Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Emílio Romero
. .. llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
02265043
PUC Minas- BE
O Inquilino do Imaginário: Formas de Alienação e Psicopatologia
Copyright"' 2001 - Emílio Romero
Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem prévio consentimento
da editora, ficando os infratores sujeitos às penas previstas em lei.
Romero, Emílio
Bibliografia.
l. Psicopatologia 2. Psiquiatrià I. Título
97-1431 CDD-616.89
Impresso no Brasil
2001
Índice
Agradecimentos ......................................................................................................... 5
Introdução ................................................................................................................... 7
Capítulo 1
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico ...... 11
Capítulo 2
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia ......................... 39
Capítulo 3
Fenomenologia e psicopatologia: a compreensão do psicopatológico ..... 63
Capítulo 4
Formas de alienação e psicopatologia .......................................................... 79
Capítulo 5
A consciência e a questão do inconsciente ................................................. 113
Capítulo 6
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações
emocionais e neurose ... ............... ... .. ... .. ...... .. ..... .... .. .. .. ... . .. ... .. .. .... .... ... . 141
Capítulo 7
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial
das neuroses ............................................................ :.............................. 169
3
O inquilino do imaginário
Capítulo 8
Os tipos de ansiedade propostos pelo DSM-IV (1994).... ... .. ..... ............... 181
Capítulo 9
Os transtornos da personalidade e a questão dos tipos psicológicos .... 199
Capítulo 10
O guardião de si mesmo
Sobre o Caráter Anancástico ....................................................................... 211
Capítulo 11
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a
questão da auto-identidade................................................................... 231
Capítulo 12
Detrás de um vidro escuro: as vivências dominantes na depressão ........ 261
Capítulo 13
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros
e de adaptar-se à realidade.: ....................................................................... 283
Capítulo 14
O inquilino do imaginário ............................................................................. 301
4
Agradecimentos
Emflio Romero
Psicólogo Clínico
5
O inquilino do imaginário
Sobre o Autor
E
mílio Romero nasceu no Chile, país onde fez seus estudos regulares de
Psicologia, diplomando-se na Universidade Nacional em 1970.
Antes de dedicar-se à psicologia, estudou línguas e literaturas européias
(alemão, russo e francês) e filosofia durante dez anos. Desde 1975 reside no Brasil.
Foi professor de Psicopatologia na Universidade Franciscana e na Faculdade
Paulistana (São Paulo). Atualmente, ocupa a mesma cadeira na Faculdade Padre
Anchieta (Jundiaí). Além da docênciae da clínica, escreve regularmente sobre
questões fundamentais da psicologia.
Orienta suas pesquisas numa abordagem fenomenológico-existencial, numa
linha antropológico-compreensiva. Sua proposta é teorizar as cinco grandes áreas
da psicologia: a psicopatologia, o desenvolvimento humano, os relacionamentos
interpessoais, os métodos e técnicas psicoterapêuticas e a personalidade como
síntese configurada, embora em aberto, da pessoa. Além de seu trabalho intelectual,
Romero é co-fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista-Existencial,
Sobraphe (São Paulo) e psicólogo clínico.
Ademais do presente título, já editou Essas Inquietantes Ervas do Jardim,
(Lemos Editorial, 1996), centralizado na questão do normal e do sintomático. Em
1998, publicou As Dimensões da Vida Humana - Existência e Experiência, que
estabelece os fun~amentos de uma psicologia compreensiva baseada na sua
concepção da existência segundo as oito grandes dimensões que a caracterizam.
Em 1999, editou seus escritos sobre o processo de mudança: Neogênese: O
Desenvolvimento Pessoal Mediante a Psicoterapia. No percurso desse mesmo
ano se propõe dar à luz uma obra que considera sua melhor contribuição ao saber
psicológico: As Formas da Sensibilidade - Psicologia e Psicopatologia dos
Afetos.
s·
Introdução
ESCLARECIMENTO
, PRELIMINAR DO
ITINERARIO PROPOSTO
A
bordamos nas páginas deste livro uma série de temas que costumam ser
agrupados sob os títulos de psicopatologia, de psiquiatria, de psicologia do
anormal e, até mesmo, de clínica psicológica. Meu intuito foi oferecer ao
estudante e ao estudioso dessas matérias, seja especialista ou não, um repertório
de questões que estão no centro de todas essas disciplinas.
Supõe-se que todos esses temas são assuntos obrigatórios na formação de
psicólogos e psiquiatras, especialmente. Deveria ser assim, mas alguns capítulos
que apresentamos como inevitáveis na pesquisa psicopatológica raras vezes são
abordados nos tratados sobre estas matérias. O único tema discutido é o normal e
o patológico, geralmente de um modo sumário e insuficiente. A questão inicial de
qual seja a natureza do psicopatológico e a impossibilidade de responder a essa
questão, a menos que se assuma uma teoria (geralmente uma macroteoria) que
postule toda uma concepção do homem e da doença, quase sempre são esquivadas.
Para evitar esse equívoco tão freqüente na maioria dos autores, achei pertinente
um esclarecimento inicial desse ponto.
Foi necessário, então, tratar das concepções do psicopatológico para responder
à questão sobre a sua natureza. De passagem, caracterizei as quatro grandes
abordagens dessa problemática.
O fenômeno da alienação parece-me outro tema inevitável, embora nenhum
manual de psicopatologia lhe dedique nem uma página sequer. A maioria dos livros
sobre esse assunto é de cunho sociológico ou filosófico, existindo apenas algumas
publicações de autores europeus que o consideram a partir de uma perspectiva
7
O inquilino do imaginário
8
Introdução
psicólogos. Eu ofereço minha visão das coisas nesse terreno- visão que não preten-
de a aceitação unânime de meus colegas de escola, certamente. Neste ponto, é
pertinente observar que na última edicão do DSM-IV (1994), os psiquiatras norte-
americanos optaram por eliminar a categoria de neurose nas suas classificações
dos grandes quadros clínicos. Por razões que dou no capítulo correspondente,
considero sustentável a manutenção do conceito de neurose.
·Na parte final abordo a questão da loucura- ou como se costuma dizer nos
meios acadêmicos, da psicose. Isso significa que entro de cheio na morada do
imaginário. Nessa morada residem todos os produtos da fantasia- desde os
mitos e as lendas até os sonhos, desde as nossas caras ilusões até as formas
mais ostensivas da loucura. O psicótico é o inquilino do imaginário; ele habita-
de um modo predominante mas raras vezes exclusivo - um plano fictício,
dissociado da realidade social, referencial inevitável de nossa condição humana.
Contudo, não se suponha que apenas o louco habite esse plano de existência,
nem menos que esta esfera seja só um refúgio negativo e inconveniente. Não.
Todos nós, convencionalmente chamados normais, transitamos por suas vias, a
título de transeuntes e freqüentadores. O louco habita lá, mas também freqüenta
a realidade, pois na psicose sempre se conserva algum senso de realidade -
salvo nos períodos de surto. Em menor medida que o vesânico, o sujeito qualificado
como neurótico também tende a certos extravios imaginários: inflaciona a tal
ponto certos eventos e situações, pela carga emocional por eles mobilizada, que
estes terminam por dominá-lo.
Falo aqui de atividade imaginante alienatória; dessa vez não considero a
imaginação criativa nem comento aquela que nos permite, a todo momento,
transcender o imediato.
Grosso modo, esse é o itinerário proposto. Não será demais outro dado para
o leitor exigente.
A abordagem que orienta o tratamento de todas as questões enfocadas aqui
é de inspiração fenomenológica-existencial; em grande medida é assim, mas quero
enfatizar que não me identifico com nenhuma linha específica dessa corrente
doutrinária. A rigor, o que tento fazer e aplicar no tratamento dos diversos tópicos
é uma forma de psicologia compreensiva, influenciada pelo método fenomenológico
e por acategorias e conceitos existenciais. Até onde me foi possível, tentei fugir do
estilo acadêmico - sempre tão cheio de formalismos, citações, procura de
autoridades e de fontes canônicas. Na verdade, todos os temas propostos nestas
páginas fazem parte da realidade cotidiana de todos nós; é lamentável que sejam
comentados e estudados apenas no âmbito universitário e acadêmico.
O leitor inteligente saberá desculpar um moderado didatismo que se deixa
sentir em algumas páginas. Escrevo para um público heterogêneo, embora a maioria
dos leitores exibam algum diploma de estudos superiores.
9
O inquilino do imaginário
10
Capítulo 1
AS ABORDAGENS DO
, -
PSICOPATOLOGICO E A QUESTAO DO
MODELO EPISTÊMICO
tema central dos escritos que formam este livro são algumas questões
11
O inquilino do imaginário
que entendem por cura, isto é, como deve ser o tratamento e o cuidado para que a
pessoa se libere de seu sofrimento.
Por último, cada abordagem caracteriza-se por direcionar sua pesquisa segundo
um modelo epistêmico dominante: propõe uma forma de conhecimento ajustada à
sua teoria geral.
