que produziu
antagonismos e fragmentações internas ao movimento. 

De todo modo, a tentativa de estabelecer um universal Mulher se deu pela pluralidade de vozes. Essa
maneira de forjar um universal tem atravessamentos no sentido de que, entre as mulheres, não vigora o
pressuposto de que todas padecem exatamente do mesmo mal-estar – há entre as mulheres a sororidade,
os laços solidários que reconhecem as diferenças de classe, étnicas e sexuais. 
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No entanto, esses laços também são insu cientes. Existe no feminismo uma série de movimentações
internas que tentam desmontar a questão da universalidade e seus efeitos na política. A política identitária é
a de maior aderência à tentativa de construção desse universal, posto que comumente se entende que para
a ação política é necessária uma identidade forte o su ciente para compor uma unidade, através de um
elemento intercambiável e que promova su ciente identi cação para se sustentar como um universal. As
mulheres negras, periféricas, colonizadas e cujas práticas sexuais e performáticas pouco respondiam ao
ideal Mulher imposto pelo feminismo hegemônico – a saber, o feminismo branco liberal eurocêntrico – foram
as primeiras a criticar e a propor outros tipos de universalidade.

O feminismo, como  movimento e teoria política, apoia-se em diferentes correntes teóricas e dialoga com
diversos campos. Há diferentes contribuições advindas da história, da sociologia e da antropologia para
quebrar o universal por meio do particular: contextos, marcadores sociais ou povos. Do lado da psicanálise,
por sua vez, há outro modo de colapso da universalidade, não apenas pelas particularidades interseccionais,
mas especialmente pela via do singular.

O indizível da Mulher corresponde



a um limite lógico de apreensão

sobre o que seria a Mulher, mas

não só: é também um limite lógico

de apreensão sobre o sujeito.
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Ainda que os regimes de reconhecimento se deem pautados na repartição urinária, ou seja, calcados na
distinção anatômica e na construção de papéis sociais para ns de exploração, há algo na sexualidade
humana que é opaco e impassível diante de qualquer tentativa de positivação, predicação ou
homogeneização, a despeito do que exigem os defensores da diferença sexual e de sua expressão caricata
e exacerbada.

A predisposição à bissexualidade e as consequências psíquicas da diferença sexual, formuladas por Freud,


atestam que há uma divisão interna no sujeito. Se as mulheres falam – ou mesmo os homens e outras
corporeidades –, há algo que todavia não podem exprimir e que é da ordem do sexual. As representações
sobre os sujeitos sexuados são necessariamente falhas. Não se pode dizer sobre o que não existe, isto é, o
sujeito como pura identidade generi cada, conscienciosa e autônoma, como expressão de um sexo que o
antecederia, tornando o sujeito uma constante previsível e administrável.

A teoria psicanalítica subverte a visada desse sujeito universal admitindo que algo de singular nele tem
relação com o feminino. A teoria feminista muito se empenhou em desconstruir e desnaturalizar o que seria
uma suposta essência ou mística feminina, posto que as narrativas sobre feminilidade serviram de pretexto
para explorar e subalternizar as mulheres.

Ainda que a psicanálise possa de fato ser considerada uma teoria que faz gênero, que ao descrever o que
seriam a feminilidade e a masculinidade produz, e restringe, lugares para o feminino e o masculino, há
também na teoria psicanalítica a possibilidade de tomar o feminino como conceito, tanto pela inexistência
como pela lógica do não todo. Em Lacan, o feminino – e o masculino – são pensados não em termos
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essencialistas, biológicos ou de gênero, mas como modalidades lógicas de gozo, em que, se há binarismo,
este não é tomado em termos de oposição ou de complementaridade. 

Logo, existe a identidade Homem – então, por consequência, é viável que se faça um grupo de homens,
uma unidade e um universal. Já do lado feminino, inexiste a identidade Mulher, o que, no entanto, não
impede a ação política contingencial: vide as insurgências, políticas de coalizão aberta e de assembleia, e as
monstruosidades queer – tal como propõem Judith Butler e Paul B. Preciado.

