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Emílio Romero

Formas de alienação e psicopatologia

. N.Cbam 616.89 R763i 3.ed.


Autor: ROMERO, Emílio.
· Título: O inquilino imaginário :formas

. .. llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
02265043
PUC Minas- BE
O Inquilino do Imaginário: Formas de Alienação e Psicopatologia
Copyright"' 2001 - Emílio Romero
Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem prévio consentimento
da editora, ficando os infratores sujeitos às penas previstas em lei.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Romero, Emílio

O Inquilino do Imaginário: Formas de Alienação e Psicopatologia I


Emílio Romero. - 3a Ed. Rev. e Ampl. - São Paulo: Lemos Editorial, 200 1.
ISBN 85-7450-068-2

Bibliografia.
l. Psicopatologia 2. Psiquiatrià I. Título

97-1431 CDD-616.89

Índices para catálogo sistemático:


l. Psicopatologia 616.89

Impresso no Brasil
2001
Índice

Agradecimentos ......................................................................................................... 5

Sobre o Autor ............................................................................................................. 6

Introdução ................................................................................................................... 7

Capítulo 1
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico ...... 11

Capítulo 2
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia ......................... 39

Capítulo 3
Fenomenologia e psicopatologia: a compreensão do psicopatológico ..... 63

Capítulo 4
Formas de alienação e psicopatologia .......................................................... 79

Capítulo 5
A consciência e a questão do inconsciente ................................................. 113

Capítulo 6
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações
emocionais e neurose ... ............... ... .. ... .. ...... .. ..... .... .. .. .. ... . .. ... .. .. .... .... ... . 141

Capítulo 7
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial
das neuroses ............................................................ :.............................. 169

3
O inquilino do imaginário

Capítulo 8
Os tipos de ansiedade propostos pelo DSM-IV (1994).... ... .. ..... ............... 181

Capítulo 9
Os transtornos da personalidade e a questão dos tipos psicológicos .... 199

Capítulo 10
O guardião de si mesmo
Sobre o Caráter Anancástico ....................................................................... 211

Capítulo 11
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a
questão da auto-identidade................................................................... 231

Capítulo 12
Detrás de um vidro escuro: as vivências dominantes na depressão ........ 261

Capítulo 13
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros
e de adaptar-se à realidade.: ....................................................................... 283

Capítulo 14
O inquilino do imaginário ............................................................................. 301

4
Agradecimentos

Rara vez um itinerário se faz só.


Nestes anos, algumas pessoas amigas me acompanharam no meu trabalho
intelectual, estimulando-me com sua presença.
Quero mencionar aqui algumas dessas pessoas: Ester Tomshinki, Josefma
Daniel Piccino, Rosiles Padovani, Ivete Eyko e minha esposa Beatriz Della Bídia.

Emflio Romero
Psicólogo Clínico

5
O inquilino do imaginário

Sobre o Autor

E
mílio Romero nasceu no Chile, país onde fez seus estudos regulares de
Psicologia, diplomando-se na Universidade Nacional em 1970.
Antes de dedicar-se à psicologia, estudou línguas e literaturas européias
(alemão, russo e francês) e filosofia durante dez anos. Desde 1975 reside no Brasil.
Foi professor de Psicopatologia na Universidade Franciscana e na Faculdade
Paulistana (São Paulo). Atualmente, ocupa a mesma cadeira na Faculdade Padre
Anchieta (Jundiaí). Além da docênciae da clínica, escreve regularmente sobre
questões fundamentais da psicologia.
Orienta suas pesquisas numa abordagem fenomenológico-existencial, numa
linha antropológico-compreensiva. Sua proposta é teorizar as cinco grandes áreas
da psicologia: a psicopatologia, o desenvolvimento humano, os relacionamentos
interpessoais, os métodos e técnicas psicoterapêuticas e a personalidade como
síntese configurada, embora em aberto, da pessoa. Além de seu trabalho intelectual,
Romero é co-fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista-Existencial,
Sobraphe (São Paulo) e psicólogo clínico.
Ademais do presente título, já editou Essas Inquietantes Ervas do Jardim,
(Lemos Editorial, 1996), centralizado na questão do normal e do sintomático. Em
1998, publicou As Dimensões da Vida Humana - Existência e Experiência, que
estabelece os fun~amentos de uma psicologia compreensiva baseada na sua
concepção da existência segundo as oito grandes dimensões que a caracterizam.
Em 1999, editou seus escritos sobre o processo de mudança: Neogênese: O
Desenvolvimento Pessoal Mediante a Psicoterapia. No percurso desse mesmo
ano se propõe dar à luz uma obra que considera sua melhor contribuição ao saber
psicológico: As Formas da Sensibilidade - Psicologia e Psicopatologia dos
Afetos.


Introdução

ESCLARECIMENTO
, PRELIMINAR DO
ITINERARIO PROPOSTO

A
bordamos nas páginas deste livro uma série de temas que costumam ser
agrupados sob os títulos de psicopatologia, de psiquiatria, de psicologia do
anormal e, até mesmo, de clínica psicológica. Meu intuito foi oferecer ao
estudante e ao estudioso dessas matérias, seja especialista ou não, um repertório
de questões que estão no centro de todas essas disciplinas.
Supõe-se que todos esses temas são assuntos obrigatórios na formação de
psicólogos e psiquiatras, especialmente. Deveria ser assim, mas alguns capítulos
que apresentamos como inevitáveis na pesquisa psicopatológica raras vezes são
abordados nos tratados sobre estas matérias. O único tema discutido é o normal e
o patológico, geralmente de um modo sumário e insuficiente. A questão inicial de
qual seja a natureza do psicopatológico e a impossibilidade de responder a essa
questão, a menos que se assuma uma teoria (geralmente uma macroteoria) que
postule toda uma concepção do homem e da doença, quase sempre são esquivadas.
Para evitar esse equívoco tão freqüente na maioria dos autores, achei pertinente
um esclarecimento inicial desse ponto.
Foi necessário, então, tratar das concepções do psicopatológico para responder
à questão sobre a sua natureza. De passagem, caracterizei as quatro grandes
abordagens dessa problemática.
O fenômeno da alienação parece-me outro tema inevitável, embora nenhum
manual de psicopatologia lhe dedique nem uma página sequer. A maioria dos livros
sobre esse assunto é de cunho sociológico ou filosófico, existindo apenas algumas
publicações de autores europeus que o consideram a partir de uma perspectiva

7
O inquilino do imaginário

psicopatológica. Esse é um fenômeno que nos toca a todos; em conseqüência, não


pode ser ignorado.
Outro assunto ignorado, ou simplesmente maltratado, é o tema da consciência.
Em razão do auge da psicanálise, tem-se criado toda uma mitologia do inconsciente;
tudo isso em detrimento da enorme importância da consciência. A maioria de nossos
psicólogos não saberia dizer duas linhas sensatas sobre essa característica precípua
do homem- com todos os pontos escuros que ela implica. Escrevem-se montanhas
de papel sobre os prodígios do inconsciente (um de nossos escribas se permitiu
publicar um livro sobre O Inconsciente Diabólico) e muito menos sobre a
consciência. É verdade que esse é um tema difícil, mas entendo que uma
investigação sobre seu sentido e significado é fundamental e deve, inclusive, ser
prévia a qualquer teorização da noção de inconsciente.
Há uma outra questão importante, mas que decidi omitir nestes escritos.
Omiti por tê-la tratado numa publicação anterior; lá está colocada em toda sua
amplitude ("Psicologia e Existência" n2 2, 1984, posteriormente incluída em meu
livro Essas Inquietantes Ervas do Jardim, 1996). Trata-se da questão das
classificações psiquiátricas e psicopatológicas, os chamados quadros ou síndromes
clínicas. Essas classificações são obrigatórias em todos os manuais de psiquiatria,
pois constituem um dos pilares dessa disciplina. Diga-se de passagem que os
psicólogos humanistas-existenciais olham com certo receio esse tipo de
taxonomias. Não compatilho desse tipo de prevenção: basta conhecer sua validade
e levar em conta suas limitações.
A segunda parte do livro se centraliza no que, supõe-se, seja a parte essencial
no ofício do psicólogo, o que ele precisa conhecer a fundo se pretende dedicar-se
à arte psicoterapêutica. Com efeito, na clínica atendemos principalmente pessoas
que sofrem cinco tipos de problemas:
- pessoas que apresentam falhas ou deficiências caracteriais;
- indivíduos com problemas emocionais diversos, sem que por isso entrem na
categoria de neuróticos;
- crises existenciais, centralizadas na esfera dos valores e das crenças;
-pessoas que apresentam distúrbios psicossomáticos e desvios sexuais;
- pessoas cuja configuração pessoal e maneira de ser-no-mundo apresentam a
feição do neurótico. .
O psicólogo raras vezes atende psicóticos e dementes; esses dois tipos
pertencem à esfera de competência do psiquiatra, por entender-se que essas pessoas
são propriamente doentes. Essa é a forma tradicional de encarar as coisas.
Sobre as neuroses existe abundante literatura especializada, mas abundância
não implica qualidade, quem não sabe disso? É nesse tema que se percebe com
maior clareza as profundas divergências teórico-doutrinárias, tão notórias··entre os

8
Introdução

psicólogos. Eu ofereço minha visão das coisas nesse terreno- visão que não preten-
de a aceitação unânime de meus colegas de escola, certamente. Neste ponto, é
pertinente observar que na última edicão do DSM-IV (1994), os psiquiatras norte-
americanos optaram por eliminar a categoria de neurose nas suas classificações
dos grandes quadros clínicos. Por razões que dou no capítulo correspondente,
considero sustentável a manutenção do conceito de neurose.
·Na parte final abordo a questão da loucura- ou como se costuma dizer nos
meios acadêmicos, da psicose. Isso significa que entro de cheio na morada do
imaginário. Nessa morada residem todos os produtos da fantasia- desde os
mitos e as lendas até os sonhos, desde as nossas caras ilusões até as formas
mais ostensivas da loucura. O psicótico é o inquilino do imaginário; ele habita-
de um modo predominante mas raras vezes exclusivo - um plano fictício,
dissociado da realidade social, referencial inevitável de nossa condição humana.
Contudo, não se suponha que apenas o louco habite esse plano de existência,
nem menos que esta esfera seja só um refúgio negativo e inconveniente. Não.
Todos nós, convencionalmente chamados normais, transitamos por suas vias, a
título de transeuntes e freqüentadores. O louco habita lá, mas também freqüenta
a realidade, pois na psicose sempre se conserva algum senso de realidade -
salvo nos períodos de surto. Em menor medida que o vesânico, o sujeito qualificado
como neurótico também tende a certos extravios imaginários: inflaciona a tal
ponto certos eventos e situações, pela carga emocional por eles mobilizada, que
estes terminam por dominá-lo.
Falo aqui de atividade imaginante alienatória; dessa vez não considero a
imaginação criativa nem comento aquela que nos permite, a todo momento,
transcender o imediato.
Grosso modo, esse é o itinerário proposto. Não será demais outro dado para
o leitor exigente.
A abordagem que orienta o tratamento de todas as questões enfocadas aqui
é de inspiração fenomenológica-existencial; em grande medida é assim, mas quero
enfatizar que não me identifico com nenhuma linha específica dessa corrente
doutrinária. A rigor, o que tento fazer e aplicar no tratamento dos diversos tópicos
é uma forma de psicologia compreensiva, influenciada pelo método fenomenológico
e por acategorias e conceitos existenciais. Até onde me foi possível, tentei fugir do
estilo acadêmico - sempre tão cheio de formalismos, citações, procura de
autoridades e de fontes canônicas. Na verdade, todos os temas propostos nestas
páginas fazem parte da realidade cotidiana de todos nós; é lamentável que sejam
comentados e estudados apenas no âmbito universitário e acadêmico.
O leitor inteligente saberá desculpar um moderado didatismo que se deixa
sentir em algumas páginas. Escrevo para um público heterogêneo, embora a maioria
dos leitores exibam algum diploma de estudos superiores.

9
O inquilino do imaginário

Complemento à terceira edição


Nesta terceira edição temos feito dois agregados importantes. Os capítulos 8
e 9 são novos. Os dois temas tratados neles procuram inserir o leitor na ordem do
dia nas questões taxonômicas, discutindo e comentando os critérios propostos pela
psiquiatria norte-americana tal como está refletida no DSM-IV ( 1994). Introduzimos
aqui e acolá outras pequenas modificações. Um conto de Kafka nos serviu para
ilustrar melhor as constantes vivenciais da depressão; demos maior ênfase no
conceito de encontro e desencontro pessoal como fundamento ontológico do
construto psicológico muito em voga estes últimos anos - a auto-estima; fizemos
uma demarcação mais nítida entre a contribuição de Jaspers e nossas próprias
idéias; acentuamos com mais clareza o que seja o psicopatológico numa perspectiva
existencial. Ademais, o texto reproduz a segunda edição.

10
Capítulo 1

AS ABORDAGENS DO
, -
PSICOPATOLOGICO E A QUESTAO DO
MODELO EPISTÊMICO

O patológico é aquilo que degrada e ameaça tanto a vida quanto a existência,


limitando-as em suas funções e seu potencial originários. Vida e existência estão
numa mútua interdependência; a existência se torna psicopatológica quando
nega, mistifica e aliena seu ser mais próprio: sua liberdade, suas possibilidades,
sua realização mesma. O psicopatológico não é algo externo ao indivíduo que o
invadiria como um vírus, embora amiúde o sujeito o sinta dessa maneira; é a
própria existência que se extravia e degrada.

tema central dos escritos que formam este livro são algumas questões

O fundamentais da psicopatologia, disciplina que se costuma definir como o


estudo das perturbações mentais. Essa é uma definição bastante escolar,
que mais encobre o caráter problemático do que nos informa. Tento em seguida
apontar alguns aspectos dessa problemática.
Antes de nos introduzirmos no miolo de nosso assunto, é conveniente uma
resenha das abordagens existentes em psicopatologia. Todos estes enfoques
colocam a questão da natureza do psicopatológico e tentam estabelecer sua origem
e os fatores determinantes que provocam e mantêm estas perturbações psicológicas.
Ademais, todas estas abordagens oferecem um estilo de relacionamento
terapêutico peculiar a cada uma; estilo em consonância com seus pressupostos
teóricos e com sua concepção do homem. Não apenas isso: definem também o

11
O inquilino do imaginário

que entendem por cura, isto é, como deve ser o tratamento e o cuidado para que a
pessoa se libere de seu sofrimento.
Por último, cada abordagem caracteriza-se por direcionar sua pesquisa segundo
um modelo epistêmico dominante: propõe uma forma de conhecimento ajustada à
sua teoria geral.

As abordagens do psicopatológico e suas divergências

O que é isto, o psicopatológico? Simplesmente uma doença mental, como


afirmam os organicistas? Ou corresponde à psicologia do anormal, como querem
os comportamentalistas? Ou o psicopatológico expressa-se nas diversas formas
de alienação, implicando um malogro pessoal e uma perda da liberdade, como
postulam os existencialistas? Talvez corresponda à dinâmica dos conflitos
inconscientes que dominam o sujeito, levando-o a uma perda da realidade, como
pretendem os freudianos?
Como se pode apreciar, as divergências sobre essa questão começam assim
que formulamos o problema. A razão é simples: para responder a essa questão
precisamos de uma teoria. De uma teoria que não seja apenas um conjunto de
hipóteses sobre esse assunto; tem de ser uma teoria que responda primeiro à
questão da natureza do psíquico e que esclareça a conexão entre o psíquico e sua
concepção do homem, não importando se essa concepção é implícita e apenas
subentendida.
O ponto inicial que quero ressaltar é que o que entendemos como característico
e essencial do psicopatológico está subordinado às concepções doutrinárias e
teóricas ainda vigentes em psicologia e psiquiatria. Não podemos afirmar
tranqüilamente que o psicopatológico seja isto ou aquilo. Definir o psicopatológico
por seu étimo - como fazem os organicistas, dizendo que é doença mental- pode
até justificar-se, sempre que se nos esclareça em que consiste uma doença e o
adoecer e como se manifesta a doença no plano psíquico e existencial.
Cada abordagem formula suas teses sobre uma série de questões que
decorrem do postulado inicial e dos pressupostos teóricos da doutrina.
Como todo estudante razoavelmente informado já sabe, existem quatro grandes
abordagens ainda com bastante presença na área da psicopatologia e da psiquiatria.
No quadro seguinte (pág. 16), sintetizamos as características principais desses
enfoques; indicamos também os fatores implicados na concepção básica do
psicopatológico e nos postulados gerais da teoria.
Não é meu propósito, aqui, comentar cada um desses fatores; apenas quero
situar o leitor menos familiarizado com estas divergências doutrinárias, tão comuns

12
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

no campo da psicologia e da psiquiatria. Basta examinar o quadro comparativo


para perceber que essas divergências radicam nos postulados mesmos das
respectivas teorias. Não será demais já adiantar que o organicismo não é propria-
mente uma teoria psicológica; é uma concepção biomédica, que reduz o psíquico
ao biológico -na sua formulação mais radical- ou entende o psíquico como um
fator independente, mas que opera como mero coadjuvante nos processos
mórbidos. Só há doenças mentais, diriam, se há manifestações orgânicas que
estão originando uma perturbação psíquica. Em contraposição, as outras
abordagens são teorias psicológicas, embora as três entendam o objeto da
psicologia de um modo completa ou parcialmente diferente. Para a psicanálise,
esse objeto é o inconscjente; para o comportamentalismo, é a conduta; e para a
fenomenologia existencial, é a vivência enquanto manifestação concreta da
existência.
Essas três abordagens sustentam-se em postulados e formulam-se em
princípios diferentes; dessa diferença originária decorrem, como conseqüência
lógica, todas as outras divergências: de métodos de pesquisa, de técnicas
terapêuticas, de concepção da personalidade, de modelo de desenvolvimento, de
visão antropológica.
Feitas essas considerações preliminares, vejamos o ponto que nos interessa
ressaltar aqui.

O enfoque organicista ou biomédico

A teoria organicista foi inaugurada por Hipócrates e ainda hoje é seguida pela
maioria da classe médica, que por sua formação biológica tende a ver o psíquico
subordinado ao orgânico ou dependente deste. O postulado é que as chamadas
funções mentais só podem dar-se em determinadas estruturas cerebrais, estando
influenciadas pelos mais diversos fatores orgânicos. Sendo assim, a disfunções
mentais são igualmente decorrentes de um deficiente ou anormal funcionamento
do cérebro. Essa tese central do organicismo goza de amplo apoio da pesquisa
biológica e nos parece a linha mais bem fundamentada no que se refere às doenças
mentais propriamente ditas. A maior dificuldade para aceitar essa tese sem
discussão reside na extensão que adquire, neste enfoque, o conceito de doença
mental. Entendida a doença como algo essencialmente sintomático, qualquer
manifestação desviada da normalidade pode tomar-se suspeita de doentia. Por
essa razão, os homossexuais- para mencionar um caso concreto- já foram
considerados como doentes, e ainda entram nesta categoria os chamados neuróticos
- que, no entendimento de diversos autores, dificilmente adquirem as feições do
mórbido.

13
O inquilino do imaginário

Esquema das quatro abordagens


vigentes na área da psicopatologia
Caraterísticas principais
Fatores Abordagem Abordagem Abordagem Abordagem
considerados para organicista (desde psicanalítica comportamental fenomenológica
a configuração da Hipócrates (desde 1900) (desde 1920) existencial
abordagem séc. IV a.C.) (&&) (desde 1913)
Origem do O determinante é Psicológica: Origina-se num Origina-se em
psicopatológico (&) sempre biológico: provocada por aprendizado experiências mal-
a origem é orgâni- conflitos inadequado- seja assimiladas ou se
ca, biofísica, reprimidos e nas neuroses, seja constitui num
embora não se inconscientes. nos comportamen- desenvolvimento
negue aimportân- Reconhece que há tos anormais inadequado e
cia do psicossocial. doenças mentais (de tipo sexual ou negativo; o sujeito
Reconhece que há de origem orgâni- caracterial nega ou aliena suas
perturbações ca. O conflito é desajustado). Nas possibilidades
mentais de origem de caráter sexual psicoses funcionais essenciais:
psíquica. A doença e os sintomas são (PMD eSQ), liberdade,
mental é o simbólicos no postula um fator responsabilidade,
paradigma do sentido de revelar orgânico. autenticidade,
mórbido, mas o e encobrir o abertura, realização
anormal é já conflito. etc.
suspeito de sê-lo.

Fatores Lesões; agentes Conflitos entre as Todos os tipos de Nas neuroses: a


determinantes e externos (vírus, instâncias da aprendizado são falta de uma
mecanismo micróbios etc.); personalidade (ld, passíveis de autoconfiança
condicionantes do disfunções ego e superego); condicionar básica. Nas
psicopatológico sistêmicas complexos resposta e hábitos psicoses: a falta de
hormonais, básicos (edipiano desajustados: o reconhecimento por
neurológicas e de castração); condicionamento parte de outro. Nas
imunológicas; mecanismo de operante, o psicopatias: a
fatores genéticos. defesa condicionamento impossibilidade de
clássico, o reconhecer-se no
aprendizado por outro etc. Em
imitação. qualquer caso há
uma negação de si
mesmo.

Estilo de Médico-doente, Mantém-se o Propõe-se como E um relacionamento


relacionamento que é o modelo modelo médico, um relacionamento de pessoa para
terapêutico clássico. mas num estilo técnico, não pessoa.
O médico é o liberal (há terapeu- se julgando O consulente é
agente e o tas, não médicos). imprescindível cliente e coagente,
depositário do Freud qualifica a um vínculo A responsabilidade
saber e do poder. seus clientes de afetivo entre a da mudança reside
Diagnostica, doentes. díade. O terapeuta no próprio coagente,

14
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

prescreve, impõe, O analista é prescreve um sendo o terapeuta


legitima, proíbe depositário do programa de um catalisador, um
(inclusive ordena saber e do poder, apredizado ou interlocutor
a reclusão do mas o cliente é descondiciona- qualificando, um
asilo). agente de cura. mento. No o outro solidário.
A sua palavra é cognitivismo se Há relacionamento
reveladora. Há questionam afetivo entre a
vínculo afetivo as crenças. díade.
entre a díade.

Pressuposto Recuperação, Superação dos Sensação de Assunção da


da cura homeostase complexos bem-estare responsabilidade
biológica e volta inconscientes e readaptação às pessoal,
à normalidade. fortalecimento do .exigências socias. desalienação e
Desaparecimento ego. Erradicação dos consciência da
dos sintomas. sintomas. liberdade.
Integração das
polaridades e
assunção da
negatividade.

Modelo Explicativo Interpretativo Explicativo Compreensivo,


epistêmico Explicativo dialético,
fenomenológico

Pressupostos O homo naturalis. O homem O homem O homem como


antropológicos um organismo em tridimensional, condicionado um ser
funcionamento. mas dominado tanto por reflexos pluridimensional,
Não ignora a por sua dimensão inatos como por livre, aberto às
noção de biológica, processos de suas possibilidades,
organismo. pulsional. aprendizado. tendo que inventar
O homem está Ignora a dimensão e cuidar de sua
dominado por subjetiva, vida mediante
seus complexos importando-se a práxis.
e por determinis- com o comporta-
mos precoce. mento explícito.

(&) Os quatro enfoques admitem que há perturbações mentais de provada ongem orgânica devidas à
deterioração dos tecidos cerebrais por tumores e ferimentos, fatores endócrinos, intoxicações etc.
(&&) Considero neste esquema apenas a contribuição de Freud para caracterizar psicanálise.

De qualquer maneira, a origem biológica de uma série considerável de


síndromes e quadros está fora de discussão. Podemos criticar o tratamento
dispensado aos doentes asilados e questionar a atitude psiquiátrica tradicional com
respeito a outras terapêuticas alternativas, mas as pesquisas biomédicas mostram
significativos avanços no atendimento e eventual cura de algumas perturbações
psíquicas.

15
O inquilino do imaginário

O psicopatológico, neste enfoque, é propriamente a doença mental ou toda


manifestação sintomática que revele o início ou a configuração de um quadro.
O organicista parte do pressuposto que o mesmo modelo nosológico aplicado
à patologia orgânica é igualmente válido para a doença mental; como conseqüência,
em sua avaliação do patológico se atém a três critérios.
O primeiro critério é o semiológico: a procura dos sintomas e sinais que
configuram uma síndrome ou um quadro clínico determinado. Da ponderação dessas
manifestações deriva um diagnóstico que leva em conta tanto as queixas ou os
depoimentos do sujeito como os sinais objetivos observados na sua conduta. Quando
indicado, fazem-se também exames laboratoriais.
Exige-se que cada quadro apresente sintomas peculiares, que correspondam
a essa unidade nosológica. Essa exigência provoca geralmente divergências e
polêmicas entre os psiquiatras, pois os autores propõem sintomas diferentes para
uma determinada unidade nosográfica, sobretudo quando essa unidade não tem
fatores causais bem estabelecidos, como é o caso da esquizofrenia.
Eugênio Bleuler, que introduz este termo, propõe quatro smtomas fundamentais
(distúrbios da associação, perturbações afetivas, ambivalência e autismo),
considerando os delírios e as alucinações como sintomas secundários. Já Kurt
Schneider, figura muito estimada nos círculos psquiátricos, indica sintomas decisivos
notoriamente diferentes dos propostos por Bleuler:
• Perturbações do pensamento por agentes estranhos: roubo, difusão e
influência no pensamento do sujeito.
• Vozes que dialogam entre si - sonorização do pensamento.
• Percepção delirante.
• Influência em sentimentos, tendências e vontade, e domínio por agentes
estranhos.
Para evitar esses tipos de discrepância, os anglo-americanos editam periodi-
camente o DSM, que é o manual oficial de diagnóstico das desordens mentais,
propondo nele as síndromes com seus respectivos sintomas. Nesse manual incluem-
se ou excluem-se as doenças aceitas pela Associação Psiquiátrica Americana.
Até 1970 figurava no DSM a homossexualidade, mas foi retirada, mais por prováveis
pressões do Gay Power que por critérios médicos- pois o homossexual afeminado
é claramente uma personalidade histérica. Recentemente apareceu a síndrome do
pânico, hoje muito em moda, mas pode ser tranqüilamente classificada como uma
forma de ansiedade aguda.
O diagnóstico baseado nos sintomas é o primeiro critério. O segundo é a
procura dos fatores determinantes ou etiologia. Supõe-se que um tipo de doença
mental - a esquizofrenia, digamos, que inclui quatro subtipos - seja gerada por
fatores determinantes específicos; os subtipos diferenciam-se seja por alguns

16
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

sintomas peculiares, seja pelo curso do processo. No enfoque organicista, o fator


causal é sempre orgânico, embora ainda não tenha sido descoberto.
O curso do processo mórbido é o terceiro critério para definir uma doença.
Esse é um critério ainda vigente em medicina somática; contudo, não tem gozado
da mesma aceitação em psiquiatria. Henry Ey (e o DSM) o leva em conta em seu
Manual, mas outros o consideram de duvidoso valor em psicopatologia ou
simplesmente o ignoram.
Em outro lugar9 discuto a questão do normal e o patológico, em especial, o
que se entende por doença, que não é uma questão pacífica e tranqüila. E, sobre o
conceito de doença mental, faço algumas considerações nas páginas dedicadas ao
método fenomenológico.
Dois fatores mais me interessam colocar aqui para assim dar um perfil mínimo
desse enfoque: o modelo epistêmico e os pressupostos antropológicos. Sobre esse
segundo ponto, tão importante para uma avaliação correta do enfoque, lamento ter
de limitar-me a uma observação sumária.

Os modelos epistêmicos nas diferentes abordagens

Antes de entrar nesses dois assuntos, é pertinente dizer que podemos


caracterizar três modelos epistêmicos na história da ciência: o explicativo, o
compreensivo e o interpretativo. O modelo explicativo é próprio das ciências
naturais; o compreensivo e o interpretativo são distintivo das ciências humanas~
Há outros modelos, como o matemático e o estatístico, que são aplicáveis aos dois
tipos de ciências, mas especialmente às ciências naturais.
O esclarecimento desses modelos nos permitirá entender seu uso nas
respectivas abordagens.
A razão desses dois modelos epistêmicos emana das realidades diferentes às
quais se aplicam: natureza e cultura. A natureza corresponde ao reino do físico,
seja orgânico, seja inorgânico. Phisis, em grego, é aquilo que se manifesta segundo
sua lei intrínseca; por isso chamamos natural aquilo que acontece sem coação nem
artifício, apenas seguindo sua própria regulação. Em contrapartida, a cultura é
uma invenção puramente humana, que modifica a natureza de acordo com projetos
e necessidades do homem. É o reino do artificial - projetado e feito por arte e
ofício humanos.
O homem é um ser dual; por uma parte, um ente natural; pela outra, um ente
cultural. Dessa dualidade profunda emana sua essencial ambigüidade. Na cultura
está presente o espírito do homem: o que ele é capaz de inventar e criar como
medida objetiva de seu valor. Por essa razão dizemos que a cultura revela o espírito

17
O inquilino do imaginário

objetivo- aquilo que se plasma na ciência e na filosofia, no direito, nas técnicas,


artes, na religião e na política, nos usos e costumes, na moral e nas normas.
O espírito subjetivo é o que cada sujeito vive para si: é o que ele experimenta
na sua interação com o mundo- as coisas, os entes naturais, seus semelhantes, os
objetos. Entenda-se: o espírito não é uma substância, é a própria existência inserida
no mundo, num perpétuo transcender-se a si mesmo.
A natureza é autocoincidente, programada, repetitiva, regida por sua própria
lei; muda segundo um programa ou por acaso. Em ciências naturais, procuramos
descobrir essas programações e as normas que regulam os eventos físicos e
orgânicos, seus processos, suas transformações e interações. Quando
estabelecemos e conhecemos essas programações, regularidades e normas que
regem as interações e os processos, dizemos que as explicamos. Em ciência
queremos saber as seqüências de um processo e os fatores que influem ou
determinam suas mudanças. Nesse sentido, explicar um fenômeno é estabelecer
as determinações que o configuram - suas relações causais, como se costuma
dizer.
O homem é natureza e cultura, organismo e espírito, vida e existência. Todas
essas dualidades são quase equivalentes. Enquanto natureza, organismo e vida, o
ser humano é abordável pelas ciências naturais e por elas explicável. Enquanto
cultura, espírito e existência, é abordável pelas ciências humanas (ou do espírito,
como preferia dizer Wilhelm Dilthey) e por elas compreensível.
Compreender é estabelecer as relações de sentido que um evento, uma
vivência, uma conduta ou uma expressão possam implicar.
Os organicistas tentam determinar quais são os fatores biofísicos (neurofisio-
lógicos, quimiogenéticos, lesionais etc.) que geram uma deficiência, uma anor-
malidade, um comportamento sintomático. Na tentativa de pesquisar uma conduta
anormal- a esquizofrenia, digamos- observam todos os indicadores que denunciam
o desvio da norma. Fazem uma descrição do quadro, como eles dizem. Mas como
explicar o "embotamento afetivo" ou a idéia de que "lhe estão lendo o pensamento"?
Ele não apela para hipóteses psicológicas. Apela para hipóteses bioquímicas ou
genéticas, que estariam causando transtornos ou disfunções de determinadas áreas
cerebrais.
Seria torpe cegueira nossa desconhecer o fato de que há uma série de vivências
e condutas psicóticas inteiramente incompreensíveis. As idéias delirantes, ensinava
Jaspers, são incompreensíveis- diferentemente das idéias deliróides, que, por serem
decorrentes de experiências dolorosas, são compreensíveis. Nesses casos, hipóteses
organicistas recuperam toda sua validade.
Mas também é verdade que os organicist~s mostram escasso ou nulo interesse
em enfoques compreensivos. Um repertório muito amplo de fenômenos
psicopatológicos são inteiramente compreensíveis e obviamente todos os

18
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelu eptstê.lmco

comportamentos e motivaçõés psicológicas que classificamos, de maneira algo


convencional, como normais.
Sobre as diversas formas da compreensão, não entrarei na sua exposição
aqui. No capítulo dedicado às contribuições de Karl Jaspers, comento algumas
destas modalidades: compreensão racional, intuitiva, empática, motivacional e
semântica. Todas elas são constitutivas da experiência humana; elas revelam os
modos de apreender-se o sujeito nas diversas situações que configuram sua realidade.
-Na compreensão racional, o sujeito apreende-se como inserido num complexo
de relações necessárias, sujeitas a princípios reguladores de caráter universal ou a
uma lógica.
-Na compreensão intuitiva, capta imediatamente o sentido de uma situação
por mera apreensão sensoperceptiva ou subjetiva. "Estou só no meu quarto,
lembrando alguns momentos de minha juventude." "Ainda a miséria humana me
entristece."
-Na compreensão motivacional, toma consciência de suas necessidades e
de suas possibilidades, agindo na direção apontada por seus motivos.
-Na compreensão empática, o indivíduo abre-se ao encontro com seu
semelhante, reconhecendo-se nele e atendendo a seu apelo - seja no plano
intersubjetivo, seja no plano estético.
-Na compreensão semântica, aceita as regras de um discurso que lhe impõe
um curso, que ao mesmo tempo lhe facilita a comunicação interpessoal e o
autoconhecimento.
Nem todos os produtos culturais, nem todas as experiências pessoais são
compreensíveis; por muito que nos esforcemos na captação de seu sentido e de
seu significado, eles nos deixam na dúvida e na interrogação. Têm algum significado
os mitos e as lendas? Que revelam determinados ritos? Como podemos entender o
mito do paraíso perdido, Adão e Eva expulsos do Éden? Para os crentes, na verdade
literal do Antigo Testamento, isso não é um mito: aconteceu assim mesmo. Os
crentes com maior juízo crítico nos dirão que é uma história verdadeira por seu
significado simbólico; não é que a serpente falasse, instigando a dona Eva para que
tentasse experimentar o fruto proibido. A serpente é uma figura simbólica, assim
como todos os elementos do cenário paradisíaco.
Que pode significar a lenda da Rosa Silvestre, mais conhecida como a Bela
Adormecida? E, para não ir mais longe, como podemos entender a lenda de Papai
Noel, na qual todos nós acreditamos em nossa infância?
Mitos, lendas, ritos e até as ações portentosas atribuídas aos fundadores de
religiões (como a multiplicação dos pães e peixes e a caminhada na superfície das
águas, por Jesus) são criações culturais, próprias do imaginário coletivo. Mas também
existem produções individuais bastante enigmáticas. Tal é o caso dos sonhos. Eu

19
O inquilino do imaginário

diria que os sonhos são um dos maiores enigmas do espírito humano. Primeiro,
como funciona o cérebro na invenção destas historinhas que aparecem quando
estamos dormindo? Por acaso funciona como um computador autônomo? Logo:
por que aparecem tantos personagens desconhecidos nelas? Mais ainda: por que
não podemos provocar narrativas oníricas à vontade? Por que se misturam fatos
cotidianos, reais, com situações estranhas, absurdas, impossíveis? Por que em geral
não compreendemos imediatamente seu significado?
Além dos sonhos, eventos normais em todos nós, estão as produções delirantes
dos loucos, suas crenças, suas ocorrências, seus desenhos. Com alguma razão supomos
que todas essas criações têm algum sentido. Mas será mesmo que têm algum significado?
Autores bastante competentes nos dizem que todas essas expressões da cultura
e do espírito humano possuem um significado; não o significado literal exposto na
narrativa ou expresso na imagem-pictórica, onírica, gráfica. Têm um significado
simbólico. Trata-se então de expressões simbólicas.
O que é um símbolo? Essa é uma questão problemática, nada fácil de
responder. A única coisa que sabemos é que um símbolo, para que nos revele seu
"verdadeiro" significado, precisa ser interpretado. Sabemos que um símbolo não é
um sinal nem um signo - embora não faltem autores que entendam o símbolo
como um signo especial. Diz-se então que a cruz e a estrela de seis pontas
simbolizam o cristianismo e o judaísmo, respectivamente. Eu diria que são simples
signos: um significante relacionado diretamente com um significado. Afirma-se
que um mendigo e Rockefeller simbolizam a miséria e a riqueza; ou que o diabo
simboliza o mal e que a serpente representa o demoníaco, como rebeldia e
questionamento. São mesmo símbolos ou meras figuras emblemáticas?
Falamos acima de sentido e significado. Amiúde usam-se esses dois termos
como equivalentes; ou se deriva do sentido um significado e do significado se
implica um sentido. Eu diria que esses dois conceitos pertencem a planos diferentes,
embora se entrecruzem. O sentido dá-se no horizonte da intencionalidade da ação
e da vivência; o significado pertence à esfera da linguagem.
O sentido surge como o modo que o ser humano tem de estabelecer certa
ordem e alguma direção para assim situar-se num complexo de relações - aquelas
que constituem sua realidade. Praticar um ato de feitiçaria tem um sentido para
quem acredita que com esse ato obterá algum benefício. Compreendemos o sentido da
idéia delirante expressa por um esquizo quando nos informa "que os outros lêem seu
pensamento": ele se sente tão exposto e invadido pelos outros, que nem se-
quer seu pensamento escapa ao controle alheio. Se alguém nos refere que Dom.
Quixote arremetia com seu cavalo Rocinante contra os moinhos de vento, isso nos
parece uma loucura; mas, assim que Cervantes nos informa que esse ilustre cavalheiro
tomava os moinhos por gigantes malvados, o evento adquire um sentido. O nobre
fidalgo alucinava.

20
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

O simbólico é uma linguagem; dá-se na ordem da significação. Simbólico é


qualquer significante (ou conjunto de significantes) que exprima um significado
com um conteúdo manifesto, mas que oculte ou apenas insinue outro conteúdo,
latente. Essa é uma concepção bastante difundida do simbólico. A que prevalece
na psicanálise freudiana e jungiana. Há outras concepções, a meu entender mais
interessantes, como são a de Lévi-Strauss e a de Jean-Pierre Vemant.
A psicanálise é uma teoria da interpretação. Um sistema hermenêutica,
diria Paul Ricoeur. Não é uma teoria baseada no conceito de observação
científica, nem muito menos de experimentação, como é a psicologia, ainda na
tese de Ricoeur. Não está interessada em estabelecer fatos, eventos precisos,
fenômenos (como faz a fenomenologia, inclusive); os fatos não interessam por
si, mas pelo que eles revelam. O freudiano subscreve sem embaraço o aforismo
nietzschiano antipositivista: "Não há fatos, apenas interpretações dos fatos."
Existem os mais delicados problemas com relação a qualquer interpretação;
os partidários desta abordagem, os mais radicais, chegam a afirmar que a simples
percepção de uma ocorrência qualquer já implica sua interpretação. Os mais
moderados admitem que nem tudo é interpretável, que o que importa revelar são
as mensagens do inconsciente, inscritas nas obras e nas condutas humanas.
Tendo entrado nesse campo, parece-me pertinente um breve comentário sobre
esse enfoque.

O enfoque psicanalítico

Tem uma ampla difusão na sociedade de massas. Eu diria que substituiu o


marxismo por sua presença na mídia, no círculo da inteligência e em outros
setores da cultura. É a nova ideologia da sociedade tecnocrática, consumista e
burocrática.
Seus quatro postulados básicos são bem conhecidos, embora o alcance deles
seja mal avaliado, inclusive pelos psicólogos e psiquiatras que se alinham nessa
doutrina.
- O postulado da primazia do inconsciente na constituição da personalidade.
-O inconsciente, noção problemática, toma-se o eixo central da teoria.
-O postulado da primazia da libido na motivação humana.
-O postulado da universalidade do complexo de Édipo.
-O postulado do determinismo psíquico.
Nem preciso comentar esses eixos teóricos do freudismo, nem é necessário
nomear os princípios que regulam o funcionamento desses postulados. Basta

21
O inquilino do imaginário

lembrar o princípio-chave de todo o sistema: o recalque. Pela repressão dos


impulsos e pelo recalque de experiências incompatíveis com as exigências do
ego e do superego, constitui-se uma espécie de central de operações secretas -
o inconsciente, que é o verdadeiro comandante do sujeito. O ego tenta estabelecer
certa ordem e direção, pois é a parte da personalidade que lida diretamente com
a realidade; mas as outras duas instâncias não se deixam manipular como bons
companheiros de viagem. O ld, representante das pulsões e necessidades
biológicas, apronta uma das suas ao menor descuido do pobre ego. O superego,
representante da normatividade social, é mais moldável; em alguns sujeitos é
frouxo e desleixado; em outros é severo- como um juiz do crime. Nos dois
extremos, provoca alguma encrenca ao infeliz ego. O fato é que as três instâncias
raras vezes mantêm uma harmonia prolongada. O conflito entre elas surge a
qualquer momento.
Esta é uma das contribuições de Freud à psicopatologia: a tese de que os
conflitos psíquicos constituem o fator gerador das perturbações mentais. Só que
este autor afirmava que os conflitos psíquicos eram também inconscientes. Não
esqueçamos de que a consciência é apenas a ponta do iceberg, na metáfora usada
pelo criador desta abordagem. Em conseqüência, toda patologia mental é gerada
naquela central de operações secretas.
Sabe-se a extensão inusitada que adquiriu com Freud o psicopatológico.
Este autm escreveu todo um tratado sobre A Psicopatologia da Vida Coti-
diana; não se pense que nesse tratado se fala de algumas formas de agres-
sividade e violência social; tampouco refere-se a conflitos conjugais e vicinais,
que são comuns no convívio diário. Ele nos ensina que os lapsos escritos e
falados, os atos falhos, os esquecimentos, as trocas de nomes são todos eles
atos sintomáticos.
Os excessos interpretativos são atenuados em parte pela nova concepção do
psicopatológico introduzida por Freud. Lembre-se de que, na visão clássica,
biomédica, a doença e a perturbação mental são o âmago do psicopatológico.
Agora, o núcleo da questão é o simples conflito psíquico. O ato falho, então, pode
revelar um conflito inconsciente; não significa que quem o comete esteja enfermo
-apenas é um ato sintomático, um deslize, uma provocação de um conteúdo secreto.
Claro, há conflitos doentios.
Outra novidade: os sintomas não são já simples manifestações de um quadro:
eles têm um caráter simbólico. É o que o mestre tenta demonstrar em todos os
casos escritos que nos legou. Se o leitor pensava que existia certo exagero na
acentuação do fator sexual nesta doutrina, lendo os casos já não lhe resta mais
dúvida: Freud via sexo até no gesto mais inocente. Na sua interpretação do
significado que ele atribui aos sintomas de seus pacientes, esta tendência pansexista
fica muito clara. Vejamos este ponto central.

22
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

O fator sexual e a forma freudiana de interpretar

Vou resumir o famoso "Caso Dora", uma das cinco histórias clínicas escritas
pelo criador da psicanálise. Peço ao leitor consciencioso que leia o texto original,
para verificar que não fiz uma seleção arbitrária e tendenciosa do material.
Trata-se de uma jovem que mora com os pais e um irmão numa pequena
cidade; uma jovem bem dotada no plano intelectual.
A trama conflitiva relaciona-se com a sua farm1ia; seus pais não se entendem
e já discutiram a conveniência do divórcio. O pai é figura dominante. Ele é um
industrial, e sua mulher uma dona de casa.
A trama conflitiva surge em relação a um casal amigo desta família. Dora
suspeita, baseada em inferências bastante convincentes, de que seu pai mantém
um caso com a Sra. K.
Esta suspeita atormenta a jovem, a ponto de ter pensado no suicídio. A situação
ainda se agrava pela intervenção do Sr. K., que solicita amorosamente a Dora: a
jovem chega a pensar que seu pai sabe das intenções desse senhor, deixando-o
agir tranqüilamente por acreditar que ele o deixará igualmente manter o caso com
sua esposa. Uma coisa pela outra.
Apenas um par de fatos interessa-nos lembrar aqui.
Um fato relaciona-se com um passeio que Dora fizera com o Sr. K. Nessa
ocasião, esse santo varão tentou beijar a jovem; lamentavelmente, a moça apenas
experimentou repugnância ante o brusco contato bucal. Dora ficou indignada perante
um avanço tão audaz; contou para seus pais, mas esses não deram maior
importância ao episódio, considerando que seria mais um produto de sua imaginação
que um fato; pensaram que as leituras de Mantegazza (um médico que escrevia
sobre questões sexuais) lhe tinham estimulado a fantasia.
"Nesta cena- comenta Freud- o comportamento dessa criança de quatorze
anos já era inteira e completamente histérico. Eu sem dúvida consideraria histérica
uma pessoa em quem uma ocasião para excitação sexual despertasse sensações
que fossem preponderante ou exclusivamente desagradáveis; eu o faria fosse ou
não a pessoa capaz de produzir sintomas somáticos." E agrega: "A elucidação do
mecanismo da inversão de afeto é um dos mais importantes e, ao mesmo tempo,
um dos mais difíceis problemas da psicologia das neuroses".
Causa-nos surpresa um juízo desse tipo. O que garante a Freud que esta era
uma ocasião para uma excitação sexual? Ignorava que os primeiros beijos de
adolescentes são desabridos e insípidos, sobretudo quando apenas um parceiro está
a fim de um contato bucal? Não é natural que qualquer pessoa experimente
repugnância ao ser beijada por alguém por quem não se sente atraída? Não me
parece que se trata, nesse caso, de uma inversão de afeto. Simples reação natural.

23
O inquilino do imaginário

Aliás, Freud nem sequer se pergunta se as circunstâncias do avanço sedutor do Sr.


K. eram propícias. Ainda admitindo a hipótese de que Dora gostasse dele, bem podia
não se excitar nessa ocasião. Infundado e gratuito qualificar sua reação corno histérica.
Mas aqui não param as interpretações desse engenhoso fidalgo vienense. A
esse evento relaciona um dos sintomas de Dora. Sucede que esta jovem apresentava
opressão ao peito, que é urna manifestação bastante comum de um quadro
angustioso. Apresenta-se, via de regra, quando urna pessoa está passando por um
período prolongado de ansiedade. Ignoro se Freud já sabia deste fenômeno, nessa
época. Penso que o ignorava, pois de outro modo resulta no mínimo surpreendente
a interpretação que propõe para esse aspecto tão freqüente da angústia. Se não o
ignorava, ternos urna prova a mais da tendência freudiana de sacrificar os simples
fatos às interpretações sexualóides, amiúde engenhosas e sofisticadas, além de
fantasistas. Sem nenhum fundamento plausível e, o que é pior, geralmente
desnecessárias.
Pois bem, Freud interpreta esta opressão peitoral corno um deslocamento
para cima da excitação sexual que Dora teria experimentado quando o Sr. K. a
beijou, mas com o afeto invertido, isto é, corno sensação desagradável. Ele supõe
que a mocinha sentiu a pressão do pênis ereto do bom senhor na sua genitália. Não
nos informa se ele perguntou a Dora sobre este ponto; simplesmente conjectura.
De onde tirou a ocorrência do deslocamento para cima, da zona genital para o
peito, com sua correspondente inversão? Mistério. O que sabemos é que nada
autoriza semelhante idéia. Parece-nos mais um gracejo - une boutade, como
diria Charcot, o mestre de Freud em Paris.
O outro sintoma de Dora era a dispnéia - a sensação de falta de ar. Também
esta é urna manifestação comum da angústia: o sujeito se sente sufocado pela
situação geral que está vivendo, o que repercute diretamente no sistema respiratório,
alterando o ritmo e provocando urna efetiva falta de ar.
De novo Freud parece ignorar este dado tão simples e oferece urna
interpretação: com este sintoma Dora ·estaria revi vendo a cena primária. Para
quem não sabe, digamos que os freudianos designam com este nome a observação,
por parte da criança, do ato sexual realizado pelos pais. Brilhante idéia, não é?
Neste ponto, eu me pergunto em que estaria pensando Freud quando teve
esta estranha ocorrência. Qual seria o problema dele? E não pense o leitor que
estou forçando as coisas guiado pela pérfida intenção de dar urna imagem distorcida
do autor da psicanálise. Foi ele mesmo quem se atreveu a escrever estas coisas.
E ainda ternos muito mais, no mesmo gênero, sempre o sexo mexendo os fios
das marionetes humanas. E estas interpretações não só encontramos no caso Dora;
encontramo-las nos cinco casos maiores escritos pelo imaginoso autor de
A Interpretação dos Sonhos. Se pelo menos estas interpretações fossem veros-
símeis ...

24
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

Ainda temos a tosse, supostamente nervosa. Aqui precisamos ler três ou


quatro vezes o texto para acreditar no que estamos lendo. Será que estou
compreendendo mesmo o que está escrito aqui? Será que o editor não misturou os
escritos do ilustre mestre vienense com algum escrito de outro autor? Talvez de
um maníaco sexual?
Com muita tranqüilidade e ponderação, ele escreve: "A conclusão era inevitável
no sentido de que, com a tosse espasmódica que, como de hábito, se reportava por
seu estímulo excitante a uma cócega na garganta, ela pintava para si mesma uma
cena de satisfação sexual per os (oral) entre duas pessoas (entre o pai de Dora e
a Sra. K., sua suposta amante), cujo caso amoroso ocupava tão intensamente sua
mente".
Para que o leitor não familiarizado com os escritos de Freud capte o estilo de
seu raciocínio, bastante elaborado e aparentemente rigoroso, me permito transcrever
o texto desta nova boutade do mestre:
"Logo surgiu uma oportunidade para interpretar dessa forma a tosse nervosa
de Dora por meio de uma situação sexual imaginada. Ela estivera insistindo uma
vez em que Frau K. somente amava o pai porque ele era "ein vermogender Mann",
um homem de posses. Certos pormenores da maneira como ela se expressou
levaram-me a perceber, atrás desta frase, o sentido oposto oculto, ou seja, que seu
pai era "ein unvermogender Mann" (um homem sem recursos). Isso só poderia
ser dito num sentido sexual - que seu pai, como homem, era sem recursos, era
impotente. Dora confirmou esta interpretação com base em seu conhecimento
consciente; assinalei, então, a contradição em que caía se por um lado ela continuasse
a insistir em que as relações do pai com a Sra. K. eram um caso de amor comum,
e por outro, sustentasse que seu pai era impotente, ou, em outras palavras, incapaz
de manter um caso dessa espécie.
Sua resposta mostrou que ela não precisava admitir a contradição. Ela sabia
muito bem que havia mais de uma maneira de obter-se gratificação sexual. (A
fonte desse conhecimento, contudo, foi novamente inidentificável.) Perguntei-lhe
se se referia ao uso de órgãos que não os genitais com fins de relações sexuais e
ela respondeu afirmativamente. Pude então dizer que em tal caso ela devia estar
pensando precisamente naquelas partes do corpo que, no seu caso, estavam em
estado de irritação - a garganta e a cavidade oral. É certo que ela se recusou a ir
tão longe no reconhecimento de seus próprios pensamentos: e, na verdade, para
que a ocorrência do sintoma fosse possível, era essencial que ela não esclarecesse
completamente o assunto. Mas a conclusão era inevitável no sentido de que, com
sua tosse espasmódica que, como de hábito, se reportava por seu estímulo excitante
a uma cócega na garganta, ela pintava para si mesma uma cena de satisfação
sexual per os entre as duas pessoas cujo caso amoroso ocupava tão
incessantemente sua mente. Muito pouco tempo após ter ela tacitamente aceito

25
O inquilino do imaginário

essa explicação, sua tosse desapareceu - o que se enquadrava muito bem na


minha opinião; mas não desejo realçar demais esse desenvolvimento, já que sua
tosse com freqüência cedera antes espontaneamente."
O leitor não fica surpreso por Freud colocar esses assuntos a uma jovem,
embora no início do século XX talvez pudessem provocar esta reação. Ficamos
surpresos apenas pela interpretação. Inclusive, se Dora houvesse imaginado uma
relação genitobucal entre seu pai e a Sra. K., isso não autorizaria a interpretação
proposta.
O caso do pequeno Hans não é menos ilustrativo do estilo de interpretação
freudiana. Hans era um menino de 5 anos que sentia fobia de cavalos. Começou
a experimentar esse tipo de reação depois de observar um acidente na rua: os
cavalos escorregaram no pavimento e o cocheiro começou a dar chicotadas nos
animais para que se levantassem. Essa cena impressionou a criança. Essa é
justamente a origem da maioria das fobias. Um acidente ou episódio provoca-
nos uma reação de medo, que depois se generaliza para situações semelhantes.
Mas Freud pretendeu que a fobia de Hans revelava seu complexo de Édipo: o
menino estaria deslocando sua aversão ao pai na figura dos cavalos, pois dese-
java possuir apenas para si a sua mãe. Aversão ao pai e medo da castração. Por
que Freud inventou uma explicação tão complicada e inverossímil para um fenômeno
tão corriqueiro? O único motivo plausível é que queria mostrar como um sintoma
(a fobia) revelava o Édipo.
É incrível como o mestre vienense sempre dá um jeito para encontrar um
suposto motivo sexual em qualquer comportamento. Em seu artigo sobre "O
inconsciente" ( 1916), refere a preocupação de um jovem em espremer as espinhas
do rosto, tão comuns nesta faixa etária. Essas erupções cutâneas não são nada
agradáveis e poucos resistem à tentação de arrancá-las. Pois bem, Freud nos diz
que o ato desse jovem era um ato masturbatório, pois o pus era um equivalente da
polução, e o mal-estar que logo experimentava o rapaz por causa dos buraquinhos
do rosto revelava seu complexo de castração, como castigo da masturbação
(buracos= genitália feminina). Muito convincente, verdade?
Seria inútil redundância continuar mostrando o estilo interpretativo dessa
doutrina. Todas as interpretações convergem para o mesmo: revelam algum impulso
ou um complexo sexual (em especial o Édipo e a Castração). Nessa ótica, toda a
variada e rica trama cultural e o drama humano dos indivíduos reduzem-se e se
geram nesses dois fatores. Por sorte, nem todos os seguidores da psicanálise
subscrevem a ortodoxia imposta pelo mestre. Aceitam os quatro postulados já
mencionados, mas atenuam sua formulação radical. Admitem que a consciência é
tão importante como o fator inconsciente; não vêem um equivalente masturbatório
no ato de abrir e fechar uma bolsinha, como fazia Dora, e até mesmo reformulam
o enunciado do complexo edipiano (que na tese original afirma que a criança quer

26
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

possuir eroticamente a mãe, desejo que se complementa com uma notória aversão
ao pai), dizendo que o Édipo representa a luta entre o desejo de fusão com a mãe
e a interdição da lei paterna - interdição que permite à criança seu ingresso na
cultura. Estes arranjos tomam mais aceitáveis a teoria. Outros até mostram-se
cautelosos nas interpretações.
Contudo, a interpretação freudiana é só um primeiro passo; seu intuito era
explicar uma conduta e sua patologia por um fator determinante, que se retrotraía
ao passado do sujeito. O que se procura na análise é o complexo, o conflito, o
desejo reprimido, que causou o sintoma ou a neurose. Freud acreditava no
determinismo psíquico; acreditava a tal ponto que a última parte de sua
Psicopatologia da Viria Cotidiana dedica-se a mostrar como qualquer ocorrência
espontânea, ainda mais sem motivação aparente, estava determinada. Na sua tese,
nada era fortuito, simples idéia gratuita. Dessa crença no determinismo surge a
exigência que Freud impunha a seus clientes quando iniciava um tratamento - a
regra da associação livre, dizer o que fosse surgindo no campo mental, não importa
quão impertinente ou absurdo fosse.
Aceito esse pressuposto, o conceito de liberdade, como um atributo do ente
humano, não tem lugar; pode-se reivindicar a liberdade política, mas não tem sentido
falar de liberdade psicológica, muito menos de uma liberdade ontológica.
Criticar os fundamentos de uma doutrina não supõe negar ou desconhecer
suas contribuições positivas. Algumas destas contribuições merecem ser destacactas:
A) Embora Freud não tenha tratado indivíduos psicóticos por considerar este
tipo de doenças mentais como inabordáveis pela psicanálise (em razão de que o
louco, sendo basicamente "um narcisista", não conseguiria estabelecer uma relação
transferencial), ele nos proporcionou a primeira tentativa de uma análise da paranóia
em termos psicológicos. Baseado na leitura do livro de Daniel Paulo Schreber,
Me mórias de um Doente dos Nervos ( 1903), deixou-nos um dos mais interessantes
ensaios de interpretação de um caso rico e complexo. Argumenta que a origem
dos delírios deste ilustre personagem se encontra numa homossexualidade latente
- tese que ele supõe válida para todos os casos desse tipo.
B) Outra contribuição importante foi sua tentativa de encontrar um determinado
sentido para os delírios, considerados como os sintomas definitórios das psicoses.
No enfoque organicista, o delírio é a expressão da perda da razão. Idéias,
ocorrências e percepções delirantes devem ser erradicadas por todos os meios
possíveis, pois constituem a forma gritante da loucura. Para Freud, os delírios já
são uma tentativa de cura e reconstrução por parte do sujeito (veja-se a 3a Parte
do caso Schreber).
C) Toda concepção do psicopatológico implica um estilo de relacionamento
terapeuta-paciente. Freud introduz também aqui uma inovação relevante. Talvez
a inovação mais importante de seu labor criativo: valoriza o discurso do paciente,

27
O inquilino do imaginário

centralizando em sua palavra o processo curativo. Talvez pela primeira vez


na história do tratamento das perturbações mentais, o médico propôs-se a
ouvir o paciente, estabelecendo um vínculo afetivo- vínculo entendido como
essencial ao próprio tratamento. Discrepamos de sua idéia de que o vínculo
se dá em termos transferenciais, mas este é um assunto que não interessa
discutir aqui.
Saber ouvir o paciente foi um passo extraordinário; o primeiro. O segundo
grande passo será dado por Carl Rogers,- lá pelos anos 40, mas já baseado num
enfoque bem diferente da psicanálise - a psicoterapia centrada no cliente,
abordagem oriunda de uma visão humanista e existencial. Vejamos algumas de
suas características.

A abordagem fenomenológico-existencial

Historicamente, o terceiro grande enfoque do psicopatológico é a


fenomenologia existencial. O livro que inicia essa nova teoria foi editado em
1913: é a Psicopatologia Geral, de Karl Jaspers. Nesse mesmo ano, o filósofo
Edmund Husserl publica seus escritos sobre Fenomenologia Pura, em que se
estabelecem os traços gerais do método. Contudo, só em 1927, com a publicação
de Ser e Tempo, de Martin Heidegger, é que se estabelece o consórcio da
fenomenologia com o existencialismo, ou, como prefere dizer Binswanger, o
iniciador desta associação, da Dasein-analítica.
Estasreferências são convenientes para o marujo de primeira viagem, mas
não por isso menos pertinentes. Todos nós precisamos de certo senso histórico
para apreciar o rumo que tomam as coisas em seu percurso temporal.
Como nos capítulos seguintes falo da fenomenologia e da obra de Jaspers,
não entrarei aqui numa caracterização desse método. Farei apenas um esboço
da abordagem, examinando suas idéias diretrizes no âmbito filosófico, indicando
depois os principais postulados de uma psicologia inspirada nesta doutrina.
De início, digamos que há um acentuado contraste entre as doutrinas
existenciais e os outros três enfoques. Em primeiro lugar, esta doutrina origina-se
no âmbito da filosofia - e desde aqui se estende para as ciências humanas, em
particular para a psicologia. Por essa razão, propõe de partida uma concepção
elaborada do homem, que se encontra desenvolvida nas grandes figuras deste
movimento (singularmente emHeidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Ortega, Buber).
Todos estes pensadores se colocam uma questão fundamental: qual é o ser do
homem? Esta é a chamada questão ontológica. O homem é existência: esta é a
resposta. O próprio do homem é sua existência. Resta então estabelecer as
características peculiares da existência. É o que fazem Heidegger e Sartre em

28
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

volumosos tratados. Via de regra, nas outras doutrinas não se colocam esses tipos
de questões; ou, se o fazem as tocam tangencialmente.
Em segundo lugar, o existencialismo proclama a liberdade, a abertura às
possibilidades e a procura de um sentido como características precípuas da aventura
humana, em oposição aos outros enfoques que acentuam a importância do
determinismo, da necessidade e da simples satisfação oréxica. Skinner afirma que
a liberdade é um mito; Freud acreditava no determinismo psíquico; e todos eles
não entendem a procura do sentido como uma motivação básica.
Há outras diferenças; contento-me em assinalar uma terceira: sendo
predominantemente determinísticas, as outras escolas usam modelos epistêmicos
explicativos, diferentemente dos enfoques existenciais e fenomenológicos que
entendem que a complexidade dos fenômenos humanos só se deixa apreender por
uma via compreensiva. Lembro já que o modelo explicativo apela para idéia de
causalidade, e o compreensivo sustenta que o importante é estabelecer as relações
de sentido que a vida humana implica.

As idéias diretrizes da filosofia existencial

É conveniente ressaltar o repertório de conceitos fundamentais que as doutrinas


existencialistas colocaram em circulação, formando o arcabouço de uma abordagem
psicológica que muitos preferem denominar de humanismo existencial. Esses
conceitos-chave identificam e caracterizam esse enfoque, mas o leitor não- especia-
lista nem sempre sabe discernir que estes conceitos foram cunhados e disseminados
por pensadores e pesquisadores que orientaram seu trabalho nesta concepção.
Para o leitor menos informado, julgo pertinente uma síntese das idéias diretrizes
que norteiam essa filosofia de vida.

Liberdade,, responsabilidade e angústia


O homem é um ser livre; livre apesar de todos os determinismos que o
condicionam, limitam e programam. Pode renunciar à sua liberdade, tomar-se
escravo, alienar-se, mas ainda assim será uma opção sua.
O existencialismo é uma filosofia da liberdade. Sustenta que o homem é
ontologicamente livre. Por sermos livres, somos igualmente responsáveis. Sem
liberdade de decisão e de escolha não seríamos responsáveis. Isso não significa
negar a importância dos determinismos que, nas diversas esferas, afetam os homens.
Justamente perante esses determinismos é que tem sentido a liberdade. Quando
afirmamos que somos livres, estamos afirmando que sempre temos alguma
possibilidade de escolha, uma margem de opção. Podemos nos submeter

29
O inquilino do imaginário

passivamente a estes determinismos; é o que faz muita gente, mas essa sujeição é
também uma forma de escolha.
Há um princípio básico dessa doutrina que afirma que a escolha é feita numa
situação determinada - o que significa que nunca é feita meramente no campo
abstrato, senão perante um conjunto de exigências e limitações que se impõem ao
sujeito e perante as quais têm sentido certas opções.
Somos livres e responsáveis. Desse postulado deriva a ênfase colocada nessa
abordagem da responsabilidade do indivíduo, tanto nas diretrizes que orientam sua
vida quanto nas ações que concretizam seu projeto vital. Você pode fazer o que
quiser, desde que assuma o que fizer, sabendo que toda ação tem suas conseqüências
e implica algum fator ético. Não alegue depois mera ignorância, ingenuidade ou
inocência. Livres e responsáveis, sabendo que precisamos inventar nossa vida, sem
que nada fique consolidado definitivamente, pois o passado não é uma garantia que
nos assegure um presente - e menos ainda um futuro -, a ansiedade e a angústia
surgem de maneira inevitável. Mas não se pense que a angústia é uma vivência
puramente negativa, que nos leva apenas à tensão e ao desespero. Ela também nos
alerta, acordando-nos para os riscos e desafios de situações que nos inquietam.
Um corolário dessa tese se aplica à doença.
Psicologicamente, adoecer implica sentir-se preso, sufocado por conflitos,
impulsos e afetos, implica um sentimento de perda da liberdade pessoal.
Nos cinco grandes quadros da psicopatologia clássica (e ainda não temos
outra melhor), a perda da liberdade é notória e inevitável:
-Nas neuroses, o indivíduo sente-se dominado por sentimentos negativos,
oriundos de uma baixa auto-estima e de uma falta de autoconfiança, o que o leva
a uma constante oscilação entre a depressão e a ansiedade. Preso a seus conflitos,
tem sérias dificuldades para manter relacionamentos interpessoais saudáveis.
-Nas psicoses, constrói um mundo dividido e fragmentário, alienado de um
contato vital com a realidade, por não ter obtido um reconhecimento mínimo dos
outros. Sem reconhecimento por parte do outro, o sujeito não se reconhece a si
mesmo.
_ Não conseguindo transitar pelas vias comunitárias que o sistema
necessariamente impõe, o sujeito se perde nos labirintos de seus conflitos,
refugiando-se periódica ou permanentemente nos recintos imaginários, em geral
sombrios e espectrais.
-Nas perversões sexuais, condiciona-se de tal maneira que depois não
consegue apreender o todo implicado no relacionamento erótico, fixando apenas
um aspecto predominante do objeto excitatório, que se mantém como objeto
excitatório e não como fonte de prazer psicofísico, que é o que nos introduz ao
mútuo conhecimento. Fica preso a uma forma mutiladora de relacionamento.

30
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

-Na psicopatia, o sujeito não se reconhece propriamente no outro, que é o


que nos permite verdadeiramente nos sentir humanos. Fica assim truncada sua
liberdade, cujo movimento e sentido pleno é a realização do humano, compartilhada
no reino dos homens.
- Nas oligofrenias, não consegue a autonomia suficiente que lhe permita o
exercício mínimo da liberdade. Por um determinismo da natureza, fica impossibilitado
de ser como os outros, normal nas áreas dos aprendizados e das responsabilidades
básicas, identificado como deficiente mental, é condenado ao ostracismo, à
discriminação social e, na hipótese mais benigna, é condenado a permanecer sob
proteção vigiada.

A prioridade da existência sobre a essência


A tendência a ver as coisas em termos essencialistas é muito comum e até
predominante. Na natureza, de fato, tudo parece desenvolver-se segundo sua própria
lei e essência. Os organismos nascem, crescem, adquirem uma determinada forma
com suas propriedades, involuem e morrem. Influenciados por esse esquema, as
pessoas comuns tendem a ver o ente humano de uma maneira similar, como
determinado por uma suposta essência que direcionaria sua conduta. Tendem a
ver nos traços caracteriais de uma pessoa programas que definem de uma maneira
irrevogável uma personalidade; ou atribuem a um traço (como a inteligência ou
uma notória sensibilidade artística) uma disposição determinante. Vêem esses traços
como essências que se impõem ao sujeito. Na tese existencialista, os traços são
meras potencialidades; só a existência mostrará a vigência e efetividade de uma
qualidade ou de um traço. Preconceitos, estereótipos, imagens mitificadas - tão
comuns no meio social - são visões essencialistas que não qualificam neces-
sariamente os indivíduos visados por estas representações, mas que pretendem
ser uma espécie de diagnóstico definitivo de um tipo, no qual estaria encaixado o
indivíduo.
Outorgar prioridade à essência sobre a existência, como se vê, é pensar que
estamos determinados, seja pela natureza (em especial pelos genes) e pelo contexto
sociocultural, seja por traços de caráter e ainda pelos misteriosos desígnios de um
destino. Seríamos bons ou maus por natureza.
Mas cuidado: o existencialismo não nega as essências como determinações
formais, estruturais ou naturais; elas constituem o dado ou recebido na constituição
humana. Só que vale sempre a observação de Sartre: não importa o que me foi
dado, o importante é o que eu faço com o que recebi.
Talvez a natureza tenha sido generosa demais com você dando-lhe uma bela
aparência física e um Ql capaz de captar as mais abstrusas especulações metafísicas
num piscar de olhos, mas o importante mesmo é o que você vai fazer com sua

31
O inquilino do imaginário

beleza e sua inteligência. Isso vale para qualquer outra qualidade. Você pode ter
um QI de gênio (estar acima de 140) sem nunca ter feito nada de notável, nada
que justifique seu potencial intelectual. O que toma relevante uma capacidade, um
traço ou uma suposta tendência é o que o sujeito realiza com eles.
Para não ficar no mero abstrato dos conceitos, quero lembrar aqui a
deprimente história de uma moça muito bela. Tinha sido agraciada generosamente
pela natureza nas medidas e nas formas perfeitas. Ela mesma reconhecia que
era uma mulher que chamava a atenção. Dizia: "Sim, admito que muita gente me
elogia e sou sempre solicitada, mas de que me serve tudo isso? Tive alguns
namorados e amantes, mas agora, vendo como foram estes supostos amores,
observo que todos me deixaram um sabor agridoce ou amargo. Houve momentos
de prazer, agrados, mas nunca, nunca me senti amada. Eu diria que quase todos
eles não me entenderam; talvez um me compreendeu, mas nem por isso chegou
a amar-me.
"Aos 26 anos, tudo isso é muito triste para mim. Ser bela, senhor, não facilita
as coisas como as pessoas tendem a pensar. Não se lembra como terminou Marylin
Monroe, Brigitte Bardot e tantas outras? Preferia ser uma mulher fisicamente
normal, diria, mas com mais fortuna no entendimento amoroso. Por alguns anos
acreditei nos bons augúrios de meus admiradores: 'Você é uma moça feita na vida,
com essa beleza toda, ninguém lhe resiste'. Depois percebi que os relacionamentos
são complicados e que a beleza é apenas um fator."

O homem é um ser de possibilidades


Necessidade e possibilidade. O homem é um ser de necessidades. Isto é um
dado indiscutível; mas o que nem sempre é lembrado é que também somos seres
de possibilidades. Todos os nossos projetos e planos, tudo isso que chamamos
futuro, são simples possibilidades. Tudo isso que entendemos como fantasia se
movimenta no campo do meramente possível- pode ser provável ou quimérico.
Costuma-se acentuar a importância da necessidade como um fator que compele
o indivíduo na procura do objeto que satisfaça uma carência biológica ou motive
sua realização psíquica e existencial. Falamos de necessidades e motivações, das
quais as primeiras têm um caráter predominantemente biofísico e as segundas,
uma natureza psicossocial e existencial. Mas o homem não é meramente movido
por carências e desejos; é um ser aberto ao mundo, aberto a seu apelo e às suas
possibilidades. Por estar aberto, não está inteiramente determinado e já feito de
uma vez - como acontece ao animal, que não tem futuro nem passado, sem
possibilidades e completamente inserido na natureza.
A importância dessa característica patenteia-se também no âmbito
psicopatológico. Na depressão, o sentimento de falta de possibilidades é muito

32
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

acentuado. Na ansiedade, o que emerge são possibilidades negativas ou conflitantes.


O possível e o impossível perdem seus limites na psicose e quando ingressamos no
plano imaginário.

O homem é um ser temporal e finito


Distante da natureza, à medida que se toma autoconsciente, o homem
permanece igualmente a distância de si mesmo, sem poder permanecer
autocoincidente, pois está num perpétuo devir, sujeito à lei do tempo e da mudança.
É um ser temporal e temporalizante, isto é, finito e ciente de sua finitude; tudo o
que faz e lhe acontece revela sua finitude. O Dasein, ensina Heidegger, é um ser-
para-a-morte. Como a finitude tem certos reflexos metafísicos, é pertinente aqui
apenas um alcance: Deus é uma questão em aberto. Isso não significa que se
descarte a idéia de Deus ou se julgue de qualquer maneira o papel da religião.
Penso que existem duas necessidades metafísicas no homem: a necessidade de
um primeiro fundamento (Deus) e de um supra-sentido, que nos permita pensar
que o universo não funciona por mero acaso. Estas necessidades estão em maior
ou menor grau em todos nós; em alguns parecem quase inexistentes; aceitam a
finitude com um sorriso tranqüilo e se contentam com o mero sentido provisório
que sustenta seus projetos. Outros descobrem o primeiro fundamento e o sentido
último da realidade até nas folhas que o vento leva.

O homem como um ser-no-mundo


Costumamos pensar o homem e o mundo como realidades separadas: o mundo
estaria ali fora, e eu, aqui, num âmbito corporal, dentro. Esta mesma confrontação
sói colocar-se também como subjetivo versus objetivo; por um lado, o sujeito, eu;
pelo outro, o objeto.
Essa é uma idéia incorreta. Homem e mundo invocam-se mutuamente; um
não existe sem o outro. Dizer que o homem é um ser-no-mundo implica afirmar
esta indiscutível solidariedade. Isso significa que o mundo é uma realidade
puramente humana. O indivíduo está inserido completamente nessa realidade. O
conceito de mundo não é sinônimo de natureza nem de espaço físico. O animal
vive inserido na natureza. O homem habita uma realidade peculiar chamada mundo
humano. Sair dessa realidade é perder ou não adquirir as características próprias
do ser humano. É o que acontece com as crianças-lobos (nos poucos exemplos
que conhecemos) e, em medida apreciável, com os loucos -que rompem o
relacionamento interpessoal, se não totalmente, de um modo tal que os inabilita
para ter uma interação normal com sua comunidade.
Esta mundanidade que estou comentando emana de. uma característica
precípua da consciência humana: sua intencionalidade - o que significa que a

33
O inquilino do imaginário

consciência está sempre direcionada para objetos que estão aí fora no mundo.
Sempre somos conscientes de algo: de uma coisa, de uma dor na perna, de uma
lembrança (evento acontecido num cenário determinado), de um sentimento em
relação a um amigo. Tudo o que nos acontece subjetivamente se relaciona com
algo que está aí, no mundo.

O cuidado e a preocupação são inerentes à existência


Existir significa estar aí, jogado no mundo, em estado de derrelição, aberto às
possibilidades, apreendendo-se numa determinada situação, juntamente com outros
seres intramundanos. Existir implica coexistir.
Jogado no mundo, aberto a suas possibilidades, o homem precisa cuidar-se.
O cuidado é inerente à existência. O cuidado implica estar atento ao que acontece,
dando conta de nossa vida. Implica responsabilidade e preocupação. Tudo o que
fazemos é oriundo do cuidado, inclusive o que pretendemos ser. Quero ser psicólogo
ou engenheiro, porque assim atenderei melhor ao meu ideal de vida. Toda
motivação, todo desejo, todo projeto emana ou se sustenta no cuidado. É meu
senso de cuidado que dirime o conflito entre dois desejos; entre o desejo de comer
os manjares de uma boa mesa e minha vontade de permanecer esbelto, posso
escolher o que julgo melhor. Ainda se entendemos o desejo como mera representação
do ego (não como algo que se origina na necessidade biológica), o cuidado prevalece.
Se desejo ser um personagem destacado - pelo menos na minha profissão - ou
influente no campo político, posso renunciar a esses dois intuitos, seja porque
compreendo a vaidade desses projetos, seja porque meu senso do cuidado me diz
que é mais valioso atender a minha farm1ia e levar uma vida mansa.
Essas são algumas das características ontológicas do homem. Tentei apenas
provocar o leitor inteligente para que ele mesmo procure os textos originais, bem
mais complexos.

Os postulados básicos de uma psicologia


antropológico-compreensiva
Quero terminar esta parte expondo minha concepção sobre uma psicologia
inspirada nas doutrinas existenciais, mas visando sobretudo a uma sistematização
utilizável no campo da prática psicológica. Por recolher as oito dimensões fundamentais
da existência, dimensões que dão conta cabalmente da complexidade humana,
poderíamos chamar esta abordagem de psicologia antropológico-compreensiva. Farei
em seguida um mero enunciado das dimensões, na forma de postulados.

34
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

1) A dimensão ontológica do homem como ser-no-mundo


O homem habita, constitui e define sua realidade em termos de mundo: mundo
pessoal, quando corresponde a uma vida individual; mundo histórico, quando
corresponde a um período da história cultural de um povo, ou de um período
cultural; mundo particular, quando se refere a uma forma típica de existência:
o mundo dos neuróticos, dos adolescentes, dos esquizos etc.
2) A dimensão social e interpessoal
O sistema social condiciona, modela, regula e orienta aspectos fundamentais
da conduta e da personalidade; esta influência social canaliza-se por quatro
vias: pela condição estamentária do sujeito, pela ideologia dominante, pelas
características socioeconôrnicas do sistema, pelo papel.
Tanto a formação da pessoa quanto sua realização possível passam por toda
uma trama de relacionamentos interpessoais.
3) A dimensão da práxis
O homem realiza-se mediante a práxis. A forma original e vivida da práxis é
a experiência.
As experiências constituem-se em vivências, que são as formas organizadas,
persistentes e padronizadas da experiência.
O objeto da psicologia é o estudo das vivências e da experiência.
4) A dimensão corporal
O corpo define a facticidade do ser humano - nos situa em coordenadas
espaço-temporais, nos toma seres naturais (sujeitos às necessidades dos
entes naturais), nos proporciona os instrumentos da práxis.
5) A dimensão motivacional
O homem precisa cuidar de sua existência, dar conta de si; em conseqüência,
age e faz sua vida mediante o cuidado, estimulado por suas necessidades,
aberto a seus interesses e possibilidades, regulado por suas experiências afetivas.
6) A dimensão afetiva
A trama subjetiva tem um caráter predominantemente afetivo. O sujeito
reage e se envolve pelas emoções, se vincula pelos sentimentos e se encontra
sempre em certa afinação com o mundo nos estados de ânimo.
7) A dimensão têmporo-espacial
O homem é um ser temporal e temporalizante, condicionado por sua história,
aberto a suas possibilidades. Como ente espacial ocupa diversos lugares, que o
situam numa rede de relações tanto socioeconôrnicas quanto interpessoais.
8) A dimensão axiológica
Os valores são inerentes à existência social e individual. Toda escolha, preferência
e decisão implicam uma forma de valorização.

35
O inquilino do imaginário

Quero lembrar que os postulados correspondem aos enunciados básicos de uma


doutrina, aqueles que a caracterizam em suas linhas vertebrais. Para cada postulado
existem determinados princípios que especificam o modo de operar o enunciado geral.
Para que o leitor forme uma idéia mais clara, quero mencionar três princípios.
Ao postulado do homem como ser-no-mundo corresponde o princípio que nos
ensina que o mundo do sujeito se configura de um modo concreto segundo sejam
as situações que esteja vivendo numa fase determinada de sua vid a. São as
situações que revelam o modo de ser e as características precípuas de uma pessoa.
Cabe assinalar que a situação não é meramente a configuração externa, ela também
é a resultante da atuação do sujeito.
Ao postulado social e interpessoal corresponde o princípio da prioridade do
outro na constituição do sujeito; isso significa que na etapa inicial do desenvolvimento,
durante boa parte da infância, o indivíduo esteve subordinado às injunções, aos
ditames, às manipulações e ao domínio dos agentes socializadores: pais, parentes,
educadores e programadores coletivos (mídia), principalmente. O desenvolvimento
da individualidade exige a progressiva superação dessa primazia do outro, tarefa
que implica um longo processo de autoconsciência e questionamento.
Um outro princípio nos permite entender o postulado da primazia da práxis na
constituição da pessoa. É o princípio da constituição da experiência em vivência. A
vivência articula-se, estrutura-se de certa maneira num determinado percurso temporal,
estabelecendo os padrões dominantes que sensibilizam, orientam e predispõem o
sujeito para determinar linhas de motivação e ação, de afinação e valorização.
Existe algum princípio que nos indique como se constitui o psicopatológico?
Sim, é o princípio de alienação do interpessoal. O psicopatológico implica uma
alienação do relacionamento interpessoal, seja por subordinação do sujeito ao outro
(nas neuroses), seja por não reconhecimento no outro (na psicopatia), seja por
exclusão do outro (na psicose), seja por um relacionamento puramente parcial nas
perversões sexuais (sadomasoquismo, voyeurismo etc.). Contudo, o psicopatológico
pode ser colocado num princípio ainda mais abrangente: o psicopatalógico implica
a negação, mistificação e alienação das possibilidades essenciais da existência- a
liberdade, a responsabilidade, a abertura, a autenticidade, a auto-realização mesma.
O patológico é aquilo que degrada e ameaça tanto a vida quanto a existência, pois
as duas estão em mútua interdependência.
Sublinho que todos os postulados têm vários princípios que explicitam seu
funcionamento. Precisaria também comentar os métodos que usam essa abordagem.
Nos capítulos seguintes, refiro-me à fenomenologia; os outros dois são oriundos da
dialética e da própria compreensão enquanto modelo epistêmico. Para uma exposição
detalhada, consulte o texto As Dimensões da Experiência Humana5 •
Deixo por aqui essa parte introdutória. Restaria ainda referir-me ao enfoque
comportamental, de tanta presença no campo da psicologia atual, sobretudo agora

36
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico

que se abre para uma perspectiva teórica mais ampla por uma linha cognitivista.
Iniciado a partir dos anos 70 com as pesquisas da Escola de Filadélfia, dirigida por
Aaron Beck, o enfoque cognitivista tende hoje a substituir ao behaviorismo clássico
na maioria das áreas. O cognitivismo enfatiza um aspecto que até então as teorias do
aprendizado tinham esquivado: a cognição como um fator de primeira importância na
constituição da subjetividade. Contudo, esta abordagem ainda não nos oferece um
modelo do psicopatológico original, subordinando-se em grande medida aos enfoques
biomédicos, sobretudo em relação às classificações e descrições das perturbações
mentais. Não apenas a escola cognitivista renova o comportamentalismo ortodoxo, de
cunho skinneriano; a escola britânica liderada por Hans Eysenck oferece-nos uma
nova forma de explicação do psicopatológico, postulando mecanismos cerebrais
geradores de traços temperamentais. A acentuação desses traços sustentam ou geram
as diversas modalidades dopsicopatológico. Gordon Oaridge, autor do bem-documentado
livro sobre As Origens da Doença Mental, sustenta a tese de que os estados psicóticos
não são diferentes das perturbações rotuladas como neuróticas; estariam no mesmo
eixo, implicando apenas uma maior incapacidade adaptativa. Sua limitação mais gritante
é sua concepção antropológica: continua sendo o homem condicionado de Pavlov.
Pelo exposto nas páginas anteriores, ficam claras as profundas divergências
que caracterizam as concepções do psicopatológico. Apenas o comportamentalismo
de cunho britânico, liderado por Eysenck, mostra uma aproximação com o organicismo.
Nenhuma das abordagens concorda com o modelo epistêmico psicanalítico ein razão
de seus excessos interpretativos, embora não seja insólito que alguns médicos apliquem
um enfoque biológico no asilo e empreguem um tratamento psicanalítico em seus ·
pacientes na clínica privada. Justificam-se dizendo que a psicanálise tem escassa
aplicabilidade no doente mental, mas que é indicada como psicoterapia no consultório
particular em razão dos tipos de clientes que ali são atendidos - o que é igualmente
válido para as outras abordagens.

Bibliografia citada e livros recomendados


1) Graeff, Frederico G. e Brandão, M.L. Neurobiologia das Doenças Mentais (Lemos Editorial,
1993). Este livro nos oferece um bom repertório de pesquisas segundo o modelo biomédico,
todas elas relacionadas com os quadros da psiquiatria clássica.
2) Freud, Sigmund. Análise Fragmentária de um Caso de Histeria (caso Dora, 1901).
3) Freud, Sigmund. Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901).
Estes dois textos proporcionam uma boa amostra do estilo freudiano.
4) Hans Eysenck. Decadência e Queda do Império Freudiano (Civilização Brasileira, 1993). É uma
crítica muito bem argumentada, feita por uma das grandes figuras do comportamentalismo.
5) Enn1io Romero. As Dimensões da Experiência Humana (Sociedade Brasileira de Psicologia
Humanista, 1991). Nesse texto exponho de maneira sistemática os postulados e princípios que
sustentam uma psicologia antropológica e compreensiva. Publicado oficialmente com o título
As Dimensões da Vida Humana- Existência e Experiência (Novos Horizontes Editora, 1998)

37
O inquilino do imaginário

6) Jacques Van Rillaer. Les Illusions de la Psychanalyse (Magada editeur, Paris, 1986). Este é o
melhor comentário crítico que conheço sobre a proposta freudiana. Analisa a teoria freudiana
com pertinência e rigor.
7) Gordon Claridge. As Origens da Doença Mental (São Paulo, 1993). Oferece um bom repertório
de pesquisas experimentais.
8) Martin E. P. Seligman. Desamparo (São Paulo, 1977). Interessante enfoque comportamentalista
sobre a depressão, o desenvolvimento e a morte.
9) Enu1io Romero. Essas Inquietantes Ervas do Jardim - O Normal e o Sintomático (São Paulo,
Lemos Editorial, 1996).

38
Capítulo 2

O ENFOQUE FENOMENOLOGICO
EXISTENCIAL EM PSICOPATOLOGIA

Na vida cotidiana, o que se apresenta a nosso entendimento


o compreendemos de maneira intuitiva; depois tentamos achar uma
explicação do que está acontecendo; às vezes o fenômeno é bastante complexo
e algo enigmático; então procuramos entendê-lo mediante uma interpretação.
O problema é que a interpretação sempre é hipotética - ou susceptível
de outras interpretações.

Fenomenologia e existencialismo
anto a psicanálise como o existencialismo tomaram-se, no campo da cultura

T técnica de massas, formas do saber acadêmico e, em menor medida, idéias


e representações do cotidiano; ambas constituíram-se em correntes de
pensamento e em ideologias que emprestam seus conceitos e sua linguagem a
setores da população que ignoram o fundamento de seus postulados.
Existe uma ideologia psicanalítica que nestes últimos vinte anos começa a
ocupar o lugar que preenchia o marxismo para a geração anterior (o lugar entre as
elites intelectuais, pelo menos). Quero dizer que, independentemente de sua validade
como método de pesquisa psicológica e de seus achados, as teorias do inconsciente
viraram consumo popular e esquemas supostamente explicativos de uma variedade
enorme de fenômenos que a rigor ficam fora de seu campo de pesquisa. Certamente
está longe de representar o papel do marxismo.

39
O inquilino do imaginário

Algo similar aconteceu com o existencialismo, especialmente aquele


representado pela corrente francesa. Nos anos 50 e 60, ser existencialista era o
estilo e a maneira de questionar o sistema social e denunciar todas as formas de
impostura que os homens inventam para justificar sua contingência e os absurdos
que assediam a vida humana. Passado o auge existencialista, estamos em condições
agora de avaliar suas contribuições, o que esta doutrina nos legou como saber
certo e como visão sustentável da vida e do mundo.
O existencialismo é uma corrente filosófica bem mais abrangente e com uma
gravitação no pensamento contemporâneo bem maior que a fenomenologia.
Nascido oficialmente em 1927, com a publicação de Ser e Tempo, de Martin
Heidegger, o existencialismo coloca a questão do ser como a máxima tarefa da
reflexão e da ação humanas. Centrada sua preocupação na elucidação ontológica,
em geral, logo focaliza sua atenção na questão do ser do homem, em particular.
Heidegger tenta caracterizar, em sua obra fundamental, os traços distintivos do ser
humano; para esse objetivo, ele entende que o único método que lhe permite alcançar
este propósito é a fenomenologia.
Depois de Heidegger, outros pensadores identificados com esta corrente
filosófica aplicam este mesmo método. Não é demais dizer que este método não
é o único empregado pelo enfoque existencial, sobretudo na área da psicologia.
Dois outros gozam igualmente de considerável prestígio: o método compreensivo
e o método dialético.
Por ora me interessa oferecer ao estudioso da psicologia uma caracterização
do método inaugurado por Edmund Husserl.
Com a fenomenologia, e principalmente com o existencialismo, introduz-se
uma nova linguagem no âmbito da psicologia e da cultura geral. Toda uma nova
visão do homem reflete-se na linguagem tanto dos especialistas como da gente
leiga. Essa filosofia de vida coloca em circulação todo um repertório de idéias e
de questões que tentam dar conta da realidade humana nos tempos atuais.
Algumas dessas idéias já tinham uma longa história dentro da tradição da filosofia
ocidental, como o é o debate entre a essência e a existência, ou a liberdade e o
determinismo. Outras foram introduzidas pelos filósofos que inauguram esta
nova concepção do homem. Desde Kierkegaard até Jean-Paul Sartre, passando
por um Heidegger, um Martin Buber, um Merleau-Ponty e tantos outros, há um
enorme caudal de idéias que configuram e direcionam uma nova maneira de
compreender a realidade humana. Muitas dessas idéias são corriqueiras, mas
de fundo filosófico.
Há toda uma série de conceitos que usamos no cotidiano sem nos indagarmos
sobre o profundo conteúdo existencial que eles implicam. Angústia e responsabili-
dade, contingência e absurdo, autenticidade e inautenticidade, tempo e história, sentido
e sem sentido, ser e nada- só para citar os que circulam por aí, na boca de todos.

40
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

Graças à pesquisa baseada nesta abordagem, surge uma renovação muito


importante tanto na área da compreensão da psicopatologia quanto no campo de
tratamento das pessoas doentes. Desde as publicações dos trabalhos de um
Binswager, lá pelos anos 40, até o surgimento da chamada Antipsiquiatria, nos
anos 60, opera-se todo um questionamento profundo dos conceitos e da prática
psiquiátrica e psicoterapêutica. Dar continuidade a esse tipo de enfoque é o propósito
1
que nos anima.
Considero pertinente oferecer as idéias básicas da fenomenologia. Desde já
é bom dizer que essa forma de encarar a pesquisa nunca alcançou a difusão
conseguida pelo existencialismo e pela psicanálise. Sua presença tem-se mantido
na área da psicologia e das análises filosóficas. Contudo, por ter-se originado no
plano da filosofia pura, o pensamento husserliano não é de fácil acesso para o
psicólogo de formação acadêmica dominante em nossas faculdades.
Na cabeça de seufundador, Edmund Husserl, a fenomenologia nasceu com a
pretensão de tomar a reflexão filosófica uma ciência rigorosa, tão bem estabelecida
que servisse de fundamento a todas as outras ciências empírico-físicas e naturais.
Como bom cartesiano, o grande intuito de Husserl era fundar um método que
proporcionasse um conhecimento indubitável e radical, com um ponto de partida
evidente, sem nenhum pressuposto. Trata-se de apreender os fenômenos tais como
emergem na consciência pura do sujeito, na experiência vivida.
Contudo, pouquíssimos foram os que aplicaram o método husserliano como
prescrevia seu criador; cada autor dá, por assim dizer, sua versão, mas certamente
o núcleo e a intenção básica do enfoque permanecem em todos eles. Em nossa
disciplina, o impacto do pensamento husserliano tem sido muito acusado. Eu diria
que os melhores tratados sobre questões psicopatológicas e psiquiátricas utilizam o
método do mestre alemão.
A presença do pensamento fenomenológico é muito notória; fora os países
de língua germânica, na psiquiatria espanhola e, por esta via, nos países hispano-
falantes. Na Espanha, um dos maiores centros da pesquisa psicopatológica, todos
os grandes mestres usam este método.
Em nosso meio, mais que a fenomenologia, são os temas característicos da
literatura e da filosofia existenciais os que suscitam interesse no âmbito da psicologia.
De qualquer modo, um Nobre de Mel o, a figura com maior radiação na psiquiatria de
fala lusitana, outorga destaque a esta abordagem em seu bem conhecido Tratado.
Quero deixar claro que eu mesmo darei neste capítulo e nos temas que
constituem este livro minha versão da fenomenologia. Penso que o que importa é
o espírito da proposta husserliana, mais que determinados procedimentos canônicos.
Devo dizer também que sempre tive especial cuidado em acentuar o sentido
existencial da compreensão fenomenológica. Se fui afortunado nesse propósito, o
leitor competente o julgará.

41
O inquilino do imaginário

No tratamento dos diversos temas que implica esse enfoque, tive um cuidado
muito especial para não cair nas ciladas do teoricismo e do excesso de informação
puramente acadêmica. Preferi ilustrar os enunciados mais abstratos em suas
manifestações concretas. Espero que isso ajude o leitor menos familiarizado com
essa visão das coisas.
Mas antes de entrar no miolo de nosso assunto, quero esclarecer alguns
conceitos que, por serem tão comuns e corriqueiros, já não sabemos bem o que
significam. Sem um mínimo de rigor conceitual, as idéias se prestam aos mais
estranhos malabarismos ideológicos, especialmente num terreno mal desbravado
como é o campo em que pretendemos transitar.

A Construção da Realidade: coisas, objetos, fenômenos, relações,


eventos, entes naturais, pessoas. Fenômenos e realidade
Há uma série de conceitos que usamos corriqueiramente com muita soltura
de corpo, como se os significados implicados por eles fossem de uma obviedade
indiscutível. Entre esses conceitos aparentemente óbvios encontram-se os que
colocamos como título deste parágrafo. Com estes conceitos construímos a
realidade.
Contudo, todos eles são extremamente complicados, em especial o conceito
de realidade. O que queremos dizer quando qualificamos um evento ou fenômeno
como real?
Queremos dizer que existe, ou que existiu de alguma maneira. Quando nos
referimos aos deuses gregos hoje, afirmamos que não existiram; eram seres míticos,
imaginários ou meramente simbólicos, como qualquer personagem de um mito, de
uma lenda ou fábula. Mas também admitimos que uma parte do que acreditamos
com respeito a determinados personagens históricos, cuja existência está bem
documentada, está aureolada pelo mito, sobretudo quando o personagem forma
parte da galeria dos heróis.
Em história, tanto como na vida cotidiana, fatos e mitos misturam-se de modo
amiúde indiscemível.
A rigor, o conceito de realidade é basicamente uma construção de caráter
social. Podemos cogitar e propor alguns critérios para entendermos o que vamos
designar como real. Dois têm sido usados por filósofos e leigos. Primeiro, o critério
de concretude: é real tudo aquilo que pode ser apreendido na sua concretude, isto
é, na sua determinação. Nada mais determinável, em conseqüência, que coisa,
palavra que em latim se diz res, de que deriva real. O que não podemos determinar,
delimitar e configurar de alguma maneira, nem sequer em seus efeitos, não é real;
mas essa determinação não pode ser apenas individual: deve ser passível de uma
experiência comum ou compartilhada. Se um sujeito nos informa que ouve vozes

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O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

ou enxerga seres ectoplasmáticos, percepções que nós não podemos ter, tomamos
seu depoimento como desvario alucinatório de s~a mente. Mas se vários indivíduos
testemunham essa experiência, tendemos a outorgar-lhe maior credibilidade, embora,
por ser uma experiência insólita e extraordinária, a olhemos com justificado
ceticismo. Nesse caso queremos provas que ratifiquem ou não o testemunho destas
pessoas.
Em ciência, este critério de experiência compartilhada, passível de verificação
segundo critérios objetivos, é uma exigência indispensável. Certamente este é um
passo preliminar. Primeiro verifica-se a existência do fenômeno; de fato, alguns
indivíduos alucinam. É uma experiência insólita, que acontece em determinadas
condições mentais. A maioria das pessoas não acusa passar por esse tipo de supostas
percepções. Nesse caso, a primeira coisa que fazemos é ver se se trata de uma
alucinação ou não.
Dá-se em sujeitos notoriamente perturbados, embora haja testemunhos
de pessoas que afirmam ter tido experiências similares, em plena lucidez de espírito.
É o que sabemos.
Na ótica científica, não basta constatar a existência do fenômeno; é preciso
também estabelecer as condições de sua ocorrência e as articulações que mantém
com outros fenômenos. No conhecimento comum, não levamos o rigor tão longe;
basta-nos constatar que ele existe e só em alguns casos queremos saber por que
ou como aconteceu, sem tentar formular um princípio geral que nos explique sua
ocorrência.
Há um segundo critério, bem menos válido que o primeiro, mas utilizado
com farta freqüência no plano do juízo aproximativo: o critério de verossimilitude.
Tendemos a admitir como real aquilo que se nos apresenta com as feiçõçs do
verdadeiro, provável, plausível e acreditável. Diga-se de passagem que esse
critério se conecta com a questão da verdade: tendemos a pensar que o que é
verdadeiro é igualmente real, embora a verdade (e a falsidade) sejam um atributo
dos juízos (da lógica) mais que dos eventos e fenômenos para cuja ocorrência se
coloca a questão da realidade. Demais está dizer que não é suficiente a logicidade
de um juízo; o juízo deve também refletir a realidade dos eventos (ou como
preferiria dizer Heidegger, que a verdade seja a revelação do ser: a aletheia dos
gregos).
Eu proponho ainda um terceiro critério da realidade: é o de incumbência.
É real tudo aquilo que é de nossa incumbência, tudo aquilo que nos toca e nos
afeta de maneira inevitável. O que nos afeta de um modo inevitável é de nossa
inteira incumbência.
Este é um conceito pragmático de realidade, não uma idéia metafísica. (Para
uma exposição mais ampla desse critério, veja-se o capítulo "Formas de Alienação
e Psicopatologia".)

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O inquilino do imaginário

Se admitimos como real tudo o que existe de alguma maneira determinada,


ficção e realidade não são conceitos antitéticos: um ente de ficção (Dom Quixote,
o inferno de Dante) apresenta todas as feições de uma realidade, como pura
existência possível, forjada por seus autores e ratificada pelo imaginário do leitor.
Não tem uma existência constatável, só meramente possível ou imaginária.
É habitual contrapor, por uma parte, fantasia e imaginação e, por outra, a
realidade. Eu diria que a contraposição é entre factício e fictício. O factício pertence
à esfera dos fatos, ao campo dos eventos determináveis e observáveis. O fictício
pertence à esfera da ficção, do meramente possível, não determinável como evento
consumado, mas plausível de acontecer pelo menos no plano mental; aliás, a
chamada realidade social e cotidiana admite e consagra uma série de seres
imaginários e de representações que originariamente pertencem ao reino do
meramente possível, mas que terminam por adquirir uma suposta realidade concreta
e factual. A ficção está presente em grande medida em boa parte das representações
coletivas, tanto como nas individuais. Qualquer projeto coletivo que se ofereça
como via possível de bem comum inclui uma forte dose de ilusão. As promessas
dos políticos, tanto como qualquer ideário político, propõem uma mistura de bons
propósitos com ficções meramente utópicas. E não quero referir-me aqui a todas
as mediações e favores que supostamente fariam os entes espirituais, os santos, os
curandeiros e outros agentes criadores de ficções. Desde que o homem foi capaz
de construir outras realidades que não a puramente imediata e natural, entrou no
reino da fantasia e da ficção. E nesses mundos navega.
Todos podemos viver as mais variadas fantasias; a diferença entre o louco e
o chamado normal não reside nesse ponto; reside em que o louco outorga uma
existência objetiva a suas invenções, deixa de aperceber-se de que são meras
invenções de sua mente; invenções nem sequer abalizadas pelas crenças coletivas,
que quando são compartilhadas por um grupo, as mais estranhas ficções adquirem
a feição da validade e do verossímil ("as mentiras coletivas tomam-se as santas
verdades dos indivíduos", diria Max Nolden).
Sobre o que vamos entender por realidade não é uma questão que possamos
dirimir numa proposição simples; nem os ftlósofos mais penetrantes nos ensinaram
grande coisa sobre um conceito tão abrangente. Enquanto não encontrar um conceito
melhor, eu diria que o real se refere às condições de apresentação, articulação e produção
dos fenômenos. Realidade é tudo o que o homem pode apreender como real.
A realidade se nos apresenta como um conglomerado heterogêneo e
diferenciado de coisas, objetos, fenômenos, lugares e entes naturais. Todos mantendo
algum tipo de relação entre si. É pertinente uma breve análise desses conceitos.
A) A Coisa é a realidade por excelência, tanto assim que a palavra real deriva
do latim res, que significa coisa. As coisas são entes concretos, construídos por nós.
A mobília, os instrumentos que usamos nas mais diversas práticas, as máquinas, os

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O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

objetos decorativos são as coisas que povoam nosso espaço cotidiano. Vivemos num
mundo de coisas: são úteis e nós as usamos com os mais diversos propósitos.
É tão forte o impacto das coisas na construção da nossa realidade, que
tendemos a coisificar um série de fenômenos e de relações que não são coisas. As
coisas são estáticas, concretas e maciças, é muito fácil apreendê-las e classificá-
las. Dizemos corriqueiramente: "Preciso te contar um monte de coisas", quando
apenas queremos referir alguns eventos. Ou: "Aconteceu uma coisa bastante chata",
aludindo a um episódio que nos enfadou. Episódios, eventos e até mesmo pessoas
são coisificados.
Quando reduzimos uma pessoa a sua mera função, ignorando-a por completo
como agente consciente de seu papel, estamos coisificando-a. Todos os relacio-
namentos que Martin Buber qualifica eu-isso e não eu-tu são reificadores.
B) Objeto é qualquer ente pensável: uma coisa, uma figura abstrata, um puro
conceito. Os filósofos têm proposto diferentes classificações dos objetos possíveis.
Não seria pertinente aqui um comentário sobre esse ponto. Como objeto é tudo
aquilo que menciona o pensamento ou, como diria Husserl, o sujeito de um juízo,
todas as classificações são insuficientes. Por comodidade, proponho a seguinte
classificação:
1) objetos naturais: são todos aqueles que encontramos na natureza, que
apreendemos tanto na experiência cotidiana como pela pesquisa científica;
2) objetos sociais e históricos: são todos os fenômenos coletivos e grupais que
interessam aos sociólogos como motivo de pesquisa, e que nos afetam a
todos como integrantes desses coletivos (as instituições, as classes, as
normas etc.);
3) objetos ideais: são os valores e os entes matemáticos. Os valores são
qualificações ideais que o sujeito outorga a determinados objetos, geral-
mente em termos antitéticos (belo - feio, verdadeiro - falso, bondoso -
maldoso, egoísta- solidário etc.). Não são propriedades dos objetos, mas
qualificações do sujeito. Os entes matemáticos existem como puros
enunciados relacionais e princípios lógicos, principalmente de tipo quantitativo;
4) objetos metafísicos: são conceitos relacionados com o ser último da
realidade, enquanto características próprias dessa realidade primordial (o
espaço e o tempo, o tempo e a eternidade, o ser e o nada, o finito e o
infinito, a aparência e a essência, e outros), ou se relacionam com a origem,
a transcendência e o destino do homem (Deus, a alma, a graça, o pecado,
a morte, o sacrifício, a necessidade e a contingência etc.). O homem é um
ser metafísico, tanto como físico; quero dizer que vive preocupado não
apenas com o atendimento de suas necessidades imediatas e biológicas,
senão também com questões que atingem seu ser e seu devir, o sentido da
vida e o alcance de sua liberdade e de suas possibilidades. Todos os

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O inquilino do imaginário

fenômenos religiosos, ou boa parte deles, repousam em pressupostos


metafísicos, razão pela qual muitos confundem ambos os conceitos;
5) objetos simbólicos: são representações que aludem e delatam uma outra rea-
lidade, que apenas se insinua na representação, permanecendo na penum-
bra de maneira mal determinada e imprecisa. O terreno privilegiado do
simbólico encontramos nas lendas, nos mitos, nos sonhos e também na
arte e na religião.
Perante o simbólico temos duas alternativas: a interpretação e a compreensão
fenomenológica. Mas não temos certeza de que a nossa interpretação seja
verdadeira; apenas pode ser plausível e convincente, ou inverossímil e duvidosa. O
símbolo sempre nos coloca perante um enigma. A compreensão fenomenológica
tenta. apreender o significado do símbolo no que ele expressa, discernindo seu
sentido no que ele revele por si mesmo.
Não é demais observar que alguns autores muito qualificados, como Cassirer,
Lange e inclusive Piaget, entendem como simbólica toda manifestação humana
expressável em termos de linguagem, sendo justamente a linguagem o campo
privilegiado do simbólico. Outros especialistas, não menos respeitáveis, colocam o
símbolo como uma categoria específica da representação junto com outras formas
do fenômeno comunicativo: indícios, sinais, sintomas, signos, ícones, símbolos.
Como quer que se entenda a linguagem, ela é uma das características mais
distintivas do ser humano. Não é apenas um componente disso que chamamos
realidade, mas é sobretudo o instrumento que nos permite organizar, categorizar,
ordenar e fixar o emaranhado de relações complexas que configuram qualquer
realidade. Não é apenas um meio comunicacional e de ação; é o instrumento que
nos permite nomear, qualificar, conservar, conceituar, todo o campo de experiências
que configura o mundo que habitamos.
Pelo simples ato de nomear constitui-se uma realidade. Nas palavras reside
tudo o que existe, embora o que existe esteja para aquém e para além das palavras.
Seja nas palavras-coisas, seja nas palavras-símbolos (o mito da expulsão do paraíso),
seja nas palavras-atos ("apesar de todas nossas diferenças, tento entender-me com
você"), nelas se explicitao sentido, não importa quão verdadeiro ou fictício seja ele.
Nelas inscreve-se também o significado. Os signos significam; os sinais
assinalam, apontam os roteiros a seguir; os sintomas denunciam (a crise, a ruptura, o
conflito, a doença, o anormal); os indícios indicam (as pegadas, a passagem de um
evento, seus efeitos) ou prenunciam, e os símbolos contam uma história cujo sentido
intuímos, embora ignoremos seu significado original. Captamos o sentido de um sonho
e de um mito, mas qual poderia ser seu significado? Não existe uma chave certa.
O que um símbolo? Insisto: não existe acordo sobre essa questão. Pelos
diferentes usos da palavra, inferimos diferentes significados. Contudo, podemos
atribuir-lhe um sentido.

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O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

Poderíamos afirmar que apenas há objetos, simples referentes intencionais


da nossa consciência. Em tese, qualquer objeto pode adquirir uma determinada
feição segundo seja a nossa maneira de encará-lo. Deus, um objeto metafísico por
excelência, pode ser enxergado como uma representação social, ideal, simbólica e
talvez até natural (como acontecia com a representação dos deuses na cultura
grega, em que se lhes atribuíam as mesmas necessidades e paixões dos homens).
Há um outro significado do objeto a ele associado: objetivo.
Qualificamos como objetivo aquilo que se mostra ou é observável sob
determinadas condições por qualquer indivíduo que preencha estas condições. Opõe-
se a subjetivo, que designa qualquer evento diretamente experimentado por um
sujeito, passível ou não de ser observado por outra pessoa, dependendo isso do tipo
de evento experimentado.
C) Tudo o que existe se manifesta de certa maneira: se apresenta como um
fenômeno. Fenômeno deriva do grego phainestai, que significa "aquilo
que se manifesta", "aquilo que se revela". Que se manifesta para uma
consciência perceptiva. Tudo o que acontece, e que a nós mesmos nos
acontece, é fenomênico. Essa "vaga impaciência que experimento para
colocar algumas idéias claras no papel" é um fenômeno. A melodia que
percorre neste momento o ambiente da sala e que coloca uma sutil nota
de nostalgia no espaço é um fenômeno. Os objetos, podemos considerá-los
em sua pura abstração formal; os fenômenos apresentam-se como eventos,
como o que acontece no seio do ser. Nele revela-se o que a mente é. Não
significa que se revela para sempre, mesmo seu modo de aparecer.
Há diferentes tipos de fenômenos. Os fenômenos da reprodução das espécies
são da esfera biológica. Como psicólogo, interessa-me conhecer os fenômenos
existenciais que têm uma direta relação com o psicológico. Nossa tarefa é examinar
quais são esses fenômenos, ver como se diferenciam entre si, descrever sua
variedade e determinar o que permanece como essencial nessa variedade para
cada tipo estabelecido.
D) Além de coisas e objetos, de organismos e pessoas, existem entes naturais.
Uma árvore, uma floresta, uma montanha, um rio, os quatro elementos
que já distinguia a física grega são exemplos deste tipo de entes. Eles
estão aí, constituindo a natureza em todas as suas formas diferenciadas.
Eles são o substrato material do homem, do qual dependemos, embora se
nos apresentem como o inexorável outro num contato de pura
exterioridade. São a base de nossa vida física e influem em nosso psiquismo
como paisagem, como clima e como hábitat ecológico, mas são indiferentes
à nossa presença. É o que os diferencia dos organismos: um animal nunca
é completamente indiferente à proximidade humana. A natureza pode ser
entendida como pura exterioridade, completamente alheia a nosso destino.