12
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
A teoria organicista foi inaugurada por Hipócrates e ainda hoje é seguida pela
maioria da classe médica, que por sua formação biológica tende a ver o psíquico
subordinado ao orgânico ou dependente deste. O postulado é que as chamadas
funções mentais só podem dar-se em determinadas estruturas cerebrais, estando
influenciadas pelos mais diversos fatores orgânicos. Sendo assim, a disfunções
mentais são igualmente decorrentes de um deficiente ou anormal funcionamento
do cérebro. Essa tese central do organicismo goza de amplo apoio da pesquisa
biológica e nos parece a linha mais bem fundamentada no que se refere às doenças
mentais propriamente ditas. A maior dificuldade para aceitar essa tese sem
discussão reside na extensão que adquire, neste enfoque, o conceito de doença
mental. Entendida a doença como algo essencialmente sintomático, qualquer
manifestação desviada da normalidade pode tomar-se suspeita de doentia. Por
essa razão, os homossexuais- para mencionar um caso concreto- já foram
considerados como doentes, e ainda entram nesta categoria os chamados neuróticos
- que, no entendimento de diversos autores, dificilmente adquirem as feições do
mórbido.
13
O inquilino do imaginário
14
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
(&) Os quatro enfoques admitem que há perturbações mentais de provada ongem orgânica devidas à
deterioração dos tecidos cerebrais por tumores e ferimentos, fatores endócrinos, intoxicações etc.
(&&) Considero neste esquema apenas a contribuição de Freud para caracterizar psicanálise.
15
O inquilino do imaginário
16
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
17
O inquilino do imaginário
18
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelu eptstê.lmco
19
O inquilino do imaginário
diria que os sonhos são um dos maiores enigmas do espírito humano. Primeiro,
como funciona o cérebro na invenção destas historinhas que aparecem quando
estamos dormindo? Por acaso funciona como um computador autônomo? Logo:
por que aparecem tantos personagens desconhecidos nelas? Mais ainda: por que
não podemos provocar narrativas oníricas à vontade? Por que se misturam fatos
cotidianos, reais, com situações estranhas, absurdas, impossíveis? Por que em geral
não compreendemos imediatamente seu significado?
Além dos sonhos, eventos normais em todos nós, estão as produções delirantes
dos loucos, suas crenças, suas ocorrências, seus desenhos. Com alguma razão supomos
que todas essas criações têm algum sentido. Mas será mesmo que têm algum significado?
Autores bastante competentes nos dizem que todas essas expressões da cultura
e do espírito humano possuem um significado; não o significado literal exposto na
narrativa ou expresso na imagem-pictórica, onírica, gráfica. Têm um significado
simbólico. Trata-se então de expressões simbólicas.
O que é um símbolo? Essa é uma questão problemática, nada fácil de
responder. A única coisa que sabemos é que um símbolo, para que nos revele seu
"verdadeiro" significado, precisa ser interpretado. Sabemos que um símbolo não é
um sinal nem um signo - embora não faltem autores que entendam o símbolo
como um signo especial. Diz-se então que a cruz e a estrela de seis pontas
simbolizam o cristianismo e o judaísmo, respectivamente. Eu diria que são simples
signos: um significante relacionado diretamente com um significado. Afirma-se
que um mendigo e Rockefeller simbolizam a miséria e a riqueza; ou que o diabo
simboliza o mal e que a serpente representa o demoníaco, como rebeldia e
questionamento. São mesmo símbolos ou meras figuras emblemáticas?
Falamos acima de sentido e significado. Amiúde usam-se esses dois termos
como equivalentes; ou se deriva do sentido um significado e do significado se
implica um sentido. Eu diria que esses dois conceitos pertencem a planos diferentes,
embora se entrecruzem. O sentido dá-se no horizonte da intencionalidade da ação
e da vivência; o significado pertence à esfera da linguagem.
O sentido surge como o modo que o ser humano tem de estabelecer certa
ordem e alguma direção para assim situar-se num complexo de relações - aquelas
que constituem sua realidade. Praticar um ato de feitiçaria tem um sentido para
quem acredita que com esse ato obterá algum benefício. Compreendemos o sentido da
idéia delirante expressa por um esquizo quando nos informa "que os outros lêem seu
pensamento": ele se sente tão exposto e invadido pelos outros, que nem se-
quer seu pensamento escapa ao controle alheio. Se alguém nos refere que Dom.
Quixote arremetia com seu cavalo Rocinante contra os moinhos de vento, isso nos
parece uma loucura; mas, assim que Cervantes nos informa que esse ilustre cavalheiro
tomava os moinhos por gigantes malvados, o evento adquire um sentido. O nobre
fidalgo alucinava.
20
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
O enfoque psicanalítico
21
O inquilino do imaginário
22
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
Vou resumir o famoso "Caso Dora", uma das cinco histórias clínicas escritas
pelo criador da psicanálise. Peço ao leitor consciencioso que leia o texto original,
para verificar que não fiz uma seleção arbitrária e tendenciosa do material.
Trata-se de uma jovem que mora com os pais e um irmão numa pequena
cidade; uma jovem bem dotada no plano intelectual.
A trama conflitiva relaciona-se com a sua farm1ia; seus pais não se entendem
e já discutiram a conveniência do divórcio. O pai é figura dominante. Ele é um
industrial, e sua mulher uma dona de casa.
A trama conflitiva surge em relação a um casal amigo desta família. Dora
suspeita, baseada em inferências bastante convincentes, de que seu pai mantém
um caso com a Sra. K.
Esta suspeita atormenta a jovem, a ponto de ter pensado no suicídio. A situação
ainda se agrava pela intervenção do Sr. K., que solicita amorosamente a Dora: a
jovem chega a pensar que seu pai sabe das intenções desse senhor, deixando-o
agir tranqüilamente por acreditar que ele o deixará igualmente manter o caso com
sua esposa. Uma coisa pela outra.
Apenas um par de fatos interessa-nos lembrar aqui.
Um fato relaciona-se com um passeio que Dora fizera com o Sr. K. Nessa
ocasião, esse santo varão tentou beijar a jovem; lamentavelmente, a moça apenas
experimentou repugnância ante o brusco contato bucal. Dora ficou indignada perante
um avanço tão audaz; contou para seus pais, mas esses não deram maior
importância ao episódio, considerando que seria mais um produto de sua imaginação
que um fato; pensaram que as leituras de Mantegazza (um médico que escrevia
sobre questões sexuais) lhe tinham estimulado a fantasia.
"Nesta cena- comenta Freud- o comportamento dessa criança de quatorze
anos já era inteira e completamente histérico. Eu sem dúvida consideraria histérica
uma pessoa em quem uma ocasião para excitação sexual despertasse sensações
que fossem preponderante ou exclusivamente desagradáveis; eu o faria fosse ou
não a pessoa capaz de produzir sintomas somáticos." E agrega: "A elucidação do
mecanismo da inversão de afeto é um dos mais importantes e, ao mesmo tempo,
um dos mais difíceis problemas da psicologia das neuroses".
Causa-nos surpresa um juízo desse tipo. O que garante a Freud que esta era
uma ocasião para uma excitação sexual? Ignorava que os primeiros beijos de
adolescentes são desabridos e insípidos, sobretudo quando apenas um parceiro está
a fim de um contato bucal? Não é natural que qualquer pessoa experimente
repugnância ao ser beijada por alguém por quem não se sente atraída? Não me
parece que se trata, nesse caso, de uma inversão de afeto. Simples reação natural.
23
O inquilino do imaginário
24
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
25
O inquilino do imaginário
26
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
possuir eroticamente a mãe, desejo que se complementa com uma notória aversão
ao pai), dizendo que o Édipo representa a luta entre o desejo de fusão com a mãe
e a interdição da lei paterna - interdição que permite à criança seu ingresso na
cultura. Estes arranjos tomam mais aceitáveis a teoria. Outros até mostram-se
cautelosos nas interpretações.
Contudo, a interpretação freudiana é só um primeiro passo; seu intuito era
explicar uma conduta e sua patologia por um fator determinante, que se retrotraía
ao passado do sujeito. O que se procura na análise é o complexo, o conflito, o
desejo reprimido, que causou o sintoma ou a neurose. Freud acreditava no
determinismo psíquico; acreditava a tal ponto que a última parte de sua
Psicopatologia da Viria Cotidiana dedica-se a mostrar como qualquer ocorrência
espontânea, ainda mais sem motivação aparente, estava determinada. Na sua tese,
nada era fortuito, simples idéia gratuita. Dessa crença no determinismo surge a
exigência que Freud impunha a seus clientes quando iniciava um tratamento - a
regra da associação livre, dizer o que fosse surgindo no campo mental, não importa
quão impertinente ou absurdo fosse.
Aceito esse pressuposto, o conceito de liberdade, como um atributo do ente
humano, não tem lugar; pode-se reivindicar a liberdade política, mas não tem sentido
falar de liberdade psicológica, muito menos de uma liberdade ontológica.
Criticar os fundamentos de uma doutrina não supõe negar ou desconhecer
suas contribuições positivas. Algumas destas contribuições merecem ser destacactas:
A) Embora Freud não tenha tratado indivíduos psicóticos por considerar este
tipo de doenças mentais como inabordáveis pela psicanálise (em razão de que o
louco, sendo basicamente "um narcisista", não conseguiria estabelecer uma relação
transferencial), ele nos proporcionou a primeira tentativa de uma análise da paranóia
em termos psicológicos. Baseado na leitura do livro de Daniel Paulo Schreber,
Me mórias de um Doente dos Nervos ( 1903), deixou-nos um dos mais interessantes
ensaios de interpretação de um caso rico e complexo. Argumenta que a origem
dos delírios deste ilustre personagem se encontra numa homossexualidade latente
- tese que ele supõe válida para todos os casos desse tipo.
B) Outra contribuição importante foi sua tentativa de encontrar um determinado
sentido para os delírios, considerados como os sintomas definitórios das psicoses.