O feminino traz algo do sexual à cena, pois é da ordem do sexual o que produz ssuras e linhas de fuga nas
cções egoicas e identitárias. Alguns analistas da Escola da Causa Freudiana,  como Éric Laurent, Pierre
Naveau e Fabián Fajnwaks, há muito atentaram para a presença de algo do gozo feminino nas sexualidades
queer, manifestas no contemporâneo a partir das “novas” con gurações de relacionalidade e de nomeações
no espaço público. O psicanalista Jorge Alemán, por sua vez, percebe que há algo da lógica da inexistência
por trás daquilo que chama de atos instituintes – insurgências políticas não identitárias como as Jornadas de
Junho –, porém, ele o faz de forma dessexualizada, excluindo o feminino da equação: tais ações políticas
seriam mobilizadas com base em um vazio ontológico comum.

Meu livro O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade (2019) introduz a
ideia de que há modalidades lógicas apoiadas na diferença sexual por trás da política, e mais: a verdadeira
política é a que visa à subversão da identidade e do universal. Já a política segundo o télos masculino é a
que opera com o objetivo de homogeneizar os corpos, não suportando aquilo que há de insubmisso e
singular no sexual.

Um modo feminino de fazer política é este que não usa da identidade – ou a utiliza de forma estratégica –,
porque entende que as noções que sustentam essa identidade se referem a uma imposição universalizante
apoiada na diferença sexual para o reconhecimento. Porém, é o próprio sexual que leva à desconstituição
das identidades precárias de gênero. O que há de indizível no campo do feminino pode abrir novos
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horizontes produtivos e inventivos para a política, o sujeito, as experiências de relação e – por que não? –
para o feminismo. 

Maíra Marcondes Moreira é doutoranda em processos psicossociais pela PUC Minas

Para além do embate Butler-Lacan


• Rafael Cavalheiro e Carla Rodrigues disse:


2 de junho de 2021 


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A lósofa estadunidense Judith Butler, principal referência queer no Brasil. FANCA CORTEZ

Nosso escrito parte de uma constatação: na última década, proliferou no Brasil o interesse de parte dos
psicanalistas pelos estudos queer. Gostaríamos de esclarecer que optamos por adotar a expressão “estudos
queer” – em detrimento de “teoria queer” –, porque a palavra “teoria”, no singular, indica uma
homogeneidade que em nada corresponde às diferenças entre diversos autores. O campo dos estudos
queer é plural e heterogêneo, permeado por con itos e por disputas internas.

Da perspectiva psicanalítica brasileira, observamos, pelo menos, três posições divergentes. A primeira
consiste em tomar o campo queer como um analisador que pode ser operacionalizado junto à psicanálise, de
modo a fazer trabalhar alguns de seus conceitos. A segunda sustenta que psicanálise e estudos queer têm
objetos diferentes e que as críticas dirigidas à psicanálise são infundadas, imprecisas e injustas. Por m, há
uma terceira posição, mais radical, na qual o queer é descrito como algo perigoso, um vínculo social
perverso que obliteraria a materialidade do corpo, ou ainda como uma concepção que faria da relação
gênero/sexo algo tão simples e furtivo quanto trocar de roupa – resultado de uma ação consciente e
voluntária do sujeito.

Tais posições se relacionam à recepção dos estudos queer pela psicanálise brasileira, que se dá, aliás,
predominantemente na academia e não nas instituições psicanalíticas. Logo, temos uma centralização
maciça da discussão entre os estudos queer e a teoria lacaniana. Além disso, as duas principais referências
(muitas vezes as únicas) dos estudos queer para os psicanalistas são Judith Butler e – mais recentemente –
Paul B. Preciado.
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Desde a publicação de Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, em 2003, Butler se
tornou uma das principais referências queer no Brasil. Por muitos anos, esse foi o único livro da autora
traduzido para o português. Apenas a partir de 2014 outros títulos seus e de Preciado foram traduzidos. Essa
lacuna temporal não passou sem efeitos, e a falta de tradução/circulação de outros autores parece ter
consolidado Butler e Preciado como únicos expoentes dos estudos queer no Brasil, pelo menos no campo da
psicanálise, di cultando, assim, situar melhor o debate e o que se perdeu nesse hiato. 