47
O inquilino do imaginário

Por isso nosso próprio corpo, ente natural, se nos apresenta como uma
opacidade que resiste a qualquer tentativa de compreensão subjetiva, como
uma espécie de "máquina" autônoma que está sempre para além de nossa
vontade de controle. É óbvio que os animais se incluem aqui.
E) As especificações da realidade não se esgotam apenas nas coisas e nos
entes naturais, por um lado, e os objetos e fenômenos, pelo outro, com
suas correspondentes e complexas relações; existem também os eventos.
A realidade é dinâmica, tanto na sua natureza como na sua face humana.
As mudanças naturais são obviamente importantes para o homem, qualquer
que seja seu caráter - geológicas, climáticas, bioecológicas -, mas são
sobretudo importantes as interações existentes entre o homem e seu
contorno físico e biossocial. Tudo o que acontece, afetando o homem de
algum modo, é um evento, seja originado em seu contorno, seja originado
em seu corpo e em sua mente, ou melhor ainda, originado na sua existência.
F) Existem também as pessoas: nosso próximo, nós mesmos; nós, o centro
organizador da realidade.
Com todas essas configurações parciais da realidade mantemos determinadas
relações. O homem pode ser entendido como uma unidade complexa, dinâmica e
contraditória de relações. Podemos afirmar que conhecemos o mundo de uma
pessoa quando conhecemos as principais relações que essa pessoa mantém com
os diversos objetos que constituem sua realidade, havendo determinado sua maneira
peculiar de relacionar-se com esses objetos.
O mundo de uma pessoa é uma configuração complexa de relações significativas
que, como uma teia de aracnídeo, sustentam sua existência, lhe oferecem certas
possibilidades e também a aprisionam. Essa configuração relaciona! desenha-se num
espaço determinado, que se caracteriza como o lugar da ação: a situação.
Até aqui fizemos um inventário dos componentes disso que chamamos
realidade.
Podemos dizer que são os componentes molares da realidade, diferenciando-
os assim dos moleculares, que constituem os elementos da microfísica, que nos
afetam num plano orgânico, assim como os molares nos afetam num plano pessoal.
Esses componentes molares constituem também âmbitos peculiares, nos quais
e com os quais o homem configura seu mundo, isto é, sua realidade mais própria.
No âmbito das coisas e dos entes naturais constrói sua vida prática. Representa as
diversas esferas da realidade no âmbito dos objetos e dos fenômenos. Experimenta
o acontecer no âmbito dos eventos. Configura e arquiteta sua existência nas diversas
relações que estabelece com todos esses âmbitos.
Para um enfoque mais elaborado de todos estes conceitos, recomendo o texto de
Dulce Critelli, que aborda estas questões seguindo as diretrizes da analítica heideggeriana.

48
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

As características do método fenomenológico


Em sentido lato e puramente aproximativo, o método fenomenológico aplica-
se quando descrevemos um evento, uma situação ou determinados objetos. É o
que faz um romancista quando tenta pintar um quadro ou cenário onde algo
significativo está acontecendo. Pode ser algo apenas objetivo, meramente externo,
ou revelar impressões dos autores; geralmente uma mistura de ambos os fatores.
É o que faz Rainer Maria Rilke numa das páginas de seus Cadernos:
"O médico não me compreendeu. Não compreendeu nada. Também foi difícil
explicar. Queriam tentar choques elétricos. Bom. Recebi uma ficha: devia estar há
uma hora na Salpêtriere. Fui até lá. Tive de passar por diversos pavilhões, atravessar
vários pátios em que, aqui e ali, havia pessoas paradas debaixo de árvores vazias,
pessoas com toucas brancas, como prisioneiros. Por fim cheguei a um aposento
longo, escuro, parecido com um corredor, tendo de um lado quatro janelas de vidro
fosco e esverdeado, separadas umas das outras por uma larga parede negra. Um
banco de madeira alongava-se na extensão delas, e nesse banco sentavam-se os
que me conheciam e esperavam por mim. Sim, estavam todos ali a minha espera.
Quando me acostumei à penumbra do aposento, notei que entre os que se sentavam
ombro a ombro, numa interminável fila, poderia haver algumas outras pessoas,
gente miúda, operários, criadas e cocheiros. Na parte estreita do corredor, em
cadeiras especiais, tinham-se esparramado duas mulheres gordas que
conversavam, provavelmente porteiras. Olhei o relógio; faltavam cinco para uma.
Então, em cinco, digamos dez minutos, seria minha vez; não era tão mau assim.
O ar era péssimo, pesado, sobrecarregado das emanações de roupas e
respirações. Em certo lugar escapava por uma fresta da porta o frio intenso e
crescente do éter. Comecei a andar de um lado para outro. Ocorreu-me que me
tinham mandado para ali, entre aquela gente, àquela hora de consulta pública,
superlotada. Era, por assim dizer, a primeira confirmação oficial de que eu fazia
parte dos marginalizados; será que o médico reconheceu isso pela minha
aparência? Mas eu fiz minha visita num temo bastante bom e apresentara meu
cartão. Apesar disso, de algum modo ele deve ter ficado ciente, quem sabe eu
me traí. Bem, como era um fato consumado, não achei tão ruim; as pessoas
sentavam-se quietas, não prestavam atenção em mim. Algumas sofriam e
balançavam um pouco uma perna para suportarem melhor a dor. Diversos homens
haviam deitado a cabeça nas palmas das mãos, outros dormiam com rostos densos
e soterrados. Um homem gordo, de pescoço vermelho e inchado, sentava-se
curvado para a frente, fixando o soalho, e de tempos em tempos escarrava
ruidosamente num ponto que lhe parecia adequado."
Predomina nesse quadro a descrição externa, com algumas conjecturas
impressionistas, todas muito plausíveis. O resto do relato proporciona-nos um
cenário bastante típico da ante-sala de um hospital estadual (para pessoas

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O inquilino do imaginário

operárias e carentes). Esse tipo de descrição não só é-usada por romancistas.


Antropólogos, sociólogos, historiadores e psicólogos a empregam com muita
freqüência numa primeira etapa de suas pesquisas. É o trabalho que faz um
repórter que pretende mostrar-nos determinadas realidades, seja a título de
documentário, seja como mera constatação de uma história em curso com alguns
comentários e impressões. É o que se espera de nós quando somos chamados a
dar um testemunho fidedigno de algo que presenciamos ou protagonizamos,
especialmente num tribunal. A finalidade é simplesmente mostrar como se
apresentam os eventos e fenômenos.
Em sentido mais estrito, a fenomenologia é o método apropriado para analisar
e caracterizar a existência humana no que ela tem de mais original como aquilo
que nos afeta, nos compromete e nos incumbe de um modo inexorável. Se
entendemos que o psíquico é apenas um aspecto da existência, seu lado experiencial
e vivenciado, então a fenomenologia é também o método adequado da psicologia,
pelo menos um de seus métodos.
Mediante esse método, tentamos apreender o movimento da vivência, tal
como um sujeito ou um grupo de sujeitos a experimentam, qualquer que sejam as
formas vivenciais discemíveis.
Desse método quero ressaltar três princípios que orientam sua aplicação:
a) o princípio de fidelidade aos fenômenos mesmos;
b) o princípio de descrição rigorosa dos fenômenos com sua variação
construtivo-genética;
c) o princípio de determinação das essências enquanto formas de relação
homem-mundo (que é a relação existencial).

O princípio do respeito aos fenômenos mesmos: o retorno ao mundo


vivido
Nos mais diversos autores verificamos a fidelidade aos princípios reitores do
método. Em primeiro lugar, a vontade de ater-se aos fenômenos mesmos, deixando
de lado qualquer pressuposto e toda idéia preconcebida. Seguindo os positivistas
que exigiam exame cuidadoso dos fatos, a ciência pretendia lidar apenas com
fatos, não com valores; Husserl escolhe o lema de "ater-se às coisas mesmas",
sem prejulgar sua natureza. Esse preceito elementar é geralmente desconsiderado,
inclusive na observação empírica, que nos serve de ponto de início para uma análise
fenomenológica.
A exigência de pureza do olhar fenomenológico é raramente respeitada em
psicopatologia. Via de regra, quando um psiquiatra ou psicólogo examina uma pessoa
que solicita sua atenção, fica predisposto a ver em qualquer manifestação atípica
um sintoma de perturbação. No caso em que o sujeito se encontre internado num

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O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

Hospital Psiquiátrico, aí se impõe olhar preconcebido; praticamente qualquer coisa


que faça o internado pode "ser interpretada como uma amostra de sua doença".
Lembro-me da primeira vez que visitei o famoso Juqueri, onde habitavam
mais de cinco mil internados. Uma amável colega foi mostrando os diversos setores
do manicômio. Num dado momento, uma simpática velhinha começou a verbalizar
algumas queixas contra o tratamento dado naquele hospital. Eram queixas
completamente verossímeis: a comida era sempre a mesma, alguém lhe tinha
roubado seu cobertor, na noite havia muito barulho. De imediato, minha gentil colega
interpretou o discurso da velhinha "como próprias de seu estado delirante". Por
que seria apenas um delírio e não legítima reclamação? Perguntei-lhe.
- Imagine! Aqui são muito bem tratados - e agregou para reforçar seu
argumento: - É uma paciente crônica.
Essa exigência metódica implica que precisamos deixar que os fenômenos
falem por si mesmos, sem encaixá-los de imediato na bitola de nossa teoria prévia.
Aquela colega bem poderia ter ponderado a conduta da internada no momento do
diálogo, onde se mostrava tranqüila e bem disposta, sem ânimo querelante nem
pleiteador. Em vez de pesquisar a veracidade de sua queixa, preferiu fechar o
assunto com um simples rótulo, como faria qualquer leigo despreparado.
Reconhecemos que esse ideal do método não é fácil de ser colocado em
prática. Temos a tendência de observar as coisas sob um prisma determinado,
prisma que é proporcionado ora pela tradição, ora por nossos hábitos mentais, ora
por uma teoria na qual acreditamos, ora por tudo isto junto. Tendemos a prejulgar:
raras vezes suspendemos o juízo até conhecer o significado de uma conduta. Na
vida cotidiana, essa tendência para julgar comportamentos e intenções por meros
indícios e pistas é quase uma regra. Muitas vezes, de um simples fato infere-se
uma motivação. Com a banalização da Psicanálise, esta tendência virou um vício
pseudo-intelectual: se uma moça se casa com um homem mais velho, está tentando
realizar seu complexo de Édipo; se uma mulher reivindica seus direitos com energia,
está agindo compelida por seu complexo masculino e outras pérolas do mesmo
jaez; quase todas sem o mais leve fundamento.
Não negamos que certos indícios devem ser levados em conta - alguma
coisa significam; o que afirmamos é que não se podem tirar conclusões de apenas
um dado. Quando observamos uma pessoa falando sozinha na rua, o que é bastante
freqüente, não podemos inferir sem mais que essa pessoa está enlouquecendo; no
máximo, podemos inferir que está muito concentrada em seus pensamentos e
distraída de seu ambiente. Só no caso de exibir outras condutas atípicas é que
poderemos concluir, com menos probabilidade de erro, que ela está sofrendo de
alguma perturbação mental.
Não estamos aqui argüindo contra a indução nem contra a dedução. Queremos
prevenir contra o preconceito e as idéias pré-fabricadas, que têm prejudicado demais

51
O inquilino do imaginário

não só as relações humanas sadias, senão também a observação atenta do que


queremos pesquisar. Neste capítulo, sobre as dificuldades de um olhar indagativo,
sem bitolamento prévio, é muito ilustrativo o caso do rótulo psiquiátrico.
Todos sabemos as implicações sociais de uma estada numa instituição
para doentes mentais: o indivíduo fica marcado por um estigma que dificilmente
conseguirá apagar posteriormente. Poderá ter uma vida completamente regular,
mas quase sempre estará sob suspeita de uma recaída, tanto assim que o menor
sinal de desvio da norma será visto como um sintoma do reaparecimento de
sua suposta doença. Embora todos nós registremos infrações das normas de
maneira corriqueira, raramente somos questionados sobre a nossa sanidade.
Estamos isentos de suspeitas. Isso não acontece com o ex-internado.
Isso é comum entre os leigos e também entre pessoas preparadas nas
exigências do método científico. D. L. Rosenhan escandalizou a opinião pública
com sua pesquisa sobre as falhas do diagnóstico médico no caso de pessoas
levadas a um manicômio. 1 Ele quis testar até onde chegava a confiabilidade
dos diagnósticos psiquiátricos, pois não ignorava seu duvidoso rigor. Para tanto,
instruiu um grupo de pessoas para que se apresentassem a um manicômio,
dizendo-lhes que apenas se queixassem de estar ouvindo vozes, o resto de sua
conduta deveria ser normal. Todas as pessoas foram internadas como psicóticas
e obrigadas a consumir remédios; pela suposta doença ficaram retidas por um
período de 7 a 52 dias. Até os verdadeiros pacientes percebiam estas pessoas
como falsos pacientes, mas a equipe médica e os enfermeiros tendiam a
enxergá-los como doentes depois que os tinham rotulados como tais. 2
Quando Binet-Sanglé especula sobre certos aspectos da personalidade
de Jesus, atendo-se apenas a um par de dados para daí tentar reconstituir as
mais diversas peculiaridades de sua pessoa, está desrespeitando este elementar
princípio husserliano. Resulta-nos surpreendente constatar que a partir de alguns
dados infere que o fundador do cristianismo era homossexual - apenas para
considerar un aspecto. Entre os dez citados por Binet, vejamos três. Um dado
relaciona-se com a surpresa que experimentaram seus discípulos ao ver o
mestre conversando tranqüilamente com uma mulher pública, surpresa que se
explicaria "pelo fato de que seus discípulos conheciam seu desafeto pelas
mulheres". Um outro dado, igualmente consignado nos quatro Evangelhos, no
momento de ser preso, saiu da tenda onde dormia Jesus, um moço com-
pletamente nu, "um moço que seria o discípulo preferido, João o evangelista".
O terceiro se refere ao ato de lavagem dos pés praticado por Jesus num ato
simbólico de humildade, ato que revelaria o fetichismo dos pés, bastante típicos
entre os uranistas, segundo este autor. É curioso que Binet-Sanglé mencione
Freud como fonte de sua tese sobre o caráter do fetichismo. Nenhum desses
dados autoriza a interpretação binetiana.

52
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

O primeiro fato relaciona-se com uma tradição judaica comum em todas as


figuras religiosas: os rabinos não costumavam manter contato público com mulheres.
A hipótese mais simples e verossímil sobre o segundo dado relaciona-se com o
não-uso de roupa íntima na época de Cristo; pego de surpresa pelos guardas que
procuravam Jesus, o discípulo não teve tempo de vestir seu roupão. Preciso comentar
sua tese do fetichismo do pé?
Binet tinha a idéia preconcebida de destruir a imagem de Jesus, pois, como
muitos positivistas e materialistas anticlericais do início do século XX, pensava
que, desmistificando a figura de Cristo, neutralizaria o poder da Igreja. Sanctas
simplicitas! Ignorava que a religião descansa em aspirações metafísicas inerentes
ao homem.
Se se houvesse atido aos princípios elementares da hermenêutica histórica,
não teria escrito tanto despropósito erudito e pseudocientífico. Nem preciso dizer
que em matéria de interpretação todo cuidado é pouco; uma coisa é a inferência
lógica e a conclusão factual; outra coisa é a montagem especulativa para provar
uma tese preestabelecida. Ater-se aos fenômenos mesmos implica não forçar uma
interpretação que supostamente nos esclareceria uma conduta, uma tendência,
uma expressão. Os fenômenos falam por si mesmos; explicar por que acontecem
já é outro ponto.

A descrição rigorosa dos fenômenos


Todo psicólogo formado nestes últimos dez anos aprende determinadas
técnicas de observação do comportamento; existe até uma cadeira para isso (TOC).
Contudo, a observação e descrição objetiva da conduta, segundo o modelo
comportamentalista, não corresponde à descrição fenomenológica propugnada por
Husserl.
A descrição comportamentalista tenta ser apenas objetiva: consignar
fotograficamente uma conduta ou uma situação, sem nenhuma contaminação
subjetiva. Quer eliminar qualquer interpretação e qualquer juízo de valor. Segue o
modelo das ciências naturais. Como treino preparatório de um psicólogo, parece-
nos interessante e útil: o psicólogo precisa desenvolver seu senso de objetividade,
precisa aprender a estar atento aos detalhes, precisa discernir o que é observação
do que já é interpretação. É um método que se ajusta aos postulados das teorias do
aprendizado. É completamente insuficiente num enfoque humanista-existencial,
que reivindica a experiência como objeto de estudo da Psicologia.
Embora não desconsidere o aspecto objetivo, á descrição fenomenológica
se centraliza na experiência vivida pelo sujeito. Tenta captar o acontecer ex-
periencial tal como o sujeito o manifesta por sua expressão verbal ou escrita,
objetiva ou subjetiva. Pela fenomenologia tentamos indagar os modos de ma-

53
O inquilino do imaginário

nifestar-se de um determinado fenômeno, examinando em seguida o significado


e sentido que esse fenômeno possa comportar, tal como ele é apreendido pela
análise reflexiva.
Já dizíamos acima que raramente nos atínhamos às coisas mesmas, estando
quase sempre a enxergar as pessoas e os comportamentos de acordo com es-
tereótipos, papéis e representações prévias. Igualmente, temos bastante di-
ficuldade para fazer uma observação e descrição cuidadosa do que nos acontece
e do que possa estar acontecendo a outra pessoa. A descrição rigorosa dar-nos-
á o perfil, as variações e o espectro do fenômeno e suas articulações.
A descrição precisa de um acontecimento ou de uma série de situações tais
como elas são vividas por um (ou vários) sujeito(s) é de extraordinária importância;
antes de tudo, é o primeiro passo para a configuração de uma vivência para
saber como um determinado fenômeno vivencial configura-se. A maneira de
apresentar-se o fenômeno no campo vivencial da pessoa nos revela, em seguida,
o significado e provável sentido que ele patenteia.
Nas primeiras sessões psicoterapêuticas, é freqüente o coagente4 nos dizer,
como queixa inicial, que está com medo. O terapeuta, que já sabe que é comum
as pessoas não saberem diferenciar o medo da angústia, não pode limitar-se a
perguntar "De que você está sentindo medo?" O apropriado é que diga: "Como
se manifesta esse medo que você está sentindo?"
"Bom, dirá a pessoa, não é algo preciso, é um sentimento vago de ameaça,
como se algo ruim estivesse por me acontecer. É certo, eu tenho medo de ficar
na escuridão; tanto assim que não consigo dormir com a luz apagada; não é só
isso o que estou sentindo; é pior, é como se me espreitasse um perigo iminente,
que não sei definir. Às vezes estou tranqüilo, assistindo à TV ou lendo uma
revista, embora isso seja raro, pois quase sempre estou inquieto, e de pronto uma
imagem, um pensamento, me provoca de novo esse sentimento ruim. É algo que
não me deixa em paz, doutor". Toda essa descrição não corresponde ao medo:
ela denuncia a angústia. O medo surge perante um estímulo-situação bem
determinado; passada a ameaça, o medo desaparece. A angústia é algo mais, é
bem diferente. Se o terapeuta se limitasse a dizer "De que você tem medo?", e
em seguida a pessoa informasse que não sabe dizer na certa como é esse medo
que experimenta, ficando o relato por aí, o terapeuta não saberia o que está
acontecendo. No trabalho terapêutico, o psicólogo precisa ter bastante habilidade
para explorar o campo vivencial da pessoa. Muitos indivíduos, aliás, não sabem
verbalizar o que estão sentindo, limitando-se a expor, grosso modo, alguns
aspectos do que os incomoda. A perícia do terapeuta leva e, por vezes, puxa o
cliente para que este se abra à sua própria experiência, mostrando-se à luz de
seu significado, permitindo que o sujeito mesmo apreenda, num primeiro estágio,
o que está lhe acontecendo.

54
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

Descrição e construção genética


Uma temática vivencial, como a angústia, raramente apresenta-se com
uma só feição. No início, emerge perante uma ou duas situações. O sujeito
torna-se ansioso perante uma situação que testa sua competência, perante um
exame de um concurso, que lhe permitirá ou não ganhar status no serviço,
mais um grau no escalão. Se a pessoa fracassa no exame, é provável que abra
uma brecha em seu autoconceito; a partir daí pode deslizar por uma vertente
que leve a outros fracassos; depois do fracasso do exame, pode começar a
perceber que seus companheiros de serviço a olham com ar de gozação: ela
tinha se vangloriado de seu sucesso e agora evidenciou uma incompetência;
alguns colegas que a invejavam ou desaprovavam certas táticas suas aproveitam
para dar-lhe o troco. Sente que ficou desacreditada. Antes se sentia à vontade
no seu lugar de trabalho. Agora o ambiente parece-lhe hostil ou menos amável.
Qualquer observação que antes lhe parecia sem importância agora a irrita. Ela
mesma se censura de sua franqueza, não deveria ter falado daquele concurso.

PARALELO ENTRE A DESCRIÇÃO COMPORTAMENTALISTA


E A FENOMENOLÓGICA

Descrição comportamentalista Descrição fenomenológica


Parte do pressuposto que o importante é a obser- Sem desdenhar a noção de conduta nem os dados
vação atenta da conduta- um tipo de atividade puramentes externos, relaciona esses dados com
ou de movimentos que um organismo em dada o significado que essa conduta tem para o sujeito,
situação efetua. O que importa é o caráter indagando no próprio indivíduo ou nos casos
adaptativo, ou não, dessa conduta, o ajuste a similares esse significado. Mais que o aspecto
certo padrão de comportamento próprio de uma comportamental, interessa a descrição do
situação determinada (de trabalho, sexual etc.) acontecer anímico: as diversas temáticas que
caracterizam um estado afetivo, um modo de ser.

No depressivo pode constatar seu modo de Ao constatar a conduta típica de um depressivo,


apresentar-se (encolhido, olhar apagado, isolado para dar um exemplo, quer estabelecer o
etc.), mas não indaga sobre a vivência que gera significado das posturas, modo de falar, de olhar
essa conduta. e outras manifestações observáveis. O que lhe
interessa é a vivência que se expressa numa
determinada conduta.

A exigência de rigor na descrição é para reduzir O rigor na descrição é para discernir as


ao mínimo os riscos de interpretações e de erros características do fenômeno, os elementos
de avaliação. É para verificar o que está constantes e suas variações, diferenciando-os de
acontecendo (constatar um fato) e logo levantar outros semelhantes. É para discernir a singula-
uma hipótese que explique por que isso está ridade do fenômeno, estabelecendo o significado
acontecendo. (ou sentido) que ele tenha para a pessoa, ou o
significado existencial implicado.

55
O inquilino do imaginário

Como é que foi fracassar nesse exame? Provavelmente houve sacanagem,


todo mundo sabe como são as coisas neste país. Até sua mulher se permitiu
fazer um comentário irritante. Ela, de quem esperava uma palavra de apoio.
Bastou seu primeiro fracasso para que também aproveitasse sua queda, dando
um empurrão a mais. Ela falou: "Claro, você anda sempre querendo ser mais do
que os outros, agora seus colegas se aproveitam". "Querendo ser mais? Ah,
não! Eu preciso de algo mais. Fui um burro ao suspender meus estudos de
Administração, agora teria outras chances. Com um título na mão nem sequer
estaria neste emprego. Tenho de voltar a estudar, mas será que consigo, nesta
idade, freqüentar de novo uma faculdade? Agüentarei três anos indo todas as
noites a uma sala de aula?"
Esse é um caso hipotético, mas muito plausível. Relatamos sua montagem
possível. Toda vivência complexa vai-se construindo, articulando numa série de
linhas que terminam por configurar uma temática vivencial. Pode ter muitas
variações, segundo sejam as peculiaridades de cada vida.
Quando uma pessoa procura um psicólogo, é porque já está numa situação
sufocante, insustentável, com uma evolução que toma sua problemática emaranhada
e difícil. Logo percebemos que se trata de um quadro angustioso, como no paradigma
indicado acima. Não é suficiente que saibamos como se desenha em termos gerais,
precisamos examinar como se foi construindo. Assim observamos o
desenvolvimento de sua gênese. Às vezes é rápido na sua gestação, um determinado
fato provoca uma verdadeira reação em cadeia. Nem sempre compreendemos
que uma pessoa se mostre tão abalada por um evento aparentemente corriqueiro,
como é ser reprovado em um concurso. Tentamos averiguar o que aconteceu para
além e para aquém desse fato. Nesse caso hipotético, vemos primeiro que houve
uma seqüência de eventos negativos (um fato numa tentativa importante, reação
adversa dos colegas, gozação, sentimento de descrédito, constatação de falta de
apoio por parte da mulher). Resultado: estado de angústia por sua situação, ou
melhor, pelas perspectivas negativas provocadas pela situação.
Como podemos entender esse estado? Temos de examinar o todo. O todo de
uma individualidade é seu mundo e o que os psicólogos chamam de personalidade.
A questão aqui é como se articula determinada experiência, qualquer que essa
seja, com os outros aspectos da personalidade; digamos, sua reação de frustração
com sua auto-estima e seu autoconceito. Podemos prosseguir por uma outra via e
tentar averiguar como funcionam suas necessidades básicas e como se refletem
em seu projeto de vida. Por acaso sua vontade de status relaciona-se com a
necessidade de segurança e de reconhecimento?
Por hipótese, sim, mas nesse exemplo concreto, como opera sua conexão? A
qual o objetivo visava sua tentativa de "ser algo mais"? Quando o psicólogo entra
nesse tipo de análise, está aplicando o método compreensivo, ou, como certos

56
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

autores preferem, o método fenomenológico compreensivo. Quando estabelecemos


as relações que um fenômeno supõe e seus enlaces motivacionais, podemos dizer
então que compreendemos esse fenômeno.

A determinação das essências


A Fenomenologia não aspira apenas a dar uma descrição dos objetos
intencionais que constituem a referência obrigada das vivências; propõe-se a
estabelecer a essência dos fenômenos. Nas múltiplas e variadas manifestações de
um fenômeno, sempre podemos detectar um núcleo comum ou um significado que
percorrem e unificam essa variedade fenomenológica; é o que denominamos a
essência do fenômeno. Nem sempre é fácil determinar qual seja a essência de um
fenômeno. Tanto é assim que boa parte das pesquisas psicológicas, para referir-
me apenas a um campo que nos incumbe especialmente, pouco se preocupa com
essa determinação. No máximo, procura caracterizar o tema em questão por alguns
traços ou notar que se julgam distintivos desse tema. Ou então dão uma definição
meramente descritiva, quando não simplesmente operacional do que interessa. De
fato, existe uma variedade de fenômenos que nos tocam na carne viva, muito
complexos nas suas manifestações, cuja essência nos resulta muito difícil definir.
Tal dificuldade surge quando tentamos apreender o núcleo essencial da doença,
para mencionar um assunto que nos compete de perto. Ou quando tentamos
determinar a essência da emoção e do sentimento - duas configurações afetivas
que todos nós conhecemos muito bem.
Primordialmente, temos de ter presente quando consideramos um fenômeno
psíquico o seu caráter intencional: o mental não é algo que nos acontece apenas
dentro da cabeça, sem maior relação com o mundo fora. Pelo contrário: o mental
está inteiramente direcionado para o mundo; é o mundo refletido de certa maneira,
numa determinada pessoa.
Esse é o núcleo do assunto: uma vivência não é uma experiência subjetiva,
algo que acontece a um sujeito no puro campo de sua consciência. Toda vivência
é uma forma de relação que o sujeito estabelece com os diversos objetos que
constituem seu mundo. Essa forma de relação especifica um particular tipo de
vivência. Quando pensamos, estamos encarando os objetos- ou fenômenos
de certa maneira; quando imaginamos, a relação que estabelecemos com a
realidade é outra forma. No que tange à emoção, defrontamo-nos com a situação
que a suscita de um modo igualmente peculiar. Qual é a peculiaridade vivencial do
emocional comum a todas as emoções em geral? Essa questão só é abordável
mediante o método fenomenológico.
O método observacional - usado por psicólogos experimentalistas e pelos
seguidores do behaviorismo- proporciona-nos dados muito importantes. Sem dúvida,
indica-nos todas as manifestações externas da emoção e nos permite apreciar as

57
O inquilino do imaginário

peculiaridades expressivas de uma emoção específica. Todos nós podemos perceber


quando uma pessoa está encolerizada: isso se evidencia em sua fisionomia, nos
matizes da voz, na crispação do corpo e em outros indícios. Tampouco são des-
denháveis os indicadores fisiológicos: alterações da pressão e do ritmo circulatório,
aumento da sudorese e assim por diante. Contudo, mediante a observação externa
ainda permanecemos na periferia dos fenômenos em questão.
Trata-se de uma forma vivencial, não de um simples comportamento. Quando
experimentamos determinadas emoções, até podemos comportar-nos de um modo
inesperado e insólito; é o que nos acontece às vezes no medo, em que a fuga e a
paralisia são as condutas esperadas e conseqüentes. Porém, apesar de sentirmo-
nos amedrontados, podemos agir com aparente calma e presença de espírito. O
comportamento pode ser dissimulado, fmgido, inesperado. É fato que não só acontece
com os outros; também nós nos pegamos nesses truques: fingimos uma tranqüila
calma, quando, na verdade, um ácido amargo nos corrói as entranhas. Um ator
não precisa sentir medo para representar com a maior convicção a conduta
correspondente.

Fenomenologia da Emoção

Quero mostrar a essência do emocional. Das quatro modalidades afetivas (a


emoção, os sentimentos, os estados de ânimo e as paixões), a emoção é a que tem
recebido maior atenção dos autores, embora geralmente confundam emoções e
sentimentos. Apenas caracterizo aqui o emocional.
Examinemos de perto uma emoção particular: o medo. É uma reação que
todos já experimentamos. A primeira coisa que verificamos é que nos amedrontamos
numa situação específica:
"Íamos entrando em casa; era perto de meia-noite. Regressamos após ter
passado um fim de semana na praia. A casa tinha ficado só. Ao abrir a porta,
ouvimos um ruído no quarto das crianças. Ladrões, pensamos. E agora? Sentimos
uma enorme ameaça gravitar sobre nós. Estamos desarmados. Sabemos como
operam esses tipos de delinqüentes: são caras muito perigosos, dispostos a matar
perante uma resistência. O que fazer? 'Quem está aí?', gritamos.
Novamente ruído de algo que cai no chão. O quarto está no andar de cima.
Minha mulher regressa ao jardim e refugia-se no carro; as duas crianças
percebem seu medo e começam a se agitar. Eu espero que de um momento para
outro possa aparecer um tipo apontando-me um revólver. Começo a subir ao
segundo andar com muita cautela, devagar. A suspeita da presença de ladrões
aumenta; a luz do quarto está acesa. 'Podem descer!!', grito. 'Estou desarmado!'

58
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

Ninguém responde. Tento tranqüilizar-me. Sei que tenho de enfrentar essa


situação de alguma maneira. Minha mulher está chamando o vizinho. Continuo
subindo. Tenho dúvidas. Será mesmo um ladrão? Tenho a responsabilidade de
proteger a minha família; não posso fugir; preciso verificar. Subo degrau por
degrau, esperando que a qualquer momento apareça um fulano armado; o que
mais me amedronta é o tipo de exigências que vão fazer. São malandros sem
alma; não me importa que roubem qualquer coisa. Felizmente estou com algum .
dinheiro. Temos coisas que eles podem levar. Estou agora no corredor. Talvez o
cara me esteja esperando detrás da porta. 'Pode sair, estou desarmado!', digo
em voz normal. Empurro com força a porta que se choca contra a parede e,
imediatamente, ouço o miar do gato. Af!! Bicho desgraçado. Não há ninguém.
O gato corre para a janela meio aberta. Era isso ... Sinto que um enorme peso
começa a escoar-se de meu corpo. 'Não há ninguém!', grito para minha mulher.
Revisto os outros dois quartos; tudo em ordem. Desço rápido; quero evitar que
Carmem acorde o vizinho. 'Não foi nada!!', grito. 'Apenas o gato fuçando o
quarto das crianças.' 'Ui, que susto', comenta ela. 'Que gato filho da mãe.'
Entro na sala. Deixo a Carmem a tarefa de explicar o mal-entendido do suposto
ladrão. Sentado no sofá, ainda sinto que meu corpo todo se agita."
Na emoção, o sujeito é dominado pela situação-estímulo; esta é a primeira
constatação. Nas três emoções básicas registramos essa característica: no medo
(e suas expressões afins: o susto, o pânico, o terror), na raiva (e seus graus diferen-
ciais: a irritação, a indignação, a fúria) e na alegria. Acontece também no que
podemos chamar de emoções associadas (aquelas que estão associadas a sen-
timentos e estados de ânimo ou decorrem deles: nós nos emocionamos facilmente
quando estamos deprimidos, ou nos emocionamos quando recebemos uma carta
de um ser querido ausente e distante).
Por estar dominado pela situação-estímulo, o sujeito perde momentaneamente
seu prumo, ficando ofuscado- ou fascinado- pelo que motiva sua reação. Ofusca-
dos ficamos no medo e na raiva; fascinados, na alegria. É que o objeto intencionado
na vivência nos atinge diretamente, perturbando todo o campo da consciência. Na
emoção, somos impactados pelo evento que nos atinge. O impacto nos invade
como uma onda sísmica, derrubando e desarticulando os recursos optativos, que
habitualmente usamos em situações normais. Emocionar-se é justamente isso:
mover-se por uma situação-estímulo que impõe sua presença ao sujeito, direcionando
sua reação segundo o significado atribuído a ela. No medo, tentamos proteger-nos
de um perigo que ameaça atingir-nos em algum aspecto que julgamos de importância
para nossa autopreservação física ou psicológica.
Na raiva, nós nos movemos tentando eliminar um obstáculo que ameaça,
com sua presença, a obtenção de um determinado objetivo. Ficamos com raiva

59
O inquilino do imaginário

quando não obtemos um bem procurado, quando alguém nos frustra; reagimos
com ira quando alguém nos agride, física ou moralmente: queremos repelir uma
ameaça à nossa integridade física e moral, bens 'de máxima importância para nós.
No medo, a relação homem-mundo é de impotência. Na raiva, é de relativa
prepotência: o indivíduo acredita poder esmagar ou afastar o obstáculo que tenta
perturbar sua situação. Na briga efetiva, é claro, o sujeito pode perceber que está
perdendo terreno, que o perigo é bem maior do que seus recursos agressivos.
Neste caso, é provável que experimente medo e desista de seu ataque. A passagem
de uma emoção para outra diferente depende da própria dinâmica da situação.
Depende igualmente da estrutura pessoal do indivíduo. Aliás, não só esse aspecto
dos processos emotivos apresenta esta dependência: o grau de reação emocional
depende desses dois fatores. Há sujeitos que tendem a envolver-se fácil e
prontamente nas mais diversas situações; são os chamados sujeitos emocionais.

Ser emotivo e superar o plano emocional


Ser emotivo é justamente isto: deixar-se apanhar, mergulhar facilmente, de
corpo inteiro, nas situações. O indivíduo emocional não sabe estabelecer uma relação
de distância adequada com os objetos; diríamos que é demasiado permeável às
provocações do mundo. É o que verificamos na criança: ela vive em contato direto
com seu meio; desprovida de mecanismos mediadores, entrega-se sem resistência
ao momento, vibrando segundo as variações de seu ambiente. Resultado: vive na
emoção, isto é, ao vaivém dos acontecimentos externos e internos.
À medida que crescemos, a práxis cotidiana nos obriga a relacionar-nos com
as coisas e pessoas de uma outra maneira. Ademais, começamos a conceitualizar
a realidade. Os conceitos são meros esquemas abstratos dos objetos e de seus
nexos. Eles estabelecem uma primeira forma de mediação com a realidade imediata.
Por meio dos conceitos, começamos a viver, com freqüência, num plano mental,
mundo privado, diferente e distanciado do ambiente imediato. Logo, paralelamente,
aprendemos a nos relacionar de um modo prático, isto é, de acordo com as
exigências da ação e dos objetivos por ela visados. Isto nos impõe uma atitude
mais objetiva, mais atenta aos resultados da atividade do que às impressões que
essa possa provocar-nos.
Aprendemos que ser muito emotivo atrapalha nossa conduta e nos torna
inadequados numa série de situações que exigem mais reflexão e menos coração.
Todo o processo de socialização se propõe a ensinar à criança o saber
lidar com as coisas em termos mais inteligentes e funcionais. As pessoas emo-
tivas não só são atrapalhadas, mas também atrapalham os outros, dificultando
muitas vezes o relacionamento interpessoal; parecem demasiado vulneráveis
às fricções que aos outros apenas tocam. Tendem a viver sob o império de

60
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia

experiências que as machucam, ou tentando resguardar-se de contatos que as


perturbem, de modo que terminam por distorcer ou escamotear muitos aspectos
de seu ambiente pessoal.
Uma parcela considerável de pessoas que procuram assistência psicológica
sofrem por não saber lidar adequadamente com suas emoções e sentimentos;
aliás, vivem presas a tramas afetivas, verdadeiras teias de aranha que lhes pro-
porcionam certa segurança e um centro de operações de sobrevivência, mas que
lhe restringem demais a liberdade, impedindo boa parte de sua criatividade. Sem
perder a sensibilidade e sem ter de usar diques de contenção, precisamos regular
à vontade nossas emoções. Para os emotivos, essa tarefa parece algo quase
impossível. Eles têm vivido durante anos em climas emocionais altamente ígneos;
muitos já tentaram anestesiar-se de alguma maneira. É compreensível que se
mostrem céticos quanto à possibilidade de mudança. De fato, essa ordem de
problemática é a que constitui um dos maiores desafios no trabalho do terapeuta.
O psicólogo precisa de toda sua arte para ensinar a seu cliente novas formas de
relacionamento com a realidade.

Observações e bibliografia complementar

O leitor atencioso pode encontrar aplicações deste método em autores de


grande maestria. Vou citar só alguns títulos de sugestões de leituras convenientes.
Eu sei que o estudante ainda está longe de pegar a proposta essencial deste
recurso (ou instrumento cognitivo). Gostaria de que não desanimasse por suas
dificuldades iniciais. Reconheço: é mais complicado que outros métodos que
circulam por aí no mercado; exige mais do aprendiz. Mas.é bom que saiba que
se você está interessado na compreensão da subjetividade humana em seu
significado fundamental - isto é, existencial -, terá de fazer esse esforço. Não
existe outro caminho mais adequado.
Se você quer compreender o significado da experiência e como esta
experiência articula-se em vivência definindo as linhas que orientam o sujeito
para certas direções e como o sensibilizam para objetos específicos, configurando
em medida apreciável sua percepção das coisas, então terá de apelar para a
fenomenologia, usando categorias de cunho existencial. Logo veremos algumas
destas categorias (ou conceitos-chaves) nos capítulos seguintes.
Este é um primeiro contacto. Agora vou recomendar-lhes algumas leituras.
O livro de Van de Berg, O Paciente Psiquiátrico (Mestre Jou, 1973), é
uma boa maneira de entender o conceito de mundo do chamado doente mental.
O conceito de mundo, como a realidade mais própria que o sujeito vive, é uma
categoria básica do enfoque existencial.

61
O inquilino do imaginário

A leitura de dois livros de J. P. Sartre ajudam bastante a entender o propósito


do método e seus recursos; são dois textos atraentes e você não precisará de
maiores esforços para entendê-los. Em primeiro lugar, o romance A Náusea, que
é uma magnífica fenomenologia da angústia e uma boa descrição dos álibis e das
táticas que os indivíduos inventam para amenizar a negatividade da vida.
Também o estudo sobre o poeta francês Baudelaire, muito conhecido entre a
inteligência de qualquer país, oferece boas análises desse tipo, que iluminam o
significado existencial da obra deste autor.
Aqui no Brasil há um autor muito competente, que já escreveu toda uma série
de livros sob o título de A Visão Existenciadora (Ed. Perspectiva, São Paulo). É
Evaldo Coutinho. É certo que é um escritor que exige muitíssimo do leitor.
O livro de Luiz A. G. Cancello, O Fio das Palavras, é de fácil leitura; propõe
um estilo de psicoterapia baseado em premissas de tipo heideggeriano. Dulce M.
Critelli faz uma bela análise fenomenológica da sedução no texto organizado por
Maria F. Beirão, Vida, Morte e Destino (São Paulo, 1992). Esta mesma autora
nos mostra como opera o método fenomenológico em seu livro Analítica do Sentido
(Brasiliense, 1996).
Gilbert Durand: A Imaginação Simbólica (Lisboa, 1979). A questão do
simbólico é um assunto complicado e abstruso. Durand oferece algumas pistas
orientadoras.
W. Luijpen: Introdução à Fenomenologia Existencial (Ed. Universitária
de São Paulo, 1973). Oferece um amplo repertório de temas tratados num sentido
didático.

Bibliografia citada e livros recomendados


I. ROSENHAN, D. L. On Being sane is insane place (Science, 179, 1973).
2. Para um relatório em português das pesquisas de Rosenhan, leia-se o livro de E. Fuller Torrey: A
morte da Psiquiatria (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976).
3. Charles BINET-SANGLÉ Charles. La Folie de Jesus (3 vols., Paris, 1908-12). Existe uma
edição espanhola abreviada.
4. Chamamos coagente ao que comumente se chama paciente na relação terapeuta-cliente.

62
Capítulo 3

FENOMENOLOGIA E
PSICOPATOLOGIA
A COMPREENSÃO DO PSICOPATOLÓGICO

É incrível quão poucas pessoas sobrevivem à sua época. As glórias de hoje,


supostas grandezas de seu tempo, serão esquecidas uma geração depois. São
pouquíssimos os nomes que permanecem na memória dos homens.

A contribuição de Karl Jaspers

o âmbito da ciência, quando um livro resiste à passagem do tempo, é um

N
. caso excepcional. Isso é particularmente verdadeiro em psicologia e em
psiquiatria. Quem lê hoje um Pierre Janet, um Alfred Binet ou um
Guilherme Wundt? Provavelmente ninguém (a menos que seja um historiador
da psicologia). Todos eles foram figuras famosas em seu tempo, que inclusive
fizeram contribuições meritórias à psicologia. E quem se lembra de Emílio Kraepelin,
pontífice máximo da psiquiatria até os anos 30? Talvez uns poucos eruditos,
interessados na evolução das idéias neste campo.
Diversamente de seus grandes contemporâneos, Karl Jaspers teve um outro
destino. Sua obra máxima na área da psiquiatria e da psicologia, Psicopatologia
Geral, teve várias edições, sendo a última em 1959, pouco antes da morte do
autor. Editado pela primeira vez em 1913, o livro tem resistido à corrosão do
tempo.

63
O inquilino do imaginário

A permanência da Psicopatologia Geral não é gratuita. Desde sua aparição


marcou um hiato na história desta disciplina. Foi-se aperfeiçoando nas sucessivas
edições, até transformar-se numa obra rica e complexa, imprescindível ainda hoje
para quem deseja um conhecimento sistemático e firme neste setor do saber.
Comento aqui algumas contribuições de Jaspers. Não será demais dizer
que o leitor exigente deve procurar o texto original. O livro certamente não é um
texto para principiantes, mas bem vale o esforço de uma leitura atenta, tanto
pelo enfoque de alguns temas quanto pelas meras sugestões propostas para inúme-
ros pontos.
Reconhecer os méritos de uma obra não implica querer ignorar as limitações
e eventuais insuficiências dela. Um de seus méritos é ter introduzido o método
fenomenológico na psicopatologia, mas preciso dizer que raras vezes tira partido
deste método, contentando-se com simples análises descritivas dos fenômenos.
Vejamos agora sua contribuição.

Sua tríplice abordagem do psicopatológico:


fenomenológica, explicativa e compreensiva

Os princípios do enfoque compreensivo


A proposta de J aspers é abordar os fenômenos da psicopatologia a partir de
uma tríplice perspectiva. Em primeiro lugar, oferecer uma descrição feno-
menológica das principais funções e disfunções psíquicas. Em segundo lugar,
oferecer os fundamentos de uma psicologia compreensiva. É o que faz na segunda
parte de sua obra, sob o título "As Conexões Compreensíveis da Vida Psíquica".
Por último, estabelece as "Conexões Causais da Vida Psíquica", chamada também
de psicologia explicativa.
Para mim, essa tentativa do autor de construir uma psicologia compreensiva
é a parte mais interessante da obra. É a parte que se sustenta em pé com maior
firmeza; é verdade que alguns capítulos são mais insinuações que explanações
demonstrativas, mas o conjunto permanece como uma fonte de reflexão e de idéias.
Não é algo concluído, fechado, num saber dogmático; não aponta fórmulas nem
esquemas escolares; propõe temas a serem pensados.
A idéia-chave aqui é a compreensão. Como veremos logo, a compreensão
não é apenas a resultante do entendimento. Quando enxergamos as relações
que constituem um determinado fenômeno ou uma dada situação, dizemos que
os compreendemos. Quando alguém nos expõe um determinado raciocínio,
compreendemo-lo na medida em que se ajusta a determinados princípios lógicos.

64
Fenomenologia e Psicopatologia

Compreendemos uma frase se está bem construída na gramática da nossa língua.


Estas são as primeiras idéias que o conceito de compreensão nos sugere.
Mas compreender e explicar têm um outro sentido na história da ciência. A
compreensão é um método diferente do método explicativo, embora os dois se
complementem. A psicologia usa um ou outro segundo o plano em que se movimenta.
Explicamos os processos psíquicos quando decorrem de fatores causais ou de variáveis
independentes. Explicamos alguns aspectos da conduta do bêbado como efeito do
álcool (lentidão dos reflexos, falta de coordenação motora, incoerência associativa).
Compreendemos a reação de esquiva e rejeição por parte da maioria das pessoas
perante a presença de um bêbado - pois seu comportamento inconveniente torna
indesejável sua proximidade. O explicar corresponde à determinação das causas; o
compreender implica o conhecimento dos motivos que levam uma pessoa a comportar-
se de uma determinada maneira, ou a vivenciar a realidade de certo modo.
Compreender é relacionar um fenômeno psicológico com outro fenômeno psíquico
com o qual mantém uma relação motivacional. A fome é produzida por uma falta de
alimento no estômago, mas os motivos que levam uma pessoa a comer são vários:
querer evitar a sensação de fome, experimentar prazer na ingestão, ansiedade etc.
A fome tem uma causa biológica; a vontade de comer não.
Certas condutas estranhas de urna pessoa idosa são explicáveis por dete-
rioração cerebral: perda de memória, emotividade pueril, diminuição de senso moral.
Outras vivências são compreensíveis por motivos existenciais e psicológicos: suas
fases de tristeza e certa melancolia relacionam-se com sua falta de possibilidades,
seu isolamento de fato, a desconexão com certas atividades (aposentadoria) e o
menosprezo notório dos outros em relação ao velho.
As causas são determinações antecedentes que tendem a provocar um efeito,
uma reação, um comportamento (de um sistema, de um elemento, de uma pessoa),
de maneira observável; é um efeito inevitável ou altamente provável. O vírus
meningocócico provoca a meningite; o bacilo de Koch provoca a tuberculose (se o
organismo está debilitado). A falta persistente de alimentação adequada produz
raquitismo.
Pavlov explicava uma série de comportamentos por reflexos condicionados.
Estímulos originalmente neutros tornam-se estímulos eliciadores de resposta, de
modo altamente provável ou certo, quando associados a estímulos incondicionados,
que provocam de modo invariável uma resposta. Watson provocou uma fobia no
pequeno Albert, associando um ratinho branco, do qual inicialmente ele gostava
muito, a um ruído súbito, que provoca susto e medo. Boa parte das fobias, se não
todas, tem esta origem.
Contudo, a explicação não é entendível apenas como mera determinação das
causas. É entendível igualmente pela determinação de uma relação constante en-
tre um comportamento e sua resultante. Assim explicam uma série de condutas os

65
O inquilino do imaginário

behavioristas skinnerianos - por reforço. Uma grande variedade de condutas


originam-se e se mantêm pelo efeito que provocam no sujeito. Uma ação ou conduta
tem um efeito que reverte sobre ela, assegurando ou ratificando sua persistência.
Geralmente esse efeito é gratificante. Não vou entrar em ilustrações de como
operam os reforços; os skinnerianos têm formulado toda uma série de
procedimentos para manter a eficácia de seus programas de modelação da conduta
-programas com resultados indiscutíveis.
Jaspers também nos fala da compreensão empática, que teve tanta aceitação
no âmbito da psicoterapia desde o momento em que Rogers a colocou como chave-
mestra do terapeuta na sua relação com o cliente. Todos sabemos em que consiste,
embora não seja uma atitude fácil de exercitar. Empatizar é colocar-se no lugar do
outro para assim captar o sentido de sua vivência, compartilhando dessa maneira
seu sentir. É muito diferente de qualquer compreensão meramente intelectual, que
se encaminha pelo lado dos conceitos e da simples análise neutra de eventos e
peripécias de nosso interlocútor. Uma tem caráter afetivo, a outra é eminentemente
racional. Uma emana da simpatia, isto é, de um movimento de aproximação; a
outra fica do lado da objetividade e da distância.*
Ainda há uma outra forma de entender a compreensão, mas que Jaspers não
considera.
Compreender é apreender as relações de sentido implicadas num fenômeno,
evento, numa situação ou num comportamento. Quando numa conduta ou expressão
não captamos seu sentido, dizemos que são incompreensíveis, absurdas ou
simplesmente sem sentido. Em todo comportamento supõe-se a existência de algum
sentido, algo que o justifique, seja por sua motivação, seja por sua finalidade.
Nem sempre apreendemos o sentido de uma ação ou conduta, sobretudo
quando rompe ou se distancia demais das normas que regulam sua expressão.
Tomam-se para nós algo incompreensível, quando não insensato. No caso esta
falta de sentido ser algo habitual no comportamento do sujeito, pensamos que ele
enlouqueceu.
Uma parte considerável do que nos acontece e do que sucede no mundo de
nossa práxis cotidiana apresenta um sentido inteligível sem maiores esforços,
embora os detalhes técnicos de muita coisa nos escapem. Mas também há séries
de eventos e narrativas cujo significado nos resulta inapreensível num sentido mais
racionaL É o que acontece com as lendas, os mitos e os sonhos. Que sentido tem,
qual é o significado da história narrada no Gênesis do Antigo Testamento? Que
significa a história de Adão, Eva e a Serpente, que culmina na expulsão do Paraíso?
Qual é o significado dos inúmeros sonhos que temos ao longo de uma vida?

* Advirto ao leitor que todos os exemplos indicados neste parágrafo são meus; Jaspers não se refere
a Skinner, e Pavlov não é mencionado por sua contribuição à explicação da conduta.

66
Fenomenologia e Psicopatologia

Quando o significado de uma narrativa (mítica, literária, onírica, pictórica)


resulta-nos ininteligível em nível racional, embora entendível como mera ficção e
extravagância de nossa fantasia, qualificamos essa narrativa como simbólica.
Perante o simbólico nos cabe assumir duas atitudes possíveis:
a) Tentar apreender seu significado mediante uma teoria hermenêutica
baseada em determinados princípios orientadores que funcionem como
um código tradutor; temos então as diversas interpretações propostas para
estas criações do espírito humano: a teoria de Max Müller sobre a origem
das crenças religiosas, a de James Prazer sobre os mitos, as concepções
psicanalíticas etc.
b) Tentar achar seu sentido fundamental mediante um método compreensivo
fenomenológico que não apela para um código que supostamente nos
entregaria as chaves do enigma, mas que se atém ao sentido possível que
a narrativa tinha para o povo que inventou a lenda ou o mito; e para o
sentido revelador, que mostra quando se trata de uma produção individual
- o sonho ou uma obra de arte. Alguns escritos de Heidegger, de Felix
Schwartman, de Evaldo Coutinho, parece-me que apontam nesta direção.
Medard Boss oferece-nos um belo exemplo de como opera esse enfoque
na área da produção onírica.

A superação da anamnese: a pesquisa biográfica


Um outro capítulo interessante da Psicopatologia Geral é o dedicado ao
estudo da biografia. Até então nenhum autor tinha proporcionado uma análise atenta
do percurso vital da pessoa doente; os manuais de psiquiatria apenas se contentavam
em oferecer uma anamnese do paciente -um repertório das doenças e deficiências
físicas e mentais que o indivíduo houvesse apresentado desde o nascimento até o
momento de ser medicado.
Embora a escola francesa, desde Pinel e Esquirol (1800-1840), tenha insistido
nos fatores morais- próprios da educação e da socialização- como responsáveis
pelas perturbações mentais, o que incluía o histórico de vida do sujeito, os alienistas
da época concediam escassa importância ao percurso histórico de uma vida. É
bem verdade que Freud examina alguns aspectos da biografia, especialmente aqueles
que se dão na infância, mas nunca se detém a fazer uma reconstrução cuidadosa
da vida do sujeito. Nos cinco casos sobre os quais escreveu após 1900, contenta-
se em dar indicações sumárias sobre a vida da pessoa; nem sequer nos dá uma
visão de conjunto. Não apresenta um método, nem mostra interesse em
compreender o desenvolvimento de uma vida. Procura antecedentes para justificar
uma tese.
O que interessa a J aspers é estabelecer algumas categorias que nos permitam
compreender o percurso de uma vida. Ele sabe que uma vida segue determinadas

67
O inquilino do imaginário

etapas, etapas que estão caracterizadas de certa maneira em todas as culturas


(infância, adolescência, idade juvenil etc.), mas isso é insuficiente. Nesta tentativa
de apreender o sentido possível dos fenômenos biográficos, ele depara-se com
três conceitos-chaves: a idéia de desenvolvimento, de processo e de fase, que em
seguida comentaremos com algum detalhamento. De fato, quando nos debruçamos
sobre uma vida, o que nos interessa é perceber como se foi desenvolvendo;
queremos saber quais fatores determinaram certas vivências e modelaram suas
atitudes e seus projetos. Queremos saber a influência que exerceram sobre essa
pessoa, o círculo familiar, sua aprendizagem escolar e acadêmica, sua experiência
na área do trabalho. O que nos importa indagar é como se foi constituindo uma
personalidade.
J aspers também insiste nos períodos de crise, que são os períodos nos quais
nos vemos obrigados, pelas mais diversas circunstâncias, a reformular as nossas
crenças e projetos. As crises indicam momentos de ruptura e de questionamento;
traduzem, com freqüência, o trânsito de uma etapa para outra ou marcam o
fmal de um processo normal ou sintomático. Há crises previsíveis, que são aquelas
que se articulam no trânsito de uma etapa para a seguinte: da infância para a
adolescência, da adolescência para a idade adulta e assim por diante. Há
crises existenciais, que implicam uma reformulação de valores e crenças. Há crises
sintomáticas, que correspondem a períodos de agravamento de um processo
mórbido.
Quando falamos da importância de um estudo biográfico para a compreensão
de uma vida, não podemos nos esquecer de indicar u~ outro ponto destacado por
Jaspers: a concreção e o reflexo de uma vida nas obras que a pessoa executa.
Com efeito, o que fazemos não só nos objetiva em termos de metas alcançadas,
mas também nos realiza pelo menos quando correspondemos à nossa vocação,
aos nossos anelos. O que a pessoa tem feito e como essa obra foi realizada nos
revela aspectos básicos de sua personalidade e de seu mundo.
Sem dúvida, J aspers inaugura um segundo momento do interesse pela trajetória
vital de uma pessoa - no primeiro apenas se compreendeu sua importância, sem
que os autores concretizassem sua intuição em trabalhos específicos. Contudo,
nem o próprio Jaspers conseguiu plasmar suas idéias sobre esse ponto; apenas
limitou-se a dar-nos um roteiro temático passível de ser pesquisado. Em suas
patografias sobre Strindberg e Van Gogh, de modo especial, notamos uma tentativa
de aplicar suas categorias a estes personagens, mas só o consegue no caso do
escritor sueco.* Um terceiro momento, encontramos em outros fenomenólogos
posteriores - Binswanger, Sartre etc.

* As patografias escritas por Jaspers foram publicadas em espanhol com o título de Genio y Loucura
(Ed. Aguilar, Madrid, 19§6).

68
Fenomenologia e Psicopatologia

Estas são as questões mais destacadas propostas por Jaspers; há muito mais,
certamente. Não gostaria de fechar esse item sem enfatizar alguns pontos que
justificam nosso interesse na pesquisa e reconstituição da biografia de uma pessoa,
sobretudo quando está num processo psicoterapêutico. Penso que nenhum trabalho
de transformação e de autoconhecimento- dois aspectos que estão incluídos numa
psicoterapia- pode descuidar uma análise atenta de uma série variada de eventos,
situações e personagens que constituem os diversos momentos de nossa trajetória
histórica. Quando insistimos na reconstituição de uma história pessoal, queremos
que o indivíduo se familiarize com seu passado, que tente compreender a montagem
progressiva de sua vida e sua forma de atuação nos acontecimentos que desenharam
sua realidade ao longo de seu percurso temporal.
Não se trata meramente de reconstituir um passado, tarefa difícil e por vezes
impossível. Trata-se de que a pessoa enxergue determinados cenários e alguns
personagens que a influenciaram e, não raro, determinaram em grande medida
traços básicos de seu caráter e de sua visão do mundo.
O intuito é tentar compreender o que foi puramente vivido e sofrido, revi vendo-
o de certa maneira, mas já com um olhar segundo - o olhar reflexivo e analítico.
Para a maioria das pessoas, sua história permanece em certa penumbra; viveram
e protagonizaram diversos episódios que rara vez tentaram apreender em seu
significado. Não é que estejam esquecidas, também isso acontece; simplesmente
quase nunca exercitaram seu olhar reflexivo em tomo do que lhes aconteceu.
Para muitos, os fatos e eventos mais importantes de suas vidas permanecem opacos,
envoltos na neblina de um passado remoto ou colocados numa situação cujos
elementos não sabem discernir.
Embora seja uma história vivida, para a maioria das pessoas o passado
permanece, em medida considerável, estranho e mal-assimilado. Existe aí também
uma notória alienação do ser mais próprio. Não é insólito que alguns até se recusem
a fazer um exame atento desta história, alegando que "tudo aquilo já passou" ou que
quase tudo está recoberto pela poeira do tempo. É verdade, por definição o passado
'já passou", mas ele existe; continua existindo de diversas formas em nós.
Há determinados personagens cujas presenças marcaram nosso destino de
um modo significativo e por vezes indelével. Alguns modelaram nossa vida no
plano do círculo familiar; outros gravitaram em outras esferas - na escola, como
camaradas e mestres; na vizinhança, como amigos ou rivais; no espaço mítico,
como figuras tutelares (do Bem e do Mal); no espaço social, como figuras
emblemáticas (de status, de autoridade, de sucesso, de desvio normativo). Nem
sempre percebemos até onde fomos influenciados por todos esses personagens e
figuras.
Todos esses personagens agiram e configuraram determinados cenários -
espaços montados e desenhados de uma maneira, em que cada um de nós foi

69
O inquilino do imaginário

fazendo seu percurso e seu papel. São lugares onde agimos por um tempo mais
ou menos prolongado (a casa, a escola, o escritório, a rua etc.); eles também
mudam, seja por transformações físicas, seja pela atuação de novos personagens
ou pela saída de outros. Os cenários refletem em grande medida a condição socio-
econômica do sujeito, mas o que importa sobretudo é pesquisar o clima dominante
característico de um determinado cenário. O clima é dado pela dinâmica das relações
interpessoais aí existentes. São esses climas emocionais que influem em nossa
visão do mundo e nas atitudes que pautam nosso comportamento.
Para um estudo mais amplo da biografia, consulte-se o livro Neogênese: O
Desenvolvimento Humano Mediante a Psicoterapia5 •

A doença mental como irrupção de um processo mórbido


Uma outra idéia de J aspers, que teve ampla acolhida, foi seu conceito de doença
como um vivenciar que adquire seu caráter mórbido quando surge como um processo
que quebra a continuidade vital do sujeito, apresentando-se como incompreensível. É
mórbido aquele vivenciar que emerge na vida do indivíduo, quebrando sua continuidade:
sua maneira de agir e comportar-se, sua forma de sentir e pensar. E esta quebra não
encontra justificativa em sua circunstância vital imediata. É o que acontece com o
psicótico, que começa a entrar num processo de ruptura com sua realidade habitual,
mostrando-se cada vez menos adaptado às exigências de seu contexto.* As idéias
de Jaspers, em particular a idéia de processo como algo diferente de desenvolvimento,
têm tido ampla acolhida na psiquiatria espanhola, tanto assim que Alonso Femandez,
em seu monumental Tratado, dedica-lhe todo um capítulo.
Jaspers contrapõe processo e desenvolvimento, duas noções que se aplicam
à compreensão da evolução da personalidade. Como já indicamos, no processo há
uma quebra. No desenvolvimento da personalidade há um desenrolar normal, de
acordo com certos padrões mais ou menos preestabelecidos e em relação com
fatores compreensíveis e justificáveis. Nas neuroses, por exemplo, há um
desenvolvimento. Um desenvolvimento neurótico é claro, compreensível, pelas
peripécias de uma trajetória vivida. Embora nos resulte amiúde difícil apreender a
gênese de certos mecanismos e programações neuróticas - em especial aquelas
de tipo obsessivo -, sempre encontramos algumas pistas que nos permitem
reconstruir sua montagem possível. Compreendemos que uma série de experiências
extremosas e tremendas quebrem a visão positiva da vida de uma pessoa, mesmo
quando ela estava bem organizada em termos de estrutura. Dias atrás, vi uma
reportagem sobre a vida que levam milhares de sobreviventes da Guerra do Viet-
nam. Muitos enlouqueceram; alguns terminaram assassinando uma dúzia de

* As patografias escritas por Jaspers foram publicadas em espanhol com o título de Genio y Loucura
(Ed. Aguilar, Madrid, 1956).

70
Fenomenologia e Psicopatologia

cidadãos num gesto de ódio paranóico; mataram até seus familiares mais próximos
-mãe, filhos, esposa. Outros optaram por fugir para a floresta, vivendo ali como
lobos solitários, cientes de que nunca mais conseguirão conviver nos esquemas de
gente civilizada. Todos eramjovens norte-americanos, entre 17 e 21 anos. Agora,
com 36-40 anos, consideram-se irremediavelmente perdidos. Na guerra tiveram
de matar impiedosamente mulheres e crianças indefesas; foram treinados como
cães para exterminar gente; depois perceberam que aquela carnificina tinha sido
injusta e injustificável: nem sequer seus próprios concidadãos lhes perdoavam as
crueldades que tinham cometido no Vietnam. Derrotados, sentindo-se culpados
por sua bestialidade, sem lugar numa sociedade que só queria esquecer-se daqueles
crimes, apenas lhes ficou o consolo da droga e a solidão selvática da floresta.
Estas são experiências extremas; não precisamos ir tão longe. Todos sabemos
que alguns fracassos reiterados - e por vezes apenas um grande fracasso na área
afetiva- podem levar-nos a formas neuróticas de vida.

A visão antropológica
Quando examinamos o programa que Jaspers estuda em sua Psicopatologia,
percebemos que sua ambição é abranger boa parte dos fenômenos que influenciam
o ser humano, em particular na direção do patológico. São discutidas desde pesquisas
sobre a constituição e o caráter, até a possível influência de fatores climáticos;
desde questões genéticas, até o significado das produções artísticas na compreensão
da loucura. Diríamos que sua intenção é dar-nos uma visão antropológica da
psicopatologia, isto é, uma visão na qual o patológico não seja apenas uma resultante
de um psiquismo perturbado, senão o efeito de toda a complexidade humana. Isso
por um lado. Por outro, Jaspers sabe que já não se trata de lidar com doenças
mentais estabelecendo quadros com seus hipotéticos fatores causais e seu provável
curso; isso sem dúvida é importante também; mas trata-se de lidar com doentes,
melhor, com pessoas concretas que não são simples doentes, mas seres humanos
que secundariamente se tomam doentes. O lema de uma abordagem antropológica
neste campo é que não há doenças: há unicamente pessoas que adoecem. A doença
é uma abstração; o doente é um ser pessoal, concreto.
O fato de que reconheçamos no autor de Psicopatologia Geral uma intenção
antropológica não supõe que ele tenha dado cabal cumprimento a esse propósito.
Em nosso entender, descuidou - não sei se deliberadamente ou não -de um fator
de primeira importância na formação da personalidade: o determinante estamentário.
Hoje, ninguém pode ignorar o fator classe social na constituição e no destino pessoais;
não precisamos ter um mínimo de simpatia pelo marxismo para reconhecer a
influência decisiva que exerce em todos nós o pertencer a um setor estamentário
determinado- classe operária, classe média (burocrática, tecnocrática, executiva)
e classe dirigente (dona do poder econômico e do poder controlador). Talvez esse

71
O inquilino do imaginário

seja o ponto mais fraco da proposta de Jaspers, só compreensível a partir de um


espírito aristocratizante herdado de Nietzsche, de quem sofre notória influência.
Essa restrição de sua obra não invalida a intenção original. A idéia de totalidade
percorre o livro em seus temas mais variados. Na última parte explícita-se de uma
maneira expositiva e argumentada. J aspers fala aqui de "o todo do existir humano"
e "da questão da essência do homem". Embora eu não subscreva as teses apontadas
por Jaspers- não todas elas-, reconheço que seu intuito é esboçar uma questão
iniludível numa obra que pretende elucidar os temas vertebrais de uma psicopatologia
geral. Diria que seu mérito reside em ter encarado esse assunto com plena
consciência de suas dificuldades, tentando oferecer os princípios de uma ontologia
existencial, que sirvam de referência às pesquisas neste campo.
Nas suas teses sobre o homem, reconhecemos o que outros filósofos já nos
ensinaram:
a) A incompletude do homem, que nos leva a procurar no outro, qualquer que
este seja (Deus, a coisa, o sexo oposto, o amor), a unidade que nos complete.
b) O homem como possibilidade aberta: somos o animal não-definido, dizia
Nietzsche. A partir de Kierkegaard, sabemos que o homem não é só um ser
de necessidades apenas; é sobretudo uma possibilidade que tenta configurar-
se em cada ato, mas que sempre deixa em aberto urna janela para o que está
além, no puro horizonte da abertura; só a morte fecha nossas possibilidades.
c) O homem está em perpétua luta consigo mesmo. Em todas as esferas da
vida estamos em tensão, contradição e conflito; agimos para resolver essas
tensões, mas logo aparecem outras que nos obrigam a agir novamente.
Essa é uma velha tese, que já formulou Heráclito: "A guerra é mãe de
todas as coisas", a luta dos contrários é a origem de tudo o que existe.

Características das idéias delirantes -


O delírio como perturbação central das psicoses
Precisaríamos comentar duas ou três contribuições mais feitas por este autor.
Contentar-me-ei em mencionar sua análise sobre os delírios, um tema central quando
abordamos a questão das psicoses. Tão central que a maioria dos autores afirma
que eles definem a psicose. •
O leitor iniciante nestas matérias não deve supor que os delírios acontecem
apenas quando uma pessoa está sofrendo um processo feb~il muito forte, e então,
neste transe, começa a falar de maneira desconexa, mostra-se amedrontada perante
visões e alucinações, e passada a febre volta a seu normal, geralmente. Não se
trata desses fenômenos causados claramente pela febre. Os delírios psicóticos (e
todos eles são enquadráveis nesta categoria) acontecem com uma relativa lucidez
da consciência - que não é o caso do delírio febril.

72
Fenomenologia e Psicopatologia

Há várias maneiras de perceber quando a pessoa perdeu o juízo. A conduta


esquisita, o fechamento em si mesmo acompanhado de um desligamento das soli-
citações do meio, os atos absurdos e sem motivo -todas essas manifestações são
consideradas como sinais prováveis de insanidade. Uma outra manifestação muito
reveladora desse estado encontramos em certas idéias e ocorrências que o sujeito
apresenta e que não guardam relação com nosso conhecimento da realidade: são
as chamadas idéias delirantes -denominação genérica que designa as percepções,
as ocorrências e as crenças delirantes.
O que é uma idéia delirante? O que é um delírio? Estamos perguntando
pela essência de um fenômeno mental que se expressa em juízos, que detecta-
mos de maneira corriqueira porque o sujeito o formula sob a forma de idéias.
Não são simples idéias, como quando dizemos "tenho a idéia de construir uma
casa, ou me passou a idéia de que nesta ocasião poderia fazer um bom negócio".
Não é qualquer idéia, nem qualquer crença, nem qualquer ocorrência. Para
ser delirante precisa "sair do sulco" (este é o significado de delírio, em latim),
ter a feição "do pirado", do desvairado. Parece-nos uma fabulação do indivíduo,
algo inverossímil e inacreditável. Pelo menos essa é a impressão que nos
produzem algumas ocorrências delirantes; algo fantástico, meramente fora da
realidade.
Contudo, muitas idéias delirantes apresentam-se com a feição do verossímil e
do acreditável; é assim que muitos delirantes conseguem difundir suas fantasias de
inventores e de reformadores do mundo como algo natural e verdadeiro. Lembro-
me de um pregador que se dedicava a "glorificar o Senhor" nas ruas da cidade -
lá em Santiago do Chile -, era um pregador solitário. Bíblia na mão, falava uma,
duas horas seguidas, citando passagens do texto sagrado, mostrando uma relativa
coerência em seu discurso. Até aí nada de estranho, mas acompanhava seu discurso
com saltos contínuos: pregava saltando. E intercalando a cada três ou quatro frases
um "glória a Deus". Qualquer um poderia interpretar essa conduta como uma
forma de chamar a atenção dos transeuntes que se agrupavam em seu redor para
observar o estranho personagem. Durante dois anos fez esse show; parecia um
fanático que vivia para difundir suas crenças. Só que tinha um porém: nunca observei
o mínimo interesse em convencer alguém, não tentava comunicar-se com ninguém
- como seria lógico. Os pregadores de rua- muito comuns nas seitas protestantes
-querem conquistar novos adeptos, não meramente mostrar-se "gratos aos olhos
do Senhor"; assim que se aproxima um curioso mais receptivo, logo o apanham e
tentam levá-lo para a paróquia. Aquele pregador não olhava para seu público nem
pedia algum retomo para seu fraseado. Estava sozinho, glorificando seu delírio,
saltando desesperado no abismo de uma turma de curiosos, dispostos a divertir-se
à custa desse mensageiro extravagante. Quando lhe perguntei onde funcionava
sua igreja e o que poderia fazer para participar de seu trabalho, mostrou-se esquivo
e reticente. Assisti várias vezes a suas pregações de rua, mostrando-me respeitoso

73
O inquilino do imaginário

com suas mensagens, mas mesmo assim não consegui vencer seu fechamento em
seu mundo autista. Tentei uma segunda vez: fui acompanhado de um amigo
igualmente interessado em pesquisar essa área. Queríamos seguir seus
ensinamentos, argumentamos. Foi logo evidente que não queria maior contato.
Pregava apenas por mandato divino, pregava saltando porque assim mostrava aos
incrédulos o poder da energia divina; quem não sente essa energia saltitante no
corpo ainda não está preparado para a Nova Era e será eliminado como verme
pelo fogo apocalíptico. Falou de Satanás, o grande Inimigo, e de seus agentes.
Falava para si mesmo, nunca para nós.
Tratava-se de um homem que havia levado à rua sua necessidade de salvação
e seus medos, sua ruptura com a comunidade (a loucura supõe sempre essa ruptura)
e sua necessidade de recuperar essa comunidade, gritando seu encontro com Cristo
num reino imaginário. Sua conduta era extravagante, seu discurso delirante. Sua
conduta delatava algumas coisas; só uma observação mais atenta nos indicaria
para onde se encaminhava sua peculiaridade.
Noutro lugar examinaremos esse assunto apaixonante; por ora me interessa
comentar as teses do filósofo germânico. Ele nos proporcionou pelo menos um
critério para discriminar o que são idéias delirantes daquilo que não o é, embora
sejam muito semelhantes. A ciência é delimitadora, esclarecedora das diferenças.
A questão básica é como caracterizar as produções delirantes. O conceito
proposto por Jaspers determina quatro aspectos que, parece-nos, configuram o
fenômeno:
1. os delírios são juízos falsos;
2. implicam uma certeza subjetiva incomparável;
3. são incorrigíveis, tanto por via do raciocínio como pela evidência da
experiência;
4. mostram impossibilidade de conteúdo.
A essas quatro notas características eu acrescentaria uma quinta, que me
parece indispensável: para que possamos considerar como delirante uma convicção,
além das notas indicadas, ela precisa apresentar um caráter individual, isto é, não
ser compartilhada coletivamente por um grupo de pessoas. Se não fazemos essa
distinção, boa parte das crenças sectárias - ou supersticiosas, míticas e alógicas,
tão comuns no sistema social - entraria na categoria de produções delirantes.
Quando um umbandista faz um despacho para atingir um determinado objetivo,
podemos ver nessa prática uma forma de ato mágico, mas não um ato delirante.
Mas, quando um indivíduo interpreta o apito de uma sirena que passa casualmente
pela rua como "um sinal de morte próxima", podemos considerar essa ocorrência
como classificável nessa categoria. Provavelmente, o famoso profeta da Guiana
Inglesa, Mr. J. Jones, era um delirante que tinha sistematizado suas crenças religiosas,
dando-lhes uma feição verossímil; conquistou um milhar de adeptos que
I.
74
Fenomenologia e Psicopatologia

credenciaram suas idéias paranóicas de fim de mundo e de salvação. Uma vez


formada a seita, podia tranqüilamente desenvolver suas crenças, muito sensatas
em vários aspectos. Só no final detectamos o fundo delirante que animava seu
projeto de salvação coletiva: quando se deparou com a ameaça de um inquérito
por parte de uma Comissão do Senado (americano), desencadeou um processo
paranóico incontrolável. Sua decisão extrema- o suicídio coletivo da comunidade
-revelou-nos sua paranóia. Sem esse desenlace, talvez nunca houvesse estourado
o processo que sustentava seu projeto de um novo Reino de Deus na face da terra
dos homens. Talvez houvesse terminado como figura inteiramente mitificada por
seus seguidores, a menos que o envelhecimento ou outras circunstâncias
desencadeassem a irrupção de seus medos e ansiedades imaginárias - que
constituem o núcleo dos delírios paranóides.
O primeiro atributo dos juízos delirantes, o de serem falsos, nem sempre
salta à vista. No plano das simples opiniões encontramos tantos juízos sem
fundamento algum, claramente fora da realidade e do verossímil, que, se nos
ativéssemos a esse requisito, uma fatia enorme da população transitaria pelas vias
do delirante. Não basta então verificar sua clara falsidade ou inverossimilhança;
precisa esse traço ir acompanhado de todos os outros. E, além de todas as
características já indicadas, eu diria que deve adquirir uma outra: servir de tema
predominante ao sujeito na sua percepção e avaliação de certas realidades, que
são eixo norteador de seu processo.
Insisto nestes aspectos das crenças delirantes - pois se trata de crenças,
mais que simples juízos e idéias, duas palavras que nos sugerem algo da ordem
do racional, diferentemente das crenças que estão sempre impregnadas de
emotividade - para que o leitor não pense que qualquer idéia estapafúrdia se
encaixa nessa categoria. Aliás, insisto em que nem sempre conseguimos detectar
o caráter delirante de um discurso, sobretudo quando está disfarçado e embutido
num raciocínio aparentemente lógico e sustentável. Há psicóticos que sabem
encobrir com muita habilidade sua perturbação mental, apoiando-se em
argumentações e informações convincentes, de maneira que um interlocutor
desprevenido nem suspeita que se trata de um sujeito esquizo - variedade de
psicose na qual isso pode acontecer.
O interessante na concepção de Jaspers sobre esse tema é sua tese, hoje
indiscutível, de que as idéias delirantes emanam de um solo propício prévio que ele
chama de vivência delirante primária. Escreve:
"Os doentes sentem algo estranho, há alguma coisa que pressentem. Tudo
tem nova significação. O ambiente está diferente, não de maneira sensivelmente
grosseira- as percepções, em seu aspecto sensível, não se modificam. O que há
é uma modificação sutil, que a tudo atinge e envolve em iluminação estranha,
incerta. Uma atmosfera indefmível. Há algo no ar que o doente não pode determinar;
uma tensão suspeita, desagradável, estranha, o domina" (pág. 121).

75
O inquilino do imaginário

Referindo-se ao mesmo fenômeno, outros autores falam de humor delirante


(Alonso Femandez, 1972), que é a fase que precede a eclosão das idéias,
percepções, ocorrências ou representações deste tipo. Akira, um nissei que atendi
no início de um surto paranóide, me disse: "Não sei, as coisas começaram a mudar
faz um mês, algo assim. Tudo me parece estranho, já nada é natural. Uma espécie
de energia sinistra surge de todas as coisas; até os móveis de meu apartamento,
simples objetos mortos um mês atrás, hoje parece que adquiriram uma vida secreta.
Tenho de apalpar mais de uma vez uma c'!deira para sentar-me nela: receio que se
mexa ou se transforme num bicho. Não sei ... "
Uma outra idéia do autor da Psicopatologia Geral em relação ao traço da
incorrigibilidade das crenças delirantes é a sua tese de que elas apresentam esta
característica em razão de implicar uma modificação da personalidade. "A
persistência (do delírio) não se pode compreender nem como modificação de uma
função do pensamento, de um ato, nem como uma confusão, nem como um
fanatismo normal de pessoas dogmáticas."
Cabe dizer aqui que até mesmo o mais obstinado fanático chega a vacilar nas
suas convicções quando é confrontado com algumas experiências que contrariam
suas idéias; argumentos reiterados também abalam sua obstinação, embora não
costume abandonar por esta via suas crenças. No caso do delirante, nada disso
acontece.
Uma outra contribuição de Jaspers para esse tema é sua distinção entre
idéias delirantes e idéias deliróides. As idéias delirantes são incompreensíveis e
delatam um processo mórbido; não derivam de experiências que podemos
compreender. Não parecem guardar relação com a história do sujeito. As deliróides
são compreensíveis: relacionam-se com eventos vividos pelo sujeito e derivam de
experiências que justificam sua aparição. Compreendemos que uma pessoa que
foi presa pelos aparelhos policiais de um governo ditatorial, humilhada e torturada
experimente uma reação paranóide posteriormente. Compreendemos certas idéias
deliróides de tipo depressivo numa pessoa que acaba de perder um ente querido.
Seria pretensioso pensar que expusemos o essencial das contribuições de
Jaspers. Apenas nos limitamos a cinco temas que são iniludíveis num tratado de
psicopatologia. Recomendo ao leitor, sobretudo se é psicólogo clínico, que freqüente
com toda a assiduidade possível o texto original. A obra de Jaspers ainda oferece-
nos um rico manancial de idéias e reflexões. Aqui e acolá notamos algumas
deficiências, temas apenas apontados e frouxos (como é o capítulo sobre
sentimentos), mas em seu conjunto sua leitura é sempre estimulante.
A parte dedicada às conexões causais da Vida Psíquica, que segue o modelo
explicativo próprio da ciência tradicional, perdeu em parte sua vigência- o que é
bastante entendível, pois nesses capítulos inclui as pesquisas dominantes na sua
época, todas elas de cunho biológico. Porém, sua idéia central de destacar a

76
Fenomenologia e Psicopatologia

importância do biológico e de outros fatores materiais na vida psíquica- normal e


anormal - continua hoje inteiramente vigente. Uma psicologia antropológica
compreensiva deve incluir todos os fatores que influem na experiência humana,
desde os fatores climáticos e genéticos até as formas de modelagem das crenças
mediante a ideologia e a mídia. Essa é minha posição, que encontra em Jaspers um
antecedente notório. Uma das críticas, aliás, que podemos formular aos enfoques
fenomenológicos existenciais é justamente seu relativo descuido do fator biológico
na sua visão do homem.

Notas
1) Psicopatologia Geral, deJaspers, foi publicada no Brasil pelaeditoraAtheneu, 1973,2 vols.-
Seus estudos patográficos, em que aplica em parte suas idéias sobre a biografia, foram
reunidos sob o título de Genio y Locura (ed. espanhola, 1956). Incluem 4 estudos: Van Gogh,
o vidente sueco Swedenborg, o poeta Hoelderlin e o escritor sueco Strindberg (sua obra
autobiográfica Die Beichteeines Torens foi traduzida para o francês e o alemão, e A viagem de
Pedro, o Afortunado já está em português). Na Espanha, está publicada quase toda a obra de
Jaspers.
2) Uso a palavra esquizo como abreviatura de esquizofrênico.
3) Para um estudo mais elaborado sobre a biografia, recomendo minha monografia: "O Conhecimento
de Si Mediante a Biografia Pessoal" (Arquivos da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista
Existencial, 1985).
4) Femandez Francisco Alonso Tratado de Psiquiatria Atual (Espanha, 1972).
5) Romero, Emi1io: Neogênese: O Desenvolvimento Humano Mediante a Psicoterapia (São José
dos Campos, Novos Horizontes Editora, 2000).

77
Capítulo 4

FORMAS DE ALIENAÇÃO
E PSICOPATOLOGIA

"Você me pergunta com que me importo. Não é o mesmo importar-se que interessar-se,
concorda? Já me importei com muita coisa e com todo tipo de gente. Nesta fase
apenas quero saber do meu trabalho e do meu corpo. O sexo me importa e me
transporta; e as mulheres enquanto seres sexuados, não tanto enquanto pessoas.
Gosto delas como parceiras de momentos prazerosos, não como companheiras.
O trabalho, aí está meu quinhão; pela labuta é que atendo minhas necessidades e
tenho uma imagem social respeitável, um status. Não me importo com meu vizinho
nem com o destino do formigueiro doido chamado meu país. Não me importo com
religião nem com problemas sociais. Deixo para os políticos e para os coitados
esse tipo de assunto. A arquitetura e a construção civil me interessam, mas não
poderia dizer que me importam. Antes, sentia pena pelas crianças abandonadas,
essas que deambulam pelas ruas. Hoje me são quase indiferentes.
O que poderia fazer por elas? Não são minha realidade."
(De uma conversa que tive com um passageiro num trem)

Roteiro introdutório

lienar-se é tomar-se alheio à sua própria realidade.

A Como é possível que isso aconteça? Como posso tomar-me alheio a


uma realidade que me solicita, me instiga e me exige? Pois toda reahdade

79
O inquilino do imaginário

se nos apresenta como apelo, instigação e exigência. O fato fácil de


constatar é que as pessoas vivem alienadas em maior ou menor grau,
num ou noutro aspecto.
Neste capítulo tentaremos primeiro elucidar esse conceito tão usado e
problemático que chamamos realidade. Esse é o primeiro passo necessário em
razão de nosso conceito inicial de alienação.
Logo, faço um breve desenvolvimento histórico da noção para apreciar os
matizes do termo. Hegel nos proporciona a primeira noção; depois Marx aplica
este conceito como a forma precípua do destino humano quando o trabalhador
está submetido à exploração numa sociedade classista.
Estas são duas concepções das origens da alienação, mas há ainda uma
terceira: aquela que usava a psiquiatria para designar o sujeito que havia perdido a
razão, o louco. A alienação mental era o vocábulo acadêmico para nomear a loucura
no séc. XIX. Hoje sabemos que a loucura é um caso extremo apenas, pois há
diversas formas de alienação, que acontecem em todos nós.
Examino três enfoques sobre a alienação:
a) o enfoque socioeconômico;
b) o enfoque existencial;
c) o enfoque dialético, que nos permite compreender o que implica alienar-se:
implica a perda da síntese dialética. Esta é minha tese; tese cuja validade mostro
analisando algumas configurações psicopatológicas bem conhecidas.

A alienação como uma forma de desatender a


realidade mais própria

Vou começar dando uma definição mínima de alienação. Nunca está demais
certo rigor conceitual, sobretudo quando usamos um conceito de modo corriqueiro,
sem nos preocuparmos muito com seu significado preciso. Alienação é uma palavra
que, por ter entrado no acervo da cultura comum, é empregada de um modo vago,
sem que o usuário saiba a que tipo de fenômeno está aludindo quando manuseia
este conceito.
Alienar-se é tornar-se alheio à sua própria realidade. É uma defmição simples,
mas que precisa de alguns esclarecimentos para ser entendida em suas
implicações. Aqui introduzimos um outro conceito igualmente corriqueiro, mas
nada fácil de explicitar: realidade. Todos nós temos alguma noção do que seja
o real e normalmente podemos discernir o que entendemos como irreal, as
fantasias, os sonhos, certas ficções. Discemimos em termos, pois nos resulta

80
Formas de alienação e psicopatologia

difícil prescindir de algumas ilusões no ofício de viver. Os mais críticos dizem-


nos que qualquer conceito de realidade é apenas uma rede complexa de ilusões.
Não sou desses que pensam assim. Penso que podemos discernir, se tomamos
os devidos cuidados, o que é real daqueles elementos que são meras represen-
tações falseadas e ilusórias.
Vou propor um conceito pragmático de realidade, não uma idéia metafísica.
Antes de tudo, real é tudo aquilo que é de nossa incumbência. Real é tudo aquilo
que nos toca e nos afeta de uma maneira inevitável. O que nos afeta de um modo
inevitável é de nossa inteira incumbência. Há uma série de realidades que podemos
discernir sem maior esforço. Estão aí, perante os olhos da cara, à luz de qualquer
entendimento. Elas constituem as coordenadas concretas de nossa vida, sua fonte
de manutenção, de circulação e de sentido sustentável. Possuem uma concretude
que nos exige e nos solicita constantemente.
Em primeiro lugar, real é aquilo que nos incumbe; são realidades que configuram
nosso mundo. O corpo, os relacionamentos interpessoais, o trabalho e as obrigações
que a vida prática nos impõe. Estas são três esferas da realidade de que não
podemos nos esquivar inteiramente, embora possamos ignorar por algum tempo
certos aspectos a elas inerentes.
Podemos descuidar do nosso corpo, de suas necessidades e exigências, mas
este descuido provavelmente terá suas conseqüências. Posso tentar desconhecer
a importância do sexo ou de uma alimentação adequada. Por sermos seres
encarnados, certamente este descuido não é tão forte nem ostensivo como o
descuido dos relacionamentos interpessoais. As necessidades biofísicas impõem-
nos sua lei. Quando não atendemos a este plano, é devido a uma incapacidade
para conseguir alimentos convenientes ou para achar um(a) parceiro(a) que se
ajuste a um padrão de mínima compatibilidade.
Contudo, há uma necessidade corporal que tendemos a descuidar num grau
insuspeitado: a necessidade de contato e de estimulação sensorial. É verdade que
esta necessidade é de natureza biopsíquica- aliás, como tudo. Relaciona-se com
o interpessoal, mas como estimulação sensorial é mais abrangente, pois estamos
sendo estimulados das mais diversas formas, eu diria que o sensorial é a forma
primária do contato. E é justamente essa forma que começamos a perder assim
que deixamos para trás os anos da infância. A partir dos sete anos, começa o lento
predomínio dos conceitos e das meras representações. Ao final da adolescência
(pelos 22 anos), a sensopercepção já perdeu a metade de seu frescor e intensidade;
já não temos um contato imediato e direto com as coisas nem com o meio natural.
Tomamo-nos seres bastante abstratos, sobretudo se tivemos uma educação
intelectual mais aprimorada, de tipo universitária. Mas mesmo quando nossa
educação foi apenas elementar, escola primária, as imposições da prática nos
obrigaram a uma considerável abstração dos elementos que na infância nos atingiam

81
O inquilino do imaginário

de modo intenso e absorvente, dando uma feição de presença incomparável às


coisas mais corriqueiras. Ao deixarmos de viver no imediato para atender às
solicitações de uma atividade programada, que invoca um futuro próximo, ou pelo
menos uma finalidade mediatizada, terminamos por ser absorvidos por preocupações
e bem menos pelo que está aí, instigando-nos com seu poder estimulante.
Essa perda da realidade imediata, muito notória nos adultos que já cruzaram
os 30, é o que se propõe a recuperar a Gestalt- terapia com todos os seus exercícios
de sensopercepção e com toda sua ênfase no contato não-verbal. Essa recuperação
da experiência imediata, intuitiva e plena, é o intuito do budismo Zen, que renuncia
inclusive à mediação que estabelece a linguagem- sempre contaminada de clichês
e de preconceitos. Este é também o fascínio que exercem certas drogas, como o
ácido lisérgico, na mente de alguns adultos que sentem, sob seus efeitos, a
emergência de sua consciência originária.
A rigor, o que há é uma alienação progressiva da experiência imediata, de
tipo sensoperceptiva. Isso acontece também naqueles que parecem mover-se num
plano predominantemente perceptivo (o tipo perceptivo de Jung), pois os
automatismos e os esquemas simplificadores tendem a substituir a consciência
atenciosa na maioria das atividades humanas.
Nos outros dois planos mencionados acontece algo similar. Eles configuram
nossa realidade mais própria. Se nosso ser se define como um complexo de relações
que mantemos com os diversos objetos do mundo, as ligações e os contatos
interpessoais são a substância essencial deste complexo. Mediante o trabalho
criamos, transformamo-nos e nos auto-sustentamos, e, graças ao relacionamento
com nosso próximo, mantemos e incrementamos nossa própria humanidade. Esse
é um ponto pacífico. Contudo, são dois planos cheios de ciladas, que poucos sabem
cuidar na medida e do jeito certo.
Sem exagero, podemos afirmar que quem fracassa no relacionamento com
os outros se malogra na principal área de seu ser, a menos que o desentendimento
com os congêneres seja compensado por uma boa relação consigo próprio, o que
sói acontecer com indivíduos extraordinários por sua criatividade; um Beethoven,
um Nietzsche foram figuras solitárias, que encontraram um campo de realização
pessoal, superando assim a falta de um verdadeiro contato com seus coetâneos.
Citei esses dois nomes, mas poderia lembrar-me de muitos outros talentos e
gênios que tiveram grandes dificuldades para conviver devido à excepcionalidade
de sua proposta e de seu caráter. Romper com a linha da mediocridade tem seu
preço.
Até aqui talvez dei a impressão de que a realidade que quero caracterizar se
atém demais a coordenadas materiais e relacionais.
Referi-me ao corpo, com suas necessidades biológicas e sensoperceptivas
que não só nos proporcionam informações, mas também nos permitem um contato

82
Formas de alienação e psicopatologia

direto com o imediato. Logo enfatizei nossa natureza social e interpessoal como
definidora de nosso ser, que gera todas as motivações que os psicólogos chamam
de psicossociais (necessidade de afeto, de contato e comunicação etc.). Por último,
mencionei o trabalho, com todas as relações sociais que ele implica e igualmente
importante conexão com as necessidades biopsíqukas e existenciais nele plasmadas.
Onde ficam as normas e os valores, os objetivos e a história? Acaso tudo isso
não forma parte da realidade? Sem dúvida, são um aspecto importante de nossa
realidade vivida.
Além de formar parte da realidade social, como fatores reguladores de seu
funcionamento, valores e normas são os referenciais de sentido da vida individual,
aquilo que nos permite um significado não só de coisas e relações, mas também
aos objetivos e às ações. Mais que realidade per se são o sistema de medidas e de
qualificações da realidade. Funcionam de tal modo que eles tendem a impor-se
sobre as diversas realidades, como se tivessem prioridade e primazia sobre elas.
Quando isso sucede, dizemos que há uma mistificação da realidade; esta mistificação
é um dos componentes básicos da alienação.
Tudo isso que chamamos realidade está impregnado de valores. Podemos dizer
que a realidade é um conjunto de relações que configuram o mundo do sujeito, toda
ela imantada e qualificada pelo sujeito em termos de valores possíveis. Estes valores,
já interiorizados e expressos em forma de atitudes e afetos, operam como crenças.
Valores, afetos e crenças constituem o substrato subjetivo do indivíduo e são a matéria-
prima das representações que ele se faz da realidade: sua visão do mundo.
Por um erro de avaliação, por orientar minha vida por valores incompatíveis
com as exigências do contexto concreto que define minha situação interpessoal,
posso desincumbir-me de minha realidade. É o que acontece com certa freqüência
com todos nós. Sou casado, mas posso descuidar-me de minha relação conjugal
enfronhando-me no trabalho, porque julgo que há uma prioridade nesta área para
estabelecer os alicerces econômicos - ou porque me resulta mais gratificante, a
certa altura, mover-me mais no plano das atividades produtivas (minha mulher me
atrai menos, a convivência entrou na fase das rotinas etc.). Termino por alienar-
me do contato. Porém, eu não podia fazer isso: a vida conjugal é de minha inteira
incumbência.
Há muitas realidades que não são de minha incumbência, embora todas elas
sejam de certa importância de um ponto de vista humano. Eu posso interessar-me
por elas por simpatia e por solidariedade. A Guerra do Golfo, a fome dos países
africanos e de outras regiões muito pobres, a luta dos negros por seus direitos na
África do Sul, tudo isso e muito mais podem interessar-me e levar-me a certa
atividade em prol destas causas; elas me tocam por minha visão humanitária e
universal das coisas. Por ora, não configuram minha realidade inevitável, aquela
que determina minha situação como indivíduo e como membro de um sistema

83
O inquilino do imaginário

social determinado (brasileiro, habitante do Terceiro Mundo, classe média, intelectual,


professor, casado, pai, psicólogo - mais orientado para as pessoas que para as
coisas, consciente de sua história, querendo realizar determinados objetivos de tipo
intelectual, com uma visão existencial do mundo).
Sendo brasileiro, ou cidadão de qualquer outro país latino-americano, posso
querer viver aqui como intelectual europeu, sentindo-me em São Paulo como um
parisiense transplantado, saudoso do clima que a inteligência francesa me
proporcionava nos meus anos de estudos na terra de Sartre. Já conheci muita
gente que faz isso, até olha com certo menosprezo o que seus conterrâneos fazem.
Certamente esta forma de exílio é pura alienação. Mistificação e negação de sua
realidade mais própria. Para ser escritor parisiense, precisaria viver o contexto
cultural e humano que aquele país proporciona.
Posso querer ignorar meu passado, negando-o, falsificando-o, esquecendo-o,
mas essa operação só me gerará conflitos, táticas de ocultamento, talvez a vaga
inquietação que chamamos ansiedade. Não posso negar meu passado: ele é minha
intrínseca realidade vivida. Contudo, há muita gente que prefere alienar-se, fingir
que isso já não existe mais. Só deixa de existir quando foi superado, isto é, quando
foi assimilado, aceito e avaliado como uma peripécia da minha vida.

O Desenvolvimento da Noção de Alienação

As abordagens e sua conceitualização


O tema da alienação do homem na sociedade contemporânea tem sido objeto
de abundante literatura, especialmente a partir dos anos 50. Não é que o fenômeno
seja recente, pelo contrário, alguns postulam que é inerente à condição humana. Só
que na sociedade de consumo técnico-burocrático, esse fenômeno tem adquirido
modalidades tão peculiares que chega a caracterizar a maioria das formas de vida,
individual e coletiva. A outra razão do auge do conceito e das discussões em torno
dos processos por ele implicados é própria do desenvolvimento das ciências humanas,
às quais vão precisando seus instrumentos de análise à medida que vão descobrindo
novos aspectos dos objetos de seu campo, nesse caso, o homem e a sociedade.
Embora sociólogos, economistas e psicólogos tenham encarado este assunto
nestes últimos anos, o fenômeno foi originalmente apresentado no âmbito da filosofia,
de uma maneira muito nítida e aguda, já na época da Revolução Francesa. O
primeiro que viu a alienação cotno uma dimensão da consciência humana foi o
filósofo Frederico Hegel. Em 1807, em pleno período da conquista napoleônica,
escreveu uma de suas obras mais profundas, Fenomenologia do Espírito, em

84
Formas de alienação e psicopatologia

que estabelece que a alienação (Entfremdung) é um produto inevitável do processo


de objetivação do espírito, não algo apenas circunstancial e transitório, mas algo
inerente à sua própria essência.
Este é o primeiro momento do conceito, sua formulação filosófica. O segundo
momento emerge dentro do pensamento do jovem Marx (1844 ), ainda fortemente
influenciado por Hegel; só que aqui o conceito adquire uma dimensão
socioeconômica: traduz uma situação concreta, característica dos processos de
produção econômica vigentes nas sociedades classistas. Para o futuro autor de
Das Kapital, a alienação não se origina nas relações entre a consciência e sua
necessidade de objetivar-se, como afirmava Hegel, senão entre o trabalhador e o
produto de seu trabalho - que o trabalhador usufrui só parcialmente e que termina
por voltar-se contra ele. Como se vê, ao enfocar esse complexíssimo problema, já
o coloca na linha de seu chamado materialismo histórico, enfoque que faz da
economia o motor e a razão da História. Se a alienação resulta da existência das
classes sociais- uma dominante e outra dominada-, isso significa que em sociedades
primitivas, caracterizadas pela ausência desse tipo de divisão, não existe alienação.
Tal tese nos parece insustentável.
Dentro da visão marxista, esse conceito joga um papel de primeira importância,
tanto que muita gente pensa que é uma categoria básica apenas deste tipo de filosofia.
Certamente não é assim. Tanto pela sua origem como pelo uso que se faz desse
conceito, excede os marcos de uma teoria em particular. O enfoque sacio-econômico
deste fenômeno, que em seguida apresento, enfatiza a importância do fator econômico,
como fazia Marx, mas não é marxista, como o leitor bem informado perceberá.
Poderíamos também falar de um terceiro momento na evolução do conceito,
muito comum na terminologia psiquiátrica do século XIX passado e ainda vigente
durante as três primeiras décadas do século XX. A psiquiatria qualificava de alienado
o sujeito que tinha perdido a razão; em romance vulgar, o louco. Assim, Moreau de
Tours intitulou uma de suas obras mais conhecidas como Du achich et de
I 'alienation mentale (1845). É notório que se percebeu uma clara ligação, desde
as origens do termo, entre alienação e psicose- que indubitavelmente é uma forma
de extrema alienação. O que não viu a velha psiquiatria, razão pela qual o termo caiu
em desuso nessa área, é que existiam mil formas de estranhamento, sem conexão
com patologia cerebral ou mental. É claro que tampouco podia ver que o terapeuta
também poderia ser um alienado. Só agora sabemos disso; sabemos que o terapeuta
pode estar alienado em seus preconceitos teoréticos e em seu estilo de vida.
Por último nos encontramos com as abordagens atuais desta temática.
Distinguirei três enfoques segundo seja a dimensão que acentuem:
a) o enfoque econômico-social; para esta abordagem escolherei Erich Fromm,
que foi um dos primeiros não-marxistas a encarar esse assunto, embora
seja devedor de Marx em vários pontos;

85
O inquilino do imaginário

b) o enfoque existencial vigorosamente representado na filosofia e na literatura


contemporâneas;
c) o enfoque dialético da alienação, tributário do pensamento existencial e de
uma visão totalizadora e dinâmica das contradições histórico-sociais. Neste
capítulo tratarei da alienação e suas relações com a psicopatologia. Será
fácil perceber as nítidas vinculações que estas abordagens apresentam.

O Enfoque Econômico-social da Alienação

O enfoque econômico-social da alienação centraliza suas análises nos aspectos


mais característicos do sistema capitalista, especialmente na sua etapa técnico-
burocrática-consumista, predominante a partir dos anos 50 (século XX). Depois
da queda do sistema socialista-estatista (de tipo soviético), esta tendência do
capitalismo se acentua ainda mais.
Sem o contrapeso em nível mundial, o capitalismo parece acentuar alguns
aspectos negativos inerentes à sua proposta. Não estamos afirmando que os vícios
do sistema soviético fossem menores que os vigentes na área da economia
empresarial, pelo menos em alguns pontos do tema em questão. Ademais, os dois
grandes sistemas apresentam algumas características em comum, como são a
planificação e a racionalização de economia, a burocratização, o controle da mídia
(nas mão do Estado no modelo soviético, e sob o controles das grandes corporações
no capitalismo).
No quadro I (pág. 95) damos algumas características do sistema
socioeconômico dominante nos tempos atuais. Advirto o leitor que em parte este
quadro se inspira em Fromm, de quem igualmente considero algumas de suas
idéias. Este autor enfatiza a influência do sistema econômico dominante na sociedade
capitalista contemporânea na formação do caráter das pessoas neste tipo de
sociedade. Advirto que apenas analisarei alguns itens do quadro I.
A planificação e racionalização da economia são duas exigências gerais de
toda economia de mercado, inclusive de tipo doméstico. Só quando a produção em
série, subordinada ao princípio de lucro, domina as atividades econômicas resulta
clara a influência desta tendência no caráter das pessoas.
O princípio de máximo lucro é uma finalidade em si, não é um meio destinado
ao melhoramento das condições de vida da população; o capitalista quer mais poder:
este é seu intuito implícito. É assim, não importa quão alto se proclame a finalidade
social da empressa e do capital. Trata-se de producir mercancías, isto é, objetos
cujo valor de câmbio prevalece sobre seu valor de uso - e inclusive se produzem
objetos meramente suntuários, consumidos pelos setores privilegiados da população.

86
Formas de alienação e psicopatologia

Esta orientação mercantil do sistema econômico termina por impor metas e


valores semelhantes no campo social. Os atores sociais já não estão mais
interessados na manutenção e no cultivo de metas e valores ideais, permanecendo
este objetivo como algo secundário, apenas estimulado pela religião e por entidades
menores, que não conseguem neutralizar a proposta dos reitores do sistema. A
pregação de um ideário humanista, fundado numa ética universalista, se deixa
sentir no púlpito, nos horários não comerciais da TV, quando a audiência é mínima,
nas vésperas de uma festividade religiosa.
Não apenas as instituições econômicas (bancos, empresas financeiras etc.)
procuram a máxima lucratividade. As outras terminam por seguir o mesmo princípio.
As escolas, as universidades, as editoras, os centros hospitalares e médicos, as
entidades esportivas, todas elas colocam em segundo plano os objetivos que justificam
sua existência; transformam-se em simples empresas, desejosas de conquistar uma
parcela maior do mercado. As escolas se transformam em centros de informação,
não em lugares de formação da personalidade. A universidade deixa de lado toda
proposta universalista e forma técnicos; convertem-se em meros conglomerados de
faculdades, que facultam ao sujeito para exercer uma profissão outorgando-lhe um
diploma; pouco se importam com a qualidade do ensino, nem com a idoneidade do
diplomado. A imprensa comenta amiúde esses tipos de escândalos.
As editoras avaliam um livro segundo o número de exemplares. vendidos;
aceitam sua publicação se a pesquisa de mercado lhes informa que é um tema na
onda dos leitores. Estão interessadas na massa consumidora. É o que Fromm
chama de domínio da quantidade sobre a qualidade. Os clássicos, as raras obras
de arte, são para um pequeno círculo. Não apenas isso; o editor publica o livro
usando os serviços de críticos conhecidos, encarregados de destacar os supostos
méritos do texto; assim garante a entrada desta mercancía no círculo do consumo.
Outro tanto fazem as livrarias, que sempre estão mostrando os best sellers -
obras de escasso ou nulo valor, mas com a fórmula preestabelecida para provocar
o apetite do leitor.
As outras instituições seguem um esquema muito similar. A gloriosa medicina
hipocrática segue hoje outros rumos; os médicos ainda invocam o juramento do
sábio grego, esquecendo-o assim que o novo galeno recebe o diploma. Eles o
esquecem por uma razão elementar: a maioria dos médicos são empregados de
uma empressa ou atendem por convênios de saúde, sujeitando-se às regras impostas
por este tipo de mediadores (que são grandes empressas que lucram com a saúde).
Se os educadores já não são mais educadores; se os galenos deixaram de
interessar-se pela pessoa doente para especializar-se em órgãos e em parcelas do
organismo - a superespecialização. Se os esportes são apenas o passatempo de
milhões de espectadores que se bandeirizam por um clube, perdendo o esporte seu
caráter lúdico e expressivo para tomar-se mero espectáculo multitudinário, então

87
O inquilino do imaginário

as profissões técnicas devem acentuar ainda mais esta tendência ao lucro, colocando
em segundo plano o princípio humanista e cristão de que o homem não deve ser
um simples meio e sim a finalidade de toda conduta ética.
Se não todas, a maioria das instituições perderam sua credibilidade. Até a
Primeira Guerra Mundial ( 1914-18), as instituições conseguiam manter uma certa
imagem de respeitabilidade e firmeza, empenhando-se na conservação do
território colonizado por elas; mas, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial
(1945), o trabalho crítico de sociólogos e filósofos mostrou o que havia por trás
da fachada de aparente dignidade de todas as instituições, revelando assim sua
verdadeira natureza (agências da ordem dominante). Todas elas foram
questionadas; até a instituição família recebeu o impacto tanto da nova ordem
mundial (confronto entre capitalismo e socialismo, ingresso maciço da mulher no
trabalho, organização da classe trabalhadora em sindicatos etc.) quanto do
questionamento crítico. O matrimônio não é mais a perpetuidade, nem precisa
da bênção religiosa; os pais deixam de ser a máxima autoridade para os filhos.
Depois dos anos 70, a mídia eletrônica exerce uma influência maior na formação
das crianças que a conduta e o exemplo dos pais. Pelo lado negativo, é maior a
influência parenta! quando os genitores são problemáticos e patológicos, isto é,
quando têm um efeito nocivo- ou quando convivem com eles harmonicamente,
o que não é comum porque tanto o homem quanto a mulher trabalham fora de
casa. Deixam os filhos em companhia da TV, ou livres para que inventem seus
programas.
O predomínio da quantificação e a tendência à abstração são outras duas
características da sociedade tecnológica. A quantificação tende a reduzir todos os
produtos e as relações sociais a cifras, cálculos numéricos e manipulações
estatísticas - inclusive os indivíduos são subordinados em seu ser a um ter
quantificável. Basta ouvir as declarações dos governantes quando tentam mostrar
os progressos conseguidos segundo o balanço do ano ou do qüinqüênio. As cifras
citadas parecem ilustrar os avanços da economia, embora seja notório para qualquer
cidadão que esses cálculos estatísticos não têm contribuído para o bem-estar das
pessoas. No Brasil, todo mundo sabe que as cifras são manipuladas pelo Governo,
para assim dar a impressão de que a estabilidade material e cultural do país se
encaminha pelas vias certas; manipulam-se desde os índices da inflação anual
(para não dar o justo reajuste aos assalariados, entre outras razões) até os índices
de desistência e repetência escolares (para vender a imagem que estamos nos
tomando um país desenvolvido).
Resulta claro que a abstração se subordina à quantificação, embora tenha
alguns aspectos próprios. Se a quantificação deixa de lado a qualidade, a abstração
tende a dissociar-se de seu par inevitável- o concreto. É verdade que as cifras
fornecidas pelos Departamentos de Cálculos são alentadoras, mas como se traduzem

88
Formas de alienação e psicopatologia

em termos concretos para a população, em especial, para Pedro, João e Diogo? É


verdade que aumentou a renda per capita, mas como ocorreu essa distribuição da
renda, pois está claro que os pobres continuam ainda mais pobres?
Fromm assinala a excessiva divisão do trabalho como uma das fontes da abstração
(1956). Afirma-se que a complexidade de todas as ciências exige a superes-
pecialização; a tese é sustentável, mas essa concentração em apenas um aspecto de
um todo mais amplo e complexo reduz o especialista à figura grotesca do personagem
representado por Chaplin no filme Tempos Modernos (1936), em que o genial bufo
faz o papel de um pobre operário apertador de esparafusos numa cadeia de montagem.
O especialista perde completamente a idéia da totalidade; é o médico que apenas
trata do fígado ou do aparelho urinário, declarando-se incompetente como médico
geral. Em algumas áreas até temos a sensação de que os profissionais reduzem seus
interesses a apenas um setor não tanto pela complexidade e riqueza dos fenômenos
de sua competência, mas por uma certa preguiça mental, ou por um afã de vender a
imagem de que são supercompetentes nesse assunto.
Até os chamados valores espirituais adquirem o caráter de mercadoria
quantifícavel na sociedade capitalista técnico-consurnista. Um escritor é julgado
de primeira linha de acordo com o número de exemplares que suas obras vendem.
Um programa de TV é avaliado pelos pontos alcançados noibope: o que interessa
é a quantidade de espectadores que estão engolindo as mensagens transmitidas. A
esse respeito são instrutivas as declarações de Paulo Coelho, um escritor sem
maiores méritos literários, mas cujos livros vendem como batatas em tempos de
fome. A jornalista pergunta-lhe se se considera o maior escritor brasileiro da época
atual. Coelho responde, com a maior tranqüilidade, que de fato ele é o maior escritor
vivo, pois seus livros são procurados por todo o tipo de pessoa, que encontra em
seus escritos um espécie de alimento espiritual. Em nenhum momento questiona a
qualidade de sua obra nem percebe sua arrogância, logo ele que se pretende um
mestre espiritual. Nem sequer por um repente de modéstia lembra-se dos grandes
escritores brasileiros, que, em geral, vendem pouco precisamente pela qualidade
de suas obras.
Não é que Fromm desconheça os aspectos positivos desses dois fenômenos
que estamos considerando; não há dúvida de que quantificar e medir é uma exigência
do método científico; é certo que a abstração é necessária no desenvolvimento do
saber e da inteligência. Como veremos com mais detalhes, a aberração se produz
quando essas tendências se polarizam em detrimento de seus opostos dialéticos, o
concreto e o qualitativo.
Nós mostraremos, ao final, que é a mutilação dessa dialética a fonte de toda
alienação.
O interessante nesse livro (Psicanálise da Sociedade Contemporânea) é
que Fromm revela, de uma maneira muito nítida, as relações existentes entre a

89
O inquilino do imaginário

estrutura do sistema socioeconômico e o caráter humano que tal sistema condiciona


e estimula~ esse autor postula que existe uma estreita conexão entre estrutura
social, e o tipo de personalidade prevalente numa sociedade determinada. O tipo
de caráter que corresponde a nosso sistema social, Fromm o denomina orientação
mercantil receptiva. Para ter uma visão geral do que estamos expondo, dê-se uma
olhada no quadro I.
No livro também se expõem diversos outros tópicos, igualmente típicos do
mundo industrial de hoje. Analisa-se a idolatria, que no plano das crenças traduz-se
por uma perda dos valores religiosos presentes no monoteísmo das grandes religiões
universalistas (como o cristianismo e o budismo), que conceberam Deus como
ente criador, a cuja imagem e semelhança foi feito o homem; na idolatria, o homem
prostema-se ante imagens, sem chegar a sentir sequer de longe o fogo divino.
Ademais, num mundo cada vez mais secularizado, surgem novos ídolos: são os
líderes, as figuras populares do esporte e do cinema - ídolos que representam os
valores de poder, prestígio, fama e dinheiro (os quatro ídolos do ego).
Certo, todos esses ídolos têm uma glória efêmera; são promovidos pelos meios
de c<;>municação, que se alimentam de um sensacionalismo e de um culto ao
momentaneísmo, de modo que chegam a ser personagens da moda admirados e
imitados apenas por um período~ logo caem a um discreto segundo plano ou
simplesmente adquirem sua justa proporção. O culto aos ídolos de massas tem
produzido uma verdadeira inversão de valores: um jogador de futebol ou um artista
de TV ou cinema é muito mais promovido, admirado, inclusive mais bem pago, que
um cientista ou escritor eminente.