No enfoque organicista, o delírio é a expressão da perda da razão. Idéias,
ocorrências e percepções delirantes devem ser erradicadas por todos os meios
possíveis, pois constituem a forma gritante da loucura. Para Freud, os delírios já
são uma tentativa de cura e reconstrução por parte do sujeito (veja-se a 3a Parte
do caso Schreber).
C) Toda concepção do psicopatológico implica um estilo de relacionamento
terapeuta-paciente. Freud introduz também aqui uma inovação relevante. Talvez
a inovação mais importante de seu labor criativo: valoriza o discurso do paciente,
27
O inquilino do imaginário
A abordagem fenomenológico-existencial
28
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
volumosos tratados. Via de regra, nas outras doutrinas não se colocam esses tipos
de questões; ou, se o fazem as tocam tangencialmente.
Em segundo lugar, o existencialismo proclama a liberdade, a abertura às
possibilidades e a procura de um sentido como características precípuas da aventura
humana, em oposição aos outros enfoques que acentuam a importância do
determinismo, da necessidade e da simples satisfação oréxica. Skinner afirma que
a liberdade é um mito; Freud acreditava no determinismo psíquico; e todos eles
não entendem a procura do sentido como uma motivação básica.
Há outras diferenças; contento-me em assinalar uma terceira: sendo
predominantemente determinísticas, as outras escolas usam modelos epistêmicos
explicativos, diferentemente dos enfoques existenciais e fenomenológicos que
entendem que a complexidade dos fenômenos humanos só se deixa apreender por
uma via compreensiva. Lembro já que o modelo explicativo apela para idéia de
causalidade, e o compreensivo sustenta que o importante é estabelecer as relações
de sentido que a vida humana implica.
29
O inquilino do imaginário
passivamente a estes determinismos; é o que faz muita gente, mas essa sujeição é
também uma forma de escolha.
Há um princípio básico dessa doutrina que afirma que a escolha é feita numa
situação determinada - o que significa que nunca é feita meramente no campo
abstrato, senão perante um conjunto de exigências e limitações que se impõem ao
sujeito e perante as quais têm sentido certas opções.
Somos livres e responsáveis. Desse postulado deriva a ênfase colocada nessa
abordagem da responsabilidade do indivíduo, tanto nas diretrizes que orientam sua
vida quanto nas ações que concretizam seu projeto vital. Você pode fazer o que
quiser, desde que assuma o que fizer, sabendo que toda ação tem suas conseqüências
e implica algum fator ético. Não alegue depois mera ignorância, ingenuidade ou
inocência. Livres e responsáveis, sabendo que precisamos inventar nossa vida, sem
que nada fique consolidado definitivamente, pois o passado não é uma garantia que
nos assegure um presente - e menos ainda um futuro -, a ansiedade e a angústia
surgem de maneira inevitável. Mas não se pense que a angústia é uma vivência
puramente negativa, que nos leva apenas à tensão e ao desespero. Ela também nos
alerta, acordando-nos para os riscos e desafios de situações que nos inquietam.
Um corolário dessa tese se aplica à doença.
Psicologicamente, adoecer implica sentir-se preso, sufocado por conflitos,
impulsos e afetos, implica um sentimento de perda da liberdade pessoal.
Nos cinco grandes quadros da psicopatologia clássica (e ainda não temos
outra melhor), a perda da liberdade é notória e inevitável:
-Nas neuroses, o indivíduo sente-se dominado por sentimentos negativos,
oriundos de uma baixa auto-estima e de uma falta de autoconfiança, o que o leva
a uma constante oscilação entre a depressão e a ansiedade. Preso a seus conflitos,
tem sérias dificuldades para manter relacionamentos interpessoais saudáveis.
-Nas psicoses, constrói um mundo dividido e fragmentário, alienado de um
contato vital com a realidade, por não ter obtido um reconhecimento mínimo dos
outros. Sem reconhecimento por parte do outro, o sujeito não se reconhece a si
mesmo.
_ Não conseguindo transitar pelas vias comunitárias que o sistema
necessariamente impõe, o sujeito se perde nos labirintos de seus conflitos,
refugiando-se periódica ou permanentemente nos recintos imaginários, em geral
sombrios e espectrais.
-Nas perversões sexuais, condiciona-se de tal maneira que depois não
consegue apreender o todo implicado no relacionamento erótico, fixando apenas
um aspecto predominante do objeto excitatório, que se mantém como objeto
excitatório e não como fonte de prazer psicofísico, que é o que nos introduz ao
mútuo conhecimento. Fica preso a uma forma mutiladora de relacionamento.
30
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
31
O inquilino do imaginário
beleza e sua inteligência. Isso vale para qualquer outra qualidade. Você pode ter
um QI de gênio (estar acima de 140) sem nunca ter feito nada de notável, nada
que justifique seu potencial intelectual. O que toma relevante uma capacidade, um
traço ou uma suposta tendência é o que o sujeito realiza com eles.
Para não ficar no mero abstrato dos conceitos, quero lembrar aqui a
deprimente história de uma moça muito bela. Tinha sido agraciada generosamente
pela natureza nas medidas e nas formas perfeitas. Ela mesma reconhecia que
era uma mulher que chamava a atenção. Dizia: "Sim, admito que muita gente me
elogia e sou sempre solicitada, mas de que me serve tudo isso? Tive alguns
namorados e amantes, mas agora, vendo como foram estes supostos amores,
observo que todos me deixaram um sabor agridoce ou amargo. Houve momentos
de prazer, agrados, mas nunca, nunca me senti amada. Eu diria que quase todos
eles não me entenderam; talvez um me compreendeu, mas nem por isso chegou
a amar-me.
"Aos 26 anos, tudo isso é muito triste para mim. Ser bela, senhor, não facilita
as coisas como as pessoas tendem a pensar. Não se lembra como terminou Marylin
Monroe, Brigitte Bardot e tantas outras? Preferia ser uma mulher fisicamente
normal, diria, mas com mais fortuna no entendimento amoroso. Por alguns anos
acreditei nos bons augúrios de meus admiradores: 'Você é uma moça feita na vida,
com essa beleza toda, ninguém lhe resiste'. Depois percebi que os relacionamentos
são complicados e que a beleza é apenas um fator."
32
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
33
O inquilino do imaginário
consciência está sempre direcionada para objetos que estão aí fora no mundo.
Sempre somos conscientes de algo: de uma coisa, de uma dor na perna, de uma
lembrança (evento acontecido num cenário determinado), de um sentimento em
relação a um amigo. Tudo o que nos acontece subjetivamente se relaciona com
algo que está aí, no mundo.
34
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
35
O inquilino do imaginário
36
As abordagens do psicopatológico e a questão do modelo epistêmico
que se abre para uma perspectiva teórica mais ampla por uma linha cognitivista.
Iniciado a partir dos anos 70 com as pesquisas da Escola de Filadélfia, dirigida por
Aaron Beck, o enfoque cognitivista tende hoje a substituir ao behaviorismo clássico
na maioria das áreas. O cognitivismo enfatiza um aspecto que até então as teorias do
aprendizado tinham esquivado: a cognição como um fator de primeira importância na
constituição da subjetividade. Contudo, esta abordagem ainda não nos oferece um
modelo do psicopatológico original, subordinando-se em grande medida aos enfoques
biomédicos, sobretudo em relação às classificações e descrições das perturbações
mentais. Não apenas a escola cognitivista renova o comportamentalismo ortodoxo, de
cunho skinneriano; a escola britânica liderada por Hans Eysenck oferece-nos uma
nova forma de explicação do psicopatológico, postulando mecanismos cerebrais
geradores de traços temperamentais. A acentuação desses traços sustentam ou geram
as diversas modalidades dopsicopatológico. Gordon Oaridge, autor do bem-documentado
livro sobre As Origens da Doença Mental, sustenta a tese de que os estados psicóticos
não são diferentes das perturbações rotuladas como neuróticas; estariam no mesmo
eixo, implicando apenas uma maior incapacidade adaptativa. Sua limitação mais gritante
é sua concepção antropológica: continua sendo o homem condicionado de Pavlov.
Pelo exposto nas páginas anteriores, ficam claras as profundas divergências
que caracterizam as concepções do psicopatológico. Apenas o comportamentalismo
de cunho britânico, liderado por Eysenck, mostra uma aproximação com o organicismo.
Nenhuma das abordagens concorda com o modelo epistêmico psicanalítico ein razão
de seus excessos interpretativos, embora não seja insólito que alguns médicos apliquem
um enfoque biológico no asilo e empreguem um tratamento psicanalítico em seus ·
pacientes na clínica privada. Justificam-se dizendo que a psicanálise tem escassa
aplicabilidade no doente mental, mas que é indicada como psicoterapia no consultório
particular em razão dos tipos de clientes que ali são atendidos - o que é igualmente
válido para as outras abordagens.
37
O inquilino do imaginário
6) Jacques Van Rillaer. Les Illusions de la Psychanalyse (Magada editeur, Paris, 1986). Este é o
melhor comentário crítico que conheço sobre a proposta freudiana. Analisa a teoria freudiana
com pertinência e rigor.
7) Gordon Claridge. As Origens da Doença Mental (São Paulo, 1993). Oferece um bom repertório
de pesquisas experimentais.
8) Martin E. P. Seligman. Desamparo (São Paulo, 1977). Interessante enfoque comportamentalista
sobre a depressão, o desenvolvimento e a morte.
9) Enu1io Romero. Essas Inquietantes Ervas do Jardim - O Normal e o Sintomático (São Paulo,
Lemos Editorial, 1996).