Diferentemente do que se deu



nos Estados Unidos, aqui Butler

foi considerada mais como

crítica da psicanálise do que

como interlocutora.
 

Em grande medida pelo fato de a principal referência à autora no Brasil ser Problemas de gênero, no qual,
efetivamente, encontramos críticas mais contundentes a Sigmund Freud e a Jacques Lacan, tais como o
problema da disposição, da bissexualidade, do Complexo de Édipo e da Lei simbólica como inevitabilidade
histórica. Em resposta, muitas objeções psicanalíticas foram erguidas sob argumentos oriundos de uma
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leitura parcial e reducionista da obra de Butler, desquali cando suas proposições, ao passo que outras
indicavam o caráter estritamente imaginário do conceito de gênero e a suposta negação da diferença sexual
produzida em sua leitura. 

Nosso intuito não é produzir uma leitura especular que partiria de um princípio ingênuo de causa e efeito
segundo o qual uma maior apreensão dos escritos de Butler necessariamente diminuiria ou esgotaria essas
problemáticas, mas é importante considerar o movimento de sua obra, destacando o livro Corpos que
importam, de 1993, e também o debate – mesmo sem consenso – com Slavoj Žižek e Ernesto Laclau,
publicado no livro Contingency, Hegemony, Universality, de 2000 – nos quais a discussão acerca do real
lacaniano, por exemplo, é retomada, o que conduz a outras perguntas e questões no debate com a
psicanálise. Além disso, sublinhamos que, nos Estados Unidos, sobretudo, na década de 1990, Butler
manteve um diálogo permanente não só com a teoria psicanalítica, mas também com diversos psicanalistas.
Aqui raramente são mencionadas suas discussões com Jessica Benjamin, Lynne Layton, Adam Phillips e
Juliet Mitchell, exemplos desse movimento.

Dito isso, parece necessário recolocar questões que visam superar falsos dilemas, como: a psicanálise é
queer ou não? A psicanálise se bene cia dos estudos queer ou não? Esse diálogo é possível ou não? Desde
o início está posto o entrelaçamento inerente do queer com a psicanálise. A complexidade dessa relação ca
mais visível quando consideramos outros autores, de modo que a ideia de um confronto radical ou de uma
incompatibilidade absoluta perde ainda mais o sentido.

Se voltarmos aos “primórdios dos estudos queer” (com toda a ambiguidade que essa expressão carrega),
podemos ver a importância dada à psicanálise já nas contribuições de Teresa de Lauretis, que cunhou a
expressão “teoria queer” em 1991. Segundo a autora, a pulsão e o sexual são indispensáveis para abordar a
sexualidade humana. Dessa forma, saídas queer podem se relacionar com a plasticidade e com a
variabilidade do objeto da pulsão e com a sexua-lidade enquanto anárquica, não reprodutiva e perverso-
polimorfa.
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Um nome que permanece pouco explorado no Brasil é Eve Kosofsky Sedgwick, que talvez seja a autora
mais referenciada no campo queer nos Estados Unidos. Em Touching Feeling, ela recorre à psicanálise pela
via da teoria dos afetos, aproximando-se mais da psicanálise inglesa. Outros autores, como Leo Bersani, Lee
Edelman, José Esteban Muñoz e Jack Halberstam, cada um a seu modo, passam pela psicanálise ou pelas
psicanálises, buscando referências em autores como Melanie Klein, Wilfred Bion e Jean Laplanche –
psicanálises, portanto, que vão além de Freud e Lacan. 