O império da mídia eletrônica e das imagens


Um fator socioeconômico que Fromm não considerou (seu livro é de 1956) é
o papel da mídia eletrônica e escrita na sociedade contemporânea. A mídia
eletrônica tem se tomado o principal agente de manipulação e dominação da
consciência coletiva. A TV, especialmente por oferecer passatempos e programas
de divertimento ao alcance da grande massa populacional, ocupa um lugar de
destaque no cotidiano das pessoas. Ficar grudado perante o aparelho-de-fazer-
doidos virou um novo vício numa porcentagem considerável de indivíduos; a
teleadicção é uma outra forma de alienação: de olho na caixinha, o sujeito consome
um amontoado variado de imagens, de emoções baratas, novelas, ofertas tentadoras,
sexo para todos os gostos. Desta maneira, de modo passivo, atenua o tédio de uma
vida sem maiores perspectivas, talvez chata e bovina. Salvo raras exceções, não
são programas críticos, que questionam as condições de existência material e
espiritual dos atores sociais, sejam indivíduos, grupos ou instituições. Contudo, o
pior da mídia não está tanto na baixa qualidade de suas mensagens, mas no tipo de
valores e crenças que incute na massa de espectadores e leitores. Legitima os

90
Formas de alienação e psicopatologia

interesses e a ideologia dos setores sociais dominantes, pois funciona como um


instrumento de dominação desses setores.
A TV inverteu, banalizou e mistificou os valores culturais. Inverteu os valores
exaltando novos ídolos, heróis de papelão, e menosprezando o trabalho dos grandes
artistas, dos cientistas e inclusive do honesto homem comum. Um delinqüente
pode tomar-se uma figura de primeiro plano. Banalizou os eventos sociais, aqueles
que marcam a história e mostram as peripécias da aventura humana. O grande
acontecimento já não é discemível das fofocas de quarteirão. Os noticiários da TV
misturam tudo numa colagem monstruosa de acontecimentos importantes, escândalos
de alcova e falcatruas corriqueiras. Depois de meter seu focinho em todos os
aspectos da vida privada, a TV mistificou o sexo, a religião, a vida das elites, a
consciência coletiva. O sexo já não é mais um momento de intimidade, é exibição
e voyeurismo. Os ofícios religiosos não são mais um momento de comunhão com
os entes sagrados; são espetáculos e um meio publicitário para ganhar novos
adeptos. A vida das elites virou o paradigma supremo do êxito, da bem-aventurança
terrena, o sonho impossível de milhões de coitados. A consciência coletiva se vê
refletida no aquelarre desvairado da telinha.
Você que gosta de algumas telesséries bem choradas e de algum programa
educativo, há de nos objetar que nem tudo é ruim na telinha. Tem razão. Uns 10%
dos programas são de boa qualidade, pelo menos em alguns canais, pois outros
oferecem puro lixo. Não sejamos pessimistas.
Contudo, o império da mídia eletrônica não apenas condiciona a mentalidade
coletiva impondo os valores e objetivos de vida desejáveis, mas impõe também o
império das imagens- das meras representações visuais. Ler ou conversar implica
o exercício da linguagem e do pensamento reflexivo; por elementar que seja, uma
leitura exige do leitor um certo raciocínio; outro tanto acontece com a conversa.
Nas imagens se entrega ao espectador toda uma seqüência de eventos, uma história
já desenhada e arrumada conforme aos desígnios do produtor. O teleadicto se
toma um ente passivo, simples consumidor de simulacros imagéticos dançando na
telinha.
Tampouco podemos negar o lado positivo do cinema e dos programas
educativos da TV, todos eles dando prioridade absoluta às imagens; é sabido que
basta observar uma cena para termos uma visão de uma situação concreta com
uma força expressiva incomparável. Sublinhamos o lado alienante da TV, mas isto
não significa desconhecer seu potencial criativo e construtivo.

O caráter descartável das coisas e das pessoas


Um segundo aspecto que precisamos examinar da sociedade tecnológica de
massas se relaciona com a caducidade das coisas, dos produtos e dos bens que

91
O inquilino do imaginário

esse tipo de sistema social caracteriza. Vivemos no mundo do descartável. Não


apenas as mercadorias são descartáveis, mas também as pessoas perderam seu
valor para tornar-se simples peças da máquina produtiva: temos um valor puramente
in~trumental. Neste Terceiro Milênio nos enfrentamos com a triste realidade de
uma desumanização progressiva, com a acentuação dos contrastes entre países
ricos e pobres, com o descrédito generalizado dos valores e das crenças morais e
religiosas. O pronóstico nietzschiano, feito em 1886, do advento do niilismo parece
ter entrado em seu apogeu. Se agregamos a este quadro bastante desolador algumas
pinceladas a mais -a violência urbana, o sexismo mercantil, o fácil desmanche da
família, a ausência de ideais n.a educação básica, o afã de lucro desmedido -,
podemos falar da Nova Sodoma, sem que esta expressão seja um exagero lingüístico
nem o desabafo de um pregador bíblico.
Uma análise da sociedade atual, como foi o intuito de Fromm, teria forço-
samente de reparar numa série de atitudes muito comuns na gente das grandes
urbes (indiferença, desconfiança, fechamento, isolamento), as quais são em si
aspectos da alienação. Como já observara Ferdinand Tonnies (1890), o espírito
comunitário perde-se nas cidades. Quanto maior os conglomerados humanos, maior
o isolamento e menor a importância do indivíduo; é a colméia. E ainda poderíamos
dizer que quanto maior é a comunicação eletrônica, menor é a comunicação entre
as pessoas.
Por outra parte, é fácil apreciar que a tecnologia não tem contribuído para
aumentar o nível de consciência coletiva; pelo contrário, tem trazido um franco
aumento da rotina, de um comodismo mole, uma espécie de tendência a deixar-se
levar por hábitos repetitivos e mecânicos, isentos de reflexão e lucidez. Fromm
fala de rotinização e repressão da consciência dos problemas básicos da existência.
Eu diria que se trata de uma mistificação da consciência, que se inicia no modelo
educacional, estende-se pela mídia e se consolida nos objetivos estimulados pelo
sistema econômico.
Sem dúvida, a rotina é parte inevitável e necessária das atividades cotidianas;
a vida cotidiana está feita de uma boa dose de rotina; o problema é que a rotina
está associada ao domínio dos automatismos mentais, à superficialidade de
pensamento, a um esquecimento de si mesmo, ou seja, a uma perda de consciência.
O contrário da rotina não é a novidade, mas a criatividade, o espírito vigilante,
atento e perceptivo. Rotinizado pela máquina e pelos infmitos estímulos sensoriais-,
a poluição sonora, visual, total, das grandes cidades - o homem escapa a todo
possível encontro consigo mesmo, encontro que lhe permitiria um confronto com
os temas permanentes de toda existência autêntica. Concordamos plenamente
com Fromm quando diz que "o homem só pode realizar-se se está em contato com
os fatos fundamentais de sua existência, se pode experimentar a exaltação do
amor e da solidariedade, bem como com o fato trágico de sua solidão e do caráter

92
Formas de alienação e psicopatologia

fragmentário de sua existência. Se está completamente envolvido pela rotina e


pelos artefatos, se não pode ver mais que a aparência do mundo, feita pelo homem
e acomodada ao senso comum, perde seu contato com o mundo e a percepção
deste e de si mesmo. Em todas as culturas encontramos o conflito entre a rotina e
o intento de voltar às realidades fundamentais da existência. A ajuda nesse sentido
tem sido uma das funções básicas da arte e da religião, embora a própria religião
tenha-se convertido em uma nova forma de rotina". Que função desempenha a
rotina, na qual caímos com suma facilidade e que, ao que parece, procuramos? Já
o dizíamos acima; é um mecanismo de fuga de si mesmo, é parte dos automatismos
motores. Forma parte da existência banal, aquela que se repete na superfície da
alma e das coisas, aquela que se move no círculo das sensações e na diversão.
Sabemos que a diversão não é só a fórmula desejável e procurada pela gente
comum; tem chegado a ser a recomendação que se nos dá quando nos sentimos
atribulados: divirta-se!, aconselha-nos; mas divertir-se significa entreter-se, ou seja,
passar o momento entre uma e outra coisa sem ligar-se a nada, sem problematizar
nada e, sobretudo, sem questionar nada. Divirta-se: faça-se diverso, seja outro,
fuja das preocupações; não obstante, preocupar-se consigo mesmo e com os outros

QUADRO I
Características do sistema econômico de consumo e sua influência no
caráter do homem desse tipo de sociedade
Características do sistema econômico Atitudes e traços caracteriais estimulados e
condicionados
Planejamento e racionalização da economia Orientação mercantil de metas e valores
Consumismo

Quantificação (computação) Ausência de uma verdadeira razão que oriente o


comportamento: desenvolvimento do intelecto em
demérito da razão (compreensão)
Abstração (estatística) Atomismo e isolamento nas relações sociais
Di visão excessiva de trabalho (esquizoidia), junto com introversão superficial
Produção maciça, em série (perda da intimidade pessoal)
Incentivo ao consumo para aumentar vendas Autoridade anônima e conformismo: uniformização
e lucros (publicidade) dos gostos e das idéias. Auge da moda
Burocratização inevitável como meio de Secularização da cultura, perda do sentimento
controle e de programação religioso e auge da idolatria (ídolos populares)
Automação dos processos produtivos (con- Rotinização e repressão da consciência dos pro-
seqüente automatização dos processos men- blemas básicos da existência humana: banalidade,
tais, a rotina mental). Concentração da popu- viver na diversão e preocupações fúteis
lação em grandes urbes

93
O inquilino do imaginário

é da essência da existência. O preocupar-se se manifesta na linha do cuidado e da


previsão de nossos atos; é ocupar-se por antecipação das conseqüências e do
sentido das ações e situações que protagonizamos ou que nos atingem. Deixaremos
neste ponto o enfoque socioeconômico da alienação, tal como o encontramos
especialmente em Fromm. Existem outros tipos de análises. Para um enfoque
marxista dessa questão, é muito esclarecedor o livro de Wanderley Codo6•

A dimensão existencial da alienação


A questão da alienação está presente, como um assunto preocupante, na
produção literária dos grandes escritores contemporâneos e na reflexão da filosofia
crítica, especialmente nos autores de inspiração existencialista. Para não alongar
demais este capítulo, escolhi três entradas possíveis neste enfoque. Albert Camus
e Franz Kafka pareceram-me os escritores que melhor retratam o absurdo, o
fracasso e o exílio do homem na sociedade burocrática de massas. Com maestria
incomparável, estes dois romancistas nos descrevem a situação do indivíduo neste
tipo de sistema social. Os personagens descritos por eles caracterizam-se por sua
falta de engajamento, pelo desarraigo, pela descrença, pela ausência de vínculos
afetivos e de valores que norteiem suas vidas. O mais triste de tudo é que estas
figuras representam uma boa parcela de nossos coetâneos.
Por minha parte, eu tento caracterizar a alienação numa concepção dimensional
da existência humana.

As dimensões da existência e a alienação


O enfoque econômico do fenômeno em pauta destaca os fatores materiais
oriundos do sistema social dominante. Sem ignorar estes fatores, o enfoque que
agora quero comentar coloca o acento na própria estrutura da existência, individual
ou coletiva. Eu diria que este tomar-se alheio à sua própria realidade se manifesta
em todas as dimensões da existência. Lembro ao leitor que, na concepção que
proponho aqui, existem oito dimensões básicas de experiência que caracterizam
de modo suficiente a esfera humana. Quero mostrar algumas formas de alienação
em três dessas dimensões. Advirto o leitor que essas dimensões formam uma
verdadeira trama, de maneira tal que numa dimensão sempre estão presentes todas
as outras, sendo todas elas igualmente importantes.
A dimensão do homem como ser-no-mundo permite-nos afirmar que o
homem habita, constitui e define sua realidade em termos de mundo. O indivíduo
habita urna realidade que se configura por suas experiências únicas ao longo de
toda sua trajetória vital: é o mundo pessoal. Nem preciso dizer que esta realidade
própria está em íntima conexão com o sistema social, de maneira tal que em
muitos casos o indivíduo se toma uma espécie de reflexo do contexto coletivo,

94
Formas de alienação e psicopatologia

pelo menos em grande medida, nunca completamente. O que acontece com


mais freqüência é uma desincumbência em relação ao meio histórico-cultural.
Verificamos que o indivíduo ignora ou simplesmente se desinteressa pelo que
está se passando neste meio, ou assume a posição de espectador passivo,
declarando-se, inclusive, impotente perante essa espécie de máquina que é o
sistema social. Isso é muito notório no âmbito político. Muita gente pensa que a
política é apenas o metier de alguns senhores espertos que usam e abusam do
poder público, apenas visando seu benefício. Certamente há uma boa dose de
verdade nesta idéia, mas sua aceitação passiva não soluciona nada; pelo contrário,
favorece ainda mais o sucesso dos políticos inescrupulosos. Quanto mais alienada
da coisa pública esteja a população, tanto melhor para esse tipo de líder. É
pertinente lembrar aqui que uma das diferenças existentes entre uma política de
direita e uma de esquerda se caracteriza também neste plano; a direita sustenta
que só as elites devem administrar o Poder, com uma participação mínima do
cidadão comum (o rebanho, como dizia Nietzsche, homem de direita); a esquerda
sempre tentou mobilizar a massa para que tomasse consciência de sua
responsabilidade histórica na criação de um novo tipo de sociedade, insistindo
em que as lideranças são meras representantes de um poder coletivo. Aliás,
existe toda uma operação ideológica, montada propositadamente pelos poderes
oficiais (vigentes em todas as instituições), para que o indivíduo se deixe estar
num conformismo simplório e molenga.
Não só do âmbito político o indivíduo se subtrai; certos setores das elites não
gostam de aspectos básicos de sua cultura nacional, preferindo manter um padrão
cultural estrangeiro, importado do Primeiro Mundo, de países que eles admiram a
ponto de viver como verdadeiros transplantados em seu país nativo. Sem dúvida,
esse fenômeno é estimulado por toda uma política cultural que enaltece os produtos
do Primeiro Mundo em demérito das criações autóctones.
Cabe enfatizar que tanto o mundo individual quanto o coletivo se concreti-
zam em relações relativamente determináveis, configuradas de um modo: con-
cretizam-se em situações. O que verificamos então é uma alienação, por parte do
indivíduo, da situação que desenha sua realidade. Nesse sentido, superar a alienação
é assumir resolutamente sua situação, posicionando-se na direção que se julgue
pertinente, não importando se essa posição resultará, posteriormente, errada ou correta.
Em que consistem a neurose e a psicose, considerados os dois quadros clássicos
da psicopatologia? A psicose pode ser entendida como o fechamento do sujeito
num mundo imaginário, dissociado em grande medida do universo social. Fechado
no intramuros de um espaço privado, o louco mantém um intercâmbio escasso ou
mesmo nulo com seu ambiente. Se a abertura define o ser de existência, este
fechamento às instigações de uma realidade dinâmica implica a negação de si
mesmo. Em menor medida, verificamos algo similar na neurose. A neurose não é

95
O inquilino do imaginário

urna doença oriunda de urna deficiência neurônica, corno sugere o termo. É urna
configuração vivencial negativa, na qual o indivíduo tende a transitar por círculos
viciosos com um claro sentimento de seu malogro pessoal. Entende-se que um
sujeito se move num círculo vicioso, quando não consegue superar urna situação
que lhe provoca sofrimento, conflitos e sentimentos negativos. Existe um sofrimento
real, que emana das condições concretas de existência (privações materiais,
doenças, deficiências físicas, perda de bens etc.), que o sujeito saudável termina
por encarar com resignação, com realismo afirmativo ou com certa manha tropical.
O sofrimento neurótico é, em grande parte, imaginário. Existem eventos que
justificam em parte a depressão ou a ansiedade do sujeito, mas são exagerados
pela sobrecarga emocional e a colocação desses eventos no plano imaginário.
Resultado: absorvido e digladiado por conflitos, preocupações e sentimentos
negativos, o indivíduo estreita seu campo vital num sentido unidimensional (na
direção da angústia, da depressão, da obsessividade, da histeria). Polarizado no
sentido de sua preocupação negativa, o agente se extravia em seu próprio labirinto.
Poderíamos analisar outras formas de alienação especialmente notórias nesta
dimensão, mas o apontado acima é suficiente.
Na introdução deste capítulo já me referi a três dimensões igualmente
importantes:
• a corporeidade;
• a dimensão interpessoal e social;
• a dimensão axiológica (ou dos valores).
Falei de um distanciamento progressivo do corpo pela via da sensopercepção,
segundo as diversas etapas da vida. A criança vive na sensação e no movimento;
para o adulto, o corpo torna-se sobretudo um instrumento de sua ação. Pode
privilegiar algumas áreas- as zonas erógenas, o rosto, o conjunto (enquanto figura
estética) -, mas a sensopercepção atenua-se conforme o decorrer dos anos.
Também é possível urna polarização no corpo; há gente que vive para o corpo,
seja porque tem horror a gordura, seja porque coloca nele urna conflitiva psíquica
(que é o caso do hipocondríaco), seja ainda porque experimenta o fascínio narcisista
da imagem física.
Preciso referir-me à patologia do corpo na psicose e na neurose? E nas
aberrações sexuais? Há urna reificação do corpo em todas as aberrações; urna
exclusão do contato físico no exibicionismo e no voyeurisrno; urna instrumentação
do corpo em termos de dor-prazer no sadornasoquisrno. Na psicose fragmenta-se
e se torna estranho. Na depressão degrada-se, perde seu poder instrumental. Na
angústia perde seu ritmo e sua regulação conforme as oscilações da ansiedade.
Este é o inventário preliminar das peripécias do corpo, quando o sujeito se
envereda pelos atalhos de sua própria destruição; por ora é desnecessário passar

96
Formas de alienação e psicopatologia

desse inventário à sua análise compreensiva. Apenas quero assinalar que o fator
comum de todas estas peripécias é a perda dos poderes naturais do corpo. Perda
de sua unidade significante nas aberrações sexuais; perda de sua integração vital
na psicose (morada íntima e familiar do espírito, segundo a tradição védica); perda
de sua energia propulsora e motivacional na depressão; desequilíbrio homeostático
geral na angústia.
O sistema social nos determina, nos condiciona e nos modela numa medida
apreciável; esse é um ponto pacífico; mas está também o lado mais específico e
pessoal do social: é justamente o interpessoal. O relacionamento entre dois ou mais
indivíduos, em termos de interação, constitui o interpessoal. A formação da pessoa
passa por toda uma trama de relacionamentos interpessoais; nessa trama, pauta-se o
estilo de relacionamento predominante do sujeito e o modo de interiorizar o outro.
Pelo apontado acima, observa-se que distinguimos dois aspectos: o sistema
social- que estuda a sociologia- e o interpessoal- que estuda a psicologia social.
Por ora quero referir-me ao segundo aspecto, embora ele esteja intimamente
relacionado com o primeiro.
Interessa-me destacar nesse item alguns pontos. Em primeiro lugar, quero
lembrar que no processo de socialização, que ocorre durante a infância e a
adolescência, se constitui a forma predominante de percepção e avaliação do outro,
na mesma medida em que somos percebidos e avaliados pelo próximo. Fala-se da
formação do autoconceito e da auto-estima, que são duas formas de avaliação de
si, sendo a primeira de caráter intelectual e a segunda de índole afetiva. Essa auto-
avaliação depende de maneira decisiva do julgamento do outro, sobretudo quando
o sujeito carece de juízo próprio, como acontece na infância, principalmente.
Essa avaliação do próximo pode assumir quatro modalidades peculiares:
a) Reconhecimento do outro como semelhante - o que leva a uma aceitação
dele e ao sentimento de ser aceito, à reciprocidade ou confiança mútua: o
fundamento da autoconfiança e de uma boa auto-estima, dois componentes
pessoais que excluem vivências posteriores de tipo neurótico.
b) Avaliação problemática do outro, ora visto como poderoso, ora como fraco,
mas sempre exercendo uma forte gravitação no campo vivencial do sujeito
de maneira tão marcante que podemos falar de um domínio do outro no
mundo da pessoa. Este domínio pode ser entendido como normal durante
a infância, mas torna-se sintomático a partir da adolescência, pois impede
o desenvolvimento na linha da autonomia e da autoconfiança. Esse é o
terreno propício para que surjam sentimentos e atitudes negativas, que na
linguagem da psicopatologia são qualificados como neuróticos.
c) Não-reconhecimento do outro por parte do sujeito; nega-se seu valor e se
vê nele um mero meio para fins egocêntricos. Esta é a atitude básica
associada ao padrão psicopático de personalidade. O indivíduo permanece

97
O inquilino do imaginário

preso a um egocentrismo primário por não ter intemalizado exigências


éticas básicas.
d) Sentimento de não ser reconhecido nem aceito pelo outro. Quando isso
ocorre nos primeiros anos da infância (antes dos 7 anos), leva o indivíduo
a uma falta de auto-aceitação e a sentimentos ambivalentes, de amor/
ódio, contra os pais. Caso a pessoa não encontre figuras de identificação
positiva, que em parte lhe permitam superar essa falta parenta!, sua própria
identidade fica prejudicada; prejudicada num triplo sentido:
• por ausência de modelos de apoio;
• por uma dissociação (ou precária integração) de suas experiências
formadoras;
• por um sentimento de desarraigo: falta de raízes na terra dos homens,
estranheza. Estão dados aqui os fatores propícios para uma vivência
psicótica do mundo.
Nem preciso dizer que os três tipos mencionados acima (b, c, d) se encaminham
pelas vias do desencontro pessoal e do sofrimento gratuito (na neurose), da conduta
anti-social (na psicopatia) e do distanciamento da realidade e de qualquer forma de
realização (na psicose).
Ao referir-me a tipos humanos apresentados tradicionalmente como figuras
da psicopatologia, não quero deixar a impressão de que toda forma de alienação
adquire as feições do doentio. Só na psicose e nos casos borderline - entre o
neurótico e o psicótico - podemos entender esse fenômeno como no âmbito
patológico. Afirmo que em todas as dimensões da existência podemos descobrir
aspectos descuidados. Se o cuidado é inerente ao Dasein, o descuido como negli-
gência do que me incumbe é alienação.
Seria indicado um comentário das outras dimensões, mas isso nos obrigaria a
uma extensão excessiva deste capítulo. Para um desenvolvimento desta concepção,
veja-se a bibliografia final.

Albert Camus e a alienação


Mais que em seus ensaios, Camus nos entrega a trajetória de uma vida
absurda em seu romance O Estrangeiro (1942). Certo, já outros tinham feito
algo similar muito antes, aí está Kafka, mas Kafka foi vítima e testemunha de
relações humanas alienadas, mais que um analista lúcido, como Camus. Será
necessário lembrar a história de O Estrangeiro? Achamos que sim, pois ela
pretende mostrar o paradigma de uma vida carente de sentido. Não é apenas a
vida de Meursault, um francês de uma cidade argelina; é a vida de inúmeros
indivíduos de qualquer urbe. Daremos uma versão livre.

98
Formas de alienação e psicopatologia

Meursault recebeu o telegrama; sentiu-se algo chateado: não pelo conteúdo,


senão porque teria de ir falar em seguida com seu patrão e pedir-lhe permissão
para ausentar-se do trabalho por pelo menos um dia ou dois. Sabia que o patrão
poria cara de bagre.
No escritório do patrão, antes de falar nada, lhe estendeu o telegrama; o cara
lhe deu uma olhada de relance. No ônibus, Meursault pensou que aquilo tinha
acontecido para melhor. Sua mãe já estava velha e não devia ser para ele muito
agradável conviver com esse monte de velhos no asilo. Aliás, ele já não teria de
fazer essas caminhadas cada mês.
Quando chegou ao asilo, o porteiro, que o conhecia, o levou logo a uma salinha
em penumbra. No centro, sobre uma mesa, estava um caixão de madeira bruta.
Sentou-se e "creio que adormeci por alguns instantes ( ... ) acordei. Foi neste
momento que entraram as amigas de minha mãe. Ao todo eram umas dez e
passavam em silêncio, nesta luz tão crua. Sentaram-se, sem que uma só cadeira
rangesse. Eu as via como nunca vira ninguém até então e nem um pormenor de
suas caras ou de seus fatos me escapava. Não as ouvia, no entanto, e custa-me
acreditar que tivessem realidade. Quase todas as mulheres usavam um avental e
um cordão que as apertava na cintura, mas lhes realçava a barriga inchada. Nunca
havia notado que a barriga das mulheres velhas eram tão grandes. Os homens
eram quase todos muito magros e traziam bengalas. O que me impressionava nas
suas fisionomias era que eu não lhes via os olhos, mas uma luz sem brilho no meio
de um ninho de rugas( ... ). Foi nesse momento que reparei que estavam todas em
frente de mim, balançando a cabeça, em volta do porteiro. Por instantes, tive a
impressão ridícula de que estavam ali para me julgar.
Pouco depois, uma das mulheres começou a chorar. Chorava dando pequenos
gritos, regularmente; parecia-me que nunca mais pararia de chorar. Dava idéia de
que os outros não ouviam. Estavam encolhidos, tristes e silenciosos( ... ). Ficamos
assim durante longos instantes. Os suspiros e os soluços da mulher iam-se fazendo
mais raros. Por fim, calou-se. Eu já não tinha sono mas estava cansado e doíam-
me os rins. Era o silêncio de todas aquelas pessoas que me era penoso agora. De
tempos em tempos, ouvia apenas um ruído estranho e não conseguia compreender
de que se tratava. Acabei por adivinhar que alguns dos velhos chupavam o interior
das bochechas, deixando escapar esses barulhos esquisitos. Estavam tão absortos
nos seus pensamentos que nem davam por isso. Tinha mesmo a impressão de que
esta morta, ali deitada, nada significava para eles. Mas, hoje, creio que se tratava
de uma impressão falsa."
Depois do enterro, Meursault regressou a casa. Morava sozinho num prédio
onde se dava bastante bem com os vizinhos. Esse dia ficou dormindo e só bem de
noite acordou para comer alguma coisa; ele mesmo costumava preparar sua comida.
No dia seguinte, que era domingo, foi à praia e ali encontrou a Maria Cardona, uma

99
O inquilino do imaginário

antiga datilógrafa do escritório onde ele trabalhava. Mergulharam juntos; a garota


era bastante desejável e era evidente que também gostava de nosso herói. Logo,
como para dar continuidade a esse encontro, ambos foram ver um filme de Femandel,
o cômico em moda. Essa noite terminaram juntos no apartamento de M., celebrando
os antigos ritos da espécie. Maria foi embora em seguida, pois tinha ainda que
visitar uma tia. M. saiu para dar uma volta pelo bairro, fumou um par de cigarrilhas
na esquina com o vendedor de tabaco e se entreteve olhando a multidão que
regressava do estádio comentando animadamente a partida - como se vê nosso
homem é um espécime de nosso tempo. Pensou que era domingo, que estava
terminando mais um dia, que ontem tinha enterrado a sua mãe e que, no fim de
contas, "tudo continuava na mesma".
Assim transcorreram os dias de M. Tem suas conversas com um cara do
mesmo prédio que o procura para contar-lhe suas andanças, suas brigas por causa
de mulheres. Segue tendo encontros com Maria. A garota, menina direitista, lhe
propõe matrimônio; M. lhe responde que tanto fazia; Maria lhe pergunta se sentia
algum amor por ela. "Isso não quer dizer nada, mas talvez não te ame", responde
M.
No trabalho não tem problemas; tem suficiente competência em assuntos de
seu escritório e sabe que um empregado é apreciado na medida em que sabe
servir. Um dia, estando Maria em seu apartamento, ouviu uma espantosa gritaria:
era seu amigo Raimundo que estava batendo na amante. Maria propõe chamar a
polícia, mas M. acha que a gente não deve imiscuir-se nesses assuntos; aliás, não
gosta da polícia.
Tudo houvesse acaso continuado nesse ritmo na vida de nosso homem, preso
a uma rotina formigueira, mas ... houve um incidente. Sim, foi apenas um incidente,
não um destino desejado e procurado com ardor. Um domingo foi com sua amante
e o tal Raimundo passar um dia na praia. A praia é um bom lugar para levar um
papo, contar piadas, esquentar a barriga e, às vezes, é um bom lugar até para
nadar. Só que ali surgiu o incidente, ao encontrar-se com um grupo de tipos que
procuravam briga: um desses tipos queria ajustar contas com Raimundo por ele ter
batido na sua irmã. A briga era algo alheio a Meursault, mas aconteceu que andava
com um revólver, fazia muito calor e um cara tirou uma navalha na sua frente. M.
o liquidou com cinco disparos.
Esta é a história de M., o personagem do O Estrangeiro.
Camus era existencialista, ou seja, afirmava a primazia da existência sobre a
essência. Ao dar-nos o retrato de M., parece bastante clara sua intenção. É o
retrato do homem banal, que vive a meia consciência, sem comprometer-se
lucidamente com nada, a quem tudo acontece sem que ele se sinta e seja artífice e
condutor de si mesmo. É aquele que parece atuar por reflexos elementares, o
homem condicionado de Pavlov. A morte de sua mãe não faz outra coisa que

100
Formas de alienação e psicopatologia

interromper sua rotina, sem que por um momento chegue a comover-se ante um
evento dessa magnitude: assiste ao enterro como a um pequeno espetáculo sem
importância. Faz amor como quem toma uma cerveja, mata por azar e morre pela
inexorável mecânica de um processo judicial.
É justamente um estrangeiro, um estranho numa terra estranha, um sujeito
sem vinculação vital e vibrante com sua realidade toda. Estranho não no sentido do
singular· e do único, senão no sentido de alheio. M. passou pela vida quase como
um trem passa através de uma paisagem, sem perceber o enorme céu nem as
curvas do caminho, sem perceber sequer seu próprio estrépito. Quase, pois só na
proximidade da morte, perto do pelotão de fuzilamento, é queM. recebe a revelação;
compreende que é sua vida que está em jogo, que até agora a tem deixado escoar
pelos canos como simples detrito. Compreende que agora já nada tem sentido -
antes, tinha vivido o absurdo, sem compreender. Sente uma tremenda revolta, mas
uma revolta detrás das grades é como um grito no vazio. Pensa em Maria, sua
garota, e entende que ela está do outro lado do muro, que nada do que possa
acontecer a um deles lhes toca. Um padre intenta oferecer seu consolo, mas M. o
rejeita agressivamente: sabe que esse padre está com os outros, com os vivos, que
tudo o que lhe oferece são lindas frases cujo sentido M. nunca entendeu. Tem
vivido só, e agora está mais só que nunca.
A minutos de seu fim, M., completamente lúcido, esvaziado de toda esperança,
"se abriu pela primeira vez à tema indiferença do Mundo". Seu último desejo é que
o momento da execução tenha bastante público, e que os espectadores o recebam
com gritos de ódio. No momento da morte, este homem compreendeu qual tinha
sido o sentido de sua vida; sentiu a enorme indiferença do mundo, como se este lhe
devolvesse a própria atitude que ele tinha tido durante toda sua vida. Sentiu que
tinha estado muito longe de todos, que não amou a ninguém, tampouco odiou.
Apenas no momento da morte quer sentir-se a si mesmo no ódio que uma massa
anônima e curiosa possa oferecer-lhe; nem sequer assim existiria em alguém: quer
ver sua revolta inútil refletida na cólera aniquiladora dos outros. Pelo menos quer
ter esse momento de comunicação.
Sem dúvida Meursault é paradigmático em mais de um aspecto. Certo, o
que nos chama a atenção, em primeiro termo, é uma espécie de objetivismo frio.
Aceita a amizade de Raimundo simplesmente porque as circunstâncias os põem
em contato, não porque sinta nesse indivíduo a encarnação de um valor particular
ou experimente simpatia por ele. Mantém Maria como amante sabendo que, se
não fosse ela, teria alguma outra, tanto faz. O que chama nossa atenção nele é
sua falta de ressonância afetiva, sua incapacidade para comprometer-se emo-
cionalmente; é como se sua existência estivesse truncada pelo desenvolvimento
numa só direção - seu objetivismo em detrimento do outro pelo de sua
personalidade.

101
O inquilino do imaginário

Observamos que em tudo o mais M. é bastante adaptado, com todas as


deficiências que o ser simplesmente adaptado implica.
Poderia ter passado sem mais, como uma pessoa completamente normal, não
fosseesse incidente que o transformou num assassino. No tribunal, seu amigo
Raimundo e alguns vizinhos depõem todos a seu favor, qualificando-o de um tipo
muito legal, apenas algo calado. Enfim, alguém poderia qualificá-lo de esquizóide
por sua tendência a manter-se nos limites de uma consciência distanciadora, por
sua incapacidade para chegar a ter uma verdadeira identidade com algo ou alguém.
Podemos supor que debaixo dessa frieza, em algum ponto desses corredores vazios
que formam seu espaço interno consciente, existe uma porta que dá acesso à sua
experiência vivida e ... enterrada. Podemos supor que ele é um homem dividido na
sua própria mesmidade (o self ), e que essa ruptura interna se reflete em seu
desapego externo - desapego que acaso reforce o que ele chegou a ser, todo num
círculo negativo.

A alienação em Kafka
Nesta análise da estranheza, poderíamos omitir um outro escritor que a tem
refletido em suas dimensões mais profundas e dolorosas? Já aludimos
anteriormente a Franz Kafka, homem de estirpe e veia existencial-metafísica.
Ele foi o primeiro que soube mostrar-nos a espantosa condição humana num
mundo aparentemente tão normal, tão racionalmente estruturado. Na sua obra
fica patente que todos nós estamos perdidos em labirintos sinuosos e emaranhados,
embora acreditemos transitar por caminhos retos e certos. Muito antes que Camus,
já no período da Primeira Grande Guerra, Kafka percebeu os aspectos
dolorosamente absurdos da existência. O escritor era um indivíduo de finíssima
sensibilidade, que sem dúvida sentiu na medula de seu espírito as torturantes
contradições de sua sociedade e do destino do homem no século XX. Ele foi o
primeiro a refletir a situação do indivíduo perdido, anulado e coisificado na
monstruosa engrenagem social; anulado e coisificado especialmente perante o
poder do Estado, das instituições, dos outros. Em O Processo, o personagem K.
(é o significativo que leva a inicial do sobrenome de seu autor) vê-se envolto
num processo que lhe consome boa parte de suas energias durante anos, sem
que ele nunca chegue a saber do que é acusado, nem quem seja o acusador. K. é
um homem normal, um correto funcionário de banco, solteiro e com todas as
suas contas em dia. De que podem acusá-lo? Ele mesmo se pergunta isso: pro-
cura esclarecer sua situação; consulta um advogado, assiste a uma sessão dos
tribunais, intenta aproximar-se de um juiz. Tudo resulta inútil. Aliás, todos
unanimemente confirmam-lhe que a justiça é assim mesmo, sigilosa, lenta e
impenetrável; "Um processo sempre dura anos e anos, e poucos chegam a saber
do que são acusados", informa-lhe seu advogado. Ele sente que está sendo

102
Formas de alienação e psicopatologia

perseguido por um poder invisível e onipresente. Delírio persecutório? Até se


poderia pensar nessa hipótese, mas obviamente essa não foi a idéia de Kafka.
Eu diria que se trata da odisséia do indivíduo dominado por um sistema social que
lhe impõe sua lei e sua sujeição, sem muitas possibilidades de autodefesa. Basta
uma simples análise da maquinaria social e logo percebemos o enorme domínio
que os poderes oficiais e o controle social difuso exercem sobre a pessoa.
Que representa esta alegoria? Sartre encontraria nesse romance uma ilustração
de sua tese sobre o caráter conflitivo das relações intersubjetivas: até no fundo
mais secreto de minha consciência sou habitado pelos outros, os outros que me
vêem e me objetivam, que me alienam com sua presença. Dos outros não posso
escapar; eles determinam o que eu sou, me julgam, me classificam, me situam
numa perspectiva que eu não posso controlar. Julgam-me, me absolvem ou me
condenam.
Porém, não é gratuito que Kafka nos coloque diante de um processo judicial.
Alguém quer aplicar a lei ao Sr. K., quer julgá-lo por uma falta que ele ignora;
alguém o vigia para logo julgá-lo e ... condená-lo. Sim, porque ao final chega a
sentença e K. morre sem esperança; "como um cachorro!", exclama K., segundos
antes de morrer. Não é este um mundo alucinado? Não obstante, cada vez mais se
parece com o nosso. Um mundo bastante paranóide, onde o outro sempre pode ser
um inimigo oculto e potencial, onde a indiferença e a hostilidade predominam.
Outras facetas da reificação também foram desenhadas por Kafka em A
Metamoifose. O vendedor Gregório Samsa um dia amanhece convertido em inseto;
desde então começa a sofrer sua nova condição no seio da sua família, que sente
vergonha e nojo dele. Samsa está consciente de seu novo estado, permanece oculto
em seu quarto, reptando pelo chão e pelas paredes. Em casa, quase tudo segue
igual; os familiares só se preocupam em dar-lhe algum alimento uma vez ou outra,
e que permaneça isolado; até que terminam por pensar em como se desfazer de
um bicho inútil e desagradável. Felizmente para eles, num bendito dia, sem uma
queixa, Samsa amanhece morto.
Lendo A Metamoifose, pensamos na situação dos velhos e dos doentes, dos
aleijados e dos loucos, tal como geralmene são tratados, no círculo familiar e nas
instituições encarregadas de cuidar deles. Também são tratados um pouco como
bichos inúteis. Certo, Kafka propõe-nos uma situação alegórica. Também esta
alegoria nos lembra o mundo do homem deprimido, afundando no abismo da queda,
da prostração sem esperança. Uma pessoa que atravessava um período depressivo
verbalizou muito bem seu estado de ânimo dizendo que se sentia como um inseto
em posição invertida, fazendo inúteis esforços para recuperar sua posição normal.
Samsa nos oferece o quadro doído da indigência, da impotência e da solidão.
Outra forma de alienação que constatamos no mundo de hoje é a vivência de
solidão e de isolamento, vivência que parece ser mais aguda nas pessoas que procuram

103
O inquilino do imaginário

compulsivamente o contato social. Constatamos que na era das massas- a nossa-,


o indivíduo quase não consegue estar consigo mesmo. Poucos chegam a compreender
que a solidão é um momento necessário no desenvolvimento da mesmidade: aquilo
que nos permite estar conosco mesmo, com a esfera mais profunda de nossa
intimidade. Na solidão podemos ouvir as vozes que o ruído do mundo não permite
escutar, tudo aquilo que vamos elaborando subterraneamente. Todos os grandes
mestres nos têm ensinado a importância do isolamento para chegar a descobrir as
verdades essenciais. Cristo esteve quarenta dias no deserto meditando; só depois
dessa estada consigo mesmo decidiu levar adiante sua missão.
Porém, para a maioria, a solidão é um sofrimento que acompanha a incapaci-
dade de comunicação e da comunhão; é um produto do fracasso da convivência.
Raras vezes escolhemos a solidão, pois nosso vínculo original é ser-para-outro;
apenas somos obrigados, por erros e por circunstâncias, a isolar-nos. Há momentos
em que todos nós nos sentimos sós; é quando enfrentamos situações-limite que
nos afetam de um modo indelével - quando morre uma pessoa amada, quando
fracassamos numa tarefa que comprometia boa parte de nosso fôlego. Porque eu
sou também um indivíduo, é natural que tenha estes momentos de solidão, que são
justamente os que me permitem gozar e apreciar o outro pólo antitético, a comunhão
e a comunicação.
Diz-se, com razão, que vivemos na era das massas; vangloriamos-nos dos
progressos técnicos dos meios de comunicação, mas correlativamente registramos
um aumento do sentimento da solidão. Por que esse fato paradoxal? Parece que
tem aumentado o espírito de rebanho - como diria Nietzsche - em detrimento da
individualidade socializada que nos permite ser pessoa-com-os-outros. Sobretudo
o homem das grandes urbes queixa-se de seu isolamento, de não ser ninguém na
multidão. Aprendemos a não sentir, nesta enorme quantidade de gente que enche
as ruas e habita os inúmeros prédios, a singularidade de um rosto humano; apren-
demos a ignorar a cordialidade amiga de um sorriso neste ir e vir apressado do
cotidiano; aprendemos a nos movimentar com rapidez e terminamos por ignorar
que os encontros estão feitos de pausas pacificantes. Fabricamos máquinas que
produzem em série, com precisão e dinamismo, mas temos nos transformado
parcialmente nessas máquinas que criamos: terminamos por alienar-nos em nosso
produto- o robô nos robotizou. Hoje, as mentes mais lúcidas estão se perguntando
para onde vai a civilização tecnológica. E não é uma pergunta tola.

A alienação como perda da síntese dialética: sua aplicação na esfera


do psicopatológico
Até agora não temos feito outra coisa senão mostrar diversas modalidades
da alienação; só em alguns casos se nos têm feito inteligíveis as razões desta
alienação, como quando Fromm nos ensina as relações existentes entre estrutura

104
Formas de alienação e psicopatologia

socioeconômica e caráter social alienado. Nesse ponto resulta-nos inevitável encarar


algumas interrogações básicas. Podemos postular um princípio que nos permita
compreender todas as formas de estranheza? Ou existe uma concepção da
alienação que abarque todas as modalidades possíveis dela? Porque não basta
entender esta noção como um processo de estranhamente de si mesmo. É
certamente isso, mas como é possível chegar a fazer-se estranho a si? Quando
uma pessoa chega a esse estado? Como podemos percebê-lo e avaliá-lo? É certo
que todos os fenômenos ditos psicopatológicos são formas de alienação? Se isso
for verdade, que teriam em comum? Que teriam em comum fenômenos tão
diferentes como os comportamentos histéricos e esquizofrênicos? Em que sentido,
que não seja apenas o óbvio, podemos dizer que ambos são comportamentos
alienados? E ainda podemos colocar-nos uma outra pergunta: até que ponto é
válido postular, como pretendia José Eleger, uma psicopatologia fundada no conceito
de alheamento?

Vamos por partes


a) O que têm em comum fenômenos tão diferentes como o comportamento
histérico e o esquizofrênico? Em que medida é legítimo qualificá-los de
formas de alheamento?
Como é sabido, pelo menos desde Eugene Bleuler (1911), a cisão das funções
psíquicas é característica central da conduta esquizofrênica; num grau menor, esta
cisão corresponde ao que atualmente chamamos de divisão esquizóide. Não nos
interessa discutir aqui os aspectos semiológicos, nem se é uma doença ou uma
perturbação psíquica (nesse campo as discussões continuam abertas).
Interessa-nos destacar a tendência a fechar-se em si mesmo e o predomínio
do pensamento autista, que são características do indivíduo esquizofrênico. Esse
isolamento dos outros, essa penosa impossibilidade de comunicar-se e de contatar
o próximo são precisamente formas de alienação extrema. Por certo que esta
tendência a encerrar-se no círculo da própria intimidade associa-se a uma ruptura
com as próprias fontes internas. Se não fosse assim, iríamos nos encontrar apenas
com uma pessoa introvertida, a qual é consciente de sua mesmidade.
De algum modo, o comportamento histérico é a antítese do esquizóide. Com
efeito, o histérico define-se em seu projeto de ser por uma tendência à mostra-
tividade: quer ser aos olhos dos outros, captar sua atenção, seduzi-los. Vive de fora
para fora.
O que têm em comum esses dois estilos de ser? No esquizóide, está truncada
uma dimensão própria do ser humano: seu ser-para-outro; ele perdeu a capacidade
de comunicar-se vitalmente com a realidade, daí acabar por extraviar-se em seu
próprio labirinto. No histérico, está truncada a dimensão interna: vive para a

105
O inquilino do imaginário

representação de si, tal como acredita que os outros esperam que o faça. Ambos
os tipos não conseguiram a totalidade que, como síntese dialética, alcança
dinamicamente o indivíduo integrado. Alguns falariam, nesses casos, de repressão
ou de mecanismos de defesa. Nós diremos que há uma totalização truncada.
A idéia de totalidade- promovida no campo da psicologia graças aos trabalhos
de Gestalt, já no início do século XX- é certamente uma noção axial da dialética,
tão velha como é o pensamento chinês antigo, em que já estão presentes totalidade
e contradição. Nós vamos fazendo o jogo das contradições e a síntese de tais
contradições. É certo: meu ser social determina boa parte de meus comportamentos
e, em conseqüência, me resulta inevitável que assuma alguns papéis - em algum
grau, todos representamos o que somos; mas também eu posso determinar o caráter
de meu papel, sem chegar a alienar-me no ditame do outro, como faz o histérico (e,
num outro plano, o conformista). O histérico apresenta-se-nos como inautêntico
por sua incapacidade para integrar o papel a seu ser, fazendo-se deste modo
transparente, para o observador, seu jogo de disfarces. Com o desenvolvimento de
nossa trajetória pessoal, nós vamos forjando o elo de nossa mesmidade, a que está
feita de experiências, identificações e fantasias. Desta maneira, construímos nosso
mundo interno. Recolher-nos em tal solar interno é um momento necessário, tanto
para a reflexão como para a fantasia; ademais, é um aspecto da práxis, do trabalho
de formação que o próprio indivíduo faz para si (tal é o sentido aristotélico de
práxis). O que parece acontecer com o esquizo é que se refugia em sua subjetividade
fechada, enquanto já não consegue lidar com as exigências objetivas nem com
suas necessidades elementares de realização.
Poderíamos considerar ainda outras condutas ditas anormais. Joseph Gabei
tem procurado mostrar que a reificação é o fenômeno básico da psicopatologia,
idéia que em nosso círculo cultural tinha promovido Eleger (1958). Nós preferimos
colocar uma síndrome que ilustra bem a 'tese que estamos expondo: a depressão.
No quadro depressivo, destacam-se quatro vivências estruturalmente
relacionadas. Em primeiro lugar, o sentimento de queda e de prostração, que algumas
pessoas traduzem com a expressão de "sentir-se como um inseto de costas, fazendo
inúteis esforços para recuperar a posição de marcha" (lembremos Gregório Samsa,
de A Metamorfose). Este sentimento de queda ontológica vai acompanhado de
autodesvalorização, que pode chegar ao desprezo de si - como escrevia o poeta
colombiano Barba Jacob ("troco minha vida, vendo minha vida, de todos os modos.
a levo perdida"). Tampouco falta o sentimento de culpa pela perda do objeto amado,
ou o sentimento de abandono- sentimentos que são os elementos motivadores de
todo o processo. Por último, registramos uma regressão temporal no sentido do
passado, que é onde se situam os fatos desencadeadores da vivência depressiva.
O tempo esvazia-se de sua dimensão dinâmica para transformar-se numa região
estática e repetitiva.

106
Formas de alienação e psicopatologia

O que tem de acontecer previamente para que um indivíduo chegue aos


limites da renúncia de si após a perda de um bem? Tem de existir entre ele e o
objeto amado um forte laço de identificação. Já dissemos antes, o processo
identificatório é inerente à formação da pessoa, do eu. Sem dúvida, tenho tido
diversas experiências em minha vida, de maior ou menor importância para a
estruturação de meu campo vivencial, para os valores que acredito sustentar e
para a configuração concreta de minha práxis. De muitas experiências deriva a
representação ideológica que faço do mundo e de mim mesmo. Algumas crenças
e valores que ainda hoje orientam o sentido de minha ação, adquiri:.as na
convivência com meus pais, pela identificação com o horizonte axiológico que
eles viviam e que me inculcaram; outras foram a resultante de um exemplo que
me serviu de modelo; outras ainda foram o produto de minha ação reflexiva e
racional. Também sofri pela perda daquele primeiro amor de adolescente, episódio
mágico e iniciático, perda que senti como a queda de meu universo significativo.
Que tinha feito eu de negativo para que acontecesse tão tremendo fracasso?
Seguramente, era culpado de algo, ou vítima de um fado ruim. Cheguei a sentir
que esse fracasso me condenava para sempre à tristeza e à expiação. Para
sempre, como se não existisse o futuro. Porém ... minha vitalidade era farta e
minha disponibilidade para novas experiências, quase total; ademais, e sobretudo,
tinha outros ídolos, outros objetos de identificação que solicitavam e estimulavam
minha luta. Dessa maneira foi como escapei da cripta depressiva: foi apenas
uma breve queda, vivida como longuíssima, é claro.
É que só estamos feitos parcialmente de identificação, nem sequer estamos
feitos: nós estamos nos fazendo. Em grande medida, estamos disponíveis para
experiências inéditas e para a procura de novas possibilidades. Por isso, podemos
afirmar que o depressivo se aliena num pólo da temática vivencial, no pólo negativo.
Bastará que consiga de novo abrir-se à experiência vital para que se dilua seu
sentimento de queda e de condenação. Um fracasso pode prostrar-nos transito-
riamente, mas logo os desafios da ação ultrapassam nossa autocomiseração, salvo
quando nosso ego é tão infantil que se agarra aos objetos como ao seio matemo, o
que parece ser o caso da chamada personalidade depressiva.
Incapacidade para integrar experiências numa síntese dinâmica que recolha
assim as diversas antíteses do real: tal seria a fonte e razão de ser da alienação. Para
apreciar a ruptura da totalidade, no caso de depressão, examinemos o quadro da
página seguinte.
Toda perda significativa deprime-nos, em menor ou maior grau; afeta-nos
tanto pelo que significava no contexto de nossa vida, quanto pelo modo de encarar
esse escoamento para o nada que implica o viver. Há pessoas que têm uma grande
dificuldade para aceitar esse lento desmoronar-se da própria existência.·

107
O inquilino do imaginário

Temática central da Atitudes existenciais próprias de uma


vivência depressiva pessoa integrada: que integra o real
Sentimento de queda e prostração pela perda de Disponibilidade para as exigências e os desafios
um objeto amado. da práxis, apesar dos fracassos.
Sentimento de culpa ou de abandono: tendência Admissão da culpa pela responsabilidade assu-
à dependência e às relações de apego excessivo. mida, mas com disposição mais para reparar que
para condenar. Atitude de autonomia.
Autodesvalorização: tendência a castigar-se Aceitação do fracasso como uma experiência
simbolicamente pela falta cometida. Valorização inerente a toda empresa humana: ocasião para
excessiva do objeto perdido. reavaliar as próprias potencialidades, os projetos
e as metas.
Tendência à fixação temporal pretérita (nas cir- Avaliação e vinculação fluente com as três
cunstâncias negativas que originaram a queda). dimensões: a) com o passado, enquanto origem
Ruptura com o presente e fechamento ao futuro. do presente; b) com o presente, enquanto
Perda da dimensão prospectiva e do contato vi- realidade imediata e atual; c) com o futuro, como
tal com o imediato. projeto possível.

b) Podemos postular um princípio que nos pertnita abarcar e compreender


todas as formas de estranhamente?
A velha psiquiatria- que aliás ainda parece ter seus seguidores- qualificava
o louco de alienado, o que não era errado; mas errava no que supunha fosse a
origem dessa alienação, apenas uma perturbação cerebral ou orgânica, e nos
critérios para diagnosticar o fenômeno. Agora sabemos que há formas de
alienação sociais, próprias do sistema econômico e da supra-estrutura ideológica,
que condicionam e geram comportamentos alienados. Agora sabemos que os
critérios de normalidade social e de comportamento normal não bastam para
qualificar uma pessoa saudável ou psicologicamente integrada.
Já sabemos que o normal é um critério de validação social que representa
um consenso e um ditame de alguns grupos. Temos tido demasiados exemplos
de indivíduos que passam por normais, quando apenas são espécimes do
alheamento coletivo, e muitos que recebem o estigma de anormais são modelos
humanos de uma esfera, por assim dizer, mais alta.
Qual será o critério justo que nos permita avaliar formas de vida, atitudes,
valores e comportamentos como alienados? Um critério dialético, que saiba discernir
as contradições que estão em jogo numa determinada pessoa situada em certo
contexto social. Quando uma pessoa não consegue totalizar numa síntese dinâmica
os conflitos e as propostas antitéticas que de um modo inevitável enfrenta toda
vida, ficando presa a um pólo das antíteses, dizemos que está alienada ou, para
usar a voz ativa, alienando-se. Nessa óptica haverá fatores sociais condicionantes

108
Formas de alienação e psicopatologia

não difíceis de perceber. O consumismo é uma atitude alienadora, porque o indivíduo


se submete a uma maquinaria publicitária que dita seus gostos e escolhas conforme
os interesses comerciais; essa maquinaria cria motivações supérfluas e até daninhas.
A burocracia ajusta sua ação a tramitações formais que são muito convenientes
para seu controle administrativo, mas não considera o caso concreto do sujeito
humano, a quem se supõe que servem tais formalidades: a engrenagem admi-
nistrativa termina por transformar-se num monstro que não leva em consideração
os sujeitos que a criaram. Estes são exemplos de problemas sociais. Ainda
poderíamos apresentar outros. Aí está o caso da superespecialização, que parece
ser uma exigência da era tecnológica: um técnico vê-se obrigado a reduzir cada
vez mais a área de sua competência, inclusive em seu campo profissional, perdendo
assim a visão de conjunto. Daí resulta então um sujeito que sabe tudo de pouco e
nada de tudo. Por isso, o tecnocrata, tão privilegiado neste tipo de sociedade, carece
de uma perspectiva humanista do real, especialmente de sua realidade subjetiva-
ou nega sua subjetividade, como fez o psicólogo comportamentalista, ou se perde
em considerações mitificadoras, considerações que são, via de regra, um sincretismo
de ideologia e de pseudociência.
c) Até que ponto é válido postular uma psicopatologia baseada no fenômeno
da alienação?
É digno de fazer notar que até hoje tem prevalecido uma psicopatologia
baseada no modelo médico de doença ou nos critérios de normalidade, que é um
modelo valorativo altamente questionável, inclusive quando se apresenta com a
inocente roupagem da média estatística. Ambos os modelos têm sido questionados
porque não dão conta da complexidade dos fatos nem satisfazem as exigências de
uma compreensão profunda dos fenômenos. Não vamos insistir aqui numa crítica
destes modelos, pois outros têm feito com singular riqueza argumentai. Interessa-
nos fazer um par de considerações sobre a tese de Bleger, um dos primeiros a
postular (que saibamos) uma psicopatologia fundada no conceito de alienação. Já
em 1958, antes que Laing inaugurasse o movimento da Antipsiquiatria, Bleger
escreveu: "Os quadros mórbidos não constituem 'espécies naturais' e a doença
mental não é uma essência ou entidade em si, que se expressa através de sintomas:
é uma complexa estrutura de conduta, móvel e mutável( ... ). O doente mental não
é um desadaptado da sociedade, senão um adaptado às condições alienadas da
sociedade, a qual apresenta as condições de alienação com que ~odos estamos
comprometidos, em maior ou menor grau. O objeto de estudo da psiquiatria e da
psicopatologia não é já a loucura ou o quadro mórbido em si: é o homem alienado
vivendo numa sociedade alienada" (pág. 181).

109
O inquilino do imaginário

Essa proposta de Bleger, que ele não desenvolveu, foi recolocada


posteriormente, de um modo independente, por Gabei em sua obra La Fausse
Conscience (1962). Gabei examina a maioria dos quadros psiquiátricos, tal
como estes têm sido estudados por autores de orientação fenomenológica
existencial. Autores que, como é sabido, prescindem tanto do modelo médico
de doença como do simples critério de normalidade. No livro mostra-se como
os enfoques existenciais evidenciam até à saciedade o caráter reificado,
antidialético da experiência psicopatológica. Em particular, Gabei manifesta
que toda a Dasein-análise de Ludwig Binswanger se baseia em conceitos
dialéticos, especialmente nas noções: 1) de totalidade; 2) de situação concreta,
que condiciona a doença; 3) de perda da dialética sujeito-objeto (eu-mundo);
4) de práxis; 5) de mundanização como perda dos limites do eu e do mundo
(roubo do pensamento, pseudo-alucinações auditivas etc.); 6) em conceitos
como espacialização, temporalização e outros semelhantes, que são reificações
particulares.
Insisto: o modo mais viável de superar a alienação, sua parte mais
mistificadora, pelo menos, é estar aberto a todas as dimensões da vida,
sintetizando as antíteses, aberto ao racional e ao irracional, à emoção e à
reflexão, à fé e ao ceticismo, ao trabalho e ao jogo, ao mistério do mundo e à
sua inevitável banalidade.
Também Gabei enfatiza o aspecto sociocultural na gênese da psicopatologia
quando desenvolve uma série de teses sobre a falsa consciência- isto é, a ideologia
-como fonte configurada das alienações. Não é necessário argumentar demasiado
para mostrar as evidências desta tese. A nosso entender, esta é uma das fontes
gerais, própria do sistema social. Mas ainda temos de indicar pelo menos duas
mais: a) A alienação da experiência individual, que começa pela experiência sensório-
motora, de tipo perceptiva e corporal, e culmina com todos os recalques e
mecanismos defensivos do ego, dos quais fala a psicanálise. Essa é a experiência
que tenta restituir a Gestalt terapia. b) A alienação própria da fenomenologia da
consciência, em que surge o problema da temporalidade e das relações eu-tu, para
citar só dois. Está também o problema das identificações do ego, que é um assunto
de desenvolvimento psicológico.
Deixemos esse tópico das fontes para uma outra ocasião.
Nós, no presente capítulo, já analisamos o comportamento depressivo;
acreditamos que ficou bastante clara a perda da síntese dialética. Poderíamos
analisar qualquer outra síndrome e não resultaria difícil mostrar a desarticulação
da totalidade. Aliás, já outros o têm feito. Caruso mostrou a reificação da sexualidade
nas perversões; Kulenkampf descreveu o mundo paranóide como a perda da
intimidade pela invasão coisificante da olhada implacável do outro. E podemos
citar muitos outros.

110
Formas de alienação e psicopatologia

Nesse sentido, como uma maneira mais penetrante de compreender a


problemática psicopatológica numa visão que integre todos os aspectos da pessoa
em seu contexto sociocultural, achamos que a categoria de alienação nos permite
superar tanto o determinismo organicista do modelo médico como a deformação
ideológica própria do critério de normalidade, o qual ora se extravia num relativismo
valorativo, ora num objetivismo estatístico.

Notas
1. Entre as críticas ao modelo médico da doença mental, dois livros merecem especial menção: a)
de Thomas Szasz: The Myth ofMental/llness (Nova York: 1961), que apresenta uma teoria
alternativa baseada no modelo da conduta humana com o acatamento de regras; b) de Fuller
Torrey: A Morte da Psiquiatria (Rio de Janeiro: 1976, ed. original, 1974), que propõe
simplesmente o fim da psiquiatria, a qual deve ser substituída, segundo Fuller, por uma
ciência do comportamento de orientação neo-educacional. E não nos esqueçamos das críticas
da Antipsiquiatria.
2. José Bleger: Psicoanálisis y Dialéctica Ma(erialista (Buenos Aires: 1958).

Bibliografza citada neste artigo


1) HEGEL, Frederico. (1807) Fenomenologia do Espírito (1976, edição espanhola).
2) MARX, Karl. (1844) Manuscritos Econômico-filosóficos (1974, edição espanhola).
3) MOREAU de Tours.(1844) DuAchich et de l'aliennation mentale.
4) FROMM, Erich.(1956) Psicanálise da Sociedade Contemporânea (1976, Rio de Janeiro, Zahar).
5) ROMERO, Errn1io.(1990) As Dimensões da Vida Humana (São Paulo, 1998).
6) CAMUS, Albert.(1942) O Estrangeiro (1980, edição brasileira).
7) KAFKA, Franz.(1922) O Processo (1980, edição brasileira).
8) KAFKA, Franz.(1920) A Metamorfose (1980, edição brasileira).
9) GABEL, Joseph.(l960) La Fausse Conscience (Paris).

Textos recomendáveis, embora não usados neste artigo

l) MÉSZAROS, István. (1979) Marx, A Teoria da Alienação (Rio de Janeiro, Zahar).


2) GABEL, Joseph. (1964) Sociología de laAlienación (Rio de Janeiro, Zahar, 1979).
3) PAPPENHEIM, Fritz. (1960) A Alienação do Homem Moderno (São Paulo, Brasiliense, s/d).
4) GORZ, André. (1960) Historia y enajenación (México, 1964).
5) PERROUX, François. (1971) Alienación y Sociedad Industrial (Caracas).
6) CODO, Wanderley. (1984) O que é Alienação (São Paulo, Brasiliense).
7) SARTRE, Jean-Paul. (1943) L' être et le Néant (Paris, 1980).
8) BLEGER, José. Psicoanálisis y Dialéctica Materialista (Buenos Aires, 1958).

111
O inquilino do imaginário

Observação (na 2-ª e 3-ª edições)


O leitor mais exigente talvez fique um tanto surpreso por ter enfocado a alienação econômico-
social seguindo algumas pistas dadas por Fromm. Sei que existem trabalhos mais recentes que
consideram vários outros aspectos deste fenômeno. De todas maneiras, considero vigente o escrito
neste capítulo. Entre os autores posteriores a Fromm, alguns nomes se destacam. Como complemento
para uma análise da sociedade tecnológica recomendo alguns: a) Alain Touraine: Crítica da Modernidade
(Ed. Vozes, 1995); b) Gilles Lipovetsky: O Crespúculo do Dever (Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1994); c) Jean Baudrillard: Simulacres et Simulation (Paris, 1981); d) Sérgio Paulo Rouanet:
Mal-estar na Modernidade (Companhia das Letras, 1993); e) Steven Connor: Cultura Pós-moderna
(Edições Loyola, 1993 ).

112
Capítulo 5

A CONSCIÊNCIA E A QUESTÃO
DO INCONSCIENTE

"No movimento da existência, a dicotomia consciente-inconsciente


é superada a cada instante: simplesmente vivemos em certo nível de compreensão
que se dilata ou se estreita." (Jan Casábius)

A diversidade de acepções do termo consciência

tema que vou tentar abordar em seguida é intrincado e um dos mais

O difíceis que existem no campo da psicologia e da filosofia. Quando pensei


em escrever sobre esse assunto, me lembrei de um artigo de Willian James,
no qual ele se perguntava se não era melhor retirar do repertório dos conceitos
usados em psicologia isso que chamamos consciência. Não me lembro do raciocínio
que o levou a esse tipo de conclusão interrogativa, mas talvez pensasse na duvidosa
utilidade desse termo tão usado em psicologia quanto mal definido e conceitualizado.
E não só é usado em psicologia; todas as ciências humanas o empregam, ficando
como uma idéia diretriz segundo a intenção do autor.
Hegel falava da consciência infeliz, referindo-se às peripécias do espírito em
seu processo de alienação e objetivação. 1 Os marxistas entendem que a consciência
de classe é fundamental para que a classe assalariada assuma seu projeto de liberação
das condições de exploração a que está sujeita. Alguns sociólogos qualificam a ideologia
como uma falsa consciência (Gabei). 2 Os espiritualistas, os esotéricos e os humanistas

113
O inquilino do imaginário

de todas as cores falam-nos de estágios na evolução da consciência pessoal e da


emergência de uma nova consciência na Era de Aquário.
Todos esses autores usam o termo segundo um significado geral, consoante a
proposta da tese que querem promover. Hegel o toma como sinônimo do espírito
(ou como um aspecto do espírito quando se torna ser para-si); os marxistas, quando
falam de consciência de classe, o entendem como conhecimento e como assunção
da responsabilidade pessoal enquanto membro de um grupo social com o qual se
compartilha o mesmo destino grupaJ.3 Os humanistas, espiritualistas e esotéricos,
semelhantes em alguns pontos, mas diferentes em outros, usam o termo consciência
ora como sinônimo de espírito (entendido como comportamento orientado por valores
ideais), ora como um estado da mente no processo de autoconhecimento e
conhecimento da realidade. É notório que o desenvolvimento da pessoa implica
uma tomada progressiva da autoconsciência. O indivíduo vai se tornando cada vez
mais ciente de suas necessidades, de seu potencial e de suas possibilidades. Sua
compreensão da responsabilidade como agente e artífice de seu mundo acompa-
nha igualmente o crescimento pessoal.
Desenvolver a autoconsciência não é liberar supostos impulsos reprimidos ou
lembrar experiências recalcadas. É a saída progressiva da ignorância, do olhar
ingênuo ou da atitude dogmática. Aliás, há uma consciência ingênua e uma
dogmática que correspondem a fases do desenvolvimento pessoal. A primeira
caracteriza a visão da criança; a segunda dá-se no adolescente e nos sujeitos que
se aferram a supostas verdades definitivas e indiscutíveis. Na etapa da consciência
crítica examinamos as coisas, questionando-nos sobre sua razão de ser e sua
problematicidade. No estágio da consciência dianética*, harmonizamos as diversas
contradições que habitualmente nos dividem (indivíduo-sociedade, razão-emoção,
egoísmo-solidariedade etc.).

Outras concepções da consciência

A consciência como realidade metafísica primordial


Faz já um tempo terminei de ler um livro em que seu autor, Swami Muktanada,
se propunha expor as linhas gerais de sua doutrina sobre o desenvolvimento espiritual
segundo sua própria experiência pelas vias da ioga.
Intitulava-se O Jogo da Consciência. Muktanada discorre longamente sobre
a arte da meditação, comentando os estágios que consegue alcançar a pessoa que
* Dianética deriva de dianóia, palavra grega que significa "mediante a inteligência ou espírito (de dia
=através e nous = inteligência, espírito). A consciência dianética é o quarto estágio no desenvolvimento
de si.

114
A consciência e a questão do inconsciente

segue esses ensinamentos. O que propõe é o domínio da mente, "o meio mais
valioso para encontrar Deus em nossa vida", nas suas palavras. Livro interessante
em muitos aspectos, sem dúvida.
Contudo, em nenhum momento seu autor faz algumas considerações que nos
elucidem sobre o que ele entende por consciência. "A mente é a forma perceptível
da Deusa, a Chita Kundalini. Todo o Universo tem chegado a existir por meio da
mente. A mente é a luz da consciência numa forma concentrada. A mente é uma
pulsação da energia divina consciente (a chitishakti, em língua sânscrita)." (Pág.
61, cap. sobre a mente.) Escrever um livro de mais de 400 páginas, ein que a
consciência (como atributo essencial de Deus e dos seres, incluindo o homem) é o
tema central, não deixa de ser instigante. Apenas nos surpreende que seu autor
não nos esclareça, sequer de uma maneira preliminar, sobre o sentido, ou os sentidos,
que dá ao termo consciência. Podemos inferi-lo ao longo de sua exposição: seria a
forma primordial da energia divina, que se manifesta de alguma maneira em todos
os seres 4 •
Certamente esse não seria o sentido que subscreveria um psicólogo; ou pelo
menos não é o sentido que teria no campo da psicologia. Nem sequer seria o
significado que lhe atribuiria um leigo quando usasse essa palavra.

A consciência como conhecimento potencial de realidades cada vez


mais abrangentes
Com o aparecimento da chamada psicologia transpessoal nestes últimos
vinte anos, que se propõe como objetivo precípuo o estudo dos estados alterados
da consciência, poderíamos abrigar a expectativa de termos conseguido um
esclarecimento sobre as acepções aceitáveis do vocábulo consciência no âmbito
acadêmico. Mas os teóricos desta nova área da psicologia não têm mostrado maior
interesse nesse tipo de questão. É certo que eles nos ensinaram muitas coisas
surpreendentes que acontecem nos estados alterados da consciência. As pesquisas
de Stanislaf Grof sobre os efeitos do LSD na exploração de "outros mundos" são
no mínimo incitantes e provocativas, bem mais ricas que aquelas mostradas por
Aldous Huxley quando fez suas experiências com mescalina, lá pelos anos 30.
Aprendemos com eles, graças às experiências psicodélicas, que os mistérios da
mente vão muito além do que a parapsicologia já tinha inventariado. E não apenas
nos mostraram o que esta classe de drogas provoca; pesquisaram também outros
temas, até então considerados terrenos reservados à religião e ao esoterismo
especulativo: os efeitos da meditação (ao estilo oriental) e do misticismo na
transformação da personalidade5 •
Ora, se tentarmos inferir o conceito comum que todos esses pesquisadores
têm da consciência, veremos que a tomam como sinônimo de mente ou como um
atributo variável dos processos psíquicos, que podem ir desde a hiperconsciência

115
O inquilino do imaginário

até as mais diversas formas do inconsciente (Kennet Ring, sintetizando a opinião


da maioria dos colegas de sua escola, chega a distinguir cinco tipos de in-
consciente: psicodinâmico- estudado pela psicanálise-, ontogenético, transin-
dividual, filo genético e extraterrestre (si c), cada um deles com seus cor-
respondentes fenômenos característicos. Esse atributo variável implica pelo
menos dois aspectos complementares: a) Conhecimento da realidade pessoal; b)
Percepção do acontecer psíquico (interno) correlativo ou prévio ao acontecer
externo (os eventos do mundo).
Essas duas acepções dos fenômenos conscientes são encontradas nos
psicólogos das mais diversas tendências doutrinárias; autores de outras áreas do
saber também compartilham essas duas idéias.
No fundo e nas próprias declarações dos promotores da psicologia
transpessoal está presente a velha idéia metafísica de que o homem é um
microcosmo que reproduz o macrocosmo, podendo então ampliar o campo da
consciência pessoal até o conhecimento "das primeiras e das últimas coisas",
superando as barreiras do espaço-tempo, da morte e do determinismo da
matéria. É o que mostrariam as experiências místicas e lisérgicas, prin-
cipalmente. Estes pesquisadores parecem descartar desde a partida que todas
as revelações obtidas nestes dois estados pudessem ser meras ilusões e miragens
da mente. Pelo contrário, acreditam que as revelações assim obtidas denunciam
a existência de mundos paralelos e de realidades últimas, até hoje apenas
freqüentadas por uns poucos eleitos. E não se tome essa última expressão
como uma ironia. Não preciso dizer que são poucas as pessoas que se engolfam
pelo misticismo e meditação, e ainda são menos os que já fizeram experiências
Iisérgicas, opiáceas, ou com qualquer substância alucinatória. É verdade que
há uma alteração do estado consciente que acontece todos os dias conosco: o
sono, cujas peculiaridades todos experimentam, embora poucos sejam os que
se apercebem do significado dos fenômenos nele presente (sonhos, fase
hinagógicas, fase hipnopômpica).
Este é um lado dos enfoques do assunto que nos ocupa. Há outros. Deixo de
lado o enfoque da Psicopatologia clássica, que toma a consciência como mero
epifenômeno da atividade psíquica, inerente ao estado de vigília, enfoque que figura
na maioria dos manuais desta disciplina (ein Karl Jaspers, Henry Ey, Alonso
Femandez, só para citar os de maior vulto).
Causa estranheza que os especialistas que escrevem sobre "perturbações da
consciência", em alguns quadros psiquiátricos (especialmente nas chamadas psicoses
tóxico-infecciosas), nunca se detenham em examinar o estatuto da consciência
segundo as três abordagens predominantes que existem sobre essa matéria: a
filosófica, a fenomenológica e aquela que costumam usar os psicólogos.

116
A consciência e a questão do inconsciente

].P. Sartre: a consciência como núcleo da existência, como puro


reflexo do ser e mera transcendência. Sua negação do inconsciente
Acho pertinente referir-me ainda à concepção sartriana da consciência.
É sabido que na ontologia fenomenológica de Sartre a consciência ocupa um
lugar central: constitui a característica principal do para-si (lembro ao leitor pouco
familiarizado com o texto sartriano que o para-si designa o homem, ou realidade
humana singular). Não é que a existência coincida apenas com a consciência;
excede-a, pois a existência é também facticidade, corpo, ser-para-outro.
Mas a consciência qualifica de tal maneira o ser da existência que termina
por tomá-la "o oco sempre futuro", do qual falava Paul Valéry referindo-se ao
homem.
Não preciso entrar nos detalhes da ontologia do filósofo. Lembro apenas que
distingue três regiões do ser:
• o ser em-si (l'être en-soi);
• o ser para-si (l'être pour-soi) e
• o ser para-outro (l'être pour-outrui). Só que estas três regiões do ser são
bem diferentes.
Observe-se que a própria qualificação ontológica do homem como ser para-
si insinua a prioridade da consciência na constituição deste ser: indica que não é
como os outros seres- as coisas, os entes naturais, em sua identidade inalterável.
É para-si, isto é, está a distância de si mesmo, de modo que pode aperceber-se
num movimento de recuo, numa sorte de desdobramento que lhe impede
perpetuamente qualquer identidade fechada, que seria pura coincidência consigo.
O ser para-si já invoca uma dualidade ontológica: sou para-mim (consciência que
se apercebe a si mesma) na mesma medida em que me percebo separado do
outro; separado e habilitado, pois o outro (os demais seres) me condiciona e me
configura na própria trama de minha existência.
O ser em-si, em contraste com o para-si, é pura coincidência, absoluta identidade
(a pedra é simplesmente pedra, a árvore é apenas árvore, sem nenhuma possibilidade
de serem outra coisa). O para-si, como consciência, não o é propriamente; é mero
reflexo do ser, é uma tentativa perpétua de ser, sem que jamais o consiga. O leitor
atento pode argumentar: mas pelo menos somos no que já fomos, no passado; pelo
menos somos enquanto seres corporais, pois temos um corpo.
Sartre adianta-se e coloca este argumento: sim, somos nosso passado e nosso
corpo, porém o somos ao modo de não sê-lo. O passado já não é, e o corpo pertence
mais à região do em-si: nós tomamos consciência de sua existência, nós o usamos,
nos sujeitamos a seus determinismos, mas permanecemos a certa distância dele.
O filósofo parte da idéia husserliana Gá formulada antes por Franz Brentano)
da intencionalidade da consciência: a consciência está sempre direcionada para,

117
O inquilino do imaginário

é consciência de algo que ela não é. Isso significa que a transcendência é constitutiva
da consciência. Lemos em L'êntre et le Néant.
"Toda consciência é posicional enquanto se transcende para alcançar um
objeto e se esgota nessa posição mesma: tudo quanto há de intenção em minha
consciência atual está dirigido para o exterior: todas as minhas atividades judicativas
e práticas, toda a minha afetividade do momento se transcendem, apontam para
um objeto e nele se absorvem." (Texto levemente modificado, introd.) 6
Cabe ressaltar que a intencionalidade não deve ser entendida como propósito,
senão como intenção: como aquilo que tende para. Essa é, e é bom enfatizar este
ponto, uma das teses mais interessantes da fenomenologia, pois termina com a
velha idéia de que a consciência (ou a mente) é algo inteiramente fechado nos
intramuros de um sujeito, algo meramente interior, separado do exterior por uma
parede invisível, mas em última instância, intransponível. Ensina-nos que o homem,
enquanto ser consciente, está completamente voltado para o mundo, isto é, é um
ser-no-mundo.
Essa tese sartriana, como se pode apreciar, não é precisamente original; mas
sua segunda tese nos diz algo novo: a consciência não tem nada de substancial, é
uma 'pura aparência', no sentido de que apenas existe à medida que aparece. Mas
precisamente por ser pura aparência, por ser um vazio total Gá que o mundo inteiro
está fora dela), precisamente por essa identidade nela da aparência e da existência
pode ser considerada como o absoluto. Dessa identidade entre consciência e
existência tirará Sartre sua controvertida tese que postula a origem do nada no
seio da existência, chegando mesmo a assimilar ambos os fenômenos: o para si
nadifica e nadifica-se (isto é, gera o nada e toma-se nada).
"É uma paixão inútil."
O ser de um lado; a existência, mero reflexo do ser, tentando inutilmente
alcançar ao menos o pórtico do ser de outro. Estes são os dois absolutos.
Tendo a existência como atributo nuclear a consciência, Sartre nega que
possa haver isso que a psicanálise chama e qualifica como o inconsciente. Tudo o
que possa acontecer a título de fenômeno psíquico só pode ser consciente. Desejos,
representações, sentimentos, impulsos, fantasias, aparecem como formas de relação
do para-si na sua tentativa de alcançar o em-si (o ser do qual é mero reflexo e
negação). Então não há um recalque dessas formas de experiência psíquica? Pode
haver uma repressão de impulsos, sentimentos, desejos, mas isso não significa que
fiquem num hipotético lugar chamado inconsciente, esperando o momento oportuno
para manifestar-se, descuido originado na esfera do ego, o que explicaria os lapsos,
as histórias simbólicas do sono e outras expressões do inconsciente, segundo a
tese freudiana.
Para entender melhor a posição sartriana, acho oportuno referir-me aos
mecanismos de defesa do ego, que, na explicação freudiana, permitem-lhe um

118
A consciência e a questão do inconsciente

alívio da ansiedade, da frustração e do conflito. Todos eles são muito conhecidos


para mencioná-los aqui. Lembrarei apenas os mecanismos de racionalização e de
formação reativa, talvez os mais usados e os mais observáveis. Como todos os
outros, estes mecanismos seriam inconscientes.
É coisa por demais sabida, quase todos nos justificamos por nossos erros,
fracassos e responsabilidades com desculpas que nos parecem verdadeiras, quando
não passam de simples mentiras e disfarces para manter nossa imagem perante os
outros. É o caso da dama casada que cai na tentação dos encantos de ter um
amante; a menos que seja uma mulher sem maiores escrúpulos, arranjar-se-á para
encontrar uma escusa suficiente, que lhe proporcione um álibi razoável para fazer
o que está fazendo. Dirá, por exemplo: "Bom, ele não atende minhas necessidades
de carinho e de afago físico, já não liga mais para mim, o que poderia fazer? Até
quando ia me queixar de falta de sexo?" Assim deixará tranqüila sua consciência,
evitando a culpa e o conflito. Ou em outra hipótese ainda mais freqüente: o sujeito
fracassa num exame, não passa nas provas de admissão para ocupar um cargo.
Em vez de pensar que seu preparo foi insuficiente ou que havia outras pessoas
mais competentes, inventa a desculpa de que os escolhidos contavam com a
cumplicidade dos examinadores, ou que a prova foi propositadamente capciosa.
Em todas estas racionalizações veríamos simples má-fé. A má-fé é, na
linguagem sartriana, um auto-engano. Sem dúvida, o sujeito não quer assumir
sua responsabilidade do fato, quer tranqüilizar sua frustração e seu conflito, mas
está se justificando para ficar limpo. Forma parte de inautenticidade este tipo de
truques, isso de não querer admitir a parte que nos corresponde no erro e no
malogro. Corresponde também a essa capacidade de distanciar-se de si e de
negar o ser que se configura em cada ato ou ação, própria do para-si. Seria este
mecanismo algo inconsciente? Não. Não é também algo deliberado nem
reflexivamente pensado pelo sujeito para ficar por cima. O sujeito acha legítimo,
sinceramente, este tipo de truques. Certo, nem todos levam o engano a esse
ponto. Muitos sabem que estão mentindo; mantêm a desculpa para os outros
para assim preservar a imagem. Nesse caso não é má-fé; é simples mentira. Ele
apenas acredita na sua jogada, nem sempre completamente, mas lhe resulta
mais fácil inclinar-se para o lado do álibi.
Ainda entendemos melhor o conceito de má-fé lembrando-nos de que o para-
si, a existência humana, é transcendência (perpétuo ultrapassar-se a si mesmo,
consciência intencional de objetos que lhe impedem a coincidência estática consigo)
e facticidade. Pela facticidade nos constituímos no que somos de fato. O corpo
que nós somos, o passado que já vivemos, as obras que realizamos: tudo isto se
designa como a facticidade. Nunca somos apenas aquilo que nos configura com
facticidade, nem somos pura transcendência. Alguém pode acusar a dama já citada
de adúltera, ou dizer de você que é um trapaceiro (por algum fato nada santinho já
protagonizado por você). É provável que você, tanto como aquela dama, não se

119
O inquilino do imaginário

reconheça nessa acusação, pois apela para a transcendência e é ou pode ser


igualmente pessoa honesta.
Os freudianos costumam comentar um bom número destes mecanismos. Outro
muito conhecido é o deformação reativa, que consiste em não reconhecer um
impulso ou sentimento em si mesmo expressando o contrário. Assim aconteceria
com o obsessivo de limpeza, que tenta neutralizar seu sentimento de sujeira (de
caráter moral) apelando para ritos de limpeza. Algo similar dar-se-ia no indivíduo
que condena com enfática aversão a homossexualidade; seria ele quem experimenta
um impulso inconsciente dessa índole.
Esses fenômenos acontecem de fato. O único ponto questionável é se têm um
caráter inconsciente. É questionável também se essa é a única explicação plausível
para esse tipo de reação. Será verdade que os obsessivos se sentem moralmente
sujos (pelo complexo de Édipo, diria um freudiano, ou por qualquer outro desejo
censurado pelo superego)? Não será que temem contaminar-se, sendo esta a causa
de um ideal rígido de pureza? Podemos admitir que o ato reiterado de lavar-se seja
um ato simbólico, que revela o sentimento de sujeira pela transgressão de uma norma
moral; ainda aqui fica a dúvida: será que o sujeito é inconsciente de sua culpa? Não
parece ser assim. Quando tratamos indivíduos com esse sintoma, logo percebemos
que têm consciência das mais variadas culpas, pois o que os caracteriza é uma
rigidez no plano do certo e do errado. Atenuam simplesmente a ansiedade que
acompanha esta autocensura apelando para atos simbólicos, sequer de maneira
momentânea (como poderiam apelar para outros atos rituais: rezar, repetir
determinados gestos, fazer inovações, acender velas para santos e padroeiras).
Já saindo dos argumentos sartrianos, quero ir um pouco mais longe. Menciono
propositalmente o problema dos obsessivos, cujas idéias e atos compulsivos servem
amiúde para mostrar o suposto império do inconsciente no psiquismo humano. Deve
haver um complexo inconsciente para que um indivíduo sinta-se compelido a efetuar
ritos repetitivos que ele próprio não consegue aprovar completamente: diz-se que
são ego-assintônicos. Esse é um dos argumentos dos psicanalistas. Será mesmo que
precisamos levantar essa hipótese? Por acaso não estamos continuamente divididos
nas mais diversas áreas do mundo pessoal? Por acaso não estamos freqüentemente
fazendo o que NÃO queremos e NÃO fazendo o que queremos? Sendo o existente
(o para-si, como prefere o filósofo) um ente dividido ontologicamente (por um lado,
eu diria, natureza, e por outro cultura-espírito), não resulta fácil para ninguém superar
e menos ainda eliminar completamente estas cisões e contradições. Sartre afirma
que a má-fé é constitutiva do existente, pois é tanto facticidade (ser em-si, ao modo
de não sê-lo) como pura consciência deslizante e evanescente.
Sim, diriam os freudianos, essas divisões e contradições são inevitáveis, mas
no caso do obsessivo são compulsivas e no mínimo incômodas. Nas outras nos
acomodamos, como entender isso?

120
A consciência e a questão do inconsciente

É verdade que lhe resultam incômodas, que nos casos mais graves procura
um terapeuta para aliviá-lo de suas idéias e compulsões. Mas não nos esqueçamos
de que há um fator de base: a ansiedade. E um outro não menos importante: a
estrutura de sua personalidade. Ele é um sujeito rígido, controlado e controlador,
programado, egóico (com um ideal de si bem acima da média, embora se possa
julgar negativamente nos períodos de crise). Nega assim os aspectos mais sadios
e naturais da vida: a espontaneidade e os impulsos, que nele geralmente são
fortes. A verdade é que nunca aprendeu a conviver tranqüilamente com os
aspectos naturais da vida. Foi domesticado precocemente na educação familiar,
interiorizando normas severas. É desta perspectiva que temos de compreender
seus sintomas.
Sendo controlado, vive na vigilância de si. É o guardião de si mesmo. Foi
condicionado para isso e fez desses condicionamentos seu projeto de vida. Não
tendo, aliás, desenvolvido nunca uma verdadeira racionalidade, no sentido da
autocompreensão, rara vez chega a entender o que lhe acontece; simplesmente vive
sua divisão que surge como pugna entre as necessidades naturais e o ideal de si.
Viver a divisão. Isso não significa que seja inconsciente; apenas não chega a
compreender como é a montagem dinâmica de suas vivências. É claro, não supera
esta divisão quando fica sabendo como foi que se programou. Para tanto terá de
fazer todo um trabalho de questionamento, de reformulação e de expressão de
suas necessidades, por exemplo. 7•8

A importância da consciência entendida como


autocompreensão da existência

A autoconsciência é um dos atributos mais importantes do ser humano.


Existem outros atributos igualmente importantes, como são sua capacidade para
transformar a realidade mediante o trabalho e sua capacidade para codificar a
experiência mediante a linguagem. Aliás, a autoconsciência está em estreita
dependência do trabalho, ou melhor, da práxis e da linguagem. Podemos afirmar
que sem uma práxis social e sem um código semiótico o homem não se tomaria
consciente de si. Ou permaneceria num nível simplesmente animal, num nível de
protoconsciência. Podemos postular que os animais superiores, em particular os
antropóides, alcançaram o estágio protoconsciente, o qual pode ser caracterizado
como uma forma muito elementar de relação com o espaço ecológico: o animal -
vive mergulhado na natureza, numa relação de imediatez com seu contorno.
Percebe o que acontece e seu espaço natural sempre em relação à sua ne-
cessidade de manutenção e sobrevivência. Orientado pelo próprio repertório

121
O inquilino do imaginário

genético de sua espécie, é capaz de atender às suas necessidades fisiológicas e


enfrentar as exigências de coabitação com outros animais, de sua própria espécie
ou não.
A protoconsciência ainda não implica uma autoconsciência. É apenas esboço
primitivo. Na autoconsciência mais elementar, que nós denominamos consCiência
ingênua ou embrionária, o indivíduo deixa de ter uma relação de imediatez com seu
contorno, ingressa na temporalização e esboça um eu como sujeito e agente da
experiência.
N<1 homem verificamos uma evolução da consciência.
Tanto se consideramos o homem em seu sentido genérico, como simples
espécie, como se o consideramos como indivíduo, constatamos que apresenta um
desenvolvimento de sua consciência. Insistimos: este desenvolvimento não é
autônomo, não é espontâneo ou decorrente de um processo maturacional. É
subsidiário da práxis e do caráter social da condição humana. Se o homem perde,
por qualquer circunstância, sua inserção social, esta evolução não acontece. É o
que constatamos no caso das crianças-lobos, que ficam presas a seu Umwelf. A
evolução também se vê seriamente danificada ou inibida quando a práxis social é
muito pobre e limitante, como mostram os casos de crianças carentes e sociocul-
turalmente privadas.
Avaliamos o grau de desenvolvimento de um indivíduo segundo diversos
indicadores correspondentes a diferentes áreas de sua expressão. O desenvolvimento
é um fenômeno total, embora desigual, isto é, apresenta desníveis segundo as áreas.
Na esfera biológica, consideramos o grau de desenvolvimento segundo critérios de
desempenho: sensoperceptivo, motor, lingüístico, intelectual. Na esfera social, o
avaliamos de acordo com as modalidades de relacionamento interpessoal que
caracterizam a conduta do sujeito. Na esfera estritamente pessoal, consideramos o
grau de autoconsciência. No âmbito da relação sujeito-objeto, observamos como o
indivíduo se define em termos de ter e afinar. (Como se relaciona com as coisas?
Como se afina com os objetos ideais, simbólicos, sociais?) Essas quatro esferas
influenciam a autoconsciência, mas são igualmente influenciadas por ela: existe uma
interação mútua, com predominância variável de uma e de outra.
Um bom potencial intelectual, uma atitude de abertura franca para com o
próximo, certo sentido lúdico com respeito aos objetos, tudo isso influencia e traduz
formas de autoconsciência.
Quando pensamos o desenvolvimento como um processo que visa à realização
do indivíduo, consideramos o grau de autoconsciência alcançado como um bom
indicador do nível de desenvolvimento em que se encontra o sujeito.
Alguns manuais de economia política afirmam que a falta de consciência de
classe em vastos setores da classe operária é um obstáculo muito sério para sua
organização e para sua conseqüente luta em prol de sua liberação.

122
A consciência e a questão do inconsciente

Os manuais de psicopatologia costumam dedicar um capítulo ao que qualificam


como "perturbações da consciência", informando que elas são próprias das psicoses
tóxico-infecciosas, da epilepsia e de certos episódios histéricos. Informam-nos que
os sujeitos com consciência alterada perdem a orientação espaço-temporal,
apresentam pensamento incoerente, raciocínio sem nexo, agitação emocional e
perda das funções mnemônicas. É dizer: a perturbação da consciência implica
uma alteração profunda de todas as funções mentais.
Afinal, que entendemos por consciência? O que queremos dizer quando
qualificamos um fenômeno X de consciente (ou de inconsciente)?

As manifestações da consciência e do ser consciente

A consciência como conhecimento


Já a etimologia latina do vocábulo dá-nos uma pista nesta direção. Cons-
cientia é saber acerca de algo. Quando digo que estou consciente de uma
determinada situação, estou afirmando que sei o que está acontecendo numa certa
área. Mas saber não é unicamente possuir algumas informações e dados. Esse é
um primeiro grau do saber. Quando uma criança de 3 anos aparece nua diante das
visitas na sala da casa, sua mãe provavelmente a repreende, embora as visitas
achem esse quadro bastante engraçado e natural, pois o justificam como "seu
desconhecimento das regras sociais". Depois de repetidas repreensões, a criança
saberá muito bem que não pode andar nua em certas circunstâncias, e seguramente
aos 5 anos experimentará vergonha se for surpreendida nua na sala. Dizemos
então que ela interiorizou o pudor: ela sabe que é feio mostrar-se dessa maneira
perante certas pessoas.
Não obstante, o conhecimento que a criança tem dessa regra é ainda elementar.
É provável que aprenda o fundo dessa proibição apenas após os 10 anos, quando
entenda que há uma relação entre sexualidade e nudez, ou quando compreenda
que há uma zona formal-pública e um zona informal-privada. Seu conhecimento
preliminar sobre "o estar nu e ser visto" gera um sentimento que ela experimenta
no nível consciente como vergonha. Na adolescência, uma vez que o indivíduo já
entende a relação entre eros e nudez, aceitará essa norma como algo conveniente
e de pessoas bem-educadas ou civilizadas.
Contudo, ainda é possível que ele adquira novos conhecimentos sobre normas
e mandatos sociais. É possível que ele estude alguma coisa sobre a origem dos
sentimentos morais, estudos que o levem a questionar uma série de valores que até
então considerou como incontestáveis e certos.

123
O inquilino do imaginário

Aí pode entender que muitos mandatos têm um caráter coercitivo e implicam


um código de valores. Estimulado por estes conhecimentos e pelas discussões que
costuma manter éom alguns amigos, é provável que decida ter algumas experiências
de nudez pública, do tipo campo de nudismo. Tomada essa iniciativa, baseado no
pressuposto de que a nudez bem entendida é salutar, é verossímil que ele se encontre
com uma surpresa: perceba que ainda sente vergonha nesta situação. Perceberá
que mudaram seus conceitos, mas não o sentimento. Agora não é insólito que
entre em conflito. De qualquer forma, aprendeu algo que já havia acontecido com
ele de um modo talvez menos evidente: aprendeu que é mais fácil mudar os
conceitos que os sentimentos.
E esse processo pode continuar; podemos imaginar algumas possibilidades
para esse caso. O fato é que há uma estreita relação entre tomada de consciência
e conhecimento; porém, conhecimento e consciência são fenômenos diferentes,
embora estreitamente relacionados; tão relacionados que freqüentemente os
tomamos como iguais.
Podemos dizer que o conhecimento é mais conceitual e operatório. É uma
forma de organização da realidade interna e externa em termos de um saber social.
A consciência é um fenômeno vivencial e afetivo. É uma forma de organizar-se a
experiência em termos privados e individuais. As duas esferas influem-se
reciprocamente em grau variável; o conhecimento permite organizar e reorganizar
determinadas formas de consciência; a consciência obstrui ou facilita certos
conhecimentos.
No caso supracitado, o sujeito pode parar sua tentativa de mudança. Se sua
experiência no campo de nudismo resultou-lhe muito chocante, é bem provável
que ele reafirme um posicionamento menos liberal, racionalizando sua atitude como
uma fórmula que lhe permite superar sua dissonância cognitiva.

A consciência como compreensão (de si e do outro)


A apreensão de nós na situação é que denominamos compreensão. Essa é
justamente a característica precípua da consciência. Ser consciente é saber
localizar-se na trama de relações que constituam a situação, articulando nossa
conduta de um modo conseqüente.
O homem é um ser-no-mundo; e o mundo manifesta-se não de um modo abstrato,
como um espaço indeterminado; mostra-se como uma configuração concreta,
constituída por entes de variada significação. Como indivíduo, emeJjo num campo
específico constituído por pessoas, coisas e objetos. Atuo num determinado lugar,
sempre. É o que denominamos situação (do latim, sit =lugar, e ação).
A situação não é algo puramente objetivo; a situação sempre está constituída
por pessoas, de modo que se configura segundo fatores subjetivos também. Digamos
que é o produto de fatores tanto objetivos como subjetivos.

124
A consciência e a questão do inconsciente

A compreensão é primeiro de caráter intuitivo. A intuição é a captação


imediata das relações existentes entre os fenômenos ou objetos sem mediação
do raciocínio. Posteriormente, a compreensão toma-se mais complexa, mais rica
e mais racional. Tudo de um modo gradual. No desenvolvimento da criança
observamos como ela vai adquirindo uma compreensão mais aprimorada dos
diversos níveis do real.
Para Heidegger, a compreensão é um atributo fundamental do Dasein,
mediante a qual a existência se ultrapassa em direção a suas possibilidades;
apreendo-me como o existente que eu sou num movimento de transcendência.
Estou aqui, perto da janela do apartamento. É uma sala espaçosa, posso
movimentar-me de um lado para outro com liberdade; gosto de caminhar, mexer-
me quando estou pensando num tema que me exige reflexão. Há poucos móveis,
apenas o essencial.
Não gosto de espaços cheios nem pequenos; prefiro salas que me dêem a
sensação de territórios em aberto. Os móveis são coisas demasiado estáticas, não
se afinam com meu senso de mutação. Pela janela observo uma figura que se
desloca devagar. Parece uma velha que caminha com passos cansados. Lembro-
me agora de que Rilke menciona por aí uma velha cansada. Parece-me que é nos
Cadernos de Laurid Malte. O livro está aí, na prateleira da esquerda do armário,
onde coloco a literatura alemã. Vou procurar esse texto. Não é já pela senhora
cansada, lá embaixo- Rilke é um autor em cujo universo costumo hospedar-me
muito à vontade. Procuro Os Cadernos de Laurid Malte. É um livro de capa
branca. Não consigo localizá-lo. Será que o deixei num outro lugar? Há outros
livros de lombada branca. Leio; não são de Rilke. Ah, sim, agora lembro; deixei-o
no quarto. A semana passada o levei para lá com a intenção de degustar uma
passagem. Gosto de reler os textos que traduzem meu modo de enxergar o mundo,
ou que são um desafio. Há em Rilke uma vaga nostalgia de instantes que se vivem
na penumbra do crepúsculo e das palavras que ficam impronunciadas. É como se
em sonhos tentássemos dizer o que durante a vigília não conseguimos pronunciar.
Vou procurar o texto. Está na beira da cama, no chão. Eu o pego. O texto que me
interessa está na página 120? Procuro. Não consigo entrar no texto. O telefone
me solicita. Alguém quer comunicar-se. Volto à sala. Pois não?
Quis mostrar com o quadro acima como um sujeito vive numa situação
qualquer em seu cotidiano. Aí, como em outro lugar imaginável, ele apreende as
relações, mexe-se, mede, aprecia, julga, pensa, lembra, se afina. Isto é, aí o Dase in
compreende e se compreende.
Podemos ver que o menor movimento do sujeito implica um ultrapassar o
dado para colocá-lo em suas relações, em direção à sua transcendência. Vemos
como a realidade, o ser das coisas, nos solicita e/ou nos obstaculiza. Vemos
como estamos num permanente diálogo com nosso horizonte. O livro de Rilke é

125
O inquilino do imaginário

um objeto, mas também um universo-outro, e um convite para nossa auto-


revelação: ele me traduz e me revela. Gosto de hospedar-me nele. Gostar significa
afinar-se com algo. No afinar-me, encontro meu lugar.
A compreensão permite ao indivíduo situar-se. Depende do grau de
desenvolvimento da consciência seu correto modo de situar-se. A criança situa-se
em seu mundo infantil, de acordo com seu nível. Irá adquirindo novas formas de
compreensão segundo as exigências sociais e da práxis. Na infância vivemos num
grupo de relações concretas, de caráter basicamente sensoperceptivo; as operações
abstratas são bastante elementares, de tipo aritmético inicial. Na adolescência
entramos num orbe de coisas bem mais complicadas. O sujeito pode relacionar-se
com os objetos de um modo puramente abstrato, se for o caso; em termos de um
tipo de pensamento que Piaget denomina de hipotético-dedutivo. É o mundo da
razão pura; é claro que esse tipo de mundo pertence apenas ao reino das matemáticas
e da lógica. Na vida real, cotidiana, somos habitantes de um universo concreto.
No cotidiano, estamos inseridos numa trama complexa de exigências de todo
tipo, próprias tanto do meio externo como do círculo interno, subjetivo. Podemos
refugiar-nos em devaneios e em especulações ocasionais; é o que acontece com
freqüência na maioria das pessoas. Contudo, a realidade circundante solicita-nos a
cada instante, sem trégua. Só se nosso ofício exige um alto grau de atividade
abstrativa, se formos engenheiros, matemáticos, filósofos, pesquisadores teóricos,
é que terminamos por ter um contato menos corpo-a-corpo com o concreto.
É claro que não se deve supor que existe uma dissociação entre o abstrato e o
concreto: há sempre uma íntima relação. O que acontece é que em algumas pessoas
e em algumas circunstâncias, em qualquer indivíduo, predomina um ou outro aspecto.
O pensamento implica já algum grau de abstração, por muito elementar que esse
seja. No pensamento reproduzimos em termos mentais aspectos diversos da realidade:
o pensamento, em essência, é a realidade tal como é compreendida pelo sujeito.
Quando me defronto com um evento particular, de caráter psicológico complexo,
tento estabelecer os nexos que tal evento implica. "Gertrudes, minha amiga, se suicidou
ontem, após um mês da morte de seu marido." Esse é o evento. Surpresa?
Provavelmente não; sabia quanto havia abalado a ela a morte do marido. Aprendi
pela experiência que as perdas desse tipo são muito dolorosas, que a morte de um
ser amado implica a morte de uma parte de nós mesmos. Sabia que o marido ocupava
um espaço enorme no mundo de Gertrudes, talvez um espaço excessivo; com seu
desaparecimento, afundou-se no nada um território muito grande de seu universo
pessoal. Gertrudes ficou sem sustento, sem pontos certos de ancoragem; aliás, ela
nunca conseguiu lidar adequadamente com o sofrimento; até uma pequena dose de
sofrimento tendia a apavorá-la. Havia nela uma fragilidade física que se associava a
uma fragilidade espiritual. É doloroso, compreendo sua decisão.
Como se vê, a consciência entendida coino compreensão dá-nos uma boa via
para tomar inteligível sua teorização. Nesta perspectiva podemos estabelecer a

126
A consciência e a questão do inconsciente

modalidade dominante de evolução da consciência, tal como ela acontece na maioria


dos indivíduos. Em outra ocasião tentaremos mostrar como opera a compreensão
segundo os diversos estágios do desenvolvimento da consciência.

A consciência como o centro luminoso da existência, como auto-


iluminação do Dasein
É uma experiência cotidiana: periodicamente se extingue nossa consciência
quando dormimos. Durante o dormir, acende-se intermitentemente, de um modo
ainda bastante enigmático para nós, enquanto sonhamos.
É também uma experiência diária: existe um período de penumbra, de
apagamento gradual, até entrar na obscuridão total do sono.
Ainda mais: verificamos que durante a vigília existem flutuações da
consciência. Há períodos em que estamos mais despertos, mais vigilantes; parece
que nesses períodos enxergamos os objetos e seus nexos com mais rapidez e
clareza; reagimos e atuamos de um modo mais conexo e aceso. Há períodos de
menor vigília, como se nossa mente ainda não estivesse plenamente acordada;
nesse lapso, parece que enxergamos as coisas de uma maneira mais vagarosa e
distante.
Estas flutuações da consciência são normais; não derivam de fatores
sintomáticos. Existem flutuações muito acentuadas que derivam ou são efeitos
de substâncias tóxicas, que implicam a obnubilação da consciência. É o que
acontece nas chamadas psicoses tóxico-infecciosas.
O que estamos tentando mostrar? Que a existência se manifesta como
um poder de auto-iluminação, de si e do mundo que ela supõe; é isto o que
denominamos como consciência. Dormindo, desligamo-nos do mundo externo
e permanecemos na obscuridão. Acordados, temos o poder de iluminar os
objetos e seus variados nexos, de maneira diversa e segundo graus diferentes
de clareza.
As metáforas da linguagem, usadas na fala corriqueira, associam luz a
compreensão, e obscuridade a ignorância. Quando compreendemos plenamente
um fenômeno, o enxergamos com clareza meridiana - como a luz do meio-dia.
Quando não entendemos uma proposição, dizemos que ela é obscura como las
fauces del jaguar. Heráclito foi chamado de obscuro por aqueles que não o
entendiam; ele iluminava o ser da realidade de uma perspectiva tão diferente do
senso habitual que boa parte de seus contemporâneos não conseguiam situar-se
em sua perspectiva; e, claro, eles não entendiam. A maioria dos indivíduos situa-
se em miradouros bastante comuns; inclusive acreditam que esse belveder é o
único válido de ver as coisas. Quando alguém lhes mostra as outras faces de um
fenômeno, ficam surpresos. É que para ver as outras faces precisavam mudar
de perspectiva.