38
Capítulo 2
O ENFOQUE FENOMENOLOGICO
EXISTENCIAL EM PSICOPATOLOGIA
Fenomenologia e existencialismo
anto a psicanálise como o existencialismo tomaram-se, no campo da cultura
39
O inquilino do imaginário
40
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
41
O inquilino do imaginário
No tratamento dos diversos temas que implica esse enfoque, tive um cuidado
muito especial para não cair nas ciladas do teoricismo e do excesso de informação
puramente acadêmica. Preferi ilustrar os enunciados mais abstratos em suas
manifestações concretas. Espero que isso ajude o leitor menos familiarizado com
essa visão das coisas.
Mas antes de entrar no miolo de nosso assunto, quero esclarecer alguns
conceitos que, por serem tão comuns e corriqueiros, já não sabemos bem o que
significam. Sem um mínimo de rigor conceitual, as idéias se prestam aos mais
estranhos malabarismos ideológicos, especialmente num terreno mal desbravado
como é o campo em que pretendemos transitar.
42
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
ou enxerga seres ectoplasmáticos, percepções que nós não podemos ter, tomamos
seu depoimento como desvario alucinatório de s~a mente. Mas se vários indivíduos
testemunham essa experiência, tendemos a outorgar-lhe maior credibilidade, embora,
por ser uma experiência insólita e extraordinária, a olhemos com justificado
ceticismo. Nesse caso queremos provas que ratifiquem ou não o testemunho destas
pessoas.
Em ciência, este critério de experiência compartilhada, passível de verificação
segundo critérios objetivos, é uma exigência indispensável. Certamente este é um
passo preliminar. Primeiro verifica-se a existência do fenômeno; de fato, alguns
indivíduos alucinam. É uma experiência insólita, que acontece em determinadas
condições mentais. A maioria das pessoas não acusa passar por esse tipo de supostas
percepções. Nesse caso, a primeira coisa que fazemos é ver se se trata de uma
alucinação ou não.
Dá-se em sujeitos notoriamente perturbados, embora haja testemunhos
de pessoas que afirmam ter tido experiências similares, em plena lucidez de espírito.
É o que sabemos.
Na ótica científica, não basta constatar a existência do fenômeno; é preciso
também estabelecer as condições de sua ocorrência e as articulações que mantém
com outros fenômenos. No conhecimento comum, não levamos o rigor tão longe;
basta-nos constatar que ele existe e só em alguns casos queremos saber por que
ou como aconteceu, sem tentar formular um princípio geral que nos explique sua
ocorrência.
Há um segundo critério, bem menos válido que o primeiro, mas utilizado
com farta freqüência no plano do juízo aproximativo: o critério de verossimilitude.
Tendemos a admitir como real aquilo que se nos apresenta com as feiçõçs do
verdadeiro, provável, plausível e acreditável. Diga-se de passagem que esse
critério se conecta com a questão da verdade: tendemos a pensar que o que é
verdadeiro é igualmente real, embora a verdade (e a falsidade) sejam um atributo
dos juízos (da lógica) mais que dos eventos e fenômenos para cuja ocorrência se
coloca a questão da realidade. Demais está dizer que não é suficiente a logicidade
de um juízo; o juízo deve também refletir a realidade dos eventos (ou como
preferiria dizer Heidegger, que a verdade seja a revelação do ser: a aletheia dos
gregos).
Eu proponho ainda um terceiro critério da realidade: é o de incumbência.
É real tudo aquilo que é de nossa incumbência, tudo aquilo que nos toca e nos
afeta de maneira inevitável. O que nos afeta de um modo inevitável é de nossa
inteira incumbência.
Este é um conceito pragmático de realidade, não uma idéia metafísica. (Para
uma exposição mais ampla desse critério, veja-se o capítulo "Formas de Alienação
e Psicopatologia".)
43
O inquilino do imaginário
44
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
objetos decorativos são as coisas que povoam nosso espaço cotidiano. Vivemos num
mundo de coisas: são úteis e nós as usamos com os mais diversos propósitos.
É tão forte o impacto das coisas na construção da nossa realidade, que
tendemos a coisificar um série de fenômenos e de relações que não são coisas. As
coisas são estáticas, concretas e maciças, é muito fácil apreendê-las e classificá-
las. Dizemos corriqueiramente: "Preciso te contar um monte de coisas", quando
apenas queremos referir alguns eventos. Ou: "Aconteceu uma coisa bastante chata",
aludindo a um episódio que nos enfadou. Episódios, eventos e até mesmo pessoas
são coisificados.
Quando reduzimos uma pessoa a sua mera função, ignorando-a por completo
como agente consciente de seu papel, estamos coisificando-a. Todos os relacio-
namentos que Martin Buber qualifica eu-isso e não eu-tu são reificadores.
B) Objeto é qualquer ente pensável: uma coisa, uma figura abstrata, um puro
conceito. Os filósofos têm proposto diferentes classificações dos objetos possíveis.
Não seria pertinente aqui um comentário sobre esse ponto. Como objeto é tudo
aquilo que menciona o pensamento ou, como diria Husserl, o sujeito de um juízo,
todas as classificações são insuficientes. Por comodidade, proponho a seguinte
classificação:
1) objetos naturais: são todos aqueles que encontramos na natureza, que
apreendemos tanto na experiência cotidiana como pela pesquisa científica;
2) objetos sociais e históricos: são todos os fenômenos coletivos e grupais que
interessam aos sociólogos como motivo de pesquisa, e que nos afetam a
todos como integrantes desses coletivos (as instituições, as classes, as
normas etc.);
3) objetos ideais: são os valores e os entes matemáticos. Os valores são
qualificações ideais que o sujeito outorga a determinados objetos, geral-
mente em termos antitéticos (belo - feio, verdadeiro - falso, bondoso -
maldoso, egoísta- solidário etc.). Não são propriedades dos objetos, mas
qualificações do sujeito. Os entes matemáticos existem como puros
enunciados relacionais e princípios lógicos, principalmente de tipo quantitativo;
4) objetos metafísicos: são conceitos relacionados com o ser último da
realidade, enquanto características próprias dessa realidade primordial (o
espaço e o tempo, o tempo e a eternidade, o ser e o nada, o finito e o
infinito, a aparência e a essência, e outros), ou se relacionam com a origem,
a transcendência e o destino do homem (Deus, a alma, a graça, o pecado,
a morte, o sacrifício, a necessidade e a contingência etc.). O homem é um
ser metafísico, tanto como físico; quero dizer que vive preocupado não
apenas com o atendimento de suas necessidades imediatas e biológicas,
senão também com questões que atingem seu ser e seu devir, o sentido da
vida e o alcance de sua liberdade e de suas possibilidades. Todos os
45
O inquilino do imaginário
46
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
47
O inquilino do imaginário
Por isso nosso próprio corpo, ente natural, se nos apresenta como uma
opacidade que resiste a qualquer tentativa de compreensão subjetiva, como
uma espécie de "máquina" autônoma que está sempre para além de nossa
vontade de controle. É óbvio que os animais se incluem aqui.
E) As especificações da realidade não se esgotam apenas nas coisas e nos
entes naturais, por um lado, e os objetos e fenômenos, pelo outro, com
suas correspondentes e complexas relações; existem também os eventos.
A realidade é dinâmica, tanto na sua natureza como na sua face humana.
As mudanças naturais são obviamente importantes para o homem, qualquer
que seja seu caráter - geológicas, climáticas, bioecológicas -, mas são
sobretudo importantes as interações existentes entre o homem e seu
contorno físico e biossocial. Tudo o que acontece, afetando o homem de
algum modo, é um evento, seja originado em seu contorno, seja originado
em seu corpo e em sua mente, ou melhor ainda, originado na sua existência.
F) Existem também as pessoas: nosso próximo, nós mesmos; nós, o centro
organizador da realidade.
Com todas essas configurações parciais da realidade mantemos determinadas
relações. O homem pode ser entendido como uma unidade complexa, dinâmica e
contraditória de relações. Podemos afirmar que conhecemos o mundo de uma
pessoa quando conhecemos as principais relações que essa pessoa mantém com
os diversos objetos que constituem sua realidade, havendo determinado sua maneira
peculiar de relacionar-se com esses objetos.
O mundo de uma pessoa é uma configuração complexa de relações significativas
que, como uma teia de aracnídeo, sustentam sua existência, lhe oferecem certas
possibilidades e também a aprisionam. Essa configuração relaciona! desenha-se num
espaço determinado, que se caracteriza como o lugar da ação: a situação.
Até aqui fizemos um inventário dos componentes disso que chamamos
realidade.
Podemos dizer que são os componentes molares da realidade, diferenciando-
os assim dos moleculares, que constituem os elementos da microfísica, que nos
afetam num plano orgânico, assim como os molares nos afetam num plano pessoal.
Esses componentes molares constituem também âmbitos peculiares, nos quais
e com os quais o homem configura seu mundo, isto é, sua realidade mais própria.
No âmbito das coisas e dos entes naturais constrói sua vida prática. Representa as
diversas esferas da realidade no âmbito dos objetos e dos fenômenos. Experimenta
o acontecer no âmbito dos eventos. Configura e arquiteta sua existência nas diversas
relações que estabelece com todos esses âmbitos.
Para um enfoque mais elaborado de todos estes conceitos, recomendo o texto de
Dulce Critelli, que aborda estas questões seguindo as diretrizes da analítica heideggeriana.