Leo Bersani e Lee Edelman são comumente associados à “virada antissocial” ou às “teses antirrelacionais”
dos estudos queer. Ambos têm em comum a ênfase na negatividade que questiona a perspectiva de futuro.
Nesses autores, a psicanálise é uma referência imprescindível para pensar o próprio conceito de queer e de
queeridade. Em No Future: Queer Theory and the Death Drive, o futuro criticado por Lee Edelman é
representado pela Criança (“the Child”), o menor que deve ser protegido diante de múltiplas ameaças e que,
se tudo correr bem, se tornará a força motriz da capacidade reprodutiva heterossexual. O “futurismo
reprodutivo”, encarnado na criança, rechaça todos aqueles que não buscam viver por esse porvir. Seu
trabalho, fundamentalmente interessado nos conceitos de gozo e de pulsão de morte, mostra a presença
dominante da retórica da futuridade, alocada na projeção da imagem da criança como modelo de
transmissão da cultura. 

Edelman se afasta de perspectivas teóricas que exaltam certo ideal de harmonia contida na ideia de
diversidade. Assim, o queer não gura em um campo progressista que vislumbra o futuro como algo
esperançoso e passível de assimilação, pelo contrário, somos convidados a abraçar a negatividade queer. 

Essa é uma discordância de Muñoz, por exemplo, que, diferentemente de Edelman, sustenta que não há
nada para o queer além do futuro: a queeridade está no horizonte como uma idealidade. Muñoz critica o
esvaziamento dos afetos no campo lacaniano e mostra como alguns sentimentos negativos – cinismo,
oportunismo, mal-estar – podem ser reimplantados criticamente e, dessa forma, funcionam como resistência
ao controle social. Muñoz vê na teoria das posições de Melanie Klein um meio para pensar em
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temporalidades queer. Longe de fazer uma ode à vivência na posição esquizoparanoide, ele aposta que,
nesse movimento entre tempos, há uma possibilidade de recusar a normatividade dada sua lógica
antidesenvolvimentalista.

Por m, retomando a heterogeneidade do campo queer, voltamos a Eve Sedgwick, que, em seu texto
“Leitura paranoica e leitura reparadora, ou, você é tão paranoico que provavelmente pensa que este ensaio é
sobre você” (recentemente traduzido para o português), também se dirige à teoria kleiniana das posições
esquizoparanoide e depressiva para propor uma distinção entre duas metodologias de leitura – indicando
talvez uma boa direção para seguirmos no debate entre psicanálise e estudos queer. Enquanto a leitura
paranoica, por sua semelhança com a posição esquizoparanoide, produz uma abordagem cindida do texto –
que é ou bom ou mau e, assim, busca eliminar a surpresa e reiterar simetrias –, a leitura reparativa, por sua
vez, relaciona-se com a posição depressiva, tomando os objetos como totais, simultaneamente bons e maus.
Dito de outro modo, uma leitura mais reparatória propõe desfazer-se da determinação paranoica e ansiosa,
segura de que nenhuma novidade, por mais impensável que pareça, chegará ao leitor como horror. Ler
dessa forma é permitir-se experimentar o novo. 

Em tempos de estreitamento do pensamento, parece necessário levar adiante essa proposta metodológica
de leitura reparadora da psicanálise com os estudos queer, de modo que as psicanálises possam se tornar
menos avessas à surpresa e que consigamos explorar críticas e leituras divergentes. Estas não devem se
restringir a posições de ataque ou defesa, mas ser capazes de sustentar a não resolutividade dos confrontos
e dos múltiplos dissensos implicados nos bons encontros, inclusive entre esses dois campos. 

Carla Rodrigues é professora de Filoso a na UFRJ, pesquisadora da Faperj, feminista, tradutora e


escritora.

Rafael Cavalheiro é doutorando em Teoria Psicanalítica na UFRJ, psicanalista e pesquisador.


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O o, o cu e a língua
• Pedro Ambra disse:


2 de junho de 2021 


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Fefa Lins, Quando o tesão passa, 2019. Óleo sobre tela. FOTO DE SOFIA LUCCHESI/CEDIDA PELA GALERIA AMPARO 60

Gosto de pensar que entre psicanálise e teorias queer há, a despeito de suas diferenças, um mundo de
semelhanças, a nidades e um certo horizonte comum de desconstrução. A nal, em ambas está em jogo um
rechaço ou, no mínimo, uma descon ança diante da substancialidade identitária. Entre lacanianos, a
experiência de uma análise poderia ser, por que não?, pensada como um longo percurso de queeri cação do
falasser: espera-se deixar cair a paixão pela unidade e a universalidade da norma fálica. No limite, o m de
uma análise é a própria penetração da alteridade real do sexo no sujeito, possibilitando o que chamamos de
gozo suplementar, não-todo, transviado. 