127
O inquilino do imaginário

Heidegger ensina que o Dasein revela o ser e que o homem é a clareira do


ser. Pelo homem, tudo o que existe se ilumina; sem a presença do homem, os
entes permaneceriam em sua eterna opacidade. 10

A Consciência e o Inconsciente

Tentamos oferecer alguns pontos para a compreensão de um dos temas mais


agrestes da psicologia. É um terreno em que pouquíssimos transitam à vontade.
Apenas certos filósofos tentaram proporcionar-nos algumas chaves de acesso a
esse difícil tema. Aqui apontamos apenas algumas veredas. Alguns psicólogos já
decretaram a expulsão da palavra consciência ou questionaram sua validade em
nosso campo. William James considerava esse conceito como uma pedrinha
incômoda no olho do psicólogo; isso 90 anos atrás. Será conveniente interditar
esse vocábulo no campo da psicologia? Uma coisa é clara: se o expulsarmos de
nosso reino, teremos também de expulsar um outro conceito de ampla difusão na
psicologia contemporânea, o conceito de inconsciente. É um tema que merece
nossa reflexão.
Com as devidas precauções, considero válido o conceito da consciência
nos sentidos apontados anteriormente. Esse conceito não tem um caráter
explicativo, pois não causa nada nem determina nada. É só a resultante do
complexo funcionamento do psiquismo humano, que encontra no movimento da
existência, com as características que lhe são inerentes, seu fundamento e seu
sentido; na existência e, convém enfatizar este ponto, no funcionamento biológico
e cerebral (fator nem sempre devidamente considerado por alguns seguidores
do pensamento existencial).
Entendo que o conceito de inconsciente pode ser usado como a contrapartida
da consciência. Corresponderia ao lado negativo das características que
postulamos para a consciênci.a. Relaciona-se:
a) com uma falta de autocompreensão (nem sempre o sujeito sabe discernir
os motivos que o induzem a certas ações e condutas);
b) com a ignorância ou o não-discernimento do acontecer interno e externo,
originado seja por alienação, seja por falta de informação;
c) com um grau variável de obnubilação da existência, com a mo-
vimentação no plano dos simples automatismos (como caminhar) ou
com o uso de programações já estabelecidas, sem uma atenção espe-
cial (que é o caso do uso da linguagem corriqueira, em que somos mais
falados, pelo uso irreflexivo de um código, que agentes de um discurso);
é a tagaralice;

128
A consciência e a questão do inconsciente

d) em sentido moral, com o carecer de suficiente sentido de responsabilidade


e com o não se importar devidamente com as conseqüências da própria
atuação.
Nem preciso indicar que nenhum desses quatro modos de entender o
inconsciente corresponde à concepção freudiana. Para Freud, o inconsciente era
uma estrutura mental que determinava tanto a personalidade quanto o
comportamento do sujeito: sua forma de pensar e de agir, seus sentimentos e suas
escolhas, além de outros aspectos. Correspondia ao recalcado. É uma concepção
extremadamente determinista, que reduz a pessoa a uma espécie de boneco
programado, movido por desejos e impulsos: é o famoso Id. ·

As características fenomenológicas da consciência


Desde uma ótica (outra vez a metáfora da luz) fenomenológica, assinalam-se
algumas características da consciência, a saber:
a) a intencionalidade;
b) a subjetividade;
c) a temporalidade.
Como já comentei em páginas anteriores, a intencionalidade reporta-
se ao caráter sempre referencial da consciência. Sempre somos cons-
cientes de algo que está além da consciência, fora dela. Tudo o que men-
ciona a consciência está no mundo, embora seja um acontecimento privado,
íntimo.
Lembro-me neste instante de quando completei 15 anos; este evento é um
fato que aconteceu num determinado lugar, numa data X. Imagino a reação que
você terá quando ler este artigo; essa cena hipotética acontecerá segundo certas
coordenadas de espaço-tempo, num lugar e num momento concreto. O conceito
de intencionalidade desaloja da consciência qualquer "conteúdo". Na consciência
não existe conteúdo, pois ela não é um receptáculo. Falamos apenas em sentido
figurado de conteúdos para referirmo-nos aos objetos que num momento dado são
apreendidos conscientemente.
Assim, pois, tudo o que menciona a consciência está ali, fora, no mundo.
Lembranças, fantasias, pensamento, sensopercepção. O que qualificamos de
"mundo interno" não pode ser entendido como um espaço hermético, diferente do
espaço externo. Meu mundo interno é a experiência subjetiva do mundo, o que me
acontece no universo mental, do qual eu sou a primeira e permanente testemunha
e seu supremo protagonista e artífice. O interno está em vital relação com o externo:
são duas faces de um mesmo fenômeno.

129
O inquilino do imaginário

Foi Edmund Husserl, o fundador da fenomenologia, quem expôs esta


característica da consciência (1913) de um modo rigoroso, embora encontremos
essa idéia já em Franz Brentano em sua obra A Psicologia Desde o Ponto de
Vista Empírico (1974). Essa idéia husserliana de caráter intencional ou genitivo
da consciência vai de encontro à tese heideggeriana de que o "homem é um ser no
mundo".
É certo que Heidegger não começa caracterizando o Dasein como cons-
ciência (como faz Sartre na sua ontologia). Simplesmente verifica o que sua análise
fenomenológica lhe permite afirmar: desde sua aparição como existente, o Das e in
descobre-se como um ser lançado no mundo, em estado de derrelição e aberto às
suas possibilidades, definindo-se pelo cuidado e pela temporalização, pela
compreensão e pela linguagem. Tudo isso inserido num contexto de convívio. Em
Heidegger, a consciência não é considerada como a síntese da atividade psíquica-
como a consideram muitos psicólogos-, nem como principal atributo do ser humano.
Aparece como apelo que se formula o próprio Dasein para cumprir sua vocação
mais autêntica. É o que em psicologia denominamos como a voz da consciência
que nos alerta, nos momentos mais lúcidos, que estamos nos desencaminhando,
traindo assim as nossas possibilidades verdadeiras. É a percepção da nossa
queda no mundo, na alienação que essa queda implica e o apelo do próprio ser
para superar essa queda de maneira sempre provisória.

A subjetividade e temporalidade da consciência


Pela consciência, o acontecer subjetivo adquire o caráter de imediatamente
vivido. O que acontece animicamente a outrem é uma inferência ou uma
comunicação. Se João está triste, posso inferi-lo baseado em certas condutas e
atitudes dele (olhar e tom de voz apagados, desinteresse relativo pelas coisas,
lentidão geral), ou porque ele próprio me comunica seu estado mental. Mas do que
a mim me acontece sou ciente de modo imediato, direto. É certo que há determinadas
vivências cujo significado me deixa confuso ou cuja ambigüidade me desconcerta,
mas inclusive isso o vivo dessa maneira. Nem tudo do que sou consciente o
compreendo em sua complexidade e razão.
Pela consciência, o sujeito vive num espaço privado, único e secreto. Quando
na linguagem corriqueira qualificamos uma manifestação como subjetiva, estamos
aludindo a seu caráter eminentemente pessoal e único. O subjetivo costuma
contrapor-se ao objetivo, que é como aquilo claramente perceptível por qualquer
observador. O subjetivo pertence à esfera do privado, aquilo que se subtrai do
domínio público. Existem recintos e lugares privados, isto é, acessíveis
unicamente a um número qualificado de pessoas. Não há nada mais privado
que o espaço interno da consciência: a única pessoa que tem acesso a ele sou
eu mesmo. E embora eu possa compartilhar o que me acontece com quem

130
A consciência e a questão do inconsciente

quiser, esse compartilhar é, provavelmente, uma versão do que estou vivendo,


um arranjo para a exportação; nem sequer se trata de uma intenção dupla: é
simplesmente difícil transmitir o que efetivamente me está acontecendo. É
claro que também posso mentir ou calar- por julgar que seria inconveniente
comunicar meus pensamentos e intenções.
A duração e o transcorrer são inerentes a toda atividade consciente. Tudo o
que acontece se dá num contínuo irreversível que denominamos temporalidade. É
o transcorrer dos eventos o que nos permite aperceber-nos do tempo. Num universo
imóvel, aquele do qual nos falam alguns místicos, onde o sujeito fica na pura
contemplação do ser, cessa a temporalidade. Também perdemos a noção do tempo
quando algo nos absorve completamente, de maneira que nos tornamos o objeto
que contemplamos ou a atividade que retém toda nossa atenção.
Nos chamados estados alterados da consciência, a apreensão do tempo sofre
notórias mudanças. Em experimentos com alucinógenos, a pessoa tem a nítida
sensação de ter vivido alguns minutos, 5 a 10 horas e até dias inteiros. Os processos
vivenciais tornam-se tão intensos, há uma tal voragem de emoções, que o sujeito
vive num instante o que ordinariamente leva dias para que aconteça.
Essa distorção da percepção do tempo dá-se igualmente quando sonhamos. Tem-
se demonstrado também nesse estado que o tempo se torna elástico- por assim dizê-
lo. De 3 a 5 segundos podemos sonhar toda uma história que levaria alguns minutos
para realizar-se de fato. Eu mesmo tive a seguinte experiência enquanto dormia:
Tocaram a campainha. Fui ver quem poderia ser. Aí estava um antigo amigo
da minha juventude. "Mas que surpresa! Como é que você me encontrou nesta
enorme cidade?", lhe pergunto. Ele sorri. "Quando se quer encontrar se procura e
geralmente se acha", me diz. Logo tira um livro de uma pequena valise e me
passa. Leio: O Tempo do Exz1io, reparo que o autor sou eu mesmo. "São os
cadernos que você deixou em casa faz 12 anos", me explica. Aí acordo. Acampai-
nha nesse instante cessa de tocar.
Quantos segundos se passaram? Em todo caso essa cena durou bem mais.
O tempo está em todos os processos psíquicos. Em alguns processos torna-
se mais instigante. Na sensopercepção, o tempo escoa-se no movimento e na
diferença. Na memória adquire a fisionomia das fotos antigas, aureoladas de
estranha nostalgia: aí o nada e o ser são a mesma coisa - fuga da luz de uma
estrela já há muito extinta. No pensamento, o tempo desliza entre as palavras que
tentam deter o afundamento do presente para o tranqüilo museu· dos objetos
honorários, para o arquivo.
A única maneira exata de falar do tempo é mediante metáforas e imagens.
Refrro-me ao tempo vivencial, não àquele que se desprende das folhas do calendário.
Quando Williams J ames falava da corrente da consciência, referindo-se ao per-
pétuo fluxo que caracteriza a atividade psíquica, estava mencionando nessa metáfora

131
O inquilino do imaginário

esse nada inapreensível que constitui a substância da vida, o tempo. Sem dinamismo
não há tempo; haveria apenas eternidade- esse incrível sonho dos metafísicos.
Para os psicólogos- e também para os leigos-, o que importa é a percepção
do tempo. E nesse ponto os fenomenólogos têm-nos ensinado um bocado. Aliás,
eles têm sido os únicos que se atreveram a freqüentar esse tema.
Ensinaram-nos que a percepção do tempo se relaciona com os estados de
ânimo: sentimos o passo e o ritmo do tempo segundo o predomínio de um
determinado grau de afinação com o mundo. Segundo nosso humor. Não apenas
isso. O predomínio de uma determinada vertente temporal também depende do
ânimo. Para abreviar uma exposição mais minuciosa, observe, a seguir, o quadro
que caracteriza oito estados anímicos e sua temporalização.
Eu diria que o tempo introduz a mudança inexorável em qualquer evento
psíquico. Uma lembrança nunca é a mesma nas repetidas ocasiões que a podemos
colocar no espaço da consciência; sempre haverá alguma variação, por sutil que
seja. Freud afirmava que os conteúdos do inconsciente eram atemporais, no sentido
de que permaneceriam inalteráveis. Eu não sei se existem processos mentais
inconscientes que escapem aos efeitos mutacionais do tempo. Penso que podem
durar muito tempo determinados traumas e alguns desejos, mas é incrível como
eles mudam, tanto que chega um momento que nem sequer os podemos reconhecer.
Faça você uma prova muito simples: retome em diversas ocasiões uma situação
traumática, que provavelmente o envergonhou, envolvendo-o na época num confuso
novelo de sentimentos negativos. Para muita gente, esse tipo de episódio foi tão

OS ESTADOS ANÍMICOS E SUA TEMPORALIZAÇÃO

Estado de ânimo Decurso temporal subjetivo Vertente predominante


- Na serenidade - Fluência tranqüila do tempo - O presente
-Na jovialidade - Encurtamento e abrev. do tempo - O presente
- Na depressão - Alongamento e esvaziamento - O passado
-Na euforia - Aceleração do tempo - O presente/futurível
~No tédio - Lentidão - Presente/ausente
- Na angústia - Antecipa-se e se tenciona - Futuro presentificando-se
- Na beatitude (o estado - O tempo desaparece: o indivíduo - O puro presente sem
místico da graça) na pura contemplação do ser memória nem antecipação
- No estado destemperado - O tempo tensiona-se, se alonga -Misturam-se as três vertentes
(uma conjugação de frustração, e se encurta
irritabilidade, angústia)

132
A consciência e a questão do inconsciente

desastroso para seu autoconceito que passaram a evitar qualquer associação com
eles. Esquivam-se deles; alguns os enterram como coisa podre. Retome um desses
quadros de sua adolescência em que você foi ridículo e tolo (perante sua namorada,
perante seu·s colegas ou em qualquer outro contexto), que lht:< sugira algo desagradável.
Você se lembra bem, mas o evita apenas. Às primeiras vezes você notará pouca
diferença, talvez reaja com emoções semelhantçs às que teve na atuação original,
mas logo vai perceber que aquele quadro adquire uma nova feição. É muito possível
que termine rindo às gargalhadas, olhando com outros olhos o que antes lhe produzia
desgosto e vergonha. Claro, não precisa retomar apenas fatos tristes e ingratos.

Tentativa de uma conceitualização da consciência

Nem a consciência nem o inconsciente são fenômenos que possamos apreender


com facilidade na ordem dos conceitos. Alguns autores julgam ambos os conceitos
como meros entraves para a constituição de uma psicologia científica- em especial
os behavioristas; outros insistem que não podemos falar da consciência como se
nos estivéssemos referindo a uma substância: apenas podemos referir-nos a uma
atividade consciente, sendo aqui o consciente mero atributo do psiquismo ou de
certas atividades. Há autores que consideram a consciência como a síntese do
autoconhecimento.
Acredito que seja uma boa conceitualização a seguinte:
A consciência é um atributo fundamental dos fenômenos psíquicos que funciona
como nexo totalizador do psiquismo, permitindo ao sujeito perceber-se a si mesmo
na situação que nos momentos de vigília constitui sua realidade.
Como atributo é variável tanto em seu grau de luminosidade como em seu
campo de apreensão. Por seu grau de luminosidade estende-se desde seu mínimo
grau - o sopor de semi-sono - até a hiperlucidez, no período de máxima vigília.
Como campo de apreensão pode reduzir-se a um foco muito limitado, quando
estamos muito concentrados num assunto que nos absorve, até alcançar uma
abertura tão ampla que possa captar simultaneamente vários temas diferentes.
Por ter a função de nexo unificador e por ser uma síntese do psiquismo, a
consciência reflete a atividade de todos os processos mentais. Nelfl. estão presentes
todos os aspectos da nossa vida mental, tal como eles se manifestam na existência.
Quando falamos de autoconsciência, nos referimos ao grau de compreensão
e conhecimento de nosso ser juntamente com a maneira de atualizar esse saber
em nosso contato contínuo com o mundo.
Amiúde enfatizamos a importância do desenvolvimento da autoconsciência
porque pensamos que nela reside o território mais fecundo e rico da criatividade e
da auto-realização humana.

133
O inquilino do imaginário

As perturbações da consciência

As alterações normais da consciência: as oscilações sono-vigília


Uma das características da consciência é seu grau de clareza.
Normalmente, existe uma oscilação do grau de lucidez que vai desde uma
plena clareza até o sono, passando por uma série de graus intermédios. Quando
acordamos, é comum irmos tomando consciência paulatinamente das coisas
que nos rodeiam; leva certo tempo para percebermos detalhes significativos
do nosso contorno ou para concatenar nossos pensamentos. Há mesmo pessoas
que demoram algumas horas para adquirir sua plena vigília; permanecem num
estado de semi penumbra da consciência, num clima de leve sopor, mostrando-
se pouco reativas e desligadas: agem maquinalmente, de modo passivo e mal
direcionado. Só após um lapso variável conseguem sentir-se bem acordadas,
mais bem dispostas e razoavelmente ligadas às solicitações do meio. Podemos
afirmar que existem padrões mais ou menos característicos de vigília nas
pessoas. Três são bastante freqüentes:
a) O padrão de paulatina iluminação do grau de consciência: o sujeito vai
se sentindo cada vez mais lúcido à medida que avança o dia, chegando
à sua máxima atividade psíquica no início da noite. São pessoas que
geralmente têm hábitos noturnos de atividade; costumam ficar
acordados até 2 ou 3 horas da madrugada. Muitos depressivos
apresentam esse padrão; são noctâmbulos, pouco afins ao sol e ao
ruído do mundo.
b) Há o padrão de vigília constante desde o momento de acordar com
uma leve queda no início da noite; a queda vai-se acentuando à medida
que se aproxima da meia-noite. Esse é o esquema mais comum e
explica-se pelos hábitos de atividades que a maioria das pessoas tem.
c) O padrão de alternância dos estados de lucidez da consciência segundo
sejam as exigências e solicitações das circunstâncias e obrigações:
quando a pessoa não tem nada a fazer, tende a dispersar-se mentalmen-
te, divaga e, muitas vezes, cochila; são como esse personagem de A
Náusea, que, quando ficava só, sem clientes no bar, se abandonava ao
sopor vegetativo. Nos velhos é freqüente esse caso: dizem dormir pouco
à noite, e, assim que se sentam, lhes esvazia a consciência e entram na
penumbra silenciosa.
Além dessas oscilações normais da consciência, existem duas fases mais
que são igualmente naturais:
a) a fase hipnagógica, que é aquele momento que precede a entrada no

134
A consciência e a questão do inconsciente

sono: nesta fase misturam-se as imagens do mundo interno e os


estímulos algo apagados do ambiente; o pensamento desagrega-se e o
sujeito perde seu poder organizador; ficamos à mercê de uma legião
de imagens que se movimentam e se compõem sem que possamos
exercer um controle diretivo. Num determinado instante ficamos em
completa obscuridão. Essa fase hipnogógica parece-se bastante ao
que se conhece com o nome de obnubilação da consciência, que se
entende como um estado patológico. Todo esse filme revela a
autonomia funcional do cérebro, que continua ativo durante o sono.
b) a fase hipropômpica é aquele momento que transcorre entre o acordar
e a vigília: devagar começamos a organizar nossa realidade, primeiro
de um modo puramente receptivo e perceptivo, para logo apreender
nossa situação de um modo mais cogitacional e prático.

Perturbações sintomáticas da consciência


Embora geralmente transitórias e de curta duração, as perturbações da
consciência traduzem o maior grau de desintegração da vida psíquica: todas as funções
estão transtornadas de maneira que o indivíduo fica submerso num estado de extrema
confusão mental. Salvo nos estados crepusculares, os indivíduos com consciência
alterada ficam impossibilitados de qualquer forma de autodireção e compreensão, ·
debatendo-se desesperadamente num mundo oniróide e terrível.
Sendo a consciência a resultante de uma síntese de todas as funções psíquicas,
quando registramos um transtorno nesse plano implica que todas as áreas do psiquismo
estão perturbadas: as funções de captação e síntese (percepção, atenção, consciência),
de conservação e fixação (memória), de elaboração e compreensão (raciocínio,
pensamento, juízo), de comunicação e transmissão (linguagem e decisão) e de
sensibilidade e valorização (sentimentos e emoções, crenças). O sujeito está
desorientado no espaço-tempo.
Como é pouco provável que o psicólogo atenda indivíduos com perturbações da
consciência, em razão de que esse tipo de caso vai direto para o psiquiatra, é
conveniente esclarecer que essa classe de manifestação não se apresenta nos quadros
neuróticos - salvo na histeria, em que pode se apresentar um estado crepuscular-
tampouco nas psicoses funcionais (esquizofrenias, psicoses circulares ou afetivas).
É característica das chamadas psicoses tóxico-infecciosas, isto é, são conseqüência
direta de agentes que atacam os centros cerebrais, e de algumas psicoses orgânicas. 2
Precisamos dizer também que nem todos os autores concordam com a tese de
que essas perturbações se apresentam apenas nas psicoses tóxico-infecciosas. Henry
Ey e Alonso Fernandez sustentam que se apresentam alterações da consciência na
psicose maníaco-depressiva9 • Para entender a tese desses autores, teríamos de nos
questionar sobre a característica essencial de uma perturbação psíquica que afeta

135
O inquilino do imaginário

em cheio a consciência. A nosso entender, podemos falar de perturbaçQes nessa


área quando o sujeito apresenta uma acentuada desintegração dos processos psíquicos,
não conseguindo orientar-se no espaço-tempo nem compreender sua realidade
circunstancial. Encontram-se alteradas todas as funções, em particular as de captação
(sensopercepção), retenção e evocação (memória), compreensão (raciocínio,
pensamento, juízo), escolha e decisão (ação adequada à situação).
O sujeito de consciência alterada mostra-se confuso, incoerente, incapaz de
manter um diálogo sequer no plano das informações identificatórias. Não consegue
informar onde mora, o nome dos pais, idade dos filhos; custa-lhe ou não consegue
localizar-se no tempo (dia da semana, hora do dia, mês) nem no espaço (onde se
encontra, como é que chegou até este lugar). Dá a impressão de ser um indivíduo
assustado tentando escapar de um pesadelo; ou parece um sonâmbulo mo-
vimentando-se como um autômato, ausente aos estímulos do ambiente imediato,
ou, se capta os estímulos ambientais e os objetos, é incapaz de integrá-los em seu
significado situacional.

A consciência e o inconsciente: seu alcance


e suas limitações.

a) A extensão abusiva do plano inconsciente


É muito difícil usar o conceito de inconsciente num sentido preciso. Parece
que cada qual o usa como uma forma aceitável de encobrir sua ignorância.
Aliás, esse é o sentido corriqueiro: geralmente se refere a um não-saber sobre
algo que nos determina ou nos condiciona. Somos inconscientes de boa parte
dos processos fisiológicos que acontecem em nosso organismo. Ignoramos até
que ponto as representações sociais condicionam nossa maneira de pensar e
de sentir; só quando entramos em conflitos com essas representações, ou
quando as questionamos, é que apreciamos o grau de sua influência. Geralmente
as aceitamos como se fossem as melhores regras de trânsito.
Alguns autores têm enfatizado a importância da linguagem como um fator
inconsciente de primeira ordem. Não resulta fácil entender essa tese. A linguagem
é um fenômeno social: está aí como um instrumento de ação e como um código de
comunicação. Çodifica experiências coletivas, significando-as de modo determinado.
Permite a comunicação interpessoal e intrapessoal. É um instrumento de ação na
medida em que nos permite agir das mais diversas maneiras (interpelando, mandando
etc.). Mas em que sentido seria ~m meio inconsciente? É um sistema de
comunicação aprendido cujo domínio nos leva anos de esforço dirigido. É verdade
que terminamos por usar formas verbais bastante automatizadas, como gíria e

136
A consciência e a questão do inconsciente

slogans, mas mesmo assim temos certa compreensão do que estamos falando.
Que a maioria das pessoas use uma língua sem conhecer sua estrutura gramatical
e a lógica de sua composição não é um argumento em favor de seu suposto caráter
inconsciente. O importante, quando falamos, é a intenção comunicativa, o uso
intencional do que queremos dizer - operação nada inconsciente.
A psicanálise pretende explicar todas as expressões do psiquismo humano,
inclusive os aspectos da criação cultural, pelas peripécias da libido e pelos
artifícios e jogadas do inconsciente. Também o trabalho criativo, das artes e
das ciências, encontraria nesta usina secreta da mente sua fonte principal.
Devo confessar que não consigo achar um fundamento plausível par!l tamanha
pretensão. Toda teoria que pretenda erigir-se na chave explicativa da enorme
complexidade humana me parece apenas uma miragem da razão.

b) Os fatores desconhecidos que operam entre nós não são o recalcado


De qualquer maneira, existe algo assim como o inconsciente. Sobretudo num
sentido não-freudiano: como esse fundo desconhecido que insinua sua presença de
diversas maneiras, influenciando-nos, por hipótese, de algum modo. Podemos chamá-
lo contexto social, fatores genéticos, clima, o mistério do mundo. Contudo, esse
desconhecido o vamos conhecendo devagar, detectando e esclarecendo o seu modo
de operar. O inconsciente proposto por Freud é mais específico: refere-se ao reprimido,
aquilo que passou pela experiência consciente mas foi expulso de sua esfera por uma
imposição do ego. Esse é o tipo de inconsciente que suscita controvérsias. Desde já
surge uma primeira questão: terá o reprimido a importância que lhe atribuía Freud?
Será o inconsciente a grande massa da psique-icebe~g, correspondendo à consciência
o modesto papél de montículo visível? E as dúvidas continuam por aí, em todo o demais.
O que observamos é que por vezes reprimimos certos impulsos para evitar algumas
conseqüências desagradáveis, não apenas quando são agressivos, mas mesmo quando
emanam da simpatia e dos afetos. Essa repressão não tem nada de inconsciente.
Também é certo que observamos pessoas contidas, rígidas e excessivamente
controladas. É o que acontece especialmente com os sujeitos de tipo obsessivo. Será
que todos esses traços apresentados por este tipo de indivíduo refletem um recalque
oriundo do inconsciente? Não nos parece que essa seja a melhor explicação. Diríamos
que correspondem a uma atitude internalizada, articulada num padrão geral do caráter.
Intemalizada à maneira como internalizamos normas éticas, propostas de vida,
preconceitos, mitos, formas de relacionamento e todo o demais.

c) Não é pertinente mistificar a consciência nem o inconsciente


Tampouco podemos exaltar os poderes da consciência. A consciência é uma
resultante da existência, da experiência e do desenvolvimento mais que um fator

137
O inquilino do imaginário

causal. É uma síntese de todos os processos mentais e biossomáticos, não um


fator específico que atuaria como um agente auxiliar do sujeito (o alter-ego, a voz
da consciência, o censor ou o anjo). Quando afirmamos que alcançar um alto grau
de autoconsciência é um objetivo meritório, queremos dizer que a compreensão de
si e o conhecimento, junto com o senso de responsabilidade e de liberdade, são
fatores importantes para um desenvolvimento salutar.
A consciência não pode ser substancializada; é uma característica da existência
humana; importante, sem dúvida, mas tão importante como outras características
do Dasein - como são sua capacidade de transformar a natureza e inventar sua
realidade mediante o trabalho e a linguagem. Tão importante como sua liberdade
de escolha e sua capacidade de questionamento. Já dizíamos que a consciência
implica conhecimento, compreensão (de si e do outro), auto-iluminação,
transcendência e temporalização: um perpétuo deslizamento, fuga e ruptura de si.
É curioso que Freud tenha concebido o inconsciente como o oposto das
características indicadas. O inconsciente seria algo desconhecido para o sujeito,
tendo que se manifestar apenas de um modo indireto (nos sonhos, nos sintomas,
nos atos falhos). Implicaria uma forma de pensamento primário, mágico. Seria
algo intemporal: as experiências reprimidas permaneceriam inalteradas, com o
mesmo efeito de impacto original. Implicaria também uma espécie de ruptura ou
contradição na integração da personalidade, não necessariamente no movimento
da existência.
Freud acreditava que as psicoses, com todas suas manifestações estranhas e
alienatórias, vinham a corroborar a emergência de processos inconscientes. Seriam
a liberação do reprimido. Hoje, tende-se a considerar as manifestações das psicoses
e dos transtornos delirantes como efeitos dos processos cerebrais orgânicos. Nos
casos de quadros de tipo esquizofrênico, acentuar-se-iam apenas traços de
personalidade preexistentes. Os delírios são a exacerbação de algo já preexistente
no sujeito, no algo recalcado.
E os sonhos seriam mesmo o caminho real para expressão do inconsciente?
Medard Boss, num texto clássico, tem mostrado que não é bem assim. Os sonhos
patenteiam e destacam preocupações, medos, conflitos e desejos vividos pelo sujeito
na sua vida cotidiana. Sem apelar para nenhum tipo de interpretação mirabolante,
Boss nos mostra como o sonho cenifica o que está acontecendo com o sujeito,
acentuando determinados aspectos, por vezes alienados do primeiro plano, mas
não por isso inconscientes. Certamente nenhuma teoria pode esclarecer a enorme
complexidade (e inclusive o mistério) da atividade onírica.

d) As teorias do inconsciente e os absurdos da interpretação


Poderíamos esticar outros fios dessa questão. Apenas vou puxar um mais.
As teorias do inconsciente têm gerado entre seus seguidores, e inclusive em gente

138
A consciência e a questão do inconsciente

que ignora a teoria, uma verdadeira mania interpretativa; mania por vezes tão
surpreendente, tão fora de propósito, que nos dá impressão de um verdadeiro delírio
interpretativo. O lamentável é que esse vício não é apenas uma invenção dos
seguidores da psicanálise: encontra-se nos escritos do próprio Freud.
No capítulo primeiro deste livro já comentamos algumas interpretações do
mestre vienense em dois casos clínicos escritos por ele, o de Dora e o do pequeno
Hans. Poderíamos citar inúmeras amostras de seu estilo. Poucas são verossímeis.
Não invoco aqui o bom senso, que amiúde é enganoso e simplório. Carecem de
qualquer justificativa plausível. Quase nunca correspondem a inferências baseadas
em indícios certos ou em princípios lógicos- que é o que faz o cientista, e também
o pesquisador policial, quando se indaga sobre os motivos de um determinado
comportamento ou sobre o significado de um fenômeno (sociocultural, biológico,
físico-natural, existencial).
Com as restrições apontadas acima, o conceito de inconsciente parece-nos
sustentável. O inadmisível são as interpretações dos chamados fenômenos
inconscientes - pelo menos aquelas propostas por Freud e os kleinianos.
Como nos lembra o epígrafe de Jan Casábius no início deste capítulo, não
devemos acentuar a oposição consciente e inconsciente; essa dicotomia é superada
no movimento da existência.
A rigor, não se justifica uma psicologia da consciência nem do inconsciente:
constituem uma só dimensão.

Notas
Sobre a subjetividade:
Subjetivo é tudo aquilo que pertence à ordem do sujeito, assim como o
objetivo é aquilo que pertence à esfera do objeto. O que entendemos por sujeito?
De acordo com seu étimo, ao sujeito corresponde tudo aquilo que subjaz, o
que sustenta, o que aparece como manifesto na conduta. É a pessoa enquanto
núcleo vivencial do que lhe acontece. É o centro unificador da experiência,
centro estruturado parcialmente, com seus vetores diposicionais, suas
constantes afetivas, suas atitudes predominantes, seus valores. Embora seja
usado freqüentemente como sinônimo de pessoa, eu diria que a pessoa é um
conceito mais abrangente, incluindo especialmente a conduta e o desempenho
de papéis, além do ego, que é a representação que a pessoa se faz de si
mesma de acordo com os valores do meio e do papel que lhe corresponde no
contexto social.
Subjetivo é, então, tudo aquilo que pertence à esfera do sujeito, enquanto o
sujeito é o centro unificador da experiência, do acontecer vivido.

139
O inquilino do imaginário

Bibliografia citada e livros recomendados

1) HEGEL, Frederico. Fenomenología de! Espíritu (Fondo de Cultura, México, 1968).


2) GABEL, Joseph. La Fausse Conscience. Essai sur la Réification. (Paris, 1962).
3). LUKACS, George. Historia y Consciencia de Clase (México, 1960). Menciono esse texto por
entender que representa uma corrente importante no pensamento marxista.
4) MUKTANADA, Swami. E!Juego de la Consciencia (Fundación Sida. Nova York, 1981). Cito
o escrito de Muktanada por considerá-lo representativo de uma corrente de ioga que hoje está
tendo ampla aceitação nos setores médios da sociedade anglo-americana. É a corrente do Sida-
Yoga. Observe-se que esse autor ressalta a importância da mente, contrapondo-se assim a
outras escolas do pensamento indiano, que consideram a mente como o arcabouço da ilusão,
arcabouço e calabouço do espírito. Em Bagwan Raineesh (Osho, como hoje é também
conhecido), esta posição antimente é muito clara, só para dar um exemplo.
5) WEIL, Pierre e outros. Pequeno Tratado de Psicologia Transpessoal I 5 tomos (Ed. Vozes,
1983). A maioria dos artigos que figuram nesse tratado são tradução da Transpersonal
Review.
6) SARTRE, Jean-Paul. L'être et te Néant (Gallimard, Paris, 1943).
7) Para uma exposição mais completa da personalidade obsessiva, recomendo minha monografia
"O Guardião de Si Mesmo. O Mundo dos Anancásticos" (Arquivos da Sociedade Brasileira
de Psicologia Humanista, São Paulo, 1987). Cap. 8 deste livro.
8) Sobre a questão do inconsciente de uma perspectiva psicanalítica, que obviamente postula a
validade deste "construto", veja-se:
a) Henry EY. O Inconsciente (VI Colóquio de Bonneval, com vários participantes entusiastas
seguidores desse tipo de teoria) (Rio de Janeiro, 1969).
b) Pontalis e Laplanche. Vocabulário da Psicanálise (Martins Fontes, 1970).
c) João Carlos Nogueira. O Inconsciente e a Linguagem na Compreensão do Homem (São
Paulo, 1978). Obra inteligente que chega a considerar além das idéias freudianas a contribuição
de Lacan - considerado o novo pontífice da ideologia psicanalítica no âmbito da cultura
franéesa, e com uma boa cota de discípulos na terra de Cunaima.
d) O leitor deve ler de um texto de Freud, O Inconsciente, em que o fundador da psicanálise
tenta fundamentar esse construto. Nele podemos apreciar que essa tarefa não era fácil nem
sequer para seu fundador.
e) Alfredo Naffah Neto. O Inconsciente (São Paulo, 1986). O autor, sem alistar-se na causa
freudiana, é simpatizante desse conceito-chave. Mostra a vigência dessa noção em algumas
áreas do saber.
f) Para uma crítica muito ponderada e bem fundamentada feita pelo lado do
comportamentalismo, na linha de um Hans Eysenck, recomendo .o livro de Stanley
RACHMAN. Ensaios Críticos al Psicoanálisis (Madrid, 1975)- Vários autores.
9) ALONSO FERNANDEZ, Francisco. Tratado de P siquiatría Actual (Madrid, 1972).
1O) Para um complemento desta tese, leia-se A Visão Existenciadora, de E. Coutinho.

140
Capítulo 6

PELAS VIAS DO DESENCONTRO


PESSOAL
CARÁTER, PERTURBAÇÕES EMOCIONAIS
E NEUROSE

E depois de andar errante por aí, não importa se mal ou bem acompanhado,
certo dia nem tão diferente de todos os outros, aparecem todos os medos
que a gente foi acumulando ao longo de uma vida. Não falo apenas dos medos
de criança, cujas imagens ainda estão penduradas nos buracos da memória;
falo também dos que vieram depois.

Chegam até a minha porta os medos de minha mãe sufocada na sua condição de
mulher submissa, sujeita a um homem agressivo e encurralado -meu pai.
Aparecem os medos do meu pai, também ele vivendo sua condição de um
camarada sem destino, sempre xingando sua sorte de trabalhador subalterno.
E eu agüentando estes dois medos e tantos outros. Aí estão os medos de minha
irmã, dizendo para mim "se nossa mãe morre, o que vai ser de nós dois? Onde
vamos ficar? Se eles não se entendem, quem se entende nesta droga de mundo?
Se eles se detestam, para que nos deram a vida?" Surgem em seguida os outros
medos. O do primeiro amor perdido, coisa de adolescente, que ainda dói nos dias
frios do inverno; algo já esquecido no tempo, mas que deixou, além da saudade,
uma dúvida: e se o desenlace daquele amor fosse o destino de todos os amores?
Se ainda mesmo isso que tanto se exalta como a razão suprema da vida fosse
apenas uma ilusão impossível, o amor?

Tolice? Fantasias de gente covarde? Pode ser, mas ainda há outros temores. Ter já
trinta anos e andar por aí sem ter um amparo, uma moradia onde se refugiar nos

141
O inquilino do imaginário

períodos de tormenta e escassez. É muito esperar da vida querer ter um cantinho


próprio, ainda que modesto? Não pense que quero ser um proprietário desses que
estufam o peito e lhe olham de soslaio. Gostaria de ter um lugar onde não pairasse
a ameaça periódica do despejo, apenas isso; mas se pode ter uma moradia própria
quando você ganha um salário de estrita sobrevivência?

E por esta porta surgem outros temores. E se ainda este modesto emprego
fosse água abaixo? Não se rumoreia por aí que estamos em tempos de
recessão? Por acaso milhares já não perderam seus postos de trabalho?
E então como ficaria minha situação? Até se pode admitir ganhar pouco;
o pior é quando se tem um chefe estúpido, prepotente, fascista. Gosta de
humilhar o pessoal. Procuro evitá-lo porque sei que um dia qualquer posso
estourar; e aí vou estourar seus miolos. Esse é meu temor: que amanhã me
torne um assassino. Duas coisas outorgou-me a natureza: saúde e força física.
E de duas coisas me privou o destino: o caminho fácil e a boa sorte. Às vezes
me pego imaginando como o líquido: o levanto pelo pescoço e o esmago
contra a parede. Mas não quero estropiar ainda mais meu destino. Não quero
que meu filho tenha por pai um assassino. E então como fica minha situação?
Inclino a cabeça, me submeto? Procuro outro lugar com um chefe menos
estúpido? Existe mesmo esse lugar?" (Depoimento de um homem casado,
colegial completo, subchefe administrativo numa empresa de transportes).

o texto transcrito acima aparecem algumas aflições que anuviam a visão

N da vida de muita gente. Aí estão os medos, que são as feições que adquire
a angústia quando se corporiza em determinadas situações vividas ou
meramente possíveis. Aí estão a frustração e a raiva por não poder superar uma
condição material precária e inquietante, que sempre insinua outra ameaça ainda
pior que a presente. A raiva perante a humilhação e o abuso. Aí está o conflito: o
que fazer perante o abuso e a prepotência? Esmagar a cabeça do cretino ou
submeter-se? Ir embora para onde? Será que existe mesmo um lugar onde o abuso
não esteja presente?
Aí também está o lado histórico de uma vida, apenas indicado em dois ou três
episódios. Não podia faltar aí a família, origem e trama nem sempre superável de
nosso destino pessoal. Tampouco falta o episódio do primeiro amor, geralmente
falido e atormentado, mas carregando a duvidosa glória das experiências primeiras.
Neste capítulo vamos tratar de três formas vivenciais que perturbam a todos
nós, de uma ou de outra maneira, com maior ou menor gravidade, tudo dependendo
do estágio que estamos atravessando e da história pessoal- dois fatores de extrema
importância. São três formas que amiúde se confundem, pois apresentam traços em
comum. Distinguimos estruturas e traços caracteriais inadequados, problemas emo-
cionais e formas neuróticas. Numa primeira idéia, eu diria que os problemas
emocionais são mais setoriais e circunscritos; afetam em menor grau a personalidade

142
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

do sujeito. As estruturas neuróticas afetam o todo da personalidade, mantendo-se


a pessoa atrelada ao círculo vicioso da ansiedade e da depressão e implicando um
rebaixamento da auto-estima e da autoconfiança. Os traços e os tipos caracteriais
inadequados supõem a hipertrofia de um traço negativo (agressividade, impulsividade,
acanhamento, mendacidade etc.) ou de um fator (autoritarismo, esquizoidia,
narcisismo e egocentrismo, principalmente).
De todas maneiras, estas três figuras implicam formas de desencontro pessoal;
talvez em menor grau, quando decorre de um traço caracterial negativo, mas num
grau bastante acentuado, quando a vida se encaminha pela via da neurose. Certos
tipos sintomáticos não percebem seu básico desencontro pessoal em razão dos
mecanismos compensatórios que usam para ajeitar sua visão do mundo. É o que
acontece com o tipo narcisista e o autoritário; são indivíduos com escassa
interocepção, nada introspectivos; sempre fecham as cortinas para assim manter
uma discreta penumbra interior. Vivem uma representação de si que lhes impede a
honestidade para eles mesmos. Ignoram uma virtude: a humildade; a virtude que
nos permite encarar nossas limitações e deficiências honestamente, sem panos
quentes e justificativas.

Perturbações emocionais, traços pessoais


inadequados e neurose
A palavra neurose vulgarizou-s~. Qualquer pessoa que mostra algum traço
acentuado de personalidade, pelo lado negativo, logo é suspeita de ser neurótica ou
qualificada como sendo. Basta que seja notoriamente tímida em situação grupal ou
algo rígida em suas posições e juízos e já correrá o risco de ser enquadrada nessa
categoria.
Não pára aqui a confusão dos fenômenos. Pessoas com uma emotividade
acentuada, seja na direção da sensibilidade, seja na linha da agressividade ou da
ansiedade, também é possível que sejam colocadas sob esta etiqueta.
Contudo, essas três manifestações são fenômenos diferentes; diferentes,
embora apresentem alguns traços comuns que justificam em parte o uso
indiscriminado do termo para abranger vivências discemíveis.
O pior é que até os psicólogos não sã9 nada precisos nesse tipo de distinção.
Acho pertinente, então, tentar alguns esclarecimentos indispensáveis; esclareci-
mentos tanto mais necessários por serem esses três tipos de perturbações os que
solicitam o atendimento por parte dos terapeutas. A maioria dos indivíduos que
terminam por freqüentar o consultório do psicólogo apresentam manifestações na
área caracterial, emocional ou neurótica. Poucos que solicitam atendimento por
perturbação mental propriamente- pois o psicótico costuma ser tratado pelo psiquiatra.

143
O inquilino do imaginário

Perturbações emocionais
É verdade que a neurose implica algum tipo de perturbação afetivo-
emocional, mas não é suficiente estar sofrendo alguns sentimentos negativos
para sermos neuróticos. Coloco na categoria de perturbação emocional todas
aquelas vivências caracterizadas por um acentuado desequilíbrio na esfera dos
afetos, seja na linha da depressão e da ansiedade, seja na via da agressividade,
da culpa e dos conflitos- vivências decorrentes de fatores situacionais presentes
ou determináveis a partir de eventos passados compreensíveis, sem estrutura
caracterial neurótica.
A maioria das perturbações emocionais são de tipo reativo. O sujeito reage
de um modo muito acentuado perante determinados eventos que o afetaram a
ponto de perturbar sua forma habitual de regular sua interação com o mundo.
Essa é a forma mais comum, mas não é a única. Há perturbações emocionais
que se tomam constantes afetivas, que acompanham o sujeito durante anos,
inclusive. É o que sucede com o sentimento de culpa, tão freqüente na maioria
das pessoas; com a culpa e com certos conflitos.
O sentimento de culpa origina-se da consciência de ter transgredido um
princípio ético, de ter faltado a um dever para com nosso próximo ou para conosco.
Dever e culpa mantêm uma estreita relação. A culpa é experimentada como uma
falta- e quando o indivíduo é religioso, como um pecado, isto é, como uma falta
perante o juízo de Deus. Foi uma falta ao dever; é sentida como algo digno de
castigo e de expiação. Por sua culpa, o indivíduo teme o castigo, mas, por vezes,
procura-o como a única maneira de redimir-se; como Rodión Raskolnikof, o
personagem de Crime e Castigo, que não aquieta sua consciência até o momento
de receber a punição que julga corresponder a seu crime.
A culpa também pode originar-se da consciência de ter descuidado do próprio
desenvolvimento, desviando-se "pelos caminhos da perdição", seja desperdiçando
as boas oportunidades que a vida brindou, seja escolhendo o rumo errado. Neste
caso nos sentimos culpados de nosso infortúnio ou queda final. "Eu sei que mereço
meu destino, me diz um paciente; errei demais e é justo sofrer agora as con-
seqüências; me iludi com tolices, não valorizei as coisas essenciais; durante boa
parte de minha juventude vivi na pura banalidade- no sexo, nos jogos de azar e
numa folia de gente sem critério, insensata mesmo. Perdi minha fortuna mate-
rial, não construí nada, nem sequer uma família. Agora, com mais de 40 anos, o
que me espera? Já fiquei deprimido; agora sei que devo .aceitar com estoicismo
os efeitos de uma vida desperdiçada. Não sou homem de pôr a culpa em outros,
até a fé que legaram meus pais esqueci, pode haver maior descuido que esse?"
Perdas e fracassos provocam-nos tristeza, desânimo e depressão. Por um
determinado período podemos sentir seus efeitos, sentindo que nossa vida perde
sua luminosidade e seu sentido torna-se duvidoso ou francamente negativo. Em

144
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

maior ou menor grau nos desmotivamos, desligando-nos do que até ontem nos
interessava. Uma série de sentimentos negativos impregnam, com matizes
sombrias, a atmosfera que nos envolve.
É uma reação compreensível; passado um tempo nos recuperamos,
superando assim o impasse que nos tinha paralisado.
Por vezes entramos também num período de ansiedade. Perante as
exigências da vida nos sentimos impotentes; certas situações desnorteiam-
nos; outras ameaçam afundar nossa capacidade de manobra; tememos
fracassar ou perder uma posição conquistada ou na qual nos tínhamos
empenhado. Surge perante todos esses casos a possibilidade negativa; pode
ser uma ameaça vaga ou algo mais definido. De qualquer forma, é vivida como
inquietação e tensão.
Tudo isso nos destempera. Torna-nos mais suscetíveis às colisões e
barreiras; amiúde torna-nos irritáveis, agressivos; a mais leve contrariedade faz-
nos estourar. Se não estouramos pela via da agressividade, podemos ir pelo lado
da emoção exagerada, do choro fácil, da vulnerabilidade à flor de pele.
Tudo isso nos enturba e nos perturba; agitamo-nos num emaranhado
confuso de motivos e propósitos cujo sentido nos confunde.
Um amigo confessa-me: "Depois que me veio a suspeita de que Teresa não
gosta mais de mim, entrei de cheio na suspeita; na suspeita de que há um terceiro,
um outro cara que lhe interessa. Comecei a espiá-la. Isso me envergonha, me
diminui perante meus próprios olhos, mas o que posso fazer? Eu nunca havia
sido ciumento. Até um par de meses atrás, pensava que tudo era transparente
entre nós. Ingenuidade minha. Agora ela me parece uma gatá arteira, solapada;
penso que está fingindo o tempo todo. Foi o maldito telefonema que lhe peguei.
Quando a ouvi, quase tive um ataque. Conversava com o cara com uma voz
diferente, toda sedutora. Não podia acreditar no que estava ouvindo; era outra
mulher. Não falaram nada evidente; era só mudança, ou puramente insinuado.
Desde então ando irritado, ansioso, estúpido. Quando lhe pedi uma explicação
dessa conversa, ela se fingiu surpresa, desconversou. Isso me confirmou que
anda em maus passos. Não sei o que vou fazer. O pior é que sinto que ela me
domina; me domina com sua meiguice falsa e com seu eterno ar de inocência.
Estou tenso e desorientado; emocional demais".
Sentimentos negativos diversos, estados de ânimo no vetor de ansiedade e da
depressão, exacerbação do emocional - essas são as perturbações mais comuns.
Mas ainda há um outro motivo que costuma perturbar-nos nessa esfera: as situações
conflitantes. Os conflitos podem surgir em todas as áreas da vida psíquica, assim
como em todos os âmbitos da vida prática. Os mais freqüentes pertencem às
esferas dos valores, das motivações, dos interesses, da sexualidade e dos afetos.
Todas essas esferas se entrecruzam, confrontando-se valores de um tipo com

145
O inquilino do imaginário

QUADRO I
Traços característicos de tipos distorcidos de personalidade
por acentuação de um determinado fator

DISTORÇÃO DA PERSONALIDADE POR ACENTUAÇÃO DO FATOR NARCISISMO


Áreaegóica -Muito centrado na representação de si.
- Forte tendência à glorificação de si. Resguardo especial da imagem de si.
Vulnerabilidade às críticas.
Área do relaciona- -Atitude de superioridade ou de preservação defensiva (que lhe evite possíveis
mento interpessoal desmerecimentos ou que venha a testar suas supostas excelências).
-Atitude de auto-afirmação superior (arrogância).
-Propensão à exibição ou vanglória das excelências (vaidade).
- Nos casos sintomáticos, franca megalomania.
Área afetiva - Muito centralizado na sua necessidade de destaque.
-Dificuldade para transferir afetos positivos; trasfere, mas sob a condição de
receber uma cota de afetos igual ou maior que a que ele oferece.
- Tendência a refugiar-se na fantasia como uma forma de obter as gratificações
que a realidade não lhe concede.
- Valorização de si pelos aspectos externos mais que pelas qualidades intrínsecas.
-Ausência de um sentido do essencial.
Área corporal - Não existe apenas um narcisismo corporal, mas, quando está centralizado
nessa área, deriva da convicção de urna excelência física, expressando-se por
um destaque da aparência.
DISTORÇÃO DA PERSONALIDADE POR ACENTUAÇÃO DO FATOR ESQUIZÓIDE
Áreaegóica - Acentuada dificuldade para integrar as diversas tendências e constantes
vivências que caracterizam seu universo pessoal.
-Mostra-se dividido, escassamente harmonizado na maioria dos planos
(necessidades, valores, afetos etc.)
- Mostra uma notória dificuldade para discernir entre realidade e fantasia.
- Geralmente baixa auto-estima.
Área do relaciona- - Dificuldades para contatar, comunicar-se e relacionar-se com os outros e
mento interpessoal consigo mesmo.
- Pouca abertura efetiva para o próximo.
-Tendência a isolar-se ou a estabelecer uma sociabilidade difusa e impessoal.
Área afetiva - Dificuldade para transferir afetos positivos.
- Bloqueio afetivo, ou escassa ressonância afetiva perante os eventos
protagonizados ou meramente ambientais.
DISTORÇÃO DA PERSONALIDADE POR ACENTUAÇÃO DO FATOR AUTORITARISMO
Áreaegóica - Rigidez: escassa flexibilidade para apreciar e julgar situações não
convencionais, fora do padrão dominante.
- Escassa intercepção e autocompreensão.
- Atitude marcadamente maniqueísta: tende a dicotomizar as coisas em termos
debomemau.
- Defensivo e pouco espontâneo.

146
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

Área interpessoal - Hierarquiza demais: tende a relacionar-se em termos de hierarquia,


subordinando-se aos superiores no escalão e exigindo subserviência dos
subordinados dele.
-Autoritarismo: acata a autoridade constituída (quando aceita por ele) e exige
acatamento indiscutível à eventual autoridade que ele possa ter.
Antidemocrático.
Área dos afetos -Preconceituoso: tende a julgar segundo o padrão negativo geral- em relação
a determinados objetos sociais- sem discernir o caso particular, que pode
perfeitamente não estar enquadrado no padrão geral desqualificado (rechaçao
homossexual, por exemplo, pelo simples fato de que há um juízo social negativo
contra esse grupo, sem examinar previamente o caso particular).
-Com forte carga agressiva, que o sujeito justifica com racionalizações.
-Acentuadamente conservador, embora por vezes mostre-se radical no plano
das reformas sociais, mas é um radicalismo mais verbal que efetivo. É o caso
da maioria dos ditadores e dos políticos radicais.

valores de outro; ou valores conflitam com necessidades e interesses, e assim


por diante.
A verdade é que todas as esferas e dimensões da existência podem tanto
encontrar-se como contrapor-se. Pode haver harmonia de valores éticos com a
conduta efetiva, aquela que de fato ratifica os valores que somos capazes de
sustentar (não as belas promessas e as lindas imagens com que costumamos
adornar nossa figura pessoal). Quando temos uma suficiente integração interna,
os conflitos reduzem-se a uma expressão mais externa- surgem dos inevitáveis
choques e controvérsias com o meio sociocultural (digo que são inevitáveis, pois
até os mais conformistas e alienados não conseguem o tempo todo ser vaquinhas
de presépio).
Contudo, os conflitos de toda ordem não faltam, nem sequer na vida mais
pacata. No âmbito da sexualidade e dos valores surgem como erva silvestre. Três
são as tentações de muita gente. Uma relaciona-se com· a vontade de permanecer
fiel ao parceiro, ideal muito apreciado por todos, e as incitações do desejo, forte
inclusive quando o amor coloca suas melhores intenções. As ciladas do desejo são
inúmeras, como resistir?
Outro conflito surge quando a mulher anda com um homem casado, algo
nada insólito entre as jovens de hoje, mas não por isso menos problemático. É algo
pacífico quando apenas se limita a um romance erótico, tipo encontro nas quintas-
feiras depois das 6; complica-se quando a moça se afeiçoa: aí não lhe bastam os
afagos e as delícias de um dia sem promessas futuras. E note-se que não insinuo
nada sobre o lado ético dessa forma menos ortodoxa do amor.
Nestes últimos anos acentuou-se uma outra divergência entre os casais: com
essa idéia tão em voga de curtir o corpo sem restrições, não são poucos os homens
que exigem o coito anal com sua parceira (não sei se essa prática deriva de alguma

147
O inquilino do imaginário

tendência homossexual no varão); a mulher recusa-se; o homem insiste; a mulher


termina por ceder, mas magoada por ter de submeter-se a uma prática que a
violenta.
Deixo por aqui esse tema; o leitor pode prosseguir por outras vias. Os conflitos
são inúmeros, surgindo em todas as esferas. Contudo, ainda é conveniente lembrar
que os conflitos emocionais não apenas perturbam no plano mental: afetam em
grau variável o plano somático físico. Não esquecemos de todos os reflexos da
depressão e da ansiedade nos distúrbios corporais.

Traços de personalidade inadequados e tipo distorcido de


personalidade
De início, é conveniente esclarecer que há tipos de personalidade
problemática e indivíduos que apresentam traços inadequados. Na primeira
categoria temos as personalidades narcisistas, esquizóides, egocêntricas, au-
toritárias e imaturo-infantis -para mencionar as mais conhecidas. Esses são
tipos distorcidos pela acentuação de dois ou mais traços que direcionam a per-
sonalidade toda do sujeito.
O tipo egocêntrico não chega a ser psicopático, pois conserva um claro senso
ético e costuma mostrar consideração para com o próximo; seu problema é que
permanece demasiado amarrado a suas necessidades e interesses, tendo sérias
dificuldades para compartilhar seus bens com outras pessoas; não conhece a
generosidade e quer tirar vantagem em tudo. Não significa que queira lesar os
qemais e que desrespeite as normas éticas -nesse caso seria apenas um psicopata.
Diríamos que rege sua vida pelo princípio de troca e de benefício: dou sempre que
tu me retribuas em igual medida ou numa proporção maior; é egoísta até no plano
amoroso; ele não ama, faz investimentos afetivos. Tem uma franca dificuldade
para pôr-se no lugar do outro.
O narcisista parece-se com o egocêntrico. Os dois são muito centrados em
si mesmos, com pouca abertura para o outro. A diferença radica em que o
narcisista atribui-se valores e qualidades que raras vezes possui; ou se as possui
blasona demais com os méritos implicados nelas. Reconhecer simplesmente os
méritos pessoais não é narcisismo; é parte de nosso sentimento de valor. O
problema surge quando o sujeito glorifica-se e se fascina com suas supostas
virtudes. Um homem com um corpo bem esculpido, com uma massa muscular
bem desenhada e um traçado facial atrativo pode sentir-se bonito, sem que isso
o leve à vaidade ou à presunção. O mesmo vale para outros atributos. O narcisismo
não vai unicamente pelo lado do corpo. Um indivíduo notoriamente inteligente
pode cair na arrogância intelectual, pensando que "poucos estão à altura de seus
dotes em matéria de perspicácia e de análise", desconhecendo que até o mais
bem dotado também é burro.

148
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

Quando é do tipo introvertido, não costuma blasonar nem se enaltecer;


permanece em sua torre de cristal, cultivando em secreto as belas imagens de
si mesmo. Não se expõe nem reivindica nada; só na intimidade mostra seu
lado sombrio: seu fácil menosprezo por tudo aquilo que não reproduza sua
imagem, por tudo aquilo que não reflita seus valores. Preserva-se; teme o juízo
negativo do outro; não quer mostrar o menor risco no cristal de sua imagem.
Nunca aprendeu a aceitar a face obscura, por vezes insípida e pouco amável,
que a vida mais afortunada comporta. Não quer reconhecer que no fundo do
espelho está o vazio inapelável. (Para uma caracterização sumária desses tipos,
veja-se o quadro 1.)
Menciono aqui quatro tipos de personalidade distorcida; outros autores
descrevem várias outras. O DSM-IV (1994) descreve dez, inclusive alguns tipos
que figuram tradicionalmente na categoria das neuroses, como são as personalidades
obsessivas e as histéricas; também coloca nessa classificação o tipo psicopático.
Nós não compartilhamos este critério. Cabe perguntar-se se todos os tipos não
entrariam igualmente na categoria dos neuróticos.
Penso que não necessariamente, mas se apresentam os traços que logo
descrevemos como típicos da neurose, o que pode acontecer, então também
entrariam nesse círculo.
O indivíduo com traços de personalidade inadequados não chega a constituir
um tipo: apresenta um ou mais traços e atitudes que o prejudicam, embora nem
sempre ele perceba o grau de inconveniência implicado em sua conduta. Pode ser
uma atitude-predisposição, como a que exibe o camarada preconceituoso ou
fofoqueiro; a atitude corresponde a uma forma interiorizada do reagir perante certas
situações-estímulos, baseada na experiência do sujeito. Eu os diferencio dos traços
de caráter, pois entendo que um traço caracterial corresponde a uma tática ou
forma de operar perante as exigências ·do meio. O caráter também é aprendido,
sendo igualmente modificável, segundo sejam as pressões da realidade e a
autocompreensão da pessoa.
Temos de considerar não apenas os traços caracteriais como inadequados;
também existem traços ou disposições temperamentais. Lembro que nessa categoria
se inclui qualquer característica inata, herdada ou geneticamente constituída, que
se manifesta precocemente no comportamento. Alguns autores classificam como
dimensões temperamentais três disposições: introversão--extroversão, atividade-
passividade e emotividade-não-emotividade. Essas disposições não seriam
completamente mutáveis, apenas moduláveis, isto é, amenizadas em sua expressão.
O introvertido acentuado pode tomar-se menos introvertido, mas não deixa de ser
o que constitui sua oritentação originária.
Esperteza, mentira, desonestidade, agressividade, falta de tato social, indis-
ciplina e desorganização, falta de empenho e de propositividade, dependência

149
O inquilino do imaginário

excessiva (falta de autonomia), arrogância, passividade, exibicionismo, impulsividade


- esses são alguns traços caracteriais e temperamentais inadequados.

As Abordagens sobre a Neurose: seus Mínimos Pontos de


Acordo e suas Evidentes Divergências

Como já ninguém ignora, três teorias disputam a exploração e colonização do


campo psicológico: o comportamentalismo, a psicanálise e a abordagem humanista-
existencial. As três teorias usam ferramentas e métodos diferentes; as três partem
de pressupostos e se propõem objetivos distintos.
Contudo, com respeito às neuroses, as três teorias parecem concordar em
duas ou três generalidades:
a) Primeiro, a área central de perturbação da neurose relaciona-se com a
esfera afetivo-emocional. O sujeito qualificado como neurótico sofre pela
maneira de experimentar sua realidade: por seu modo de sentir as coisas e
as relações que configuram seu universo pessoal. Sofre pela intensidade de
suas reações emocionais e pelo clima afetivo que impregna sua vida; clima
sobrecarregado de medos, ansiedade, culpa, conflitos, obsessões, depressões;
vive perturbado por uma série de sentimentos negativos, ambivalentes e
conflitantes. Para atenuar em parte o sofrimento associado a esses
sentimentos, apela para truques e mecanismos cuja manutenção o desgasta
ainda mais. São verdadeiros mecanismos alienatários e de defesa.
b) Um segundo ponto de concordância, que assinariam as três teorias, se
refere à temática central das neuroses: a ansiedade e a depressão.
Reconhecem que um grau de ansiedade perante situações de crise e de
decisões definitórias é natural e compreensível, o que não é o caso do
neurótico. Nele a ansiedade emerge perante qualquer situação que saia
do programa, colocando-o numa perspectiva de relativa incerteza. É
freqüente que as expectativas mais comuns e banais, ou as dificuldades
mais corriqueiras, lhe gerem fortes reações ansiosas. Tende a viver num
clima de sutil ou acentuada angústia, sem que sua situação objetiva justi-
fique essa vivência persistente.
c) Esses são os dois pontos básicos de acordo. Pode ser acrescentado um
terceiro ponto de convergência; relaciona-se com a gênese desse tipo de
perturbação: há bastante acordo para considerá-la como de origem
psicológica, isto é, surge e se articula na história pessoal do sujeito. Não
tem uma origem orgânica nem depende de fatores biológicos. O tem-
peramento, geralmente considerado de raiz biológica, pode favorecer

150
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

certas tendências e atitudes básicas, mas nunca condiciona per se formas


de relação homem-mundo do tipo neurótico.
Tampouco a constituição biotipológica determina esses estilos de vida que
estamos examinando. Alguns psicólogos chegaram a postular um hipotético fator
biológico na gênese da homossexualidade, que alguns casos podemos considerar
como uma forma peculiar da neurose, baseados sobretudo no aspecto marcadamente
veni.J.sino e feminóide que apresenta comumente esse tipo de pessoa. Mas essa
hipótese carece de todo fundamento sólido. A aparência venusina do homossexual
masculino- e marciana do homossexual feminino- é perfeitamente explicável por
uma consideração muito certa: a acentuação da aparência feminina no homossexual
masculino é completamente forjada, decorrente de sua tentativa de identidade.
Aliás, há pelo menos dois tipos de homossexuais homens. Um de tipo feminino,
jeitoso e amaneirado, conhecido na gíria brasileira como bicha; e o outro, de feições
másculas e de jeitos sóbrios. O primeiro corresponde ao tipo histérico; o segundo é
provavelmente um bissexual sem uma definição sexual clara.
Entremos agora no plano das divergências teóricas.
São muitas e começam já no mesmo terreno dos acordos preliminares. As
teorias concordam nas generalidades, mas divergem no modo de enxergar a
dinâmica das relações e a montagem dos fenômenos. Mostram diferenças na
ponderação dos elementos emocionais, atribuem um significado e uma origem à
ansiedade que revela bem os desacordos nos pressupostos teóricos. Inclusive no
plano da gênese psicológica, as três doutrinas acentuam o valor de determinados
fatores segundo a natureza de seus postulados.
Para Freud, o fator psicológico gerador da neurose reside no conflito psíquico,
oriundo das exigências incompatíveis entre as três instâncias da personalidade. O
ego tenta reprimir as demandas pulsionais do Id ou tenta compactuar com o super-
ego. A angústia surge como sinal de alarme dessa guerra entre as instâncias; o ego
se angustia perante exigências que ele não pode satisfazer, oriundas do Id. Aliás,
há também uma questão de desenvolvimento da libido: o neurótico é um sujeito
fixado numa etapa pregenital; ficou preso em alguma das três fases que Freud
postulava como períodos necessários da evolução libídica- fase oral, anal, fálica;
não nos esqueçamos de que para o fundador da psicanálise o homem era
basicamente um ser manducador (oral), defecador (anal) e pênico (fálico) ou
fornicador. Nessa teoria, as manifestações comportamentais do neurótico
correspondem a mecanismos de defesa, inventados pelo ego do sujeito para atenuar
os conflitos psicológicos que o atormentam.
Numa visão existencial, o movimento dos fenômenos perfila-se de uma outra
maneira. Para um psicólogo humanista, o que se qualifica de vivências e condutas
neuróticas correspondem a formas peculiares de ser. Correspondem a formas de

151
O inquilino do imaginário

vida malogradas, alienadas, truncadas, inautênticas. Também a angústia é encarada


de outra perspectiva: ela se relaciona com a possibilidade e a incerteza - dois
referenciais básicos do ser humano. Primeiro, seu terreno propício é a insegurança
primária, aquela que provém da etapa infantil e adolescente inclusive; esse terreno
instável e sísmico origina-lhe o sentimento que se move sobre areias movediças. É
o sentimento de insegurança ontológica. Logo, quando se depara com situações
críticas e incertas, se agudiza sua ansiedade. No caso do neurótico, qualquer situação
que escape do ritmo normal lhe provoca esse sentimento.
Um outro aspecto que acentua o enfoque humanista-existencial se refere à
importância do relacionamento interpessoal na gênese do psicopatológico. Como
mostraremos nas páginas seguintes, em cada um dos quadros da psicopatologia há
uma maneira característica de intemalizar a figura do outro. O indivíduo disfórico
defensivo1 (esta me parece uma adequada denominação para referir-nos à neurose)
se caracteriza por ter internalizado o outro com demasiada presença; diríamos que
se encontra habitado demais pelos outros, numa relação de relativa subordinação.
Em seu mundo gravita com muita força o juízo e ditames alheios. Poderíamos dizer
que não sabe se relacionar nem se situar no jogo interpessoal. Não é que seja
especialmente considerado como seu semelhante; simplesmente os outros ocupam
demasiado território em seu universo pessoal. Ele não soube colocar os personagens
que o freqüentam em seu devido lugar. Voltaremos a esse assunto.
No enfoque das teorias do aprendizado- o comportamentalismo- não
encontramos uma elaboração teórica ainda suficientemente arquitetada. Para Wolpe,
Shoben, Eysenck etc., a neurose consiste num,a série de condutas desadaptativas
que provocam sofrimento no sujeito que as apresenta. Porém, essas condutas se
justificam como tentativas para diminuir a ansiedade, embora muitas delas sejam
altamente extenuantes. Essa é a tese de Shoben, em particular. Para Eysenck, são
determinadas situações as que disparam a ansiedade; a pessoa não aprendeu a
lidar acertadamente nessas situações, e quando ela pensa ou tem de enfrentá-las
de novo, experimenta ansiedade.
Joseph Wolpe, o criador da técnica psicoterapêuticaconhecida comodessensibi-
lização sistemática, define comodamente a neurose como um conjunto de hábitos
inapropriados e persistentes, adquiridos em situações geradoras de ansiedade. Nessa
ótica é também considerada como um sinal de alarme.

Tentativa de um Conceito Geral de Neurose

Não é tarefa fácil proporcionar um conceito geral de neurose que satisfaça


os postulados teóricos das três abordagens hoje dominantes em psicologia. Numa
definição, cada enfoque acentuará os aspectos que identifiquem melhor a teoria.

152
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

De uma perspectiva ampla, sugiro o seguinte conceito:


As neuroses são perturbações psicológicas, originadas na história vital do
sujeito - em particular na infância e na adolescência -, caracterizadas pelo
predomínio de sentimentos negativos, o que leva o indivíduo a um estado
relativamente persistente de ansiedade, depressão e sofrimento. Os sentimentos
negativos relacionam-se, via de regra, à auto-estima e à autoconfiança, muito
diminuídas nesse tipo de pessoa, estando presente também um nítido ou difuso
sentimento de malogro pessoal. Como síntese de tudo isso, a pessoa tende a mover-
se num círculo vicioso, isto é, por roteiros repetitivos, desgastantes, improdutivos.
Cada tipo de neurose comporta uma peculiar forma de alienação e de
inautenticidade. Os quatro tipos descritos nos manuais sobre essa matéria implicam
uma particular incapacidade, por parte do sujeito, de dialetizar determinada dimensão
da existência. O obsessivo-compulsivo vive sob o domínio do cuidado, o que o
mantém numa vigilância constante e desgastante. O depressivo desliza para o
estado de abandono e de queda, quando não, nesse estado permanece. O histérico
aliena-se em seu ser-para-outro, que, em sua expressão extrema, é pura
exterioridade e representação. O ansioso vive sua contingência como simples
possibilidade negativa, sentindo que seu ser está sendo corroído inexoravelmente
pelo nada, pela tentação do abismo.
As quatro figuras da neurose originam-se na forma peculiar de interiorizar a
figura do outro e na conseqüente maneira de autoperceber-se. Voltaremos a essa
tese mais adiante.

Uso de Categorias Diagnósticas e a Questão da Individualidade


Existe uma concepção das neuroses num enfoque existencial? Certamente,
mas neuroses, psicoses, psicopatias e outros termos da psiquiatria são usados,
nesse enfoque, com muita precauÇão e parcimônia. Como observa Laing, a
nomenclatura da psiquiatria pertence, sobretudo, ao vocabulário da difamação; é
uma forma de invalidar o outro, pois é bem sabido que os rótulos diagnósticos estão
impregnados de conotações sociais extremamente negativas. Contudo, as reservas
que nos pode inspirar o vocabulário psiquiátrico não nos levam a descartar seu
emprego, embora precisemos usá-lo com as devidas precauções. Os fenômenos
descritos pela psicopatologia clássica existem. Esses fenômenos apresentam certa
configuração típica, com manifestações comportamentais e vivenciais
características, o que nos autoriza a falar de quadros e tipos - sendo o tipo uma
variedade dentro de um quadro (tipo obsessivo histérico, depressivo, ansioso nas
neuroses).
Há autores que se mostram reticentes em relação a essas classificações,
alegando que a individualidade não é enquadrável em tipos. Pretendem que o

153
O inquilino do imaginário

indivíduo, por definição, é único. Afirmam também que as classificações são


artificiais e não nos ajudam em nada na compreensão do caso concreto; pelo
contrário, apenas nos enganariam dando-nos a sensação de que já chegamos a um
saber certo quando colocamos um sujeito num quadro X.
Primeiro, todo indivíduo apresenta traços e características comuns com outras
pessoas: são os chamados traços comunais. Podem ser características físicas,
sociais, psicológicas ou existenciais. Sou moreno, introvertido, emotivo, responsável,
libertário, amante das coisas simples, com grande abertura para questões meta-
físicas, universalista: todos esses traços, e muitos outros que poderia indicar como
meus, se encontram em milhares de sujeitos.
Além dos traços comunais, existem os chamados traços universais, que se
dão em todos nós somente pelo fato de sermos humanos. São as características
antropológicas. Todos temos necessidades básicas, biológicas e psicossociais; todos
estamos sujeitos às mesmas negatividades existenciais: nós nos angustiamos,
fracassamos, experimentamos a solidão, o medo da morte, a dor da perda. Todos
somos temporais e finitos.
Não há dúvidas: a individualidade existe, mas isso não implica que não sejamos
enquadráveis em certas categorias gerais, que correspondem a características
presentes em uma multiplicidade de sujeitos. Quando dizemos de um sujeito que
tem um caráter obsessivo, afirmamos que apresenta uma série de traços próprios
dessas pessoas, o que não supõe negar sua individualidade. Todos eles têm uma
forma comum de lidar com a ansiedade (são programados, controlados e
controladores, certinhos, formais etc.). Isso nos leva a colocar a tese de que deve
haver alguns determinantes que levam à constituição desse caráter. É assim que
se procede na pesquisa científica.
O fato de ser ele classificável num quadro ou tipo não implica esquecermos
os aspectos únicos e peculiares desse indivíduo. Ele tem toda uma história pessoal
e já viveu uma série de eventos que o tomam diferente, digamos, de outros
obsessivos. Em psicoterapia, sempre levamos em conta esta idiossincrasia pessoal;
nunca pensamos que apenas estamos perante um tipo, que é apenas ideal;
consideramos as peculiaridades pessoais.
As classificações existem em todos os campos da ciência. Elas nos permitem
agrupar numa classe X uma série de fenômenos ou objetos que apresentam propriedades
comuns. Não são arbitrárias, pois todas elas obedecem a determinados critérios, va-
lidados por observações e princípios bem-estabelecidos. Certamente nos enganaríamos
se nossa pesquisa em psicologia chegasse apenas até a classificação de um sujeito. A
classificação proporciona-nos algumas pistas, e uma linha possível de compreensão do
caso particular. É um ponto inicial, nunca uma fmalidade em si.
Podemos propor uma terminologia diferente, para assim eliminar as conta-
minações pejorativas implicadas nos vocábulos usados para distinguir os tipos

154
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

corriqueiros. Foi o que fez V. J. Wukmir que, baseado na sua própria concepção
do patológico, propôs toda uma nova nomeclatura (Klinorexia para a melancolia,
Kurtorexia para a histeria etc.). Porém, essa substituição só nos serviria como
forma de comunicação interdisciplinar, a menos que cunhemos uma nova teoria
que venha a descartar nossa compreensão atual dos fenômenos; fenômenos,
aliás, muito bem estabelecidos. O que temos de fazer, como pesquisadores
desse campo, é tentar tirar a carga de preconceitos que esse tipo de rótulo
implica2 •

A Neurose como Desenvolvimento de um Padrão Vivencial

Interessa-nos determinar, quando admitimos uma forma de relação


homem-mundo como neurótica, o que têm em comum os diferentes tipos
qualificados com essa palavra. Já dizíamos, em páginas anteriores, que os
autores concordavam que os fatores comuns a todos os tipos eram a ansiedade
e, por vezes, a depressão. Essas seriam as constantes afetivas distintivas.
Na verdade, a maioria dos autores indicam a ansiedade como esta constante
comum; mas então como fica a neurose depressiva, em que os fatores do-
minantes são o desânimo, a desvitalidade e a prostração, diferentes da
ansiedade? Seria mais correto dizer que estão presentes essas duas constan-
tes, embora predomine a ansiedade nos três tipos (histeria, angústia, obsessão);
também estas pessoas vivem momentos depressivos- e os depressivos têm
suas fases de ansiedade.
Estabelecidos esses pontos, teríamos de ver quando a ansiedade pode ser
considerada como neurótica e quando como normal; o mesmo vale para a depressão,
pois sabemos que todos nós podemos passar por períodos de ansiedade e de
depressão, provocados por eventos que nos abalam de modo muito compreensível.
Isso nos leva a distinguir diferentes formas de ansiedade e de depressão.
Essa é uma tarefa que não oferece maiores dificuldades. É o que veremos nas
páginas seguintes. Também examinaremos o que entendemos por ansiedade e sua
diferença em relação à depressão.
Podemos tentar um outro caminho. Podemos perguntar-nos se, além dessas
duas constantes afetivas indicadas, não haveria algo mais, tão básico e essencial
como elas, que definisse até melhor esse modo de ser-no-mundo. Inclusive nos
compete uma outra tarefa: examinar cada um dos tipos de neurose.
Quando tentamos compreender o que acontece com uma pessoa que podemos
qualificar como neurótica, verificamos que ela segue um desenvolvimento cuja
seqüência James C. Coleman esquematiza nas seguintes deficiências:

155
O inquilino do imaginário

Traços caracteriais e afetividade


Toda forma neurótica de vida implica um desenvolvimento inadequado do
caráter. James C. Coleman, revisando pesquisas de vários autores, indica uma
série de traços caracteriais e de constantes afetivas que se encontram nestas
pessoas, em maior ou menor grau:
a) Inadequação e baixa tolerância a tensão.
Cattel e Scheier encontraram em 201 indivíduos diagnosticados nesse quadro
menor força do ego que o normal, atribuindo esse achado "a uma personalidade
mal organizada e à emotividade acentuada". Esses autores falam de força do
ego para referir-se à instância pessoal que lida com as exigências da realidade.
Desencorajar-se facilmente, desistir perante obstáculos menores, deixar-se
dominar por impulsos e por sentimentos negativos, ser dependente de apoio
externo, deixar-se apanhar por situações de atrito- tudo isso traduz pouca força
do eu, ou ego, como outros autores preferem. Eu falo nesse caso de vetor
caraterial deficiente, pois o caráter revela a forma de relacionamento dominante
que estabelece o sujeito na sua interação com o mundo. (Distingo 8 vetores,
cada um com seus respectivos fatores. Veja-se 7). Em razão dessa deficiência
na sua forma de lidar com as dificuldades, o indivíduo é dominado facilmente
pela ansiedade. Para evitar descalabros ou situações estressantes, a pessoa reduz
seu campo de ação e de risco ou inventa táticas de proteção, mecanismos de
defesa - como fazem os obsessivos, que tentam controlar sua expressão e seu
ambiente, e como fazem os histriônicos, sempre preocupados em enfeitar seu
papel para ganhar aceitação. Até na linguagem corriqueira fala-se de fraqueza
de caráter para qualificar pessoas que não sabem encarar suas dificuldades nem
superar seus fracassos. O caráter corresponde a todos os traços aprendidos no
desenvolvimento histórico do agente, mas é fortemente influenciado por outros
vetores da personalidade.
b) Angústia, temores e conflitos diversos encontram-se em grau acentuado.
c) Tensão e irritabilidade. G.P. Guilford, que fez estudos de análise fatorial
de uma grande amostra de neuróticos, determinou que essas pessoas
tendem a lidar com seus problemas de forma rígida e emotiva, com escassa
racionalidade, mostrando hostilidade e desconfiança diante de um mundo
que percebem como ameaçador e desfavorável.
d) Egocentrismo e relações interpessoais perturbadas.
O egocentrismo impede-lhe de formar e manter relações interpessoais sa-
tisfatórias. Faz exigências exageradas aos que o cercam, desconsiderando amiúde
os sentimentos e limites dos outros, atitude que termina por provocar rejeição, o
que vem a aumentar sua insegurança, desconfiança e hostilidade.

156
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

e) Rigidez e falta de autoconhecimento.


O neurótico costuma queixar-se de seus sintomas, mas tem escasso
conhecimento das causas que lhe provocam seu sofrimento. Rara vez tenta
examinar os motivos de suas frustrações ou de suas aflições. Eu diria que tende a
colocar a culpa na má sorte, nos enigmáticos desígnios astrais ou, como se costuma
falar aqui no Brasil, nos erros de encarnações anteriores. E, obviamente, na má
vontade do próximo. Quando decide consultar um terapeuta- no Brasil, pelo menos
uma parte nada desprezível só depois de ter consultado um taumaturgo, uma
cartomante ou um intérprete de qualquer coisa (de búzios, de sonhos, de mãos, de
signos cabalísticos ... )-, vai com a expectativa de receber algum tratamento rápido
que lhe permita livrar-se de suas dores íntimas sem ter de passar por um processo
de mutação e de transformação quase sempre trabalhoso, demorado e sofrido.
Poderíamos objetar a Coleman que esta falta de autoconhecimento não é um
traço apenas desse tipo de indivíduos: os chamados normais não se distinguem por
serem muito conscienciosos; também eles parecem considerar a compreensão
verdadeira do mundo próprio como um luxo só para privilegiados. Só que os
normais sofrem menos os efeitos desta forma de descuido em razão de saberem
lidar com as exigências da vida com mais habilidade que os neuróticos.
Em outro capítulo voltarei a esse ponto, que me parece básico para uma te-
rapêutica dos afetos e como via apropriada do desenvolvimento. Coleman afirma
que a rigidez e a falta de autoconhecimento levam a um sentido reduzido da realidade
e implicam certa incapacidade para avaliar corretamente sua situação, o que termina
por prejudicar seu desempenho. Eu diria que sua rigidez decorre da falta de uma
autoconfiança básica, que é a deficiência que leva à constituição desse tipo de caráter.
f) Insatisfação e infelicidade. Como conseqüência de seus conflitos, temores
e preocupações, assim como por sua visão da vida, os neuróticos tendem
a ser tensos, pessimistas e insatisfeitos. Minha tese é de que neles há um
profundo sentimento de malogro pessoal, sentimento que não existe nas
outras figuras da psicopatologia clássica. O psicopata, aquele habilidoso
cidadão que se dedica a usufruir os bens da vida sem se importar em nada
com seu próximo- utilizando-o em tudo o que puder, com a maior desfaçatez
e tranqüilidade-, não chega a experimentar esse sentimento em razão de
sua enorme capacidade de racionalização e por seu menosprezo a
qualquer valor universal. O psicótico (mais bem conhecido nos meios
não-acadêmicos por nomes menos delicados: pirado, maluco, louco) pode
ter ocasionais momentos de lucidez, quando se patenteia sua doída errância
e sua irremediável orfandade, mas esses momentos são raros: habitam
outras esferas onde já não precisam dar conta de si aos simples congêneres,
que por vezes os incomodam com normas e exigências chatas. Os
chamados débeis mentais podem aperceber-se de sua situação quando

157
O inquilino do imaginário

estão numa categoria de deficiência intelectual leve, o que lhes provoca


certamente sofrimento, mas não chegam a ter clara consciência da mag-
nitude do drama de viver, conformando-se em levar uma existência
embrionária, não chegando a apreender a questão da realização pessoal.
Onde ficam as outras figuras da psicopatologia? Qual é o lugar dos
homossexuais, dos drogados, dos alcoólatras, dos perversos sexuais? Via de regra,
todos eles transitam pelo círculo da neurose.
Entre os homossexuais encontramos gente de grande valor por suas qualidades
e capacidades criativas, conseguindo muitos deles realizações que os destacam.
Contudo, essas realizações raras vezes conseguem compensar e neutralizar intei-
ramente o preconceito, a discriminação e a censura que todos eles carregam, além
dos conflitos psicológicos que estão na origem desse tipo de conduta; não nos esque-
çamos de que a maioria deles apresenta traços nitidamente histéricos, em especial
os amaneirados e feminóides, conhecidos na gíria como bichas. Em sentido estrito,
estes são os homossexuais; o homossexual do tipo másculo é geralmente um bissexual.
g) Sintomas psicológicos e somáticos. Os sintomas somáticos associados à
ansiedade são muitos e variados. Lembro que o professor Lopez Ibor, em
seu livro clássico, comenta algumas dúzias. Os mais comuns são: maior
freqüência de micção, indigestão, suor excessivo, dores de cabeça, palpitações
cardíacas, sensações de sufocação, opressão peitoral, além de tensão e
dores vagas, gastrite, náuseas e vômitos, sensações de vertigem.
O que interessa destacar em todas estas manifestações somáticas da angústia,
que Coleman esquece, é o significado expressivo: elas expressam em nível
somático o que experimenta o sujeito no plano existencial. Vejamos o significado
de alguns sintomas:
- Gastrite: traduz a corrosão que destrói as entranhas mais íntimas da pessoa,
exasperada numa situação que lhe provoca hostilidade, que nem sempre pode pôr
para fora por temor às conseqüências que os atos agressivos costumam implicar.
-Náuseas e vômitos: é uma forma de rejeitar algo que lhe resulta insuportável;
uma tentativa de expulsar algo que não consegue digerir, obtendo assim um alívio
momentâneo. Sartre, nos romances, mostra essa forma de reação em seus
personagens quando são pegos em situações intragáveis.
- Falta de ar e opressão do peito: traduz o encurralamento vital que ameaça
o sujeito e a extrema diminuição de sua capacidade de troca energética com seu
ambiente. Comprimido por dificuldades diversas, o sujeito perde seu ritmo
respiratório, sentindo-se asfixiado.
Os sintomas psicológicos são muito conhecidos, até mesmo por qualquer leigo.
Cada tipo apresenta algumas manifestações características. Idéias fixas negativas e
atos compulsivos, na neurose obsessiva; perturbações pseudo-somáticas (cegueira,

158
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

paralisia, afonia), na histeria; perda de apetite sexual, desmotivação, inibição e perda


dos interesses vitais, na depressão; sentimento de ameaça, irritabilidade e tensão, na
angústia.
Mais que sintomas no sentido médico, que supõem um processo patológico
subjacente, essas são as manifestações características dos quatro tipos comuns.
São as manifestações que configuram um modo de experimentar a realidade vivida.
Não são sintomas de uma hipotética doença.

O caráter e sua relação com outros vetores da personalidade


Entendemos por caráter os modos predominantes de relacionar-se o sujeito,
seja com outros atores, seja com os diversos objetos que configuram sua realidade.
Assim como o temperamento revela-se nas maneiras expressivas dominantes, o
caráter manifesta-se no modo de atuar e de agir. Embora todos os vetores da
personalidade influenciem o caráter, três se destacam:
O vetor temperamental. O vetor motivacional. O vetor potencial.
O fator atividade-passividade, pertencente ao vetor temperamental (de origem
biológica), influi no caráter, qualquer que seja a polaridade dominante. Ser passivo,
por exemplo, implica uma propensão para a desistência e a falta de iniciativa. O
agente pode deixar-se dominar por esta propensão ou tentar superá-la pelo menos
em parte, pois o temperamental não parece inteiramente superável, mas já tentar
superar uma disposição que julgamos nociva e inconveniente indica força de caráter.
O mesmo vale para o fator emotividade. Você pode entregar-se à sua sensibilidade
primária vivendo numa contínua agitação pática, com todo o desgaste que isso
significa, ou ativa irnpermeabilizadores que lhe atenuam o impacto dos estímulos
situacionais. 8 Emocionar-se é deixar-se apanhar pelos estímulos situacionais
(internos e externos), de maneira que o sujeito fica afetado psicossomaticamente.
Fica momentaneamente preso pela situação, que o atinge por seu impacto
envolvente. O trabalho, a reflexão, o olhar distanciador e analítico, essas são três
maneiras de superar o emocional. De um modo progressivo é o que aprendemos
ao longo do tempo. Na idade adulta somos bem menos emocionais que na infância.
As motivações fisiológicas (ou necessidades biológicas) podem impor-se ao
sujeito de uma maneira compulsiva, levando-o centralizar suas atividades no sexo
e na comida. Isso não é incomum quando se passa por um período de ansiedade,
mas pode ser apenas um hábito gratificante. Precisa-se de força de caráter (os
psicólogos clássicos falariam de força de vontade) para não viver em função dos
prazeres elementares. As demandas ontológicas (ou motivações psicossociais)
não são menos impositivas. A demanda de segurança pode-nos levar a
comportamentos obsessivos e autoritários, a menos que aprendamos a conviver
com a incerteza e com um razoável descontrole. A rigidez, como traço caraterial,
não é a melhor maneira de lidar com o imprevisto, o desafio e as dificuldades.

159
O inquilino do imaginário

O vetor potencial inclui as aptidões, as capacidades, a inteligência e o


conhecimento, quatro fatores que sempre estão presentes de alguma maneira na
forma de encarar as dificuldades e de equacionar os problemas. Não é dificil
perceber como eles operam na vida prática.

As constantes afetivas fundamentais na configuração neurótica


Além do indicado acima, que resume o que pensam os psicólogos, quero
propor um critério distintivo que nos permita qualificar um fenômeno vivencial
como neurótico. Além de o sujeito mostrar certa susceptibilidade à ansiedade e à
depressão, deve mostrar:
a) um básico desencontro consigo mesmo, derivado ou correlativo de uma
baixa auto-estima. Essa baixa auto-estima manifesta-se pelo predomínio
de sentimentos negativos referidos a si mesmo: sentimento de vergonha,
de culpa, de desvalorização, de inferioridade, de inadequação.
b) Relacionado com essa baixa auto-estima, estas pessoas apresentam uma
autoconfiança reduzida, o que as leva a serem inseguras, procurando por essa
razão modos de relacionamento que diminuam esta ausência de segurança
básica. Assim entendemos a necessidade de apoio no ansioso, o excesso de
programações no obsessivo, a necessidade da valorização no histérico, o lamento
(explícito ou implícito) e a procura de amparo no depressivo.
c) Como conseqüência de todo o anterior, essas pessoas apresentam uma
tendência a transitar por circuitos fechados e viciosos, isto é, têm certa

QUADRO 11
Diferenças entre a Angústia Sintomática e a Angústia Existencial

DIFERENÇAS ANGÚSTIA SINTOMÁTICA ANGÚSTIA EXISTENCIAL


Por suas Origens Expressão de conflitos persisten- Originada por circunstâncias que
tese de experiências negativas que põem em jogo os valores de
abalam a auto-estima do sujeito, sentido, ou que estão associadas
colocando em questão sua a decisões definitórias.
segurança básica
Por seus Efeitos Tende a paralisar os roteiros de Estimula o questionamento da
ação e a forjar novas formas de situação originante da vivência e a
alienação. Ou leva o sujeito a procura de novos caminhos.
circuitos fechados de circulação.
Por seu Caráter Sintomática (neurótica), perturba- Inerente à existência humana,
dora, limitante (obriga o sujeito a reveladora de sua condição.
usar mecanismos), restritora da Associada ao cuidado, à respon-
liberdade. sabilidade e à liberdade.

160
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

incapacidade para sair de situações conflitantes e de impasses, transitando


por roteiros que obstruem seu desenvolvimento correto, embora possam
dar-lhes uma aparente segurança provisória. Parecem estar presas a
programações e constantes afetivas que lhes impedem de olhar o mundo
com suficiente liberdade; apegam-se a esquemas cognitivos e táticos de
atuação que os condena a essa forma de transitar pela vida.
d) Embora algumas pessoas que apresentam essas características possam
contar com uma série de realizações efetivas que testemunham sua
capacidade e determinados talentos, todas elas carregam um sentimento
de malogro pessoal, sentimento que lhes impede de valorizar ver-
dadeiramente suas conquistas - quando elas existem.
Seja no âmbito do trabalho terapêutico, seja no círculo de nossos
relacionamentos, quando contatamos estas pessoas, nos surpreende que muitas
delas apresentam uma excelente folha de serviços, com realizações que falam
muito bem de suas capacidades. São profissionais de todas as áreas, ou donas de
casa que reconhecem ter um bom marido e belos filhos; não obstante isso, queixam-
se ou afirmam ter errado o caminho, não reconhecendo em seus logros motivos
suficientes de satisfação6 •
Demais está dizer que esse sentimento de malogro amiúde corresponde e
reflete a realidade objetiva do sujeito.

Ansiedade e Angústia.
Angústia Existencial e Sintomática
Lembremos que entendemos por ansiedade uma vivência de expectativa tensa
provocada por uma possibilidade que deixa em suspense nossa posição presente.
Qualquer situação nova que origine expectativas imprevistas tende, normalmente, a
tensionar o campo psicológico. Ficamos naturalmente ansiosos pelos resultados de
uma prova, e o mesmo nos acontece quando temos marcado um encontro que julgamos
importante. É sempre a expectativa que nos coloca cara a cara com a ansiedade.
Mas a expectativa é um aspecto da temporalização: relaciona-se com o futuro.
A temporalidade- as três vertentes do tempo em cuja trama a vida transcorre
- é uma dimensão fundamental do ser humano. O homem não só vive no presente;
apenas a criança o faz, e até os quatro anos. O presente afunda suas raízes no
passado e projeta-se no futuro. Pois bem, existem certas vivências que só têm sentido
por sua conexão com o futuro. A espera e a esperança, a expectativa e a ansiedade
são as vivências que revelam a estrutura prospectiva ou futurível do homem.
Note-se que falamos de ansiedade e angústia como conceitos equivalentes.
Embora alguns autores façam alguma diferença dizendo que a angústia é uma

161
O inquilino do imaginário

ansiedade acompanhada de componentes somáticos notórios, eu diria que a angústia


é um grau mais avançado do soçobro vital.
Importa destacar que nessa abordagem a angústia é inerente à condição humana;
isso em primeiro lugar; logo, não é uma experiência negativa em si, pois traduz a
inquietação do ser perante seu destino e sua responsabilidade; e não apenas pára
aqui sua importância; ela revela um aspecto básico da existência, que é a liberdade.
Justamente nos angustiamos perante a possibilidade negativa, porque ela nos mostra
que nada está inteiramente determinado, que as determinações que estabelecemos
por opções já feitas nos comprometem, sem dúvida, mas não eliminam a incerteza.
Angustiamo-nos perante a possibilidade de perder nosso emprego ou de contrair
uma doença grave que abale nossa capacidade de dar conta da vida, de fracassar
num empreendimento importante. Se isso sucede, o que vai acontecer conosco?
Quando as possibilidades negativas acontecem de fato, temos duas alternativas:
ou nos deprimimos pelo bem perdido ou continuamos angustiados dominados pelas
perspectivas nada amáveis que os eventos infaustos nos oferecem. Geralmente
oscilamos entre uma e outra; ora nos deprimimos, ora nos angustiamos; ora nos
abandonamos à derrota, ora acordamos de novo para a luta e a tensão. Essa é a
razão pela qual nem sempre é fácil discernir depressão e angústia, pois elas alternam-
se especialmente num período inicial. Contudo, são muito diferentes em seu mo-
vimento intencional.
Eu diria que a angústia deriva e se relaciona com o trinômio existencial básico:
cuidado- responsabilidade -liberdade. Precisamos cuidar de nossa vida; cuidar é
dar conta de nós mesmos: é atender nossas necessidades e fmjar as possibilidades
inerentes à dinâmica do existir. Somos responsáveis inteiramente por este cuidado.
É freqüente que tentemos colocar essa responsabilidade nos outros, na
natureza, no mero acaso, na sorte, no inconsciente, nos astros e em outros álibis
similares. Essas tentativas são operações de má-fé - meros artifícios para nos
preservarmos e para atenuar a angústia perante nossa responsabilidade.
Somos livres: não estamos inteiramente determinados, nem por uma natureza,
nem por um passado (nem muito menos por vidas passadas!!), nem pelos
compromissos que já assumimos, nem sequer por desígnio divino. Precisamente
por sermos livres é que somos responsáveis. Essa liberdade concretiza-se e se
manifesta na capacidade de opção. Quando, por algum motivo, perdemos a capacidade
de escolha, não somos responsáveis- como é o caso dos indivíduos que agem sob os
efeitos de drogas e/ou de indivíduos que perdem o juízo de realidade (na loucura).
Para nós, a angústia existencial é inerente à condição humana, reveladora de
sua essencial indeterminação; manifesta-se de um modo acentuado nos momentos
cruciais da vida, quando temos de tomar uma decisão definitória de nosso destino
ou quando são postos à prova os valores que dão sentido à nossa vida. A angústia
existencial não deve ser confundida com a ansiedade normal- que emerge perante

162
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

qualquer situação indeterminada ou expectativa-; pode chegar a paralisar a atividade


do indivíduo na medida em que põe em questão as linhas e os princípios de ação,
mas essa paralisação é transitória.
A angústia sintomática relaciona-se com uma estrutura caracterial frágil, mal
preparada para enfrentar as dificuldades ou fragilizada por conflitos persistentes e
por frustrações nunca superadas.

QUADRO IH
Características de ansiedade sintomática ou neurótica

Ansiedade e Angústia - Quando não corresponde, como reação, à situação que a provoca.
Sintomática - Quando se faz periódica e persistente.
- Quando se toma o clima dominante na vida da pessoa, impondo um
sentimento de soçobro existencial.
- Quando a dispara qualquer evento irrelevante.

A angústia existencial sempre estimula o questionamento da situação ori-


ginante da vivência e incita a procura de novos caminhos. Nesse sentido é criadora.
É o que acontece com o homem lúcido, o intelectual e o artista, que precisa arder
no fogo de uma interrogação tensional para poder criar. Como afirma Vargas Llosa,
"preciso da tensão e da luta para criar: o conformismo é incompatível com a arte".
A história não conhece gênios que tenham morado nos limbos da satisfação, nem
sequer da serenidade. O gênio precisa do desafio e da luta.
A angústia sintomática decorre de conflitos persistentes, que o indivíduo não
consegue superar, e de experiências negativas que abalam a auto-estima do sujeito,
colocando em questão sua segurança básica. Esses três fatores associados tomam
a pessoa frágil, levando-a a reagir de maneira ansiosa, percebendo uma ameaça
até em situações corriqueiras.
O sujeito, para escapar dos supostos abismos que o ameaçam, mais imaginários
que reais, termina por inventar saídas de compromisso que pelo menos atenuem
sua ansiedade. Essas saídas, não raras, são novas alienações.
Para sintetizar as diferenças entre ambas as vivências, veja-se o quadro 11.
Além das diferenças quanto à valorização da angústia, que neste enfoque não
é uma vivência puramente negativa, nem um simples incidente infeliz, há outras
divergências com respeito às outras duas concepções. Em psicanálise tudo gesta-se
na infância, etapa da qual decorrem a problemática neurótica- sendo ela sobretudo
uma peripécia da libido- e os conflitos pulsionais, arquivados nos porões da mente, o
Inconsciente. Bem diferente é a visão existencialista. A neurose é mais que nada
um estüo de vida, originado ou não na infância, mas sempre modelado pelas situações
concretas, tal como elas foram vividas pelo sujeito. É um estilo de vida que intenta
mascarar as contradições sofridas em contato com uma realidade adversa ou sentida

163
O inquilino do imaginário

como tal. Na medida em que pretende mascarar as contradições sofridas, é um


mecanismo defensivo e uma falsificação da existência. Em todo neurótico há uma
percepção mistificada de si mesmo e da realidade circundante. O mais comum é
que alimente metas e valores alienados e atitudes postiças. Esses valores e essas
metas geralmente são um reflexo da ideologia que o contexto social oferece ao
sujeito. O neurótico reflete, uma vez intemalizados, os valores de seu contexto
particular. Nesse sentido, podemos dizer que o indivíduo se submete primeiramente
à neurose objetiva, aquela que prevalece no grupo social, na sociedade.
Poderíamos indicar outras diferenças, mas por ora basta.

A Angústia Existencial
Devemos a Soren Kierkegaard a primeira tentativa de elucidação da
angústia. Corresponde a ele o mérito de haver escrito o primeiro livro dedicado
a essa vivência: O Conceito de Angústia (1844, Copenhague). Como quase
todos os escritos do filósofo, esse texto não é de fácil acesso para o leitor de
nosso ambiente cultural, em nossa época. Embora suas análises sejam
inteiramente pertinentes, de aguda penetração psicológica, sua insistência na
temática do pecado não estimula sua leitura ao leitor contemporâneo. É que a
noção. de pecado nos cheira hoje a coisa do passado. Pecado e proibições de
natureza sexual estão muito associados na cabeça de muita gente. Certamente
pecado não é meramente isso, mas é assim que é entendido esse conceito pela
nova geração. Pecado é pecatus: dívida e falta. Nesse sentido, todos nós somos
pecadores - como justamente ensina a tradição.
Contudo, temos de destacar três contribuições do pensador Danés sobre esse
tema. Em primeiro lugar, ter feito pela primeira vez uma nítida distinção entre
Medo e Angústia. O medo é uma reação de temor perante uma ameaça concreta
e definida, e a angústia surge perante uma ameaça possível. Segundo, ter destacado
o aspecto também positivo da angústia; é verdade que nesse estado nos tensionamos
e sofremos, mas sua inquietude é uma forma de alertar-nos e de estimular-nos na
procura de alguma alternativa melhor. Terceiro, Kierkegaard nos ensinou que a
angústia é uma constante humana, derivada da responsabilidade e expressão de
nossa liberdade; não é algo meramente fortuito, produto de circunstâncias adversas.

A Neurose como o Império do Outro no Mundo do Sujeito

Apesar de todo o dito acima, relacionado com a extrema cautela no uso dos
rótulos diagnósticos, podemos caracterizar alguns aspectos peculiares do existir

164
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

neurótico. Minha tese é que os três grandes quadros da psicopatologia clássica- a


velha nosografia psiquiátrica, que ainda hoje é usada por gregos e troianos -
implicam modos de vincular-se e de perceber o outro peculiares a cada quadro.
Considero que o essencial, a raiz de onde se origina a problemática que caracteriza
a existência que qualificamos como neurótica, psicopática, psicótica - que são as
três entidades sagradas do jargão psicopatológico clássico-, reside em modalidades
específicas do internalizar a figura do outro por parte do indivíduo.
O sujeito neurótico intemalizou a figura do outro como uma presença
dominante, perante a qual o próprio sujeito se posiciona como ente secundário.
Isso significa que para o neurótico o outro tem demasiada presença.
No psicopata, o outro está quase ausente: é apenas um objeto a ser considerado
em determinadas circunstâncias, segundo as exigências e conveniências do próprio
sujeito. Diríamos que o outro não habita o espaço interno do psicopata, à diferença
do neurótico que é habitado demais pelo outro.
O outro está no mundo do psicótico como uma figura parcial, contraditória e
ambivalente. No mundo do psicótico, o outro é um habitante estranho, quase sempre
puramente negativo, distante e fugidio. No caso do paranóide, que é um tipo de
psicótico, o outro representa uma ameaça, é o intruso prepotente e ameaçador. O
hebefrênico, que é um tipo freqüente de esquizofrenia, percebe os outros um pouco
como extraterrestres, ora como invasores dominantes, ora como seres distantes
inapreensíveis.
O mundo do psicótico está habitado por seres desencamados, fantasmáticos,
sempre parciais. Sendo assim, ele é tudo isso- já que eu sou, em boa medida, o outro.
O mundo do psicopata está desabitado, apenas freqüentado por visitantes
sempre transitórios. Por isso o psicopata parece tão insensível, tão desconsiderado,
tão egocêntrico.
O neurótico está habitado demais; está tão habitado pelo outro que quase
sempre precisa tomar providências, tem de apelar a truques para ele mesmo
conseguir ocupar um espaço suficiente nesse mundo.
Os quatro tipos de neuróticos, comumente descritos nos manuais, tendem a
vincular-se ségundo modalidades bem características.
Falamos de intemalizar. Esse é um processo que tem merecido abundante
atenção por parte dos psicólogos. Tem-se insistido bastante na importância da
infância como a mais significativa etapa para a constituição desse tipo de experiência.
É sem dúvida um fenômeno que remonta aos primórdios do desenvolvimento. Trata-
se de um acontecimento que nos permite compreender como se vão assimilando
os inúmeros eventos e situações que ao longo da vida estamos protagonizando,
seja como atores passivos e espectadores interessados, seja como agentes
responsáveis. Nesse processo, o que nos acontece na infância parece ter um valor
primacial. Existe certo consenso entre os diversos autores no sentido de considerar

165
O inquilino do imaginário

essa etapa como a matriz das principais linhas do caráter, isto é, como responsável
pelos modos dominantes de relação homem-mundo. Em geral, essa tese me parece
muito plausível. Durante esse período, a criança introduz-se gradualmente no mundo
humano através desse longo e por vezes complicado processo que denominamos
de socialização. Durante esse decênio, o infante conhece uma gama considerável
do repertório de experiências humanas. Contudo, só uma gama considerável; será
durante as outras etapas que conhecerá aspectos novos e decisivos. Na adolescência
emerge uma série de experiências que antes apenas havia suspeitado, ou cujo
significado apenas havia entrevisto de longe. A sexualidade, a necessidade de
autonomia, a procura de um lugar no espaço da produção, a vontade de uma
projeção futura - nesse estágio o jovem descobre-se como possibilidade - são
temáticas desconhecidas pelo infante. De qualquer forma, na infância organizam-
se alguns traços básicos da personalidade.
Não é a variedade nem a quantidade de experiências o que toma tão importante
a infância na constituição da personalidade. É mais a natureza dessas experiências.
São marcantes, porque se dão num plano de afetividade original. Impressionam e
modelam o ser da criança porque a afetam de um modo direto, sem filtros nem
atenuantes. Temos de lembrar que a criança ainda não possui sistemas de filtragem
e barreiras defensivas. Sua relação com os eventos não é modulada por esquemas
conceituais e por esse mecanismo de análise, distanciamento, que chamamos reflexão.
Ela está imersa~ mergulhada no mundo, e mergulhada também em sua natureza- o
corpo. Isso a toma extraordinariamente aberta e receptiva às solicitações de seu
contorno; aberta e sensível. Por viver num contato muito estreito, sem mediações,
com os objetos e as pessoas, está sendo impressionada profundamente. Ela é, aliás,
como uma argila virgem, em que tudo o que se imprime fica escrito de um modo
nítido e, muitas vezes, indelével. "Lembro como me impressionava tudo naquela
época encantada"- escreve Max Nolden. "As imagens dos livros nunca eram apenas
fotografias e gravuras: eram cenas que adquiriam movimento, personagens que viviam
num outro plano, tão real como meu cotidiano ou talvez mais. Até as palavras saíam
da boca das pessoas como algo sólido e consistente, como moedas de um cofr~ e
como água da torneira, sobretudo quando eram faladas por meu pai; ele dizia as
coisas de uma forma indubitável, mais clara que um feixe de luz. Eu podia não
compreendê-las, mas as via. Quase tudo tinha a densidade e o peso do defmitivo. Era
a presença insubomável, amiúde terrível, quase sempre fascinante. Lembro quando
ia à igreja. Aqueles vitrais com a história da paixão de Cristo me fascinavam. Eu via
Jesus carregando a cruz, sentia as chicotadas com que os verdugos atormentavam
seu corpo; ouvia seu fôlego entrecortado pelo cansaço. E quando o padre, num
trecho da missa, proclamava 'se lança satanás nos infernos', eu enxergava essa
cena com todo seu drarnatismo: era uma dança algo grotesca e divertida. E os cheiros,
como me embriagavam! Parecia-me que cada pessoa tinha um cheiro particular;
minha mãe estava impregnada, uma mistura de comidas, suor e jasmim; certos dias

166
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose

percebia seu sangue de mulher, algo muito estranho que me desagradava e me atraía
(só anos depois entendi do que se tratava). De meu pai, o que mais me impressionava
eram suas raivas; então se transfigurava, parecia-me um cão furioso, pronto para
despedaçar a quem estivesse por perto. Todos ficavam com medo; a mãe calava,
nós nos escondíamos em algum buraco. Contudo, quando ele se ausentava, eu sentia
sua falta e o procurava onde ele costumava estar; ele era grande e forte, e com
freqüência seu olhar me envolvia como uma chuva numa tarde de outono, suave e
fresca( ... ). Naquela época, como acreditava em tudo! Não havia palavra em vão
nem gesto insignificante; sobretudo a palavra dos pais era sagrada. Se minha mãe
me dizia que não devia freqüentar o trato de um menino porque ele era um sujeito
ruim, isso era verdade revelada; se me ensinava que Deus está sempre observando
os nossos atos, eu sabia que estava me espiando de alguma maneira. E quando ela
se inclinava perante uma pessoa mais poderosa, me transmitia sua reverência como
se os dois fôssemos seres mínimos ante um ente superior( ... ). Aquele era um mundo
compacto, de uma presença inapelável ao mesmo tempo absolutamente real e
misterioso, completamente familiar e estranho."
Sim, a criança é um ser que acredita. Pelo menos durante os seis primeiros
anos sua fé nos adultos não sofre nenhuma fissura. De seus pais obtém quase tudo:
o alimento, a proteção, o carinho. Deles recebe os cuidados para orientar-se no
mundo. Eles vão colocando as marcas e setas que indicam o sentido e o significado
das coisas e das situações. Como poderia duvidar? Para duvidar é preciso, antes de
tudo, ter a capacidade para tomar certa distância do objeto; duvidar implica saber
colocar-se noutra perspectiva. A criança pode não aceitar algumas normas; pode
protestar perante algumas restrições que obstaculizam e impedem sua espontaneidade
e suas inclinações hedônicas. Contudo, esses protestos não emanam de um
posicionamento diferente, baseado numa razão ou num princípio; são meros reflexos
de um desejo contrariado ou simples tentativa de afirmação de um ego que procura-
suas primeiras formas de expressão. Urna educação adequada leva em conta esses ·
reflexos e tentativas: eles são a manifestação mais genuína de uma mente em
desenvolvimento. Mas não aceitar certas medidas disciplinares- muitas delas bastante
arbitrárias e caprichosas - não implica duvidar. A criança certamente não gosta de
punições e de exigências severas, mas sente a necessidade de letreiros que lhe
indiquem a direção certa da estrada. Acredita-se ou duvida-se, aliás, daquilo que não
pertence ao plano da evidência. Da experiência sensível a criança não duvida. Papai
Noel é para ela urna evidência; se os pais afirmam que é esse personagem quem dá
os presentes de Natal, ela acredita, pois essa informação pertence à esfera da crença.
A fé ingênua no dado perceptivo e na figura de autoridade é a atitude natural
para quem não possui referenciais próprios. E todos os referenciais da criança são
externos, oriundos de seu círculo familiar e da comunidade que o configura. Os
pais e os outros significativos são a autoridade competente, isto é, os autores de
boa parte do universo infantil. Eles definem e demarcam as dimensões mais

167
O inquilino do imaginário

importantes do real. A versão que eles proporcionam da realidade não é apenas


mais uma versão: é a única que o ser pequeno conhece.
O que nos permite compreender o fundamento de nossa tese a propósito da
origem do psicopatológico no interpessoal é a evidenteprioridode do outro na constituição
mesma do sujeito. Essa prioridade é completamente manifesta durante toda a infância,
estendendo-se até o início da adolescência, momento em que a individualidade começa
a manifestar-se com um novo ímpeto ou sobre outras bases. Durante a infância, a
criança é literalmente sitiada e ocupada por uma série de personagens; eles ditam as
regras do jogo, interpretam os principais papéis e impõem as normas.
Os manuais clássicos sobre essa matéria descrevem cinco tipos de neuroses;
alguns chegam a mencionar sete. Por ora, nós consideraremos apenas quatro tipos.
A quinta forma, a reação fóbica, não nos parece que possa configurar um tipo.
Consideramos que a fobia pode apresentar-se em todos os tipos e inclusive em
outros quadros - como nas psicoses e ainda nas chamadas pessoas normais.
Os quatro tipos os caracterizaremos segundo sua nota dominante, a saber: 1)
o guardião de si mesmo, ou o mundo dos obsessivos; 2) o homem na cripta, ou a
queda na fossa: o homem depressivo; 3) o ator e sua farsa: o caráter histérico; 4)
tentando andar em solo escorregadiço: o mundo da ansiedade.