48
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
49
O inquilino do imaginário
50
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
51
O inquilino do imaginário
52
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
53
O inquilino do imaginário
54
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
55
O inquilino do imaginário
56
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
57
O inquilino do imaginário
Fenomenologia da Emoção
58
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
59
O inquilino do imaginário
quando não obtemos um bem procurado, quando alguém nos frustra; reagimos
com ira quando alguém nos agride, física ou moralmente: queremos repelir uma
ameaça à nossa integridade física e moral, bens 'de máxima importância para nós.
No medo, a relação homem-mundo é de impotência. Na raiva, é de relativa
prepotência: o indivíduo acredita poder esmagar ou afastar o obstáculo que tenta
perturbar sua situação. Na briga efetiva, é claro, o sujeito pode perceber que está
perdendo terreno, que o perigo é bem maior do que seus recursos agressivos.
Neste caso, é provável que experimente medo e desista de seu ataque. A passagem
de uma emoção para outra diferente depende da própria dinâmica da situação.
Depende igualmente da estrutura pessoal do indivíduo. Aliás, não só esse aspecto
dos processos emotivos apresenta esta dependência: o grau de reação emocional
depende desses dois fatores. Há sujeitos que tendem a envolver-se fácil e
prontamente nas mais diversas situações; são os chamados sujeitos emocionais.
60
O enfoque fenomenológico existencial em psicopatologia
61
O inquilino do imaginário
62
Capítulo 3
FENOMENOLOGIA E
PSICOPATOLOGIA
A COMPREENSÃO DO PSICOPATOLÓGICO
N
. caso excepcional. Isso é particularmente verdadeiro em psicologia e em
psiquiatria. Quem lê hoje um Pierre Janet, um Alfred Binet ou um
Guilherme Wundt? Provavelmente ninguém (a menos que seja um historiador
da psicologia). Todos eles foram figuras famosas em seu tempo, que inclusive
fizeram contribuições meritórias à psicologia. E quem se lembra de Emílio Kraepelin,
pontífice máximo da psiquiatria até os anos 30? Talvez uns poucos eruditos,
interessados na evolução das idéias neste campo.
Diversamente de seus grandes contemporâneos, Karl Jaspers teve um outro
destino. Sua obra máxima na área da psiquiatria e da psicologia, Psicopatologia
Geral, teve várias edições, sendo a última em 1959, pouco antes da morte do
autor. Editado pela primeira vez em 1913, o livro tem resistido à corrosão do
tempo.
63
O inquilino do imaginário
64
Fenomenologia e Psicopatologia
65
O inquilino do imaginário
* Advirto ao leitor que todos os exemplos indicados neste parágrafo são meus; Jaspers não se refere
a Skinner, e Pavlov não é mencionado por sua contribuição à explicação da conduta.
66
Fenomenologia e Psicopatologia
67
O inquilino do imaginário
* As patografias escritas por Jaspers foram publicadas em espanhol com o título de Genio y Loucura
(Ed. Aguilar, Madrid, 19§6).
68
Fenomenologia e Psicopatologia
Estas são as questões mais destacadas propostas por Jaspers; há muito mais,
certamente. Não gostaria de fechar esse item sem enfatizar alguns pontos que
justificam nosso interesse na pesquisa e reconstituição da biografia de uma pessoa,
sobretudo quando está num processo psicoterapêutico. Penso que nenhum trabalho
de transformação e de autoconhecimento- dois aspectos que estão incluídos numa
psicoterapia- pode descuidar uma análise atenta de uma série variada de eventos,
situações e personagens que constituem os diversos momentos de nossa trajetória
histórica. Quando insistimos na reconstituição de uma história pessoal, queremos
que o indivíduo se familiarize com seu passado, que tente compreender a montagem
progressiva de sua vida e sua forma de atuação nos acontecimentos que desenharam
sua realidade ao longo de seu percurso temporal.
Não se trata meramente de reconstituir um passado, tarefa difícil e por vezes
impossível. Trata-se de que a pessoa enxergue determinados cenários e alguns
personagens que a influenciaram e, não raro, determinaram em grande medida
traços básicos de seu caráter e de sua visão do mundo.
O intuito é tentar compreender o que foi puramente vivido e sofrido, revi vendo-
o de certa maneira, mas já com um olhar segundo - o olhar reflexivo e analítico.
Para a maioria das pessoas, sua história permanece em certa penumbra; viveram
e protagonizaram diversos episódios que rara vez tentaram apreender em seu
significado. Não é que estejam esquecidas, também isso acontece; simplesmente
quase nunca exercitaram seu olhar reflexivo em tomo do que lhes aconteceu.
Para muitos, os fatos e eventos mais importantes de suas vidas permanecem opacos,
envoltos na neblina de um passado remoto ou colocados numa situação cujos
elementos não sabem discernir.
Embora seja uma história vivida, para a maioria das pessoas o passado
permanece, em medida considerável, estranho e mal-assimilado. Existe aí também
uma notória alienação do ser mais próprio. Não é insólito que alguns até se recusem
a fazer um exame atento desta história, alegando que "tudo aquilo já passou" ou que
quase tudo está recoberto pela poeira do tempo. É verdade, por definição o passado
'já passou", mas ele existe; continua existindo de diversas formas em nós.
Há determinados personagens cujas presenças marcaram nosso destino de
um modo significativo e por vezes indelével. Alguns modelaram nossa vida no
plano do círculo familiar; outros gravitaram em outras esferas - na escola, como
camaradas e mestres; na vizinhança, como amigos ou rivais; no espaço mítico,
como figuras tutelares (do Bem e do Mal); no espaço social, como figuras
emblemáticas (de status, de autoridade, de sucesso, de desvio normativo). Nem
sempre percebemos até onde fomos influenciados por todos esses personagens e
figuras.
Todos esses personagens agiram e configuraram determinados cenários -
espaços montados e desenhados de uma maneira, em que cada um de nós foi
69
O inquilino do imaginário
fazendo seu percurso e seu papel. São lugares onde agimos por um tempo mais
ou menos prolongado (a casa, a escola, o escritório, a rua etc.); eles também
mudam, seja por transformações físicas, seja pela atuação de novos personagens
ou pela saída de outros. Os cenários refletem em grande medida a condição socio-
econômica do sujeito, mas o que importa sobretudo é pesquisar o clima dominante
característico de um determinado cenário. O clima é dado pela dinâmica das relações
interpessoais aí existentes. São esses climas emocionais que influem em nossa
visão do mundo e nas atitudes que pautam nosso comportamento.
Para um estudo mais amplo da biografia, consulte-se o livro Neogênese: O
Desenvolvimento Humano Mediante a Psicoterapia5 •
* As patografias escritas por Jaspers foram publicadas em espanhol com o título de Genio y Loucura
(Ed. Aguilar, Madrid, 1956).
70
Fenomenologia e Psicopatologia
cidadãos num gesto de ódio paranóico; mataram até seus familiares mais próximos
-mãe, filhos, esposa. Outros optaram por fugir para a floresta, vivendo ali como
lobos solitários, cientes de que nunca mais conseguirão conviver nos esquemas de
gente civilizada. Todos eramjovens norte-americanos, entre 17 e 21 anos. Agora,
com 36-40 anos, consideram-se irremediavelmente perdidos. Na guerra tiveram
de matar impiedosamente mulheres e crianças indefesas; foram treinados como
cães para exterminar gente; depois perceberam que aquela carnificina tinha sido
injusta e injustificável: nem sequer seus próprios concidadãos lhes perdoavam as
crueldades que tinham cometido no Vietnam. Derrotados, sentindo-se culpados
por sua bestialidade, sem lugar numa sociedade que só queria esquecer-se daqueles
crimes, apenas lhes ficou o consolo da droga e a solidão selvática da floresta.
Estas são experiências extremas; não precisamos ir tão longe. Todos sabemos
que alguns fracassos reiterados - e por vezes apenas um grande fracasso na área
afetiva- podem levar-nos a formas neuróticas de vida.
A visão antropológica
Quando examinamos o programa que Jaspers estuda em sua Psicopatologia,
percebemos que sua ambição é abranger boa parte dos fenômenos que influenciam
o ser humano, em particular na direção do patológico. São discutidas desde pesquisas
sobre a constituição e o caráter, até a possível influência de fatores climáticos;
desde questões genéticas, até o significado das produções artísticas na compreensão
da loucura. Diríamos que sua intenção é dar-nos uma visão antropológica da
psicopatologia, isto é, uma visão na qual o patológico não seja apenas uma resultante
de um psiquismo perturbado, senão o efeito de toda a complexidade humana. Isso
por um lado. Por outro, Jaspers sabe que já não se trata de lidar com doenças
mentais estabelecendo quadros com seus hipotéticos fatores causais e seu provável
curso; isso sem dúvida é importante também; mas trata-se de lidar com doentes,
melhor, com pessoas concretas que não são simples doentes, mas seres humanos
que secundariamente se tomam doentes. O lema de uma abordagem antropológica
neste campo é que não há doenças: há unicamente pessoas que adoecem. A doença
é uma abstração; o doente é um ser pessoal, concreto.
O fato de que reconheçamos no autor de Psicopatologia Geral uma intenção
antropológica não supõe que ele tenha dado cabal cumprimento a esse propósito.
Em nosso entender, descuidou - não sei se deliberadamente ou não -de um fator
de primeira importância na formação da personalidade: o determinante estamentário.