Também suponho, com frequência, que tal a nidade não é apenas um encontro fortuito entre saberes e
práticas subversivas que buscam um rompimento da norma dominante, mas que partilham solos teóricos e
epistemológicos comuns. Lembremos que a recusa da patologização da homossexualidade –  e, nas
palavras de Judith Butler, a “pulsão queer” de Sigmund Freud – tanto formam a base de uma série de
re exões empreendidas pelos feminismos e pelas teorias de gênero como apontam para uma crítica do
“Homem” iluminista. Somos subversivos, contra a normatividade cultural e a favor de uma singularidade do
desejo, além de reconhecer que o inumano constitui o humano e vice-versa. Tudo certo.

Porém, ao escrever este texto, me pus a pensar: por que eu gostaria tanto de fazer casar psicanálise e teoria
queer? Insistir nas semelhanças não seria, no fundo, uma uni cação totalitária que, performativamente,
silenciaria, além das diferenças, a própria possibilidade de subverter os termos dessa aproximação? Aliás, o
que sei eu de queer para além de uns poucos livros? É possível falar em teoria queer? Por que cito Jacques
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Derrida insistindo que “a psicanálise” não existe, haja vista nossa heterogeneidade, mas quando falo em
teoria queer ou feminismo quase sempre coloco tudo no mesmo balaio, explorando passagens e autors que
me são mais convenientes para salvar a psicanálise, deixando de lado justamente a radicalidade da
diferença? Qual arbitrariedade saussuriana explica a escolha do signi cante explorando que usei há pouco?
Pode o explorador falar? Teria isso alguma coisa a ver com o fato de ser eu um brancomicis? Não pode ser,
a psicanálise me jurou de pés juntos que eu era um sujeito na singularidade do savoir-faire com meu
sinthome!

Perguntemo-nos, ademais: o que signi ca hoje importar sem nenhuma aduana pós-colonial teorias e autors
do norte global, aplicando-os num debate conceitual cuja complexidade, por vezes, parece tão distante das
transações tupiniquins? Por que tanto queer, lalangue e Unheimliche na parada? Como lembram So a
Favero, Larissa Pelúcio e Lélia Gonzalez, por que não tomar a dimensão político-sexual de nossas
subjetivações a partir de uma ética pajubariana, de uma teoria cu-caracha ou de um pretuguês, banhado em
sua amefricanidade?

Conceber a psicanálise a partir do cuier implicaria assim não apenas a leitura exegética de autors pós-
estruturalistas no que els possam ter de apontamentos convergentes ou de divergências oriundas de mal-
entendidos. Não se trata tampouco de uma delimitação de campos na qual se tem plena ciência de onde
termina a psicanálise e onde se iniciam outros saberes sobre o sexual, reconhecendo a diferença, mas
tratando-a com bela indiferença. Talvez a pergunta seja como construir um relacionar-se que escape tanto do
demarcacionismo sovina como da colonização de um saber pelo outro, perdendo o que há de melhor nos
dois.

 
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Pensemos então, como analistas,

numa zona topológica intermediária,

numa borda, num furo, num cu. O cu epistemológico da psicanálise.
 

Por onde ela se livra daquilo que, no fundo, a constitui, mas por onde, também, pode descobrir prazeres
inéditos na lida com o cuier, o feminismo, a descolonialidade, autorizando-se, assim, não só de si mesma
mas também desses alguns outros. Pois, para além dos falos conceituais da doutrina, de todos os lábios
clínicos, dos dedos que tecem a transmissão e de nossos mamilos polêmicos de cada dia, a psicanálise
talvez precise se lembrar dos bons frutos trazidos, ao longo de sua história, pela recepção de questões que a
princípio lhe seriam estrangeiras.