Notas
1) Disfórico - disforia =esta palavra designa qualquer estado de desagrado, insatisfação e desânimo.
2) V. J. WUKMIR. Emoción y Sufrimiento (Barcelona, 1967).
3) MAX NOLDEN. Lo que se oculta en elfondo deZ espejo. Santiago-Chile, 1972.
4) JAMES COLEMAN. Psicologia do Anormal na Vida Contemporânea (São Paulo, 1980).
5) J. J. LÓPEZ IBOR. La Angustia Vital (Espanha, 1950).
6) Uso a palavra logro no sentido espanhol, como sinônimo de realização; equivale ao inglês
achievement. Os logros podem ser materiais, espirituais ou meramente simbólicos.
7) EMÍLIO ROMERO. Essas Inquietantes Ervas do Jardim. (Lemos Editorial, 1996) pág. 87.

168
Capítulo 7

O PRBDOMINIO DOS SENTIMENTOS


~

NEGATIVOS NO CIRCULO
EXISTENCIAL DAS NEUROSES

O movimento da vida humana é uma espiral em aberto


a neurose, essa espiral tende a fechar-se num círculo: limitante, supos-

N tamente protetor, pouco permeável, escassamente mutável, sufocante. Todo


círculo nos aprisiona, embora nos dê a sensação de uma roda que nos
segura a um eixo bastante firme; essa roda obedece a um simples mecanismo
elementar. Apenas num círculo mágico temos plena liberdade, mas esse círculo
pertence ao reino da pura ficção.
Quando nos perguntamos o que caracteriza o círculo da neurose - além dos
comportamentos peculiares a cada tipo-, logo percebemos que há um fator comum
a todas as variações típicas: o predomínio de sentimentos negativos referidos ao
mundo e, com maior freqüência, ao próprio sujeito. Há uma profunda insatisfação
de fundo, que não é superada por eventuais compensações nem por sucessos
materiais, eróticos e até afetivos. Só quando a pessoa se encontra consigo mesma
esse desassossego de grito rouco cessa.
O que implica esse encontro consigo mesmo precisa de esclarecimento, do
contrário fica como uma fórmula esotérica, do gênero dessas que circulam por aí
no mercado das ilusões. Logo voltaremos a esse ponto.
Esses sentimentos negativos são uma constante, não algo meramente
circunstancial, simples reação a um incidente desagradável. Podem manifestar-se

169
O inquilino do imaginário

de um modo direto, claramente visível para qualquer observador e plenamente sentidos


pelo sujeito; ou manifestam-se mais em surdina, sorrateiramente, como simples sus-
surros da penumbra - persistentes, surdos, irritantes. A pessoa sabe que algo anda
mal, que algo se escoa pelos interstícios, esvaziando o que deveria ser pleno e en-
chendo o que deveria permanecer vazio. Permanece sorrateiro porque o indivíduo
esquiva sua responsabilidade, entrando nas vias do descuido, ou porque não sabe
como enfrentar o desmoronamento e finge não vê-lo.
A vivência dominante, aquela que se manifesta como sinal mais notório e
perturbador, é a ansiedade ou a depressão combinada com a ansiedade. Embora
costumem apresentar-se de modo alternado, há nítidas diferenças entre essas duas
vivências; a ansiedade está bastante presente nos estados depressivos e não apenas
quando o sujeito entra numa fase de profundo abandono de si, quando se entrega
completamente à sua prostração.

Auto-estima e autoconfiança: com reflexo do encontro ou


desencontro da pessoa consigo mesma
Em nosso entender, o que caracteriza o fundo de qualquer desenvolvimento
neurótico é um profundo desencontro da pessoa nos planos fundamentais de sua
existência: nos relacionamentos interpessoais, no trabalho, no corpo, no plano
metafísico, na percepção de si. Deste desencontro deriva uma falta de autoconfiança
e uma baixa auto-estima. A ansiedade persistente, direta ou mascarada, decorre
em grande medida dessas duas deficiências de base. Na depressão, esta baixa
auto-estima vem acompanhada de uma série de sentimentos negativos referidos
tanto ao próprio sujeito como ao mundo ("não se pode confiar em ninguém", "as
pessoas não prestam, salvo raríssimas exceções", "eu nasci falido", "acertei em
muito pouca coisa").
A auto-estima é um componente importante da personalidade. Refere-se à
percepção e valoração que o sujeito faz de si mesmo. Essa auto-estima é a síntese
de três fontes; elas determinam em boa medida como a pessoa se enxerga. O
conceito de auto-estima é um constructo psicológico. Como a maioria desses
constructos, tende a obscurecer a relação existencial que ele supõe. Empregamo-
lo aqui não como uma forma narcísica de aprovação e de avaliação - que seria
uma simples miragem do ego-, senão como forma original de o sujeito encontrar-
se-no-mundo. O estado de humor- e por esta via a emoção e os sentimentos-
revela as formas predominantes do encontrar-se humano. Posso viver em sintonia
e afinação com o mundo ou pelo menos encontrar-me dessa maneira em
determinados planos da existência (no trabalho, no círculo familiar, no âmbito da
arte ou da religiosidade, apenas para mencionar alguns planos). Posso viver em
briga, ruptura, confronto, distanciamento, alienação, medo, isto é, em franca

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O predorrúnio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses

as sintonia com o mundo. Se essa assintonia me leva a um malogro do relacionamento


interpessoal e a uma conseqüente não-realização, o sentimento que se impõe em
mim é de fracasso, de não-aceitação de minha condição, desvalorização de meus
potenciais e recursos. Posso terminar por não encontrar-me na maioria dos planos
da vida. Chegado a esse ponto, predomina em mim a desestima: o sentimento de
desvalor do que constitui minha realidade.
O encontrar-se supõe que a pessoa é capaz de habitar seu mundo pessoal,
sem apelar para mistificações e compensações puramente imaginárias (como o
alcoólatra que encontra seu clima após uma segunda dose, ou como o teleadito,
alienado nas banalidades das imagens televisivas).
Para Heidegger, como é bem sabido, o encontrar-se é uma característica
inerente à existência humana. O Dasein (o existente) sempre se encontra de uma
determinada maneira no mundo. Esse encontrar-se não se refere a uma posição
física, social ou histórica. Todas essas referências podem influir, mas o encontrar-se
aqui enfatizado aponta para as formas vivenciais de sintonizar o homem com o mundo.
Quando nos perguntam, num cumprimento convencional: Como está? (ou em espanhol:
(,Cómo se encuentra?) "Estou indo", "As coisas vão indo mal" - essas e outras
respostas possíveis revelam uma forma de aperceber-me no mundo.
Encontrar-se a si mesmo significa viver num mundo onde o sujeito se sinta à
vontade, habitando esse mundo como um senhor em seus domínios. Quando isso
sucede, podemos ter diferenças e eventuais conflitos com nossos coetâneos - o
que não tem nada de surpreendente-, mas esses conflitos e confrontos não abalam
nossa íntima confiança nem nosso valor.
Falamos, em termos psicológicos, de uma baixa auto-estima, ou de uma
inadequada estimativa dos recursos e potenciais pessoais, o que implica uma falta
de autoconfiança básica. Não sabendo estimar positivamente nossas capacidades,
necessariamente vamos desconfiar de nossas habilidades para encarar boa parte
das inevitáveis dificuldades que temos de enfrentar. Essa falta de confiança é
provável que iniba muitas iniciativas que poderíamos tomar, levando-nos assim a
uma espécie de entrincheiramento em posições já ganhas. Por assim dizer,
aposentamo-nos prematuramente·- fechando-nos na rotina maçante de um
emprego, ou em outros refúgios similares -para dessa maneira evitar os riscos de
empreendimentos incertos.
Refugiado num mundo estreito, ou alienado nas mil formas de distração, o
neurótico se extravia nos labirintos de sua própria trama. Vive no desencontro,
quase sempre insatisfeito- feito demais, como é o caso do obsessivo, ou des-feito,
como acontece com os depressivos e os ansiosos, ou ainda conJ:ra-feito, ao modo
do histérico.
Seria excessivo dizer que o chamado neurótico desestima todos os planos de seu
universo; apenas em depressivos à beira do suicídio acontece tamanho desgosto. Alguns

171
O inquilino do imaginário

até conseguem uma relativa acomodação, obtendo certas gratificações que compensam
em parte o sentimento básico de insuficiência e de outros sentimentos negativos.

Os fatores que determinam a autoconfiança e a auto-estima

1. Deriva dos juízos dos outros signific~tivos, intemalizados pelo sujeito no


período de formação da personalidade - infância e adolescência.
2. Reflete e é influenciado pelo sentimento de poder pessoal e pelas
realizações pessoais.
3. Depende do grau de aceitação de si mesmo.
Essas são as três fontes mais importantes, das quais a confiança e a estima
são a resultante sintética.
1. Como veremos logo, o juízo dos outros é decisivo nos anos da infância;
podemos dizer que nessa etapa nos vemos pelos olhos do outro; e não pode-
ria ser de outra forma: nosso ego está se constituindo e dependemos in-
teiramente de nosso próximo. À medida que vamos crescendo, e sobretudo
quando iniciamos a adolescência, começamos a questionar o juízo alheio,
relativizando ou descartando esse ditame. Contudo, nunca podemos pres-
cindir completamente da avaliação dos outros significativos, embora nos
importemos bem menos com suas qualificações. Nem poderíamos, a menos
que percamos o juízo de realidade: os outros são os seres mais importantes
disso que chamamos realidade.
Quando nosso próximo nos mostra estima e apreço, aceitando-nos em nossa
figura pessoal, o sentimento de auto-estima tende a fortalecer-se. Quando isso não
acontece, recebendo contínuas amostras de desaprovação e censura, certamente
a própria ratificação pessoal toma-se mais difícil e, passados certos limites,
impossível. Por sermos entes sociais, a avaliação do outro sempre nos atinge,
embora de um modo mais seletivo e menos inocente que nas duas primeiras etapas
da vida. Quando adultos, já dependemos bem menos dos nossos coetâneos, o que
já é uma boa defesa, e também estamos em condições de analisar os motivos que
os induzem a emitir opiniões e atitudes adversas a nós, podendo defender-nos e
neutralizar as eventuais sentenças condenatórias. Já aprendemos que nossos juízes
raras vezes são imparciais; sabemos que boa parte do julgamento emana de reações
emocionais, quando não de simples preconceitos.
De qualquer forma, os mais subordinados "às sentenças da tribo" são as
pessoas inseguras, mal individualizadas, convencionais, extero-determinadas.
2. O sentimento de poder pessoal é algo que vamos descobrindo com a
experiência, mas sua raiz original deve encontrar-se na sensação de

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O predonúnio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses

vitalidade e de energia que anima a todo animal sadio. Quando sentimos


essa vitalidade exuberante, tão própria da juventude e dos períodos
gloriosos, estamos dispostos a enfrentar qualquer dificuldade com alegre
ímpeto. Nada nos parece insuperável ou superior às nossas forças. Essa é
a vitalidade que experimenta a criança que, o dia todo, corre, brinca e
grita, com uma energia que nos surpreende.
As pessoas vitais -dionisíacas, exuberantes, enérgicas e ativas- experi-
mentam esse sentimento de poder num alto grau, embora nem sempre possam
justificar a legitimidade de tal posicionamento.
Esse fato é que nos permite pensar na relação originária entre vitalidade e
poder. Quando estamos desvitalizados - por cansaço, velhice, doença, ou por
qualquer outro motivo-, este sentimento de poder diminui à sua mínima expressão.
Contudo, a consciência de poder pessoal não é apenas uma pura decorrência
de uma vitalidade vigorosa, embora ela seja um fator importante. Pela experiência
vamos tomando consciência do que somos capazes e, certamente, dos limites destas
capacidades. É pela práxis que se vai desenvolvendo nossa capacidade de adaptação
às mil exigências da realidade. Apenas enfrentando as tarefas da vida prática é
que percebemos o grau de nossas habilidades e competências. Tentando superar
barreiras e dificuldades descobrimos nosso potencial. Cada ação, cada em-
preendimento - bem-sucedido ou malsucedido - esculpe, na tênue argila da
representação, uma imagem de nós mesmos. Imagem que se associa, combinando
ou não, com aquela que os outros nos transmitem.
Um outro elemento inerente ao sentimento de poder, sua plasmação concreta,
que influi diretamente na autoconfiança, são as realizações pessoais. Essas
realizações começam desde os primeiros anos da infância, quando aprendemos a
ler e quando realizamos as pequenas tarefas que os adultos nos encomendam.
Aprender as primeiras letras, escrever no tempo oportuno e segundo as exigências
da escola, são motivo de elogio e de afirmação de si. Sair-se bem na execução das
obrigações indicadas pelos pais -asseio da casa, ajudar no ofício do pai e da mãe
-nos toma meritórios aos olhos dos adultos, aprovação que nos enaltece.
Depois, em cada etapa da vida, vamos executando outras tarefas, pois cada
estágio nos impõe determinadas realizações. Na adolescência e na idade juvenil
temos todo um acúmulo de tarefas. Aprender um ofício, tomar-nos independentes,
ocupar um lugar especial na intimidade sentimental de outra pessoa, definir modos
de atuação - essas são realizações esperáveis nos anos correspondentes à
juventude
Assim como cada realização nos confirma, o fracasso e o malogro nos
invalidam.
3. Um outro fator que influi na auto-estima e na autoconfiança é a aceitação
de nós mesmos. Embora quase sempre tentemos ratificar-nos perante os

173
O inquilino do imaginário

outros justificando condutas e ações que evidenciam nossas falhas, isso


não significa que, em nosso foro íntimo, aceitemos os erros e as deficiências
de nosso comportamento. Poucas pessoas se aceitam inteiramente como
são; e poucas pessoas aceitam tranqüilamente os defeitos de seu caráter
e seus erros de atuação. E ainda as coisas podem piorar mais: muitos não
conseguem admitir suas incompetências.
Resultado: quase todos nós vivemos muito divididos, em pugna conosco.
Gostaríamos de admitir os erros com sábia cordura, mas eles nos prejudicam
quase sempre e nos vemos obrigados a reconhecer nossa tolice. Gostaríamos de
conviver sem conflitos com defeitos físicos e de caráter, mas é notório que esses
defeitos são censurados ou mal vistos por nosso próximo - e nós não podemos
permanecer indiferentes ao juízo social.
Há gente que não questiona sua situação econômica nem se aflige por seu
status nada avantajado, mas tarde ou cedo percebe que é valorizado em grande
medida segundo seja sua posição na hierarquia social; então lhe resulta difícil
admitir sua condição.
Um leitor perspicaz nos poderá argumentar: quando alguém tem consciência
de seu valor é pouco afetado por esses tipos de fatores que você indicou. Eu
diria: é talvez menos afetado, até pode neutralizar em boa medida suas falhas,
mas de alguma maneira termina por sentir-se malogrado.
A rigor, falhas, erros, inépcias e deficiências todos temos. Quando
alcançamos certa maturidade, conseguimos aceitar-nos em nossa limitação.
Porém, essa não é uma tarefa fácil. O grande problema é que tendemos a
inflacionar determinadas deficiências, adquirindo elas um vulto e um espaço em
nosso mundo pessoal que nos obscurece e distorce as perspectivas. Isso acontece
bastante na infância e na adolescência, quando ainda não sabemos enxergar as
coisas em sua devida proporção. Demasiado emocionais e dominados pelo juízo
coletivo, nos angustiamos por falhas, muitas vezes, de pouca monta. Quantas
pessoas não estropiaram suas vidas após a descoberta, no final da infância, ou
no início da adolescência, de um pequeno defeito físico? Ou porque se descobriram
vítimas dos preconceitos sociais?

Auto-estima e autoconceito

O autoconceito é o lado conceitual do si-mesmo, assim como a auto-estima


corresponde ao lado afetivo. Por vezes são indiscemíveis. Só que o autoconceito
corresponde a todos os atributos que qualificam o sujeito como pessoa e que ele
reconhece como apropriados para si. Corresponde à imagem de si, real ou
idealizada, geralmente uma mistura das duas. Por dar-se na esfera conceitual,

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O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses

não afeta no mesmo grau o si-mesmo. Quando uma pessoa se descreve a si


mesma- ora em termos caracteriais, ora em termos sociais, ora qualificando-se
em qualquer plano -, está nos dando seu autoconceito.
"Sou um cidadão inteligente, batalhador, às vezes esperto, consciente de
meus propósitos, pouco sociável, embora considerado com meu próximo (sem
nenhum exagero, é claro), anticonformista, intelectualmente inquieto, desapegado
dos bens materiais (mas não generoso), quase sempre oceânico (embora
consciente de minha irremediável finitude); sou um cidadão seguro (inclusive
quando ando em solo escorregadio). Sexo? Já não me interessa (mentira: me
interessa pouco, já que foi uma necessidade forte em mim, no passado);
politicamente inclinado para a esquerda (não por sentimentalismo, mas porque
acredito que apenas uma sociedade sem classes pode tomar a vida coletiva algo
viável). Que mais você quer? Se sou bonito ou feio? Simpático ou antipático?
Sou tudo isso, segundo as circunstâncias. Talvez esteja fora do padrão bis sexual
de beleza (não tenho traços finos nem grandes olhos 'amendoados'; nada disso
que os manequins das lojas mostram como beleza masculina; talvez seja feio,
mas isso não me preocupa, pois sempre tive um relativo sucesso com as
mulheres). Quer saber de meus defeitos? Talvez certa arrogância, mas também
uma humildade verdadeira. Ser apenas um indivíduo (em uma Sociedade de
Massas alienadas, isso é um defeito grave e uma virtude singular). Defeitos? Os
outros é possível que encontrem vários em mim- eu me sinto muito bem como
sou." (Declarações de um homem de 49 anos, antropólogo e filósofo, casado.)
Esse homem tem um bom autoconceito e também uma boa auto-estima.
Mas nem sempre é assim. Não necessariamente coincidem. Alguém pode ter
um razoável aprobatório juízo de si mesmo e nem por isso melhorar sua estima.
Um engenheiro me diz: "Sim, sou um cara inteligente, bem acima da norma, mas
de que me tem servido minha inteligência? Serviu-me para complicar-me ainda
mais as coisas. Posso reconhecer uma série de boas qualidades em mim: sou
responsável, tenho competência profissional, tenho boa aparência física, tenho
uma boa família (falo de minha mulher e de meu filho, de quem gosto muito).
Poderia sentir-me satisfeito; eu mesmo me digo 'O que diabo está me faltando?'
Vivo angustiado; sou inseguro; sofro; não gosto de mim. Não posso gostar; não
consigo me acertar. Para lhe dizer a verdade, amiúde me sinto uma criança".
Em pessoas com um mundo próprio relativamente hârmônico, há também
um acerto positivo entre estes dois componentes. Sem dúvida, é fácil fantasiar e
maquiar o autoconceito, e é bem mais difícil fazer isso mesmo com a estima
pessoaL É também mais fácil averiguar o autoconceito que a estima de uma
pessoa. É que o primeiro dá-se na esfera da representação, da pura imagem de
si. A auto-estima não é apenas valorização de si, senão especialmente sentimento
profundo do que nós somos; ser que inclui o poder, o fazer e o ter- e sobretudo
nosso modo originário de encontrar-nos no mundo.

175
O inquilino do imaginário

Como avaliar o grau de autoconfiança e de auto-estima?


Quando usamos o conceito de auto-estima como um referencial válido para
apreender o modo básico de encontrar-se o sujeito, surge em seguida a questão
de como avaliar o grau desse fator na pessoa. Entendido como um componente
da personalidade, ele se apresenta em certo grau observável segundo determinadas
manifestações objetivas e subjetivas.
Um crítico exigente talvez nos objete que a pessoa tem ou não auto-estima, que
não é algo quantificável; diria que como qualquer outro traço ou qualidade existe ou
não existe (se é honesto ou desonesto, inteligente ou não etc.). Não concordamos
com essa tese. Pensamos que qualquer componente da personalidade - atitude,
sentimento, interesse, necessidade etc. -se apresenta em certa proporção. Interesso-
me pouco por questões astronômicas e de física quântica; sinto maior interesse em
assuntos biológicos, mas sinto um grande interesse por ciências humanas, em espe-
cial por temas psicológicos. Somos razoavelmente honestos, mas seria uma mentira
cínica afirmar que somos inteiramente honestos. Outro tanto posso afirmar com
respeito ao meu grau de auto-estima e de autoconfiança. Numa escala de 10 a 100
pontos, situar-me-ia entre 70 e 80, o que é uma boa porcentagem. Isso significaria
que esses dois fatores caracterizam um amplo repertório de minhas atuações e
comportamentos, podendo dizer que olho as coisas e desafios com certa tranqüilidade,
sem as apreensões ostensivas das pessoas inseguras.
Significa também que existem situações e propostas que são vividas com
inquietação e insegurança, não tanto por seu montante de adversidade, mas porque
são situações que revelam nossa incompetência e nosso despreparo.
"Me considero uma pessoa confiante" -me informa um homem materialmente
bem-sucedido, passando por uma fase de crise existencial. "Mas tenho de reconhecer
que minhas dificuldades conjugais e a queda do padrão de vida decorrente de quase
sete meses de desemprego abalaram minha confiança no ser humano, especialmente
nos colegas de profissão. Já não acredito mais que a solidariedade predomina sobre
o egoísmo, que a boa vontade seja mais forte que o cru interesse pessoal."
Já dizíamos que os fracassos tendem a abalar até as estruturas mais bem
construídas, sobretudo quando são reiterados e afetam centros de especial valor
para o sujeito.
Para avaliar o grau de auto-estima de uma pessoa, teríamos de considerar pelo
menos os seguintes pontos:
- Seu centro básico de valor - e as crenças que acompanham esses valores.
- Seu sentimento de poder pessoal.
- Seu grau de auto-aceitação
- Sua estimativa de deficiências e limitações pessoais.
- Sua maneira de reagir perante o julgamento dos outros.

176
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses

-Sua estimativa de logros (realizações) e fracassos.


- Seu modo de encarar os obstáculos, os desafios e as perdas.
Para uma avaliação mais confiável deste fator, é bastante útil o "Inventário
de Auto-estima" de Stanley Coopersrnith (1959).

ANGÚSTIA DEPRESSÃO
Revela o caráter futurível da existência: seu caráter Revela o estado de queda e de abandono- que é
de mero projeto e de possibilidade. a condição inicial da existência; a queda no
descuido de si.

Implica a emergência do possível como ameaçador: Implica a perda - ou ruptura - do objeto ou


é a expectativa negativa que ameaça o sujeito. objetivo possuído ou de identidade. Sua gênese
Decorre da incerteza vivida como negati vidade. é a perda do outro enquanto perda de si.

O movimento existencial da angústia é a agonia, a A figura, o movimento existencial da depressão


luta para escapar do nada iminente. é a queda e a prostração- representa a queda no
abismo, no fundo do poço.
Na angústia, a existência desgarra-se a si mesma, Na depressão, o homem afunda-se em seu abis-
tentando agarrar-se a um ponto de apoio. mo, quando seu fundo cede ou se quebra.
O sentimento dominante é a inquietação. O sentimento dominante é a impotência.
Na angústia, o homem luta, debate-se, combate, Na depressão, o homem desiste, se entrega, se
agride, resiste - embora amiúde seja uma luta auto-agride, se acusa, se culpa e se condena.
imaginária e estéril. Implica passividade.
Na angústia se espera uma saída, se procura uma Na depressão, não se enxerga saída, ou o sujeito
porta de escape. fecha as portas tentando proteger-se.
Como forma crônica de existência, a angústia supõe Como forma crônica de existência, isto é, como
uma insegurança básica: o mundo aparece como neurose, a depressão supõe uma subestimação
ameaçador. básica: o desvalor de si.

Angústia e Depressão: Um Paralelo de Contrastes


Embora seja comum a alternância do estado depressivo e o da angústia, são
vivências muito diferentes. É freqüente uma pessoa depressiva passar por momentos
periódicos de angústia; e indivíduos que vivem num clima de angústia também
sofrerem momentos depressivos. Contudo, sempre uma tendência domina.
A análise existencial revela as diferenças entre essas duas vivências. Em
seguida indicamos as diferenças mais notáveis.
Pela simples inspeção do paralelo mostrado, pode-se verificar que essas duas
vivências são inerentes à existência. Todos nós as experimentamos em maior ou

177
O inquilino do imaginário

CLASSIFICAÇÃO DAS NEUROSES(l)

Critérios Diferenciais Temática Central Comportamentos


Dominantes

Neurose de Angústia Ansiedade acompanhada de Tensão e inquietação motora;


sinais somáticos; Dificuldades de atenção e
Ansiedade persistente, não concentração.
corresponde à situação.

Neurose Tendência ao autocontrole e a Necessidade de realizar atos


Obsessivo-compulsiva controlar os outros; compulsivos;
Necessidade de fechamento Ritualismo (de limpeza, ordem
das configurações para assim etc.);
diminuir a ansiedades. Discrição e compostura;
Aparência cuidadosa.

Neurose Histérica (Hy) Tendência a somatizar os Sintomas de conversão:


conflitos psicológicos como -paralisias;
um meio de obter ganho ou -anestesias;
compensações secundárias, -cegueira hy etc.
ou simplesmente como um Amnésias;
modo de colocar sua queixa Comportamentos mostrativos
num plano aceitável. (exibicionismo);
Necessidade de representar. Dramatismo expressivo;
Emotividade fácil.
Neurose Depressiva Sentimento de Expressão de falha de vitalidade;
autodesvalorização e de Postura encolhida e aparência
desvitalização, geralmente apagada;
acompanhados de auto- Fala monótona, voz baixa;
acusações. Olhar sem brilho.

Neurose Fóbica (2) Vivências de medo e Inquietação perante os estímulos


ansiedade perante estímulos - fobígenos;
situações específicas. Comportamento evitário de fuga.

<O No DSM-IV (1994) se prescinde do conceito geral da neurose, mantido até então pela Associação
Norte-americana de Psiquiatria. Enquadram-se na categoria de distúrbios da ansiedade os tipos
aqui considerados, menos o depressivo.

178
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses

CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS

Vivências Dominantes Manifestações Secundárias Estrutura Caracterial


(nem sempre presentes)

Inquietude difusa; Dificuldades respiratórias; Deficiente desenvolvimento do


Sentimento de ameaça Opressão peitoral; vetor integrativo (pouca
iminente; Fadiga fácil; tolerância à frustração,
Medos; Irritabilidade; insuficiente senso do real);
Sentimentos de Alteração do sono. Insegurança;
vulnerabilidade e desamparo; Emotividade e vulnerabilidade.
Emotividade.
Idéias e sentimentos Tendência à rigidez postura!; Excessivo autocontrole e
absorventes e matiz negativa Tendência à tacanhice; tendências a controlar os outros;
que o mesmo sujeito critica; Rígidos hábitos de limpeza e Superego, geralmente rígido ou
Posicionamento duvidante. ordem; severo;
Obsessões e compulsões. Excessiva autoprogramação;
Tendências perfeccionistas;
Freqüente dificuldade em receber
e dar.
Propensão para representar Ataques sincopais; Tendências à representação
motivado por uma Estados crepusculares (teatralidade );
necessidade de estimulação. (enfraquecimento da Necessidade de afetos;
Propensão para exergar-se consciência vigil) etc. Maior determinação do externo
como personagem. (presença do outro);
Atitudes sedutoras;
Falsificação da existência.

Tristeza e falta de interesse Distanciamento do contato Tendência à passividade;


pelos aspectos positivos da social; Tendência à dependência;
vida; Sentimentos de culpa; Tendência à intro-agressi vidade;
Autodesvalorização; Lentificação etc. Inibição;
Sentimento de perda; Autoconceito negativo.
Pessimismo.
Sentimento de medo Intensa angústia situacional; Tendência às atitudes evitatórias;
incontrolável diante das Desorganização do Tendências a isolar os conflitos,
diversas situações, comportamento. encontrando-os em objetos-
normalmente inofensivas. fetiches.

179
O inquilino do imaginário

menor grau. Não há ninguém com tão bom conceito de si, tão consciente de seu
valor, que fique invulnerável ao fracasso e às inevitáveis perdas que quebrantam
nossa vida. O desvalor de si, a subestimação, pode ser uma constante; então,
quando isso acontece, falamos de neurose. O mesmo vale para a angústia.
Quando a depressão e angústia são reações circunstanciais, concomitantes
com situações críticas ou desfavoráveis, falamos de depressão e angústia reativas.
Nesses casos, superadas as circunstâncias negativas, o sujeito sai desses estados;
recupera seu equilíbrio. Volta a enxergar o mundo como um horizonte de desafios
e convites, de roteiros feitos e de caminhos por fazer.

180
Capítulo 8

OS TIPOS DE ANSIEDADE
PROPOSTOS PELO DSM-IV ( 1994)

Como em nosso meio está se tornando comum o uso das


classificações propostas pela associação norte-americana de psiquiatria,
estimo pertinente incluir os tipos de ansiedade que figuram no DSM IV ( 1994 ).
Deve-se observar que na psicopatologia clássica estão considerados no quadro
da ansiedade e da angústia - seja reativa, seja crônica e caracterial - todos os
tipos e formas de manifestar-se esta vivência, embora não sejam destacadas da
maneira como o estão fazendo os autores norte-americanos. O que tem feito o
DSM-IVZ é pontualizar, delimitar e caracterizar os diversos tipos de
acordo com itens mais precisos e baseados num critério puramente sintomático
e empirista. Como diversos autores já observaram, todos eles psiquiatras
qualificados, este Manual optou por um enfoque ateórico, de inspiração
comportamentalista e de orientação biológica, incluído onde tais
posicionamentos merecem sérios reparos. Costa Pereira mostra que oferece
classificações operacionais que levam "a abolição do debate psicopatológico
em função de um acordo pragmático". 5 É um acordo para inglês ver- como se
diria no Brasil. Um simples pacto de cavalheiros para evitar rixas doutrinais.
Pontualizadas estas limitações, vejamos ainda de modo sucinto como se
caracterizam os diversos tipos de transtornos. Na intenção de tornar o texto um
pouco mais ameno, fiz alguns comentários e alcances que não figuram na
exposição dos norte-americanos. Indicar os aspectos puramente sintomáticos,
sem sequer apresentar a história da pessoa de maneira sucinta, reduz o
diagnóstico a um simples caso abstrato - despoja-o de sua vida concreta,
pessoal, histórica, aberta a suas possibilidades. Significa igualmente ignorai
uma referência de, primeira importância na compreensão de uma vida:
sua personalidade.

181
O inquilino do imaginário

Os transtornos de pânico (TP)

ste tipo de transtorno tem recebido um destaque muito especial, a ponto

E de já alcançar as estradas do saber comum. Este destaque se deve à


alta porcentagem de indivíduos que sofrem desse transtorno; segundo David
Barlow, de 10% a 12% da população experimenta TP, associado ou não com
agorafobia, no espaço de um ano; cifra demasiado alta para ser fidedigna, mas que
nos dá uma idéia de sua freqüência 6 • Pela quantidade de livros e comentários que
circulam em todos os meios, este transtorno parece ter alcançado o destaque dos
rótulos em moda. O DSM o descreve acentuando todos os sintomas que o
caracterizam, especialmente no plano somático:
a) palpitações e ritmo cardíaco acelerado; b) suores; c) sensações de falta de
ar, de sufocação e de asfixia; d) dor ou desconforto torácico; e) náuseas ou mal-
estar abdominal; f) sensações de desequilíbrio, vertigem e desmaio; g) calafrios ou
ondas de calor; h) parestesias (anestesia ou sensações de formigamento).
No plano psicológico, destacam-se três manifestações: a) sensação de
irrealidade ou despersonalização; b) medo de perder o controle ou de enlouquecer;
c) medo de morrer.
De acordo com estes autores, bastam quatro ou mais sintomas para que se
possa diagnosticar um TP, advertindo-se que estas manifestações devem alcançar
seu pico em dez minutos. Distinguem-se também TP com ou sem agorafobia.
Esta síndrome tem sido descrita pelos diversos autores como ataque de
ansiedade, com relatos desde o século XVII até o presente. Costa Pereira, em seu
bem documentado estudo sobre este tema, 12 recapitula alguns momentos desta
descrição. Richard Burton, em sua famosa Anatomia da Melancolia, chama-o
de medo torturante (1621); Morei fala de um delírio emotivo (1866); Brissaud
caracteriza-o como um adjetivo muito apropriado- fala de ansiedade paroxística
(1890); George Beard, que descreveu a neurastenia, uma síndrome com sintomas
muito similares ao pânico (1869), menciona morbile fears of special kinds, e
incluso a agorafobia. Freud fala de acessos ou arrebatas de angústia (Angstanfalle).
Como se vê, o fenômeno tem sido bem identificado há séculos.
O diagnóstico de TP se dá sempre que não seja efeito da ingestão de
substância (cafeína, cocaína, medicamento etc.), nem seja conseqüência de uma
condição médica geral (por exemplo, hipertiroidismo).
Para uma pessoa que está sofrendo de tais manifestações somáticas e
psicológicas, sem perder a razão, precisa haver passado por uma verdadeira
catástrofe existencial - a menos que seja tão frágil e vulnerável que algumas
desventuras menores levem-na à beira do colapso. Está sendo afetada a tal ponto
que seu organismo acusa o impacto da situação ameaçadora. Literalmente, a pessoa
está se sufocando, asfixiando-se, e assim se sente encurralada e sem saída. Sente

182
Os tipos de ansiedade

que vai desmaiar, cair inerte diante de um mundo que não lhe permite manter-se
em pé. Desmaiar significa ter ultrapassado os limites de sua resistência. Por
momentos, só sente náuseas- o simples impulso de esvaziar toda a porcaria ingerida
que acumulou em sua vida; pesa-lhe no estômago. É como os personagens de
Sartre, que vomitam cada vez que lhes resulta intolerável uma situação que os
aborrece. "Quando peguei a minha mulher beijando e esfregando-se com seu amante
na sala de nossa casa, me refere um senhor, senti que ia desmaiar, logo me revirou
o estômago e tive que vomitar". Esta é uma simples reação diante de um fato
inesperado e chocante. O momento do estado da ansiedade paroxística (como
diria Brissaud) se produz como conseqüência de um processo de corrosão das
estruturas do sujeito, processo que geralmente leva anos, ou pelo menos alguns
meses, como acontece com as estruturas pessoais mais frágeis. Não esqueçamos
que os contínuos abalos que estremecem a vida afetam de maneira diferente as
pessoas, segundo seja a estrutura e a situação geral que estão vivendo. Os mais
emotivos e menos conscientes da origem de seus conflitos sentem opressão e dor
torácicas; preferem não pensar no aspecto que lhes ofusca a visão do que os
aflige. Sentem dor nesse centro imaginário dos sentimentos.
Para não cairmos num esquema puramente sintomático, vejamos a história
resumida de Andrei, de quem tratei durante quinze meses, por apresentar
manifestações típicas de pânico, além de agorafobia. Trata-se de um jovem de 23
anos, casado três anos com uma mulher de sua mesma idade, que trabalha como
secretária em uma clínica médica. Depois de quatro meses de atendimento, já
passado o período de maior ebulição emocional, Andrei se define como uma pessoa
insegura, imatura, desorientada, medrosa, dependente, de bons sentimentos para
com o próximo; talvez um ingênuo sem chegar a ser tonto. De fato, esses traços o
caracterizam em linhas gerais. Trabalha como contador em uma microempresa,
onde é muito estimado pelos companheiros por sua educação, seu espírito
cooperativo e, talvez, por sua aparência notoriamente tímida. Seu biotipo longilíneo,
medianamente astênico, seus gestos suaves, seu olhar entre convidativo e
reservado, sua voz moderada, seu vestuário discreto, seu andar leve e um pouco
vacilante- tudo isso configura a pessoa insegura ansiosa, levemente introvertida.
Andrei, é o único homem em uma família de seis mulheres, sua mãe e cinco
irmãs maiores. Em diversas ocasiões surgiram dificuldades em razão de gozar do
triste privilégio de ser um menino mimado entre tantas mulheres. Para agravar
mais sua situação, seu pai morreu no seu sexto aniversário.
"-Eu não sei como não sou maricas, criado só entre mulheres; às vezes me
pergunto se não sou, pois basta que eu ande em um parque ou em determinadas
horas da tarde para que logo passe um fulano e me lance um convite; como não
sou de briga, prefiro fugir, fazer-me de desentendido. Dizem que os maricas
percebem outros de sua espécie, por mais dissimulados que sejam. Você que pensa,
pensa que sou um sodomita reprimido?".

183
O inquilino do imaginário

- Não me parece. Ter uma aparência delicada e fina não basta para rotular
uma pessoa como afeminada. Por acaso, já se sentiu atraído por um homem ou já
teve algumas experiências homossexuais?
-Por favor, Dr. Aí seria muita desgraça; apenas sobrevivo com meus medos,
e seria muito pior se ainda resvalasse para o outro lado.
-Pense um pouco, Andrei, nunca se sentiu atraído por um homem?
- Pelo menos nunca percebi, até agora só gostei de mulheres e espero que
pelo menos neste ponto estar no lugar certo.
Às vezes é necessário insistir, questionando um aspecto mal defmido no mundo
de nosso coagente. Suas dúvidas nesta área são mais reflexo de sua insegurança
geral que o indício de um problema homossexual. Andrei também reconhece que sua
relação com a mãe foi um apego excessivo. Bastava um leve resfriado para que a
boa senhora - viúva desde os 38 anos - se mostrasse muito preocupada; ela era
também uma pessoa nervosa e agitada, muito centrada nos cuidados de sua prole,
mas sobretudo no descanso. "Para que você tenha uma idéia de como eram as
coisas, direi que até os 18 anos dormi na mesma cama que minha mãe, e tem algo
mais que me custa confessar, me custa muito, porque sei que tem algo de anormal.
Antes de dormir, minha mãe costumava encostar-se na minha cama, não todos os
dias, mas com certa freqüência. Nessa situação, ela colocava a mão na minha cabeça,
fazendo-me cafuné, e no peito, e começava a me acariciar suavemente; era uma
sensação muito gostosa, penso que tanto para ela quanto para mim. E aqui vem o
que incomoda; quando passava a mão pelo meu peito, eu pensava: agora sua mão vai
descer, vai pegar meu pênis e vai me masturbar. Essa idéia me angustiava, porque
não conseguia tirá-la da minha cabeça". Não é demais dizer que esta senhora nunca
mais quis casar. Contentou-se em edipianizar seu filho- como diria um freudiano.
Andrei confessa que se casou aos 20 anos para escapar de um círculo familiar
que o estava perturbando com a falta de liberdade, como uma maneira de fazer-se
mais adulto, saindo da influência de todas essas pessoas. Contudo, estava consciente
de que só conseguiria essa façanha se tivesse um elemento de apoio; sua atual
mulher foi esse elemento.
Isso não significava uma ruptura com sua família; continuou mantendo um
contato perníanente, porém bem menos freqüente que antes. No primeiro ano, o
relacionamento com sua esposa se deu da forma esperada: água de rosa e belas
promessas de amor, além das delícias do sexo. No segundo, ela lhe expressou seu
desejo de que ele fosse mais adulto, mais firme em seus propósitos; propôs que
fosse menos ingênuo, mais firme e decidido, como deve ser um homem de verdade.
Essa proposta provocou em Andrei o início de seu pânico. Entendeu que sua mulher
não estava satisfeita com sua maneira de ser, o que achava muito justo. Então se
sentia inseguro mas conseguia dar a impressão de um jovem normal. A partir

184
Os tipos de ansiedade

desse período, sentiu que começava a caminhar em areias movediças, que até
poderia perder a esposa se não conseguisse atender suas expectativas. A angústia
começou a mostrar-lhe suas faces mais amedrontadoras. Um dia, de volta a seu
apartamento, no táxi, temendo já não encontrar sua mulher em casa, sentiu uma
vertigem em forma de calafrios que lhe percorreu o corpo. Foi suficiente este
episódio para que a rua se tomasse um lugar ameaçador. Imaginou nos dias seguintes
que chegaria um momento em que não conseguiria ir até a firma, que perderia o
emprego, então sua companheira não teria escrúpulos em abandoná-lo. Voltar a
viver com a mãe e as irmãs solteiras seria um castigo. Eram pessoas boas, mas
que, no esforço em ajudá-lo, terminariam reforçando sua passividade. O pior é que
talvez tivesse um ataque cardíaco, pois sentia uma pressão terrível nessa região,
acompanhada de sufoco.
Foi nesse ponto que decidiu consultar um psicoterapeuta- pressionado, aliás,
por sua esposa. Pelo exposto, está claro que se trata de uma personalidade insegura-
ansiosa, muito vulnerável, passiva, emotiva, com escassa autoconfiança, à procura
de apoio interpessoal (não apenas do terapeuta) para neutralizar em parte a angústia
que lhe provoca sua consciência de ser um indivíduo frágil, mal preparado para
enfrentar um mundo competitivo, agressivo, nada considerado com os débeis.
Durante o tratamento, seus sintomas se acentuaram no período de maior
questionamento de si e de maior esforço para reformular seus padrões vivenciais.
Esta é uma reação normal, sobretudo numa pessoa com pouco senso de in-
dividualidade. Houve uma fase em que não se atrevia a ficar só no apartamento,
pois sua mulher precisava ficar no trabalho até depois das 20 horas; nessas ocasiões
ficava no hall de prédio na companhia do porteiro, simulando interesse num falatório
nada estimulante. Este tipo de truque o exasperava ainda mais. Para facilitar seu
desenvolvimento sugerimos-lhe que participasse de um grupo terapêutico,
paralelamente ao tratamento individual. Depois de 18 meses apresentou mudanças
significativas, o que nos permitiu espaçar as entrevistas, conseguindo uma franca
melhoria alguns meses depois.
O fato de termos destacado os fatores vivenciais e biográficos na gênese do
TP não significa que algum fator bioquímica não possa estar influindo e até
determinando este tipo de reações. É o que mostram as pesquisas de P. Bradwejn
et al. (1993), que provocaram ataques de pânico administrando um péptido chamado
colecistokinin (CCK); este péptido parece modular os efeitos dos neuro-
transmissores. Bastou administrar de 25 mg a 50 mg de CCK para que se obser-
vassem seus efeitos. Em 97% dos sujeitos que sofriam de TP, foram induzidos os
sintomas típicos desta reação (ansiedade, medos, apreensão, tontura,
despersonalização); e 60 % dos sujeitos que não sofriam essas reações
apresentaram-nas igualmente (apud Outley & Jenkins 11 ).

185
O inquilino do imaginário

A Agorafobia

A agorafobia é um intenso medo que surge no sujeito quando está em espaços


públicos abertos, especialmente se anda só no meio de uma multidão. Acompanhado
de um familiar ou de um amigo, seu temor diminui e ele se tranqüiliza. O sujeito
teme desmaiar, cair abandonado na rua, ou simplesmente experimentar alguns dos
sintomas do TP. Na maioria dos casos, ocorre associado ao TP.
A partir de uma perspectiva existencial, podemos compreender esta reação
como o surgimento do desamparo original em um sujeito inseguro, passando por
um período de crises, colocado como ente anônimo no meio de seres que lhes são
estranhos. O ser humano é ontologicamente indigente, desamparado, e durante
toda sua vida faz o possível para afastar de si os fatores que lhe abatem no desamparo
original. Procura e defende um emprego, tenta ter um refúgio próprio (a casa),
economiza o máximo para evitar as contingências de infortúnio, constitui uma farm1ia,
conserva sua saúde- tudo para espantar sua indigência. Arrisca-se, porém, até
certo ponto. Ser seguro é precisamente aceitar maiores riscos, expor-se mais a
eventuais desafios e infortúnios, sentir que mesmo em solo escorregadio é possível
manter o equilíbrio. Pessoas protegidas, com um sentido limitado de sua liberdade,
com uma necessidade acentuada de apoios externos, especialmente por parte da
família, ou dos chamados íntimos, experimentam agorafobia depois de perder a
proteção que lhes amparava até então.
lnés nos consulta por sentir-se muito angustiada. É uma senhora de 40 anos,
dona de casa, classe média. É de tipo pícnico moderado, de feições finas, com
gestos, ritmo verbal e atitudes que denotam emotividade acentuada e introversão.
Admite ser católica mais por convenção familiar que por adesão à doutrina da
igreja, mas agradece a Cristo sua ajuda em todos estes últimos quatro anos de
sofrimento. Embora tenha perdido uma certa visão ingênua que tinha do mundo
até os 30 anos, diz acreditar que ainda há pessoas dignas e de boa vontade.
Confessa que sempre foi uma pessoa muito dependente de MX, seu marido, muito
necessitada de seu afeto. Vivia exclusivamente para ele, pois era uma pessoa boa
e inteligente, não obstante carregar um passado doloroso e conflitivo, o que o
tomava irritadiço e, às vezes, violento. Tentou por todos os meios manter o
casamento, permitindo que seu parceiro tivesse outros casos fora do casamento.
"Ele era mais novo que eu seis anos, e era natural que sentisse atração por outras
mulheres porque não havia tido experiências suficientes. MX teve um par de casos,
o que não aliviou seu sentimento de fracasso; mesmo assim, depois de uns três
anos de tentativas, ele me pediu o desquite; com dor no coração, consenti na
separação; foi algo atroz. Tinha feito tudo para mantê-lo perto de mim e tudo foi
água abaixo. Pensei que ia enlouquecer; o único apoio que tinha era a presença de
minha filha e de minha mãe. Para piorar minha situação, eu nunca tinha trabalhado;

186
Os tipos de ansiedade

era apenas uma dona de casa, uma mulher passiva -como meu marido me falou
mais de uma vez. Essa filha era todo meu consolo; filha que, ademais, se parece
muito com seu pai. Durante uns dois anos fiquei o tempo todo fechada na casa de
minha mãe, debatendo-me entre a depressão e a angústia; agora, com quase 40
anos, não sei o que fazer; é tanto meu sentimento de incapacidade que já no me
atrevo a sair à rua; como tenho ficado todos estes dois anos em casa, a rua me
provoca uma sensação de pavor espantoso. Fico imaginando que vou desmaiar ou
que alguma coisa física pode me acontecer lá fora; só acompanhada por alguém
de confiança me sinto mais segura. Penso inclusive que posso ter uma ataque
súbito e morrer. É algo terrível; e não pense você que não conheço o bairro; faz
mais de 30 anos que vivo aqui".
Trata-se uma pessoa insegura, hiperemotiva, passiva, com uma auto-estima
rebaixada, abalada por seu fracasso conjugal- "antes eu era uma pessoa confiante
na vida; depois que M. me deixou caiu muito meu sentimento de valor; fico me
perguntando por que o destino me fez esta jogada e não encontro uma resposta
satisfatória". Todo indica que se trata de uma personalidade dependente, sem uma
estrutura caracterial neurótica prévia, mas que entrou no círculo da neurose logo
após ter perdido seu eixo de sustentação básico. Uma fração grande de pessoas
constrói sua vida em tomo de um eixo de sustentação básico, ignorando que quanto
mais eixos sustentem uma construção, melhor resiste aos sismos inevitáveis. Para
algumas pessoas, este eixo se centraliza no trabalho; em outras, na fann1ia ou na
religião- e há quem procure algo mais: urna determinada relação amorosa, o cuidado
da aparência corporal. Uns poucos buscam o cultivo de alguma arte ou ciência.
Inés não desenvolveu os traços carateriais básicos que permitem a uma
pessoa enfrentar as perdas e fracassos, as dificuldades e barreiras; nunca enfrentou
desafios nem precisou esforçar-se para alcançar determinadas metas; submeteu-
se ao ditame de um pai autoritário e a uma mãe protetora; com escasso senso
crítico, algo ingênua, desde pequena idealizou um relacionamento amoroso único e
definitivo, feito de carinho e transparência, onde ela seria a rainha do lar. Essa
fantasia não se realizou; apa~onou-se por um homem que era exatamente sua
contrapartida. Seu fracasso a deixou no desamparo e na aflição.

Fobia específica

Na fobia específica, a pessoa reage com medo persistente, excessivo e


irracional diante de situações e objetos geralmente inofensivos - se o estímulo-
situação é perigoso, não se trata de fobia, como acontece com o medo de cobra, de
animais ferozes etc. Geralmente as fobias se originam por três motivos. Algumas
são geradas por efeitos traumatizantes; aparecem depois de a pessoa ser atacada

187
O inquilino do imaginário

por um cão, de ficar presa em um elevador, após uma viagem aérea muito agitada.
Outras derivam de uma emotividade muito sugestionável em que só a idéia de um
bicho desagradável suscita uma reação de intensa repulsa e pavor: medo de baratas,
lagartixas, aranhas. Há também fobias associadas a elementos simbólicos.
A senhora FM, de 54 anos, aposentada, ex-professora primária, tipo magro,
e
extrovertido expressivo, ansiosa insegura, me procura "para bater um papo com
uma pessoa bem preparada". Um dos medos que a preocupam é seu horror a formigas;
as baratas lhe desagradam, mas é capaz de matá-las, porém, diante deste inofensivo
himenotóptero, fica fora de si. Sente igualmente fobia de cachorros, pois diz que foi
atacada por um cão por volta dos 12 anos. É uma mulher muito emotiva e agitada,
com escassa interocepção, dependente da farm1ia, com a qual tem vivido sempre;
suas crenças e valores se ajustam ao padrão tradicional conservador, sem que mostre
um juízo crítico sobre nenhum aspecto do sistema social. Com sua irmã menor mantém
uma relação de tipo simbiótica. Sua irmã me refere que a mãe nunca teve um bom
conceito de FM, reprovando a viva voz alguns comportamentos e estouros emocionais
dela: "Esta desmiolada nunca fica tranqüila, ameaça suicidar-se e nunca cumpre seu
propósito, seria tão bom que deixasse a gente em paz". Examinando com FM este
ponto, ela se mostra esquiva, alegando que a mãe às vezes coloca muita pimenta nas
suas falas, mas é uma pessoa boa. É notório que quer ignorar ou atenuar o conflito
com a mãe. Costumo pedir a meus clientes que escrevam uma carta para seus pais,
mas não é enviada para os destinatários. FM não conseguiu escrever a carta a sua
mãe; escreveu para seu pai (que se suicidou 20 anos passados, logo após constatar
que sofria de hanseníase ): "Que Deus o tenha em seu reino, rezo sempre pela paz
de sua alma; só Deus julga as pessoas". No Questionário de Compreensão do
Mundo Pessoal1 há a seguinte questão: "Faça um elogio sincero a sua mãe". Ela
respondeu: "Apesar de tudo a senhora é uma boa pessoa; a vida não é fácil para
ninguém; a morte de meu pai e a maneira de morrer meu irmão foram um sofrimento
para todos nós". O irmão morreu decirrose hepática, pois era um alcoólatra de
dose diária.
Durante boa parte do processo terapêutico tenta colocar panos quentes em
seus problemas com frases clichês (Deus escreve certo por linhas tortas; ao final
tudo dá certo; é dando que se recebe etc.), o que traduz sua dificuldade para
interiorizar sua experiência, sua visão superficial das coisas. Tenta distrair-se o dia
todo, como uma forma de alienar-se de suas dificuldades e do malogro de sua vida;
procura estar sempre ocupada, faxinando a casa, vendo TV, telefonando ou
procurando a irmã. Sua razão de ser e seu maior eixo de sustento é a sua farm1ia,
da qual é totalmente dependente. Admite que não se concentra nem sequer quando
reza o rosário. Parece estar sempre excêntrica: fora de seu centro; para evitar
alguma forma de contato consigo mesma em termos de introspeção e recolhimento
de si, fala o dia todo. Sua experiência erótico-sentimental é muito reduzida; teve
um namorado aos 25; decepcionada, jurou não se en~olver mais, por temer que

188
Os tipos de ansiedade

sua frustração se repetisse. Alguns traços obsessivos são bastante notórios


(prolixidade, bloqueio afetivo, ordem). Depois de algumas sessões, aparece um
intenso medo da morte, assunto sobre o qual tem muita dificuldade de falar. Por
último, terminou por associar a morte e seu cadáver com formigas: elas devorariam
seu corpo no sepulcro. Este era o fundo de sua fobia.

A fobia social (FS)

Talvez em nenhum outro quadro do círculo da ansiedade fique mais evidente


a básica insegurança e o sentimento de fragilidade pessoal que caracterizam o
indivíduo com FS. Nele fica patente a chamada subordinação ao julgamento do
outro, tão notória nas pessoas que sofrem de algum tipo de neurose. O fóbico
social é uma pessoa extraordinariamente sensível, sensibilidade que se agudiza
ainda mais na presença do outro. Carrega, via de regra, um sentimento de
vulnerabilidade generalizada, embora mantenha um foco de valor referido a si
mesmo; muito cedo experimentou uma situação que colocou em evidência um
menor-valor pessoal; talvez um traço físico ou social, talvez a reprovação contínua
ou rejeição na esfera familiar. Este é um tipo, o mais grave, que experimenta uma
FS generalizada. Há um outro tipo, que apresenta um FS parcial, que parece ter
sido muito protegido na sua infância, criado num clima ansiogênico, o que o tomou
ansioso e com uma necessidade acentuada de proteger-se dos riscos originados
numa determinada situação interpessoal. Teme o juízo do outro mais por narcisismo
que por um sentimento de desvalor. Em adolescentes, esta forma parcial é bastante
comum; não querem se expor por temor de serem alvos de críticas ou porque se
sentem inseguros perante adultos mais experientes ou perante pares que julgam
mais bem dotados.
A fobia social é um medo acentuado e persistente de urna ou mais situações
sociais ou de desempenho, em que a pessoa precisa ter contato com pessoas estranhas
e diante das quais teme atuar de maneira inadequada, humilhante e embaraçosa.
Corresponde ao que se costuma identificar como timidez perante situações sociais.
Os autores enfatizam que a ansiedade de desempenho, medo da exposição e a timidez
em situações sociais que envolvem pessoas estranhas não devem ser diagnosticadas
como fobia social. Eu diria que diante dessas situações é normal que exista de-
terminado receio, sobretudo se a situação é nova. Nessas três situações, é normal
experimentar uma leve ansiedade, um certo receio de não se sair tão bem quanto
desejava. Sentir alguma ansiedade em uma entrevista para obter emprego, diante de
um público para o qual deve fazer uma conferência, ou estar presente só a uma
festa, sem conhecer ninguém; acontece até com pessoas seguras. O FS não gosta
ficar em evidência por temor a ser julgado inadequado, torpe, mal-educado,

189
O inquilino do imaginário

inconveniente, inferior em algum aspecto. Em situações familiares, onde está seguro


de ser aceito ou de conhecer seu ambiente, pode mostrar-se desinibido, espontâneo,
natural. Num processo psicoterapêutico, sempre é preciso determinar em que situações
sociais específicas se dispara a ansiedade e como ela se relaciona com a personalidade
do sujeito. Como princípio geral, digamos que toda manifestação de FS supõe uma
falta de autoconfiança; o fato de que uma pessoa se sinta embaraçada numa situação
social (como acontece com as pessoas que não sabem dançar, ou que temem cometer
uma gafe num jantar) não indica fobia. Sentir receio numa festa ante a obrigação de
dançar com sua parceira é bastante justificado, sobretudo quando não se tem
desenvoltura nesse campo. Seria fobia no caso de o sujeito se recusar a ir a qualquer
festa por temor a dançar.
Nos casos mais graves, o sujeito experimenta fobia social generalizada:
fica intensamente ansioso diante de qualquer situação de interação pessoal. É
pertinente considerar que a FS está geralmente associada com outros transtornos
de ansiedade e com a distimia. Os alcoólatras mostram uma alta prevalência de
FS; é sabido que uma alta porcentagem de bêbados se entregam à bebida como
um modo de atenuar sua ansiedade sociaP

O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)

No transtorno obsessivo-compulsivo, o sujeito é assediado por pensamentos,


impulsos e imagens repetitivas e persistentes, que são experimentadas como
intrusivas inadequadas e ansiogênicas. O sujeito tenta ignorar ou suprimir este tipo
de vivência, ou neutralizá-las com algum outro tipo de ação do pensamento, com
resultados apenas transitórios. Os atos compulsivos tendem a atenuar as idéias
obsessivas, provocando assim um alívio temporal ao sujeito. É importante salientar
que a pessoa reconhece que suas obsessões e compulsões são produto de sua
mente, que não lhes são impostas por agentes externos.
Parece-me pertinente agregar uma outra característica às obsessões: são
idéias negativas, que perturbam a pessoa, provocando sofrimento. Nisto se
diferenciam das idéias fixas, que também são persistente e assediantes, mas esti-
mulam o sujeito, ou lhe excitam em términos positivos (não importa se o que aponta
a idéia fixa seja uma tolice ou um ato anti-social). Querer ganhar na loteria, desejar
conquistar uma posição social privilegiada, ou querer aplicar a justiça a um criminoso
podem absorver a mente de uma pessoa, mas não são idéias obsessivas. Convém
igualmente diferenciar o TOC das idéias supervalorizadas que costumam mobilizar
a maioria dos humanos em razão de estarem associadas aos valores e crenças que
orientam e dão sentido a suas vidas. Supervalorizamos nossas idéias religiosas,
considerando-as indiscutíveis e superiores às do vizinho; acreditamos que nossas

190
Os tipos de ansiedade

idéias políticas e filosóficas deveriam ser difundidas e aceita por todas as pessoas
inteligentes de nossa comunidade. Muitas vezes nos indignamos porque um
interlocutor nos apresenta uma objeção ou faz um comentário desfavorável a nossas
crenças. Já encontrei até um psicólogo que se irritou comigo a ponto de evitar-me
na faculdade onde trabalhávamos, depois de uma discussão sobre os fundamentos
de sua teoria supostamente científica. O colega não podia admitir que se
questionasse a suposta validade de sua doutrina.
As idéias obsessivas são também diferentes das idéias delirantes, que são
manifestações típicas das psicoses; as primeiras se apresentam ao sujeito como
algo estranho, incômodo, sem sintonia com seu próprio ego; são ego-assintônicas às
críticas, querem libertar-se de seu acosso. É possível até justificá-las em determinados
casos, por exemplo, da mãe acossada pela idéia de que seu filho pode ser raptado ou
sofrer um acidente fatal na estrada. Na obsessão de limpeza não faltam argumentos
que apóiem esse hábito exagerado. Estas justificativas são plausíveis. Porém, ter a
obsessão de que a braguilha das calças se abrirá, deixando os genitais descobertos,
é algo muito perturbador. As idéias delirantes são ego-sintônicas: o sujeito crê ser o
novo messias e se veste tal como andava Cristo. Não duvida de sua identidade (é
claro, também existem os impostores que se fingem salvadores só para viver à custa
dos otários). Também podem ser perturbadoras em alto grau, mas a pessoa não
chega a pensar que são simples fantasias de sua mente. Tem uma certeza
incomparável, inabalável, da verdade do que lhe acontece. Só depois de ter passado
por uma experiência delirante é que o indivíduo sabe que são meras invenções de
sua imaginação, que mesmo assim lhe são impostas sem apelação.
Esta diferença indicada nem sempre é clara, pois há idéias obsessivo-compulsivas
que avassalam de tal maneira que o pobre sujeito aparece como um delirante fora de
si. É o que ocorre com os que sofrem da obsessão por contaminação: chega um
ponto em que já não se atrevem a entrar em contato com nada por temor de contrair
um micróbio, um vírus ou qualquer praga que por aí circule. Não dão a mão nem para
a princesa mais esplendorosa, nem abrem a porta puxando a maçaneta, não importa
se atrás dessa porta está o remédio contra sua ansiedade.
Para um exame mais atento do caráter obsessivo-compulsivo, leia o capítulo
"O guardião de si mesmo" deste livro.

Transtorno de estresse pós-traumático (Tept)

Depois de passar por um acidente grave ou algum evento ameaçador que


tenha provocado forte impacto emocional, a pessoa desenvolve intenso medo,
impotência e horror. O trauma é persistente e intrusivo, perturbando-a até em
seus sonhos (pesadelos). É o que acontece com quem foi vítima de um assalto,

191
O inquilino do imaginário

Quadro comparativo entre os diferentes tipos de idéias, normais e sintomática

-Idéias obsessivas são egodistônicas: perturbam ao sujeito são sintomáticas


-Idéias delirantes são egosintónicas, porém tanto podem são sintomáticas
perturbar ao S. quanto afinar-se com ele
-idéias supervalori- são egosintónicas: ratificam ao S. exal- são normais, salvo quando mistifi-
tando algúm asp~cto de seu mundo cam sua visão da vida e do mundo
-idéias fixas são sintónicas, acentuando a importância são normais, salvo quando absor-
de algum objeto ou objetivo vem demais a atenção da pessoa

submetido a tortura policial (comum nos regimes ditatoriais), que tenha passado
por violência sexual, ou que tenha sido deixada pelo noivo na porta da igreja. É
claro que o trauma pode ser bem menos dramático; o impacto emocional negativo
depende da personalidade do sujeito. Há pessoas que sofrem determinados
eventos ou situações altamente agressivas ou perturbadoras, sem experimentar
as seqüelas de um trauma; outras, menos preparadas para as contingências
adversas da vida, perante situações de mero confronto e de questionamento de
seus hábitos, reagem de maneira traumática. Diante de um assalto com invasão
do domicílio, as pessoas acusam uma reação bastante diferenciada. É sem dúvida
um fato altamente ameaçador, que amedronta o mais corajoso, sobretudo em
nosso país, onde os malfeitores têm a triste fama de serem impiedosos.
Em crianças, uma discussão exaltada entre os pais, com troca de ofensas
mútuas, pode ser algo altamente traumático; pior ainda se a mulher (ou o marido)
termina na emergência do hospital, por lesões múltiplas. Para um delinqüente
habituado às piores peripécias com a lei, uma troca de tiros com a polícia é parte
prevista de seu negócio, não importa se uma bala acabe alojada em seu abdome e
um par de colegas vai direto para o inferno. Porém, para as senhoritas que
presenciaram as mútuas homenagens da lei com os bandidos, sentindo o zumbido
das balas, isso foi um espetáculo bastante apavorante, que não vai acabar com
uma ducha de água fria. Supõe-se que um militar está preparado para os piores
feitos de uma guerra, e arrebentar com uma granada a cabeça de um monte de
civis suspeitos não lhe tira o apetite. No entanto, a guerra do Vietnã mostrou que
nem todos eram durões implacáveis, pois muitos deles terminaram traumatizados,
meio loucos, perseguidos pelas imagens do horror que eles mesmos protagonizaram.
Uma senhora pode sofrer um trauma depois de haver feito uma cirurgia estética
com resultados desastrosos; em vez de ver no espelho a jovem sorridente de 25
anos, encontra-se com a mesma senhora de 55, com a cara exageradamente
esticada, parecendo uma boneca mal feita, petrificada em plástico. Nestes casos,
as mais frustradas e aflitas exigem reparações na justiça, como acontece com
freqüência nos Estados Unidos, pois naquele país se processa por qualquer prejuízo

192
Os tipos de ansiedade

sofrido -já se viu um caso em que um fiel processou o padre por não celebrar a
missa como Deus manda.
David H. Barlow observa que o Tept é a conseqüência mais comum do estupro,
indicando que o 57% das mulheres vítimas deste tipo de violência sexual
apresentaram esta síndrome em algum momento de sua vida, mas adverte que
outros estudos dão uma cifra ainda muito maior-li.
Várias indícios revelam os efeitos pós-traumáticos, entre outros:
-Atuar como se o evento estivesse acontecendo de novo.
- Reatividade fisiológica diante de sinais internos e externos que representam
os eventos traumáticos. Basta observar uma cena que implique um assédio sexual
insistente para que uma vítima de estupro reaja com os sintomas somáticos do medo.
- Sofrimento psicológico intenso diante de sinais internos ou externos que
simbolizam ou lembram algum aspecto traumático. Para um judeu que sofreu os
horrores do nazismo, basta ver a suástica para que experimente um mal-estar
difícil de controlar. Basta lembrar-se de algumas cenas daquele horror para que o
medo e a raiva, a impotência e a desolação surjam em sua mente.
-Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e diminuição da
responsabilidade geral (evita atividades, locais e pessoas que lembrem o trauma,
sensação de distanciamento em relação a outras pessoas, perda de interesses
significativos etc.).
O Manual indica como seqüelas sintomáticas dois ou mais dos seguinte
itens, não presentes antes do trauma:
a) dificuldades em conciliar o sonho ou em mantê-lo; b) irritabilidade ou
erupções de raiva; c) dificuldades para concentrar-se; d) hipervigilância; d)
resposta de sobressalto exagerada.
O Tept é agudo se sua duração é inferior a três meses, e crônico se dura mais
de três.

O transtorno de estresse agudo (TEA)

Apenas um pouco diferente do anterior é o transtorno de estresse agudo.


Neste caso, também o sujeito foi exposto a situações traumáticas que lhe
provocaram um medo intenso, impotência e horror. O evento traumático é
persistente e revivido de diversas maneiras: imagens, pensamentos, sonhos, ilusões
e jlashbacks repetitivos. A maior diferença reside no tipo de vivências que
desencadeia. Três ou mais dos seguintes sintomas dissociativos configuram este
transtorno:

193
O inquilino do imaginário

a) um sentimento de anestesia subjetiva, entorpecimento ou ausência de


resposta emocional; b) uma redução da consciência na relação ao
contorno: o sujeito tem a sensação de estar sonhando; c) sentimento de
desrealização e despersonalização; d) amnésia dissociativa: incapacidade
para recordar alguns aspectos do trauma.
O sentimento de irrealidade se revela, seja porque as coisas perdem a
nitidez e o peso maciço de sua presença, seja porque adquirem todo o vulto
compacto e alheio de sua existência bruta; e as pessoas parecem movimentar-se
em um plano diferente do habitual normal, como se já não formassem parte do
mundo familiar do sujeito: parecem espectros. Surge o sentimento do absurdo,
da mera gratuidade da existência, agudizada ainda mais quando acompanhada
do sentimento de despersonalização. Nesta vivência, o sujeito se sente estranho
a si mesmo, como se tivesse perdido o eixo e o centro unificador de sua
personalidade. Pode repetir para si "eu sou fulano de tal, trabalho como professor
e esses dois rapazes são meus filhos", porém esse apelo à sua identidade resvala
por sua pele, sem tocar-lhe a sensibilidade; ao olhar-se no espelho, verá uma
pessoa estranha, mesmo sabendo que é ele mesmo. É provável que se diga: "O
que existe entre mim e você, onde está o que tenho sido e o que sou?". Talvez se
emocione e veja lágrimas deslizando de seus olhos. "Estás chorando, de que te
lamentas se já eras apenas um espectro? Pensavas que existia um sentido que
unia e segurava todas as parcelas de teu ser; a corda que amarrava tudo isso se
cortou".
Em ambos os sentimentos, é como se os sinais e os signos que colocamos nas
coisas perdessem seu significado. Esta é a experiência de Antonio Roquentin diante
da raiz do castanho; lembra-se dessa famosa passagem de A Náusea, onde Sartre
descobre o profundo e insuperável absurdo e gratuidade da existência humana? "A
raiz se afundava na terra; sem embargo, não me lembrava que era uma raiz. As
palavras que se haviam evaporado e, com elas, o significado das coisas, seus modos
de uso, os pálidos pontos de referência que os homens lhes traçaram na superfície.
Estava sentado, um pouco curvado, cabisbaixo, só em frente dessa massa negra e
ligada, completamente bruta, e que me atemorizava ." 10
O diagnóstico de TEA é justificado quando o estresse se manifesta dentro de
30 dias depois do trauma; excedido este prazo, é pertinente o rótulo de Tept.

O transtorno de ansiedade generalizada (TAG)

Esta é a perturbação que os autores clássicos qualificam como reação de


angústia - e como neuroses de ansiedade, já que se este é o estado de ânimo
predominante e crônico da pessoa, o que termina por configurar o caráter ansioso

194
Os tipos de ansiedade

inseguro. De acordo com o DSM-IV, a ansiedade não deriva de nenhum dos fatores
até agora assinalados (pânico, fobia social, toe, tas, traumas), tampouco deriva de
outras síndromes, como anorexia nervosa, transtornos de somatização, hipocondria.
O que predomina no TAG é a ansiedade e preocupação excessivas; é a
expectativa ansiosa e a apreensão psíquica e física, como bem sublinha Pefia e
Lillo4 • O sentimento de inquietude se impõe no campo psicológico do sujeito, levando
a uma consciência constante de ameaça ante os acontecimentos mais comuns e
cotidianos. Predomina nele um estado de alerta tenso, que ora passa para a
irritabilidade, ora para a preocupação corrosiva e absorvente. Vejamos um
testemunho:
"Acordo muito cedo, às vezes despertado por um pesadelo ou pelos primeiros
ruídos do amanhecer. Procuro permanecer um momento na cama, porém logo
percebo que essa espécie de verme que corre meu espírito ainda está aí, na
tensão de meus músculos, em um sonho agitado, em toda a atmosfera que respiro.
Para tranqüilizar-me invoco a figura de Cristo e tento imaginá-lo na santa ceia,
conversando com Madalena, ou pego outra cena qualquer. Rezo. Senhor, é verdade
que abandonei meus pais e só os vi na hora da morte; é verdade que fui duro e
injusto com aquela jovem que me amava, não estive à sua altura e não respeitei
seus sentimentos. Mas tu sabes quanto tenho sofrido por esses erros; e por
todos os outros que já cometi. Senhor, coloca tuas mãos em meu coração e livra-
me desta angústia. Tu sabes que não há maldade em minha alma, só ignorância
e todas as feridas que trago desde a minha meninice. Senhor, não permitas que
minha vida se reduza a nada, a um ir e vir sem sentido. Essas e outras orações
me aliviam por alguns momentos, às vezes por algumas horas. Porém, estou sem
trabalho. Você sabe; como uma forma de ajuda, minha esposa e os dois filhos
foram para a casa de meu sogro, pois eu não tinha como sustentá-los nestas
circunstâncias de penúria; isso me humilha; ninguém sabe quanto me humilha.
Tenho buscado uma ocupação qualquer, estou começando em uma profissão
com um mercado de trabalho limitado; há apenas dois anos formado ninguém
parece confiar em mim. Faço o que sobra por aí; dá para pagar o aluguel do
apartamento e para gastos menores. Se pelo menos conseguisse um pouco de
paz, talvez melhorasse minha sorte. O pior é que me irrito com facilidade, isso
tem significado alguns atritos com Yolanda; ela faz o possível para parecer positiva,
mas eu sei que se continuar um tempo mais dessa maneira perderei seu afeto e
o respeito das crianças. Estou com muita raiva; detesto este sistema social que
condena tanta gente a viver na perpétua corda bamba; detesto os políticos, que
além de ladrões se dão ares de grandes dignitários. Deteste essa gente que faz
ostentação de riqueza perante nossa pobreza. É tudo injusto demais. Se pelo
menos conseguisse ocultar minha frustração em casa. Isso é terrível para mim.
Como vão respeitar um pai que não sabe mantê-los com dignidade? Como uma
mulher vai continuar gostando de um sujeito incompetente. Incompetente; um

195
O inquilino do imaginário

fulano inteligente, com um título universitário, com 32 anos, que não sabe dar
conta de suas responsabilidades, que sempre paga o aluguel com atraso, que
simula para os ex-colegas de faculdade que está entrando na profissão, que
arrasta consigo duas culpas pesadas. Estou cansado; na flor da vida algo me
corrói as entranhas, como um ácido amargo. Como escapar de tudo isto? Preciso
sair, caminhar bastante, talvez assim minha alma se aquiete um pouco, minha
alma e meu corpo." (Julio, arquiteto)
Coloquei em forma itálica todas as manifestações de angústia (ou ansiedade
generalizada, como preferem os autores de língua inglesa). Todas elas correspondem
ponto a ponto com as indicadas pelo DSM-IV:
a) inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da pele; b)
fatigabilidade; c) irritabilidade fácil; d) tensão muscular, perturbações do sono; e)
dificuldades de concentrar-se ou sensações de estar com a mente em branco.
O Manual apenas não indica os sentimentos de culpa e de fracasso, de
impotência e de eventuais protestos, de injustiça sofrida e também exercida, que
são prováveis fatores motivantes do processo ansioso. Tampouco enfatiza o
sentimento de agonia e de luta, nem menciona o acosso do nada, que está no
fundo e na superfície da vivência angustiosa. Senhor, não permitas que minha
vida se reduza a nada. Angústia e agonia têm uma raiz etimológica semelhante;
a primeira designa a sensação de opressão da garganta, com a conseqüente
falta de ar (o sufoco da existência); a segunda designa a luta, a luta para
sobreviver; no momento final, agonizar significa a luta entre a vida e a morte.
Pelo escrito acima, é fácil apreciar que um TAG não acontece por uma
simples troca de temperatura ambiental, nem porque a posição dos astros anda
desfavorável. Implica toda a história vital da pessoa, além de sua configuração
caracterial construída ao longo dessa história. Cada um dos chamados sintomas
desenham formas peculiares de relação homem-mundo, que é a forma original
de manifestar-se o Dasein. Por isso, não basta indicar essas manifestações
sintomáticas; é preciso estabelecer seu sentido- inclusive quando são sintomas
somáticos derivados de disfunções biológicas já estabelecidas, é preciso
pesquisar a influência do fator vivencial. Uma diarréia, uma taquicardia e muitas
outras manifestações somáticas têm um substrato psicológico - e por esta via,
um sentido.
O TAG deve satisfazer ainda um outro requisito: acontecer durante seis
meses, na maioria dos dias. Para uma compreensão mais ampla sobre este tipo
de ansiedade, recomendo o capítulo sobre a angústia como uma forma genera-
lizada da queda no desespero, no livro Formas de Sensibilidade: Psicologia e
Psicopatologia dos Afetos. 7 Para um retrato da angústia vivida no ambiente de
uma grande cidade, veja-se o filme Taxi Driver. 3

196
Os tipos de ansiedade

Transtornos de ansiedade provocados por uma condição


médica

A característica principal deste tipo de transtorno é que seja o efeito de fatores


fisiológicos diretos, de uma condição médica geral. As perturbações podem incluir
três transtornos já comentados: o de ansiedade generalizada, ataques de pânico e
TOC. Devem existir evidências de sua origem fisiológica, sustentadas pela história
médica, por exames físicos e por descobrimentos laboratoriais.
As condições médicas se relacionam com diversas alterações e disfunções
biológicas: a) na área endócrina: hipo e hipertiroidismo, hipoglicemia,
hiperadenocorticismo; b) no sistema cardiovascular: insuficiência cardíaca
congestiva, embolia pulmonar, arritmia; c) na área respiratória: pneumonia,
hiperventilação, enfermidade pulmonar crônica; d) no sistema neurológico: encefalite,
disfunção vestibular, neoplasmas; e) relacionadas com o metabolismo: deficiência
de vitamina B 12, porfiria (esta doença se origina por um defeito metabólico inato
na regulação da enzima hepática ácido arninolevulínico).

Transtorno de ansiedade induzido por substâncias

Nesse tipo de ansiedade, os sintomas derivam diretamente, seja do uso de


alguma droga ou medicamento, seja pela presença de alguma toxina. Pode
manifestar-se tanto durante a intoxicação como no período de abstinência. Os
sintomas devem causar sofrimento excessivo e prejudicar o funcionamento social,
ocupacional ou em outras áreas do mundo pessoal. -
Como já se sabe, uma série de substâncias provocam ansiedade intensa,
especialmente no período de abstinência: cocaína, álcool, sedativos, hipnóticos,
ansiolíticos. Outras substâncias geram esta reação durante a intoxicação: cafeína,
cannabis, cocaína, alucinógenos, inalantes, morfina etc. A revista Veja, reconhecida
por suas excelentes reportagens, pesquisou o abuso de drogas entre os funcionários
de hospitais e verificou que existe um alto consumo de morfma, em razão de estar à
mão. Vejamos dois testemunhos: "Saí da residência e apliquei um injeção inteira de
morfma na veia. Foi como um orgasmo. A sensação de bem-estar nascia no umbigo
e se esparramava pelo resto do corpo. A dor anímica de dissipava. Em duas semanas
estava viciado. Foi o começo do inferno. Eu me aplicava umas doze vezes ao dia; se
demorasse mais de uma hora para tomar uma dose, surgiam os sintomas de
abstinência- ansiedade, suores, frio na barriga, diarréia" (clínico geral, 31 anos). O
cirurgião S. T. confessa: "Sentia-me todo o tempo sonolento e apenas pensando nas
ampolas de dolantina. Vivia ansioso para ficar a sós com a droga."9

197
O inquilino do imaginário

A lista dos medicamentos que induzem ansiedade acentuada é considerável:


anestésicos, simpático-miméticos, broncodilatadores, anticolinérgicos, insulina,
preparados de tiróide, contraceptivos orais, anti-histanúnicos, medicamentos anti-
parkinsonianos, corticosteróides, anti-hipertensivos e cardiovasculares, anti-
convulsionantes, carbonato de lítio, antidepressivos etc.

NOTAS

l) Romero, Erm1io (1986): Questionário de Compreensão do Mundo Pessoal, Arquivos da Sociedade


Brasileira de Psicologia Humanista Existencial, São Paulo.
2) Associação Norte-americana de Psiquiatria: Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais- DSM-IV. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.
3) O filme Taxi Driver foi dirigido por Martin Scorcese e protagonizado por Roberto de Niro.
Retrata muito bem o ambiente de solidão, frustração, violência e alienação- tão característico
das grandes cidades.
4) Pefia y Lillo, S. (1994) La Angustia. (Editorial Universitaria, Santiago do Chile).
5) Costa Pereira, M.E. (1997) Contribuição à Psicopatologia do Ataque de Pânico. São Paulo,
Lemos Editorial.
6) Barlow, David H. (1999) Manual Clínico dos Transtornos Psicológicos. (Porto Alegre, Artes
Médicas).
7) Romero, Emílio. (1989) Formas da Sensibilidade: Psicologia e Psicopatologia dos Afetos
(Arquivos da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista Existencial, S. Paulo).
8) Chambles, D.L., Chamey, J., Caputto, G.C. & Rheintein, B.J.G. (l987)Anxiety disorders and
Alcoholism a study with impatient alcoholics. Journal os An.xiety Disorders, I, 29, 40
9) Revista Veja, edição de 23 de fevereiro de 2000.
10) Sartre, J.P. (1938): La Naussée (Gallimard, Paris). Há tradução portuguesa.
11) Oatley, K. & Jenkins, J.M. (1996) Understanding Emotions. Blackwell Publishers, Cambridge
(& ) Disfórico, disforia: esta palavra designa qualquer estado de desagrado, insatisfação e desânimo.
(&& ) Chama a atenção o fato de que o DSM não justifique em nenhum momento o qualificativo de
borderline para este tipo de pessoas. Fronteiriço em relação a quê? Sua descrição nos recorda
o tipo abandônico comentado por alguns autores franceses.

198
Capítulo 9

OS TRANSTORNOS DA
PERSONALIDADE B A QUESTÃO DOS
TIPOS PSICOLÓGICOS

A questão dos tipos psicológicos tem sido uma


preocupação persistente na história da psicologia. Desde Hipócrates,
com sua doutrina dos quatro temperamentos, até a caracterologia de
René Le Senne e Gustav Jung, este interesse fica muito presente. Depois de uma
breve comentário da obra de Le Senne e de considerar as razões que fundamentam
as classificações tipológicas, examina-se neste capítulo a classificação dos
transtornos da personalidade tal como é entendida pelo DSM-IV ( 1994).
Os autores desta proposta classificatória distinguem dez tipos sintomáticos;
destacam os pontos em comum que apresentam, o que justificaria seu agrupamento
numa categoria determinada. Questiona-se a categoria transtornos da
personalidade por sua falta de especificidade (outras categorias diagnósticas
merecem a mesma qualificação: personalidade neurótica, psicótica etc.,
que sofrem igualmente alguma forma de perturbação); sugere-se como rótulo
mais adequado a categoria personalidade fronteiriça, tendo em vista que
todos os tipos incluídos estão seja nas fronteiras da psicose, seja nas
fronteiras da neurose - menos a personalidade psicopática que configura
um quadro bem delineado pela psicopatologia clássica. Propõe-se também
uma novaforma de agrupamento destes tipos segundo os fatores
psicológicos mais acentuados. No grupo A estão os sujeitos parapsicóticos,
cuja deficiência básica encontra-se na área da auto-identidade. No grupo
B estão os tipos cuja característica central é o egocentrismo acentuado.
No grupo C figuram os tipos caracterizados por uma
deficiente autoconfiança.

199
O inquilino do imaginário

A questão das classificações e dos tipos psicológicos

urante as primeiras entrevistas com um cliente que se propõe iniciar um

D trabalho psicoterapêutico, nossa atitude como profissional é de acolhimento


afável; limitamos-nos a escutar o que lhe está preocupando, prestando
atenção em como ele expressa o que lhe acontece e como se posiciona no mundo
que constitui sua realidade. Embora o coagente se centralize no tema que mais o
preocupa, raras vezes nos limitamos ao puramente emergente, aquilo que o está
afligindo mais; sempre indagamos outros aspectos pertinentes, próximos e laterais,
até chegar a uma visão mais ampla de sua situação geral. Depois de três ou mais
entrevistas nesta atitude de receptividade convidativa, chega o momento de fazer
uma avaliação tanto da problemática que motiva sua demanda de tratamento, quanto
dos fatores que estão originando suas queixas. Entre estes fatores, três se destacam
de maneira notória: a configuração de sua situação atual, sua história pessoal e a
estrutura de sua personalidade. As três estão em estreita dependência, in-
fluenciando-se mutuamente. As três requerem um exame minucioso, embora a
ênfase seja diferencial segundo a proposta do tratamento. De qualquer maneira, é
sempre preciso uma avaliação correta da personalidade. Neste objetivo, nem sempre
nos deparamos com um tipo de personalidade bem definido, já descrito nos tratados
de caracterologia ou de psicopatologia; contudo, numa porcentagem bastante alta
é possível estabelecer o perfil caracterial e temperamental da pessoa. Seja pela
simples observação do comportamento e da dinâmica das vivências, que manifestam
seu modo de ser-no-mundo, seja como resultado da aplicação de algum teste de
personalidade, obtemos um retrato bastante aproximado do que seja a pessoa em
suas linhas fundamentais.
Nesta tentativa de compreender a pessoa, com freqüência observamos que
ela corresponde, em linhas gerais, a um tipo de personalidade já bem estudado
pelos psicólogos ou pelos psiquiatras.
A questão dos tipos de personalidade tem sido uma preocupação constante
entre os pesquisadores interessados numa compreensão científica do ser humano.
Admite-se a singularidade do indivíduo, mas logo se percebem os muitos pontos
em comum que ele mantém com outras pessoas, seja em seu comportamento, seja
em seu tipo biofísica, seja em sua situação socioeconômica. Basta uma simples
observação do cotidiano para reparar que os humanos são semelhantes em dois
grandes planos. Todos nós apresentamos traços universais, presentes em todos
os indivíduos, próprios da esfera biológica e do plano ontológico (somos seres
temporais, carentes, finitos, duais, abertos às possibilidades etc.). Apresentamos
também traços comunais, comuns a uma multiplicidade de pessoas (de uma
determinada raça ou nação, de uma faixa etária, de um nível socioeconômico etc.).
Somos também seres únicos em alguns aspectos; temos uma história semeada

200
Os transtornos da personalidade

de eventos e situações que apenas nós como indivíduos temos vivido; podem ser
situações similares às que outras pessoas também viveram, mas houve sempre
algo de único nelas, provocando em nós um impacto incomparável.
A ciência não ignora o indivíduo, o caso único, mas se interessa sobretudo
pela generalidade, pela multiplicidade na qual está inserido o indivíduo enquanto
ente comum agrupado numa classe geral. O caso singular serve como ponto de
partida, mas o conhecimento derivado de sua singularidade adquire validade se é
generalizável para uma multiplicidade de indivíduos. Pedro, João e Diogo são seres
singulares; a ciência, seja na forma de economia, antropologia ou psicologia, está
interessada em estabelecer o que tem em comum estas três pessoas, destacando
o que cada uma destas ciências se atribui como de sua competência. Os três
mostram alguns traços similares, em termos psicológicos? Isto interessa à psicologia.
De fato, são introvertidos, reservados, ativos, pouco emotivos, persistentes,
disciplinados, sérios, tranqüilos- então os três pertencem a um tipo humano chamado
fleugmático (segundo a tipologia temperamental de René Le Senne). 1 Este tipo é
nitidamente diferente dos outros sete discriminados e caracterizados pela teoria
temperamental deste autor. Diferente, mas com semelhanças igualmente nítidas
com respeito a outros tipos com quem compartilha alguns fatores comuns. 1
A ciência, entre outros objetivos, tipifica; procura o que um conjunto de
indivíduos ou fenômenos tem em comum, seja na sua aparência externa, seja no
seu funcionamento e estrutura intrínseca. Este é o objetivo das classificações.
Uma vez que estabelece uma configuração típica, procura averiguar quais são os
fatores determinantes do tipo. Na tipologia deLe Senne, as três grandes dimensões
psicológicas que condicionam um tipo são a primaridade-secundaridade, a atividade-
passividade, a hiperemotividade-hipoemotividade. A primeira dimensão se aproxima
à descrita por Jung como extrovertido-introvertido. São fatores dicotômicos, embora
com um ponto de enlace que permite uma terceira posição. Ora introvertido, ora
extrovertido, conforme a situação e as circunstâncias. Os seguidores desta
concepção supõem com boas razões que estas três dimensões, mais algumas
tendências gerais (amplidão do campo da consciência, grau de avidez, egocentrismo
e alterocentrismo, componente marciano ou venusino etc.), dão conta da diversidade
de seres humanos quando agrupados em classes gerais. Na mesma linha de
raciocínio está a tipologia psicológica de Jung, que igualmente distingue oito tipos
resultantes da combinação de dois grandes fatores básicos (introversão versus
extroversão) e de quatro funções psíquicas universais: intuição, pensamento,
sensação, percepção.
Pela simples inspeção dos fatores indicados, percebemos que todos eles
ressaltam aspectos psicológicos bastante complexos, mas esta ênfase no psicológico
não desconsidera o biológico; isto é muito notório em Le Senne, que concebe estes
fatores como próprios do temperamento, provavelmente determinado por

201
O inquilino do imaginário

componentes biológicos, pois os traços temperamentais se manifestam de modo


precoce e são altamente persistentes ao longo da vida do sujeito. Raras vezes
mudam completamente, mas podem ser modulados, alterados para mais ou para
menos na sua banda de expressão.
Nem preciso ressaltar que inserir uma pessoa num tipo determinado não
significa reduzir sua complexidade apenas à configuração geral desenhada pelo
tipo; nenhuma pessoa, nem sequer a mais elementar, se esgota num perfil de
personalidade: ela sempre ultrapassa o tipo e é algo mais. Este é o princípio
antropológico da singularidade do indivíduo.
Afirmávamos num parágrafo anterior que o psicólogo (e o psiquiatra humanista),
na sua tentativa terapêutica, fica atento ao que acontece com a pessoa em sua
peculiaridade; para tanto, examina sua situação, o seu modo de ser-no-mundo; tenta
compreender o que se passa com esta pessoa em seus relacionamentos interpessoais,
em sua visão da realidade; fica atento a seus valores e crenças e como ela tem se
articulado na sua história, orientando seu projeto vital; considera como produz os
meios materiais que lhe permitem sustentar-se no plano econômico- seu ofício ou
profissão. Como esta pessoa chegou à situação na qual se encontra? Esta é uma
pergunta inevitável. De que maneira o sofrimento que a perturba e que motiva sua
demanda de cura chegou a configurar-se desta maneira? Esta é a questão inicial.
Contudo, mesmo atento ao singular, o terapeuta precisa levar em conta o que
sua ciência lhe ensina a propósito de casos semelhantes. Baseado nos conhecimentos
que lhe oferecem a psicologia e a psiquiatria em casos similares, chega a um
diagnóstico do tipo de problemática que afeta este indivíduo. Pode concluir que se
trata de uma pessoa de caráter depressivo, que tem passado por períodos de crise
parecidos em épocas anteriores. Além do diagnóstico, fará uma avaliação dos
recursos psicológicos (fatores positivos) que o cliente apresenta e que, por hipótese,
facilitam uma proposta de tratamento, além de avaliar a situação geral, os diversos
ambientes que ele freqüenta- configurantes de sua realidade. Também é provável
que conclua que não encaixa em nenhum tipo sintomático; trata-se simplesmente
de uma pessoa que está passando por um período difícil, com problemas que o
perturbam a ponto de não saber lidar com eles. É o que acontece com 30% a 40%
das pessoas que solicitam atendimento psicológico.

As classificações psicopatológicas e os tipos de


personalidade sintomática

Em psicologia temos várias tipologias dos seres· humanos, desde a proposta


por Hipócrates, baseada na doutrina dos quatro humores distinguidos na sua época
(séc. IV a.C.), até as tipologias constitucionais de Kretschmere Sheldon, passando

202
Os transtornos da personalidade

pelas caracterologias de Le Senne e de Gustav Jung. Todas elas pretendem


caracterizar tipos normais.
Em psicopatologia e psiquiatria, é de rigor propor classificações dentro
dos grandes quadros clínicos, as que terminam por estabelecer verdadeiras
tipologias nosográficas. No quadro das neuroses, uma longa tradição que durou
quase um século admitiu cinco tipos de neuróticos: o ansioso inseguro, o
depressivo, o histérico, o obsessivo-compulsivo e o fóbico, afora outras figuras
que gozaram de menos aceitação. No quadro das psicoses funcionais, onde
está inserida a famosa esquizofrenia, se distinguem nesta classe de doença
pelos menos quatro tipos, na concepção tradicional de Bleuler, mas o DSM-IV
(1994) descreve oito.
Porém, os cinco grandes quadros da psiquiatria e da clínica clássica (neuroses,
psicopatias, psicoses, demências, oligofrenias - e alguns autores acrescentariam
um sexto quadro: as perversões sexuais) não se julgam suficientes como para dar
conta da variedade de figuras humanas que apresentam comportamentos e vivências
altamente sintomáticas. São pessoas que sofrem e provocam sofrimentos, que
apresentam traços de personalidade desadaptativos e conflituantes desde o início
da adolescência e, inclusive, já na infância. Apresentam o que se convencionou
chamar de transtorno de personalidade. Com este rótulo são descritos dez tipos
de personalidade no DSM-IV, publicação oficial da Associação Psiquiátrica norte-
americana2.
Vamos examinar esta classificação, fazendo algumas observações críticas
que ela nos provoca assim que passamos de uma primeira leitura. Esta taxonomia
goza de ampla aceitação entre os especialistas da psiquiatria e da psicologia clínica
que labutam em nosso meio- aliás, como boa parte dos produtos made in USA-,
mas este fato não a coloca no pedestal do saber incontestável; pelo contrário, nos
exige um olhar crítico ainda maior.
A palavra transtorno é bastante imprecisa por ser muito ampla. Não nos
permite defmir o que seria o central ou mais característico nos dez tipos sintomáticos
incluídos nesta categoria. Todas as perturbações mentais, qualquer que seja o
quadro, supõem um transtorno da personalidade, passageiro ou prolongado. É
verdade que para adiantar-se a esta objeção, o DSM ressalta que o transtorno
deve ser persistente. Transtorno é empregado como sinônimo de perturbação, de
algo que altera negativamente uma certa ordem ou o funcionamento normal de um
sistema, de uma situação; porém, o conceito de personalidade transtornada é
entendida corriqueiramente como equivalente a pessoa louca, ou nos limites da
loucura. Não é esta a intenção dos autores do DSM-IV ao propor esta
denominação; pelo contrário, são personalidades que, em geral, não entram numa
psicose, embora três tipos inseridos nesta classificação possam apresentar condutas
~em próximas da loucura.

203
O inquilino do imaginário

Na verdade, é difícil encontrar uma denominação que abranja todos os tipos


destacados, caracterizando o que teriam em comum. Quando falamos de neurose,
entendemos que os cinco tipos incluídos neste rótulo têm em comum os fatores
angústia e depressão como vivências dominantes e perturbadoras, seja uma neurose
reativa ou se trate de um caráter neurótico. O mesmo acontece com os tipos
psicóticos, cujo fator comum é a acentuada alienação do sujeito de sua própria
realidade, o que não lhe permite levar uma vida produtiva e autônoma, adaptada às
exigências de uma convivência efetiva com o próximo.
Para evitar discussões, os autores decidiram estabelecer alguns critérios
que permitam diagnosticar se uma pessoa sofre de um transtorno de personalidade.
São indicadores que possibilitam diferenciar esta classe de perturbações de outras
semelhantes, mas de causalidade e curso diferentes. Como se pode apreciar no
esquema seguinte, o critério parece, à primeira vista, bastante claro e bem
formulado. A personalidade é entendida como um padrão persistente de caráter
vivencial e comportamental; explícita o lado subjetivo e mais objetivo do ser
humano, sem que os autores se pronunciem sobre a primazia de um ou de outro.
O que em seguida chama a atenção é a ênfase posta na índole desviante desta
classe de transtornos: desviam-se das expectativas da cultura na qual o sujeito
está inserido. De imediato surge-nos a pergunta: mas por acaso os tipos
psicopatológicos, inseridos em outros quadros clínicos, não se desviam igualmente
das pautas culturais em alguns dos quatro itens sinalados pelo DSM? Os
neuróticos, os psicóticos, só para citar os mais numerosos, também apresentam
esta característica. Esta e todas as outras propostas nos demais itens. A rigor,
nenhum dos critérios indicados (salvo o item f) são exclusivos desta classe de
pessoas qualificada na categoria em pauta.
Este talvez seja o ponto mais fraco da classificação deste famoso Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais concebido pelo que se entende
sejam as mais altas autoridades na matéria.
a) Um padrão persistente de vivência íntima ou comportamento que se desvia
acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo. Este padrão
manifesta-se em duas ou mais das seguintes áreas:
1) cognição (isto é, modo de perceber e interpretar a si mesmo, outras
pessoas e eventos);
2) afetividade (isto é, variação, intensidade, labilidade e adequação da
resposta emocional);
3) funcionamento interpessoal;
4) controle dos impulsos.
b) O padrão persistente é inflexível e abrange uma ampla faixa de situações
pessoais e sociais.

204
Os transtornos da personalidade

c) O padrão persistente provoca sofrimento clinicamente significativo ou


prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas
importantes da vida individual.
d) O padrão é estável e de longa duração, podendo seu início remontar à
adolescência ou começo da idade adulta.
e) O padrão persistente não é bem explicado como uma manifestação ou
conseqüência de outro transtorno mental.
f) O padrão persistente não é decorrente de efeitos fisiológicos diretos de
uma substância (por exemplo, abuso de drogas, medicamentos) ou de uma
condição médica geral (traumatismo craniano).

Critérios diagnósticos para um transtorno de personalidade


segundo o DSM-IV (1994)
Quando examinamos os distúrbios de personalidade propostos pelo DSM-IV
( 1994), logo reparamos que nesta classificação se incluem tipos que em taxonornias
propostas por outros autores figuram em outras configurações sintomáticas. Três
tipos se aproximam para a psicose: o esquizóide, o esquizotírnico, o paranóico.
Dois entram na categoria de neuróticos: o obsessivo-compulsivo, o histriônico. Um
constitui a figura clássica do anti-social: o famosos psicopata. Três entram na
categoria dos sujeitos problemáticos por mera acentuação de um fator: o narcisista,
o dependente, o esquivo (também conhecido como tímido, inibido). O que caracteriza
o borderline? É fronteiriço em relação a quê?
Os autores do DSM advertem que ainda pode haver outros tipos, mas
acreditam que os mencionados são os mais bem estabelecidos, embora a
classificação por eles indicada não foi consistentemente validada; de fato, os
três agrupamentos assinalados são imprecisos e duvidosos. No grupo B, por
exemplo, incluem o psicopata, o histriônico, o narcisista e o borderline. "Os
indivíduos com esses transtornos freqüentemente parecem dramáticos, emotivos
ou erráticos." Embora existam psicopatas emotivos, também há um tipo frio de
ânimo e nada dramático. O grande fator comum dos três primeiros tipos é o
egocentrismo acentuado, fator não mencionado pelos autores. O grupo C inclui a
personalidade esquiva, a dependente e a obsessiva-compulsiva; assinalam que
os três parecem amiúde ansiosos e medrosos - o que é certo especialmente
para os dois primeiros. O grupo A é o mais consistente, pois os três são propensos
à psicose.
O borderline é uma figura que se aproxima do tipo depressivo, bem
descrito nos manuais clássicos. Todos os traços mencionados assim o indicam:
instável, autopunitivo, impulsivo, disfórico, dominado por um sentimento crônico
de vazio.

205
O inquilino do imaginário

Nos outros três tipos, este fator é de fácil identificação; além do egocentrismo,
que é comum a todos eles, o psicopata apresenta uma deficiência na esfera ética:
carece de um senso básico de responsabilidade e de respeito ao próximo. O
histriônico apresenta uma auto-identidade mistificada, falseada - distorcida pelo
desejo egóico de ser mais e diferente do que é propriamente: há um conflito entre
o proprium e o ego. 4 No narcisista existe uma valorização excessiva de si, também
falseada, acompanhada de uma certa ambivalência com respeito aos outros: uma
oscilação entre, por um lado, o menosprezo e, pelo outro, a subordinação ao juízo
alheio.
Proponho duas teses; a primeira é que cada um destes tipos apresenta ora
uma deficiência, ora uma acentuação excessiva de um ou mais fatores de
personalidade; este fator inclui dois ou mais traços, o que termina por direcionar e
influenciar tanto o comportamento do sujeito como seu substrato vivencial. A segunda
tese é que os dez tipos diferenciados podem ser agrupados em três categorias,
cada uma caracterizada por um fator ou eixo vivencial predominante.
A) Tipos na linha do psicótico (auto-identidade mal-integrada e acentuada
deficiência no contato interpessoal):
o esquizóide: deficiência do fator contato social (da simpatia e empatia),
que se expressa numa dificuldade para comunicar-se e numa dificuldade
acentuada para manter relações de intimidade;
o esquizotímico: deficiência acentuada do fator contato social (da simpatia
· e empatia), além de uma acentuada mistificação da auto-identidade
(alienação de si e do mundo);
o paranóico: deficiência acentuada do fator contato social (da simpatia e
empatia), além de uma acentuada agressividade defensiva como expressão
de uma ambivalência profunda contra o próximo- ambivalência decorrente
de um sentimento de injustiça sofrida.
B) Tipos na linha do egocentrismo acentuado (sujeitos muito centrados em
seu ego, com pouca ou nula empatia pelo próximo):
o psicopata: acentuado egocentrismo, além de uma formação deficiente
do senso ético (falta de respeito ao próximo e escasso senso de
responsabilidade);
o histriônico: acentuado egocentrismo, além de uma auto-identidade falseada
de si, distorcida por seu desejo egóico de ser mais e diferente do que
propriamente é. O egocentrismo é disfarçado por atitudes de agrado,
elogios e atenções, que são suas táticas para fazer-se valorizar e aceitar;
o narcisista: pessoa dominada por uma tendência a uma supervalorização de
si, egocêntrica, direcionada por uma ambivalência com respeito ao próximo,
que oscila entre o menosprezo e a subordinação ao juízo alheio. 3

206
Os transtornos da personalidade

C) Tipos dominados pela falta de autoconfiança, o que os toma vulneráveis,


sensíveis demais perante as dificuldades da vida:
o obsessivo-compulsivo: pessoa auto-exigente dominada pela necessidade
de estabelecer um controle rígido de seu ambiente e de seu próprio
comportamento, como forma de amenizar e diminuir seu sentimento de
falta de autoconfiança e a ansiedade dela decorrente;
o tímido (ou inibido): sujeito sensível, inibido em situações de interação
social, dominado por uma baixa auto-estima, o que o toma muito vulnerável
a qualquer tipo de críticas ou de reprovação social;
o dependente: é uma pessoa sensível, com uma forte necessidade de apoio,
que a leva a estabelecer relações de subordinação com os outros como
uma maneira de obter aceitação;
o borderline: indivíduo sensível, muito apegado ao objeto de seus afetos,
impulsivo e um tanto excessivo na expressão de seus desejos, com
propensão para auto-agredir-se quando frustrado, instável em seus
relacionamentos interpessoais, em seus objetivos de vida e em seus estados
de humor. Carente de um centro firme de autovalorização, experimenta
um sentimento persistente de vazio existencial.
Pelo exposto acima, os quatro tipos do grupo C correspondem a figuras
descritas como neuróticas, ou suscetível de sê-lo, segundo a concepção deste quadro
clínico aceito por gregos e troianos até a penúltima edição do DSM. Apresentam
os traços característicos do caráter neurótico. Um fator determinante das neuroses
é precisamente uma insuficiente autoconfiança e, por esta via, uma baixa auto-
estima. O tímido é uma pessoa ansiosa e insegura, pouco hábil no emprego de
mecanismos de defesa- o que lhe permitiria disfarçar e atenuar sua insegurança.
O borderline e o dependente se encaminham pelos roteiros da depressão. Enquanto
ao caráter obsessivo-compulsivo sói apresentar, em alguns casos, uma fachada de
firmeza, decisão e segurança, sua rigidez e necessidade de controle delatam sua
insegurança básica.
Os três tipos de grupo B têm um fator comum, o egocentrismo acentuado,
mas o histriônico sempre foi colocado no grupo das neuroses de caráter; é difícil
ver a vantagem de colocá-lo numa nova denominação. Sua auto-estima é variável,
mas pouco consistente, sendo extremamente vulnerável ao juízo do outro; é freqüente
nele traços de feição narcisista, sobretudo na imagem corporal - traço bastante
acentuado no subtipo afeminado, amaneirado- mas inclusive esta atitude denuncia
sua falta de autoconfiança. Não é raro que afirme seu menosprezo pelas regras
sociais convencionais, mostrando-se em aberta pugna com algumas normas, mas
esta atitude denota mais uma falta de consciência de sua realidade que uma
verdadeira afirmação de sua identidade. Sua ruptura com determinadas normas
sociais é mais outra maneira de mostrar uma forma de contestação da ordem

207
O inquilino do imaginário

social. Contudo, e apesar de seu egocentrismo, a maioria deles procura agradar às


pessoas para assim obter estima e consideração.
Em relação aos traços centrais do caráter narcisista existem discussões e
notórias divergências entre os especialistas. Corresponde a uma tendência geral
do ser humano, presente em todos nós num certo grau? Corresponde a uma
acentuação sintomática da auto-estima? Corresponde a um impulso libídico que
o sujeito investe em si mesmo, o que lhe impediria um relacionamento efetivo
com o próximo? É um mero derivado do egocentrismo, este sim uma tendência
humana, tendência que se manifesta por uma centralidade no próprio ponto de
vista, natural em todos nós? É um indivíduo egocêntrico que se supervaloriza em
alguns aspectos, sem que admita honestamente suas deficiências e defeitos, nos
outros - como acontece com uma pessoa normal. Todos nós supervalorizamos
algum aspecto de nossa personalidade ou dos bens que a vida nos brinda; não
basta isto para merecer o qualificativo de narcisista; o distintivo é que este tipo
de pessoa se nega a admitir seus traços negativos. Apresenta uma exaltação
excessiva de si em nível egóico, com uma atitude ambivalente para o próximo;
de menosprezo e também de subordinação a seu juízo, embora diga que seu
julgamento não lhe importa. A todos nós importa o julgamento dos outros. Seria
tolice não levar em conta as avaliações de nossos semelhantes a nosso respeito;
mas também é tolice subordinar-se a essa opinião.
A personalidade psicopática (o famoso pepé) é bem conhecida; constitui um
quadro clínico muito bem caracterizado na psicopatologia clássica; acima
mencionamos seus traços mais destacados. Surpreende que tenha sido colocado
nesta categoria, pois como perfil de personalidade tem sido descrito e estudado em
seus mais diversos aspectos. Aliás, existem diversos tipos de psicopatas. A figura
que mais se destaca é o chamado psicopata padrão: um sujeito simpático, com
uma boa inteligência para ludibriar e vender uma imagem positiva de si, flexível
segundo sejam as situações e as circunstâncias, mas com todos os traços negativos
que organizam sua estrutura pessoal - muito egocêntrico, anético, irresponsável,
manipulador. Como tem uma boa inteligência, chega a passar por um cidadão
exemplar; só um conhecimento mais próximo permite enxergar seus truques e
falta de consideração. Existe um outro subtipo, cuja característica é sua
agressividade, que pode chegar a todos os requintes da crueldade e do sadismo.
Muitos delinqüentes violentos entram nesta figura. Kurt Schneider, o grande
pesquisador deste espécime humano, descreve ainda um tipo, que ele qualifica
como frio de ânimo, sempre imperturbável perante as atrocidades de sua conduta.
O pepé padrão não apresenta este traço; tampouco o apresenta o psicopata abúlico,
cuja marca registrada é sua passividade, falta de iniciativa e ausência de
compromisso com qualquer tarefa que lhe imponha obrigações; não é raro que
circule pelas ruas da vida como um vagabundo ou como desempregado crônico,
sem que sua situação lhe cause maior angústia.

208
Os transtornos da personalidade

Todos os tipos de psicopatas, não importa quão simpáticos sejam, incorrem


na violação dos direitos básicos dos outros e das normas sociais; diferenciam entre
si por alguns traços que acentuam um aspecto a mais de sua conduta.
O grupo A inclui os três tipos parapsicóticos. Todos eles apresentam uma
auto-identidade mal-integrada, conflituante, além de mostrar dificuldades muito
sérias para manter contatos interpessoais produtivos e íntimos; estas dificuldades
os levam para o isolamento e a desconfiança em relação aos outros; têm escassa
ou nula simpatia e empatia para com demais. Em ruptura com seu ambiente, tendem
a perder-se em seu labirinto pessoal, não chegando a perceber os motivos de seu
desencontro; vivem num mundo alienado, mas conseguindo manter uma fachada
de relativa adaptação a seu meio. São propriamente sujeitos borderline, fronteiriços,
no limite da psicose- podem tomar-se inquilinos do imaginário, de maneira episódica,
em caso que a situação que protagonizem seja muito estressante e difícil.
Por todo o comentado nas linhas anteriores, pode-se concluir que a denominação
genérica de transtornos da personalidade não tem sido um qualificativo muito feliz
para caracterizar tipos humanos com estruturas pessoais bastante diferenciadas
entre si, tanto que podem ser agrupadas em categorias diferentes, como foi indicado
acima. Eu diria que, se existe uma denominação que recolhe o fator comum geral
que justificaria uma denominação genérica, seria personalidades fronteiriças,
ou borderline, como denominam os ingleses. Todas elas estão ou no limite da
psicose, grupo A, ou no limite das neuroses, grupos B e C. O único que não se
encaixa neste critério é a personalidade psicopática, embora seu comportamento,
em alguns casos, se apresente com as feições da loucura. Embora a psiquiatria
norte-americana, representada pelo DSM, tenda a dar as costas aos grandes quadros
clínicos descritos nos tratados clássicos, continuo pensando que a psicopatia deveria
manter-se como uma entidade clínica autônoma- em razão dos subtipos facilmente
discemíveis nesta categoria.