Hoje, ninguém pode ignorar o fator classe social na constituição e no destino pessoais;
não precisamos ter um mínimo de simpatia pelo marxismo para reconhecer a
influência decisiva que exerce em todos nós o pertencer a um setor estamentário
determinado- classe operária, classe média (burocrática, tecnocrática, executiva)
e classe dirigente (dona do poder econômico e do poder controlador). Talvez esse
71
O inquilino do imaginário
72
Fenomenologia e Psicopatologia
73
O inquilino do imaginário
com suas mensagens, mas mesmo assim não consegui vencer seu fechamento em
seu mundo autista. Tentei uma segunda vez: fui acompanhado de um amigo
igualmente interessado em pesquisar essa área. Queríamos seguir seus
ensinamentos, argumentamos. Foi logo evidente que não queria maior contato.
Pregava apenas por mandato divino, pregava saltando porque assim mostrava aos
incrédulos o poder da energia divina; quem não sente essa energia saltitante no
corpo ainda não está preparado para a Nova Era e será eliminado como verme
pelo fogo apocalíptico. Falou de Satanás, o grande Inimigo, e de seus agentes.
Falava para si mesmo, nunca para nós.
Tratava-se de um homem que havia levado à rua sua necessidade de salvação
e seus medos, sua ruptura com a comunidade (a loucura supõe sempre essa ruptura)
e sua necessidade de recuperar essa comunidade, gritando seu encontro com Cristo
num reino imaginário. Sua conduta era extravagante, seu discurso delirante. Sua
conduta delatava algumas coisas; só uma observação mais atenta nos indicaria
para onde se encaminhava sua peculiaridade.
Noutro lugar examinaremos esse assunto apaixonante; por ora me interessa
comentar as teses do filósofo germânico. Ele nos proporcionou pelo menos um
critério para discriminar o que são idéias delirantes daquilo que não o é, embora
sejam muito semelhantes. A ciência é delimitadora, esclarecedora das diferenças.
A questão básica é como caracterizar as produções delirantes. O conceito
proposto por Jaspers determina quatro aspectos que, parece-nos, configuram o
fenômeno:
1. os delírios são juízos falsos;
2. implicam uma certeza subjetiva incomparável;
3. são incorrigíveis, tanto por via do raciocínio como pela evidência da
experiência;
4. mostram impossibilidade de conteúdo.
A essas quatro notas características eu acrescentaria uma quinta, que me
parece indispensável: para que possamos considerar como delirante uma convicção,
além das notas indicadas, ela precisa apresentar um caráter individual, isto é, não
ser compartilhada coletivamente por um grupo de pessoas. Se não fazemos essa
distinção, boa parte das crenças sectárias - ou supersticiosas, míticas e alógicas,
tão comuns no sistema social - entraria na categoria de produções delirantes.
Quando um umbandista faz um despacho para atingir um determinado objetivo,
podemos ver nessa prática uma forma de ato mágico, mas não um ato delirante.
Mas, quando um indivíduo interpreta o apito de uma sirena que passa casualmente
pela rua como "um sinal de morte próxima", podemos considerar essa ocorrência
como classificável nessa categoria. Provavelmente, o famoso profeta da Guiana
Inglesa, Mr. J. Jones, era um delirante que tinha sistematizado suas crenças religiosas,
dando-lhes uma feição verossímil; conquistou um milhar de adeptos que
I.
74
Fenomenologia e Psicopatologia
75
O inquilino do imaginário
76
Fenomenologia e Psicopatologia
Notas
1) Psicopatologia Geral, deJaspers, foi publicada no Brasil pelaeditoraAtheneu, 1973,2 vols.-
Seus estudos patográficos, em que aplica em parte suas idéias sobre a biografia, foram
reunidos sob o título de Genio y Locura (ed. espanhola, 1956). Incluem 4 estudos: Van Gogh,
o vidente sueco Swedenborg, o poeta Hoelderlin e o escritor sueco Strindberg (sua obra
autobiográfica Die Beichteeines Torens foi traduzida para o francês e o alemão, e A viagem de
Pedro, o Afortunado já está em português). Na Espanha, está publicada quase toda a obra de
Jaspers.
2) Uso a palavra esquizo como abreviatura de esquizofrênico.
3) Para um estudo mais elaborado sobre a biografia, recomendo minha monografia: "O Conhecimento
de Si Mediante a Biografia Pessoal" (Arquivos da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista
Existencial, 1985).
4) Femandez Francisco Alonso Tratado de Psiquiatria Atual (Espanha, 1972).
5) Romero, Emi1io: Neogênese: O Desenvolvimento Humano Mediante a Psicoterapia (São José
dos Campos, Novos Horizontes Editora, 2000).
77
Capítulo 4
FORMAS DE ALIENAÇÃO
E PSICOPATOLOGIA
"Você me pergunta com que me importo. Não é o mesmo importar-se que interessar-se,
concorda? Já me importei com muita coisa e com todo tipo de gente. Nesta fase
apenas quero saber do meu trabalho e do meu corpo. O sexo me importa e me
transporta; e as mulheres enquanto seres sexuados, não tanto enquanto pessoas.
Gosto delas como parceiras de momentos prazerosos, não como companheiras.
O trabalho, aí está meu quinhão; pela labuta é que atendo minhas necessidades e
tenho uma imagem social respeitável, um status. Não me importo com meu vizinho
nem com o destino do formigueiro doido chamado meu país. Não me importo com
religião nem com problemas sociais. Deixo para os políticos e para os coitados
esse tipo de assunto. A arquitetura e a construção civil me interessam, mas não
poderia dizer que me importam. Antes, sentia pena pelas crianças abandonadas,
essas que deambulam pelas ruas. Hoje me são quase indiferentes.
O que poderia fazer por elas? Não são minha realidade."
(De uma conversa que tive com um passageiro num trem)
Roteiro introdutório
79
O inquilino do imaginário
Vou começar dando uma definição mínima de alienação. Nunca está demais
certo rigor conceitual, sobretudo quando usamos um conceito de modo corriqueiro,
sem nos preocuparmos muito com seu significado preciso. Alienação é uma palavra
que, por ter entrado no acervo da cultura comum, é empregada de um modo vago,
sem que o usuário saiba a que tipo de fenômeno está aludindo quando manuseia
este conceito.
Alienar-se é tornar-se alheio à sua própria realidade. É uma defmição simples,
mas que precisa de alguns esclarecimentos para ser entendida em suas
implicações. Aqui introduzimos um outro conceito igualmente corriqueiro, mas
nada fácil de explicitar: realidade. Todos nós temos alguma noção do que seja
o real e normalmente podemos discernir o que entendemos como irreal, as
fantasias, os sonhos, certas ficções. Discemimos em termos, pois nos resulta
80
Formas de alienação e psicopatologia
81
O inquilino do imaginário
82
Formas de alienação e psicopatologia
direto com o imediato. Logo enfatizei nossa natureza social e interpessoal como
definidora de nosso ser, que gera todas as motivações que os psicólogos chamam
de psicossociais (necessidade de afeto, de contato e comunicação etc.). Por último,
mencionei o trabalho, com todas as relações sociais que ele implica e igualmente
importante conexão com as necessidades biopsíqukas e existenciais nele plasmadas.
Onde ficam as normas e os valores, os objetivos e a história? Acaso tudo isso
não forma parte da realidade? Sem dúvida, são um aspecto importante de nossa
realidade vivida.
Além de formar parte da realidade social, como fatores reguladores de seu
funcionamento, valores e normas são os referenciais de sentido da vida individual,
aquilo que nos permite um significado não só de coisas e relações, mas também
aos objetivos e às ações. Mais que realidade per se são o sistema de medidas e de
qualificações da realidade. Funcionam de tal modo que eles tendem a impor-se
sobre as diversas realidades, como se tivessem prioridade e primazia sobre elas.
Quando isso sucede, dizemos que há uma mistificação da realidade; esta mistificação
é um dos componentes básicos da alienação.
Tudo isso que chamamos realidade está impregnado de valores. Podemos dizer
que a realidade é um conjunto de relações que configuram o mundo do sujeito, toda
ela imantada e qualificada pelo sujeito em termos de valores possíveis. Estes valores,
já interiorizados e expressos em forma de atitudes e afetos, operam como crenças.
Valores, afetos e crenças constituem o substrato subjetivo do indivíduo e são a matéria-
prima das representações que ele se faz da realidade: sua visão do mundo.
Por um erro de avaliação, por orientar minha vida por valores incompatíveis
com as exigências do contexto concreto que define minha situação interpessoal,
posso desincumbir-me de minha realidade. É o que acontece com certa freqüência
com todos nós. Sou casado, mas posso descuidar-me de minha relação conjugal
enfronhando-me no trabalho, porque julgo que há uma prioridade nesta área para
estabelecer os alicerces econômicos - ou porque me resulta mais gratificante, a
certa altura, mover-me mais no plano das atividades produtivas (minha mulher me
atrai menos, a convivência entrou na fase das rotinas etc.). Termino por alienar-
me do contato. Porém, eu não podia fazer isso: a vida conjugal é de minha inteira
incumbência.
Há muitas realidades que não são de minha incumbência, embora todas elas
sejam de certa importância de um ponto de vista humano. Eu posso interessar-me
por elas por simpatia e por solidariedade. A Guerra do Golfo, a fome dos países
africanos e de outras regiões muito pobres, a luta dos negros por seus direitos na
África do Sul, tudo isso e muito mais podem interessar-me e levar-me a certa
atividade em prol destas causas; elas me tocam por minha visão humanitária e
universal das coisas. Por ora, não configuram minha realidade inevitável, aquela
que determina minha situação como indivíduo e como membro de um sistema
83
O inquilino do imaginário
84
Formas de alienação e psicopatologia
85
O inquilino do imaginário
86
Formas de alienação e psicopatologia
87
O inquilino do imaginário
as profissões técnicas devem acentuar ainda mais esta tendência ao lucro, colocando
em segundo plano o princípio humanista e cristão de que o homem não deve ser
um simples meio e sim a finalidade de toda conduta ética.