Diante de novas formas de viver, falar, pensar e lutar através do e pelo sexual, a psicanálise (e justo ela!) por
vezes parece se fechar sobre si. O medo da invasão, da chamada sociologização do saber analítico, de sua
transformação em psicoterapia pós-moderna de cunho adaptacionista e outras angústias, por mais que
pontualmente possa se justi car, no frigir dos ovos é apenas resistência não só à alteridade de outros
saberes, mas, principalmente, a um desejo de transformação que possa nascer no interior da própria
psicanálise. Será que perderíamos tanto assim ao experimentar dar ao cuier uma chance? Se pá, não. Mas
como?

Tendemos a ler Sigmund Freud e Jacques Lacan como grandes universalistas. E talvez o sejam. Ocorre que
também eles falavam e escreviam situadamente não só no que referia a seus sujeitos supostos, mas no uso
que faziam de suas letras e línguas, inclusive no que elas tinham de estrangeiras a si mesmas. Quanto a
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nós, brasucas, é preciso que atentemos também à materialidade da cadência e das gírias de analisantes, ao
recalcamento da informalidade em nossos escritos e à quase denegação de nosso falar próprio. Aceitamos
de bom grado palavrões como “foraclusão”, “sinthoma” e “queer”, debatemos Trieb e jouissance com
naturalidade e nem cogitamos chamar pro baile nosso brasileiro tão transante. Por analogia, depois de tanto
Maurice Blanchot, James Joyce e Arthur Rimbaud, não seria hora de abrir a psicanálise pras autorias do
nosso pretuguês?

Digo isso porque a língua não é apenas uma encarnação particular da estrutura universal da linguagem: ela
se forma pela integral de seus equívocos, é verdade, mas também pela história de resistência aos processos
de subalternização. Queer, lembremos, é um insulto pros gringos: seu movimento de academicização não
apenas subverte a violência, mas inclui no próprio pensamento crítico um traço da língua tal como usada
pelos falantes de lá pra se remeterem ao desassossego do sexual. Quanto a nós, hoje, em vez de car
batendo o pé contra a linguagem de gênero neutra em nome de um simbólico seboso, que tal enxergar em
nosso momento histórico uma ocasião única de lidar com a língua no que ela tem de mais radicalmente
sexual e, no limite, poético? É preciso linguar nossa linguagem.

Se, para psicanalisar, devemos ter no horizonte a subjetividade de nossa época e lembrar que somos por ela
arrastados numa Babel contínua, como lembra Lacan, é imperioso conseguir escutar nessa aparente
confusão de línguas não apenas os ditos do contemporâneo, mas, igualmente, seus dizeres. Em outras
palavras, questões como lugar de fala, branquitude e cisgeneridade não devem ser tomadas como
incompatibilidades teóricas em si, por imaginarmos que a rmam um “eu” que a psicanálise tanto se esforçou
para desconstruir. Suas enunciações, atos e conquistas nos convidam a reconhecer uma verdade do espírito
do tempo, ir além da binariedade da discórdia e repensar nosso lugar na dança dos saberes, já que talvez
estejam tentando dizer que não somos só intérpretes, mas também falantes, identitários, racializados e
generi cados: não há meta-identidade. Isso não signi ca abdicar do universalismo, mas compreender que,
ao performar paixões por determinados pilares da psicanálise (falo, corre aqui), esquecemos que partes
dessa Babel de fato precisam ir ao chão ou à chuca. Isso não implica, é claro, ignorar as especi cidades da
fi
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psicanálise, mas talvez redescobrir sua vocação subversiva por meio de uma abertura epistemológica menos
receosa em se entregar para o outro. Talvez alguns ainda busquem — no extenso labirinto de teorias,
discursos e vivências cuier — algo que possa nos levar de novo à era de ouro na qual a psicanálise reinava
soberana como grande saber sobre o sexo. Um o de Ariadne cairia bem, mas um o terra cairia muito
melhor.

Pedro Ambra é psicanalista, pesquisador e professor da PUC-SP.

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