Notas
l) Le Senne, René: Traité de Caracterologie ( PUF, Paris, 1945). Existe em português uma exposição
geral da obra de Le Senne no livro de Roger Gaillat: Chaves da Caracterologia (Zahar
Editores, 1976).Estes autores entendem por caráter o que entendemos por temperamento, ·
pois ressaltam seu lado inato, congênito, hereditário. Em geral, os psicólogos entendem que o
caráter é adquirido, bem mais maleável e modificável que o temperamento. Os três grandes
fatores antitéticos discriminados por eles são facilmente discrimináveis assim que se examina
a vida do sujeito e alguns aspectos de seu comportamento.
2) Associação Norte-americana de Psiquiatria: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, 4'edição (DSM-IV, 1994) Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 1996.
3) Nesta mesma categoria, eu colocaria também a chamada personalidade autoritária, muito bem
descrita por Teodor Adorno em seu livro Authoritarian Personality (Nova York, 1950), na

209
O inquilino do imaginário

qual se insere o sujeito adicto a uma ideologia nazista ou fascista. Trata-se de uma pessoa
dominada por uma propensão maniqueísta, que o leva a enxergar as coisas em termos de
opostos inconciliáveis, hierarquizando as relações humanas em termos de autoridade supe-
rior e inferior e estabelecendo julgamentos dogmáticos, geralmente oriundos de um preconceito.
4) A palavra latina proprium me parece adequada para designar o que comumente os ingleses
denominam self, que corresponde ao mais próprio e genuíno do sujeito. Gordon Allport
usou-a neste mesmo sentido.
(& ) Entende-se por fator psicológico dois ou mais traços associados que caracterizam algum aspecto
do comportamento do sujeito.

210
Capítulo 10

O GUARDIÃO DE SI MESMO
# #

SOBRE O CAKATEK ANANCASTIC0 1


Talvez você não acredite, mas algumas virtudes geram um grande defeito. Meu marido é bem
educado, ordeiro, muito responsável, sério e exigente. Quando namorávamos, tudo isso me
parecia pérolas de um mesmo colar. Já casados, percebi que essas qualidades o tornavam um
grande chato. O colar se tornou a corda no pescoço do enforcado. (Uma dama)

e todos os tipos de neurose, a forma obsessivo-compulsiva é a mais

D difícil de compreender e de tratar. Tentamos neste capítulo uma visão


fenomenológica dessa forma de ser-no-mundo própria e característica
dessas pessoas. Propomos também uma provável origem do caráter
anancástico, advertindo igualmente das ciladas que suscita na relação
terapêutica.

A figura em seu conjunto

É bem conhecida a figura do obsessivo, embora não apresente os traços que


o juízo do leigo se compraz em atribuir-lhe; não aqueles que o tomam uma carica-
tura algo grotesca da ordem e da limpeza; estas duas obsessões emergem apenas
quando está atravessando um período de ansiedade intensa e nem sempre estão
presentes do modo farsesco que o estereótipo sugere.
No conjunto, nós o enxergamos como um cidadão bem-comportado, atencioso
às regras e convenções sociais; anda bem-arrumado, com trajes sempre discretos
e consoantes com o uso comum; quase nunca abusa de efeitos expressivos em

211
O inquilino do imaginário

matéria de maquilagem ou de atavios chamativos. A discrição é uma virtude que


ele aprecia. Chamar a atenção em situações sociais, ou ser objeto de escândalo,
o aborrece profundamente. Nesse aspecto, é a contrapartida do histérico, sempre
tão disposto à exibição.
Aprendeu cedo a ser cuidadoso, começando por sua aparência pessoal. É
sóbrio no vestir; quando pode, usa certos requintes que acentuem sua distinção
- sempre algo delicado e fino. A primeira impressão é de que se trata de uma
pessoa bem-educada e levemente introvertida. Geralmente é assim. Trata os
outros com consideração, mas nunca é cordial e efusivo; sabe manter uma
distância cortês, que não ofende nem convida. Sorri com oportunidade, mas a
gargalhada é um estouro que não costuma mostrar. Fala num tom adequado,
médio; quando instruído, usa uma linguagem predominantemente objetiva, com
poucos matizes emocionais; quando precisa expor suas idéias, o faz de ma-
neira detalhada, algo prolixa e iterativa; parece querer transmitir exatamente o
que pensa, ou descrever as coisas tal como aconteceram em seus pormenores.
Às vezes toma-se cansativo por estas necessidades de prolixidade. É o que
alguns autores descrevem como o detalhismo dos obsessivos. É que estão
treinados para perceber o detalhe, sobretudo o detalhe inconveniente, aquele
ponto frouxo de um tecido que você puxa e desarma toda a trama. Neste
sentido, são bons observadores das rugas simuladas nas superfícies planas. Só
que amiúde pegam o pequeno inconveniente e ficam parados, perdendo a visão
do conjunto, desalentando-se pelo ínfimo risco no cristal.
Como são inseguros, esse detalhe negativo os bloqueia.
Aparecem como organizados, metódicos, responsáveis. Proporcionam a
imagem do funcionário certinho e programado. De fato, são excelentes
funcionários; conscientes de seus deveres, meticulosos e responsáveis. Por
serem conscienciosos, podem ser relativamente vagarosos na realização de
suas tarefas, pois gostam de fazer tudo com cuidado e esmero. Às vezes é
preciso exigir-lhes a entrega de um serviço, já que eles consideram que ainda
não está suficientemente acabado. Por esses traços muitos obsessivos, con-
seguem sucesso profissional; não nos esqueçamos que de essas características
de personalidade encaixam-se muito bem com a proposta de uma sociedade
tecnológica e industrial.
É um cidadão disciplinado, com bastante senso de respeito às normas,
sendo geralmente correto. É o tipo ideal para um mundo robotizado, dominado
pela máquina e :ROr uma burocracia impessoal. Em grandes firmas, fazem
carreira fácil, sobretudo quando ocupam postos subordinados que lhes exigem
apenas o cumprimento de ordens. Na área da iniciativa privada, são menos
expeditos, em razão do escasso espírito de risco e de liberdade.

212
O guardião de si mesmo

Contenção, compostura; senso de ordem e de responsabilidade; exigente para


consigo mesmo e para com os outros; consciência acurada de seus deveres;
acentuado ideal da correção e do respeito às normas. Esses são os traços salientes
desse tipo de pessoa.
Ninguém teria nada a censurar em uma pessoa geralmente bem-comportada,
conscienciosa e correta. De fato, essas pessoas obtêm respeito e consideração
entre seus colegas de trabalho, especialmente quando são subordinados. Não sucede
o mesmo quando se tomam chefes: nesse caso, a figura muda: mostram-se exigentes
demais, querem que as normas sejam seguidas à risca, são muito controladores e
cobram os detalhes. São o retrato vivo do chato.
Numa relação de amizade também sabem ganhar aprovação, embora raras
vezes consigam vincular-se de um modo profundo e envolvente, pois tendem a ser
formalistas, pouco espontâneos e convencionais. Ganham simpatia e aprovação
por serem corretos, objetivos e ponderados. Contudo, é dificil ter com eles um
relacionamento de verdadeira intimidade e de troca emocional profunda. Aliás,
apresentam uma limitação bastante severa: via de regra, têm sérias dificuldades
no dar e no receber.
Na verdade, nunca conseguem ser generosos. Podem dar, mas só no caso
em que esperem uma retribuição equivalente; ou no caso de presentear algo que
eles não precisem para nada, algo que lhes sobre. É bastante freqüente que sejam
mesquinhos e pão-duros. São francamente possessivos com as coisas e as pessoas.
Talvez mais com as coisas do que com as pessoas.
Obviamente, gostam de receber; sobretudo quando pagaram por alguma coisa;
então tornam-se cobradores e exigentes; cobram sem concessões tudo o que
esperavam. Ou o dinheiro de volta; se recebem de graça, melhor ainda.

A circulação e expressão afetivas


Como namoradas(os) ou amantes, as coisas são bem mais difíceis. Se a
generosidade e a capacidade de oferendar é um atributo essencial do amor,
então elas(es) não conhecem o amor. Não amam, mas são pessoas dedicadas,
cumpridoras de seus deveres, presentes: fazem conscienciosamente sua parte.
Até são mais fiéis que a média dos parceiros. E apresentam uma virtude nada
freqüente: são cuidadosas. Cuidadosas, fiéis, dedicadas, não se parece tudo
isso ao amor? Parece, mas não é. Este é o lado positivo; o outro lado não é tão
bonito assim.
Como cônjuges e amantes, logo deixam sentir sua necessidade de controle;
querem impor sua ordem e suas normas; querem programar ao máximo as mil
facetas da vida cotidiana; e se você não se submete, tanto pior para você.

213
O inquilino do imaginário

Essas pessoas insistem e persistem; sim, são persistentes; uma ou outra vez
reclamam da falta de pontualidade, da falta de ordem, da insuficiente limpeza.
E não adianta muito explicar que as coisas podem ser bem flexíveis e menos
programadas. Elas não cedem.
Raras vezes aceita que o parceiro possa ter um padrão de limpeza e de
ordem bem menos rigoroso que os delas. Podem não criticar, até guardar silêncio,
mas no fundo corttinuam achando inadmissível a conduta do convivente.
É difícil encontrar pessoas desse tipo que se mostrem expressivas e efusivas
na troca dos afetos. Não que sejam frias, nada disso. São indivíduos com fortes
necessidades afetivas, porém, têm dificuldades para ser suficientemente espon-
tâneos nessa área. São pessoas bastante medidas no outorgamento do carinho:
dão só na proporção em que recebem. Se você não procura por elas, ficam em seu
canto, esperando que você tome alguma iniciativa. Não estão dispostas a arriscar
nada, menos ainda nas lides do amor. Quando paparicadas e constantemente
homenageadas, mostram-se contentes e satisfeitas, mas nem por isso conseguem
retribuir com entusiasmo. O entusiasmo franco é pouco comum nas anancásticas.
Não esqueçamos de que a contenção é um traço marcante nelas; bloqueiam
impulsos e emoções. Contudo, seria inverdade afirmar que não se entusiasmam;
simplesmente são moderadas e cautelosas.
Quando o parceiro é pouco efusivo em seus afetos, aí é que ela se congelam
mesmo. Em caso de brigas, sempre inevitáveis num casal saudável, é difícil que
tomem o caminho da reconciliação. Ficam distantes e indiferentes, embora possam
estar com vontade de trégua. É que geralmente são rancorosas e custa-lhes perdoar
quem lhes provocou suas feridas narcísicas.

O caráter obsessivo: seus eixos significativos

O Autocontrole O Controle dos Outros


a dúvida a certeza
o permitido o proibido
o medido o desmedido
o correto o incorreto
a ordem a desordem
o meu o teu
o limpo o sujo
o formal o informal
o cuidado o descuido

A incapacidade de amar destas pessoas evidencia-se no caso da separação.


Após o desquite percebem muito bem que nunca amaram seu consorte ou namorado.
Muitas confessam que não amaram a ninguém, embora tenham tido alguns amantes.

214
O guardião de si mesmo

Reconhecem as virtudes do parceiro; admitem que alguma vez se afeiçoaram; é


possível até que a paixão as tenha tocado em algum período do namoro; mas
nunca se entregaram ao outro num vínculo amoroso. Entregaram-se, isso sim, ao
papel de esposas(os) e de mães (ou pais), mas não abriram por inteiro o recinto
íntimo de seus afetos - pelo menos para seus parceiros. São capazes de amar
seus filhos; é que uma criança não oferece nenhum perigo; podem possuí-la sem
resistência, quase. Aliás, a criança entrega-se com toda inocência e a vemos crescer
dia a dia, como uma planta na horta da esperança. Apenas pessoas profundamente
perturbadas mentalmente não amam seus filhos, com os quais conviveram.
Acontece com os pais psicopatas e psicóticos, ou quando o pai tem seríssimas
razões, como dúvida de sua paternidade.
Os obsessivos percebem a superficialidade de seus vínculos amorosos pela
rapidez com que se decepcionam, uma vez que são contrariados em suas
expectativas, e pela prontidão com que esquecem logo após o rompimento. Feridos
em seu narcisismo, fecham-se completamente. São demasiado vulneráveis e não
querem perder nada.
Seria completamente errado supor que o tipo em questão é frio e pouco afetivo.
Alguns podem dar essa impressão pela fachada de reserva com que mascaram
sua face emocional, mas basta um mínimo de convivência para perceber que são
muito ansiosos, preocupados com o juízo alheio e desejosos de afeto.
Na escala introversão-extroversão, tendem mais para a introversão; uma
boa parte deles situa-se também no centro da escala, sendo pouco comum encon-
trar temperamentos francamente extrovertidos.

O caráter obsessivo: os eixos significativos mais relevantes

No esquema da página anterior podemos apreciar os eixos que sustentam o


mundo dos anancásticos; eles canalizam e orientam seu ser-no-mundo. São as
linhas vivenciais que norteiam sua atividade e organizam sua experiência. Em ter-
mos de psicologia, podem ser entendidos como formas de sensibilidade predominantes
ou tendências vivenciais orientadoras. Certamente há outros eixos significativos
na vida de cada caso individual. Aqui estamos apenas tentando mostrar o tipo, que
é sempre um modelo ideal- algo artificial e forçado.
Por ser um tipo ideal, raras vezes encontramos todos esses traços presentes
no caso singular. Alguns obsessivos não se destacam por ser especialmente limpos,
nem sofrem porque ultrapassam os limites do permitido; podem infringir algumas
normas sem entrar em conflito. Já encontrei damas cujo superego não protestava
quando elas não respeitavam o cânone da fidelidade conjugal; em certas
circunstâncias, elas também caem na tentação. Seria ingênuo de nossa parte pensar

215
O inquilino do imaginário

que esse tipo de caráter impermeabiliza o seu portador dos apelos do desejo. É só
mais resistente, menos infrator que o comum dos mortais. Mais cauteloso, incluso
nesse ponto.
O eixo fundamental que define o mundo dos obsessivos é o cuidado. O cuidado
é o que Heidegger denomina um existenciário 2 , uma dimensão ontológica da exis-
tência. Sendo assim, viver implica ter de cuidar de nossa vida. Cuidamos dos modos
mais variados, desde o detalhe mais íntimo até o objetivo mais grandioso. Pelo
cuidado damos conta de nossa vida, atendemos às necessidades e procuramos
realizar-nos. Toda nossa práxis orienta-se, pelo menos em algum grau, sob o signo
do cuidado. Não damos um passo, mesmo quando nos desviamos por caminhos
tortuosos, sem colocar um relance de vigilância. Quando acordamos, inicia-se a
vigília; abrimos os olhos, nos espreguiçamos. Talvez gostássemos de permanecer
alguns momentos mais na penumbra do sono, tranqüilo estado de natureza, mas
não é possível; isso implicaria descuidar dos compromissos que temos, que exigem
sua devida atenção. Temos um esquema de trabalho, certas tarefas solicitam nossa
presença. Já estamos algo atrasados; temos de abreviar algumas medidas higiênicas,
temos de omitir um hábito corriqueiro - ler o jornal, fazer ginástica, tomar café
com nossa família. Precisamos atender o impostergável.
Contudo, quase sempre nos descuidamos de algo; ora a conversa com a
família, ora o treino ginástico, ora deixamos de lado os eventos que dinamizam o
mundo, ou mil aspectos mais, que de longe e de perto nos atingem. Às vezes
cuidamos demais de uma série de coisas que julgamos de primeira importância
para o sucesso profissional e para o crescimento de algum negócio; colocamos
assim no porão das coisas inúteis aquilo que depois, em outra etapa da vida,
percebemos que era o essencial. Como reparar aquele grave descuido? Deixamos
nos deslumbrar por interesses que hoje nos parecem secundários, talvez tolos e
fúteis. Sentimos que vivemos no erro; protegíamos a casca enquanto o miolo da
fruta apodrecia. Como não nos entristecer por grave descuido?
Saber cuidar adequadamente de si é uma arte que nem sempre aprendemos;
ou aprendemos muito mal. Quando nos descuidamos além de certos limites, começa
a degradação, a queda inevitável na decomposição. Podemos chegar ao estado de
abandono, tomando-nos, desse modo, na casa vazia do ser. É o que acontece no
estado de depressão profunda. Então, a existência aniquila-se, embora ainda, por
momentos, possa palpitar o levíssimo hálito da consciência.

A vigilância do anancástico
O homem anancástico é extremamente vigilante. É como um guardião
vigiando um território sob custódia. Como todo guardião, está muito preocupado
com as portas de entrada e de saída. Está preocupado com fechaduras e visitantes
intrusos. Como a maioria dos guardiães, sabe que tem de custodiar algo- um

216
O guardião de si mesmo

documento secreto, um metal nobre, uma relíquia simbólica, uma propriedade


privada, um terreno ermo-, mas ignora seu verdadeiro valor.
O anancástico é consciencioso em seu ofício de vigília. Amiúde exagera as
preocupações e os sistemas de controle. Desde cedo aprendeu que o controle era
uma medida indispensável. Um policial deve ser controlado em quase tudo. Nesse
ofício, a espontaneidade é um pecado pelo qual se paga caro.
É preciso que controle sobretudo o mais visível, desde sua aparência pessoal
até seus gestos; sim, ele sabe que os gestos falam pelo menos tanto quanto as
palavras. Por isso aparece como um ser contido. Tampouco pode ser generoso
com as palavras; tenta usar o verbo de um modo preciso e objetivo. Como sujeito
objetivo, procura ser rigoroso em seus relatórios, incorrendo com freqüência ~m
detalhismos supérfluos. Prefere o discurso lógico aos eflúvios poéticos e
sentimentais.
É geralmente um indivíduo reflexivo; não que costume refletir sobre questões
abstratas e filosóficas - até pode acontecer, caso seu trabalho o exija. A reflexão
é uma decorrência da atitude observante. Para ser um bom cuidador, necessita
desenvolver o senso de observação. Para observar adequadamente, é conveniente
tomar certa distância. É justamente o que ele faz. Mantém uma distância que lhe
evite misturas e cohfusões. Ele sabe que há um elemento altamente confusional:
as emoções e sentimentos. Quando entra neste plano, duplica as precauções. É
que se emocionar é se envolver, cair na chamada inexorável da situação; é deixar-
se agarrar pela coisa ou pessoa que nos emociona. Ele até gostaria; não é nada
insensível, mas teme esses envolvimentos; eles rompem os esquemas, ameaçam
os "contras", encurtam demais a distância. Avançar nessa direção exige bastante
cautela, e logo se corre o risco de entregar as chaves. Perde-se o verde uniforme
dos gestos programados e das fórmulas consagradas.
Em geral, essas pessoas transitam por estradas muito bem sinalizadas;
aprenderam cedo a respeitar o código de trânsito; é provavel que quando transgrediram
um determinado sinal, sofreram em seguida a correspondente punição; se não a
receberam dos outros, ficam com má consciência ou simplesmente temem ser
surpreendidas. Surpreendidas em falta, temem as óbvias conseqüências: o descrédito,
a censura, a vergonha, o envasamento da imagem.
Sim, é isso o que temem: o juízo negativo do outro. Esse é o lado especialmente
vulnerável. Também sabem que não podem mostrar seus pontos fracos, porque
então o outro pode adquirir poderes ainda maiores. É conveniente ser direitinho,
jogar conforme as regras. As regras podem ser infringidas, mas com muita cautela
e inteligência, com a máxima discrição.
No obsessivo, os impulsos são fortes; não sofrem de anemia pulsional; por
isso são persistentes e obstinados; não desistem ao primeiro obstáculo, sobretudo
quando pensam que estão com a razão e quando se trata de defender seus direitos.

217
O inquilino do imaginário

Esse é o lado positivo da persistência. A obstinação orienta-se numa outra direção:


precisam levar a término a proposta que empreenderam; deixar algo inacabado e
mal-amarrado provoca-lhes ansiedade. É como deixar a porta aberta. Como dizem
os gestaltistas, necessitam fechar a gestalt; o posicionamento de abertura é a
característica do homem livre; a abertura às novas possibilidades e também ao
inesperado. O compulsivo está demasiado amarrado a seus objetivos; seu grau de
liberdade é muito limitado. Movimenta-se num circuito fechado- aliás, como todos
os neuróticos; sua obstinação é mais um aspecto de seu fechamento.

A obstinação e a dúvida
A obstinação tem também uma outra face: é a contrapartida da dúvida. O
homem racional duvida por método, à maneira cartesiana, porque sabe que as
aparências enganam e porque os preconceitos induzem ao erro. O compulsivo
duvida porque está dilacerado por conflitos emocionais, porque não conseguiu um
mínimo de entendimento entre os diversos planos e dimensões de sua existência. É
como se o mundo sempre o estivesse solicitando de perspectivas e direções
diferentes e contrapostas, todas com um peso de atração considerável. Qualquer
direção que se tome deixa a sensação de que bem poderia ter-se optado pelas
outras. Obstina-se para manter uma proposta compacta, que não deixe nenhuma
rachadura pela qual penetre a dúvida. Procura uma certeza absoluta que o coloque
ao amparo da insegurança. Procura um ponto de apoio que lhe sirva de princípio
absoluto. Pode ser Deus, uma causa política, sua profissão, ou um conjunto de
rotinas ritualizadas. Os fanáticos são quase sempre sujeitos compulsivos.
É o paradoxo do indivíduo que afirma uma fé cega para não enxergar seu
fundo de descrença.
O homem que sustenta uma fé convicta é aquele que acredita em si mesmo;
está longe de qualquer fanatismo, embora às vezes pareça intransigente; é por
convicção, não por cegueira.
O fanático apega-se compulsivamente a uma doutrina - política, religiosa,
filosófica. Segue à risca os princípios e os ritos: essa é a garantia de sua tranqüilidade.
Move-se inspirado por um ideal de pureza doutrinária. Qualquer desvio da ortodoxia
parece-lhe blasfêmia ou traição. Quer ignorar que a vida humana está feita de con-
tradições e conflitos, de negações e rupturas; parece ignorar que para agir é preciso
sujar as mãos. Uma coisa é ser apaixonado por um ideal ou causa; outra bem diferente
é ser fanático. Para um observador superficial podem parecer lobos da mesma
camada; vistos de perto salienta-se uma diferença bem significativa: o apaixonado é
um indivíduo envolvido e envolvente, entregado ao motivo de sua paixão por vitalidade
e entusiasmo; o apaixonado deixa com freqüência de lado todo formalismo e não

218
O guardião de si mesmo

está sujeito aos escrúpulos doutrinais do fanático. Tende à desordem e à falta de


medida; tende ao exagero por pura intensidade, não por compulsividade.
O eixo teu-meu tem sido enfatizado por muitos autores. De fato, o senso de
propriedade é forte nessas pessoas; não se destacam por sua generosidade, sem
dúvida. As anedotas que ilustram sua tacanhice já foram motivo de comentários
jocosos nos círculos do bom humor. É fácil verificar suas dificuldades no manejo do
dinheirq; quando se trata de gastar, é bastante raro obter um convite de sua parte.
Também nessa área são exemplarmente disciplinados, traço que incomoda
especialmente aos que convivem mais perto deles. Podem tomar-se milionários, não
ter nenhuma necessidade de contenção em seus gastos, mas raras vezes abandonam
o estilo de estrita parcimônia no uso das finanças. É que o dinheiro representa para
eles uma forma de segurança. Contudo, o senso de propriedade não se limita apenas
ao dinheiro; este é só um lado do assunto. É o senso de possessão o forte neles;
possessão de coisas, objetos simbólicos, dinheiro. No fundo, define-se pelo ter; no
ter eles encontram seu ser. Podem possuir ínfimas bagatelas, mas tentam conservá-
las, ora como relíquias de um passado, ora como testemunhas de um presente.
Dotados de impulsos fortes, obstinados e possessivos, com um senso da
normatividade muito bem definido, o obsessivo mostra reações agressivas muito
acentuadas e persistentes quando é contrariado ou ofendido. E não se precisa ir
muito longe para provocar essa reação. Não esqueçamos de que não é um indivíduo
generoso nem cordialmente aberto para os outros. Pelo contrário, mostra uma
certa visão pessimista com respeito ao mundo, ou, se não pessimista, bastante
desconfiada. Lembremos que boa parte de suas obsessões, quando acontecem,
revelam sua extrema necessidade de preservar-se, de evitar agressões e ameaças
de supostos agentes prejudiciais- desde ladrões até micróbios. Poderíamos dizer
que vive demasiado no plano do ego, tentando comandar um território muito di-
vidido, apesar de todas as aparências de unidade homogênea e bem-estruturada.

A gênese dos traços dominantes

A constituição do caráter obsessivo


Na história de vida dos indivíduos com acentuados traços anancásticos,
deparamo-nos com duas situações comuns a boa parte deles, presentes desde
sua infância e características de seu núcleo familiar:
a) Uma situação bastante comum é que os pais do futuro anancástico mostrem
fortes traços desse tipo de caráter, ou simplesmente sejam francamente
obsessivos, pelo menos um dos genitores.

219
O inquilino do imaginário

b) Desde a infância, o indivíduo com esse tipo de caráter tem vivido sob
uma forte gravitação de um dos genitores, geralmente a mãe, que exerce
um domínio avassalador sobre ele; ainda a situação se agrava para a
criança em razão de que esse genitor dominante tenta por diversas
manobras excluir o outro desta relação diádica, ora desprestigiando-o
soterradamente, ora desautorizando-o de alguma maneira. Entre os pais
há um desentendimento implícito, que raras vezes irrompe como franca
hostilidade. Eles mantêm uma fachada de aparente entendimento,
esforçando-se por reprimir uma inconciliável divergência. O conflito é
dissimulado, embora filtre-se constantemente, criando um clima no lar
de cautela, dúvidas, agressividade contida, controle, ansiedade. A criança
interioriza esse clima. Procura ainda mais o amparo da mãe, que lhe dá
afeto e apoio; ela não consegue expressar ódio ou hostilidade contra seu
pai, pois sua mãe nunca é completamente definida em sua desautorização
contra o pai. Por vezes parece detestá-lo, por vezes, compreendê-lo.
Resultado: embora a criança desconfie do pai, permanece ambivalente
a seu respeito.
Um outro detalhe vem agravar a situação: a mãe é dominante em sua relação
com a filha, mas geralmente é uma pessoa insegura e ansiosa, que pretende
conquistar e monopolizar o afeto dos filhos apenas para compensar sua falta de
realização afetiva no plano conjugal e sua insegurança primária. Em conseqüência,
o apoio emocional dado ao filho está impregnado de ansiedade, de amostras de
coragem e de fraquezas.
Esta é a rede relaciona! na qual se encontra preso na infância o futuro
anancástico. De um lado tentando sempre confiar numa mãe que lhe dá afeto, mas
que ao mesmo tempo lhe mostra a necessidade de andar com o máximo de cuidado
para não estropiar uma estrutura muito precária, porém conveniente de manter.
Do outro lado, a figura de um pai que amiúde o solicita, mas que ele não se atreve
a rejeitar nem aceitar, pois enxerga-o através do olhar materno.
"Demorei muito tempo"- confessa uma jovem de 26 anos, inteligente, bem-
sucedida em termos profissionais, solteira - "para dar-me conta do que havia
acontecido na minha vida. Faz apenas dois anos e pouco que comecei a entender
como havia sido a minha vida. Minha mãe foi até um par de anos uma espécie de
deusa; ela regia e mandava em mim; todas as decisões relativamente importantes
que tinha de tomar, primeiro as consultava com ela. Às vezes não fazia o que ela
sugeria, e então eu geralmente me sentia culpada ou em falta. Quando encontrava
algumas dificuldades na gestão de alguma proposta, e quase sempre encontrava,
corria a seu lado para que ela me apoiasse. Quando discutia com algum namorado,
era ela quem sempre me acompanhava nessa dor. Ela me parecia a melhor mãe
imaginável.

220
O guardião de si mesmo

"Em aparência, meus pais se entendiam bem, mas era só fachada; na


verdade, eles não se amavam, e agora acredito que minha mãe nem sequer
gostava dele. Ela permaneceu 20 anos casada com ele simplesmente porque
não aceitava o desquite, mas agora penso que sempre viveram separados; unidos
por ocupar um mesmo espaço, separados na mente. Ela sempre nos dizia - a
mim e a meu irmão - que ela só contava conosco, que meu pai não era um
homem ruim, era uma pessoa boa em muitos aspectos, mas... e aí apareciam
alguns defeitos dele: que ele não era suficientemente responsável, que bebia a
mais da conta, que se entregava demais a certa amizade com um senhor (insinuava
sutilmente que poderia haver alguma coisa suja nesse relacionamento), que não
nos dava suficiente segurança econômica; era bom, mas sua vida com ele era
um sacrifício que fazia por nós. Eu ficava muitas vezes com raiva dele, mas ele
nunca me deu razão suficiente para brigar diretamente; irritava-me quando
chegava bêbado, me irritava muito sobretudo quando ele chegava assim no
momento em que me encontrava com um namorado em casa; isso me humilhava;
sentia vergonha de um pai que bebia; não dizia nada, mas nesse momento o
odiava. Lembro que em mais de uma ocasião rezei para que ele morresse. Que
absurdo! Rezar para livrar-me de sua presença. Depois, quando passava o calor
da hora, me arrependia, ficava com culpa.
"Ainda continuo culpada, cinco anos após sua morte. É que compreendi,
devagar, o que havia acontecido em nossas vidas. Minha mãe havia arranjado
tudo para conquistar nosso afeto; ela nunca chegou a conquistar meu irmão do
mesmo modo, mas ele também sofreu sua influência negativa- até agora tem
enxaqueca.
"A compreensão das coisas foi vagarosa. Começou quando iniciei a
psicoterapia; só então entendi os truques que minha mãe usava para dominar as
situações, para manipular as pessoas. Não era uma pessoa má, simplesmente sofria
algum tipo de neurose; eu ainda não sei como se chama seu quadro, só sei que ela
nunca teve vida própria, que sempre precisou demais de nós dois para justificar
sua vida. Compreendi que havia sido profundamente injusta com meu pai, que ela
nos havia enganado, que arranjava as coisas para apresentá-las em seu favor.
Todas essas descobertas me causaram muito sofrimento e ainda me causam. Sua
imagem quebrou-se, seu pedestal acabou. Contudo, ainda não consegui liberar-me
de seu poder; ainda preciso dela, embora me revolte contra essa dependência.
Não sei quanto levarei para relacionar-me com ela de um outro modo; tampouco
sei se isso será possível. Tenho brigado muito com ela esses dois últimos anos;
freqüentemente sinto uma enorme agressividade contra ela, sobretudo quando
percebo que continua aplicando suas fórmulas de dominação e seus truques. Sinto
que preciso crescer, sinto que preciso vencer muitas barreiras; barreiras que estão
em mim, como minha insegurança, meus medos, meus sentimentos de culpa, minha
falta de liberdade."

221
O inquilino do imaginário

Na situação citada, é bem compreensível a formação dessa estrutura


caracterial. Sitiada a criança por um pai obsessivo, e às vezes também por uma
mãe que apresenta certos traços nessa direção, é muito difícil que escape à sua
influência modeladora. Pode escapar se o outro genitor se coloca fora do círculo
anancástico, neutralizando assim o domínio do genitor com essas tendências. Porém,
não é tarefa fácil neutralizar a influência de um pai- ou uma mãe- constituída por
esse padrão de personalidade. Não esqueçamos de que são indivíduos persistentes
e insistentes, com fortes necessidades de controlar e organizar o espaço vital. O
mais provável é que terminem por dominar o círculo familiar. Aliás, sempre
apresentam traços positivos: são dedicados, cuidadosos, organizados, previsores,
responsáveis. Como substrair-se à sua gravitação?
É claro que as coisas nunca têm um caráter mecânico no âmbito do humano,
nem muito menos no plano da constituição da personalidade. Há uma série de
fatores que estão influenciando a formação do caráter. Não basta um determinado
modelo para que se organize um padrão vi vencia!. Geralmente basta uma variação
num conjunto gerador para que esse conjunto já não tenha os efeitos previstos.
Nesse caso, basta que a mãe consiga atrair para sua órbita o filho do anancástico
e ele estabelecerá outros modos de relação homem-mundo.

A neurose obsessivo-compulsiva

Alguns autores distinguem três aspectos do obsessivo: a) O caráter obsessivo,


que acabamos de descrever em suas linhas principais; b) a neurose obsessiva, que
comentaremos a seguir; e c) as reações obsessivas, que se caracterizam por serem
manifestações anancásticas na área das idéias, dos sentimentos, dos impulsos e
dos atos, decorrentes de situações críticas que afligem o sujeito, mas não emergem
de um terreno propício, que seria a estrutura caracterial. São reações transitórias.
Essa diferença entre estrutura caracterial neurótica e simplesmente neurose
-de qualquer tipo que seja- não é fácil de sustentar, e a mim me parece distinção
apenas útil no plano do tratamento.
De qualquer forma, vejamos como seria a neurose obsessiva propriamente.
O quadro neurótico configura-se quando o sujeito atravessa um período crítico,
que lhe exige enfrentar situações que colocam à prova sua capacidade de manobra
ou impõe novas formas de adaptação. São situações que ameaçam sua organização
vital, gerando-lhe uma intensa ansiedade. O obsessivo apresenta uma notória
dificuldade para aceitar seus impulsos, sejam agressivos, sejam libídicos; tampouco
consegue admitir uma série de sentimentos negativos, que qualquer pessoa saudável
experimenta como natural no jogo da vida. Foi educada na negação desses impulsos
e sentimentos. Quando eles emergem como uma torrente incontível, todos os diques

222
O guardião de si mesmo

de contenção que ele construiu ameaçam derruir. Então aparecem as idéias, os


impulsos e os atos obsessivos propriamente. Nesse momento começa a perder o
controle de si, que sempre manteve à custa de tanto esforço e cuidado.
Qualificam-se de obsessivas certas idéias persistentes e repetitivas, com .forte
carga emocional e de conteúdo negativo, que se impõem ao próprio sujeito de um
modo perturbador. Essas idéias aparecem como ego-assintônicas, isto é, como
incongruentes com a compreensão racional do sujeito, que procura afastá-las ou
anulá-las de diversas maneiras. O essencial dessas representações é seu conteúdo~
negativo - daí seu efeito perturbador e conflitivo -e sua discrepância com o ego
racional, aparecendo como algo estranho e incompreensível para o sujeito.
Geralmente essas idéias vêm acompanhadas de impulsos e atos compulsivos.
O impulso aparece como uma força interna que compele o indivíduo a realizar
determinado ato que ele não aprova, embora eventualmente possa desejar. Quando
o impulso emerge como força incontrolável, o sujeito se vê obrigado a realizar
determinados atos, cuja realização o tranqüiliza.
O exemplo clássico, sempre citado pela freqüência com que se apresenta, é
o impulso para lavar as mãos. Dá-se em pessoas cujo eixos existenciais básicos
são limpeza-sujeira e ordem-desordem - além dos indicados no esquema
representado na página 216. A intervalos regulares, o indivíduo sente a necessidade
de lavar-se, a pretexto de alguma razão para fazê-lo; sempre encontra justificativa
plausível, pois teme os perigos de uma contaminação; incomoda-se apenas quando
percebe que muitas vezes não fez nada com as mãos e, conseqüentemente, não há
necessidade de nenhuma medida higiênica; porém, o impulso tende a se impor.
Começa a luta; a pessoa tenta resistir, adiando ao máximo a realização do ato.
Aumenta a ansiedade ... até que o sujeito termina por socorrer-se na torneira. Aí
em seguida fica calmo.
Esse é esquema comum. Parece-se bastante com o fenômeno da habituação.
No caso do hábito de fumar, o fumante condiciona-se a fumar em determinadas
situações específicas. Existe o professor que precisa fumar durante sua exposição
em aula; procura adiar sua vontade oral, pega um cigarro e permanece todo o
tempo possível sem acendê-lo ... num dado momento o isqueiro dispara. É claro,
são fenômenos semelhantes, não iguais.
O anancástico é um ser basicamente inseguro; boa parte de seus traços
caracteriais derivam da necessidade de proporcionar-se o máximo de segurança.
Sendo inseguro, a dúvida é uma constante vivencial nele. Por essa razão, o impulso
de verificação é muito freqüente, sobretudo nos períodos mais agitados. A
necessidade de verificação para eliminar a dúvida não se dá unicamente nos
obsessivos, aparece em todos os inseguros, mas é bem típica neles. Antes de se
deitar a pessoa verifica se as portas da casa estão devidamente fechadas; apronta-
se para deitar-se e zás!, será mesmo que fechou a porta? É necessário verificar;

223
O inquilino do imaginário

constata, mexendo a chave de várias maneiras; OK, vamos dormir; começa a


acomodar-se na cama e zás!, de novo a dúvida: mexeu a chave de várias manei-
ras, mas será que fechou mesmo?
Certamente há obsessões bem mais sofisticadas.
Apesar de algumas idéias dessa natureza se encontrarem como amostras
sintomáticas com farta freqüência, existem idéias bem mais originais e singulares.
Já tratei uma pessoa que cada vez que andava na rua, ou se encontrava num
grupo, tinha a nítida sensação de que o zíper da calça tinha abrido e que seus
genitais estavam expostos; isso a obrigava a constantes inspeções para evitar um
hipotético escândalo. Era uma pessoa que tinha muita dificuldade para mostrar-se
em situações públicas, embora seu grande anseio fosse ser apreciada por sua
capacidade de contato e de comunicação. Queria impactar as pessoas e conseguir
inserção grupal, mas quase sempre se sentia inibida e inábil nessas circunstâncias.
Duas pistas nos ajudaram a compreender esse anancasmo. O sujeito pensava que
a natureza o havia desfavorecido no tamanho de seu membro; uma de suas fantasias
era fazer algum tipo de tratamento que aumentasse o comprimento fálico; quando
tinha intimidade erótica, procurava por todos os meios que a parceira não observasse
essa região de atritos, evitando especialmente os contatos bucogenitais. Quer dizer,
ele se sentia vulnerável justamente nesta zona, que procurava proteger da curio-
sidade alheia a qualquer preço. Esse era o sentido de sua obsessão.
Alguns anancásticos apresentam certas condutas sui generis, qualificadas
na linguagem popular como manias; são geralmente atos mágicos que a pessoa é
compelida a fazer para evitar alguma desgraça ou uma ocorrência ruim. Um
engenheiro refere que cada vez que nota ter pisado num azulejo ou pedra preta,
precisa refazer o caminho, anulando o trecho andado, do contrário pode ter um dia
infeliz; ele mesmo diz que quando acorda na noite e vai ao banheiro, evita olhar-se
no espelho; se por acaso, num descuido, percebe sua imagem refletida, é necessário
que permaneça uma hora acordado, pois assim evitará morrer durante o sono.
Na literatura sobre esse assunto, esse tipo de ato é qualificado de ritualismo
obsessivo, em razão de sua semelhança com os ritos religiosos e mágicos. Todo
rito surge com o intuito de tomar propícias forças ou entidades espirituais, benig-
nas ou malignas; propõem-se igualmente consagrar, neutralizar e exorcizar essas
forças segundo seja seu caráter. No âmbito do assunto que nos ocupa, os ritos
tendem a neutralizar e exorcizar. Aquele engenheiro neutralizava "o mau passo"
refazendo o caminho, e exorcizava o perigo de morte permanecendo acordado
durante uma hora após ter visto sua imagem no espelho. Movimentamo-nos aqui
no plano da pura magia, do pensamento mágico.
O pensamento mágico é muito forte nos obsessivos; precisamos enfatizar
que esse traço é perfeitamente compreensível se consideramos que uma de suas
tendências mais notórias são a racionalização e a intelectualização. Intelectualizamos

224
O guardião de si mesmo

determinadas realidades quando não podemos encará-las no plano que lhes


corresponde, o plano emocional. É uma tentativa de colocar em esquemas
conceituais o que por sua essência ocupa outro lugar. Como sabemos, o tipo em
questão apresenta uma extrema dificuldade para movimentar-se na esfera afetiva.
Quando entra de cheio nessa esfera, perde em seguida seu prumo, sentindo-se em
areias movediças; desde pequeno aprendeu a justificar e mistificar seus sentimentos
e suas reações emocionais; precisava pôr ordem em suas coisas, mesmo numa
feição aparente, e para tanto lhe era necessário racionalizar tudo, ou quase.
Contudo, o anancástico não consegue alcançar o estágio da verdadeira
racionalidade. Pode ter adestrado sua mente no exercício mais sofisticado do pensa-
mente abstrato, pode ser até um matemático eminente ou um talentoso engenheiro,
mas não consegue uma visão racional do mundo e da realidade em termos racionais
genuínos. Apenas uma pessoa capaz de viver seus sentimentos, capaz de relacionar-
se afetivamente com a realidade, está em condições de ter uma compreensão racional
do universo. A razão não exclui o pático; pelo contrário, integra-o numa síntese
harmônica. Aliás, o afetivo é uma dimensão fundamental da existência, e quem não
souber transitar nesse âmbito está condenado a extraviar-se pelos atalhos do irracional,
por muito que tente racionalizar. É o que acontece com os indivíduos desse tipo.
Pelo que foi apontado, podemos entender a presença do mágico supersticioso
nesse paladino da ordem e do cuidado. Como todo guardião, preocupa-se muito em
verificar se as fechaduras, portas, janelas e sistemas de segurança estão em perfeito
funcionamento, sem perguntar-se mais de uma vez se o que está custodiando merece
tanta vigilância assim. Extrema as medidas policialescas, se esgota em precauções
em aparência muito sensatas, mas chega um momento em que começa a adormecer,
e então o mais leve ruído lhe parece estranho e suspeito. Luta contra sua necessidade
de descanso, confunde o externo com o interno, interpreta os jogos de sombra como
fantasmas. Resultado: ingressa em pleno mundo mágico.
A rigor, o obsessivo sabe lidar com relações objetivas, aquelas que permitem
ordenar o mundo externo; quando tem de colocar sua subjetividade em algo,
confunde-se. Na esfera externa, está e faz todo o possível para que assim seja,
sob controle; na interna é um ser corroído pela dúvida. Quando tem de defrontar-
se com situações que rompem com suas redes de comando, entra em pânico, se
desorienta; então se impõe uma faceta de seu ego emocional que nunca nele se
desenvolveu: seu lado puramente infantil e mágico.

A pessoa anancástica no processo psicoterapêutico

É pertinente apontar algumas considerações sobre a conduta desse tipo de


pessoa na relação terapeuta-cliente.

225
O inquilino do imaginário

Num capítulo sobre esse assunto, várias questões teriam de ser coloca:das;
pelo menos as seguintes:
- Em que casos o diagnóstico caracterial se torna difícil.
-Determinação das dificuldades mais freqüentes que apresentam na relação
terapeuta--cliente.
- Que tipo de táticas e recursos terapêuticos seriam mais indicados para uma
configuração caracterial dessa índole.
- Os limites de todo tratamento nesses casos.
Por ora, nos interessa considerar apenas o segundo tópico. Diremos os aspectos
mais gerais.
a) É preciso ter muita habilidade como terapeuta para evitar que o cliente se
movimente no plano da intelectualização. O obsessivo tem sérias di-
ficuldades para entrar na esfera afetiva e relativa perícia para conduzir-se
pelas vias da análise racional; pode falar de situações e experiências passa-
das e presentes que o afetaram de um modo decisivo, mas se refere a elas
como se fossem eventos de uma terceira pessoa. Não digo que não se
emocionem cada vez que entram numa trama vivencial que os perturbou
ou cujos efeitos ainda sentem; o que sucede é que bloqueiam as emoções
associadas àqueles eventos marcantes, tentam permanecer longe do círculo
vivencial, mantendo-se como espectadores bem-comportados. Quando se
vêem envolvidos numa onda emotiva muito intensa, que ameaça levá-los
para o âmago de um conflito original, pulam habilmente fora. A essas
manobras de escape deve estar muito atento o terapeuta; do contrário, as
sessões transcorrem durante meses na superfície das águas, sem que se
registre uma única imersão em profundidade. Eles parecem compreender,
fazer um inventário o mais minucioso possível de seus problemas, difi-
culdades e limitações. O que querem é discutir suas dificuldades com um
especialista; querem que lhes proporcione um mapa adequado do território
que estão percorrendo; sentem-se desorientados e não querem se perder
no matagal pantanoso que suspeitam exista em muitos pontos do per-
curso. Pensam que um conhecimento mais apurado do itinerário será a
solução dos atritos pelos quais estão atravessando.
b) Quando estão num período crítico, isto é, quando estão sofrendo o domínio
de idéias, impulsos e atos compulsivos, esperam que o terapeuta lhes
proporcione uma ajuda mágica, que lhes permita liberar-se em seguida
desses sintomas; é uma demanda sensata, sem dúvida, mas que o terapeuta
rara vez pode satisfazer da maneira solicitada. Nesse caso, é comum que
desistam do tratamento, indo procurar soluções alternativas, que não lhes
exija uma renúncia a seus mecanismos; terminam por apelar a fórmulas
religiosas - do tipo passes espíritas - ou se submetem a psicofármacos.

226
O guardião de si mesmo

Para evitar essa saída pouco feliz, o psicólogo deve advertir seu cliente de
que o tratamento não se centraliza nos sintomas, e que o processo
terapêutico será necessariamente prolongado. Os sintomas irão atenuando-
se à medida que ele consiga reelaborar seus padrões vivenciais e seu
estilo de relacionamento com seu mundo pessoal.
c) Também no relacionamento terapêutico, o obsessivo tentará repetir suas
exigências de controle; em matéria de horário, exige pontualidade; na
relação bipessoal, quer postura profissional por parte do psicólogo; dessa
postura profissional espera pelo menos duas coisas: o acatamento de certas
formalidades e a garantia de resultados tangíveis. Se o terapeuta acata
essas formalidades esperadas por seu cliente, é provável que o mantenha
como paciente durante muito tempo, talvez durante anos, mas os resultados
não serão particularmente alentadores. Terapeutas distantes e impessoais,
que mantêm uma atitude de estrita reserva e de cortês entendimento,
provocam uma favorável impressão no obsessivo, pois esta atitude lhes
garante a preservação de seu próprio estilo de comunicação interpessoal.
Melhor ainda se o psicólogo se coloca na cabeceira do paciente, evitando
assim todo encontro cara a cara, segundo o modelo clássico de psicanálise.
É sabido que esse tipo de pessoa mostra certa dificuldade em olhar os
olhos do interlocutor. Quando conversam, evitam o contato ocular, assim
como qualquer outro tipo de contato mais íntimo.
Embora um terapeuta solto e não-convencional possa inicialmente assustar
essa classe de clientes, penso que ele é o mais adequado para tratá-los. Isso por
duas razões básicas. Primeiro, um terapeuta não-convencional- espontâneo, ativo
e expressivo- não se submetará ao jogo do compulsivo, que consiste em manter
formalidades para assegurar seus impulsos e emoções. Segundo, oferece um
modelo de conduta e de expressão que o próprio paciente anda, no fundo, procurando
para si. É supérfluo dizer que no período inicial do processo o terapeuta deve
manter algumas formalidades; só quando o vínculo terapêutico esteja estabelecido
pode permitir-se toda a mobilidade que as circunstâncias do tratamento sugiram.
d) O vínculo terapêutico não é um laço fácil de estabelecer no caso que
estamos comentando. Sabemos que a cautela direciona os movimentos
dessa classe de pessoas; a cautela e a contenção. Demoram bastante
para entregar-se a um relacionamento; demoram para abrir as portas de
seu mundo interior; e, o que é pior, a menor decepção os induz a fechar-
se. Certamente cada caso é um caso. Estamos aqui nos referindo às
configurações mais gerais.
A garantia de resultados tangíveis é uma expectativa razoável que a maioria
das pessoas em psicoterapia alimenta. Todos esperam que um tratamento
dispendioso e comprido os beneficie de um modo ostensivo, claramente
perceptível tanto pelo interessado como pelas pessoas de seu convívio. A única

227
O inquilino do imaginário

particularidade neste ponto é que o anancástico é um pouco mais exigente que


a média - aliás, como na maioria dos aspectos. Ele quer ver resultados
apreciáveis, que estimulem seu interesse nesse empreendimento. Ele gosta de
fazer balanços e pede ao terapeuta avaliações do encaminhamento do processo.
Ele quer saber se a direção tomada é a correta e se os esforços de ambas as
partes são suficientes. No caso de paradas, sempre normais num processo
dessa natureza, pede explicações ou se mostra desconforme. Muitas vezes
opta por deixar as consultas. É freqüente que experimente raiva e hostilidade
contra o terapeuta, mas tenta disfarçar esses sentimentos de alguma maneira,
pois, embora o impulso agressivo seja forte nele, só em situações de franca
frustração permite-se expressar sua hostilidade. Talvez as únicas pessoas com
as quais se permite ser agressivo, inclusive de um modo constante, são as de
sua intimidade- o cônjuge, o namorado e, quando particularmente contrariado,
os pais.
e) Um erro que o terapeuta novato precisa evitar se refere à tendência
desse coagente para pedir soluções diretas para suas dificuldades
afetivas; a tentação para dar indicações em forma de fórmulas ou
conselhos diretivos deve ser evitada, apesar da insistência do cliente.
Receitas práticas é o que não faltam ao compulsivo; proporcionar-lhe
ainda mais é empurrá-lo pelo circuito fechado de seus mecanismos. Trata-
se justamente do contrário: reduzir sua necessidade de programação ao
mínimo.
f) Embora não tenha insistido num traço distintivo dos anancásticos, não
podemos esquecer de que o fator agressividade está presente na dinâmica
psicológica desse tipo de pessoa.
Dizíamos que eram indivíduos obstinados e persistentes; nessa mesma linha
atitudinal, são auto-afirmativos e geralmente rancorosos. Apresentam uma conduta
bem educada e formal, mas que encobre um forte impulso agressivo que se manifesta
assim que são provocados ou colocados em situações de confronto. Quando
desconsiderados, e muito mais ainda quando se sentem agredidos, costumam reagir
com extraordinária raiva. Uma vez passado o motivo da reação, dificilmente
esquecem o agravio, guardando rancor contra quem os provocou.
O terapeuta precisa então trabalhar esse fator da personalidade. Quando
examinamos a origem desse fator,· é fácil verificar que se relaciona com a
contenção geral dos impulsos, que é típica nessa formação caracterial, e com o
sentimento de injustiça sofrida, que é outra de suas vivências constantes. É um
sujeito geralmente auto-afirmativo- isto é, disposto a afirmar suas posses e seus
direitos, ou pelo menos sua posição-, ideal incutido desde cedo, seja pelos pais,
seja como uma necessidade do próprio sujeito de agradar aos pais. Quando esse
· ideal não é alcançado, a frustração aumenta- e igualmente o impulso agressivo.

228
O guardião de si mesmo

Notas
1) Anancástico: do grego, anankastein: agir compelido por uma necessidade ou impulso.
2) Na concepção heideggeriana, a existência humana caracteriza-se por apresentar uma série de
atributos que são inerentes a seu ser mais próprio: é o que seu autor denomina de existenciário.
Esses atributos ontológicos são, entre outros: a derrelição, a compreensão, a linguagem, o
projeto, o cuidado, a convivência, o tempo e a historicidade.
3) Não está demais dar algumas notícias sobre a história da pesquisa da neurose obsessiva Menciono
em seguida os principais momentos: 1838- Jean E. Esquirol descreveu o primeiro caso de
dúvida obsessiva sob o rótulo de monomania (mania com um tema central único ).1861 -A.
Benedito Morei cunhou o termo obsessão e insistiu em considerá-la uma doença emocional,
não apenas pertencente à esfera do pensamento.1867- Richart Krafft-Ebing introduz o
termo em alemão; observa que essa doença se relaciona com a depressão. 1870- Wilhelm
Griesinger usa o termo para descrever pensamentos repetitivos, que existem apesar do controle
do sujeito e ainda contra seu juízo. 1903- O já famoso Pierre Janet introduz o vocábulo
psicastenia, no qual inclui as obsessões e as fobias.
4) Para um enfoque diferente em alguns aspectos do nosso, o enfoque psicanalítico, consulte-se o
livro de Roger MacKinnon & Robert Michels A Entrevista Psiquiátrica (Artes Médicas,
Porto Alegre, 1992). Como é sabido, Freud afirma que o caráter obsessivo-compulsivo deriva
diretamente da fase anal- período no qual se inicia no controle dos esfíncteres e l}as imposições
do autocontrole. Se por acaso a criança se fixa neste estágio, apresentará posteriormente os
traços típicos deste tipo caracterial.

229
Capítulo 11

A PROCURA DE SI
NO ESPELHO DO OUTRO
O caráter histriônico e a questão da
auto-identidade
"Por vezes eu fico me olhando no espelho. Vejo um cara de feições duras, com os
estragos do tempo impressos numa pele algo seca e rugosa, com um olhar ainda
brilhante mas com um longo lamento no fundo das pupilas. Esse aí sou eu?, me
pergunto. Esse é o cara que os outros vêem? Será que eles também ouvem meus
lamentos e fingem não escutar? Será que eu estou nesse rosto, debaixo da pele,
circulando no sangue, preso entre os ossos, tentando agarrar-me a alguma coisa
no movimento das mãos? Ou será que estou sempre em outro lugar? Longe de mim,
perto de não sei o quê. " (Professor- 30 anos, casado)
"Carrego muitos personagens comigo, mas um sempre me.acompanha em meus
diálogos imaginários. É meu sócio nessa espécie de teatrinho que se forma em
minha mente em certos momentos. É um cara bichoso, que logo começa a falar com
timbre e expressões comuns entre os bichas. Supeito que é minha parte
homossexual ou uma gozação tola. É como se estivesse num canto de minha mente,
esperando um momento de expressão.
'Você está muito sério, meu querido'- me diz. 'Não quer divertir-se um pouco,
garotão? Aí vai passando um bofe. Não seria bom pegar sua coisa? Aposto que
você é virgem, que ninguém acariciou suas zonas sensíveis ainda. Você não sabe o
quanto é bom, garotão. '
É algo assim. Variam suas provocações. Diverte-me. Não que eu goste de bichas,
eu nunca me senti atraído por homens; meu negócio são as mulheres.
Não é o único personagem, aliás. Existe em mim um outro sócio. É um espécie de
sábio, que me anima com suas palavras estimulantes e honestas.
'Não desamine, meu jovem; você já passou por tanta porcaria e sempre deu um jeito
para sair limpo. Não se assuste com os pilantras, nem com essa onda de infâmia que

231
O inquilino do imaginário

inunda as ruas da cidade e que invade até os espíritos mais insuspeitos. Você está
por cima de tUdo isso. Não se lembra de seus maus tempos e como você foi em frente,
ainda que machucado e mancando?' É como se fosse meu pai- esse homem que eu
perdi quando era garoto. " (Ezequiel, professor - 30 anos, casado).

zequiel se coloca a questão da auto-:identidade. Coloca-a de um modo in

E comum, com toda a perplexidade que provoca quando nos deparamos com as
dúvidas associadas à sua problemática. É uma questão que surge na maioria
das pessoas, especialmente nos períodos de crise. No período adolescente emerge de
uma maneira inevitável: forma parte do processo de individuação, que nesta etapa
afeta todos os planos da existência. Em nenhuma outra etapa é tão urgente e tão difícil
tomar-se pessoa. Em sete anos precisamos ser reconhecidos como indivíduos (dos 14
aos 21 ), tendo que enfrentar todas as tarefas que os anos adultos nos exigem. Contudo,
não apenas nesta etapa surge em toda sua complexidade esta questão. A rigor, nunca
é um problema completamente resolvido. De qualquer maneira, bem ou mal termina-
mos por aceitar e adotar uma forma de ser em que nos sentimos em relativa sintonia.
Relativa e condicionada. Relativa à nossa história pessoal; condicionada pelas
condições de nossa existência (este é o requisito básico de todo condicionamento).
Certamente muita gente não chega a perceber o caráter problemático da identidade
pessoal. Apenas chegam a colocar-se o famoso Quem sou eu?, sem tentar dar
alguns passos adiante; ficam numa momentânea perplexidade, como paralisados
pelo tamanho da questão. Contentam-se em verificar os dados da carteira oficial
de identidade que lhes indica o sexo, a idade, a profissão, a nacionalidade e o nome
próprio. Limitam-se aos referenciais básicos, que são os grandes suportes sociais
do que somos aos olhos dos outros.
Os períodos ou fases críticas, algumas previsíveis e outras inesperadas, com
todas as 1!1Udanças implicadas, afetam de alguma maneira esta área; ademais,
qualquer mudança significativa, seja no plano biofísica, mental ou existencial, se
reflete ho proprium. Em razão de estarmos em contínua transformação, o proprium
nunca é algo concluído e definitivo, embora sempre persistam fios e linhas constantes
que nos permitem manter uma identidade no percurso temporal. Se não fosse
assim, não nos reconheceríamos em nossa história.
Não é nÓssa intenção examinar em detalhe a questão da identidade pessoal.
Apenas queremos chamar a atenção para como ela se apresenta num tipo de perso-
nalidade determinada - o tipo histriôiúco, nome que tende a substituir o conhecido
caráter histérico (Hy). Nesse tipo é um problema central, pois a pessoa não apenas não
se encontra em seu gênero, mas também em outros aspectos de sua identidade pessoal.
A histeria já teve seus tempos áureos. Foi na época de Charcot, de Pierre
JanetedeFreud, lá nos últimos lustros do século XIX. Naquele tempo, os psiquiatras
e psicólogos que procuravam destacar-se precisavam pelo menos escrever alguma

232
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

monografia sobre esse fenômeno tão surpreendente. Era mesmo tão freqüente
assim esse tipo de perturbação psicológica ? Ou apenas correspondia a uma espécie
de moda da época, que levava os psiquiatras a diagnosticarem sob um mesmo
rótulo fenômenos diversos? Essa é uma questão ainda não esclarecida.
Hoje nos chamam muito menos a atenção os chamados sintomas histéricos,
e nem são esse tipo de pessoas a clientela majoritária dos psicoterapeutas.
Diríamos que os famosos sintomas de conversão que outrora provocaram tanta
celeuma são hoje menos freqüentes, sem chegar a serem raros. Ainda vemos
gente que apresenta uma pseudoparalisia ou uma cegueira, sem lesão anatômica.
Mas uma coisa são os grandes sintomas histéricos, que levaram tantos velhos
mestres do século XIX a postular a hipótese de um subconsciente como fórmula
para explicar tão estranho fenômeno (hipótese que encontrou finalmente num Freud
seu mais afortunado continuador), e outra história é o chamado caráter histérico.
Como tipo caracterial não é algo insólito, aí estão os homossexuais feminóides,
nem sempre rebolantes e perfumados, mas sempre evidentes e explícitos.
Estranha-se que os poucos autores que escrevem hoje sobre esse tema não
mencionem a estreita relação que há entre homossexualidade e caráter Hy, que
a mim me parece até óbvia. Sustento aqui que tanto a homossexualidade (de
feição feminóide, no homem) como a histeria se originam de uma problemática
comum: de uma auto-identidade mal definida. Certamente o problema da
identidade pessoal não afeta apenas esses dois tipos psicológicos; está igualmente
presente em todos os quadros da psicopatologia (em particular nas neuroses e
nas psicoses), adquirindo sua feição peculiar segundo seja o padrão sintomático.
Interessou-me oferecer aqui a estrutura básica do caráter Hy (abreviatura
internacional para designar esse tipo humano). Insisto que há uma notória diferença
entre apresentar alguns traços (como ser sedutor(a) ou ter urna expressividade algo
dramática) e encaixar-se no caráter Hy, o que supõe toda urna estrutura mais complexa.
Abordo também dois fenômenos bastante surpreendentes associados à neurose histérica:
os sintomas de conversão e os raros casos de personalidade múltipla. Proponho como
explicação plausível destes dois fenômenos a hipótese de que se trata de algo análogo
ao que acontece na hipnose (auto-indução de um sintoma), por um lado, e do predomínio
do personagem sobre a pessoa, de outro. Tento mostrar que o tipo caracterial se origina
pela formação de urna auto-identidade falseada, mistificada, extrínseca.

As imagens do histérico

Circula por aí uma série de imagens do que seja a histeria. Como boa parte
das imagens que ganham a rua, elas misturam uma dose de verdade com certos
exageros, criando dessa maneira um estereótipo ou uma caricatura.

233
O inquilino do imaginário

A primeira imagem do histérico relaciona-se com a estridência emocional;


seria um camarada que desborda facilmente pelas vias do exagero emotivo quando
tem de defrontar-se com situações que o incomodam e perturbam. Basta que um
sujeito comece a berrar ou a desmanchar-se num exagero verbal e já é visto como
um histérico. Essa imagem não é completamente falsa; é verdade que esse tipo de
pessoa peca por excessos expressivos, sejam verbais, sejam emocionais de todo
tipo. Mas cuidado: não basta tender para uma emotividade acentuada para já entrar
nessa categoria. Se fosse assim, todos os povos meridionais e latinos, incluídos
igualmente todos os extrovertidos, seriam suspeitos dessa tendência.
Aliás, momentos de exaltação todos temos, dependendo das circunstâncias.
Uma outra conduta que costuma ser identificada como própria desse tipo é
uma notória vontade de expor-se que essas pessoas têm; é mais que querer ocupar
um lugar de destaque: querem estar no centro da roda, com todos os focos iluminando
suas melhores feições- são exibicionistas. De fato, na grande maioria, os histriões
(vou usar esta palavra como equivalente, embora saiba que o histrionismo designa
o lado burlesco da farsa humana e o histérico, embora faça muita farsa, acredita
em boa parte de sua representação) parecem experimentar uma grande satisfação
em chamar a atenção.
Para concentrar a atenção neles, chegam a extremos que geralmente os
desfavorecem, pois se expõem até ao ridículo, revelando que o intuito é impactar
ou, no mínimo, fazer-se notar. É o que acontece com muitos adolescentes que
usam roupas originais e chamativas, apelando para golpes de efeito em matéria de
penteados e de maquilagem. No caso do homossexual feminóide, os excessos
expressivos- modo de andar, de falar e de vestir- são gritantes.
Nesse traço, o juízo popular acerta em cheio: o afã de notoriedade ululante
pertence ao caráter histérico. O sujeito não parece importar-se se a única coisa
que consegue com sua conduta excêntrica é desprestigiar-se ou se ganha um
destaque duvidoso. Salvador Dalí, que era um notório histérico, apelava para todos
os truques para assombrar seu eventual público; qualquer gesto ou declaração
estrambótica era um artifício conveniente. Por ser famoso e muito criativo, lhe
eram perdoadas suas extravagâncias - perdoadas e até celebradas.
Seria errado pensar que esse afã de notoriedade é um traço apenas desse
tipo. Podemos sustentar que a maioria das pessoas gostaria de destacar-se e ocupar
um lugar na primeira fila. Eu diria que é distintivo do histérico o afã de notoriedade,
que reveste as formas do exibicionismo e da extravagância. Esse é justamente o
traço que os desfavorece, embora muitos saibam combinar apenas um leve
exibicionismo com certa graça e simpatia. Outros são menos felizes, entregando-
se a exageros expressivos absurdos e ridículos, como acontece com os
homossexuais feminóides e amaneirados. Nem todos os homossexuais comportam-
se assim.

234
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

Estridência emocional, exibicionismo e maneirismo expressivo: eis as imagens


associadas ao histérico. São as imagens clássicas, mas nem por isso suficientes.
Esses três traços caracterizam de um modo aproximado o tipo histérico. Todos
esses traços, aliás, não se dão apenas neste quadro. A estridência emocional
manifesta-se normalmente nas crianças e nos sujeitos emotivos extrovertidos. O
maneirismo apresenta-se também na psicose (lembremos que Binswanger
caracterizou o tipo esquizo pela exaltação, a extravagância e o maneirismo). O
exibicionismo (não entendido como aberração sexual) seria o comportamento
mais característico dessa forma de ser. Seria, mas nem sempre é assim. Só ·
quando nos deparamos com uma personalidade acentuadamente desse tipo, o
exibicionismo adquire as cores do gritante. Era o que acontecia com o célebre e
talentoso Salvador Dalí, famoso tanto por suas pinturas quanto por suas ex-
travagâncias. Acontece com os homossexuais feminóides, desmunhecantes e
provocativos.
Antes de prosseguir, precisamos estabelecer algumas diferenças; temos de
distinguir entre traços e tipo histérico primeiro, e neurose histérica, em seguida.

Traços de personalidade histérica e tipo: o que caracteriza a


neurose histérica?

Traços e tipo caracterial


Quando observamos uma pessoa que apresenta alguns traços de um
determinado tipo de personalidade, é freqüente que nos inclinemos a vê-la como
um exemplar característico desse tipo. Isso é um erro. O tipo redondo e esculpido
é bem mais raro, qualquer que seja.
No caso em questão, a figura que mais se aproxima do tipo é o homossexual
feminóide, conhecido na gíria brasileira como bicha. Esse personagem nos dá uma
imagem bastante completa do que seja a histeria como configuração geral de uma
personalidade. Logo nos deparamos por aí com algumas damas e senhores que
igualmente mostram fortes traços desse tipo. Num contato puramente social e
circunstancial, não podemos saber se correspondem ao caráter Hy ou se são apenas
traços parciais. Para termos certeza, teríamos de conhecê-las em diferentes
situações, pois são as situações diversas que mostram os modos de ser
predominantes de um sujeito.
A convivência mais íntima com uma pessoa nos permite igualmente seu
conhecimento mais cabal, embora, eu diria, nunca conheçamos completamente a
ninguém- em razão de que o ser humano é um ente mutável, em aberto, capaz de

235
O inquilino do imaginário

reformular e mudar suas tendências mais arraigadas. Um conhecimento aproximado


e certo já é bastante.

Nem todas as atitudes provocativas, sedutoras e dramáticas são Hy


Contudo, não é uma cabala intrincada discernir entre traços e tipos- seja no
caso da histeria e da depressão, seja de qualquer outra configuração caracterial.
A estridência emocional e certo exibicionismo são bastante comuns no período
adolescente; e não esqueçamos do acentuado espírito imitativo junto com uma pseudo-
originalidade dos jovens. Todos esses traços permitem-nos falar de uma fase histeróide
durante esse estágio (no adolescente do círculo urbano industrial, pois seria discutível
estender essa qualificação para outras culturas). Essas características dos jovens são
bastante compreensíveis: eles estão passando por um período de procura de identidade,
estão ensaiando seus papéis e tentando novas formas de relação indivíduo-mundo.
Como veremos logo, a histeria relaciona-se de um lado com uma auto-identidade mal
definida. E com a necessidade de ocupar um lugar de destaque, de outro.
Há pessoas que empregam os recursos que certa veia histérica proporciona
para acrescentar seu magnetismo pessoal. Colocam nas palavras e nos gestos um
dramaticismo propositado, com matizes emocionais calculados para assim envolver
melhor o auditório ou o eventual interlocutor. Como no teatro, isso tem um efeito
de encantamento.
Recursos semelhantes também são empregados pela gente de teatro. É bem
sabido que a arte dramática exige, de parte de quem a exercita, uma notória
capacidade para entrar no campo imaginário quase instantaneamente, assumindo
um estado emotivo determinado que nem sempre é fingido. Viver uma situação
puramente imaginária, como se fosse algo real, é algo típico da figura que estamos
comentando.
Contudo, nem o orador veemente nem o ator que vive um personagem são
necessariamente histéricos. É legítimo inferir que apresentam talvez uma veia (ver
no quadro I, a composição geral do tipo). Todos nós temos atitudes sedutoras
ocasionais; quando nos sentimos atraídos por alguém, logo entramos num jogo de
insinuações e de gestos, tendentes a conquistar a pessoa que nos provoca com sua
presença. São manobras eróticas quase inevitáveis. São ingredientes que criam a
atmosfera adequada para o encontro amoroso. Basta observar duas pessoas que
iniciam uma aproximação sexual. Há uma seqüência bastante previsível de atitudes
posturais e de movimentos expressivos. Por vezes, é quase uma dança. Os atores
seguem os ritos propiciatórios de um encantamento mútuo. Ela arruma o cabelo
(gesto tão revelador numa mulher que experimenta os eflúvios da atração); ele
sorri com uma malícia inocente; ela arruma a saia e um~dece os lábios; ele avança
um passo, rompendo assim a distância puramente social... e assim por diante.

236
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

Mas existe também a coquete e o dom-juan, que parecem estar numa caça
permanente de emoções e ocasiões eróticas. Procuram impressionar com olhares
convidativos - promessas silenciosas de afagos e sensações inefáveis. Os
movimentos ondulantes da coquete, seu modo de destacar as curvas anatômicas,
os fingimentos de sua voz, tudo revela nela uma espécie de cio cálido ou discreto,
segundo seja a intenção do momento. E o dom-juan não fica atrás. Não importa
que seja um modesto galã de subúrbio ou um playboy com todos os emblemas do
sucesso econômico; ele fará sentir sua presença de macho apaixonado, competente
nos prazeres do corpo. Saberá tocar duas fibras muito sensíveis na alma feminina:
sua vaidade e seus sonhos românticos. Vivendo de representações, ele sabe obsequiar
belas imagens verbais, de si e da mulher que pretende seduzir.

QUADRO I
Esquema dos fatores e traços dominantes do caráter Hy

,-1. Fatores originantes: - b) Acentuada necessidade de aceitação e


aprovação - por percepção ou tomada de
a) Auto-identidade mal definida (personagem
consciência de um desvalor.
ainda não assumido, inconsistente), conflitiva.

2. Fatores tendênciais:
a) Acentuada emotividade (rápida permeabili- b) Egocentrismo: dificuldade para enxergar
dade aos estímulos situacionais). Excitabilida- - as situações de uma perspectiva alheia.
de, labilidade, agitação emocional. d) Tendência à extroversão: maior neces-
c) Forte gravitação do plano imaginário nos r-- sidade de contato interpessoal e necessidade
outros planos do mundo pessoal: tendência a de expressar os eventos intrapessoais.
viver fantasias como se fossem eventos reais. e) Insuficiente desenvolvimento da indivi-
dualidade: maior subordinação ao juízo do
3. Traços e atitudes derivadas: outro.

a) Dramatismo: tendência a cenificar os


eventos vividos, imitando ou vivendo outros -
personagens de seu campo situacional. b) Atitude sedutora: artifício para obter
aceitação, agradando a outra pessoa ou
insinuando interesse erótico por ela.
-c) Necessidade de ocupar um lugar de destaque d) O extravio na. inautenticidade.
(e, nesse sentido, necessidade de chamar a - Tendo um escasso desenvolvimento da indivi-
atenção). dualidade (o que implica uma forte gravitação
do outro), o sujeito fica muito preso às
representações coletivas dominantes.

237
O inquilino do imaginário

Aí temos algumas figuras da sedução. Vemos que é um recurso histeróide


quando usado como tática permanente de atração. Não o é quando surge nas fases
preliminares do cortejamento, em que faz parte essencial dos ritos de aproximação
amorosa. Tampouco o é quando usado como tática persuasiva para obter benefícios.
Tentei expor acima simples traços, que ainda não estruturam um tipo
caracterial, como o tipo correspondente ao esquema mostrado. Outros autores é
provável que agreguem uma ou duas cores a mais a esse quadro. Ali Ramadam
nos lembra a sugestionabilidade, o déficit crítico, a frigidez sexual, as flutuações de
consciência.
A sugestionabilidade não é uma característica exclusiva desse tipo; é também
um traço das crianças. A frigidez é freqüente na mulher, sem chegar a ser uma
regra (e obviamente se dá igualmente em outros tipos psicológicos).
Sobre a sugestionabilidade me refiro mais adiante; por ora, quero propor o
que entendo ser a característica da neurose histérica.

Sintomas de conversão e reações psicossomáticas

Para o leitor menos familiarizado com questões psicopatológicas, talvez seja


pertinente um esclarecimento sobre o que se entende por sintomas de conversão.
Chamam-se assim os sintomas pseudo-somáticos apresentados por certas
pessoas, geralmente enquadráveis dentro do tipo histérico, consistentes em paralisias
parciais ou totais, cegueira, anestesias regionais, falsa gravidez. Esses são os
sintomas mais comuns.
São sintomas pseudo-somáticos, pois embora se apresentem como uma
deficiência física bastante chamativa, não são ocasionados por nenhuma lesão ou
falha fisiológica. É necessário distinguir esses sintomas conversivos dos sintomas
ou reações psicossomáticos, os quais supõem lesões ou alterações fisiológicas
constatáveis (úlceras, hipertensão, enxaqueca, anorexia, vaginismo etc.).
Receberam esse nome pela suposição de que os conflitos psíquicos, em vez de
vividos e sofridos, eram convertidos em somáticos: seria uma artimanha do sujeito
para alienar-se do sofrimento. Essa é uma hipótese. Outra hipótese, que me parece
mais plausível, sustenta que uma manifestação física coloca o sujeito na categoria
de doente, permitindo-lhe assim os ganhos eventualmente outorgados por esse
status.
É interessante observar duas coisas sobre esses fenômenos. Primeiro, embora
se apresentem em pessoas com traços nitidamente Hy, também aparecem em
indivíduos que não apresentam esses traços. Segundo, chama a atenção o
comportamento de uma pessoa suspeita de estar tendo uma reação conversiva;

238
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

em vez de mostrar-se aflita, muito deprimida ou desesperada, como seria natural


num caso de paralisia ou cegueira, parece indiferente. Essa atitude foi chamada
pelos mestres franceses de belle indiférence.

Os sintomas de conversão e as alterações da consciência


como manifestações típicas da neurose histérica

O que define a néurose histérica? Basta apresentar os traços típicos do


chamado caráter histérico para entrar na categoria dos neuróticos? Nesse ponto, o
juízo dos diversos autores é divergente. Essa divergência é muito compreensível,
pois nem sequer há um conceito de neurose aceito unanimemente. Cada teórico
acentua o fator que se casa melhor com sua concepção nessas matérias.
Os psicólogos clássicos consideravam como distintivo da neurose Hy os
famosos sintomas de conversão e os estados alterados de consciência. Charcot
assombrava a seus alunos mostrando como suprimia os sintomas de conversão
simplesmente hipnotizando os sujeitos que apresentavam essas manifestações. Os
paralíticos andavam ou mexiam os membros paralisados. Esse era o teste para
verificar se o doente era um histérico ou se de fato sofria de uma perturbação
neurológica. Sob hipnose, podia provocar todos os sintomas que essas pessoas
exibiam. Isso era de fato muito conhecido, e ainda hoje os hipnólogos continuam
mostrando os poderes da mente ao provocar todo tipo de reações em indivíduos
submetidos ao transe hipnótico. Doenças orgânicas propriamente não se curam
com hipnose.
É uma coisa bem sabida: sob hipnose pode-se provocar uma variedade muito
rica de reações psicológicas e fisiológicas. O sujeito pode experimentar todas as
emoções e sentimentos imagináveis e inclusive as alucinações mais fantásticas.
Eu diria que até agora a única explicação plausível dos sintomas conversivos nos é
oferecida por analogia ao que acontece sob transe hipnótico. Assim como a pessoa
reage nesse estado a todo tipo de sugestões, assim também pode auto-induzir-se
os sintomas conversivos.
Em tese, qualquer pessoa pode induzir-se a um estado hipnótico. Existe todo
um treino para conseguir esse objetivo. Uma vez que o sujeito se condiciona (ou é
condicionado por outro), especialmente mediante um estímulo-sinal, a entrada no
transe é imediata. É o que fazem os hipnotizadores quando desejam provocar a
hipnose no mesmo indivíduo em ocasiões posteriores: gravam nele este estímulo-
sinal, um procedimento simples ("quando eu puxar três vezes sua orelha esquerda,
você dormirá em seguida", por exemplo) e quase infalível.
Algo similar ao estado de transe obtém-se também mediante a meditação
oriental, uma técnica mais demorada para ser adquirida, mas permite um grau de

239
O inquilino do imaginário

concentração extraordinário. Seu objetivo é deixar a mente vazia, livre do fluxo


incessante de pensamentos e de emoções. Obtém-se dessa maneira tranqüilidade
e paz de espírito.
Ainda mais intrigantes que os sintomas conversivos são dois outros fenômenos
Hy.
Um se relaciona às alterações de consciência, alterações muito conhecidas
no caso do sonambulismo e menos conhecidas no caso dos estados crepusculares
histéricos (estados que também se manifestam no caso da epilepsia, imediatamente
após o ataque, quando o sujeito se recupera ficando um tempo prolongado, até
meia hora, com uma consciência muito vaga e estreita do que está acontecendo ao
seu redor; nesse estado, o epilético pode andar, regressar à sua casa, sem que
posteriormente se lembre de como foi que chegou a esse lugar). Só acontecem em
casos de choque emocional, perante uma situação que desestrutura o sujeito; ele
pode permanecer assim desde alguns minutos até meses.

As alterações da consciência do EU: os casos de


personalidade múltipla
O outro fenômeno extraordinário relaciona-se com casos de extrema dissociação
da personalidade: são os raros casos de personalidades múltiplas. Trata-se de
indivíduos que apresentam duas ou mais personalidades, que parecem coexistir como
separadas urnas das outras, sem que o sujeito se aperceba aparentemente da existência
destes personagens que coabitam seu universo pessoal.
É pertinente indicar que certa dissociação da personalidade não é algo incomum
na maioria das pessoas. Somos seres contraditórios, perturbados por todo tipo de
conflito, sujeitos a experiências que nem sempre podemos assimilar e integrar,
com desejos e objetivos quase sempre incompatíveis entre si. Jung ensinava que
há pelo menos duas pessoas em nós. Uma que mostra seu rosto, desempenha seus
diversos papéis, atende às exigências sociais; e outra que permanece numa discreta
penumbra, manifestando-se quando a censura social ou as conveniências o
permitem. Uma é a pessoa, a outra, a sombra. Nem preciso dizer que não é
necessário apelar para a hipótese de um suposto inconsciente para entender esse
fato. Basta reconhecer que a pessoa é o que somos em termos públicos e sociais
e que a sombra corresponde ao que somos em termos privados e íntimos. Nem
sempre a sombra está em oposição com a pessoa. Pode ser coerente.
Esta tese jungiana é uma forma de apreender nossa dualidade pessoal. Eu
diria que há uma multiplicidade de personagens que cada um carrega consigo. São
personagens que vivem em nós; alguns a título de figuras exemplares, de modelos
que nos influenciaram e nos serviram de guias. Foi algum mestre, um amigo, uma

240
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

figura que já exaltou nossa imaginação. Eles estão presentes, falam conosco, surgem
em cenários que já vivemos e que não existem mais. São também os personagens
que nós vivemos. Ao longo da vida vamos tendo ofícios diferentes, com status e
situações peculiares. Eu já fui mensageiro, vendedor, funcionário de alfândega,
tradutor, editor, gerente, escritor, psicólogo, professor- só para citar os ofícios dos
quais me lembro nesse momento. Em cada uma dessas atividades fui um
personagem. E não acabam por aí as metamorfoses de um homem. Aí estão também
os personagens que sonhamos ser; que sonhamos e por vezes tentamos ser.
Personagens modelos, que por vezes falam mais alto que nossa própria voz.
Personagens vividos, como ignorá-los se eles já definiram nosso ser em mais
de um aspecto?
Personagens sonhados, como delimitar suas presenças se ainda deambulam
pelas sendas de um horizonte que ainda nos promete um futuro possível?
Todos esses personagens são visitantes ou interlocutores ocasionais, por vezes
acompanhantes cotidianos. Povoam nosso campo imaginário, mas temos sobre
eles um razoável controle; podem impor-nos sua presença e até incomodar-nos
em mais de um aspecto, mas nunca nos dominam, impondo-nos "sua vontade". Se
isso chega a suceder, o indivíduo experimenta uma cisão psicótica ou histérica,
segundo seja a maneira de ser vivida uma divisão intrapessoal desse tipo.
Na chamada dupla personalidade Hy, coexistem dois personagens que se
alternam, ignorando-se mutuamente; um personagem é a pessoa habitual, aquela
que predomina no indivíduo; a outra é a personalidade intrusa- a sombra, como
diria Jung. Repito: esse é um fenômeno raríssimo. Quando chega a acontecer,
mobiliza psiquiatras e psicólogos como se se tratasse do maior portento. A maioria
dos colegas nunca viu um caso tão singular. A própria literatura especializada
registra poucos casos.
A procura de si no espelho do outro - uma primeira aproximação desse
problema me parece aquela que coloquei nas linhas anteriores. Normalmente
existem, em todos nós,- uma série de personagens que habitam nosso universo
pessoal. Contudo, na Hy acontece algo mais: esses personagens adquirem uma
espécie de autonomia, impondo-se ao sujeito, seja como entes estranhos, seja como
uma forma postiça de ser (como acontece com o bicha e o travesti).
Este é o fenômeno que precisamos compreender.
Sugiro duas linhas explicativas que nos permitem entender por que e como se
desenvolve esse tipo de manifestação. Uma relaciona-se com o caráter típico do
Hy (esquematizado no quadro 1). Outra relaciona-se com o que se conhece como
os fenômenos de transe.
Penso que os traços dominantes desse tipo dão conta per se da dinâmica
geral da conduta histérica e das vivências que essa conduta- implica. No capítulo
seguinte exponho em detalhes a configuração geral desse caráter.

241
O inquilino do imaginário

Os fenômenos de transe são conhecidos desde os tempos mais remotos.


Quase todas as religiões e cultos fomentam experiências reveladoras, que permitem,
na tese de seus adeptos, a comunicação com entes espirituais ou com planos de
um supraconhecimento. Na Grécia antiga foi famoso o santuário de Delfos, onde
a pítia, nesse estado, profetizava o destino das pessoas que a consultavam. O
xamanismo, crença comum a todos os povos do círculo ártico e aos índios norte-
americanos, permite obter um transe a vontade do xamã, depois de um preparo
psicológico e ritual prévio.
Há pelo menos quatro formas de entrar em transe:
• Mediante a hipnose (induzida por outrem ou auto-induzida).
• Mediante procedimentos rituais (geralmente provocada por instrumentos
musicais, como acontece nos templos de seitas protestantes e umbandistas ).
• Por auto-indução espontânea (semelhante à auto-hipnose, mas com
desdobramento da personalidade). Acontece nos centros espíritas, em que
o médium cai em transe por simples concentr<Jção, "como pego subitamente
por uma entidade".
• Mediante drogas alucinógenas, como peyotl e o chá do santo-daime (no
Brasil).
Essa capacidade para perder momentaneamente a consciência de si para assumir
outra personalidade, como se o sujeito estivesse possuído por um outro espírito, causa
um compreensível assombro em muita gente. Porém, é uma capacidade que a maioria
de nós pode conseguir. Basta um treinamento adequado. Não há dúvida de que para
obter esse estado dois fatores ajudam bastante: a crença da pessoa e sua entrega
ingênua à experiência- sua sugestionabilidade.
Na verdade, a entrega a um estado de transe não é uma tarefa tão difícil assim.
Em certos meios, aliás, ela pode se tomar um episódio até corriqueiro. Para não ir
muito longe, lembremos do que acontece aqui no Brasil. Nesse país há pelo menos três
seitas que apelam para alguma forma de transe para provocar entre seus seguidores
efeitos psicológicos especiais. O espiritismo (crença muito difundida entre nós, contando
com milhões de adeptos, o que não acontece em nenhum outro país), o umbandismo
(religião africana, seguida principalmente por indivíduos dessa origem, que mistura o
animismo politeístico da África com algumas idéias espíritas) e algumas seitas protestantes
(em especial a chamada Igreja Universal, hoje famosa pelos escândalos financeiros
provocados por seu líder máximo, o fervoroso e milionário Bispo Macedo).
Basta assistir a uma cerimônia umbandista para ver como se processam ali
as alterações da personalidade. Primeiro cria-se um clima emocional propiciatório.
Os atabaques acompanham uma dança primeiro lenta e repetitiva, para ir
aumentando devagar seu ritmo. Depois de alguns minutos (lO a 15), toma-se rápida
e quase frenética. Nessa atmosfera de sons, dança e invocações rituais, vão
entrando em transe alguns espectadores ou participantes.

242
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

Em transe, assumem uma outra personalidade: incorporam algumas entidades


(geralmente o preto-velho, a pomba-gira ou algum exu). Com gestos e atitudes que
se atribuem à entidade, com seu timbre vocal, costumam atender os que procuram
conselho desse ser espiritual. Assim, uma mulher pode falar com o timbre grave e
profundo do Preto-Velho, ou uma tranqüila e recatada senhora tomar-se uma
coquete, dengosa e caprichosa damisela chamada Pomba-Gira.
Algo similar acontece nos centros espíritas. Apenas amplia-se o espectro de
fenômenos paranormais. A doutrina postula que existem pessoas especialmente
dotadas para comunicar-se com os espíritos que freqüentam o espaço humano
(seja porque não conseguiram abandonar esse plano, seja porque foram autorizados
a regressar para cumprir uma determinada missão). São os sensitivos, que teriam
uma capacidade mediúnica mais desenvolvida. Essas pessoas, segundo essa crença,
poderiam inclusive comunicar-se com os espíritos desencamados. Mas, em todo
caso, existem os médiuns que incorporam espíritos com uma facilidade extrema
(sejam esses freqüentadores consagrados do centro, sejam espíritos erráticos).
Acredito pertinente lembrar alguns casos famosos e recentes acontecidos
em nosso meio. Nos anos 60 foi o caso de Arigó, que fazia todo tipo de curas pela
incorporação de um espírito curador. Nos anos 80, o mais conhecido foi Édson
Queiroz, médico baiano que incorporava um suposto médico alemão que teria morrido
no início do século XX, mas que desejava ainda continuar o exercício de sua missão
galênica, o Dr. Fritz. Queiroz entrava em transe imediato, fosse em seu consultório,
fosse perante as câmeras da televisão (pois aparecia com periódica freqüência na
mídia eletrônica, provocando reações contraditórias num público que se abandeirava
em prol de suas demonstrações cirúrgicas ou contra elas). A expressão de seu
rosto mudava; parecia encontrar-se num estado sonambúlico. Seus olhos perdiam
a intencionalidade, permanecendo semifechados, como que sonolentos. A voz
mudava; adquiria um sotaque estrangeiro, tal como supostamente falaria o Dr.
Fritz, que nesse momento estaria agindo por seu intermédio. Perguntava ao doente
sobre sua enfermidade e em seguida procedia ao ato cirúrgico, usando uma faca
ou algum tipo de agulha, prescindindo de qualquer anestesia.
Cito as intervenções do Dr. Queiroz porque ele se tomou uma espécie de
porta-voz oficial das curas espíritas neste país*, mas poderia referir inúmeros casos
similares. Pessoalmente não acredito· que se trate da incorporação de seres

* Dr. Queiroz conseguiu, graças a suas demonstrações mediúnicas, uma notoriedade nacional, embora
seus procedimentos provocassem acaloradas discussões tanto nos meios religiosos quanto nos círculos
médicos. Por ter cometido um erro médico fatal, o Conselho de Medicina cassou seu título, o que não
o impediu de continuar atendendo a milhares de pacientes que procuravam nele curas milagrosas. A
sorte de Queiroz nem sempre lhe foi propícia. Depois de ter conseguido uma cadeira na Câmara de
DeputGdos, que compensava a cassação de seu título de médico, morreu assassinado por seu motorista
e guarda-costas, que justificou seu crime dizendo ser Queiroz um péssimo patrão "que se negava a
pagar o salário no prazo justo".

243
O inquilino do imaginário

espirituais. Penso que se trata de personagens que os médiuns atualizam, tornando-


se assim mediadores de agentes simbólicos das necessidades coletivas- isto é, da
comunidade dos crentes que seguem esta doutrina. O Dr. Fritz existia no imaginário
de Queiroz tanto como no das pessoas que invocavam sua ajuda. Por ora não
importa discutir os argumentos em favor ou contra esse tipo de crenças.
Não seria supérfluo examinar uma questão que suscita o uso do transe como
suposta maneira de entrar em outra esfera de contato com os poderes extranaturais.
É a questão da fraude e da simulação do transe. Por tratar-se de uma forma de
obter prestígio dentro do grupo que pratica o transe, alguns seguidores chegam a
simular que entram nesse estado. Eis o depoimento de um homossexual, artista
plástico, com notória estrutura caracterial Hy:
"Durante mais de cinco anos freqüentei um centro (espírita). O Sr. sabe
como é a gente gay, gosta de tudo o que é espetáculo. Lá eu tinha uma platéia
sempre bem disposta para apreciar minhas metamorfoses.
"Desde o começo, o chefão do centro me observou que todos os meus
problemas espirituais decorriam de uma mediunidade não desenvolvida. É o papo
que eles usam para estimular o engajamento dos adeptos. Na época eu acreditava
nesse discurso. De início senti algo muito estranho; como se de fato algo estivesse
tentando dominar minha mente. Fiquei muito assustado. Mas fui tranqüilizado por
outro freqüentador, que me advertiu que seguramente um espírito estava pedindo
passagem para usar meu corpo. Eu tinha visto já como os outros faziam. Logo me
deixei levar. Aí baixou um espírito em mim. Bom, não foi bem isso. Eu senti que
me transformava num senhor que era o pai de uma moça do centro (segundo me
explicaram). Eu estava muito concentrado, como se fosse o limbo. Mas sabia que
era eu mesmo quem fazia tudo aquilo. Assim foi o tempo todo. Mas o pessoal
acreditava que eu era o melhor médium do setor. Até que um dia me cansei e
desisti daquele show."
Certamente esse é um ponto polêmico. Outras testemunhas alegarão
experiências diferentes, mais em consonância com os postulados da doutrina.
Apenas coloco aqui a dificuldade que implica saber até que ponto corresponde a
uma mudança ou alteração profunda da consciência do sujeito (que seria o verdadeiro
transe) e até onde pode ser simulado.
Não será demais insistir na labilidade da consciência de si no Hy. Uma
certa mutabilidade da consciência é algo inerente a seu próprio dinamismo. Afinal,
a consciência é a síntese de todo o psiquismo; assim como mudam as condições
de nossa existência, da mesma maneira mudam os estados da consciência. Isso
em termos normais. No histérico, essa labilidade é mais pronunciada, em razão
de três fatores básicos: sua emotividade, sua frágil identidade e sua capacidade
imaginativa.

244
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

Os traços fundamentais do caráter histérico


No quadro I, fiz um esquema didático dos principais traços caracteriais do
tipo em pauta. Agora irei me limitar a um comentário só de alguns dos fatores
indicados lá.

Os fatores originantes do caráter histérico


Uma primeira pergunta surge quando nos indagamos sobre o que leva à
configuração de um tipo qualquer. Em outras palavras, como se constitui um padrão
dominante de personalidade. Penso que há fatores básicos que originam o tipo, e
fatores tendenciais que são coadjuvantes. Sobre esses dois fatores aparece uma
série de traços e atitudes derivadas.
Devo dizer que nem sempre é fácil discernir entre o tendencial e o originante.
Eu diria que o originante se distingue por algo óbvio: sem esse fator não surge o
tipo, simplesmente. Podem estar presentes todos os fatores tendenciais, mas se
não está o elemento gerador, nada feito.
Vamos ver a questão dos dois originantes.
A questão da identidade é um aspecto de primeira importância na constituição
da pessoa. Ela é inerente ao processo de reconhecimento de si como indivíduo. Ela
acontece como conseqüência natural da interação do sujeito com o mundo. Assim
como vamos outorgando certa identidade às coisas, aos objetos e aos eventos que
configuram isso que chamamos de realidade, assim também nos vamos reco-
nhecendo como seres dotados de certas características e peculiaridades.
Essa identidade que define aspectos intrínsecos e extrínsecos da pessoa, tanto
na face puramente individual e subjetiva como na face social e objetiva, nem sempre
é percebida e conceituável. É comum que o sujeito a viva na pura imediatez de sua
consciência. Contudo, uma maneira muito notória de a pessoa aperceber-se são os
traços e peculiaridades que ela sente como próprios.
Certamente há outras maneiras; nós também temos um autoconceito e uma
série de imagens que circulam em nosso espaço mental, desenhando um perfil do
que acreditamos ser. Mas o decisivo com relação à atribuição é como nos sentimos
em termos de constantes afetivas - não apenas em termos de um sentimento
fortuito e momentâneo.
Posso sentir-me feio ou bonito, inteligente ou não, amado ou desamado, seguro
ou inseguro, forte ou fraco, adaptado ou desadaptado em relação às exigências e
normas sociais, valioso ou insignificante, autônomo ou dependente - para citar
apenas algumas características pessoais que acreditamos configurar nossa maneira
de ser dominante.

245
O inquilino do imaginário

Cabe assinalar que esses atributos de si podem ser verdadeiros ou falsos,


intrínsecos ou extrínsecos. São verdadeiros quando ratificam o ser do sujeito,
afiançando-o em seu senso de autonomia, abertura para a experiência, senso de
responsabilidade para si e para com os outros. São falsos quando negam o
potencial do sujeito, o condenam a transitar por círculos viciosos, o levam a uma
duplicidade conflituante e a um desencontro em boa parte das esferas de sua
existência.
São identificações intrínsecas quando são constantes e definem as orientações
de vida, as formas de sensibilidade e as atitudes predominantes. São extrínsecas
quando são circunstanciais, meramente táticas e não articuladas com as
necessidades ontológicas do ser humano.
Ainda há identificações predominantemente subjetivas ou objetivas. Com isso,
quero dizer que as subjetivas não precisam de confirmação objetiva para que o
indivíduo se atribua uma forma de conduta, e por vezes são simplesmente
desmentidas pelo juízo dos outros. João pode perceber-se como "bem-educado e
gentil" e os demais enxergá-lo como mal-educado e grosso. Jadir pode identificar-
se como pertencente à raça caucasiana, embora uma simples inspeção visual nos
diga que se trata de uma pessoa com alguns traços negróides. Todos os atributos
biofísicos e sociais são objetivos, mas eles também são captados pela pessoa de
uma maneira subjetiva.
Como pudemos apreciar, a identidade pessoal corresponde ao conjunto
complexo de relações constantes que o sujeito mantém com o mundo. São os
atributos que qualificam o sujeito, sujeitando-o de certa forma. De certo modo, o
substancializam (sujeito deriva do latim sub-jacere, que significa o que está por
baixo, a subestância), com todo o positivo e negativo que isso implica.
Como se vai formando a auto-identidade? A primeira resposta não tem
mistério: por via das diversas experiências que vamos fazendo na interação com o
mundo; aliás, isso é assim para todos os processos vivenciais.
Preciso lembrar agora ao benévolo leitor, embora de passagem, como se
constitui a auto-identidade. É bom começar dizendo que ela é um aspecto essencial
do desenvolvimento da individualidade e da pessoa.
Na formação da identidade pessoal influem e participam todas as dimensões
da existência - como seria de esperar. Basta examinar o quadro II para apreciar
como em cada uma dessas dimensões há pelo menos um elemento determinante.
A auto-identidade é um processo temporal; mais precisamente uma formação
gradual, que segue um percurso histórico na vida da pessoa. Gradualmente nos
vamos descobrindo na interação com o mundo e, principalmente, na interação com
os outros. Este é o dado primordial. Vamos nos tomando gente em contato com
gente.

246
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

No final do terceiro ano, a criança forma o primeiro grande núcleo de iden-


tidade: começa a reconhecer-se a si mesma como EU. O indício evidente dessa
descoberta é que começa a falar na primeira pessoa; até então tinha falado na
terceira pessoa ("a criança quer beber água", "ele quer sair"), tal como o pessoal
de seu meio familiar o designa. Isso significa que já se formou o primeiro núcleo do
si-mesmo (o selfdos autores anglo-saxões). Esse é e será um centro de referência
de toda subjetividade. Esse é o grande centro de ancoragem e relacionamento, de
integração, diferenciação e síntese.
O eu é um centro, não só de síntese; é também de diferenciação: quando
emerge no campo do sujeito, pela palavra, surge como consciência da diferença
em relação ao outro. Fica selada a dualidade eu-outro. Aparece na consciência da
criança a noção mínima do tempo, embora ainda tenda a habitar no puro presente.
Até chegar a esse ponto, a criança percorreu um longo caminho de 30 meses
(equivalentes a 30 anos na vida de um adulto). A configuração verbal do eu marca
a coroação de um desenvolvimento. Teve de passar por diversas fases, cada uma
com seus exercícios formadores (emitir as primeiras palavras, articular algumas
frases; engatinhar, ficar em pé, andar; apreensão de suportes de afeto- o seio, o
rosto, o corpo e a figura da mãe: sua intenção protetora, nutritiva, direcionante,
punitiva, proibitiva, demarcante e sempre afetiva). Se há falhas em alguma dessas
fases, surge algum tipo de problema psicológico. Como o principal suporte e
articulador do desenvolvimento sadio deste ser em gestação é a mãe, deficiências
nesta relação afetam esta criatura que ainda vive sob inteira dependência materna.
Daqui decorre a importância do fator afetivo nessa relação.
Sobre esse assunto, os psicólogos já escreveram demais para que se insista
nesse tópico. Apenas lembro que o cuidado, o contato físico, o carinho e a presença
materna - assim como de outras figuras, como o pai e os irmãos - devem seguir
uma certa pauta para que facilitem o desenvolvimento do pequeno ser.
Rejeição-superproteção, presença esporádica e abandono, rigidez e excesso
de normas, solicitação ansiosa, contato meramente funcional, falta de estimulação
sensorial - estas são as formas mais freqüentes de uma relação patogênica.
Não apenas o contato com a mãe é decisivo para a criança. Igualmente o é o
clima afetivo dominante no ambiente familiar. Pode haver um acolhimento caloroso
pelo lado matemo, mas se os pais vivem num clima de disputa, de cisma conjugal
(como diria Teodor Lidz) ou de notório distanciamento, as conseqüências negativas
dessas tensões parentais repercutirão na mente infantil.
Todo esse preâmbulo tem sido para assinalar algumas questões preliminares
em relação à identidade pessoal. Cabe agora centralizar nossa análise no problema
da Hy. Prolongaria demais este capítulo se continuasse ocupando-me de cada uni
dos itens incluídos no quadro li.

247
O inquilino do imaginário

Para simplificar um pouco nossa exposição, talvez seja conveniente dizer


em que consiste o peculiar do caráter histérico. O caráter histérico distingue-se
pela tendência do sujeito de perceber-se e agir mais como personagem que como
pessoa, mais como ego (mera representação fantasiada de si, com todo o
narcisismo que isso implica) que como si-mesmo (como ser autêntico, que se
reconhece a si mesmo em sua pura existência, artífice e agente responsável por
sua vida). Dessas duas tendências decorrem sua conduta exocêntrica - isto é,
fora do centro, deslocada - reveladora de uma auto-identidade falseada,
mistificada, extrínseca e de uma pessoa precariamente integrada nas suas
dimensões existenciais fundamentais.
Postulamos aqui que o ego corresponde à representação que o sujeito faz de si.
Equivale ao que certos autores denominam como autoconceito e auto-imagem. Nem

QUADRO 11
Esquema de alguns fatores que influem na auto-identidade
e a configuram segundo as diferentes dimensões existenciais.

Dimensão corporal:
a) a imagem corporal
b) a corpo como vitalidade e como
dado primário da consciência de si.

Dimensão afetiva: Dimensão interpessoal:


a) a consciência dos atributos a) juízo do outro como fator
pessoais em forma de do juízo pp.
constantes afetivas
A PESSOA como
Dimensão espaço-temporal; síntese dinâmica, Dimensão da práxis:
a) o percurso histórico-biográfico aberta, parcialmente a) a tomada de consciência de si
ao longo do qual se constitui a determinada segundo por via da atividade
trama da identidade suas diversas b) as habilidades e poderes pessoais
dimensões existenciais como fonte de auto-estima

Dimensão motivacional:
a) as motivações como vetores
e tendências que orientam o Dimensão axiológica:
sujeito a) a influência dos valores in-
b) como fontes energéticas e teriozados junto com os va-
necessárias a serem preenchidas lores do grupo de inserção

248
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

sempre o ego está em contradição e em ruptura consigo mesmo. Nas pessoas eubiósicas,
a representação de si reflete com bastante fidelidade o ser mais genuíno do indivíduo.
Na literatura é freqüente que ego e eu sejam usados como sinônimos. Na
psicanálise, o ego corresponde à parte consciente da personalidade, aquela que
está encarregada de coordenar as exigências do superego e as demandas pulsionais
do Id, além de atender às conveniências e imposições da realidade. Na minha
concepção, o eu é simplesmente o agente da pessoa: o indivíduo enquanto agente
de si mesmo. Assemelha-se ao ego freudiano, mas não está subordinado ou preso
a um superego ou Id. Opera como síntese de todas as dimensões da existência,
sem que essa síntese suponha a superação dos conflitos e as demandas que essas
dimensões impliquem.
No plano do si-mesmo (o selj), o sujeito aceita-se no que é, ainda quando isso
lhe seja doloroso. Aceita sua realidade, o que não significa que, sendo dolorosa ou
frustrante, não tente mudá-la. Primeiro o sujeito reconhece-se nessa realidade;
sua mera ratificação ou mero questionamento dependerão da avaliação que ele
faça da situação e de suas possibilidades. Não vive nem age em função de uma
mera representação ("Tenho de casar-me com esse cara, pois não quero ser mãe
solteira", "Preciso de um título universitário, pois me permite conquistar um melhor
status, não importa o que seja").
Não se pense que é algo anormal transitar pelo plano da mera representação
(fantasiada de si). Acontece corriqueiramente com todos nós; não é aqui que reside
o problema. O problema reside no predomínio da mera representação sobre o ser-
mais-próprio. No histérico há primeiro uma não-aceitação de um aspecto básico·
de sua realidade. Trata-se de uma tentativa de escapar de uma situação pelo menos
incômoda, por vezes tortuosa, quase sempre conflitante. Essa situação exigiu do
sujeito algumas táticas de simulação. Para aliviar-se do incômodo, o sujeito descobriu
que precisava apelar para certos truques e artimanhas. Esses truques eram um
artifício seja para obter aceitação, seja para ganhar mais espaço, mas sempre
implicavam uma negação ou mistificação de si mesmo.
Isso é o que costuma acontecer com o tipo histérico não homossexual. Os
traços característicos podem configurar-se desde a infância ou surgir no início da
adolescência - período no qual se registra uma fase notória de mudança de
identidade. Na infância surgem algumas situações que levam a criança ao uso de
certas táticas de simulação. A mais comum relaciona-se com a conquista do afeto
dos pais. Surge quando a criança precisa disputar o afeto com algum irmão. Cria-
se assim um clima de competição. Um dos filhos percebe que para manter ou
ganhar uma posição de privilégio tem de jazer o jogo do outro. Neste jogo os
pais não são completamente inocentes. Pelo contrário, geralmente criam as
condições básicas para que o cenário das simulações seja possível. Uma mãe que
condiciona sua doação de afetos segundo seja a conduta do filho, ou declara suas

249
O inquilino do imaginário

preferências pelo filho que mais reverencia seu ego, já monta um cenário propício.
Outro tanto pode fazer o pai, que nesses lances não fica de fora. Como a mãe, ele
também pode ser um manipulador, pois basta que um dos genitores seja um declarado
manipulador do círculo familiar para que a criança sinta que ela também precisa
manipular as malhas da rede.
O outro intervalo crítico para a confirmação da identidade é a adolescência.
Anos difíceis em nossa cultura. Período de entrada em diversos planos da vida.
Em sete anos (dos 14 aos 21 anos) precisamos adquirir uma nova personalidade,
que nos permita navegar em mares adultos. Períodos de desafios e tentações, de
ousadias e mascaradas. E sobretudo de miragens. Em sete anos temos de conquistar
. um mundo: ter uma profissão, definir a escolha erótica, redefinir o relacionamento
com a família, explorar os meandros do espaço social, reformular a maioria dos
valores. Nem o bom Deus escapa de um acerto de contas.
Perante tantas tarefas, nada tem de surpreendente que fiquemos confusos e
desconcertados, agitados por um amontoado de sentimentos contraditórios. Para
muitos jovens há descobertas bastante desalentadoras, que os afundam na convicção
de que precisam representar para sobreviver num universo onde todos colocam as
melhores vestimentas para dissimular os defeitos do corpo.

As invenções do jovem Hermes


Uma boa maneira de entender a configuração de um tipo caracterial é expor
a história de uma pessoa que caracterize, com sua atitude, seu comportamento e,
com a dinâmica de seus afetos, os traços gerais desse tipo. Hermes, um professor
de literatura, 35 anos, nos oferece alguns aspectos desse tipo. Não corresponde ao
protótipo (que está encarnado, até o exagero, no homossexual amaneirado), mas
nos mostra como se vai entrando num clima emocional, nas representações e nas
artimanhas da Hy.
Hermes é mestre em literatura, lecionando numa universidade de prestígio no
Brasil. É um homem de aspecto másculo, bem favorecido pela natureza, de tipo
somatotônico, de feições européias. Veste de modo cuidado, com certa elegância.
Confessa logo que pratica ginástica "para espantar antecipadamente os estragos
do tempo e para sentir o olhar cobiçoso de alguma dama recatada". Usa uma
linguagem pulcra, com freqüentes galicismos, "pois o francês é a língua de Rimbaud,
mon frere et mon camarade".
Dou apenas alguns fragmentos de sua história tal como ele a narrou num
escrito e nos depoimentos verbais expostos nas diversas sessões que, durante sete
meses, mantivemos. No período em que me consultou, tinha superado em boa medida
as vivências e táticas dominantes que caracterizaram seus anos juvenis. Focalizo
aqui a etapa de sua adolescência, pois essa é a época da constituição de sua neurose.

250
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

A percepção atual de seu caráter na etapa juvenil


"Sempre fui consciente de meus truques, de meus jogos, se assim posso chamar
minha vontade de dissimular minha condição socioeconômica e de realçar meu valor
com alguns artifícios. O que não sabia é que todos esses artifícios me rendiam
hipotéticos benefícios; na realidade me prejudicavam. Uma vez que se superam
alguns problemas psicológicos, já olhando para trás, se percebe quão estúpido foi
tudo aquilo, mas também compreendo, sem querer justificar-me, que todas aquelas
invenções eram minha maneira de ganhar atenção e 'consideração' (entre aspas)
perante pessoas que eu supervalorizava, que ingenuamente percebia como
importantes. Eu fantasiava demais, pois a realidade me oferecia quase nada. Você já
foi adolescente, não foi? Tudo é tão intenso e excitante; ao mesmo tempo tão possível
e impossível, tão certo e tão incerto; um novelo de contradições. Talvez para gente
bem-comportada as coisas possam ser fáceis e lineares; para mim foi tudo tão
complicado, sem pontos de apoio, sem acompanhantes de boa vontade, sem outra
coisa na minha bagagem senão a vontade de ser alguém, sabendo que era ninguém.
"Ser alguém, de onde surgiu essa idéia maluca, Deus? Por que não aceitei
simplesmente que era um rapaz sem destino, como milhões e milhões de desamparados
da fortuna que andam por aí tentando apenas sobreviver num mundo cão? Mas o
que tem de estranho querer ser alguém singular e meritório? Ser uma pessoa notável
não é a aspiração secreta - rara vez confessa- da maioria das pessoas? Não, não
é; a maioria se conforma com muito pouco. Basta-lhes seguir as pegadas do rebanho.
Acontece que me inspirei em modelos singulares, em gente incomum. Tive desde
pequeno essa mania do incomum; sempre me chamou a atenção o que se destacava,
o diferente, sobretudo se a diferença apontava para a excelência."
Este é o estilo de Hermes; homem inteligente, sensível, culto, com o domínio
de várias línguas. Consulta-me depois de ter saído de uma segunda convivência.
"Posso conviver com uma mulher, mas a idéia de selar um projeto de vida com um
contrato escrito me provoca franco horror. O casamento clássico parece-me algo
detestável; sou anarquista e não suporto o controle de outra pessoa na minha
vida." Quer continuar um trabalho psicoterapêutico que deixou faz cinco anos,
"que muito me ajudou, mas agora preciso descarregar algumas angústias originadas
não apenas no meu atual momento, mas num passado nada fácil, que estão
reaparecendo assim que o presente se torna ameaçador".