Se não todas, a maioria das instituições perderam sua credibilidade. Até a
Primeira Guerra Mundial ( 1914-18), as instituições conseguiam manter uma certa
imagem de respeitabilidade e firmeza, empenhando-se na conservação do
território colonizado por elas; mas, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial
(1945), o trabalho crítico de sociólogos e filósofos mostrou o que havia por trás
da fachada de aparente dignidade de todas as instituições, revelando assim sua
verdadeira natureza (agências da ordem dominante). Todas elas foram
questionadas; até a instituição família recebeu o impacto tanto da nova ordem
mundial (confronto entre capitalismo e socialismo, ingresso maciço da mulher no
trabalho, organização da classe trabalhadora em sindicatos etc.) quanto do
questionamento crítico. O matrimônio não é mais a perpetuidade, nem precisa
da bênção religiosa; os pais deixam de ser a máxima autoridade para os filhos.
Depois dos anos 70, a mídia eletrônica exerce uma influência maior na formação
das crianças que a conduta e o exemplo dos pais. Pelo lado negativo, é maior a
influência parenta! quando os genitores são problemáticos e patológicos, isto é,
quando têm um efeito nocivo- ou quando convivem com eles harmonicamente,
o que não é comum porque tanto o homem quanto a mulher trabalham fora de
casa. Deixam os filhos em companhia da TV, ou livres para que inventem seus
programas.
O predomínio da quantificação e a tendência à abstração são outras duas
características da sociedade tecnológica. A quantificação tende a reduzir todos os
produtos e as relações sociais a cifras, cálculos numéricos e manipulações
estatísticas - inclusive os indivíduos são subordinados em seu ser a um ter
quantificável. Basta ouvir as declarações dos governantes quando tentam mostrar
os progressos conseguidos segundo o balanço do ano ou do qüinqüênio. As cifras
citadas parecem ilustrar os avanços da economia, embora seja notório para qualquer
cidadão que esses cálculos estatísticos não têm contribuído para o bem-estar das
pessoas. No Brasil, todo mundo sabe que as cifras são manipuladas pelo Governo,
para assim dar a impressão de que a estabilidade material e cultural do país se
encaminha pelas vias certas; manipulam-se desde os índices da inflação anual
(para não dar o justo reajuste aos assalariados, entre outras razões) até os índices
de desistência e repetência escolares (para vender a imagem que estamos nos
tomando um país desenvolvido).
Resulta claro que a abstração se subordina à quantificação, embora tenha
alguns aspectos próprios. Se a quantificação deixa de lado a qualidade, a abstração
tende a dissociar-se de seu par inevitável- o concreto. É verdade que as cifras
fornecidas pelos Departamentos de Cálculos são alentadoras, mas como se traduzem
88
Formas de alienação e psicopatologia
89
O inquilino do imaginário
90
Formas de alienação e psicopatologia
91
O inquilino do imaginário
92
Formas de alienação e psicopatologia
QUADRO I
Características do sistema econômico de consumo e sua influência no
caráter do homem desse tipo de sociedade
Características do sistema econômico Atitudes e traços caracteriais estimulados e
condicionados
Planejamento e racionalização da economia Orientação mercantil de metas e valores
Consumismo
93
O inquilino do imaginário
94
Formas de alienação e psicopatologia
95
O inquilino do imaginário
urna doença oriunda de urna deficiência neurônica, corno sugere o termo. É urna
configuração vivencial negativa, na qual o indivíduo tende a transitar por círculos
viciosos com um claro sentimento de seu malogro pessoal. Entende-se que um
sujeito se move num círculo vicioso, quando não consegue superar urna situação
que lhe provoca sofrimento, conflitos e sentimentos negativos. Existe um sofrimento
real, que emana das condições concretas de existência (privações materiais,
doenças, deficiências físicas, perda de bens etc.), que o sujeito saudável termina
por encarar com resignação, com realismo afirmativo ou com certa manha tropical.
O sofrimento neurótico é, em grande parte, imaginário. Existem eventos que
justificam em parte a depressão ou a ansiedade do sujeito, mas são exagerados
pela sobrecarga emocional e a colocação desses eventos no plano imaginário.
Resultado: absorvido e digladiado por conflitos, preocupações e sentimentos
negativos, o indivíduo estreita seu campo vital num sentido unidimensional (na
direção da angústia, da depressão, da obsessividade, da histeria). Polarizado no
sentido de sua preocupação negativa, o agente se extravia em seu próprio labirinto.
Poderíamos analisar outras formas de alienação especialmente notórias nesta
dimensão, mas o apontado acima é suficiente.
Na introdução deste capítulo já me referi a três dimensões igualmente
importantes:
• a corporeidade;
• a dimensão interpessoal e social;
• a dimensão axiológica (ou dos valores).
Falei de um distanciamento progressivo do corpo pela via da sensopercepção,
segundo as diversas etapas da vida. A criança vive na sensação e no movimento;
para o adulto, o corpo torna-se sobretudo um instrumento de sua ação. Pode
privilegiar algumas áreas- as zonas erógenas, o rosto, o conjunto (enquanto figura
estética) -, mas a sensopercepção atenua-se conforme o decorrer dos anos.
Também é possível urna polarização no corpo; há gente que vive para o corpo,
seja porque tem horror a gordura, seja porque coloca nele urna conflitiva psíquica
(que é o caso do hipocondríaco), seja ainda porque experimenta o fascínio narcisista
da imagem física.
Preciso referir-me à patologia do corpo na psicose e na neurose? E nas
aberrações sexuais? Há urna reificação do corpo em todas as aberrações; urna
exclusão do contato físico no exibicionismo e no voyeurisrno; urna instrumentação
do corpo em termos de dor-prazer no sadornasoquisrno. Na psicose fragmenta-se
e se torna estranho. Na depressão degrada-se, perde seu poder instrumental. Na
angústia perde seu ritmo e sua regulação conforme as oscilações da ansiedade.
Este é o inventário preliminar das peripécias do corpo, quando o sujeito se
envereda pelos atalhos de sua própria destruição; por ora é desnecessário passar
96
Formas de alienação e psicopatologia
desse inventário à sua análise compreensiva. Apenas quero assinalar que o fator
comum de todas estas peripécias é a perda dos poderes naturais do corpo. Perda
de sua unidade significante nas aberrações sexuais; perda de sua integração vital
na psicose (morada íntima e familiar do espírito, segundo a tradição védica); perda
de sua energia propulsora e motivacional na depressão; desequilíbrio homeostático
geral na angústia.
O sistema social nos determina, nos condiciona e nos modela numa medida
apreciável; esse é um ponto pacífico; mas está também o lado mais específico e
pessoal do social: é justamente o interpessoal. O relacionamento entre dois ou mais
indivíduos, em termos de interação, constitui o interpessoal. A formação da pessoa
passa por toda uma trama de relacionamentos interpessoais; nessa trama, pauta-se o
estilo de relacionamento predominante do sujeito e o modo de interiorizar o outro.
Pelo apontado acima, observa-se que distinguimos dois aspectos: o sistema
social- que estuda a sociologia- e o interpessoal- que estuda a psicologia social.
Por ora quero referir-me ao segundo aspecto, embora ele esteja intimamente
relacionado com o primeiro.
Interessa-me destacar nesse item alguns pontos. Em primeiro lugar, quero
lembrar que no processo de socialização, que ocorre durante a infância e a
adolescência, se constitui a forma predominante de percepção e avaliação do outro,
na mesma medida em que somos percebidos e avaliados pelo próximo. Fala-se da
formação do autoconceito e da auto-estima, que são duas formas de avaliação de
si, sendo a primeira de caráter intelectual e a segunda de índole afetiva. Essa auto-
avaliação depende de maneira decisiva do julgamento do outro, sobretudo quando
o sujeito carece de juízo próprio, como acontece na infância, principalmente.
Essa avaliação do próximo pode assumir quatro modalidades peculiares:
a) Reconhecimento do outro como semelhante - o que leva a uma aceitação
dele e ao sentimento de ser aceito, à reciprocidade ou confiança mútua: o
fundamento da autoconfiança e de uma boa auto-estima, dois componentes
pessoais que excluem vivências posteriores de tipo neurótico.
b) Avaliação problemática do outro, ora visto como poderoso, ora como fraco,
mas sempre exercendo uma forte gravitação no campo vivencial do sujeito
de maneira tão marcante que podemos falar de um domínio do outro no
mundo da pessoa. Este domínio pode ser entendido como normal durante
a infância, mas torna-se sintomático a partir da adolescência, pois impede
o desenvolvimento na linha da autonomia e da autoconfiança. Esse é o
terreno propício para que surjam sentimentos e atitudes negativas, que na
linguagem da psicopatologia são qualificados como neuróticos.
c) Não-reconhecimento do outro por parte do sujeito; nega-se seu valor e se
vê nele um mero meio para fins egocêntricos. Esta é a atitude básica
associada ao padrão psicopático de personalidade. O indivíduo permanece
97
O inquilino do imaginário
98
Formas de alienação e psicopatologia
99
O inquilino do imaginário
100
Formas de alienação e psicopatologia
interromper sua rotina, sem que por um momento chegue a comover-se ante um
evento dessa magnitude: assiste ao enterro como a um pequeno espetáculo sem
importância. Faz amor como quem toma uma cerveja, mata por azar e morre pela
inexorável mecânica de um processo judicial.