A tomada de consciência de sua condição social e a invenção de


seu personagem -A influência paterna
"Eu sei que não é facil precisar quando começa uma etapa nova na vida da
gente, mas daquele ano da nova escola eu não esqueceria jamais. Até então eu
sabia muito bem que havia diferenças brutais entre ricos e pobres. Tudo ressalta

251'
O inquilino do imaginário

essa diferença. Só um idiota não se apercebe disso. Só que uma coisa é observá-
la de um ônibus ou na tela da TV, outra é entrar na gaiola dos ricos sentindo-se um
pássaro sem penas.
"Aos 14 anos perdi minha inocência. Não foi na primeira transa, nem quando
deixei de acreditar'emDeus. Perdi-a devagar, à medida que fui tomando consciência
de como eram as coisas mundo afora. Na riqueza dos outros percebi minha pobreza.
"Foi quando entrei para o primeiro colegial, numa escola de classe média alta.
Eu morava com minha mãe numa casinha modesta, num bairro popular (minha
irmã morava com uma tia num setor melhor da mesma cidade); tive de estudar de
manhã e trabalhava como office-boy numa firma de máquinas de escrever.
"Era tolo freqüentar essa escola, mas minha pobre mãe tinha conseguido
uma bolsa pàra mim. Isso já me incomodava. Ficaria alia título de favor. Eu nunca
fui um camarada humilde, desses que aceitam sua sorte com resignação. Era filho
de operário e órfão de pai, mas tinha boa aparência e o sobrenome de minha mãe
era francês. Esses já eram bons motivos para sentir-me à vontade.
"Foi a entrada nessa escola 'para gente distinta' -como costumava dizer
minha mãe - que começou essa espécie de neurose que atormentou meus dias
durante quinze anos. Neurose, não é esse o nome que se dá a essa forma de
piração, mistura de desespero e de mentira, de percepção de uma realidade dolorosa
e de exagero imaginativo?
"Agora digo isso, mas naquela época eu era um garoto ingênuo, que se deslumbrou
com as belas formas de toda essa rapaziada que freqüentava aquela maldita escola
(maldita é uma forma de dizer, mas houve um momento em que esse palácio para
gente 'de boa classe' me pareceu detestável e desejável ao mesmo tempo).
"É certo que a morte de meu pai me tinha abalado (havia falecido no ano
anterior); ele era um homem que me inspirava sentimentos contraditórios; era
triste e alegre, tranqüilo e briguento, dizia mentiras e falava verdades; carinhoso e
indiferente, responsável e irresponsável. Ora uma coisa, ora outra. Antes de morrer
ele me falou: "Seja alguém na vida, rapaz. Não fique por baixo. Eu não consegui
sair deste inferno, mas você sairá. Você é bem melhor que eu."
"Nunca me esqueci de suas palavras. Por esse estímulo lhe perdoei todas as
tolices; lhe perdoei que nos houvesse deixado no desamparo, sem nenhum patrimônio.
Só anos depois entendi de onde tinha surgido essa idéia diretriz que surgia em mim
como vontade de ser uma pessoa notável.
"Até antes de entrar nessa escola eu era um garoto normal, sem maiores
ansiedades, acreditando que com boa conduta e dedicação ao trabalho eu acharia
o caminho correto. É verdade que já queria destacar-me na escola, tiràndo boas
notas e sendo elogiado pelos professores. Pensava que se conseguisse uma boa
profissão teria um futuro esplêndido. Então viveríamos numa bela casa, num bairro
de gente de classe A- ou, como dizia minha mãe, no bairro das mansões.

252
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

"Eu tinha autoconfiança; a autoconfiança que um garoto pode ter; algo ainda
frágil; não fingia. Podia exagerar algum fato ou adornar uma história; apenas isso.
Na escola do bairro onde morávamos, todos éramos iguais; pessoas simples.
"A mudança começou quando entrei na nova escola, 'para gente fina'. Lembro
quão contente ficou minha mãe por ter conseguido a bolsa naquela escola. 'Aí se
relacionará com outro tipo de pessoa. Não precisa você dizer que somos uma
farmlia modesta. O Diretor garantiu-me que você terá o mesmo tratamento de
todo mundo.'
"Foi o contraste entre minha situação e a de meus colegas que me levou a
essa espécie de farsa e de pequenos fingimentos. Foi aí que me senti por baixo.
"Primeiro me mantive na defensiva, mas sou um cara expansivo, atento ao
que acontece ao meu redor. Não resisti à tentação de mostrar que eu era o melhor.
Não foi difícil. Estava mais bem preparado; sabia mais, era mais esperto. Só que
havia um porém tremendo: não pertencia àquele ambiente. E o pior é que senti de
imediato que não podia revelar o que constituía minha realidade mais própria.
"Essa turma me desprezaria se dissesse a verdade. Tinha de inventar.
"Sim, comecei dizendo que morava em outro bairro. Depois inventei que meu
pai era funcionário de uma empresa multinacional e que viajava continuamente.
"Minhas mentiras não pararam por aí. Como éramos do norte, meu sotaque
era uma verdadeira acusação. Para esconder minha origem, comecei a falar com
sotaque carioca - igual a um menino dessa cidade, que era muito elogiado. Claro,
às vezes me esquecia e reaparecia o linguajar nordestino. Agora me digo: como
era idiota. Talvez, mas era minha maneira de valorizar-me perante aquela turma.
"Lembro-me de que uma professora me chamou a atenção por minha
maneira de falar. Talvez querendo me ajudar. Só que eu já tinha entrado em
cheio em fantasias compensatórias; acreditava que falando assim me tomava
mais interessante. Menti também para ela, dizendo que tinha vivido toda a
infância no Rio e que reaparecia esse sotaque quando voltava a encontrar-me
com os familiares desse estado. Talvez ela soubesse de meus conflitos; lembro
que se limitou a dizer-me que ela gostava mais quando eu falava com meu
sotaque natural. Eu, compenetrado em meu novo personagem, continuei a minha
farsa .... "
Depois, já fora dessa escola, Hermes foi mais longe com esse tipo de
farsa. Como tinha um razoável conhecimento do francês, falava com um leve
sotaque estrangeiro e, se a ocasião pintava, dizia que tinha morado alguns anos
na França e que já lhe resultava difícil falar português. Fazia isso especialmente
quando entrava numa loja elegante ou quando paquerava uma moça que queria
conquistar na hora. "Você sabe, as mulheres são doidas por estrangeiros, pois
imediatamente o imaginam rico e bem-sucedido. É o que acontece em todos os
países-colônias."

253
O inquilino do imaginário

"Dir-lhe-ei que me custou anos sair desse reino de faz-de-conta. Se houvesse


sido um pouco humilde, não teria entrado nessa, mas sempre me atribuí mais valor
do que os outros me atribuíam. Essa arrogância me extraviou."
Nesse depoimento constatamos a origem e a dinâmica da vivência Hy.
Primeiro, a existência de uma situação insuportável para o sujeito, que implica a
percepção de menor-valor e de eventual rejeição. Segundo, a vontade de fazer-se
valorizar de alguma maneira, não importa se isso implica o recurso da farsa e do
fingimento. Trata-se de não ficar por baixo. Terceiro, o predomínio do fator egóico,
entendido aqui como a vontade de fazer prevalecer sua necessidade de ganhar ou
conquistar uma posição (necessidade oriunda de uma representação, de um
narcisismo ou, como afirma essa pessoa, "da falta de humildade"). Derivada do
fator egóico e em conexão com ele, surge a subordinação ao personagem em
detrimento de si mesmo (enfraquecido por uma errada percepção das coisas).
Apreciamos aqui também a vontade de ser alguém notável. Esta vontade
nem sempre se mantém dentro dos limites do razoável. Exacerba-se por vezes
pelas vias da avidez de notoriedade, não isenta, nos casos mais sintomáticos, de
condutas exibicionistas -tão evidentes nos gays feminóides.
Hermes continua: "Hoje me parece algo esquisito o que acontecia comigo
nos anos da adolescência, que foi o período mais intenso e problemático de minha
vida. Eu necessitava destacar-me; não importa como. Não é bem assim; me
importava que fosse de uma maneira original. Tinha uma espécie de prurido de
originalidade. Coisa de adolescente? Muito jovem é assim. Eu queria que os outros
me admirassem, que pelo menos me levassem em conta. Imaginava que um futuro
cheio de promessas estava à minha espera. Eu seria alguém que daria o que falar.
Seguramente um grande escritor, pois costumava escrever pequenas crônicas de
meu cotidiano. Ou talvez um cientista notável, pois era um camarada estudioso.
Não pense você que tudo era pura fantasia. Eu me esforçava. Vivia na fantasia,
sim, mas me empenhava muitíssimo. Fantasiava que algum dia eu seria reconhecido
e que ainda muitos veriam nas peripécias de minha fortuna uma forma a mais de
grandeza. Então todos os meus disfarces seriam plenamente justificados e aceitos
como uma forma válida de luta pela vida.
"Meu grande erro, descobri depois, quando me curei dessa ilusão compen-
satória, é que procurava minha imagem no espelho dos outros, daqueles que eu
esperava conquistar, os maiorais que eu imaginava importantes. Tarde percebi que
não precisava ver-me pelos olhos de meus semelhantes. Foi um aprendizado longo,
sofrido. Liberar-se do juízo dos demais não é tarefa fácil. Mais difícil ainda quando
a gente se sente por baixo; muito mais difícil."
Em outro capítulo assinalei que um dos fatores que favorecem a entrada no
círculo neurótico é a subordinação, por parte do sujeito, aos ditames do outro, que
o neurótico vive demais sob o império do juízo alheio. Na infância, a primazia desse

254
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

fator é normal: a criança é uma criatura em formação, com escassa individualidade


e autonomia. Na adolescência, o juízo do outro continua ainda sendo muito forte,
mas nesse estágio inicia-se a necessidade de uma maior autonomia em todos os
sentidos, que tende a afirmar-se cada vez mais à medida que o sujeito se aproxima
da fase adulta.
Afirmava que o Hy estava demasiadamente habitado pelo outro; não importa
que diga que desdenha as convenções sociais, que ele gosta de chocar os demais
num sinal de afirmação de sua originalidade individual; é o que fazem muitos
sodomitas estridentes, que vivem assombrando a platéia, justamente porque
precisam desse público para manter uma identidade falsificada- ou mal definida,
como ocorre com os adolescentes.
Aprender a neutralizar a influência avassaladora que exercem os outros em
nós é uma tarefa de desenvolvimento pessoal. Não me refiro apenas à influência
oriunda do ambiente imediato, dos coatores e coetâneos; falo da influência que exercem
em nós os diversos personagens que nos modelaram no percurso dos primeiros estágios
da vida- a infância e a adolescência. Temos de aprender a colocar esses personagens
em seu lugar, impedir que eles continuem comandando nossas vidas em etapas
posteriores. Entre todas as figuras que tendem a dominar-nos de maneira nem sempre
benéfica, os pais ocupam o primeiro lugar. Superar o estilo de relacionamento infantil
com eles é uma tarefa indispensável do crescimento pessoal.

As peripécias, a revolta e a desordem


"Agora me pergunto como foi que durou tanto aquele período de desordem.
Não preciso indagar-me demais para entender o rumo que tomou minha vida. Foi
o fracasso. Primeiro foi a expulsão da escola 'por conduta incompatível com a
disciplina e o respeito da hierarquia'. No penúltimo ano tive uma série de brigas
com os professores, especialmente com o cretino de Biologia. Era um babaca
lânguido e formal, que me irritou desde o primeiro dia por seu estilo de verme
macilento. Falava com uma voz de velha cansada e prolixa. No segundo ano,
começamos a hostilizá-lo, eu e outros dois colegas! Queríamos deixá-lo por baixo,
demonstrar para a turma que era um fulano medíocre e sem profundidade: um
puro repetidor de textos escolares. Eu e os outros éramos os bons. Tolice de
adolescentes? Seguramente, mas assim funcionava minha mente naquela época.
Aplicávamo-lhe um golpe sujo muito simples: um dos dois escolhia uma ou duas
questões de Biologia, que nós pesquisávamos num tratado mais completo, que na
época era um poço de erudição. Invariavelmente aquele bom senhor coçava a
cabeça, nos olhava confundido, tentava sair pela tangente, ou se escusava dizendo
que depois responderia a essa questão. Aí, eu ou o colega respondíamos à pergunta
com um ar despreocupado e bonzinho, como se tudo aquilo fosse algo corriqueiro.
Resultado: o pobre homem passava por incompetente, além de ficar furioso.

255
O inquilino do imaginário

"Claro, no exame de fim de ano, aquele bom senhor nos deu o troco com
juros altíssimos. Como a prova era escrita e nós éramos notáveis nessa matéria,
sempre tínhamos um monte de colegas pedindo ajuda. Assim que passei a primeira
informação, o cara, que estava de olho, me pegou a prova e me expulsou da sala
alegando 'falta de honestidade por estar trocando informações com outro aluno'.
Um zero. Não deu outra: o erudito em Biologia, o sabidão da turma, tinha de repetir
esse ano.
"Quando fui à Diretoria expor a situação, advertindo que era uma clara
vingança daquele macaco por ele ser um medíocre repetidor de textos escolares,
o cara, que estava presente, tentou dar-me um soco; fui mais rápido, dei-lhe um
violento chute no saco. Depois desse diálogo tão pouco acadêmico, fui expulso
com todas as honras cabíveis.
"Esse foi o primeiro passo da minha queda. Depois daquilo comecei a detestar
o ambiente escolar. Se antes era pretensioso, a partir de então me tomei arrogante;
se antes me sentia por baixo, comecei a sentir-me por cima, como se uma força
extraordinária e um destino magnífico estivessem orientando minha procura. Tudo
isso misturado com períodos depressivos, pois minha situação material piorou com
a morte de minha mãe, quando eu tinha apenas 17 anos. Se antes acreditava num
Ser Superior, que estabelecia certa ordem cósmica e impunha uma justiça enigmática
no reino dos homens, agora tudo isso me pareceu um grande embuste, uma simples
invenção para consolar os coitados desse mundo.
"Sem pais, sem Deus, quase sem farm1ia (minha irmã sempre foi mais apegada
à tia Cristina do que a nós, e eu não sentia a mínima simpatia por essa velha porque
sempre censurava a minha mãe pelo fato de ter-se casado com um operário de
fábrica e não com um homem de bem). Mais ainda: sem trabalho, pois a partir da
expulsão da escola, parava muito pouco em qualquer emprego. Não daria outra:
entrei num período de revolta, de ansiedade e de tentativas que quase sempre
terminavam em frustrações e novas dores. Quase sempre tive também breves
períodos de triunfos e de aventuras emocionantes. É de meu temperamento pegar
o lado lúdico e teatral dos dramas humanos."
Seria difícil encontrar uma descrição melhor dos mecanismos psicológicos
usados por esse tipo que essa auto-análise oferecida por Hermes. Indivíduo
inteligente, dotado de uma extraordinária vontade para superar sua precariedade
material, ambicioso, de uma rica vitalidade, querendo conquistar uma posição que
compensasse sua condição social, caiu nas miragens da representação no período
mais crítico do desenvolvimento da personalidade- a adolescência.
Já afirmei que certos traços histeróides são bastante freqüentes na etapa
juvenil. De fato, este é um estágio crítico, o mais crítico de todos os estágios
humanos. Lembremos que é o período de mais quebras e desajustes, registrando-
se nele a maior percentagem de psicoses e neuroses - pelo menos na sua fase

256
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

inicial. Não é tarefa fácil construir um mundo em apenas um decênio, sobretudo


se os alicerces construídos na infância foram fracos.
O fato de que uma pessoa possa enveredar pelas vias da inautenticidade,
como é comum nesse tipo, não supõe a ausência de capacidades e valores. Essa
inautenticidade, aliás, o é em termos, pois muitos deles percebem seus truques
com bastante lucidez, mas se convencem de que a farsa é parte indispensável do
fascínio da ribalta.

Emotividade, imaginação e sugestionabilidade


Sua sugestionabilidade deriva de três componentes que se destacam como fatores
tendenciais: a emotividade, a forte gravitação do plano imaginário e o insuficiente
desenvolvimento da individualidade (entendida como autonomia do outro, não como
simples originalidade). Ser emotivo significa ser permeável em grau acentuado aos
estímulos situacionais (internos e externos); é essa permeabilidade a seu ambiente
que torna a criança tão agitada emocionalmente. Ao fmal da infância, já conseguimos
uma notória filtragem dos estímulos situacionais graças às exigências práticas e à
entrada no plano dos conceitos. Em certo sentido, o histérico - como os outros
neuróticos- permanece num estágio pré-adulto neste plano; aliás, é uma das queixas
que eles se formulam estar sempre atrapalhados por seus excessos emotivos.
Esse excesso de emotividade os distancia das exigências objetivas que lhes
impõe a realidade; ficam assim entregues às oscilações da subjetividade, em especial
aos apelos do imaginário, isto é, aos apelos do meramente possível, dos desejos e
das necessidades não satisfeitas. De todos os tipos neuróticos, o Hy é o que mais
se entrega a jogos e representações imaginárias. Em muitos casos nos parece um
inquilino do imaginário, semelhante ao psicótico. Pode haver fantasia maior que
um transexual fingindo-se rainha enquanto procura um parceiro numa avenida
de serviços prostituídos? Condiciona-se de tal maneira a seu papel de dama
perfumada que somente detectamos seu fingimento pelos excessos colocados
na sua representação.
Esses são os casos extremos; nem todos levam suas fantasias nessa direção;
alguns a expressam em condutas. Outros com certa discrição e bom senso;
aparecem como pessoas simpáticas, desejosas de agradar e prestativas. Não
preciso dizer que esta capacidade imaginante não é negativa; como toda
capacidade, seu valor depende do que o sujeito faça com ela. Um indivíduo
imaginoso, sensível e bem dotado no plano intelectual possui três bons elementos
para transformar-se num artista, sobretudo se é um camarada disciplinado,
disposto a fazer algo que o tire da mediocridade. Se apenas é emotivo, imaginoso, ,
subordinado aos ditames alheios, sem talentos especiais, então é provável que
deambule entre a lua e a sarjeta.

257
O inquilino do imaginário

Carente de perspicácia crítica, mais os dois componentes já comentados, o


histrião entra facilmente nas sugestões que lhe oferecem as circunstâncias;
diríamos que se deixa apanhar por qualquer convite com cheiro excitante que se
pendure a dois passos de seu nariz. Deixa-se apanhar não apenas por convites
externos, esses que os outros propõem. Também entra nas induções oriundas de
sua própria fantasia. Não permanece como mero espectador de suas invenções
mentais; as vive, e as vive intensamente. Aquele suposto médium que mencionei
me informava: "Concentrava-me por alguns segundos, imaginando como faria
um feiticeiro preparando-se para receber um espírito. Visualizava a coisa e logo
sentia que me transformava nesse feiticeiro, preto-velho, seja o que for".
A pessoa com acentuados traços Hy caracteriza-se também por uma
individualidade pouco desenvolvida, isso num duplo sentido, tanto no sentido de
uma identidade mal definida (mistificada, conflitante, contraditória) enquanto
entendida como uma falta de autonomia com respeito ao julgamento do outro
(subordinação ao juízo social). Por essa dupla falta é fácil de ser induzido por
pressões externas e por sugestões, sobretudo quando essas sugestões se revestem
de valores socialmente aprovados.

Homossexualidade e histeria
De passagem, em páginas anteriores, afirmei que o protótipo da histeria
como forma caracterial encontrávamos no homossexual feminóide, amaneirado,
exibicionista, emotivo, expressivo. Diria que é o caso extremo pelo lado masculino.
É pertinente dizer que só uma parte deste tipo de homossexuais mostra os traços
mencionados de uma maneira acentuada. Muitos deles aparecem como pessoas
delicadas, atenciosas, por vezes tímidas. Levemente femininas. Ficamos na
dúvida, perguntando-nos se se trata apenas de uma personalidade com um
componente venusino mais forte, mas heterossexual. Percebemos seu componente
histriônico quando emerge em primeiro plano seu interesse erótico e quando
pinta um possível parceiro sexual. E sobretudo observamos este componente
quando se encontram num ambiente gay. Diríamos que nestas situações se desinibe
completamente.
É bom fazer um outro alcance. Sabe-se que existe também o homossexual
homem, com atitudes e comportamentos inteiramente masculinos, sem elementos
histriônicos, que inclusive nos meios gay mantém esse padrão. Neste caso, eu
diria que se trata de um bissexual com preferências por pessoas de seu próprio
sexo, mas capaz de experimentar prazer com indivíduos de sexo oposto. Ainda
mais, neste tipo a origem de sua preferência sexual se deve a um condicionamento

258
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade

decorrente de experiências sexuais prazerosas, e, em consequencia, sem os


problemas de indentidade que registramos no feminóide.
Em outra publicação minha (Estas Inquietantes Ervas do Jardim, Lemos
Editorial) escrevi todo um capítulo sobre este assunto. Por ter uma idéia de como
se processa a gênese do padrão feminóide, dou aqui o seguinte esquema:

Fatores determinantes Fatores coadjuvantes

Identificação com o modelo feminino Ausência ou insuficiência do modelo paterno (ou


(geralmente a mãe) seu equivalente), pai punitivo, rejeitador,
agressivo ou omisso
Papel masculino pouco estimulado ou
desestimulado Percepção e consciência da diferença (ansiedade e
temor perante a censura dos outros)
Aquisição de uma sensibilidade feminina
(emotividade, narcisismo, delicadeza,maior Reação dos outros perante sua conduta (censura,
acatamento de modelos externos) gozação, aproveitamento)

Atração por indivíduos do mesmo sexo Consciência de sua condição: ambigüidade,


(especialmente após a puberdade) conflitos
Representação exagerada de papel
Caráter gratificante destas experiências

I ;) !Configuração do tipo homossexual feminóide H-F

259
Capítulo 12

DETKAS DE UM VIDRO ESCURO


As vivências dominantes na depressão

"Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Já me tinha destroçado os
sapatos e me penetrava na carne. De vez em quando, inquieto, voava em meu
contorno e depois recomeçava sua tarefa. Passou por aí um senhor que observou a
cena por um momento e logo me perguntou como podia suportar o abutre.
-É que estou sem defesa - respondi. O bicho veio e me atacou. Claro que tentei
lutar, tentei estrangulá-lo, mas é um tipo de animal muito forte.
Até tentou devorar-me a cara, por isso preferi sacrificar os pés.
Como vê, estão quase despedaçados.
- Como é possível deixar-se torturar dessa maneira - diz o senhor.
Basta um tiro e pronto!
-Você acha? Quer você disparar o tiro?
-É claro, é só ir a procurar o fuzil. Consegue agüentar meia hora?
-Não sei dizer- respondi. Mas sentindo uma dor pavorosa, agreguei: Procure o
fuzil, por favor.
- Bem, diz o senhor, vou o mais rápido possível.
O abutre escutara tranqüilamente a conversa, olhando alternadamente.
Reparei que ele captou tudo. Então levantou o voô, depois se levou para tomar
impulso como um lançador de dardos, desceu e me penetrou o bico até o mais
profundo de meu ser. Na queda, senti, aliviado, que o abutre se introduzia
impediosamente nos abismos infinitos de meu sangue"
(Frans Kafka: O abutre)

que significa esta bela alegoria kafkiana? Uma ave voraz e impiedosa

O que primeiro tenta devorar o rosto de sua vítima - um dos centros da


identidade pessoal- para em seguida atacar seus pés, a base de sustentação
do sujeito. Finalmente, o ataca no mais profundo de seu ser, entrando na fonte da

261
O inquilino do imaginário

vida. Esta parece uma das alegorias possíveis da autodestrição, da queda, da


impotência da culpa e do castigo: os cinco componentes constantes da depressão
-da prisão imposta pelo próprio sujeito depois que perdeu, em parte ou totalmente,
sua base de sustentação. Observe-se que Kafka intui a saída; basta dar um tiro no
agressor, a parte punitiva e censuradora de nós mesmos. Solução radical e drástica,
que alguns sabem aplicar quando auxiliados por uma mão amiga. Outros, como
Prometeu, sabem que a culpa se paga com uma parte substancial da própria vida.
Há toda uma família de palavras que nos evocam o lado menos luminoso,
mais cinzento da vida. Tristeza - depressão - melancolia é uma dessas famílias.
Há outras do mesmo gênero: ausência - nostalgia - distância - perda. E não se
pense que esse lado sombrio, crepuscular e negativo do peregrinar humano está
esgotado nesse repertório de vivências. Ainda há outros aspectos: abandono-
fracasso - solidão - morte.
Todas essas palavras- e poderia citar uma dúzia mais -desvendam-nos um
aspecto peculiar disso que os gregos identificaram como melancolia. Todos esses
vocábulos nos servem para reconhecer e caracterizar uma forma vivencial
específica, embora todos eles guardem uma notória relação de parentesco.
Circula por aí a idéia de que qualquer estado depressivo pertence à esfera do
mórbido, da pura negatividade, da simples negação da vida. De alguma maneira
isso é assim, mas de nada adianta fugir desses temas que a todos nós afetam em
maior ou menor grau. Eu diria que formam parte consubstanciai com a vida. Todos
os temas apontados acima são a companhia esporádica ou constante da maioria
das pessoas. Aprender a encará-los e superá-los faz parte de todo um exercício de
crescimento pessoal.
Alguns espíritos sabem aproveitar suas dores pessoais, fonte originária da
melancolia, em textos literários. Aí está o testemunho de toda a poesia lírica e
elegíaca do Ocidente. Os maiores poetas do Ocidente representam o demônio do
crepúsculo - de Baudelaire a Neruda, de Hoelderlin a Pessoa.
Nem tudo é negativo na melancolia- nome genérico para designar a visão
desencantada, irônica, nostálgica, noturna da vida. Há um encanto nas paisagens
perdidas e em todas as imagens ausentes que freqüentam nossa memória.
Neste escrito tento descrever as vivências dominantes na depressão, reativa ou
já enraizada na história vital da pessoa- geralmente designada como depressão neurótica.
Embora seja costume usar depressão e melancolia como sinônimos, eu reservaria
a qualificação de melancólico para o temperamento assim designado por Hipócrates.
No neurótico depressivo destacam-se todos os traços negativos que os diversos
autores detectam no sujeito que se refugia detrás de um vidro escuro para não
expor-se à energia luminosa que curaria suas feridas. Eu diria que o indivíduo de
temperamento melancólico se assemelha ao depressivo neurótico, mas seu sofrimento
está temperado, seja pela ajuda de uma filosofia de resignação, seja por um humor

262
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

irônico, que lhe permite aliviar seu sufoco interior, aspergindo seu ambiente com
eflúvios de vitríolo e perfume, seja procurando nas imagens ausentes o reencontro
com paraísos perdidos. O primeiro está condenado a uma autodestruição lenta e
sofrida, sem maiores glórias. O segundo aprende a conviver com a adversidade e,
não raro, sabe transformar suas aflições em arte e poesia.

As vivências dominantes na tristeza,


na depressão e na melancolia
Seja como estado de ânimo transitório, seja como estrutura caracterial- que
nesse caso chamaríamos de melancólico -, seja como depressão neurótica ou
reativa, diferentes sentimentos percorrem e caracterizam o círculo depressivo.
Como mostra preliminar das vivências predominantes que nos afligem quando nos
encontramos neste estado, dou os testemunhos dos que consignaram por escrito
seu deambular por estas vias.

O desencontro, o desarraigo, o efêmero e a orfandade


E eu que me prometi transitar por todos os caminhos
hoje não sei onde me encontro nem onde está
a que gerou meus dias.
O efêmero não oculta seu desencanto
nem este instante sua orfandade.
Aqui temos a experiência do desencontro e do desarraigo. Para aquele que
muito pretendeu - nem mais nem menos que transitar por todos os caminhos -,
maior é o desencanto que ensombra sua alma ao constatar que se extraviou por
sendas que não conduzem a lugar nenhum.
No desalento, apela para aquela que lhe deu amparo quando ainda olhava o
mundo com olhos ingênuos. Cansado, sem saber para onde direcionar seus passos,
surge a imagem do regaço matemo como amparo que não existe mais.
O sentimento do efêmero, de tudo que fomos e já não somos mais; tudo
aquilo que nos sustentou e terminou por ancorar num ontem longínquo e
intransponível. Transitamos transitórios, mas querendo uma perenidade inatingível:
essa é uma das fontes da melancolia.

O lamento da ruptura, da separação e da perda


"Quanta sombra da que há na minha alma daria para te recuperar
e que ameaçadores me parecem os nomes dos meses
e a palavra inverno que som de tambor lúgubre tem.

263
O inquilino do imaginário

Assim como me aflige pensar no claro dia de tuas pernas


recostadas como detidas e duras águas solares
e a andorinha que dormindo e voando vive nos teus olhos
e o cão de fúria que asilas no coração,
assim também vejo as mortes que estão entre nós desde agora,
e respiro no ar a cinza e o destruído,
o longo, solitário espaço que me rodeia para sempre.
Daria este vento de mar gigante pela tua brusca respiração
ouvida em longas noites sem mistura de esquecimento."
(Pablo Neruda: "Residência na Terra")

"De que adianta chorar sua ausência, me digo; e para que esta estúpida
obstinação de querer reter tantos momentos vividos juntos, sabendo que nunca
mais viverei na sua alma? De que adianta ouvir as melodias que falavam de nós
refletindo todos os sentimentos que nos uniam?
"De que adianta ficar aterita ao mais mínimo sinal de seu impossível regresso?
Querer ouvir o seu assovio como quando ele entrava em casa ou esperar que seja
sua a voz do outro lado do fio quando se levanta o telefone. De que adianta pensar
que tudo está sendo um pesadelo, que amanhã acordarei e será tudo como antes
de sua partida? De que adianta dormir, se o sono não apaga o acontecido?" 1

A culpa, a autodesvalorização, a auto-agressão


"Faz um mês que morreu meu pai. O terrível não é a sua morte; o terrível é que
eu nunca fiz nada digno por sua vida; nunca lhe dei nada, a ele que trabalhou como um
coitado para sustentar-nos dentro de nossa pobreza. Fui um canalha; ele que tanto se
alegrou quando soube que eu era um profissional 'e não um operário sem destino'.
Não só nunca lhe dei uma ajuda; fui mais ruim ainda: o menosprezei, evitando por todos
os meios que aparecesse em minha casa. Sua aparência humilde era como que uma
acusação contra mim, revelava a minha origem. Eu sabia que ele estava doente, ainda
assim meu egoísmo foi maior. Como pude ser tão ignóbil? Agora, que posso esperar de
meu filho se agi com meu pai dessa maneira? Antes sentia vergonha de minhas origens,
agora sinto de minha má índole... Sabe o que sonhei uma destas noites? Sonhei que ia
de carro com minha família; numa esquina um mendigo aproximava-se pedindo uma
esmola. Minha mulher me dizia: dá pra ele este dinheiro; quando estendi a mão para
entregar o dinheiro ao pedinte, percebi que era meu pai, com os olhos cheios de lágrimas.
Você pode entender o que isso significa? Nem Cristo me perdoa."2

O sentimento de solidão e a morte


"Quase sempre há alguma maneira de afugentar a solidão. Eu inventei um
monte, mas ainda assim chega um momento em que todos os truques falham. O

264
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

melhor antídoto contra esse sentimento de ser um marinheiro sem contratos de


navegação (essa é a imagem que me passa a solidão) é sentir a alegria das crianças
quando brincam no parquinho, mas isso não dura muito, pois as mães quase sempre
desconfiam de um homem que já além dos 51 se delicie com criaturas inocentes.
Desconfiam de que se trata de um tarado. Também há a música, com seu apelo
irresistível para um mundo sem fronteira nem exclusão. Mas a música (falo da
música dos mestres, não o bulício dos cantores da moda) nos ensina que o limite
entre o ser e o nada é indiscernível; e minha fantasia seria extinguir-me como uma
melodia que chega a seu fim.
"Quando estou cansado, com a nítida sensação de que não sou importante
para ninguém, importante mesmo, coloco uma música que me fala de um além
infinito. Então me digo como seria bom se tudo acabasse com esse canto sem
palavras que emana das cordas de um cello; mas como dizia o poeta: 'que cada
qual tenha a morte que merece'." (Ramon Gris)

Reação depressiva, episódica e circunstancial,


e reação prolongada

Eventos negativos, personalidade e süuação atual como fatores


determinantes
Quem de nós não ficou alguma vez deprimido? Ou triste? Desânimo, tristeza
e depressão: essa é a escala progressiva do abatimento. Parecem muito similares,
mas são estados de ânimo levemente difert:ntes (veja-se o quadro adiante que
esclarece as diferenças).
Quando nos deparamos com manifestações de depressão numa pessoa que
nos consulta, precisamos esclarecer antes de tudo se ela está passando por um
momento de desânimo - algo passageiro e circunstancial- ou se é o caso de uma
reação depressiva compreensível, decorrente de eventos que a abalaram. Ou ainda,
se se trata de um quadro depressivo de tipo neurótico. Por vezes precisamos
descartar a hipótese de um quadro psicótico, que é a quarta modalidade que pode
adquirir a configuração depressiva.
Esse tipo de distinção é muito pertinente, pois nem toda depressão tem caráter
clínico. Isso por um lado. Por outro, há formas mascaradas de depressão, que o
sujeito sabe amenizar com um bom humor ou apenas experimentando tédio, quando
não simplesmente uma apatia morna e insípida.
Momentos e períodos de baixa anímica todos temos, inclusive aqueles que
se mostram habitualmente com espíritos alegres e otimistas. Breves episódios
de desânimo e depressão são normais e podem acontecer em todos nós. Existe

265
O inquilino do imaginário

QUADRO COMPARATIVO ENTRE OS ESTADOS DE ÂNIMO


DA DIMENSÃO DEPRESSIVA
Desânimo Tristeza Depressão (g fase) Depressão (2~ fase)
Caracterização da Perda de fôlego ou Sentimento de Sentimento de perda Numa 2! fase (que
vivência desmoti vação em pesar decorrente ou privação de um pode desenvolver-se
relação a um objeto da perda ou bem, que bloqueia a ou não) o sujeito,
ou empreendimentc privação de um capacidade de ação e não podendo
até então julgado bem estimado pelo reação do sujeito, recuperar o bem,
importante ou sujeito, bem levando-o a um tende a sentir-se
meritório. Implica próprio ou de uma estado de culpado, embora
uma pausa ou outra pessoa (com desmotivação admita a injustiça do
diminuição do quem se generalizada, a um acontecido; julga-se
ritmo. identifica). fechamento no negativamente,
contato interpessoal, desvaloriza-se,
a um descrédito nas pune-se.
snas possibilidades e a
uma queda da
vitalidade.
Efeitos observáveis Desligamento ou Vai acompanhada Predomínio de Acentua-se o
na pessoa ou desinteresse pelo de um aumento da sentimentos isolamento.
manifestações objeto; na hipótese sensibilidade negativos. Ruminação de
experimentadas mais benigna, emocional e de Ruminação mental pensamentos
questionamento de uma tendência ao em torno do mal sombrios e imagens
seu valor ou recolhimento em si sofrido. Postura tristes. Fantasias de
validade. mesmo (refúgio no encolhida e auto-agressão. Pode
mundo privado). apagada. Forte aparecer a vontade
O sujeito sente-se necessidade de de morrer.
afetado pelo apoio.
acontecido, porém
mantém intactas
suas capacidades e a
consciência de suas
possibilidades.

inclusive o temperamento ciclóide que se caracteriza por passar por períodos de


baixa e de alta, de humor exaltado seguido de uma fase de humor deprimido.
Os motivos para ficar deprimido nunca faltam na vida de uma pessoa. Contudo,
três motivos destacam-se. Depois de um fracasso ou após uma perda significativa-
ou ainda pela simples constatação de uma impossibilidade ou limitação que põe fim a
uma expectativa- nos acontece algo no campo anímico, algo que nos abate e provoca
um sentimento de encolhimento e desânimo acentuado: é o que conhecemos com o
nome de depressão reativa. Pode ser uma reação episódica e circunstancial ou
acompanhar o sujeito por um tempo mais prolongado, mantendo a pessoa nesse
estado por alguns meses. Pode ser leve ou intensa. Quando leve, permite a execução
das obrigações e rotinas do sujeito; quando intensa, o indivíduo tende a paralisar-se,
desligando-se de seus compromissos ou simplesmente descuidando-se deles.

266
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

Leve ou intensa, é sempre uma reação compreensível, oriunda de eventos e


episódios que diminuem nossa vitalidade e nos mostram a precariedade da condição
humana. A duração da reação depende de três fatores básicos, interdependentes:
a) Depende do evento que a provocou.
b) Depende da personalidade. O mesmo evento produz efeitos diferentes
em duas pessoas diferentes. A perda do emprego pode afundar por um'
tempo prolongado um indivíduo, enquanto a outro apenas lhe provoca uma
baixa psicológica breve e pouco intensa.
c) Certamente tudo não depende da personalidade; influi também o fator
circunstância e a situação na qual se encontra o sujeito. Um desquite produz
um efeito se o sujeito já está de caso com uma nova pessoa, e outro se ainda
se encontra fortemente vinculado com seu parceiro em litígio. A perda do
emprego pode ser algo terrível numa época de recessão, ou pode tomar-se
um episódio bem menos ameaçador se o mercado oferece amplas
oportunidades. Em outras palavras, os efeitos do evento dependem das
possibilidades do indivíduo juntamente com sua personalidade.
As coisas podem complicar-se, para pior. Quando a situação já é desafortunada,
uma perda a mais pode desencadear um processo de quadro prolongado e intenso.
Foi o que aconteceu com Ramon, um sociólogo desempregado; ele nos escreve:
"Antes de entrar na fossa, vivia na angústia. Não porque fosse masoquista,
não; é que nestes três últimos anos não consegui nenhum trabalho decente. Só
lixo. Procurei e procurei, mas sem resultados positivos. Para sustentar-me tive de
empregar-me como vendedor. Vendedor! Sempre detestei esse ofício, mas não
tinha outra alternativa. Era pegar ou pensar no pior. Tentava dissimular meu mau
humor, sorrindo o dia inteiro como um peixe que tenta adaptar-se fora d'água.
Como conseqüência da situação econômica precária, precisei trancar a matrícula,
justo no último ano. Bonito, não? Fechava-se mais uma porta. Não era uma grande
coisa, mas eu gostava de sociologia. Chegou um momento em que comecei a
brigar com minha companheira; brigava por qualquer motivo. Parece que
descarregava nela o meu fracasso e minha impotência. Foi tanto meu destempero
que em mais de uma ocasião bati nela. Era algo horrível. Fazer isso, bater numa
mulher, arrasava comigo. Mas no momento em que acontecia, não conseguia
raciocinar, tanta era minha raiva; raiva acumulada em todo esse tempo de tentativas
inúteis. Imagine: eu, batendo numa pessoa que me sustentava com sua presença e
seu carinho. O pior veio quando arrumei uma amante; algo sem importância
nenhuma. Um simples caso passageiro, mas fiz questão de que minha mulher
soubesse. Houve uma vez e uma segunda vez. Na segunda Ester não agüentou
mais. Foi embora, me deixou. Com toda razão me deixou. Aí desmoronei. Afundei-
me. Antes de ela ir-se embora, vivia crispado; depois comecei a viver na ... como
dizer... na desolação - nisso que por aí chamam fossa. Depois de 8 meses não

267
O inquilino do imaginário

consigo achar uma saída que me permita erguer a cabeça. Será que o senhor me
entende? Nunca havia sentido algo semelhante. Fui perdendo o fôlego. Sempre fui
batalhador e a luta não me amedrontava, mas todos estes anos foram me corroendo
e agora estou sem ânimo para nada; antes, pelo menos, era impulsivo- e agressivo,
não o nego; mas penso que era melhor assim; não esta espécie de canseira, esta
espécie de falta de gosto pela vida."
Pela maneira de estar sentindo sua vida, não é difícil inferir que Ramon está
sofrendo uma reação depressiva prolongada. Quando falamos de reação, temos de
descartar previamente a hipótese de traços caracteriais de tipo depressivo, traços que
o infortúnio apenas fez acentuar. Não é o caso de Ramon. Por tudo o que nos refere
sua atitude perante a vida, denotava um modo de ser assertivo, positivo, batalhador e
confiante. ''Foram estes últimos 4 anos os que foram minando minha capacidade para
enfrentar a adversidade. No passado, já enfrentei dificuldades de todo tipo, sem que
me sentisse desanimado dessa maneira. Isso de achar que a vida é uma droga ou de
andar vendo os aspectos sombrios das coisas não era comigo. O que me quebrou foi a
perda da minha companheira, perda tanto mais dolorosa por ser eu o culpado."
Observe-se bem: houve uma quebra, algo que o sustentava se afundou; já
estava fragilizado, só faltava uma ruptura a mais.
A reação de abatimento não costuma ser tão prolongada. Depois de dois ou
três meses, a pessoa começa a dar sinais nítidos de que começa a recuperar-se da
quebra sofrida. Certamente os efeitos negativos de uma perda significativa podem
durar anos e inclusive estender-se para toda a vida, mas apenas ficam como feridas
que doem quando mexidas e cutucadas. Espera-se que o indivíduo enxergue com
melhor disposição as coisas à medida que se distancia dos eventos geradores de
seu quarto-minguante. Esse seria o processo normal. A capacidade para refazer-
se de peripécias que abalam nosso projeto de mundo faz parte dos recursos básicos
que uma pessoa dispõe para enfrentar a vida.
Contudo, nem sempre é possível curar-se de algumas vicissitudes. Não por
simples fraqueza nem por estar mal dotado para encarar as dificuldades. Como no
caso mencionado acima, o sujeito pode passar por todo um período, anos inclusive,
caracterizado pelo malogro pessoal e o desencontro. Não acertar em propostas
decisivas pode ser motivo suficiente para minar a estrutura mais bem construída.
Seria vã arrogância afirmar que alguém é imune a fracassos reiterados. Já vi
sujeitos basicamente autoconfiantes que se foram lentamente quebrando à medida
que não acertavam em suas vidas. ·
Lembro-me de um administrador de empresas, homem otimista e bem
estruturado. Ficou desempregado, lá pelos anos 83-84, quando a recessão era
brava no Brasil. Os três primeiros meses os passou intranqüilo. Aos seis meses a
intranqüilidade transformou-se em nítida ansiedade. Quando ia pelo oitavo mês
sem conseguir um emprego na sua área, começou simplesmente a ficar desysperado.

268
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

"Flutuava entre a angústia e a depressão. Era algo insuportável. Cheguei a


sentir-me um completo incompetente. Eu, que há um ano me sentia um cara de
primeira linha, agora me s~ntia pouco menos que um verme sem destino. Foi algo
progressivo, cada mês que passava era a descida de um degrau a mais para os
porões do desvalor. Quando assinei um novo contrato de emprego, no fmal do nono
mês, senti que renascia, como se reconquistasse meu direito a uma vida decente.
Mas não pense que me recuperei de imediato. Não; fiquei pelo menos dois meses
bastante receoso: temia não me sair bem em minhas tarefas, temia não agradar
aos chefes ou entrar em atrito com algum colega. Foi duríssimo. Ainda não superei
completamente aquela queda."

A neurose depressiva

Configuração vivencial característica


Estados de ânimos depressivos - insisto nesse ponto - passageiros e
circunstanciais, todos podemos experimentar. Uma reação de abatimento mais
·prolongada também é passível de acontecer a qualquer um. Isso dependerá da
importância atribuída à perda.
Outra coisa é apresentar traços caracteriais que apontem para uma visão
depressiva do mundo. Quando falo de traços caracteriais, estou me referindo a
determinadas atitudes e a constantes vivências, que sensibilizam o sujeito em certa
direção, levando-o a perceber e sentir a realidade de uma maneira característica e
predominante.
Entendo aqui caráter como uma constante vivencial, com as atitudes e condutas
dela decorrente. Não é mera formação reativa ou defensiva- como costuma ser
entendido em psicanálise. Pode implicar táticas e manobras que o sujeito usa para
manipular seu ambiente e para conseguir determinados objetivos. Contudo, o
fundamental são as vivências dominantes que norteiam sua visão do mundo.
Uma feição de coitado pode ser uma tática para conquistar apoio, mas é
provável que não seja apenas isso- pelo menos nos depressivos. Seguramente
corresponde, nesse caso, a um sentimento muito arraigado de ser um desvalido,
um desgraçado.
Mais que de caráter, poderíamos falar de uma configuração vivencial
característica. Entendo que para podermos falar de neurose depressiva é preciso
que a configuração implique os seguintes componentes:
• O sujeito deve apresentar uma baixa auto-estima.
• Deve carregar um sentimento prolongado de malogro pessoal.

269
O inquilino do imaginário

• Relacionadas com a baixa auto-estima, essas pessoas apresentam uma


autoconfiança reduzida - o que as leva a ser inseguras, procurando por
esse motivo modos de relacionamentos que diminuam esta ausência de
segurança básica.
• Como conseqüência de todo o anterior, essas pessoas apresentam uma
tendência a transitar por circuitos fechados e viciosos, isto é, têm certa
incapacidade para sair de situações conflitantes e de impasses, transitando
por roteiros que obstruem seu desenvolvimento correto, embora possam
dar-lhes uma aparente segurança provisória.
Esses quatro traços são próprios do quadro neurótico, qualquer que seja o tipo. O
distintivo do depressivo está centrado no sentimento de perda ou de privação de um
bem; esse sentimento está associado a uma desmotivação generalizada (que nos casos
extremos chega a paralisar o sujeito, inibindo qualquer iniciativa, e nos casos benignos
o leva a urna apatia), a uma redução do contato interpessoal- isolamento -, a urna
queda da vitalidade (que geralmente inclui a idéia e a vontade de morrer; no estágio
benigno aparece a idéia da morte como algo que se teme; no estágio acentuado ou
neurótico aparece a vontade de morrer, que pode terminar em suicídio).
Além das vivências apontadas acima, ainda podemos indicar outras igualmente
negativas. Entre os sentimentos que configuram o quadro depressivo destaca-se a
tríade sombria que atormenta essas pessoas: o tédio, o sentimento de desvaler e,
com freqüência, a culpa.

O tédio
O tédio é um sentimento que costuma aparecer em boa parte dos depressivos;
muitos depressivos não se queixam de outra coisa a não ser de tédio. Como se a
vida fosse para eles um grande e persistente bocejo. Não é surpreendente essa
forma de apreender-se na situação que estão vivendo. Desmotivados, sem tesão
pelos aspectos mais vitais da realidade, encurralados nas quatro paredes invisíveis
do isolamento existencial (paredes que às vezes não são tão invisíveis assim),
muitas vezes sem motivos reais e suficientes para sentir-se infelizes (alguns
depressivos são sujeitos bem-sucedidos no plano material e com logros apreciáveis
em mais de um campo), só podem experimentar tédio. O tédio é a resultante de
toda essa constelação vivencial.
Quando uma pessoa acusa tédio persistente, admitindo que em geral não tem
motivos maiores para queixar-se da vida - salvo as mazelas inevitáveis que
perturbam a todos os mortais-, podemos suspeitar de que se trata de uma depressão
mascarada, que o sujeito controla mediante racionalizações ou simplesmente por
uma falta de verdadeira intimidade consigo mesmo.
Outra forma de depressão mascarada é o pessimismo. O pessimista é um
camarada que sempre descobre o lado ruim e negativo de uma proposta, de um

270
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

empreendimento, de uma iniciativa. Alguém disse que um bom teste para detectar
se uma pessoa é pessimista ou otimista é a prova do copo de água. De fato,
quando pedimos a um sujeito que julgue quão cheio está um copo de água cujo
líquido está até a metade, o pessimista nos dirá "que está quase vazio", enquanto o
otimista julgará "que está quase cheio". ·
O pessimista pode ser um cidadão próspero, bem-sucedido nos itens
convencionais do sucesso, mas mesmo assim, ainda reconhecendo sua boa fortuna
em aspectos significativos, continua ressaltando a irremediável caducidade das
rosas - não sua beleza nem seu perfume.
Eu diria que o chamado temperamento melancólico (assim chamado já por
Hipócrates) costuma apresentar-se seguindo três linhas vivenciais: uma tristeza
recorrente, um pessimismo por vezes até bem-humorado (lembremos que todo
grande humorista é um melancólico) e uma notória tendência para ficar cutucando
as feridas - além de um sentimento de malogro pessoal, apesar de todas as
realizações positivas. Apesar de todos estes traços inconvenientes, essas pessoas
sabem encarar suas obrigações, transformando inclusive suas deficiências em outras
formas de eficiências.

O desvalor
O desvalor é outro sentimento comum. Na reação depressiva não está
presente no início. Seu surgimento depende das vicissitudes do percurso. Se o
desencaminhamento se prolonga, com todo o infortúnio que isso implica, termina
por instalar-se. Frustrado e bastante desligado do círculo da vitalidade convidativa,
o sujeito percebe seu abandono e sua falta de possibilidades; aí surge a percepção
de que é a própria vida que carece de um valor intrínseco. Pode reconhecer seu
valor em alguns aspectos parciais (é um cidadão competente na sua profissão, até
afortunado em certos aspectos), mas essa verificação é de tipo intelectual - não
afeta a esfera afetiva da pessoa, esfera em que se origina sua problemática.
Virgílio, um professor de línguas que atendi por estar passando por um período
prolongado de declínio anímico, me escreve: "O que posso dizer-lhe? Me dá a
impressão de que a vida perdeu seu valor intrínseco. Minha vida, é claro. Antes
acreditava na minha vida (inclusive em qualquer vida humana) como algo sagrado,
que eu precisava preservar, cultivar e cuidar. Nada mais precioso que a vida: era a
fonte de tudo o que existia, a fonte de todo valor. Algo se perdeu e minha própria
vida se esvaziou de seu sentido. Agora ando por aí, como barco sem rumo, sem
importar-me muito para onde estou indo. Só o que sei é que estou indo para o nada.
Sentindo assim a realidade do mundo, que valor podem ter as coisas e os tristes
eventos que por acaso eu protagonizo? Agora vivo como por detrás de um vidro
escuro, num longo, longo crepúsculo e com a expectativa de uma noite bem mais
escura ainda. Apenas a música me acompanha: aí ainda existe uma vaga e longínqua

271
O inquilino do imaginário

esperança. Esperança de quê? Não sei. Talvez nem sequer seja a esperança.
Simplesmente me esqueço de que existo; me esqueço de que sou um fracasso
irremediável; me esqueço de que ninguém se importa comigo (nem sequer Jesus
Cristo, nem a puta que me pariu). O senhor se importa? Seria engraçado que se
importasse, não é verdade? E ainda que se importasse, que diferença faria? O
senhor me escuta uma ou duas horas por semana, me acompanha um pouco durante
estes breves momentos e logo se esquece de mim. Como poderia ser de outro
modo? Para não esquecer-me teria de amar-me, mas o amor é a coisa mais rara
que existe na face da Terra. Nem sequer nascemos por amor: somos gerados
pelo desejo, não pelo amor. E assim, tudo começa errado. No fundo você pensa
igual a mim, só que você não liga para isso, não é verdade? E a mim me dói esta
constatação. Eu sou um fraco. Você é forte, os outros são fortes, pois aceitam a
- vida em toda a sua rudeza, em toda a sua desolação e crueldade. E eu não consigo.
Isso é tudo doutor!!!".
Agora vivo por detrás de um vidro escuro, no abandono e na desolação, no
desvalor e na impotência, no fracasso e no esquecimento (na solidão: ninguém se
importa comigo): isso é o que me expressou Virgílio.
Quando uma pessoa chega a um dado grau de afundamento, não apenas
ficam em questão os relacionamentos interpessoais- o simples contato, a amizade,
o amor. Também se duvida de um tipo de relacionamento de ajuda, como é a
relação terapêutica. Duas atitudes costumam manifestar-se em relação ao
terapeuta. Uma, de dependência e de espera de um toque mágico que o tire do
estado de prostração: o sujeito vê o terapeuta como depositário do poder, da
cordialidade e do apoio. Outra atitude caracteriza-se pela desconfiança e dúvida
com respeito à disposição e às possibilidades de qualquer tratamento, vendo no
terapeuta um mero agente externo que se arroga as prerrogativas de um médico
de almas.

A culpa
O sentimento de culpa é outra temática afetiva que dilacera o espírito de
quem percorre as vias descendentes da melancolia (outro nome para designar esta
forma vivencial quando adquire as feições do neurótico). Não é um sentimento
gratuito, que emanaria de uma suposta falta inconsciente. Não. Via de regra, a
culpa tem sua razão de ser: o sujeito cometeu uma falta, um erro, ou de alguma
maneira não soube cumprir com seu dever. Não se pense que todo sentimento de
culpa se direciona pelo lado da depressão. Há uma culpa que emana da pura
consciência da responsabilidade - consciência que nos adverte dos "maus passos
e dos desvios" que amiúde caracterizam nossa caminhada.
A culpa oriunda do mero senso de responsabilidade pode até perturbar,
mas geralmente é o próprio sujeito quem procura uma reparação que o libere

272
Detrás de um vidro escuro. As vivênCias dominantes na depressão

do mal que por acaso causou. Na culpa depressiva, a pessoa atormenta-se por
infrações cometidas, mas que rara vez pode reparar, ora porque são
irremediáveis, ora porque são faltas que terminaram por prejudicar o sujeito,
principalmente.
VIrgílio: "Sou culpado, sim. Irremediavelmente culpado. Fui estúpido, cego,
não percebi a tempo o que estava acontecendo com minha mulher (a esposa morreu
num acidente de carro logo após o casal ter tido uma forte discussão, que não era
a primeira, pois estavam passando por um período de desentendimento). Deixei
meus filhos sem a mãe (um casal de 8 e 6 anos) e terminei perdendo-os com toda
justiça, já que eles optaram por ficar com os avós. Não tinha nada para alegar em
meu favor. Não fui bom pai. Agora, quando vejo meus filhos a cada 15 dias, só
sinto tristeza: eles também perderam tudo: perderam suas raízes, seu contexto
familiar, o espaço onde cresceram, a escola onde estudavam. Sei também que não
mereço o carinho deles. Às vezes gostaria tanto que me perdoassem, que tudo o
que aconteceu tivesse sido um simples acidente e que eles estivessem comigo;
mas não, escolheram ficar com os avós".
O sentimento de culpa, ou simplesmente a culpa, é mais comum do que se
poderia pensar numa primeira instância. De fato, quase todos nós somos culpados
de ou por algo. Isso é assim em razão de que somos responsáveis. Responsáveis
pelo que fazemos e responsáveis por nossa vida. Como seria muito pesado carregar
todos erros, pecados, desvios e más ações que protagonizamos ou das quais
participamos de alguma maneira, precisamos aliviar nossa culpa colocando a
responsabilidade por eles em outros agentes. Agimos de modo incorreto porque
fomos enganados, porque a sorte, o destino e o azar nos jogaram um lance perverso.
Em outras palavras, justificamos a culpa esquivando-nos da possível respon-
sabilidade que nos cabe. É o que se conhece com o nome de racionalização: qualquer
aparente razão nos serve de alívio. "Menti para não magoar você"; "Aceitei o
convite de outro homem porque você não ligava mais para mim", "Falei mal, difamei-
o, porque estava com raiva de você; não é que eu pense isso de você. Era minha
raiva". São escusas, desculpas, mas que operam como supostas razões suficientes.
"Me sentia muito só, por isso aceitei a companhia da primeira que apareceu."
"Nesse emprego ganhava muito pouco: me vi obrigado a roubar certas mercadorias
para aumentar meu ganho" - e mil escusas do mesmo gênero.
Ser autêntico é justamente assumir por inteiro a responsabilidade do que nos
compete, sem apelar para nenhuma escusa ou álibi que amenize nossa culpa. Todas
as expressões de desculpa mostradas acima podem ser colocadas de um modo
diferente, que revelem a verdadeira natureza dos atos julgados errados. "Sim, aceitei
o convite dessas duas amantes; é verdade. Não consegui resistir à tentação. Sabia
ao que estava me expondo. A única coisa que lhe posso dizer agora é que sinto por
nós, porque ainda me sinto ligado a você. Não tenho desculpa."

273
O inquilino do imaginário

Contudo, a culpa não se relaciona apenas com os outros. Somos culpados


perante nós mesmos. Somos responsáveis pela nossa vida - não importa se o
acaso ou o destino desempenharam algum papel nas vicissitudes, boas ou más, de
nossa história. A mim incumbe cuidar de minha vida. Se me desencaminhei
desaproveitando as oportunidades que me foram oferecidas por falta de iniciativa
e de coragem, é minha unicamente a responsabilidade. Posso ter algumas
atenuantes, "vivi numa época conturbada demais nos planos econômico e social",
mas tudo isso não me exime da orientação, do valor e do sentido que tomou minha
vida.
Talvez esta seja a forma mais sofrida que a culpa adquire: sentir-nos culpados
de não ter sabido dar conta de nossa vida, de ter errado o caminho, de ter nos
descuidado em aspectos essenciais. O que acontece não apenas com os depressivos,
nos quais esse sentimento se exacerba. Pode acontecer com qualquer um, ficando
a culpa como um lamento surdo que o indivíduo escuta em seus momentos de
silêncio ou nas horas de penumbra. É a chamada voz da consciência que nos ·
adverte que estava em nossas mãos ter retificado o rumo ou conseguido os objetivos
que alguma vez almejamos, mas que nossa negligência ou falta de disciplina não
permitiram.
Essa forma de culpa não reveste a feição do neurótico; não necessariamente.
A culpa neurótica exige castigo; castigo que o próprio sujeito tenta infligir-se;
ou implica um tormento que dilacera continuamente a pessoa. É neurótica porque
aflige sem levar a uma saída adequada, nem sequer a uma justa reparação; mantém-
se na órbita do círculo vicioso, do que se repete sem criatividade.
Embora a culpa existencial (assim vou chamar esse sentimento que emana
do senso de responsabilidade) não atormente de um modo neurótico (de maneira
estéril e repetitiva) "como um espinho na carne" (como gostava de dizer
Kierkegaard), por vezes provoca no sujeito certa tristeza "pelo que poderia ter sido
e não foi".

A tristeza
A tristeza costuma estar presente, igualmente, no ânimo depressivo, embora
na depressão intensa o que se experimenta seja uma espécie de vazio, algo
que o próprio agente qualifica como "uma incapacidade para sentir". "Não
sinto nada", afirma uma mulher com forte tendência para o abatimento, "apenas
tudo parece-me vazio e desolado, como se pairasse em todas as coisas uma
enorme indiferença; tudo parece-me longínquo e amortecido. Nem sempre ·é
assim; às vezes me sinto muito triste, triste e emotiva. Não sei o que é pior, se
esta apatia, como se fosse espectadora distante do que acontece, ou se a
tristeza, com a dor, a necessidade de chorar e a sensação penosa de que nada
tem jeito."

274
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

Alguns autores afirmam que quando ·o depressivo consegue sentir tristeza,


ainda se encontra num estágio de bom prognóstico. Pensam que o esvaziamento
dos afetos e o fechamento numa espécie de cripta cinza é bem pior, pois nesse
caso o sujeito mostra escassa capacidade de reação, desligamento e acomodação
à sua prostração vital. De fato, todo esvaziamento afetivo é uma forma de morte
simbólica ou uma forma de refúgio numa cripta fúnebre. Vista a coisa desta maneira,
a tristeza é um modo de estar vivo, de experimentar dor por nossa solidão.
Mas em que consiste a tristeza? No quadro anterior vimos que a tristeza e
depressão têm alguns elementos em comum, apresentando também suas diferenças.
Numa primeira aproximação, a tristeza nos parece mais regional e parcial que a
depressão, que seria mais global, comprometendo todas as áreas da existência, ao
menos num grau mínimo. Por estar mais relacionada com objetos ou temas
específicos, alguns autores afirmam que a tristeza é apenas um sentimento e não
um estado de ânimo.
Tentaremos discernir como surge a tristeza; talvez por essa via possamos
perceber sua configuração vivencial.
Quando fracassamos num empreendimento, é comum que experimentemos
raiva; logo podemos sentir-nos abatidos, com o claro sentimento de ter perdido
uma oportunidade de sucesso em algum sentido. Reconhecemos o nosso erro e
lamentamos a nossa atuação. Estamos tristes.
Quando vamos até o aeroporto para nos despedir de um ser querido - um
filho que parte para um outro país à procura de um ambiente mais promissor -,
nos emocionamos e até choramos sua partida. A partir desse dia sentimos a sua
ausência e lamentamos a sua falta como algo muito significativo em nossa vida.
Estamos tristes.
Às vezes nos lembramos de dias felizes que já tivemos em companhia de
alguém muito especial; isso já não existe mais; é só memória e vozes de pássaros
fugindo para leste; sorrimos para as imagens que ainda se refletem no fundo do
espelho e terminamos por assoviar uma velha melodia. É a saudade, o lado amável
da tristeza.
Cada vez que escuto a "Canção da Terra" (de Gustav Mahler), em especial
a parte cantada, o suave lamento dessa voz convoca todos os lamentos que, me
parece, nunca proferi, ou, se o fiz, ninguém escutou. E o entardecer de meu ser se
anuvia.
"Venho desde teus braços, não sei para onde vou. Estou triste, mas sempre estou
triste... Desde o fundo de ti uma criança triste como eu nos olha, e eu lhe digo adeus."
O poeta separa-se da mulher amada e diz adeus ao que poderia ter sido e não foi.
Perda, separação, nostalgia, fechamento de possibilidades: estas são as
principais fontes da tristeza. A tristeza brota de uma quebra e de uma ruptura nos

275
O inquilino do imaginário

laços que sustentam o nosso ser anímico. A vivência sofrida dessa ruptura anímica
é um sentimento. E justamente desse sentimento é que se vai organizando, à medida
que ganha terreno no mundo do sujeito, o processo depressivo.
O primeiro é a tristeza, que nos aflige e dói como um corte feito na carne
viva. Quando perdemos algo (um braço, um bem físico) ou alguém, podemos
revoltar-nos e até cair no desespero. Podemos chorar e gritar nosso infortúnio.
Essa é uma reação muito compreensível.
Depois do desespero, já passado o período de agitada tormenta, entramos na fase
da tristeza. Em silêncio, de um modo bastante mais discreto, começa o luto- o momento
sombrio de nosso sofrimento; como sentimento, é presença de uma ausência que rompe
o nosso senso de apego e de integridade: perdemos algo que nos era essencial.
Dependendo da magnitude existencial da perda e dos próprios recursos do sujeito para
superar seu infortúnio, a tristeza pode levar a um processo depressivo ou não.
Se a pessoa consegue circunscrever a soma de sofrimento à ruptura e à
perda parcial, então é possível que se mantenha por um tempo variável como um
estado disfórico, superável pela própria dinâmica da vida. Porém, se o estado
começa a propagar-se por outras regiões do ser anímico, levando o sujeito a um
desânimo generalizado, entramos num possível processo depressivo.
Quando estamos tristes, ainda permanecem intactos nossos recursos egóicos.
Tomamo-nos sensíveis e vulneráveis, mas ainda conservamos a capacidade de
enfrentar as dificuldades. Tendemos a isolar-nos ou a buscar companhia, segundo
seja o nosso temperamento (introvertido ou extrovertido). Se a perda ou malogro
não alcançou provocar feridas egóicas, deixando o nosso autoconceito fora de ques-
tão, é provável que vamos lentamente aceitando o motivo da dor e distanciando-nos
de seus efeitos. A tristeza que nos provocou a ruptura com um amigo ou a perda do
emprego passam para segundo plano quando vemos que ninguém é insubstituível e
quando conseguimos um cargo similar ao perdido. Ninguém é insubstituível é muito
dizer, mas, em grande medida, verdadeiro. Só no amor a pessoa amada toma-se
única e insubstituível.

Outras manifestações do estado depressivo neurótico

Até aqui centralizamos nossa exposição nas manifestações da área afetiva.


Mas seria muito parcial nossa visão desta configuração vivencial se deixássemos
a impressão, no hipotético leitor, de que esta é a única dimensão das aflições. Na
verdade, são todas as dimensões da existência as que são afetadas nesse quadro.
A área afetiva pode ser a principal, mas isso não significa que se limite a esse
plano. Seria muito estranho até se assim acontecesse, pois não esqueçamos de
que somos uma totalidade em movimento.

276
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

No resumo seguinte, considerei as manifestações mais características


apresentadas pela pessoa deprimida quando já entra no círculo da neurose- isto é,
quando já há todo um histórico no sujeito e certa vulnerabilidade que o predispõe
para o afundamento nos períodos de crise, com períodos alternados de leves
bonanças e de baixa anímica.
Vemos nessa síntese que a depressão é um modo de ser-no-mundo,
isto é, um estado de ânimo predominante que afeta todo o universo do sujeito.
Todas as esferas, da corporal até a da dimensão espaço-temporal, estã.o niti-
damente caracterizadas na linha do encolhimento, do abatimento e do desvalor
existencial.
O sujeito entra num clima que lentamente vai impregnando todo seu ser; esse
clima pode começar com uma leve baixa da vitalidade e da motivação, até chegar
a vontade persistente e quase obsessiva da morte. Passado certo estágio, a idéia
da morte começa a adquirir forma. Essa idéia amedronta o indivíduo; o amedronta
e ao mesmo tempo o atrai. Com sua morte sabe que poria fim a seu sofrimento;
isso por um lado; por outro, matando-se castigaria a si mesmo (e inclusive puniria
os que não o souberam compreender), pois não esqueçamos de que em todo
depressivo há uma forte dose de agressividade voltada contra ele próprio. Nele há
uma espécie de necessidade de castigar-se para assim redimir-se de sua culpa e
de seu fracasso. Essa é a razão da feição masoquista da forma de agir e sentir que
esses agentes nos provocam. Não será demais lembrar que muitos depressivos se
suicidam.

A depressão e a morte
Eu diria que o tema central da depressão é a morte. É verdade que o depressivo
vive o abandono e a indigência, o fracasso e a impotência, a solidão e o vazio
cinzento, mas o que está patente em tudo o que percebe é a fisionomia desfigurada
da morte. Heidegger ensinava que o homem é um ser-para-a-morte. Nem sempre
temos consciência desta verdade; como tantas outras, a escamoteamos. Só após
os 40 anos percebemos que o tempo passou, que nossa vida passou para além da
metade de seu percurso; aí começa nossa preocupação com a finitude e o fim. É
certo que não faltam episódios que nos lembrem nossa condição mortal; já sofremos
um acidente com risco de vida, pessoas queridas foram conduzidas ao cemitério,
uma enfermidade nos revelou as fraquezas do corpo. <

Contudo, tardamos bastante em admitir que viver implica igualmente morrer.


Que cada inspiração se acompanha de uma expiração (não esqueçamos de que
expirar é usado como sinônimo de morrer). Quase sempre vemos a morte como
um evento que acontece aos outros.

277
O inquilino do imaginário

Quando entramos numa fase depressiva, devagar, passo a passo, nos


encaminhamos na direção de um círculo final em que parece residir apenas a
morte. Primeiro é o cansaço e a desmotivação; logo entramos na fase do
desligamento, do isolamento e da tristeza; nem sempre paramos aí; podemos deslizar
para o vazio, o autodesvalor, a culpa e a vontade de morrer.
Poderia citar aqui muitos testemunhos. Alguns combinam contra si a raiva e
a obsessão do suicídio. Outros sentem a degradação do corpo, sua decomposição
no futuro cadáver. Alguns experimentam a vergonha do abandono de um corpo
exposto ao olhar impiedoso e implacável de curiosos alheios ao drama do suicida.
"Agora, a morte havia ocupado o lugar do sangue. Ela se esparramava
à vontade em minha mente.
"A morte, em certo sentido, era mais aterrorizante do que o sangue.
Tinha sempre seus véus marrons que se arrastavam nos recantos dos meus
pensamentos, tomando-os vagos, confusos, incertos. Tinha sempre sua foice
luzidia, bem afiada, feita para cortar com precisão o que bem entendesse,
sem explicação. Tinha sempre sua beleza, sua agilidade, sua sutileza, que
faziam com que ela me atraísse, com que eu às vezes tivesse vontade de lhe
dar a mão, para que ela me conduzisse pelo domínio do conhecimento, da
clareza, da tranqüilidade. Qualquer que fosse a época da qual me lembrava,
a morte sempre tivera um lugar importante em minha cabeça.
"Tinha medo dos outros, medo de cair numa calçada quando estivesse
andando, e de lá expirar na poeira da cidade. Tinha medo de exalar minha vida
diante do céu, que eu veria uma última vez acima dos edifícios, muito longe,
enquanto os transeuntes parariam, a certa distância, para ver uma mulher morrer.
Entre eles e eu haveria um círculo de asfalto constelado de cuspes, de guimbas e
de xixi de cachorro. Tinha medo de seus olhares, medo t!a morte que me
propunham, que a presença deles me impunha, e da qual nada entendia. Via meu
corpo já indisponível, inerte, as pernas meio encolhidas, os braços largados, os
olhos abertos fixando a bela imensidão muito além dos telhados, muito além dos
pássaros, muito além dos aviões. Não conseguia mais gritar para eles: 'Não
fechem meus olhos, não me toquem, saiam daqui, não faço parte do seu mundo!'.
Estava entregue a eles, à morte deles, e isso me aterrorizava. "
(Marie Cardinal - Palavras para dizer)

A configuração depressiva e sua expressão nas outras


dimensões da existência
A depressão é uma configuração vivencial total; em conseqüência, afeta todas
as dimensões da existência, não apenas a afetividade. No esquema a seguir, resumo

278
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

as principais manifestações depressivas nas oito dimensões constitutivas do ser


humano. Essas manifestações estão nitidamente presentes na segunda fase do
processo depressivo (observe-se o quadro comparativo na página 268). Quanto
mais avançado é o processo, mais afetado é o mundo do sujeito. Todas estas
temáticas caracterizam o clima do chamado neurótico depressivo. No melancólico
-que se assemelha ao depressivo em alguns pontos, mas se diferencia em outros
-, estas manifestações estão atenuadas ou ausentes (por exemplo: rara vez
desenvolve um autoconceito negativo e dificilmente se desliga de sua práxis).
Lembremos aqui três grandes melancólicos: William James, Jorge Luis Borges e
Rainer Maria Rilke.

As dimensões existenciais básicas


da configuração depressiva

Dimensão corporal
a) O corpo perde ou diminui seu caráter instrumental, sendo vivido como
carga e como fonte de preocupações. Aparecem dores e supostas doenças
(hipocondria).
b) Imagem corporal negativa.
c) Andar encurvado, encolhido, frouxo- expressão que traduz o movimento
da própria existência do sujeito.
d) Expressão geral de apagamento e de fadiga.
e) Diminuição do apetite sexual e das necessidades de ingestão; perturbações
do ciclo hípnico.
f) Em geral, descuido da aparência.

Dimensão interpessoal
a) A comunicação toma-se problemática.
b) O sujeito tende a isolar-se, fechando-se em si mesmo.
c) Tende a desligar-se dos apelos e das solicitações sociais (questões
econômicas, históricas, coletivas) ou as considera sem solução.
d) Percebe-se sem amigos ou questiona o valor da amizade.

Dimensão da práxis
a) O indivíduo tende à passividade, deixando de lado ou descuidando de suas
obrigações e compromissos ou descuidando deles.

279
O inquilino do imaginário

b) Fica dominado por um forte sentimento de incapacidade, prostração (a


chamada inibição depressiva) e impotência. Quando o sujeito apresenta
um temperamento melancólico, mantém um ritmo normal ~e atividade.
c) Tende a perder o sentido de sua práxis, assim como perde o sentido de
sua vida.

Dimensão motivacional
a) Notória perturbação das necessidades básicas (sono, comida, sexo).
b) Desmotivação generalizada (falta de interesse, desvitalidade).
c) Perda do sentido da vida._

Dimensão afetiva
a) Predomínio dos sentimentos negativos em todas as esferas.
b) Fortes sentimentos de impotência e de indigência, de solidão e de abandono,
de tédio e de vazio.
c) Presença de sentimentos de autocomiseração e de culpa.
d) Desprezo de si e vontade de morrer. Auto-agressividade.
e) Predomínio de um clima emocional agitado, mas por vezes aparece o vazio.

Dimensão valorativa
a) Quebra e descrédito de todos os valores, salvo aqueles que traduzem a
negatividade (desintegração, decomposição, queda, destruição, morte).
b) Na alternativa melhor, o bem se coloca no outro (nas outras pessoas).
c) O sujeito tende para certo niilismo e, nos casos menos autodestrutivos,
para um ceticismo irônico.

Dimensão espaço-temporal
a) O sujeito tende a se refugiar no passado, se desliga do presente e se
desinteressa pelo futuro (perda das possibilidades).
b) O espaço esvazia-se e as coisas se tomam estranhas. O mundo perde seu
brilho e seu cromatismo.

Dimensão psicológica
a) Há uma quebra do eu, que renuncia a sua função de agente e coordenador
das diversas dimensões e planos da existência.

280
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão

b) O sujeito empareda-se num cotidiano frustrante, perdendo seu acesso ao


plano imaginário- que poderia oferecer-lhe algumas possibilidades de
escape e de compensação.
c) Autoconceito negativo.
d) Esvaziamento da própria identidade por negação da maioria dos
referenciais.

Notas
1) Escritos e declarações de clientes em psicoterapia
2) Idem.
3) Para um enfoque mais clássico, recomendo o livro de Franscico Alonso Femandez: IA
Depresión y su diagnóstico (Ed. Labor, Espanha, 1988).
4) O livro de Marie Cardial Palavras pará dizer é autobiográfico, mas centralizado em seu
transtorno psicossomático: um fluxo menstrual contínuo.

281
Capítulo 13

SOBRE A LOUCURA
A impossibilidade de conviver com
os outros e de adaptar-se
à realidade

"Lembra-se das folhas de outono? Dos dias anuviados e do riso das crianças? Eu
me lembro. E se lembra quando você brincava com os cachorros no pátio de sua
infância, enquanto nossa mãe cantarolava uma canção? Eu me lembro. E se
lembra do dia em que havia um monte de gente rezando em torno de um féretro,
enquanto nossa mãe chorava? Por acaso quem estava no caixão não era nosso
pai? Não se lembra? Eu me lembro. "

O primeiro contato com pessoas internadas

Q
uando fiz a cadeira de Psicopatologia nos anos de minha preparação para
psicólogo ( 1963-68), lembro que o professor usava diretamente os pacientes
internados no hospital onde era médico-chefe para "assim ilustrar melhor
as aulas teóricas sobre perturbações das funções psíquicas".
Nossa tarefa consistia em entrevistar, em pequenos grupos, um ou dois
internados por semana. O professor entendia que dessa maneira nos iríamos fa-
miliarizando "com a doença mental em todos os seus tipos, desde o louco episódico
até o crônico irrecuperável".

283
O inquilino do imaginário

Tenho bem gravado o primeiro dia que entramos no setor onde os internados
permaneciam reclusos (1965). A maioria de nós, estudantes de um terceiro ano,
muito crus ainda, tinha a imagem que circula por aí nas ruas do preconceito, que
faz do louco um ser bizarro, imprevisível e ... ameaçador.
Quando entramos no setor A do hospital, eu até me surpreendi; observei que
a maioria do pessoal internado mostrava um comportamento bastante tranqüilo e
sociável; todos eles pareciam mui razoáveis, sentados em poltronas, quietos ou
folheando alguma revista. Numa primeira impressão ninguém diria que se tratava
de uma população diagnosticada como psicótica. Alguns se aproximaram; era
evidente que queriam contato; outros permaneciam sumidos em seus pensamentos
ou pareciam adormecidos, provavelmente sob os efeitos de alguma droga calmante.
Nós, as visitas, estávamos bem mais agitados que eles.
Nada de que se horrorizar; será que haviam preparado tudo aquilo? Onde
estavam os catatônicos, com suas posturas extravagantes e sua famosa rigidez de
autômatos? Onde estavam os hebefrênicos, com seus riscos tolos e o olhar fixo
não se sabe em que ponto magnético? Havíamos nos preparado para impressões
fortes, esperávamos ver cenas terríveis da tolice e da insensatez humanas, e apenas
estávamos observando um grupo esparso, sem maiores contatos entre si, de gente
aparentemente calma, talvez algo ausente, mas nada muito diferente do que se
encontra nas grandes salas de espera dos consultórios médicos de hospitais
estaduais. Consultamos uma enfermeira. Por acaso toda essa gente eram os ... ?
Sim, sim, eram os pacientes que estavam na fase de recuperação. Ela nos explicou
que havia três setores. Estes eram os que já tinham passado pela fase pior e
tinham um prognóstico positivo. Logo poderíamos ver os que se encontravam numa
fase de surto e de crise; aí nos enumerou os quadros que lá observaríamos -
esquizos, PMD, alguns alcoólatras. A coisa pior viria no pavilhão C; aí encon-
traríamos os que não tinham esperança, os crônicos, os que permaneciam anos e
anos no manicômio, abandonados por suas fanu1ias- eram os dementes, os epiléticos,
os débeis mentais enlouquecidos; insinuou que aí teríamos tudo o que os leigos
imaginavam dos orates.
Confesso que essa informação nos reanimou bastante; nós andávamos em
grupinhos de 3-4 colegas e nos demos olhadas de cumplicidade, comunicando-nos
discreta e educadamente nossas expectativas. O professor tinha insistido que a conduta
de um futuro profissional da área teria de ser a de uma pessoa sensata, acostumada
a lidar com as piores misérias da condição humana. Nada de reações emocionais
próprias de adolescentes e de leigos simplórios. Tínhamos que nos comportar como
cientistas, atentos observadores ainda nas situações mais extremas.
Foi uma recomendação pertinente, sem dúvida; pelo menos nos obrigava
a manter as aparências; nos advertia de que tínhamos de fazer um aprendizado
de atitudes apropriadas. Mas ainda dominavam em nossas mentes as repre-

284
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

sentações tradicionais, e não conseguimos esconder nossa excitação perante


a perspectiva imediata de ter um contato cara a cara com gente que habitava
outros mundos.
Assim que passamos ao setor B não havia como se enganar: aí estavam os
"verdadeiros loucos"; não eram muitos, talvez uns 20-25, todos numa grande sala
de estar. Na sala A tínhamos conversado brevemente com duas ou três pessoas;
havia sido uma conversa normal, nada que nos levasse a pensar que estávamos
tratando com ex-delirantes. Insisto: nossos conhecimentos não passavam de algumas
noções superficiais e preliminares; acredito que éramos mais leigos que o porteiro
do hospital. Havíamos tido umas três aulas sobre psicopatologia geral. Naquela
época, eu pensava que o conhecimento certo iria obter na interação direta com os
internados; não é que desconfiasse da validade das teorias, mas ainda não tinha
claro que os fatos e os dados sem uma teoria que os ilumine significam muito
pouco; permanecem opacos.
Nínguém de nós conseguiu dissimular sua reação. As colegas mulheres
agruparam-se como fechando fileiras para evitar um possível ataque. Sentíamo-
nos algo mais aliviados quando apareceu o mestre e seu ajudante. Eles eram
personagens conhecidos de toda aquela turma, embora a maioria deles não se
apercebeu de sua presença. Talvez para proteger-me e também para poder observar
melhor o que ali estava acontecendo, procurei um canto e fiquei olhando tentando
compreender alguma coisa do que ali se passava.
Não era tanto a singularidade da conduta daquelas pessoas o que mais me
impressionava. Eram pessoas esquisitas, sem dúvida; esquisitas inclusive quando
estavam quietas, em pé ou sentadas. Imagino que isso não me impressionou tanto
em razão de que provavelmente já esperava esse tipo de manifestação. O que me
comoveu foi o isolamento que existia em todo esse conjunto de pessoas. Estavam
ali, provavelmente compartilhavam o mesmo quarto de dormir, a mesma mesa,
transitavam pelos mesmos corredores, mas não se comunicavam entre si. Observei
que quando um deles se detinha para falar com outro, o interpelado não mostrava
maior interesse em conversar. O pior era que o interpelante tampouco parecia
importar-se o mínimo com isso. Continuava falando sozinho ou pegava um colega
da escola para colocar alguma coisa; colocava sem nenhum preâmbulo social,
como se o ocasional interlocutor já estivesse por dentro de suas preocupações e de
sua vida pessoal.
Lembro-me de que um deles se sentou a meu lado. Fiquei na expectativa.
Primeiro pareceu não ter reparado na minha presença. Falava sozinho. Era um
senhor de 40 anos, de cabelos prateados; parecia estar rezando. De pronto se
virou para mim e me falou algo que nunca esqueci (que inclusive anotei
cuidadosamente numa espécie de diário, que naquele tempo levava para nele
estampar os fatos e as fantasias que me iam acontecendo):

285
O inquilino do imaginário

"Lembra-se, padre, das folhas do outono? Dos dias anuviados e do riso das
crianças? Eu me lembro. E se lembra, padre, quando você brincava com os cachorros
no pátio de sua infância, enquanto nossa mãe cantarolava uma canção? Não se
lembra? Eu me lembro. E se lembra do dia em que havia um monte de gente,
rezando em tomo de um féretro, enquanto nossa mãe chorava? Por acaso quem
estava no caixão não era nosso pai, o seu e o meu? Não se lembra? Eu me lembro.
Lembro-me de tudo, desde o primeiro momento em que saí do ventre de minha
mãe até o último momento em que morri. Lembra-se do dia de nossa morte? Eu
me lembro. E agora estamos aqui entre todos estes mortos, esperando o juízo final,
afastando os vermes para que não devorem nossa alma. Ainda conserva sua alma
ou já a perdeu?"
Agora estava chorando, aos soluços. Aquele homem estava sofrendo e eu
não sabia o que fazer. O pranto das pessoas sempre me toca, mas o pranto de
um homem, mais que o de uma mulher, me estremece e me confunde. Aquilo me
paralisava. Era uma mistura daquilo que o professor nos tinha ensinado como
delírio e de iluminação poética; ele me chamou em mais de uma ocasião de
padre, logo depois de irmão, para em seguida colocar-se entre todos aqueles
mortos, à espera do juízo final. Lembro de que antes que eu conseguisse reagir
de alguma forma, veio, uma enfermeira, pegou-o gentilmente pelo braço e o
levou para o quarto.
Esse foi um dos episódios mais fortes que vivi num ambiente psiquiátrico.
Houve muitos outros, mas talvez por ser o primeiro que me colocava de frente
a algo que escapava à minha compreensão, se gravou em mim de modo inde-
lével. Nunca esqueci essa seqüência de padre, irmão e morte. Foi uma iluminação?
Penso que esse episódio me ensinou muita coisa. Antes de visitar
periodicamente um manicômio, tinha observado umas 4 ou 5 pessoas mentalmente
perturbadas. Minha atitude para com elas era muito semelhante à que predomina
na maioria dos leigos. Uma mistura de curiosidade e receio. É verdade que há uma
fração da população que experimenta outros sentimentos; medo e horror são
bastante comuns; gozação e menosprezo também o são. Uns poucos experimentam
simpatia e compaixão.
Eu nunca senti menosprezo nem horror. A figura de Dom Quixote me era
familiar e muito querida, de modo que tendia a vê-los com simpatia e curiosidade.
E certa dose de receio: eles representam o profundamente estranho, o que escapa
a nossa compreensão. Eles podem parecer acatar as regras do jogo; podem ficar
mexendo as peças no tabuleiro de xadrez das convenções e normas sociais, com
inteligência inclusive, mas num momento qualquer não acatam mais as regras, se
deixam totalmente ganhar ou simplesmente dão uma palmada nas peças ou um
chute no adversário. E sobretudo têm a mania de confundir as peças (por acaso
aquela pessoa não me chamava de padre e irmão?) Parecem não importar-se se

286
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

estão mexendo com um peão ou com o rei, se o bispo cavalga ou se é o cavalo que
monta no bispo. Tudo isso nos resulta muito ameaçador.
Penso que aquele episódio, em particular, me ensinou uma atitude de respeito
perante uma pessoa que se encontra nesse estado. Que essa atitude não emana de
um princípio geral do tipo "devemos respeitar a todos os nossos semelhantes, a
qualquer pessoa" (eles não são pessoas no sentido jurídico, nem são nosso
semelhante, pois representam o estranho). Emana da convicção de que no fundo
irracional da conduta e da vivência psicóticas há um chamado e um clamor que
não está sendo atendido nem pela pessoa que o formula, nem muito menos pelos
outros - por quem ouve esse chamado.
O respeito é a atenção que devemos dar a esse chamado, pois ele não só
atinge a quem o proclama, senão a todos nós: na loucura se revelam tanto os
limites da razão quanto a vigência de uma verdade que a razão não assimila -
embora enxergue.
Senti também naquele ambiente e no apelo daquele homem isso que alguns
autores depois me repetiram: a loucura como forma mais radical da ruptura do
vínculo interpessoal. Estavam juntos mas isolados uns dos outros, na mais completa
solidão - a solidão de quem se perdeu a si mesmo, de quem perdeu sua alma.
Alma: uma das mais belas intuições que nos legou a tradição.
Alma como princípio vital que anima a matéria orgânica, como princípio que
unifica todas as suas partes num todo unitário e permanente nos limites do tempo.
Alma como núcleo essencial da personalidade, que mantém acesa o sentido
da vida e como elo que mantém a continuidade de nossa existência no devir do
tempo.
Aprendi muito no contato com os pacientes (como costumam ser chamados
pelos médicos, querendo sublinhar assim a perda de suas capacidades para serem
agentes). Devo confessar que aprendi pouco no ensinamento das noções e dos
conceitos; os mestres estavam mais interessados em estabelecer um diagnóstico
dos doentes que compreender um mundo ou o percurso de uma vida. É bem verdade
que é difícil compreender o mundo da loucura e mais difícil entender como é que
foram entrando e construindo esse mundo.
É bem mais fácil analisar condutas e funções psíquicas; não é difícil perceber
quando o pensamento de uma pessoa está perturbado, mostrando-se incoerente,
concretista demais, de ideação pobre, fugitivo ou inibido. E assim para outras
disfunções mentais. O difícil mesmo é saber como se chegou a tudo isso no percurso
de uma vida.
Naquela época, e não faz tanto tempo, meus professores não conseguiam
compreender a importância de uma mudança de perspectiva. Limitavam o estudo
da psicopatologia a um exame das funções psíquicas básicas. Desse exame

287
O inquilino do imaginário

obtinham um diagnóstico, ou pelo menos uma avaliação, do estado do sujeito. Mais


de vinte anos depois, nos intramuros do asilo, as coisas mudaram pouco nesse
aspecto. Eu não nego a conveniência desse tipo de análise: ele nos permite des-
tacar as áreas mais perturbadas e aquelas que se conservam. Fundamentam e
permitem montar um diagnóstico do quadro no qual o indivíduo possa situar-se. Em
outras palavras, permite classificar, mas não compreender o movimento de uma
personalidade.
Nas páginas seguintes faço um esboço das principais áreas que uma análise
psicopatológica clássica leva em conta quando tenta avaliar as perturbações que
<!-fetam uma pessoa.

Comparação entre uma entrevista psicológica


e uma psiquiátrica
A entrevista clínica em psicologia e a feita em psicopatologia não diferem
em essência. O que podemos afirmar é que a entrevista psicopatológica
tradicionalmente tem estado calcada mais pelo modelo psiquiátrico que pelo modelo
psicológico. O que difere então são os modelos:
a) No modelo psiquiátrico de entrevista, os papéis estão prescritos de uma
maneira peculiar; segundo o estilo médico- paciente ou médico- doente,
estilo que não caracteriza a relação psicológica; os papéis da entrevista
psicológica são sentidos e desempenhados em termos de terapeuta-
consulente. O médico tende a perceber o outro como doente; o psicólogo
como consulente. Dessa atitude inicial emanam diversas outras atitudes.
b) Numa entrevista psiquiátrica, o enfoque está colocado nos aspectos
semiológicos: procuram-se sintomas que vão configurar um quadro
mórbido. Em psicologia, acentuam-se principalmente os diversos
aspectos da personalidade que vão caracterizar um comportamento;
só depois serão destacados os aspectos desadaptativos ou conflitivos
desse comportamento.
Numa entrevista psicológica de orientação psiquiátrica, tende-se a se
conceitualizar os sintomas segundo uma avaliação das diversas funções psíquicas
(perturbações da memória, da percepção etc.). São as diversas perturbações
setoriais que irão configurar um diagnóstico. Inserido no modelo médico, o psiquiatra
procura um diagnóstico, que, na ótica médica, é o passo básico de aproximação ao
doente. Em psicologia, as queixas apresentadas pelo consulente, assim como os
conflitos e perturbações detectados, são avaliadas em termos de problemática:
manifesta, primária e secundária.

288
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

c) Em psiquiatria, a biografia é concebida sobretudo como uma anamnese,


como um historiai clínico, um roteiro das diversas doenças ou perturbações
que o sujeito possa ter sofrido. Em psicologia, procura-se a biografia como
raiz da problemática atual e da situação presente e como origem dos traços
caracteriais. Em psiquiatria, como observa Jaspers, mais que a biografia o
que encontramos são patografws, ilustrações de uma casuística, casos que
permitem apreender uma problemática geral, e não a singularidade de
uma vida, como é o intuito da biografia. "As histórias clínicas que se
apresentam nas publicações científicas servem sempre para provar teses
gerais. É de espantar a maneira descuidada como são, conscientemente,
redigidas" (Karl Jaspers Psicopatologia Geral, pág. 829).
Ainda poderíamos indicar outras diferenças de perspectivas. Digamos tão-
só que nosso modelo de entrevista é psicológica, tanto por formação como por
doutrina.

A ênfase no sintomático num


enfoque psicopatológico clássico

Nas entrevistas com propósitos diagnósticos, a ênfase da pesquisa centraliza-


se nos sinais e sintomas reveladores de um quadro clínico ou em características
sintomáticas. Na entrevista com pessoas internadas em clínicas psiquiátricas,
espera-se por parte do entrevistado uma produtividade psicopatológica bem mais
significativa que a que pode apresentar um sujeito que por livre iniciativa busca a
consulta. Essa expectativa corresponde a toda uma prática da psiquiatria tradicional,
que, em geral, se justifica nos casos em que o internado está em crise. No
psiquiátrico ainda subsiste a prática de procurar no entrevistado os aspectos
sintomáticos de perturbação mental. Via de regra o informe psicopático limita-se a
uma enumeração, ou descarte, das perturbações nas diferentes funções mentais.
Como os sujeitos psicóticos e demenciais apresentam efetivamente algumas
alterações características, indicaremos em seguida as mais comuns.
No internado, as entrevistas procuram detectar os sintomas de algum tipo de
psicose. No momento da internação, a pessoa já passa por um exame diagnóstico
feito por um médico. Na ficha figura uma série de dados proporcionados por algum
familiar, pela polícia ou pelo próprio doente. Os dados são geralmente muito esque-
máticos e insuficientes. Lá se indica uma hipótese diagnóstica e os remédios que o
internado está tomando. Se não queremos ser influídos por impressões já feitas,
não importa quão corretas sejam, é melhor não consultar essa ficha. Quando já
temos um diagnóstico prévio, é difícil manter o olhar fenomenológico: buscaremos
a confirmação de um juízo.

289
O inquilino do imaginário

Seja na clínica particular (no consultório do psicólogo ou do psiquiatra), seja


nos intramuros dos hospitais psiquiátricos, precisamos fazer uma avaliação do que
está acontecendo com uma pessoa que nos é encaminhada como sofrendo de
alguma perturbação psicótica. Em raras ocasiões é a própria pessoa quem toma a
iniciativa de pedir um exame psicológico, pois sente que está "perdendo a razão",
que algo parecido com a loucura a está transtornando. Nos dois lugares, o depoimento
dos familiares diretos é aconselhável. Eles nos darão uma série de informações
que nem sempre o cliente está em condições de fornecer, em razão de seu estado,
e porque todos nós temos uma notória dificuldade para enxergar como os outros
nos enxergam. O grau de anormalidade de nosso comportamento é mais fácil de
ser avaliado por um observador externo que pelo próprio sujeito: nós tendemos a
justificar no~sa conduta com razões e motivos que nos parecem suficientes, mas
que não atenuam muito o impacto que produz no ambiente.
De qualquer forma, as informações de terceiros são dados meramente
complementários; o que decide nossa avaliação é o contato direto com a pessoa.
Para a determinação dos fatores causais é importante a pesquisa da estrutura
familiar.
Quando a pessoa está muito perturbada a ponto de seus familiares
considerarem que não é mais possível uma interação com ela, o mais provável é
que ela seja levada a um centro psiquiátrico para que ali seja diagnosticada e
tratada. Só nos setores da classe alta e média alta é consultado previamente um
especialista, antes de decidir-se seu internamento. O psicólogo, quando atende a
indivíduos suspeitos de psicose, o faz geralmente em três situações:
a) nos intramuros do asilo. Nesse caso já existe um diagnóstico e uma
justificativa; sua tarefa aqui é de colaboração com os tratamentos biológicos
propostos pela equipe médica, ou de pesquisa.
b) Quando a pessoa já passou por um surto- o que obrigou a uma estada no
hospital - mas agora se encontra num período de recuperação, com
recomendação de psicoterapia. Nesse caso é provável que ainda esteja
numa situação borderline, isto é, com elementos residuais de seu estado
de crise.
c) Quando uma pessoa está entrando num período crítico, com sintomas de
perturbação mental, decidindo-se então por um tratamento que lhe evite
um colapso.
Nos três casos o psicólogo deixa a parte medicamentosa nas mãos do médico,
a quem compete, por preparo profissional e por tradição, essa fase da terapêutica.
Feita por psicólogos ou por psiquiatras, a avaliação psicopatológica procura
detectar o grau de comprometimento das chamadas funções psíquicas. Embora
mereça alguns reparos esse tipo de análise, ele é ainda muito usado no trabalho
do psiquiatra com os internados. A psicopatologia clássica o tinha em alta estima.

290
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

Eu o aprecio por seu lado prático: permite classificar numa espécie de grande
painel os distúrbios mais notórios da pessoa. É útil sempre que não se perca o
princípio holista de que os setores e as funções de um sistema, embora sejam
separáveis para propósitos de análise, pertencem a um todo ou sistema que as
influencia, as condiciona e as regula. Com esse espírito é que ainda justifico seu
uso. Falamos de alucinações, para citar um exemplo pertinente, como uma
perturbação da representação, mas temos que enfatizar quando um sujeito ouve
vozes que lhe censuram suas "trapaças e sem-vergonhices", é todo seu psiquismo
e sua existência que estão em jogo. Costumamos designar por eu essa síntese da
totalidade psíquica em movimento: entendemos assim que essas alucinações são
apenas um sintoma, uma manifestação parcial, que de diversas maneiras
compromete o eu, revelando urna falha em sua estrutura funcional- falha oriunda
de um processo orgânico ou de uma insuficiente integração da unidade do eu,
pouco importa.
Quando constatamos que um indivíduo está apresentando algumas crenças e
ocorrências delirantes, mas que ainda mantém sua capacidade de juízo e de contato
com a realidade social, não podemos pensar que felizmente se trate de uma
perturbação localizada- como se fosse uma fratura que só atingiu a perna esquerda,
mas que o traumatizado ainda pode caminhar com ajuda de uma muleta. Essas
crenças delirantes estão refletindo um descarrilamento existencial profundo que
afeta todo o mundo desse indivíduo. (Veja o gráfico que esquematiza a integração
das funções psíquicas.)
Mais do que o eu, os psicólogos preferem usar o conceito de personalidade,
como a configuração psicológica mais abrangente, ficando o eu como um aspecto
desta unidade maior. Nesse sentido, nunca podemos descuidar e menos ainda ignorar
esta totalidade, embora possa parecer-nos dificilmente apreensível nas suas
características originais devido às profundas alterações sofridas pelo processo
patológico desencadeado. Em alguns casos, só são detectáveis alguns traços ori-
ginais- inteligência, alguns interesses, certos mecanismos defensivos. Tudo o mais
está exacerbado, deformado, alterado.

A determinação dos sintomas característicos:


delírios, alucinações

Feitas essas ressalvas, podemos dar algumas pistas para entendermos o que
está acontecendo com uma pessoa suspeita ou já diagnosticada como psicótica.
Nosso instrumento básico será o contato e o diálogo; podemos usar também
algum teste; é um recurso muito válido que nos pode dar dados precisos para um
diagnóstico.

291
O inquilino do imaginário

Como já expus em capítulo anterior, em toda entrevista consideramos pelo


menos quatro aspectos básicos:
a) Aparência pessoal.
b) A conduta expressiva durante a entrevista.
c) Os conteúdos verbalizados.
d) A disposição para o contato.
Os outros fatores são certamente estimáveis- inteligência, interesses, biografia
(que sempre aparece pelo menos de forma superficial em qualquer entrevista diag-
nóstica).
Todos esses elementos precisam ser considerados com todo o rigor quando
nos propomos conhecer o mundo do psicótico. Mas por ora darei algumas linhas
da análise dos conteúdos a serem pesquisados segundo determinadas áreas· e
funções psíquicas.
Advirto que em alguns casos a mera observação do comportamento nos
fornece algumas pistas apreciáveis para determinar o grau de gravidade em que
se encontra a pessoa, sendo-nos quase impossível um diálogo. Está tão fechada
em si mesma, que se recusa a todo contato, ou tão alterada e confusa em seu
pensamento e raciocínio, que sua linguagem parece como puras galimatias.
Numa análise clássica, insisto, procuramos os indícios inconfundíveis do
psicótico: as alucinações e os delírios. E os distúrbios de pensamento. Pode ser um
ou outro, e ainda os dois.
Quando o sujeito está em crise, não é difícil captar o delirante, porque esse
termina por manifestar-se ao longo da entrevista de alguma maneira. O problema
consiste em como diferenciar o delirante de outro tipo de crenças com as quais pode
aproximar-se até o ponto de ser difícil discriminar. Em nosso círculo cultural, o religioso
popular tem um papel tão importante na vida da gente, que nem sempre resulta fácil
discernir crenças umbandistas, espíritas ou de outras seitas de produtos delirantes.
Só o contexto nos dará a chave para determinar para que lado se encaminha.
Em relação ao alucinatório também podem surgir dúvidas. Uma cliente refere-
me que se sente muito perturbada porque interpreta como algo ruim uma série de
eventos paranormais que lhe estão acontecendo. É uma senhora muito dinâmica,
de fala rápida e conceitualização segura, de contato vivo e atento. Diz que
experimenta certo receio em contar-me o que lhe está sucedendo, pois já com-
provou que não-espíritas tendem a desacreditar em fenômenos mediúnicos a que
eles estão acostumados nas suas práticas. Asseguro-lhe de que minha posição é
objetiva, que não prejulgo. Refere-me então que tem visto em diversas ocasiões
um homem parado ou sentado no teto de sua casa e já o viu também usando o
banheiro. Descarta que seja uma pessoa do plano material, pois aparece e
desaparece num piscar de olhos na sua frente. Refere também que sofre de um

292
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

pesadelo que sempre se repete: um homem a persegue com uma faca, apa-
rentemente com a intenção de violá-la. Além do mais, ela sabe que possui poderes
mediúnicos que não está desenvolvendo (como manda sua crença) e isso a pode
levar a graves perturbações, inclusive de ordem psíquica. O que fazer? Por sua
-fala, sua movimentação, sua sugestionabilidade, sua falta de espírito analítico, certo
poder de sedução, posso inferir que me defronto com uma pessoa com alguns
traços histéricos. Contudo, qual é a natureza de sua percepção com referência ao
homem do teto? Alucinação? Sugestão? Ou fenômeno espírita? São questões que
não podem ser respondidas.
É claro que às vezes o delírio é bem evidente: são os casos que fazem do
louco a figura inconfundível- aquela menina que acredita ser a Virgem, ou aquele
senhor que se pretende Cristo, ou o cidadão que se sente perseguido por uma
máfia sinistra. Nesse caso, nossa tarefa será principalmente tentar compreender
de que está falando verdadeiramente o sujeito em seu delírio. Mas geralmente as
coisas são bastante sutis.
As alucinações mais freqüentes são auditivas e visuais. Importa averiguar se
a pessoa as aceita como um fato natural ou se chega a questionar a realidade de
tal fenômeno. Em que circunstâncias se manifestam? Como ela reaciona? Que
significado tem para ela? As vozes que ouve apenas murmuram, como falando
entre si, ou se referem claramente a ela? São ameaçadoras ou amistosas? Ouve-
as dentro ou fora da cabeça?
Não é raro que o internado não mostre nenhuma produção delirante durante
uma entrevista. O único que notamos são outras manifestações do psicótico.
É provável que se mostre desligado, com pouco interesse em manter um
diálogo, sendo preciso ir colocando-lhe algumas questões a que ele vai respondendo
de modo monossilábico ou num discurso pouco intelegível; ou pode falar bastante,
mas logo percebemos que não está interessado em ser ouvido ou em manter um
diálogo propriamente. É uma fala autista, sem intenção comunicativa.
Certa ocasião entrevistei Luís, um homem de 25 anos, operário, internado no
hospital há sete dias. Queixa-se de ter grandes dificuldades para coordenar seu
pensamento, mostrando também um escasso interesse na conversa - só responde
quando solicitado. Parece ausente, rindo de modo intermitente, sem nenhuma razão
aparente. De qualquer forma, mostra orientação espaço-temporal (sabe onde se
encontra e desde quando, mas ignora por que motivo se encontra neste lugar); informa
sobre sua farm1ia e das atividades que desempenha em seu emprego e revela uma
afetividade plana, sem nenhuma emotividade que denuncie algum sentimento es-
pecial em relação às pessoas mencionadas. Para facilitar sua verbalização - e para
ver se na escrita exprime algo mais - lhe peço que escreva o que quiser. Luís
escreve, depois de pensar um momento: "Suzàna: escrevo-lhe esta carta para
comunicar a você que me encontro bem e que tenho saudades de você".

293
O inquilino do imaginário

ESQUEMA INTEGRADO DAS DIVERSAS FUNÇÕES PSÍQUICAS

SENSOPERCEPÇÃO
Captação e apreensão de dados e informações tanto do mundo externo como do -+I
1-+
interno mediante receptores especializados: os órgãos sensoriais.

TOMADA DE CONSCIÊNCIA
I
· Discriminação e integração do real. Permite a atenção e a orientação no mundo e I
1-+ a integração das diversas funções psíquicas. +oi
I Podemos considerar o Eu como a síntese dinâmica da totalidade psíquica. I
I I

I
AFETIVIDADE
I I
1) Na sua interação com o mundo, o sujeito é afetado, atingido em seu ser.
1-+ +'I
2) O homem avalia e valoriza os objetos, as situações e os estímulos, colocando-
os em termos positivos ou negativos (que é a forma mais geral de valorização).

II
- CRENÇAS 1 -
MEMÓRIA NECESSIDADES
São os pres-
Armazenagem de infor- supostos exis O homem é um ser de
mações, o que permite tenciais que necessidades biológicas e
reconhecer, comparar, sustentam e psicossociais.
discriminar. orientam ao
sujeito

REPRESENTAÇAO -
Reprodução e criação men-
tal do real. (0 Imaginário)
V' ''
' ' ,
INTELIGÊNCIA
Discriminação, raciocínio
e juízo do real. Permite a
avaliação do real.
I
+oi

Conceitos, juízos,
raciocínio, pensamento.

LINGUAGEM: código de comunicação e de ação


I TOMADA DE DECISÃO---······ AÇÃO ··········TRANSFORMAÇÃO ATIVA DO REAL I
1-+ Deliberação, decisão +-1

294
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

Pergunto-lhe quem é Suzana. Observo que escreve com lentidão, letra legível:
-É a filha de Cristo- responde. A resposta já insinua uma ocorrência de tipo
delirante, mas não posso tirar essa conclusão ainda.
- Você está falando de uma filha de Jesus Cristo, Luís?
-Sim, Nosso Senhor. Ficou um momento em silêncio antes de responder-me.
Continua rindo, tal como tem feito desde o início da entrevista. É o que os
manuais de psiquiatria identificam como o riso tolo dos hebefrênicos.
-Luís (ele parece não ter me ouvido; olha o papel que acaba de escrever).
-Luís -lhe repito-, por acaso Cristo tinha uma filha?
Repito-lhe a pergunta para ver se o levo a uma mudança de ocorrência, mas
ele insite: "Suzana, é a filha de Cristo".
Como se vê, o delirante nem sempre emerge na comunicação verbal. Temos
de apelar para certas táticas que induzam o internado a uma outra forma de
expressão. Pedir-lhe que escreva ou que desenhe é um bom procedimento para
que se expresse.

Sintomas na área do pensamento


O pensamento e o raciocínio precisam também ser examinados com atenção.
Quando o paciente apresenta inibição, interceptação e incoerência do pensamento,
podemos suspeitar de um processo psicótico.
Na inibição, a pessoa queixa-se de não conseguir pensar, de ter dificuldades
para encontrar as idéias. O pensamento é lento e difícil.
Na interceptação, o sujeito pode estar expondo normalmente seu discurso,
mas num momento, ao fazer uma pausa prolongada para logo prosseguir com um
assunto diferente, sente que lhe interceptam suas idéias.
O pensamento incoerente é ilógico, confuso e contraditório. A incoerência é
um sintoma que acompanha as alterações da consciência, alterações que são
próprias de quadros orgânicos e confusionais. Na incoerência do pensamento, as
frases apresentam-se sem nexos, como tijolos justapostos, não conseguindo o sujeito
responder a uma questão precisa de maneira compreensível. Ou responde muito
parcialmente e em seguida se embrenha em outro assunto sem nenhuma relação
com o proposto.
Alguns esquizos apresentam suas verbalizações de forma confusa, incoerente
e incompreensível, sem que se percebam alterações importantes do pensamento.
Lembro-me de um senhor muito inteligente, que impressionava por seus conhe-
cimentos e informações as mais variadas e originais. Num contato formal, que

295
O inquilino do imaginário

ele logo tomava ameno e cordial, parecia um indivíduo normal, talvez com uma
grande necessidade de contato, um leve toque de narcisismo intelectual e com
alguns jeitos venusinos discretos. Pois bem, esse senhor escrevia, tendo editado
dois livros sobre assuntos que julgava de sua inteira competência. Gentilmente
me presenteou com um desses livros. Já na capa do livro o leitor ficava
impressionado com os títulos que honravam seu percurso histórico. Entre outros
títulos que ele se atribuía era o de psicolingüista e de professor de uma
distinguidíssima universidade. Se fossem verdadeiros todos esses títulos (o que
nunca verifiquei), ele era simplesmente uma eminência. O livro adverte no subtítulo
que se trata de uma nova arte de pensar. Na entrega, num tom jocoso, seu autor
me informa que o livro supera toda a semiótica contemporânea, e quem for
capaz de compenetrar-se no sentido de sua mensagem entrará no reino da
criatividade pura. Depois de uma hora de conversa com esse homem brilhante,
eu não duvido de que estou levando algo sem dúvida interessante. Se o livro
fosse a metade do que havia sido a conversa do autor, já seria uma contribuição
nas questões que interessam à semiótica e à lingüística. Na dedicatória ele me
escreve um trocadilho; aliás, ele se qualifica sem falsa modéstia "como mestre
em trocadilhos"; de fato, durante a conversa toda, ele condimentou sua exposição
com todo tipo de trocadilhos "para assim enriquecer a palavra com a invenção
do instante".
A surpresa veio quando comecei a ler o texto. Os primeiros parágrafos tinham
seu sentido, mas logo entravam de cheio no campo do que o velho Kraepelin chamava
de esquizofasia, uma espécie de afasia própria dos esquizos. Capítulos e mais
capítulos, todos eles com títulos sugestivos e atraentes. Depois de uma menção a um
autor famoso, especialmente do campo das ciências humanas, nosso professor
comenta, ratifica ou parece refutar alguma tese com uma majestosa ensaiada de
palavras, prosseguindo sem que o leitor mais obstinado consiga decifrar duas frases
do texto. Veja você e aprenda o que ele nos diz da Análise Transacional:
"Assim a Lei da Id-ad é loi de l'âge (AGE), onde os sintomas de uma
doença mental, logo no início das perturbações létricas, de letras, ligam-se
mais à idade do paciente do que propriamente às causas da moléstia. Nas
psicoses alucinatórias (de luz) crônicas, consideradas siderais, em toda a
série de idade (cidades), encontram-se os mesmos sintomas dúbios (do BIO-
b 10 detém), mas em proporções, como se vem mostrando, inversas ou em
versos semânticos. Se, ao redor ( ROD) dos 25 anos, predominam as
perturbações motoras e sensoriais, já nas proximidades dos 50 anos
predominam as intuições, o eco do pensamento, as alucinações psíquicas.
Na absorção de um pensamento magnético e coerente que confunde o normal
como o A-normal, até que (AT que) a Análise Transacional (AT) seja plenamente
entent;fida em só lida leitura, onde TIO é também DEZ e FRE é irmão, onde
todos os viventes e falantes vão de mão, ir de mão. " O autor, sem dúvida uma

296
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

grande inteligência, se entregava à livre associação esquizo quando não tinha um


interlocutor que lhe exigisse um discurso razoavelmente inteligível. Como a es-
quizofrenia continua sendo considerada a perturbação mais comum entre as psi-
coses, é pertinente lembrar os sintomas que Kurt Schneider considerava de primeira
ordem neste quadro:
1) A sonorização do pensamento: "Os pensamentos se põem em marcha
sozinhos, diz um internado; parece que as idéias me soam nos ouvidos, e
vejo claramente o que penso. Minhas idéias ressoam em forma de palavras
nos ouvidos e me dizem o que penso" (apud Paim, p. 380). 7
2) Audição de vozes que interferem na própria atividade: a pessoa escuta
vozes que lhe dão ordens ou comentam sobre seus atos. As ordens são
amiúde contrárias ao modo de ser normal do sujeito, criticam-no ou induzem
a atos imorais ou inconvenientes.
3) Roubo do pensamento e outras influências: o doente acredita que suas
idéias são captadas por outros e subtraídas dele- fato que julgam perigoso,
sobretudo quando apresentam delírio de invenções. Às vezes sentem que
lhes colocam idéias na cabeça, além de furtá-las.
4) Divulgação do pensamento: é um sintoma ao anterior, mas centralizado
apenas na crença de que os outros conhecem seu pensamento seja de
maneira direta ou por telepatia.
O ponto comum de todos estes sintomas é a extraordinária vulnerabilidade
que experimenta· o esquizo perante os outros: nem sequer tem domínio sobre o
que se entende como o mais secreto e íntimo de uma pessoa; sente-se a tal
ponto invadido e manipulado, que até o pensamento lhe é subtraído, induzido de
seu eu. Schneider cita outros sintomas que apontam na mesma direção:
5) Vivências de influências na esfera dos sentimentos, das tendências e da
vontade. O esquizo se assemelha a um espectro ao qual se tem despojado
de sua substância vital mais própria, ficando assim sem condições de
articular sua existência com as exigências mínimas da realidade e da
verdade. Para uma exposição mais ampla deste tema, consulte-se as obras
indicadas. 7 •8
Embora a prolixidade seja uma característica dos obsessivos e por vezes de
pessoas ansiosas, esta forma de exposição é um traço marcante dos epiléticos,
indivíduos que podem entrar nos intramuros da perturbação mental. Neles também
observamos a perseverança, que se revela pela repetição de frases e palavras,
sem agregar nada à exposição.
As perturbações da consciência e da orientação expressam geralmente
quadros de origem orgânica (psicoses sintomáticas, epilepsia, psicose alcoólica).
Em tais casos, a entrevista é, obviamente, muito difícil; ou impossível, quando o
sujeito está em estado crepuscular, obnubilado ou oniróide.

297
O inquilino do imaginário

Normalmente, estamos orientados no tempo e no espaço. Sabemos dizer


onde nos encontramos e podemos dar indicações precisas sobre o tempo do
calendário. É o que se chama orientação alopsíquica. Também sabemos identifi-
car-nos e dar detalhes precisos acerca de nossa pessoa (quando nascemos, onde
moramos, relações familiares etc.). É a chamada orientação autopsíquica.
Quando a comunicação se apresenta muito difícil com o internado, é comum
testar sua orientação perguntando-lhe onde se encontra, que acha que está
fazendo no lugar, como chegou, onde fica a sua casa, e assim por diante.
O outro item, que não falta num informe psicopatológico, é a memória. Com
efeito, as alterações mnésicas têm um valor semiológico certo nas psicoses orgânicas,
na epilepsia, nas oligofrenias, nas demências. A capacidade de evocação, de localização,
de fixação e reconhecimento estão deterioradas nestes casos. Estas são as principais
áreas exploradas num informe clássico. Aspectos da afetividade e da inteligência, assim
como da linguagem, são sempre levados em conta em qualquer tipo de entrevista.

As características da afetividade nos psicóticos variam


conforme o quadro
Os autores clássicos insistiram na escassa ou nula ressonância afetiva que
mostram os esquizos. Nem todos sofrem de embotamento nesta área, mas uma
fração considerável dos que entram nesta classificação parecem desligados de
qualquer envolvimento afetivo com as pessoas que formavam parte de seu ambiente
mais próximo. Não parecem importar-se com os sentimentos dos atores que, até
pouco antes de entrar em crise, eram significativos para eles. Quando se mencionam
os filhos, os pais ou o (a) cônjuge - que são as figuras de sua intimidade -, não
expressam reações que revelem laços sentimentais positivos. Isso não supõe que
estejam isentos de afetos negativos; não mostram raiva, receios, desconfianças, medos.
Seria mais apropriado dizer, em conseqüência, que os esquizos anulam ou diminuem
seus afetos positivos, e não que estão embotados.
Repito: isso é válido para uma fração dos incluídos nesse rótulo, embora na
fase de crise todos eles tendam a mostrar sentimentos negativos ou certo
embotamento ou ainda afetos incongruentes, isto é, exprimem o contrário do que
deveriam sentir (alegria quando deveriam reagir com tristeza, mal-estar quando o
apropriado seria experimentar alegria).
Passado o período de crise, mas ainda inseridos no mundo de um modo
psicótico, mostram certa variedade idiotímica. Essas variações dependem muito
da história vital de cada um dos traços de personalidade dominantes. Contudo, a
apatia e uma notória diferença são a tônica mais destacada. O desligamento das
obrigações práticas- o refúgio na doença, num universo fechado, sem maior contato

298
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade

vital com a realidade - contribui para essa apatia, interrompida por periódicos
momentos de irritabilidade e agitação.
No indivíduo paranóide, o clima emocional está associado à desconfiança, ao
receio, ao medo e à prevenção contra supostos inimigos e perseguidores. A
ansiedade e o extremo resguardo são traços marcantes.
Eugênio Bleuler ( 1911) mostrou que uma das características dos esquizofrênicos
era a ambivalência afetiva. Vivem divididos entre o amor e o ódio; talvez essa seja
a cisão originante de seus conflitos mentais, pelo menos um dos fatores. Há outros,
de tipo psicológico, como uma identidade muito diluída e absorvida por personagens
conflitantes, que só podiam gerar ambivalência; além de prováveis fatores orgânicos,
nunca suficientemente demonstrados, mas muito possíveis.
Lopez lbor (1953) enfatizou o fato de que, antes que se desencadeie o delírio
nesse tipo de paciente, há uma fase de humor pré-delirante caracterizada por uma
sensação de que algo muito estranho está acontecendo, algo sinistro e ameaçador;
experimenta uma inquietude tensa, que por vezes vai por via da ameaça e por
vezes na direção de um alvoroço. Maupassant, que nos deixou um bom testemunho
de seu processo psicótico, escreve:
"Estou doente, decididamente. E tão bem que eu estava no mês passado.
Estou com febre, com uma febre atroz, ou antes, um enervamento febril, que toma
tanto minha alma quanto meu corpo. Tenho sempre essa horrível sensação de um
perigo iminente, essa apreensão de uma desgraça que está por chegar, ou da morte
que se aproxima, esse pressentimento que é sem dúvida o pressentimento de um
mal ainda desconhecido, geralmente no sangue e na carne (16/05)". E dias depois
anota:
"Nenhuma mudança! O meu estado, na verdade, é esquisito. À medida que
a tarde avança, invade-me uma incompreensível inquietação, como se a noite
ocultasse para mim alguma terrível ameaça. Janto às pressas, depois tento ler;
mas não compreendo as palavras; mal distingo as letras. Caminho então de um
lado para outro da sala, sob a opressão de um receio confuso e irresistível, o receio
do sono e o receio do leito." (25/05)
Alonso Femandez, ratificando essa etapa de humor pré-delirante que precede
a percepção e a inspiração delirantes, nos diz que se trata de uma percepção vaga
e difusa de algo raro e estranho que acontece ao redor do sujeito; uma especial
significação que, no momento, lhe resulta indecifrável.
Nas psicoses ciclotímicas (PMD, depressão, mania), o fator afetivo é de
primeira importância, tanto que dá o nome a esse tipo de perturbação. Todo processo
depressivo é doloroso, inclusive quando os elementos marcantes são de vazio e de
tédio- dois sentimentos que aparecem nesse estado. Os sentimentos de indigência,
de abandono, de culpa e de impotência impregnam todo o mundo do sujeito, levando-
o a uma extrema prostração. Na mania, o dominante é a exaltação egóica e uma

299
O inquilino do imaginário

agressividade pronta a disparar perante contratempos dificilmente previsíveis, po-


dendo reagir a um detalhe e permanecendo indiferente a uma provocação.
Nas psicoses sintomáticas, observa Alonso Femandez, a afetividade varia
em função de sua forma clínica. Na obnubilação predomina a apatia e a indiferença.
No delírio onírico registra-se uma emotividade exaltada e lábil sobre um fundo de
medo angustioso, alternado com cólera e euforia. 5
Não quero terminar esse capítulo sem antes sublinhar um ponto que me
parece de extrema importância: até agora insisti num inventário dos aspectos
sintomáticos próprios de um quadro psicótico, sem considerar em nenhum momento
a necessidade de avaliar também os aspectos sadios da pessoa. De fato, nossa
análise seria muito parcial se não ponderássemos com todo o cuidado os recursos
e os traços sadios que esse tipo de pessoa apresenta. Recursos como inteligência,
compreensão de mecanismos psicológicos, manutenção de habilidades e interesses
são elementos preciosos que levamos em conta numa avaliação global. Traços
atitudinais- otimismo, colaboração, manutenção de crenças reforçadoras, confiança
da farm1ia- também são pontos que favorecem um prognóstico positivo.

Referências mínimas e leituras recomendadas


1) Na leitura romanceada há boas descrições da montagem do quadro paranóide. Talvez o mais
impressionante seja o livro de Roland Topor O Inquilino (levada ao cinema por Roman
Polanski, verdadeiro mestre nesse gênero de filmes), que mostra com raríssima habilidade a
entrada e assentamento nesse tipo de universo. Alguns testemunhos de escritores que passaram
por períodos paranóides (ignoro se Topor é também um deles) nos permitem formar uma
idéia bastante cênica do que acontece no espírito dessas pessoas.
2) Quem quiser sentir de perto o clima emocional do momento da entrada no mundo da psicose
pode ler os testemunhos de Guy de Maupassant, em seu conto "O H orla", e do escritor
chinês contemporâneo Lu Sin: Diário de um louco (há tradução portuguesa pela Imago, Rio
de Janeiro, 1990).
3) Entre os mais recentes é instrutivo ler Nunca Lhe Prometi um Jardim de Rosas, de Hannah
Green, que acentua bem o lado afetivo de Deborah, a personagem da história, e sua maneira de
relacionar-se com os símbolos encarnados de seus horrores pessoais.
4) Contudo, o testemunho mais autorizado de seu processo psicótico continua sendo o texto
clássico do inesquecível Paul Schreber, que em suas Memórias de um Doente dos Nervos nos
proporcionou um belo retábulo do que significa habitar uma outra realidade, em que o delírio
se conjuga com a lucidez da análise. O livro de Schreber está traduzido para o português.
5) O livro de A!onso Femandez Fundamentos de la Psiquiatria Actual (Madrid, 1972) serve como fonte
de algumas referências. A obra desse autor parece-me o maior monumento da psiquiatria
contemporânea, tanto por sua bela erudição como pelos critérios propostos em seus diversos temas.
6) Para um testemunho de como são tratadas no Brasil as pessoas que enlouquecem, recomendo o livro
de Frei João Batista Pereira dos Santos Recordações da Casa dos Loucos (Paulinas, 1983, São
Paulo). Inclusive em clínicas particulares, o tratamento não abandona os velhos procedimentos.
7) Paim, Isaías (1980): Tratado de Clínica Psiquiátrica. Livraria e Editora Ciências Humanas, São
Paulo, 1980
8) Dõr Zegers, Otto (1996): Psiquiatria Antropológica. Editora Universitaria, Santiago de Chile.

300
Capítulo 14

O INQUILINO DO IMAGINARIO

"Não sei o que me acontece, mas me desligo; perco o contato com o que está ao meu
redor. Sempre tive o hábito de falar sozinho quando estava só, mas bastava a
proximidade de alguém para eu parar. Só que a semana passada me peguei em
plena Av. Paulista discutindo acaloradamente com minha mulher; em voz alta. De
pronto me apercebi do que estava fazendo, quando vi que um monte de curiosos me
olhava com ar zombeteiro. Estava só, no meio da multidão. Foi como se despertasse
de um sonho. Então compreendi que havia enlouquecido." (Depoimento de H.B., um
homem de 40 anos, passando por uma intensa crise de angústia.)

A loucura e o imaginário
ssim como há diversas maneiras de entender o que seja a loucura, há

A também diversas tentativas de explicar os motivos e fatores que a provocam.


Uma forma corriqueira de entendê-la é pelo lado do comportamento. Ela
nos proporciona os indícios mais chamativos do que costumamos qualificar com
esta palavra. Revela-se como comportamento bizarro - com gestos e atitudes
esquisitos, por ações e propósitos absurdos e sem sentido. Contudo, nem todos os
loucos são bizarros; existem os bem-comportados e tranqüilos.
Pode ser entendida pelo lado social, complementar ao anterior, como uma
incapacidade do indivíduo para adaptar-se às exigências e solicitações da realidade
coletiva ou interpessoal- inadaptação que o leva a uma ruptura com essa realidade.

301
O inquilino do imaginário

A conduta de H.B., citada acima, corresponde a essas duas imagens


tradicionais da loucura, tanto que ele mesmo se percebe inserido nesta categoria.
De fato, entendemos que o controle do comportamento em termos das normas
sociais é um requisito básico da sensatez; ele estava tendo uma conduta
extravagante, discutindo em plena rua com um ser ausente, num diálogo imaginário.
Falar sozinho é algo que todos fazemos, mas a presença de outra pessoa
imediatamente inibe esse tipo de solilóquio. Isso significa que temos suficiente
senso da realidade, que sabemos situar-nos num determinado contexto social.
Nem o comportamento bizarro, nem a notória divergência com os padrões
dominantes de conduta social são suficientes para qualificar uma pessoa como
mentalmente perturbada. Há condutas escandalosas e extravagantes que levam a
suspeitar de certos exageros caracteriais e emocionais - como é o caso dos punks
e dos homossexuais amaneirados -, sem que por isso os qualifiquemos de loucos.
Para estarmos certos de que se trata de uma perturbação desse tipo, precisamos
examinar as vivências dominantes que caracterizam o mundo do sujeito, o que se
impõe fazer numa avaliação clínica de uma pessoa. Essa avaliação permitirá
estabelecer se ela se está encaminhando ou não pelas sendas da psicose.
Pelo lado do próprio indivíduo, no seu acontecer pessoal -já na procura de
explicações-, podemos entender a loucura segundo sejam os fatores que consideramos
como determinantes do processo. Trata-se aqui de estabelecer as prováveis origens
desse tipo de fenômeno, e não apenas determinar o que seja a loucura.
Os organicistas a entendem como mera decorrência de fatores biológicos que
afetam o cérebro do doente, levando-o a uma incapacidade para processar
adequadamente os diversos dados da realidade e provocando deficiências nas funções
psíquicas gerais (memória, raciocínio, associações lógicas, sensopercepção,
representação etc.). Vários tipos de psicoses encontram sua origem em fatores
biofísicos. São as chamadas psicoses orgânicas e tóxico-infecciosas. Outras síndromes
não denunciam essa gênese de um modo conclusivo: é o caso da esquizofrenia. É
justamente este tipo de psicose que provoca as maiores controvérsias.
Já numa linguagem de escola, os psicanalistas tentam explicar a psicose pelo
predomínio do ld sobre o ego, pela emergência de pulsões e de vivências reprimidas
que entram em colisão com as demandas sociais, provocando uma perda da realidade.
Um grupo considerável de pesquisadores da estrutura e da dinâmica familiares
tem tentado demonstrar que a rica conflitiva familiar é a responsável pelas constantes
vivências que caracterizam o mundo do esquizo. O futuro doente sofreria os efeitos
da patologia parenta!; ele seria o fio mais fraco da trama conflitual que perturba os
pais. Eu diria que uma característica notória do esquizo é a falta de reconhecimento
de si; essa falta se percebe em dois aspectos: no caráter difuso e incongruente de
sua identidade pessoal e na dificuldade para perceber-se como agente e responsável
de sua vida (ele sente-se sempre dominado por agentes externos). Como acontece

302
O inquilino do imaginário

essa falta de reconhecimento? Principalmente devido à ausência de reconhecimento


por parte dos pais - a indiferença, a rejeição, a transferência excessiva de problemas
pessoais para o filho, o duplo vínculo -, estas são atitudes bastante comuns entre os
pais do futuro esquizo. Para urna exposição bem argumentada da importância do sistema
familiar na origem da psicose, veja-se os textos clássicos de Ronald Laing6•7 •
Essas são algumas tentativas de explicação de uma forma bastante comum
de psicose, a esquizofrenia, cuja origem - insisto - é bastante incerta. Devo
advertir ao leitor que, quando falo de loucura, me refiro a esse tipo de perturbação.
De certa perspectiva, sem propor um fator determinante, mas querendo
enfatizar um elemento predominante que em parte nos permite compreender o
mundo da psicose, podemos entender a loucura como um refúgio no imaginário
quando a realidade resulta para o sujeito completamente intolerável. Seria uma
forma de compensar um ambiente sentido como inóspito e hostil, perante o qual a
pessoa experimenta sua derrelição e indigência originárias.
Existe uma espécie de ditado recolhido pela sabedoria anônima que nos ensina
como o refúgio no imaginário pode servir tanto para o neurótico quanto para quem
já não acerta conviver dentro dos padrões básicos de sua comunidade. Este saber
sem autor conhecido reza assim:
"O neurótico constrói castelos no ar sem tentar nunca neles morar; o louco
inventa igualmente castelos no ar para neles habitar."
Com as nuances e restrições que impõe esse tipo de juízo, temos aqui uma
idéia bastante atendível do que acontece pelas vias do imaginário no neurótico e no
psicótico. Não em todos eles; não da mesma maneira nem no mesmo grau. Até
poderíamos afirmar que há um tipo de neurótico que se distingue por sua escassa
capacidade imaginante- o tipo obsessivo-compulsivo (que por sua necessidade de
ordem e controle aprecia bem pouco qualquer vôo imaginário); algo similar ocorre
com o chamado tipo catatônico (que é uma variedade de esquizofrenia), cuja conduta
completamente fechada em si mesma, sem nenhum contato com o meio, não nos
permite inferir o que se passa em sua mente.
Os depoimentos de alguns esquizos indicam-nos que seu mundo interior tende
a esvaziar-se ou a povoar-se de figuras e eventos ora mal definidos e mutáveis,
ora estereotipados e repetitivos.
Um esquizo me diz: "Não penso em nada; estou num buraco onde nada
tem sentido".
Outro: "As coisas estão aí, como que esperando que ocorra algo e meu
pensamento paira no ar como asas sem corpo. Tudo é muito estranho".
E, ainda, uma mulher: "Vivo, sim, faço algumas coisas na casa; há dias em
que tudo parece voltar ao normal, como era antes de entrar na doença; mas há
dias em que aparecem as vozes dentro da cabeça, sussurrando e falando besteiras;

303
O inquilino do imaginário

aí sei que esse dia ou mesmo a semana toda está perdida. Já pedi a Deus que me
tirasse a vida, mas ele me falou que eu tinha de expiar meus pecados". (27 anos,
transtornada depois de um aborto).
Esse é um tipo de vivência caracterizada pelo empobrecimento da vida psíquica,
o embotamento da consciência de si - o esvaziamento interior. Podemos postular
que esse tipo corresponde a pessoas menos dotadas intelectualmente ou já sofrendo
uma deterioração intelectual pelas condições de isolamento, passividade e
cronicidade da doenÇa.
Contudo, o fato de que registremos esse empobrecimento da atividade mental
em todas as esferas numa porcentagem considerável de pessoas psicóticas, não
invalida a tese de que eles também vivem num plano predominantemente imaginário,
embora este plano esteja igualmente empobrecido.
Transitar pelas vias imaginárias não significa que o sujeito seja fantasioso,
nem criativo; em determinados casos pode até sê-lo.
Esse trânsito pode ser muito vagaroso, com todos os sinais do cansaço e da
desmotivação, apenas perturbado por ocasionais fantasmas e figuras espectrais;
pode assemelhar-se a um deserto. Eu diria que é o que acontece com esse tipo de
pessoa. De todas as maneiras já não sabem lidar com os requerimentos e imposições
dos outros - todos aqueles que nos dão as coordenadas do real. Perdidos, sem
socorro externo, deambulam por caminhos desérticos.
Existem também os esquizos mais ativos, igualmente inaptos para
estabelecer um verdadeiro contato afetivo e efetivo com seus semelhantes -
essa me parece uma característica da loucura -, mas habitando um âmbito
imaginário mais dinâmico e complexo, mais agitado e por vezes tenebroso.
Cada qual desenha e povoa um mundo de acordo com a sua experiência e
segundo seja a feição e a natureza de seus conflitos. De qualquer maneira, as
temáticas e as variações que formam o urdume das fantasias predominantes
não são muitas, repetindo quase sempre determinados roteiros, certos perso-
nagens, a forma de expressar e experimentar uma artimanha ou uma ocorrência
imaginada.
Voltemos aos castelos no ar.
O que nos ensina essa intuição do saber anônimo? Ensina que os dois tipos
alimentam fantasias insustentáveis, incompatíveis com o princípio de realidade.
Os dois tipos agem segundo objetivos errados, mas o alcance do extravio marca
a diferença. O intuito do neurótico permanece em perpétua distância de seu
cumprimento; talvez como miragem e alívio parcial de suas dores. Não chega ao
abandono de sua base de sustentação; só que essa base é muito frágil Gá dizíamos
em outro capítulo que sua auto-estima era pobre e seu sentimento de poder
reduzido). Por essa razão vive na ansiedade ou desliza para a depressão (que é
o refúgio na passividade). O supercontrole do obsessivo, com sua necessidade

304
O inquilino do imaginário

de ordem e programação, delata igualmente essa fragilidade. E o histérico? Vive


na representação e na inautenticidade (num grau maior que as pessoas normais
e os não-histéricos, pois a inautenticidade é uma característica das relações sociais
em geral).
O psicótico vai mais longe; seu desarraigo é maior; inventa castelos no ar
para neles morar. "Moro na casa da lua"- me diz uma mulher de 33 anos, com
dez anos de estada nas terras de Selene- "perto do céu e longe dos humanos".
E como para me dar uma pista da índole de seus conflitos, agrega: "Meus
parentes dizem que sou lunática. Nem sempre me sinto assim, pendurada no
céu como uma foice ou um astro errante. Também me sinto feliz quando a
brisa entra pela janela ou quando converso com uma criança: já fui professora.
Às vezes penso que ainda tenho outra chance. Se encontrasse alguém que
gostasse de mim, acho que voltaria a viver com os filhos de Adão. Difícil.
Rezo ao diabo para que me proteja das mulheres e a Deus para que não me
transforme em homem".
Mas antes de ir mais longe, precisamos de um maior esclarecimento do que
entendemos por imaginação e imaginário.

A imaginação como representação de eventos e situações


meramente possíveis

Um saber comum nos ensina que as crianças e os loucos tendem a viver suas
ficções como verdadeiras, confundindo e misturando fantasia e realidade. Um
saber menos comum nos adverte de que esta confusão não é apenas uma propensão
de crianças e de loucos; acontece com todos nós em certo grau. Num grau maior
do que supomos.
Contudo, estaríamos errados se pensássemos que as fantasias infantis têm
o mesmo caráter que as fantasias que povoam o mundo mental de um louco. A
criança entra e sai de um jogo imaginário com extrema facilidade. Transforma
um cabo de vassoura num cavalo, e basta-lhe uma simples vestimenta de batman
para sentir que se transformou neste personagem; mas ela sabe que é fingimento,
um faz-de-conta.
O louco vive o imaginário como real e até com mais intensidade que as
situações objetivas e concretas que configuram sua realidade. Pode distinguir
entre o falso e o verdadeiro, entre o fictício e o real, sempre que esses elementos
não entrem na esfera de seu delírio. Ele pode saber o que deve fazer para
obter determinados resultados ou para ter um desempenho adequado num
trabalho. Pensa e age corretamente nesse plano de sua realidade. Mas existe

305
O inquilino do imaginário

todo outro plano onde predomina sem restrição sua fantasia: é o plano de seus
delírios.
Só quando está em surto psicótico, ou quando os delírios tornam-se
dominantes e invasores, é que já não lhe é possível conviver com uma realidade
compartilhada. Nesse caso torna-se um prisioneiro do imaginário; mas essa não
é a condição predominante entre os psicóticos. Vivem parcialmente num plano
delirante, embora esse plano termine por direcionar e caracterizar um mundo de
estranhamente e exclusão. De modo precário, uma fração considerável deles
(de 50% a 60%) pode levar uma vida de relacionamento interpessoal reduzido. Eu
diria então que são inquilinos do imaginário, pois têm a capacidade para sair dos
intramuros da alienação para admitir certas exigências externas que um convívio
mínimo lhes impõe.
Para levar essa idéia um pouco além, eu diria que todos nós - qualificados
convencionalmente como normais -somos passageiros e visitantes do imaginário;
entramos e saímos dessa esfera com relativa facilidade, sem nos importarmos.
muito com os limites entre a ilusão e a realidade, entre a ficção e o dado concreto,
entre a fantasia e os fatos. Superamos essas dicotomias na prática, vivendo
umas e outras.
Visitantes e freqüentadores discretos; inquilinos e moradores permanentes,
mas com um juízo certo sobre algumas realidades; prisioneiros permanentes de
um mundo delirante e onírico. Tais são, me parece, os modos mais característicos
de viver as ficções da vida.
Seria errado colocar a imaginação na linha do simplesmente ilusório. Imaginar
é uma função básica da mente que consiste em conceber eventos, personagens
e situações como meramente possíveis, em consonância com realidades
conhecidas ou não. Imaginar é superar o simplesmente dado para projetar-se
para um plano puramente possível. Na sua acepção mais elementar, é aprender
ou intuir o esquema de algo com os olhos do espírito: configurar uma imagem.
De todo modo, imaginar é uma forma da representação - ou pelo menos de um
aspecto desta função mental, pois a representação inclui a lembrança e a idéia,
que são três aspectos diferentes, embora se interpenetrem mutuamente.
A idéia relaciona-se com o conceito e, por esta via, com o entendimento.
A lembrança evoca um evento passado, seja na forma da mera imagem da
situação, seja no dito e no intencionado. Na forma mais plena, como vivência,
lembrar é ouvir o apelo do que já fomos, não importa se já esteja deformado pelo
vaivém do tempo ou fantasiado pelas necessidades presentes. Fantasiados na
direção da negatividade - com suas cores sombrias - ou do embelezamento -
com suas pretensões de grandeza e de glórias cerimoniais.
Imaginar não é reproduzir uma imagem - o rosto da pessoa amada ou a
Catedral de Brasília. Isso é lembrar. Podemos compor uma imagem com dados

306
O inquilino do imaginário

proporcionados: essa seria uma figura possível, ou provável, de um objeto


determinado. Esse é um primeiro passo do imaginar.
Pela imaginação estabelecemos um modo peculiar de relação com o mundo:
a invenção do possível como prenúncio de uma outra realidade- ou simplesmente,
como a outra realidade, aquela que se insinua pelas frestas do visível e aquela
que suspeitamos para além do horizonte: espaço aberto, mas já indicando nossos
limites.
No sentido apontado acima, a capacidade imaginante se inscreve numa
característica inerente ao ser humano: sua transcendência.
O ilusório pertence ao âmbito do engano e do falso; do que tem a mera
aparência do verdadeiro sem sê-lo. Nesse sentido apresenta-se como contra-
partida do real, como o irreal. O imaginário pode encaminhar-se pelo puramente
ilusório, mas não necessariamente. Continuamente estamos antecipando eventos
no curso de nossa ação, eventos que nesse percurso logo realizamos. Uma das
funções da imaginação é justamente esse antecipar-se à concretização de um fato
ou de um ato. Querer realizar um ato, um projeto, é concebê-lo como possível,
como compatível com as premissas de nossa realidade. Podemos prever as
dificuldades implicadas na sua efetivação, imaginar as peripécias de um
empreendimento, mas alimentar a fantasia de sua realização.
Pode-se dizer que rara vez tomamos nossos projetos como fantasias; pelo
contrário, vemos neles realizações possíveis, sobretudo quando nos empenhamos
em ações efetivas. Contudo, em pequenos ou grandes projetos sempre há alguma
dose de fantasia, de antecipação de um bem futuro e, inclusive, dos temores
associados a seu malogro. Não pensamos que seja algo ilusório.
Não é insólito que um belo plano desminta todas as nossas expectativas, uma
vez conseguido. É o que acontece no casamento, com uma freqüência que chega
a assustar aos mais entusiastas partidários dessa instituição (é sabido que fracassa
um terço dos matrimônios). Alcançamos um objetivo, mas ele não era o que
havíamos imaginado. Era uma ilusão. Mas o caráter ilusório de uma promessa e de
um bem futuro nunca foi uma objeção contundente contra uma promessa.
Diferentemente do ilusório, a ficção inscreve-se no âmbito do que tem uma
existência puramente possível ou hipotética; não é real nem irreal. Pode ser
perfeitamente real, até ser uma imagem muito fiel da realidade. Isso acontece
com muitos romances, que reproduzem ou se inspiram numa trama de eventos e
personagens que nós encontramos no espaço social, mas, como todo romance, é
só uma ficção. É o que acontece com as fantasias que povoam nosso espaço
imaginário: não são reais nem irreais; dependendo do grau de envolvimento
emocional, elas nos podem dar a impressão de realidades plenas, sobretudo se
são oriundas do medo ou da paixão erótica- talvez os dois maiores estimulantes
da atividade imaginante.

307
O inquilino do imaginário

Algumas formas de representação imaginária

Comecemos com uma constatação simples e preliminar:


Todos nós temos a capacidade de imaginar cenários e situações puramente
hipotéticas, sejam completamente inverossímeis e absurdas, sejam plausíveis e
sensatas. O que importa para que uma situação mental seja imaginária é que se
coloque no plano do possível ou da ficção. Só pessoas de inteligência muito limitada
mostram uma notória incapacidade imaginativa; isso não significa que quanto mais
inteligente é um sujeito maior seja sua capacidade imaginante. Apenas essa
faculdade se vê prejudicada em pessoas infradotadas.
Imaginar é uma função vital; sem a imaginação permaneceríamos fechados
nos estreitos limites da sensopercepção e da necessidade. É uma expressão e
atuação de nossa liberdade, que nos permite projetar e traduzir para o plano do
possível a trama complexa e contraditória que constitui a configuração anímica.
Projetamos essa configuração de diversas maneiras; as imagens caleidoscópicas,
o devaneio e as fantasias mais variadas são a expressão corriqueira. Mas existe
uma outra forma de expressão imaginante, associada tanto à inteligência quanto à
sensibilidade: a criatividade.
Na vida cotidiana, compenetrados nas tarefas e obrigações práticas que ela
impõe, pouco nos preocupamos em discernir o puramente imaginário daquilo que
entendemos por real; pensamos que temos condições para diferenciar esses dois
âmbitos- e, se exigidos pela situação e pelas circunstâncias, podemos fazê-lo sem
maiores dificuldades.
Ficcionamos todo tipo de eventos e de figuras, desde os mais banais até os
mais estranhos e insólitos. Esta é precisamente a capacidade conhecida como
imaginação.
Os produtos da imaginação constituem o imaginário. Fantasiar é exercitar
esta capacidade. Distinguimos dois campos do imaginário: o individual -
produzido e vivido pelo indivíduo - e o coletivo - que corresponde às
representações sociais mais diversas, desde os mitos e lendas até as imagens
publicitárias, passando pelas crenças que permeiam todas as esferas do espaço
social. Nem preciso dizer que há uma interpenetração mútua entre os dois
campos, sendo praticamente impossível para o indivíduo subtrair-se à influência
coletiva.
O urdume vivencial de uma pessoa está constituído por representações (idéias,
crenças, lembranças, fantasias), por constantes afetivas e necessidades, saberes e
valores. Deste e por este urdume configura-se e emana o imaginário do sujeito.
Ele alimenta e propõe as temáticas que caracterizam as imagens e ficções que
incitam, adornam e por vezes atrapalham nossa visão do mundo.

308
O inquilino do imaginário

Devaneio e divagação mental é o que freqüenta a existência imaginária das


pessoas quando não estão sendo solicitadas pela realidade imediata, que lhes exige
um desempenho consciente e pertinente. O pensar é menos freqüente. Pensamos
pouco e mal.
Pensar supõe fazer uma análise atenta de um problema ou de uma questão
que suscita nosso interesse. Pensar exige esforço, implica iniciativas do eu. Supõe
refletir: tomar distância do objeto para observá-lo melhor. As fantasias, pelo contrário,
emergem do transfundo anímico, daquilo que anima a vida, impulsionando-a pelas
vias do desejo, introduzindo em seus tecidos o hálito da emoção e da promessa.
A emoção do medo, da expectativa, do assombro. A promessa de um mais
além, de uma outra possibilidade, de uma conciliação das antíteses mais antagônicas.
Certamente o eu pode estimular determinadas fantasias, propondo-as como motivo
diretriz de um desejo que no momento não encontra sua realização adequada. É o
que faz quem apela para uma prática masturbatória; é o que faz quem recorre a
imagens de sucesso e fartura num futuro próximo, quando o presente lhe oferece
apenas as penúrias da indigência.
O devaneio nem sempre é um pictograma de fantasias; geralmente é um
composto de lembranças, pensamentos vagos e imagens diversas que se articulam
num tema que nos preocupa ou nos atrai.
Contudo, o devaneio e o sonho acordado (el ensuefío e la reverie, das línguas
espanhola e francesa) são um aspecto da atividade imaginante. Existem pelo menos
duas outras formas.
Existe a imaginação criadora, que auxilia o pensamento na sua pesquisa e
invenção de realidades possíveis, meramente especulativas e, por vezes, aparen-
temente fantásticas; mas essas fantasias criadoras obedecem ou a determinados
princípios ou mantêm a trama de um discurso coerente em sua arquitetura e
sustentável em suas intuições iniciais. Tal me parece ser o caso da pesquisa
científico-filosófica e das construções literárias mais ousadas.
Esse tipo de imaginário pode ter todas as feições do inacreditável e da ficção
mais insólita - como acontece com certa literatura de science-fiction e com as
invenções de um J. L. Borges-, mas sempre percebemos nessas produções o selo
da montagem elaborada, do efeito estético, da tese premeditada.
A outra forma da atividade imaginante tem as feições do perturbador, daquilo
que se impõe ao sujeito não como um jogo de eventos possíveis: surgem em seu
campo vivencial como realidades plenas, seja na forma de situações e pessoas
carregadas de intenções dúbias, provocativas; seja como entidades fantasmagóricas,
tentando influir no pensamento e na vida do sujeito; seja ainda como meras idéias
absurdas, aceitas pela pessoa com certeza incomparável.

309
O inquilino do imaginário

Essa forma do imaginário já se direciona pelas vias do sintomático; pelas vias


que anunciam uma ruptura profunda do sujeito com as exigências da realidade social,
traduzindo uma notória alienação e apelos, convenções e imposições dessa realidade.
Traduzem também uma cisão, um desencontro do indivíduo consigo mesmo.
Podem manifestar-se como simples imagens diretamente conectadas com
determinados sentimentos e desejos. Podem irromper na consciência do sujeito
como um fluxo quase permanente de idéias e representações, que absorvem e
direcionam os seus projetos.
No primeiro caso fazem parte das preocupações, ansiedades e estados afetivos
de tipo neurótico. Em todos os neuróticos- constantemente dominados por temores,

Esquema das Fontes do Imaginário

Valores e crenças
o+ As representações: idéias, lembranças, fantasias, imagens egóicas
Mitos e preconceitos
o+ As constantes afetivas: atitudes, sentimentos Normas e imagens
o+ As necessidades: biológicas, existenciais Criações artísticas, religiosas etc.
o+ Os saberes e valores
O contexto sociocultural da pessoa
-

receios, ritualismos, sentimentos negativos e de malogro pessoal - observamos


uma notória incapacidade para discernir o imaginário do real.
Na psicose, o sujeito tende a refugiar-se no imaginário num grau maior que
na neurose, chegando a uma ruptura com a realidade, o que significa que não
consegue compartilhar a vida comunitária com suas normas e exigências, ou sua
adaptação é muito precária e frágil.
Insisto: nem sempre é uma tarefa fácil distinguir entre o imaginário e o
real; não é fácil para quem está vivendo determinadas representações
imaginárias, que para ele têm muitas vezes a feição do real indiscutível. Não
precisamos ser neuróticos ou psicóticos para que isso nos aconteça. Basta que
entremos num plano emocional acentuado para que o imaginário impregne nossa
visão das coisas.
Aliás, como indiquei anteriormente, o imaginário não é sinônimo de ilusório
nem de falso, embora amiúde encaminhe-se por esse lado. Lembremos que o
imaginário individual é um plano de existência puramente mental, que menciona
objetos, eventos e situações meramente possíveis, sem existência factual, embora
possa ter todas as feições da realidade. São imagens simples ou ficções.
Há ainda um outro problema. Todos nós sustentamos nossa existência num
tecido de crenças. Como discernir uma representação sintomática de uma crença,
já que ambas entram na mesma categoria - a de simples crenças?

310
O inquilino do imaginário

Representações imaginárias e crenças

O campo social é o regulador e tematizador de nossas crenças e fantasias.


Quando as idéias e crenças individuais guardam certa correspondência com as
representações grupais e coletivas, dizemos que o sujeito está adaptado à sua
realidade. Crenças e representações compartilhadas não são sintomáticas em si,
embora vistas de fora do sistema de referência possam parecer absurdas.
É o que acontece quando julgamos crenças e práticas religiosas muito distantes
das nossas.
Não é fácil estabelecer uma diferença entre uma representação imaginária e
uma crença. Se eu digo: "acredito que há uma vida após a morte" ou "acredito que
o casamento continua sendo a melhor opção de relacionamento", são duas crenças
que me parecem verdadeiras mas suscetíveis de serem discutidas e eventualmente
postas em dúvida, não importa quão convicto eu esteja sobre essas duas proposições.
Ora, se eu imagino que sou um novo messias ou que está existindo toda uma
trama para prejudicar-me, pois o poder do mal teme o meu poder, essas duas
crenças são delirantes, muito provavelmente. Mas onde reside sua diferença com
respeito às outras duas anteriores?
Eu diria que as duas primeiras são enunciadas a título de hipóteses inseridas numa
prática coletiva que o sujeito dá como verdadeiras, mas que são susceptíveis de dúvida
e discussão- a menos que se trate de um fanático bitolado e obtuso. As duas segundas
carregam o selo do indiscutível e evidente: são vividas pelo indivíduo como simples
fatos, não como meras ficções- até passíveis de acontecer, mas, de todo modo, ficções.
J aspers ensinava que os delírios são mantidos com uma convicção ou certeza
incomparável.
Uma outra diferença que podemos apontar se refere ao caráter compartilhado,
grupal e social das crenças. Acredito que Jesus se sacrificou para salvar os homens
de sua condição meramente material (sua queda na pura contingência), propondo
um novo estilo e uma nova visão de vida. Penso que não foi o comportamento
megalomaníaco de uma pessoa exaltada. Essa é uma crença amplamente difundida
na chamada comunidade cristã. Ela recebe o selo de uma verdade essencial.
Geralmente os indivíduos interiorizam essas crenças- religiosas, políticas, ideológicas
- por via de uma aceitação passiva, acrítica, por mera pressão ou imitação do
meio. Neste sentido, as crenças compartilhadas são um elemento de identidade
social, pois integram o indivíduo a seu grupo de referência.
As idéias e fantasias delirantes, pelo contrário, são individuais, raras vezes são
compartilhadas por uma comunidade mais ampla, embora se dê o caso de que a pessoa
psicótica contagie outras pessoas com suas idéias e propostas. Foi o que aconteceu
com o famoso Jim Jones, o reverendo da Guiana, que num ato delirante terminou por

311
O inquilino do imaginário

levar a um massacre suicida todos seus seguidores. Contudo, cabe ressaltar que ainda
no exemplo da Comunidade de Jim Jones existia um fundamento prático- racional:
uma crença sensata numa nova forma de vida diferente de qualquer outra passível de
realização num contexto capitalista e tecnocrático. A proposta da comunidade não era
delirante; o delirante emergiu na cabeça do líder quando se defrontou com uma ameaça
de fiscalização por parte do senado norte-americano - ameaça que ele interpretou
como uma perseguição intolerável. Não é um ponto pacífico se esse redentorista já era
paranóide desde o momento em que iniciou sua tentativa utópica de fundar um novo
reino dos justos. Podemos julgar como excessivamente utópica sua pretensão de fundar
uma Comunidade dos Justos (tão freqüente na história da religiosidade ocidental), mas
toda tentativa de criar um novo tipo de sociedade contraria o sistema vigente, é utópica
(e essa tese vale igualmente para a doutrina cristã, na sua tentativa de oferecer um
novo projeto humano no seio da sociedade judaica e do Mundo Antigo).
Existe ainda uma diferença não menos importante. As crenças entendidas
como pressupostos existenciais, isto é, como convicções orientadoras, guardam
uma relativa coerência com a conduta do sujeito, seja na procura de objetivos, seja
nos relacionamentos interpessoais, seja ainda nos atributos creditados aos objetos
de sua crença. Se eu acredito que o casamento é a melhor opção para ter alguma
realização no plano erótico-sentimental, procurarei conseguir uma parceira que
sustente a mesma crença; ou no caso de que já esteja nesse estado, procurarei
manter o casamento, pelo menos evitando os conflitos dissolventes.
Isso vale para qualquer tipo de crença; se acredito que o melhor meio para
conseguir meus objetivos é a honestidade, procurarei agir segundo esse preceito;
se por acaso infrinjo esse princípio, provavelmente apelarei para racionalizações
que atenuem em parte meu sentimento de culpa; em caso contrário, orientado pela
convicção de que a maioria age fingindo ser honesta para assim manter uma fachada
de respeitabilidade, seguramente agirei de um modo coerente com essa premissa.
Essa coerência relativa entre crença e comportamento interpessoal não é
observada nas crenças delirantes. Ali Ramadam tem mostrado essa característica
com muito acerto. Vejamos o que ele escreve:
"Esse é um aspecto fundamental em todos os delírios e alucinações de natureza
endógena: o que os caracteriza, sem exceção, é que determinam, no doente,
modificações peculiares de conduta em relação às pessoas (algumas ou todas,
mas, ao contrário do que se poderia esperar, bloqueiam todas as condutas que
permitiriam modificar e corrigir os supostos fatos que lhes servem de conteúdo. O
doente nada faz para se precaver do envenenamento; prefere brigar com a esposa
que o envenena. O que se proclama Deus não usa seus poderes divinos para
livrar-se do vício de fumar, nem para se libertar do hospital; prefere discutir, agres-
sivamente, com todos os que contestam sua divindade. Uma doente, que durante
anos procurava médicos e tentava convencê-los de que sofria de câncer na mama,

312
O inquilino do imaginário

ficou agressiva e agitada quando um médico, à guisa de contentá-la, se propôs a


conduzi-la ao centro cirúrgico, para mastectomia; ficou irritadíssima e, alegando
que não admitia ser alvo de brincadeiras (apesar da seriedade aparente que o
médico adotara), evadiu-se e não mais se dispôs a ter contato com ele. Durante
anos essa paciente percorrera numerosos hospitais e, a todos os médicos,
independentemente da especialidade, com a convicção de sofrer câncer mamário,
sem ser solicitada para tal exame, despia o busto e exibia as mamas de forma
intempestiva, com visível ansiedade, sem nenhum resquício de pudor, usual até
mesmo nas cancerosas mais graves. Mas, ante o médico que demonstrou acreditar
no seu câncer, sentiu-se enganada e vítima de gracejo, reagindo violentamente, da
mesma forma que o doente citado por Henry Ey se irritou quando o médico lhe
disse que também ouvira bombardeios durante a noite.
Uma senhora que dizia ter visões de santos que a encarregaram da prodigiosa
missão de salvar a humanidade permanecia no hospital semanas a fio, discutindo
com a enfermagem questões relativas à sua comodidade, sem denotar qualquer
propósito de iniciar, de alguma forma, empresa de tamanha envergadura."3
Os casos narrados por Ramadam ilustram de um modo convincente esta
tese. Contudo, poder-se-ia contra-argumentar que há alguns tipos de delírios que
parecem desmentir esta incoerência. O delírio paranóide oferece-nos um bom
exemplo. O paranóide acredita ser objeto de perseguições e age conseqüentemente,
quando se resguarda de supostos inimigos. Resguarda-se e inclusive chega ao
ataque defensivo. Até aí chega sua adequação ideoprática. No demais mostra o
caráter em grande medida imaginário de seus medos e agressões. Digo em grande
medida, pois em todo paranóide há um sentimento de injustiça sofrida, que em
parte é verdadeiro. Sentindo-se injustiçado, sem laços de afeto positivo com outras
pessoas - o que lhe daria um sentimento básico de segurança e amparo - ou
mantendo laços frouxos com elas, o paranóide dificilmente encontra proteção em
seu círculo interpessoal. Sendo assim, age de um modo diferente do que faria uma
pessoa normal que está efetivamente sendo perseguida. Como o personagem de
Kafka (no seu livro O Processo), não sabe identificar seus perseguidores, tende a
suspeitar de algumas entidades, ignora do que é acusado, não procura amigos que
lhe ajudem a enfrentar ou neutralizar seus inimigos. Sim, pode identificar sua esposa
como agente do mal e até indicar o suposto motivo que ela teria para envenená-lo,
mas esse motivo é fraco e, não raro, irrisório.

Alguns testemunhos do imaginário psicótico

O leitor curioso, mas sem conhecimento direto do universo esquizo, conhecedor


apenas das imagens da loucura que lhe proporciona o cinema - que mostra a

313
O inquilino do imaginário

conduta destas pessoas e não sua maneira de pensar e os processos internos que
agitam seu espírito -, desfrutará de uma idéia bem mais visual do que seja o
imaginário psicótico se tiver acesso direto ao depoimento de algumas pessoas que
passaram uma estada prolongada nesse universo dividido- não apenas conflituado
nem mal-integrado, que isso acontece até com os chamados normais.
Não são muitos os depoimentos de pessoas psicóticas, cujo testemunho escrito
nos sirva como documento de análise de como se processa o pensamento e as
vivências dominantes nesse tipo de pessoa. Julgo pertinente oferecer o documento
escrito de uma pessoa que passou por uma experiência esquizo.
Trata-se da história de Ornar, a quem tratei por quase um ano em Santiago do
Chile. Na exposição que a seguir ofereço ao leitor, tive especial cuidado em
proporcionar os.dados biográficos fundamentais de Ornar, visando configurar assim
as linhas básicas de seu caráter e da dinâmica de seus conflitos. Como o leitor
apreciará, Ornar apresenta traços marcadamente paranóides, com as disposições
afetivas que tendem a gerar esse tipo de reação quando o sujeito já não consegue
lidar com as dificuldades que ameaçam seu precário senso de segurança.

A história de Ornar (27 anos, solteiro, chefe de compras)


''Escrever sobre um período conturbado não é fácil. Tentarei reconstituir alguns
momentos de minha vida. Agora que me sinto curado, talvez possa lhe contar o
que eu experimentava. Talvez falando uma e outra vez eu possa entender melhor
como surgiam todos estes sentimentos e idéias que me levam a tanto desvario.
"O Sr. sabe que eu era um cara tímido e violento, desejoso de amar e com muito
ódio, tolo e inteligente, sacana e cruel, mas de bom coração, humilde e cheio de
arrogância, claro e confuso. Assim era antes, agora não sou mais assim. Pelo menos
é o que quero acreditar. Não estou seguro de ter me liberado de tanta contradição.
"Por onde tudo começou? Não sei. Tudo vai surgindo de um modo lento,
silencioso, secreto. Quando a gente se apercebe do que está acontecendo nas
entranhas da gente, já a coisa tomou forma, cresce por sua conta, respira como um
feto qualquer na matriz. Não posso dizer que tive uma infância infeliz, nem muito
menos atroz, como acontece com tanta criança desamparada e miserável - esses
coitados que deambulam pelas ruas.
"Éramos uma fallll1ia de classe média; não faltava nada em casa, brincávamos
com os meninos da vizinhança, eu e meus três irmãos. Eu não era tímido na época;
talvez fosse um pouco mais sério que os outros, algo distraído e imaginoso. Assim
que aprendi a ler encontrei nos livros um belo recanto; aos dez anos já tinha escrito
algumas historinhas.
"Só no final da infância é que comecei a notar que algo andava mal: meus
pais brigavam. Sobretudo minha mãe. Ela era briguenta. Sempre tinha algum pretexto

314
O inquilino do imaginário

para rebaixar, fazer gozação, xingar meu pai. Meu pai era um cara caladão; nunca
se impunha em nada; quem mandava em casa era Dona Elvira- assim ele chamava
a mãe. Acho que eu considerava que todos os maridos eram como ele, algo retraídos
e subordinados às mulheres.
"Parece que algo aconteceu com meu pai. Parece que ele começou a
defender-se. Suponho que não agüentou mais a tirania da velha. Palavras vão,
palavrões vêm, um dia deu uma tremenda surra em minha mãe. Acho que a velha
nunca pensou que o panaca reagiria com essa fúria. Dona Elvira ficou puta; o
denunciou à policia. Resultado: o patife covarde, segundo a expressão dela, se
mandou. Foi embora. Desapareceu. Nos deixou. Isso mesmo. Se mandou sem
dizer nada; minto, falou para minha irmã, que era a primogênita. Durante anos ela
chorou sua ausência. Eu também senti sua falta.
"Nunca mais apareceu em casa; nunca mais soubemos qual foi seu destino.
Assim mesmo. Abandonou a firma, desapareceu da cidade. Voltou para sua pátria,
Espanha? Não sei, ninguém sabe. Minha mãe dizia que tinha fugido com uma
amante. Não parecia importar-se.
"Deve ter sido a partir desse fato que eu me apercebi em que trem tinha embarcado.
Até então era um menino confiante e sonhador. Continuei sendo sonhador, mas perdi a
confiança. Não de sopetão, mas aos poucos. Talvez tenha sido algo notório no ginásio.
Não gostei de algumas professoras, sobretudo da velha de matemática, que um dia me
perguntou, perante toda a turma, o que fazia meu pai. Eu, inocente, lhe respondi que
tinha largado a casa, que não sabia onde se encontrava. Aí a velha fez alguns comentários
sobre lares desfeitos e as tristes conseqüências que isso tinha para os filhos; isso gerava
revolta, jovens delinqüentes, doenças mentais e, nas mulheres, prostituição. Eu nem
sabia o que significava essa palavra, mas ficou gravada na minha cabeça.
"Quando terminou seu falatório, me sentia envergonhado, por baixo. Pensei que
não poderia voltar mais a essa escola. Em casa contei tudo a Dona Elvira. Apanhei
como se fosse culpado de um crime. Minha mãe berrava. Imbecil, imbecil, toma isso,
para que aprendas a manter a boca fechada! E batia com seu sapato onde caísse. Não
sabes que não deves ficar falando sobre teu pai? Não te falei que se alguém te perguntasse
tinhas que dizer que ele trabalhava em Valparaíso? E vamos batendo.
"Aí foi que aprendi bem a lição. Ela nos dizia que felizmente o bosta tinha
desaparecido; agora tinha que mentir; precisava dizer para os outros que papai só
aparecia em casa nos fins de semana porque trabalhava longe. Continuei nessa
maldita escola durante o ano todo; procurei permanecer escondido, em segundo
plano. Eu que até alguns meses era um menino espontâneo e algo pretensioso,
tomei-me esquivo e algo encolhido. Era encolhido perante os outros; nunca o fui
no fundo de mim mesmo. Eu que era confiante me tomei desconfiado. Houve
outras mudanças com o passar do tempo. Só uns três anos mais tarde, mais ou
menos aos 15-16, é que de sociável passei a ser solitário propriamente.

315
O inquilino do imaginário

''Em várias sessões já tratamos a questão material, da sobrevivência econômica,


depois que o pai se mandou. Até que ele foi bacana. Nos deixou alguns bens; três
casas, incluída aquela em que morávamos; casas boas, que a velha alugava para
uma flrma. Aliás, Renato, mais velho que eu 8 anos, começou a trabalhar 3 ou 4 anos
depois, assim que se formou em Administração. Fulano sortudo; entregava todo seu
salário nas mãos de Elvira. Sim, Renato sempre foi o favorito da mãe. Ela o colocava
sempre de exemplo. Era o mais bonito, o mais inteligente, o mais carinhoso. Era
exatamente o que eu não era. Engraçado, não é? Ela não dizia que eu era estúpido,
nem imbecil, nem mau. Aos 14 anos, por aí, começou a dizer que eu era a sua cruz, que
uma cigana lhe tinha dito... bom, eu já falei para você a história dessa maldita cigana,
cuja maldição teria que cumprir. Se houvesse falado uma vez essa história da
cigana, talvez nem tivesse me importado; mas repetiu o augúrio para todos os
parentes, e até para o único amigo da minha adolescência, o Mário."
O leitor se estará perguntando qual foi o augúrio da cigana. Dona Elvira, a
mãe, referia que, quando Ornar era pequeno, uma cigana apareceu na casa e fez
alguns vaticínios; o primeiro já se tinha cumprido, pois aquela mulher vaticinou que
o marido a abandonaria por outra. O segundo, tarde ou cedo se cumpriria: um dos
filhos enlouqueceria. A cigana não indicou qual seria o futuro louco, mas a mãe foi
identificando ano após ano aquele que seria a sua cruz; todos os indícios identificavam
o pirado da fallll1ia: Ornar.
Sempre havia um indício. Ter falado para aquela professora sobre o
desaparecimento do pai foi um. Depois vieram muitos outros. Foram as más notas
no colegial, a repetição de um ano, um suposto descuido na higiene pessoal; foi
também a falta de um grupo de amigos, o isolamento social; outro indício era o ciúme
que Ornar parecia experimentar contra Renato; não faltou sequer o vício da
masturbação, que a mãe atribuía a Ornar. Depois, quando ele tentou ganhar o sustento,
a suspeita teria mais uma confirmação: Ornar, por falta de qualificação profissional,
nunca teve empregos dignos de um membro da classe média - até os 22 anos, data
de seu primeiro emprego decente, era um simples cobrador de uma firma insignificante.

Dois testemunhos do ator protagonista - Mário e Vera


Quem era Ornar na fase mais problemática da vida humana, a adolescência?
Para reconstituir qualquer etapa biográfica, temos o testemunho do ator dessa vida, seu
agente principal, e o testemunho daqueles que interagiram com ele- seja na condição
de amigos, seja na de familiares, que são os atores mais próximos do protagonista.
Tive duas entrevistas, uma com Mário, seu amigo de adolescência, e outra
com sua irmã Vera. Mário é um homem de 28 anos, recém-formado em psicologia.
Resumo seu depoimento:
"Tratei Ornar durante 3 a 4 anos; éramos colegas no ginásio e durante um
ano e pouco do colegial, até pouco antes dos 17 anos. Era um moço idealista, de

316
O inquilino do imaginário

grande sensibilidade para a música e um bom aluno em história e literatura. Fomos


bons amigos naquela etapa. Parecia um pouco tímido numa primeira impressão,
mas quando estava num grupo tentava vencer suas reservas participando da
conversa com observações agudas e inteligentes, reveladoras de boas leituras e de
interesses intelectuais bem acima da média da turma. Tinha dois defeitos que o
tornavam antipático perante os colegas: costumava usar a ironia com seu interlocutor
ou quando se referia a um terceiro e, por vezes, era algo pedante. Gostava de
mostrar que ele tinha competência intelectual. A mim não me incomodava; pelo
contrário, gostava que ele chegasse com um livro novo, que tinha comprado 'furtando
uns trocados a Dona Elvira'. Eu percebia que o clima familiar era algo conflituado,
pois o modo de Ornar exprimir-se sobre sua mãe era cáustico e agressivo, com
críticas e observações diretas para todo mundo. Tanto assim que numa ocasião,
depois que Ornar confessou ter gasto um dinheiro indo à ópera, comentou a história
da cigana, dando claramente a entender quem era o filho pirado da farm1ia. Na
época eu não entendia de questões psicológicas, mas intuí que era uma tolice
maldosa daquela senhora, que só podia prejudicar a meu amigo.
"Tenho belas lembranças dele. O vejo chegando à escola com um livro de
Heródoto, o pai da História; ele sonhava ser professor dessa matéria. Juntos líamos
os grandes poetas: Neruda, García Lorca, Nicanor Parra, Borges; o vejo chorando,
depois de uma sessão de cinema, "Os 400 golpes", a história de um menino que
sofre as conseqüências de um lar desfeito pelo desentendimento dos pais. É verdade
que sempre estranhei sua reserva sobre dois assuntos: sua farm1ia e as mulheres.
No estágio em que todo adolescente anda doido por sexo, xeretando aqui e acolá,
ele se mostrava esquivo e reticente.
"Ornar nunca comentou assuntos familiares com ninguém, nem sequer comigo.
Fiquei sabendo do desaparecimento do pai por Dona Elvira que, num tom
despreocupado e algo jocoso, comentou que tinha regressado à Espanha, para
alegria geral da família (alguma coisa do gênero).
"Deixei de vê-lo uns seis anos; quando nos reencontramos, ele deveria andar
pelos 22-23. Percebi logo que tinha mudado. Parecia uma pessoa assustada ou
sobressaltada, com um olhar perscrutante e inquieto. Pela conversa que tivemos,
me pareceu uma pessoa profundamente frustrada. Era cobrador, fazia algo que
lhe desagradava, mas precisava ganhar o sustento, porque não suportava as queixas
da Elvira e porque não queria ser um parasita. Detestava os patrões e os clientes
morosos. Ironizou o fato de que eu andasse com um carro relativamente novo, que
aliás não era meu. Mostrou-se sarcástico com as mulheres, dizendo que todas elas
queriam pegar o bolso e o zíper. Quando lhe apresentei minha namorada, sua
reação piorou. Tudo era muito injusto. Os bens estavam mal repartidos. Para uns
tudo; para outros nada, ou apenas os despojos. Ele só pegava empregadas
domésticas. Entendi que minha situação lhe provocava inveja e desconforto.

317
O inquilino do imaginário

''Nos vimos duas ou três vezes mais. Cada encontro foi pior. Eu havia começado
psicologia e alguma coisa entendia de neurose~ lhe insinuei, muito discreta e
delicadamente, que consultasse um terapeuta. Seria uma simples orientação para
avaliar sua vocação e seus interesses, talvez para ajudá-lo no lado emocional.
"A partir dessa conversa, Ornar me evitou. Dois anos depois tive notícias
dele por intermédio da irmã. Havia sido internado numa clínica para que se
recuperasse de uma reação paranóide."
Vera agregou algumas pinceladas novas a este quadro traçado pelo amigo. E
Mário, além de confirmar o que Ornar já tinha relatado para mim, nos ofereceu
alguns traços caracteriais do camarada na sua fase adolescente: sua sensibilidade,
suas pretensões intelectuais, uma notória arrogância junto com uma agressividade
irônica. Estes são justamente os traços que predispõem uma reação paranóide:
Sensibilidade - inteligência - arrogância - vontade de ser alguém
Sentimento de injustiça sofrida- frustração - desconfiança- agressividade
Vera é uma mulher beirando os 38, de aspecto bem disposto e atento.
Sempre sentiu um afeto muito especial por seu irmão, embora nunca soubesse -
confessa - expressar adequadamente este carinho. "Aliás, ninguém de nossa
família sabe exprimir afetos positivos. Eu e Renato tomamos consciência de que
era necessário assumir a responsabilidade material da casa assim que o pai nos
deixou. Não havia problemas econômicos, pois o pai passou todos os bens imóveis
para nós, mas era conveniente cuidar desse aspecto: não queríamos descer de
padrão de vida. A idéia de manter uma boa posição econômica sempre foi um
ideal irrenunciável para todos nós. Talvez por isso Ornar se sentisse tão humilhado
por ter de trabalhar num emprego sem qualificação. Por isso sentiu seu fracasso
escolar como algo insuportável. Infelizmente, minha mãe nunca lhe poupou
críticas: o julgava desleixado, sem sentido prático, sem disciplina nenhuma. Até
certo ponto ela tinha razão; Ornar sempre gostou de literatura. Agora trabalha
em algo prático, porque aprendeu que a realidade pode ser melhor que a fantasia.
"O pai? Não o julga; sofreu muito por sua ausência e pelo modo de retirar-se
de cena. Pensa que seus pais não se amavam, e que nunca se entenderam. Podia
ter havido uma separação menos dolorosa, mas não foi assim. Está convicta de
que se o pai estivesse por perto Ornar não adoeceria, pois nele haveria encontrado
os suportes necessários para enfrentar as maiores dificuldades. Ornar sempre
gostou do pai.
"Quando Ornar começou a trabalhar num emprego melhor, lá em Talca, a
mãe reavaliou seu juízo em relação a ele. Contudo, já era tarde; o jovem já não
podia apreciar essa mudança materna: carregava consigo toda uma história de
mágoas e conflitos."
Voltemos agora ao depoimento de Ornar sobre como foi seu período de
passagem pelo inferno - como ele o qualifica.

318
O inquilino do imaginário

"Eu não sei precisar quando entrei no inferno, mas quando deixei o colegial e
me defrontei com a necessidade de ter um trabalho que permitisse atender minhas
necessidades básicas, aí foi que o desespero e o medo começaram a atormentar-me.
"Deixar a escola foi talvez a primeira grande tolice que cometi na minha vida,
e ainda mais no último ano do colegial. A verdade é que eu queria trabalhar e
terminar os estudos num colégio noturno; assim mudaria de ambiente e me tomaria
independente no plano material. Ingenuidade a minha. Não sabia que o mercado
de empregos era uma desgraça. Contudo, não foi simples burrice. Eu via que meus
dois irmãos mais velhos já estavam ganhando bons salários; eram independentes;
eu era um parasita. Minha situação era já de distanciamento da farm1ia e de conflito.
"Isso de procurar emprego é uma escola muito boa: termina com as ilusões
de qualquer um; aí acaba a juventude e quebram a cara os mais durões.
"Só encontrava porcaria; ofícios humildes para gente sem qualificação
profissional. Tentei ser vendedor; foi o mesmo que oferecer santinhos para o diabo.
Fui um tempo breve vendedor de loja; logo me mandaram embora quando o chefe
percebeu que eu fazia descontos especiais para moças bonitas. Tolice, mas era o
recurso que eu tinha para conquistá-las. Finalmente caí em cobranças.
"O que mais me amargurava era o contraste entre mim e meus irmãos. Renato
era o sucesso em pessoa, eu era o fracasso na sarjeta. Ele costumava, aliás, fazer
alguns comentários maliciosos sobre meus pruridos intelectuais. 'Vamos, poeta,
aceita as regras do jogo. De leituras e sonhos ninguém vive. Trabalha, pega algumas
garotas e poetisas depois.' Eram seus conselhos.
"Hoje eu entendo que eram conselhos sensatos; na época feriam meu orgulho;
humilhavam, pois eu estava tentando achar um emprego decente; queria e sonhava
ser uma pessoa destacada e meritória. Senti-me muito frustrado por ter que
abandonar o último ano do colegial. Que outra coisa podia fazer? Não estava em
condições psicológicas para atender às exigências da escola. Vivia uma grande
angústia. Ninguém me entendia. Ninguém. Não me atrevia a extravasar meus
sentimentos, salvo em momentos de raiva ou apelando para a ironia- o que me
tomava mais antipático perante meus colegas. Sentia-me muito só. Divagava o dia
todo, perdido nas mais tétricas fantasias.
"Passei quatro anos e pouco assim. Aos 21 anos me ofereceram um emprego
como oficial administrativo numa outra cidade. Fui com muita esperança para essa
cidade. Assim me liberava de algo que já não agüentava mais: permanecer na casa
materna. Foi então que comecei a suspeitar de algo que primeiro me assustou, mas
que com o tempo foi tomando corpo :qa minha mente: havia um mistério no
desaparecimento de meu pai que eu tinha de desvendar.
"Foi nessa mesma época que comecei a sonhar com o regresso de meu pai.
Sim, ele voltava; eu era menino de 10 ou 12 anos. Tocavam a campainha, eu abria
a porta e lá estava ele, sorrindo para mim. Não sei quantas vezes tive esse sonho.

319
O inquilino do imaginário

Nem sempre se apresentava dessa maneira. Aparecia em outro lugar da casa,


sempre sem falar nada. Nem eu dizia nada.
"Passei dois anos e seis meses naquela nova cidade; de longe em longe
reaparecia esse tipo de sonho. Tive pesadelos; via-me fugindo, perseguido por
desconhecidos. A verdade é que eu me sentia um perfeito estranho naquele lugar;
aliás, em que lugar não tinha sido um estranho?
"Nem tudo foi miséria naquela cidade. Lá tive a namorada mais amorosa que já
conheci. Digo agora, pois nessa época não percebi o valor daquela moça. Estava
demasiado sufocado em meus problemas emocionais para poder corresponder a seu
carinho. Pelo contrário, me comportei como um estúpido com ela. Ainda me dói lembrar
as tolices que lhe fiz. Ela procurava entender-me, se comportava comigo como uma
verdadeira esposa. Preparava comida, arrumava a kitchnette, lavava a roupa; até me
apresentou a sua farrn1ia- para que eu tivesse pessoas com quem me relacionar, mas
eu já estava no primeiro círculo do inferno. Cachorra nojenta - lhe falei um dia -,
pensas que fazendo tuas artimanhas, mostrando-te prestativa, eu vou aceitar um
matrimônio. Isso nunca, nojenta. O casamento é a pior infâmia que já se inventou. A
mulher fica em casa, folgada, vendo TY, enquanto o imbecil do marido sai a procurar a
grana, trabalhando no que apareça por aí. Ttra o cavalo da chuva, cretina.
"Assim pensava eu então. Pensava? Acho que não pensava; sentia, imaginava.
Se houvesse pensado, teria agido de maneira diferente. Não teria agredido aquela
moça da maneira brutal como fiz. Como era lógico, ela terminou largando-me.
Não pense você que eu fiquei tranqüilo. Não. Reagi como se ela fosse uma infame;
deixava-me justo quando eu mais precisava dela, sabendo que eu não contava com
ninguém, que não tinhà fallll1ia, sabendo que minha relação com os colegas de
serviço era puramente formal. Tive vontade de matá-la. Sou um cara forte,
musculoso, poderia liquidá-la muito facilmente.
"Depois dessa queda entrei no segundo círculo. Primeiro tentei comunicar-
me com ela por telefone; ela se negou. Só respondia a empregada; nenhum familiar
seu queria papo comigo. Sem vacilar, apresentei minha demissão no trabalho. Tudo
estava fervendo na minha cabeça. O chefe deve ter percebido meu estado, pois
me perguntou se estava me sentindo doente. Estava num estado de exaltação.
febril. Só queria esmagar alguns porcos, lhe respondi.
"De fato, lembrei que um cara da lanchonete tinha tirado o sarro de mim;
naquela ocasião apenas me irritou um pouco. Agora, já fora de mim, sentia uma
urgente necessidade de saldar contas com esse desgraçado. Lhe mostraria que
com Ornar de Castilla, nobre espanhol, não se brincava. Esse canalha aprenderia
que um nobre não perdoa ofensas. Meu pai jamais consentiria que eu, seu filho,
. deixasse de manter minha honra no alto.
"Eu sabia o que tinha de fazer. Fui até a lanchonete pouco antes de fechar. O
cara era um dos donos; estava no caixa, fazendo as contas. Encarei-o com firmeza.

320
O inquilino do imaginário

Nesse momento poderia enfrentar um tanque. Era um fulano mais alto que eu, jovem,
de tipo esportivo. Venho saldar as contas contigo, porco nojento -lhe falei. O fulano
me olhou surpreso. Não te lembras de mim, porco? Não queres tirar o sarro novamente?
Sai daí que agora vou te esmagar a língua, cretino!
"Não sei o que mais falei. Devo ter continuado agredindo-o. Só vi que o cara saía
do caixa com revólver na mão. Ouvi que me ameaçava, que eu caísse fora dali
antes que disparasse. Dispara, cretino, dispara. Pensas que me assustas? Não me
assustava nem um pouco, pelo contrário, via o medo na sua cara. Covarde, não
sabes que a mim ninguém ofende. Via o medo dele no tremor da mão que
empunhava a arma. Não te atreves a matar-me, verme?
''Lembro-me de que com um movimento rápido o peguei pelo pulso, obrigando-
o a soltar o revólver. Aí senti um violento impacto no rosto e imediatamente me vi
no chão. O cara me tinha esbofeteado. Não sei quantos socos mais me acertou,
nem quantas vezes rodei pelo solo. Apenas sabia que tinha que pegá-lo no abraço
do urso; tinha que imobilizá-lo com as mãos; aí residia meu poder. Não sei como
aconteceu, mas consegui. Não sei socar; sei que tenho duas tenazes nas mãos. Sei
que o paralisei pelos pulsos e em seguida lhe dei um violento empurrão em direção
a uma vitrine. O cara pareceu ficar ali, meio inconsciente. Não me importava.
"Devia parecer o demônio em pessoa. Lembro que um grupo de curiosos me
olhava, afastando-se temerosos quando eu saí por uma das portas hiterais.
"O que aconteceu nos meses seguintes?
''Devo ter ficado um mês fechado na kitchnette, saindo apenas nas noites. Durante
o dia escutava música, escrevia e maquinava o andamento de meu ódio. Sim, também
daria uma lição de fidalguia ao irmão de minha namorada. O cretino também se tinha
permitido chamar a atenção da irmã porque ela se mostrava subserviente comigo. Iria
procurá-lo à saída da faculdade. Até com meu grande amigo, o Mário, devia acertar. A
última vez que nos encontramos ele tinha insinuado uma provocação malévola. Por
acaso ele tinha acreditado no falatório perverso de Elvira? Não seria surpreendente se
houvesse prestado atenção a essa... essa assassina.
"Sim, agora entendia tudo. Agora atava os fios de uma trama que até então
nunca entendera. Agora me parecia claro o que aquela mulher tinha feito com o
meu pai, e o que tinha feito comigo. Como não tinha conseguido dominar meu pai,
decidiu matá-lo para assim ficar com sua fortuna. Como eu era o único que me
parecia com o velho, ela sempre me tinha aporrinhado a vida, humilhando-me,
amaldiçoando-me.
"Então ela também tinha de morrer. Foi como se em todos os muros estivesse
escrita esta sentença.
"Depois dessa descoberta, devo ter ficado mais de uma semana chorando
aos berros. Era demasiado dolorosa para mim esta conclusão. Eu preferia a versão
oficial, essa que astutamente eles tinham forjado. Eles: Renato e Fernando, juntos

321
O inquilino do imaginário

- com a velha. Só minha irmã era inocente. Ela também tinha acreditado que o pai
estaria na Espanha, longe de uma mulher que nunca lhe deu afeto.
"Depois desta descoberta apoderou-se de mim uma angústia mortal. Aí já
estava no terceiro círculo. Por um período, o ódio cedeu lugar a outros sentimentos.
O que predominava era o medo; sentia-me ameaçado por tudo. Procurava manter
o máximo de silêncio no apartamento; assim evitaria qualquer visita inconveniente.
Temia que o fulano da lanchonete aparecesse acompanhado de alguns capangas
ou da polícia. Sentia que estava condenado a um destino atroz, solitário e sem
àpoio de ninguém. Aí, nesse transe doloroso, clamava por meu pai. Pai, onde quer
que te encontres, dá-me uma dica, não me deixes aqui nesta teia de aranha.
"Passava por minha mente um cinema contínuo de imagens; cenas antigas,
já vividas; cenas futuras, que pressagiavam meu exílio e encurralamento. Cenas
caóticas que não acertava entender.
"Uma dessas noites acordei transpirando. Acabava de ter aquele sonho do re-
gresso do pai. Ele parecia envelhecido, de feições duras. Entendi que estava furioso.
Censurava alguma coisa que eu não entendia. Depois gesticulava e queria mostrar-me
alguma coisa. Era um caixão. Levantava a tampa e dentro estava ele mesmo, morto.
"Já não tive nenhuma dúvida. Esse sonho era uma mensagem direta daquilo que
me estava atormentando. Ele fora assassinado por minha mãe e eu precisava vingá-
lo. Levantei-me às pressas. Estava amanhecendo. Fui até a rodoviária. Sentia uma
espécie de embriaguez. Parecia-me que tudo estava acordando para uma nova era.
Experimentava uma mistura de excitação pungente e de expectativa ansiosa. Fui
caminhando até a estação. Ao entrar no ônibus que me levaria a S., senti que todos me
observavam. Já todos sabiam o que ia fazer. Liam o meu pensamento; trocavam olhares
significativos. Dois caras iam conversando; pareceu-me que falavam em código para
que eu não captasse o que se comunicavam. 'Em toda família existe este tipo de
problemas', falou um. Sem vacilar cutuquei-lhe o ombro. O cara voltou-se algo smpreso.
'É conveniente não se meter em problemas de fann1ia que não é a sua, está entendido?'
-lhe adverti, e sem esperar resposta fui sentar-me na frente, sozinho.
"Na cidade de S., que tão bem conhecia, tudo me pareceu muito estranho. Estava
desconcertado. Não reconheci a praça Almagro. Será que tinha pego o ônibus errado?
Demorei um bocado para aproximar-me de um transeunte para certificar-me de onde
me encontrava. Sentia que as pessoas me olhavam de relance; estavam espiando
minhas intenções. Onde podia resguardar-me um pouco de toda essa multidão? Era
terrível ser objeto da curiosidade malévola de toda essa gente. Como era possível que
não houvesse reparado até então nessa espécie de radar que usavam todos para captar
as manobras e intenções dos outros. Se pelo menos usassem óculos escuros.
"Fui a um quiosque de jornais. Comprei uma revista; o jornaleiro me confirmou
o nome da praça. Mudou muita coisa por aqui nestes dois últimos anos -comentei.
Não é que as coisas mudem, companheiro, é a gente que muda e por isso nos sentimos

322
O inquilino do imaginário

estranhos nos mesmos lugares -respondeu. Achei muito profunda sua observação.
Um jornaleiro nunca teria suficiente inteligência para distinguir entre ousia e nous.
"Compreendi em seguida que aquele homem estava ali representando um
papel. Policial disfarçado? Não. Observei melhor. Os traços do homem me
permitiram agora identificar de quem se tratava. Era o professor Rodriguez, meu
professor de Filosofia no colegial. Era algo absurdo; devia ser pura confusão minha.
"Não podia continuar ali. Lá na frente havia uma igreja. Talvez estivesse
aberta. Lá pelo menos ficaria longe desta multidão odiosa. Já dentro do templo
tentei rezar. Rezar para quem? Deus nunca ouviu minhas preces. Quando pequeno
ficava olhando para Jesus pendurado na cruz, mas ele permanecia com a cabeça
inclinada como se uma dor insuportável lhe impedisse todo movimento. Invocar a
presença de um outro deus? Nunca conheci outro. O deus dos filósofos, abstrato e
ininteligível, era algo impossível para mim. Jesus, tu que precisas renunciar a tudo
para cumprir tua missão, dá-me forças para cumprir a minha. Estava em pé
contemplando o Filho do Homem, cravado na cruz. Contemplava-o e repetia meu
pedido. Queria ter um sinal que me orientasse na minha dolorosa missão.
"Não sei quantas vezes repeti essa prece, nem quanto tempo fiquei em pé sentindo
a dor do nazareno. De repente, observei a resposta. Seu rosto começou a mudar deva-
gar. Quem estava ali com o rosto infinitamente triste era meu pai. Senti uma espécie de
vertigem. Tive de afirmar-me para não cair. Não podia ser. Já não me atrevia a abrir os
olhos. Quando os abri, ainda trêmulo e assustado, tudo parecia normal. Apenas algumas
mulheres estavam ajoelhadas, rezando para um deus longínquo e ignoto.
"Andei umas duas horas, devagar; sei que a casa de minha mãe está a uns
sete quilômetros da praça Almagro, lá em Nunhoa; nem precisei tocar a campainha;
a empregada estava saindo. Ficou olhando-me, como se não me reconhecesse.
-Sou eu, Rosa. Tem gente em casa?
-Deus! Sr. Ornar, está doente?
"Não respondi; estava demasiado cansado; precisava achar um canto qualquer
para descansar e fugir da luz do meio-dia, que jogava reflexos brilhantes sobre as
coisas provocando-me a sensação de vertigem.
"Minha mãe? Estava na ca_sa do Renato. Voltaria à noite. Respirei aliviado.
Não estava com vontade de esitagar uma mosca. Eu estava esmagado.
" - Parece tão cansado, Sr. Ornar. Quer que lhe prepare algo para comer?
"Rosa sempre foi uma mulher prestativa. Uma vida de servidão lhe tinha
ensinado uma humildade tranqüila, por vezes algo bovina. Não, preciso dormir.
Ainda está desocupado o quarto dos fundos? Sim, esse era meu quarto. Estava
quase igual como o tinha deixado dois anos atrás. Antes de adormecer fiquei
contemplando uma fotografia de nós quatro pendurada na parede; eu tinha aí uns
10-11 anos e já-a melancolia assomava nos meus olhos.

323
O inquilino do imaginário

"Acordei sentindo qua alguém passava a mão na minha cabeça e no rosto.


Era dona Elvira. Filhinho, que surpresa; você veio visitar-nos. MuitQ bom. Filhinho?
Jamais antes tinha me chamado por esse nome. O último Natal tinha estado em
casa; nessa ocasião não me poupou algumas ironias. Seu· colega Enrique
Fernandes, aquele lourinho simpático, acaba de formar-se em Administração de
Empresas. Ele soube aproveitar seu tempo; agora lhe espera um brilhante futuro.
Aquele calhorda passava de ano colando dos colegas e bajulando os professores.
"Observei pela janela que estava escuro. Havia dormido umas 7 horas. Como
está se sentindo, filho? Parece um pouco febril. Quer que lhe chame um médico
para que o examine? Não, estou apenas cansado. Bom, Rosa vai lhe preparar um
banho bem quentinho para que se sinta melhor; depois jantamos todos juntos. Já
avisei sua irmã que você está conosco. Ela ficou muito contente. Sua tia Hortência
também virá; lembre-se de que sua tia sempre gostou de você.
"Essa noite falei pouco. Não quis contar a ninguém que tinha renunciado ao
emprego. Não queria ver as caras de circunstância que poriam. Todos pareciam
contentes. A tia Hortência foi mais longe em suas atenções: me obsequiou dois discos,
um de música indiana e um quarteto de surdo. Não parou aí; talvez para agradar-me
falou que agora começava a entender a poesia de García Lorca, que inclusive tinha
assistido a Bodas de Sangue, com minha mãe. A senhora foi ver uma peça do Lorca?
- exclamei,dirigindo-me a Elvira. Pois é, menino, eu também sei apreciar os grandes
valores da arte, sobretudo da arte clássica espanhola; por acaso te esqueces que, bem
ou mal, fiquei casada quase vinte anos com um espanhol, teu pai? Mamãe fala para
todo mundo que tu escreves com grande talento, irmão - comentou Vera.
"Isso era demais. Tudo aquilo era uma encenação. Eles já sabiam tudo; estavam
lendo meu pensamento. Haviam montado aquilo para dominar-me ou talvez para...
liquidar-me. O que fazer? Tinha de fazer-lhes crer que não percebia nada, que tudo
estava em ordem, que apenas passaria um tempo de férias com eles para depois
retomar meu serviço. Isso era demais para mim. Sim, eles ficavam muito gratos de
saber que minha vida havia mudado, que havia encontrado, por fim, aquilo que todo
jovem inteligente aspira- o lugar certo na sociedade. Quem sabe se decidia oficializar
o namoro com Inês - comentou Vera, piscando um olho em sinal de cumplicidade.
Desculpou-se em seguida de sua inconfidência, pois no Natal eu admitira que estava,
de fato, namorando com aquela moça que um mês atrás tinha me largado. Todos
eles brindaram por meu futuro conjugal; até minha mãe parecia emocionar-se.
"De modo que Vera também fazia parte da trama; ela, a única diferente de
toda a farm1ia; a mesma que manteve a memória do pai nas suas lágrimas. Era
incrível. ·Que tia Hortência participasse de um complô para eliminar-me não era
tão surpreendente. Ela sempre marcou o passo do boi no sulco.
"Tia Hortência sugeriu tomar o café na sala de TV; lá era mais quentinho. Ela
e Vera se dirigiram em seguida àquele lugar. Senti que tin.ha chegado o momento

324
O inquilino do imaginário

oportuno para falar. Minha mãe ia se levantando para acompanhá-las, mas eu a


detive com um gesto. Ela ficou imóvel: sabia muito bem o que eu estava sentindo.
- Saiba, Elvira, que você não fará comigo o mesmo que fez com meu pai.
Saiba que você terá o castigo que merece.
- De que está falando, Ornar? O que eu fiz com seu pai?
-Maldita hipócrita! Assassina! Você pode enganar os outros, a mim não.
"Estava tremendo na cadeira. Vi o medo em seus olhos.
- Durante anos você envenenou minha vida. Não engoli uma palavra desta
encenação. Mataste meu pai e agora tramas minha morte!
"Saí; não podia permanecer um instante mais perto dela sem tê-la estrangulado
ali mesmo. Fui direto para o dormitório.
"No meu quarto passei a chave na porta; tinha de tomar todas as precauções;
eram eles ou eu. Eles? Não; Vera e Hortência deviam ter sido enganadas. Renato era
o mentor de tudo, certamente. Permanecia nos bastidores, por enquanto. À meia-noite,
o telefone tocou. Assim que atenderam, levantei o aparelho de meu quarto. Era meu
irmão falando com Elvira. Ele já sabia que eu estava em casa. Uma frase da mãe me
revelou tudo: 'Não comentes nada sobre o trabalho dele; ele não quis contar-nos que já
não trabalha mais naquela firma e nem falei que seu colega Ramirez chamou contando-
me seu comportamento estranho. Parece exausto; deve estar à beira de um colapso
total. Temos de tratá-lo com o máximo cuidado, foi o que recomendou o Dr. Goldstein'.
Aí não precisava ouvir mais nada. hnaginei o que teria dito Ramirez, o colega do escri-
tório. As pessoas sempre exageram quando pintam as supostas infrações dos outros.
"Essa noite cochilei em lapsos breves. Então eles acreditavam que estava doente;
à beira da loucura ou já submerso em suas águas escuras. Não, erravam; estava mais
lúcido que nunca. Entendia muito bem o que pretendiam; iam liquidar-me lirnparnente,
sem levantar a mínima suspeita de suas verdadeiras intenções; com a cumplicidade de
Goldstein me deixariam apodrecer nesses imundos manicômios, alegando que eu tinha
enlouquecido. Canalhas. Diriam para todos que era só o que podiam fazer por mim.
''Não sei quantas vezes adormeci e acordei sobressaltado. Numa dessas vezes
acordei sentindo que alguém apalpava minhas pernas. Não abri os olhos; pensei que seria
um deles; depois de um momento prolongado ouvi uma voz que já conhecia: levanta-te
Ornar, cumpre com tua obrigação. Era meu pai. Senti que ele estava ali, no quarto.
"De um salto fiquei em pé; pela janela observei que a noite clareava por um
rio de incontáveis estrelas, lá no infinito do céu. Estava vestido. Na parede alguém
tinha escrito os versos que eu costumava recitar: "E eram quatro punhais e teve
que perecer". Compreendi; estavam me advertindo.
"Silencioso, abri a porta. O corredor me pareceu um túnel inacabável, escuro
e estreito; no final dele sabia que estava o quarto de Elvira. Corri, corri. Parecia
que quanto mais corria mais se prolongava o túnel. De repente me encontrei numa

32S
O inquilino do imaginário

sala ampla; era o dormitório da mãe; devagar me aproximei da cama. Teria uma
morte tranqüila. Jamais gostei de nenhuma forma de crueldade. A cama estava
vazia. Olhei ao redor. Ela estava de costas, na janela, observando o céu estrelado.
Parecia uma menina no desenho de seu corpo, visível na sua camisola transparente.
De súbito, ela se voltou mas não deu mostras de ter-me visto. Seu rosto estava
quinze anos mais jovem. Sentou-se numa das poltronas, perto da cama; na outra
poltrona estava meu pai, tal como minha memória o conservava na época da infância.
O pai me fez um sinal com a cabeça. Coloquei minhas mãos no pescoço dela,
delicadamente, e comecei a apertar, devagar. Ela esperneava, esperneava. Na
tentativa de safar-se das tenazes que a estrangulavam, afundou suas unhas nos
meus pulsos que começaram a sangrar. Vi que o sangue inundava seu corpo. Ouvi
que dizia: por que fazes isso, filho? Ao longe alguém pareceu responder: por acaso
ele não era tua cruz? Agora não carregas mais essa cruz. Logo ela ficou imóvel.
"Saí correndo do quarto; de novo percorri o túnel interminável. Quando cheguei
ao meu quarto estava sufocando; quase não conseguia respirar. Tentei abrir a
janela. Ao fazer um movimento brusco quebrei um dos vidros. Não sei o que
aconteceu. Cai no chão sem consciência.
"Uns tapas fortes no rosto me acordaram. Um homem de branco e Renato
tentavam levantar-me. O quarto inteiro estava salpicado de sangue, principalmente
a camisa e a calça.
''Foi o que me contaram. Eu ouvia vagamente as vozes, via vagamente os rostos;
pareciam fantasmas. Talvez esteja morto; estão retirando meu cadáver - pensei.
"Contaram-me que fiquei 15 dias em sonoterapia. Um dia qualquer me
encontrei num quarto típico de hospital. A primeira percepção foi o rosto do Dr.
Goldstein, redondo, vermelho, de óculos. Havia também uma moça de branco,
sorrindo. Inês, pensei. Ela me perdoou e está aqui 'para juntos nos amarmos outra
vez'. Tentei levantar-me, mas senti que estava sem forças. Inês, ajude-me; a moça
se aproximou, ajustando-me uma almofada nas costas; lhe peguei a mão e ficamos
um longo tempo assim, até que adormeci de novo. Não sei que tipo de sono é esse
que a gente fica meio consciente ouvindo o que se passa ao redor, como se
estivessem sussurrando. Ouvia as vozes de Vera, de Goldstein e ... de minha mãe.
Sairá do sono quase curado. De toda maneira, fique longe dele por algum tempo.
Era a voz de Goldstein. O que fazia Elvira lá? Era seu maldito espírito que andava
pairando por aí.
"Já um pouco mais lúcido, tudo me parecia tão longínquo. As coisas haviam
perdido essa aura entre luminosa e maléfica. Era como se houvesse acordado de
um longo sonho. Agora só me restaria o silêncio e a morte.
''Fiquei uma semana assim, naquele hospital. Todos pareciam amáveis comigo.
Estranho. Todos: Hortência, Fernando, Vera, o médico, o primo Oscar, as
enfermeiras. Sem que eu perguntasse nada, Goldstein me informou que eu estava

326
O inquilino do imaginário

numa clínica particular para pessoas estressadas. Poderia voltar para casa de
Elvira assim que eu me sentisse à vontade.
"Deveria estar me gozando.
"Um desses dias, tentando repor-me de minha fraqueza física, andei pelos
corredores da clínica. Tudo era muito discreto e silencioso. A enfermeira ficou
arrumando o quarto. Queria saber onde estariam os guardas; essa história de que
era apenas um centro médico não me convencia. Eu era um assassino, e dos mais
detestados. Assim que cheguei perto da portaria observei que havia um sujeito
grandalhão, de uniforme. Sem dúvida um policial.
"Entrei num salão onde um senhor idoso olhava a TV; cumprimentou-me com
um movimento de mãos e com um sonoro bom-dia; apenas lhe respondi. Não estava
com vontade de conversa. Pela janela via-se um jardim e, mais além, a rua. O que
seria de minha vida agora? Antes, ainda no desespero, tinha uma pequena esperança;
seria um pequisador em história antiga; não me importava muito trabalhar para
sustentar-me, contanto que fosse uma atividade solitária. Sempre senti uma notória
aversão pelos grupos. Aos 25 anos havia chegado ao limite da vida, sem nenhuma
perspectiva. Eles conseguiram o que queriam; estava numa clínica de pirados; pirados
discretos e tranqüilos como esse senhor aí, colado à TV. Seria este um manicômio
para pirados assassinos? Bom, não tinha nenhuma importância. Assassino? Era algo
tão remoto; será que havia sonhado tudo aquilo? Não, não podia me enganar. Viajei
desde Talca para cumprir uma obrigação com meu pai. Isso ainda estava claro na
minha mente; mas a noite do cumprimento de minha missão me parecia agora apenas
um pesadelo. Nesse momento surgiu em mim uma pergunta que me deixou tremendo:
como podia ter ido tão longe a ponto de fazer tudo aquilo? Tinha enlouquecido mesmo?
''Essa pergunta rolou pelo chão como uma grande bola de cristal, que estourou
em seguida, em milhares de cacos. Levantei-me; fui até o canto da TV. Não tinha
força para recolher esses cacos. Naquela tela fiquei olhando imagens, inúmeras
imagens da vida, essa que escorria lá fora, nas ruas e nos afazeres das gentes. As
pessoas viviam assim, como eram mostradas nessa tela: numa permanente distração,
sem importar-se muito com nada, brincando e labutando. Eu não tinha feito isso;
não sabia distrair-me nem brincar; nem sequer tinha labutado."
Deixo por aqui a exposição de Ornar. O leitor deve ter já os componentes
básicos desta vida; em primeiro lugar, as linhas gerais de sua história pessoal, tão
importante para a compreensão da montagem e estruturação de seu caráter; logo
estão os personagens e seus respectivos cenários. Por último, apresentei os episódios
e os momentos cruciais que levaram Ornar na direção de um refúgio no imaginário.
Não resulta difícil entender como aconteceu sua entrada no plano delirante, gradual
e progressiva, até chegar a sua tentativa de assassinato da mãe.
Felizmente, essa fantasia agressiva de Ornar não se realizou de fato. A cena
do assassinato, com todas as suas peripécias, foi um sonho. Ficou na esfera da

327
O inquilino do imaginário

realização onírica. A cena de agressão verbal à mãe, essa sim, ocorreu. Imerso
num clima de agitação emoçional, absorvido pela idéia delirante de vingar a suposta
morte do pai, estimulado por um profundo ressentimento, Ornar viveu essa noite a
culminação de um processo. Oscilando entre o medo e o ódio, num estado
paroxísmico; sentindo-se sufocado, tentou abrir a janela do quarto; quebrou um
vidro, que feriu seu punho direito. Ao amanhecer estava em um charco de sangue.
Provavelmente esse acidente provocou o detalhe do estrangulamento da mãe com
sua reação e autodefesa.:
Ornar ficou em tratamento com o Dr. Goldstein durante um ano. Quando
fez contato comigo, já estava em outra etapa. Sabia discernir o real do imaginário.
Tinha conseguido um emprego de maior hierarquia, mais de acordo com seu
autoconceito; inclusive com sua família o relacionamento se encaminhava para
um reconhecimento mútuo: do ressentimento contra a mãe só ficaram alguns
resquícios. Tinha ainda dificuldade para relacionar-se com pessoas de carne e
osso, mas sabia que não podia continuar convivendo com seres puramente ideais,
do reino do intangível e luminoso- como eram seus heróis até então. "Todas as
pessoas vivas que admirei (o sábio Nicolai, o professor Ariel Dorfman, o deputado
Altamirano) eram personagens de outro plano, entes ideais, que eu observava de
longe. Agora tenho de aprender a gostar de meu próximo." Não é fácil gostar de
seres de carne e osso, simples mortais, limitados, contraditórios, oscilantes, como
todos nós. É mais fácil admirar ídolos distantes, talvez protetores por sua majestade
inalcançável.
Observando a trajetória da vida que nos apresenta Ornar, logo reparamos que
tem vivido subordinado ao juízo negativo do outro. Negado por sua mãe desde o
final da infância, não consegue nos anos posteriores liberar-se dessa condenação.
Internaliza essa negação e essa condena, fechando-se às outras possibilidades
inerentes a sua liberdade. Identificado com a figura do pai, que abandona o cenário
familiar para tornar-se o grande ausente e o injustiçado aos olhos do menino Ornar,
ele mesmo termina por alíenar-se de sua situação real, refugiando-se num mundo
imaginário; muito sensível e, em conseqüência, bastante vulnerável aos embates
da vida, essa foi a maneira de aliviar uma situação que lhe resultava insuportável.
Uma maneira certamente inautêntica, pois lhe negava igualmente uma saída
verdadeira: aquela que lhe permitiria superar seus conflitos parentais e a dor de ter
perdido muito c~do as duas fontes de afeto e reconhecimento- os dois fatores que
todo filho precisa para desenvolver-se de um modo eubiósico: ciente tanto dos
desafios e dos riscos que a vida comporta quanto de seu potencial realizador.
Encurralado pelas dificuldades crescentes de seu cotidiano, revoltado com seu
fracasso, cobrado por seu próprio ideal de si, entra progressivamente num mundo
onde o outro surge como o adversário, o inimigo potencial e sempre suspeito. Foi
um processo lento, que se foi articulando durante anos até chegar a seu ponto de
impasse e ruptura: seu surto paranóide.

328
O inquilino do imaginário

Se tentamos caracterizar o mundo de Ornar de acordo com nossa concepção


multidimensional da existência, veremos que todas estas dimensões indicam que
Ornar vai se orientando para um isolamento e uma ruptura com a realidade social.
Acima já mencionamos como foi este processo.
Na dimensão das atividades produtivas- a práxis por excelência- vários
como se orientou para o malogro geral: teve que aceitar trabalhos subalternos,
muito abaixo de suas aspirações; agregue-se neste aspecto o contraste entre ele e
seus irmãos, bastante mais afortunados e bem-sucedidos.
Na dimensão motivacional, nenhuma de suas demandas pessoais alcançaram
uma realização básica, como para compensar sua deficiência no plano interpessoal
e do trabalho. As demandas de afeto, de contato e comunicação, de status social
favorável, de filiação, de segurança etc. foram sempre desatendidas e malogradas.
Seus interesses, tão importantes para estimular um compromisso mais concreto
consigo e o meio, tampouco favoreceram um desenvolvimento de maior interação
com os outros. Lembremos que Ornar gostava dos estudos históricos- sempre
centralizados no passado - e da literatura ficcional.
Na dimensão valorativa sente os valores dominantes dentro do sistema
social como contrários a seu modo de ser mais próprio. Detesta os mandachuvas
dos poderes oficiais, especialmente os empresários, aos que julga como res-
ponsáveis por boa parte das injustiças que afligem a sua nação e, em especial, a
ele mesmo; é certo que apresenta uma saída positiva: admira uma série de
personagens que percorrem o espaço social; contudo, todos eles são intelectuais
que apenas circulam na proximidade de seu horizonte imaginário. Não são figuras
de sua convivência efetiva. Ainda mais: não há figuras simbólicas que lhe
permitam um recanto de apoio e consolo: não acredita nas figuras simbólicas
que oferecem a religião.
Na dimensão afetiva predomina a frustração, o sentido de malogro pessoal, a
consciência de sua falta de comunicação, além de sentir-se injustiçado dentro da
estrutura familiar, sendo seu maior conflito com sua genitora- que rejeita de maneira
ostensiva.
Sem lugares seguros de acolhimento e de encontro interpessoal favoráveis,
tendo que transitar pelos caminhos do mundo acossado pela suspeita e a inquietude
constantes, Ornar viveu no encurralamento, na estranheza e na reserva- isto é no
espaço imaginário do exílio.
Há diversa maneira de viver a temporalidade; uma delas é estar em conexão
com seus contemporâneos- seja seguindo as modas, seja sensível aos problemas
de sua época, seja discrepando ativamente com as tendências predominantes.
Ornar discrepava com estas tendências, mas não conseguiu enfrentá-las de
uma maneira construtiva; optou pela mera negaçâo, o que o condenou a uma
certa marginalidade.

329
O inquilino do imaginário

Todo seu modo de ser-no-mundo, refletido na sua estrutura de personalidade


e principalmente em seu caráter, dilui seu senso de identidade pessoal, a ponto de
chegar a assimilar a identidade do pai desaparecido, o que equivale a ter como
referência a figura de um fantasma. Seu ideal de si estava certamente fantasiado,
o que o levou a uma notória arrogância como compensação de sua situação
desfavorável. Se pelo menos houvesse tido o apoio dos entes simbólicos oferecidos
pela religião, talvez encontrasse um amparo para sua solidão e uma porta de contato
com pessoas afins à sua crença.

330
Notas e livros
1) Advirto o leitor não-familiarizado com a psicopatologia e com as noções básicas da psiquiatria
que existem diversos tipos de psicose (nome técnico para a loucura). De acordo com sua
origem dominante, as psicoses podem classificar-se do modo seguinte:
a- Psicoses orgânicas: provocadas por determinantes biológicos conhecidos (lesões e tumores
cerebrais, perturbações endócrinas, deficiência de nutrição etc.).
b- Psicoses tóxico-infecciosas: resultantes de doenças infecciosas - difteria, pneumonia, febre
tifóide; uremia, anemia perniciosa- ou ingestão de remédios - brometo, por exemplo; de
metais, chumbo, gases, monóxido de carbono etc.).
c- Psicoses demenciantes (demências): Demência senil, arterioesclerose cerebral e paralisia geral
progressiva. Outras três doenças mais podem ser incluídas nesta categoria, as três implicando
deterioração cerebral: a) o Mal de Alzheimer; b) a doença de Pick (descrita pelo tcheco Arnold
Pick em 1892); c) a coréia de Huntington (descrita por George Huntington em 1872).
d- Psicoses funcionais ou endógenas: a) a esquizofrenia (que inclui quatro tipos: esquizofrenia
simples, hebefrenia, catatonia e delírio paranóide. Alguns autores falam igualmente de paranóia
(que incluiria delírios sistematizados). b) A psicose maníaco-depressiva, que pode apresentar-
se como mania (aceleração de todos os processos psíquicos e exaltação egóica de si) ou como
depressão (lentificação dos processos psíquicos e abatimento generalizado).
2) Sobre as relações entre a criatividade e a imaginação e sobre o desenvolvimento correlativo
destas duas capacidádes, veja-se meu artigo "A Exploração Ativa do Campo Imaginário"
(Arquivos da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista-Existencial, São Paulo, 1989).
3) Zacaria Borge Ali Ramadam: Psicoses Vinculadas- Estruturas Psicopatológicas lnaparentes
(São Paulo, 1979).
4) De todos os documentos escritos por pessoas que viveram a loucura, deixando-nos o depoimento
de sua experiência, quatro me parecem de extraordinário valor: a) Daniel Paulo Schreber:
Memórias de um Doente dos Nervos (1903)- Tradução portuguesa de Marilene Carone
(Graal, 1984). Este é sem dúvida o texto mais rico e complexo de todos. b) Guy de Maupassant:
"O H orla" (figura na coletânea Bola de Sebo, Editora Globo, 1987). c) Hannah Green: Nunca
lhe Prometi um Jardim de Rosas (Editoralmago, 1974). d) Mary Barnes: Viagem Através da
Loucura (Rio de Janeiro, 1982).
5) Convém esclarecer que o esquizóide e sobretudo o esquizo tendem a se relacionar com
personagens mais que com pessoas. Jorge Nicolai era um sábio alemão, famoso nos anos 50
e 60 no Chile. Ornar freqüentou as aulas do professor Dorfman no início dos anos 60.
Altamirano era um conhecido dirigente do Partido Socialista, notável por sua oratória .
Embora fosse uma pessoa de aparência agradável, apenas algo esquivo e formal, Ornar carecia
de amigos: "Além do Mário nunca tive outro amigo- me falou. Sempre as pessoas me
inspiraram certa reserva e eu ainda mais a elas. Até agora só me relacionei com seres imaginários.
García Lorca, Dorfman, Dom Quixote, Nicanor Parra, uma moça da farmácia da esquina
(Luciana): nunca existi para eles, mas eles povoavam meu reino. Inês? Ela foi muito importante
para mim, mas quando a conheci já tinha entrado na pior fase de minha vida. Não podia
corresponder seu carinho. Agora entendo o que perdi". Perguntei-lhe como podia apreciar
dois poetas tão diferentes quanto Lorca e Parra. Sorriu. Respondeu: eu os aprecio justamente
por isso. Em Lorca, o dramatismo; em Parra, seu terrível bom humor- que eu não possuo.
6) Ronald Laing: O Eu Dividido (Editora Vozes, 1975).
7) Ronald Laing e Esterson: Loucura, Sensatez e Famaia (Belo Horizonte, 1979).

331
e
LEMOS
EDITORIAL

Este livro foi produzido e impresso em oficinas próprias da


Lemos Editorial & Gráficos Ltda.
Rua Rui Barbosa, 70 - Bela Vista - São Paulo, SP
CEP 01326-010- Telefax: (OXX11) 251-4300
Home-page: http://www.lemos.com.br
E-mail: lemos@lemos.com.br
Este é um livro de questionamento.
Pelos temas tratados parece um manu-
al de psicologia do anormal , mas aqui
se questionam todos os temas que se
passam por alto ou simplesmente não
se mencionam nos manuais. Já no pri-
meiro capítulo o autor se formula uma
pergunta inilud íve l: O que é isso. o
psicopatológico? É o estudo das doen-
ças mentais. respondem os manuais.
Mas esta resposta escamoteia a com-
plexidade do assunto. Existem pelo me-
nos quat ro concepções do psico-
patológico, que o autor examina. Em se-
guida aborda dois assuntos que deveri-
am ser tratados na formação tanto do
psicólogo quanto do psiquiatra. mas que
no Brasil são simplesmente ignorados:
a questão da alienação e da consciên-
cia. Supõe-se que a alienação é uma
questão puramente social , que apenas
está nas ilusões oferecidas pela TV ou
nas artimanhas usadas pelos poderes
oficiais, mas as diversas formas que este
fenômeno reveste afetam a todos nós
num grau bem maior do que se admite,
pois está impregnando todas as dimen-
sões da experiência. Da consciência nem
se fala. Com o auge das teorias do in-
consciente, dá-se por suposto que o su-
jeito é direcionado por essa espécie de
"central de operações secretas" da pes-
soa. Lamentável pretensão. A consciên-
cia e a autoconsciência são as caracte-
rísticas precípuas do ser humano. De
qualquer forma, seja entendida a cons-
ciência em seu sentido ontológico ou
como mera síntese dinâmica dos proces-
sos psíquicos; esta é uma categoria
conceitual nada fácil de teorizar, embo-
ra sua descrição fenomenológ ica nos
permita sua melhor compreensão.
Duas formas de vida malog rada são
igualmente examinadas aqui : as neuro-
ses e as psicoses. O louco é propriamen-
te o inquilino do imaginário, aquele que
se refugia neste âmbito quando já não
consegue lidar com as exigências da rea-
lidade social. "A rigor, todos nós somos
visitantes e transeuntes do imaginário,
pois a função imaginante é uma carac-
terística inerente à existência, um aspec-
to de sua transcedência." No psicótico há
uma ruptura do vínculo interpessoal, a
ponto que termina por não discenir en-
tre o real e imaginário.

Jan Casábius- Psicólogo Cl ínico


. . .

'A psicopatologia é definida.nos manuais como a ciên-


cia das perturbações mentais. Esta definição, contudo, dis-
simula a complexidade de um fenômeno que está quase
sempre presente na vida de todos nós, seja no plano indivi-
dual, seja no coletivo. A primeira tarefa desta ciência deve
ser o esclarecimento da natureza do psicopatológico, pois
até hoje não existe um conceito unitário, único, de qual seja
esta natureza. Cada abordagem teórica dessas matérias
propõe um conceito. Por esta razão, o autor examina no pri-
meiro capítulo os quatro enfoques ainda dominantes neste
campo de pesquisa.
Orientado num enfoque fenomenológico-existencial, de
cunho compreensivo, o autor examina o ·método
hursserliano com o intuito confesso de facilitar o entendi-
mento deste instrumento entre os estudantes e estudiosos
da Psicologia ou da Psiquiatria- método ainda mal conhe-
cido nestes dois setores do saber.
Examinam-se tainbém neste livro três temas que cons-
tituem o núcleo fundamental das perturbações psicológi-
cas- as neuroses e as psicoses. O autor enfatiza a impor-
tância de distinguir com rigor entre neuroses, perturbações
emocionais e traços caracteriais sintomáticos, que são três
modalidades diferentes de sofrimento, amiúde confundidas.
Em relação à psicose, importa destaçar a exposição de um
episódio paranóide, tal como foi vivido pela pessoa que so-
..
freu esta experiência; este gênero de narrativa é raro na
história da psicopatologia e da psicologia clínica. Associa-
do a estes dois quadros, mas caracterizando um fenôme-
no mais amplo, enfocam-se algumas formas de alienação.

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