É justamente um estrangeiro, um estranho numa terra estranha, um sujeito
sem vinculação vital e vibrante com sua realidade toda. Estranho não no sentido do
singular· e do único, senão no sentido de alheio. M. passou pela vida quase como
um trem passa através de uma paisagem, sem perceber o enorme céu nem as
curvas do caminho, sem perceber sequer seu próprio estrépito. Quase, pois só na
proximidade da morte, perto do pelotão de fuzilamento, é queM. recebe a revelação;
compreende que é sua vida que está em jogo, que até agora a tem deixado escoar
pelos canos como simples detrito. Compreende que agora já nada tem sentido -
antes, tinha vivido o absurdo, sem compreender. Sente uma tremenda revolta, mas
uma revolta detrás das grades é como um grito no vazio. Pensa em Maria, sua
garota, e entende que ela está do outro lado do muro, que nada do que possa
acontecer a um deles lhes toca. Um padre intenta oferecer seu consolo, mas M. o
rejeita agressivamente: sabe que esse padre está com os outros, com os vivos, que
tudo o que lhe oferece são lindas frases cujo sentido M. nunca entendeu. Tem
vivido só, e agora está mais só que nunca.
A minutos de seu fim, M., completamente lúcido, esvaziado de toda esperança,
"se abriu pela primeira vez à tema indiferença do Mundo". Seu último desejo é que
o momento da execução tenha bastante público, e que os espectadores o recebam
com gritos de ódio. No momento da morte, este homem compreendeu qual tinha
sido o sentido de sua vida; sentiu a enorme indiferença do mundo, como se este lhe
devolvesse a própria atitude que ele tinha tido durante toda sua vida. Sentiu que
tinha estado muito longe de todos, que não amou a ninguém, tampouco odiou.
Apenas no momento da morte quer sentir-se a si mesmo no ódio que uma massa
anônima e curiosa possa oferecer-lhe; nem sequer assim existiria em alguém: quer
ver sua revolta inútil refletida na cólera aniquiladora dos outros. Pelo menos quer
ter esse momento de comunicação.
Sem dúvida Meursault é paradigmático em mais de um aspecto. Certo, o
que nos chama a atenção, em primeiro termo, é uma espécie de objetivismo frio.
Aceita a amizade de Raimundo simplesmente porque as circunstâncias os põem
em contato, não porque sinta nesse indivíduo a encarnação de um valor particular
ou experimente simpatia por ele. Mantém Maria como amante sabendo que, se
não fosse ela, teria alguma outra, tanto faz. O que chama nossa atenção nele é
sua falta de ressonância afetiva, sua incapacidade para comprometer-se emo-
cionalmente; é como se sua existência estivesse truncada pelo desenvolvimento
numa só direção - seu objetivismo em detrimento do outro pelo de sua
personalidade.
101
O inquilino do imaginário
A alienação em Kafka
Nesta análise da estranheza, poderíamos omitir um outro escritor que a tem
refletido em suas dimensões mais profundas e dolorosas? Já aludimos
anteriormente a Franz Kafka, homem de estirpe e veia existencial-metafísica.
Ele foi o primeiro que soube mostrar-nos a espantosa condição humana num
mundo aparentemente tão normal, tão racionalmente estruturado. Na sua obra
fica patente que todos nós estamos perdidos em labirintos sinuosos e emaranhados,
embora acreditemos transitar por caminhos retos e certos. Muito antes que Camus,
já no período da Primeira Grande Guerra, Kafka percebeu os aspectos
dolorosamente absurdos da existência. O escritor era um indivíduo de finíssima
sensibilidade, que sem dúvida sentiu na medula de seu espírito as torturantes
contradições de sua sociedade e do destino do homem no século XX. Ele foi o
primeiro a refletir a situação do indivíduo perdido, anulado e coisificado na
monstruosa engrenagem social; anulado e coisificado especialmente perante o
poder do Estado, das instituições, dos outros. Em O Processo, o personagem K.
(é o significativo que leva a inicial do sobrenome de seu autor) vê-se envolto
num processo que lhe consome boa parte de suas energias durante anos, sem
que ele nunca chegue a saber do que é acusado, nem quem seja o acusador. K. é
um homem normal, um correto funcionário de banco, solteiro e com todas as
suas contas em dia. De que podem acusá-lo? Ele mesmo se pergunta isso: pro-
cura esclarecer sua situação; consulta um advogado, assiste a uma sessão dos
tribunais, intenta aproximar-se de um juiz. Tudo resulta inútil. Aliás, todos
unanimemente confirmam-lhe que a justiça é assim mesmo, sigilosa, lenta e
impenetrável; "Um processo sempre dura anos e anos, e poucos chegam a saber
do que são acusados", informa-lhe seu advogado. Ele sente que está sendo
102
Formas de alienação e psicopatologia
103
O inquilino do imaginário
104
Formas de alienação e psicopatologia
105
O inquilino do imaginário
representação de si, tal como acredita que os outros esperam que o faça. Ambos
os tipos não conseguiram a totalidade que, como síntese dialética, alcança
dinamicamente o indivíduo integrado. Alguns falariam, nesses casos, de repressão
ou de mecanismos de defesa. Nós diremos que há uma totalização truncada.
A idéia de totalidade- promovida no campo da psicologia graças aos trabalhos
de Gestalt, já no início do século XX- é certamente uma noção axial da dialética,
tão velha como é o pensamento chinês antigo, em que já estão presentes totalidade
e contradição. Nós vamos fazendo o jogo das contradições e a síntese de tais
contradições. É certo: meu ser social determina boa parte de meus comportamentos
e, em conseqüência, me resulta inevitável que assuma alguns papéis - em algum
grau, todos representamos o que somos; mas também eu posso determinar o caráter
de meu papel, sem chegar a alienar-me no ditame do outro, como faz o histérico (e,
num outro plano, o conformista). O histérico apresenta-se-nos como inautêntico
por sua incapacidade para integrar o papel a seu ser, fazendo-se deste modo
transparente, para o observador, seu jogo de disfarces. Com o desenvolvimento de
nossa trajetória pessoal, nós vamos forjando o elo de nossa mesmidade, a que está
feita de experiências, identificações e fantasias. Desta maneira, construímos nosso
mundo interno. Recolher-nos em tal solar interno é um momento necessário, tanto
para a reflexão como para a fantasia; ademais, é um aspecto da práxis, do trabalho
de formação que o próprio indivíduo faz para si (tal é o sentido aristotélico de
práxis). O que parece acontecer com o esquizo é que se refugia em sua subjetividade
fechada, enquanto já não consegue lidar com as exigências objetivas nem com
suas necessidades elementares de realização.
Poderíamos considerar ainda outras condutas ditas anormais. Joseph Gabei
tem procurado mostrar que a reificação é o fenômeno básico da psicopatologia,
idéia que em nosso círculo cultural tinha promovido Eleger (1958). Nós preferimos
colocar uma síndrome que ilustra bem a 'tese que estamos expondo: a depressão.
No quadro depressivo, destacam-se quatro vivências estruturalmente
relacionadas. Em primeiro lugar, o sentimento de queda e de prostração, que algumas
pessoas traduzem com a expressão de "sentir-se como um inseto de costas, fazendo
inúteis esforços para recuperar a posição de marcha" (lembremos Gregório Samsa,
de A Metamorfose). Este sentimento de queda ontológica vai acompanhado de
autodesvalorização, que pode chegar ao desprezo de si - como escrevia o poeta
colombiano Barba Jacob ("troco minha vida, vendo minha vida, de todos os modos.
a levo perdida"). Tampouco falta o sentimento de culpa pela perda do objeto amado,
ou o sentimento de abandono- sentimentos que são os elementos motivadores de
todo o processo. Por último, registramos uma regressão temporal no sentido do
passado, que é onde se situam os fatos desencadeadores da vivência depressiva.
O tempo esvazia-se de sua dimensão dinâmica para transformar-se numa região
estática e repetitiva.
106
Formas de alienação e psicopatologia
107
O inquilino do imaginário
108
Formas de alienação e psicopatologia
109
O inquilino do imaginário
110
Formas de alienação e psicopatologia
Notas
1. Entre as críticas ao modelo médico da doença mental, dois livros merecem especial menção: a)
de Thomas Szasz: The Myth ofMental/llness (Nova York: 1961), que apresenta uma teoria
alternativa baseada no modelo da conduta humana com o acatamento de regras; b) de Fuller
Torrey: A Morte da Psiquiatria (Rio de Janeiro: 1976, ed. original, 1974), que propõe
simplesmente o fim da psiquiatria, a qual deve ser substituída, segundo Fuller, por uma
ciência do comportamento de orientação neo-educacional. E não nos esqueçamos das críticas
da Antipsiquiatria.
2. José Bleger: Psicoanálisis y Dialéctica Ma(erialista (Buenos Aires: 1958).
111
O inquilino do imaginário
112
Capítulo 5
A CONSCIÊNCIA E A QUESTÃO
DO INCONSCIENTE
113
O inquilino do imaginário
114
A consciência e a questão do inconsciente
segue esses ensinamentos. O que propõe é o domínio da mente, "o meio mais
valioso para encontrar Deus em nossa vida", nas suas palavras. Livro interessante
em muitos aspectos, sem dúvida.
Contudo, em nenhum momento seu autor faz algumas considerações que nos
elucidem sobre o que ele entende por consciência. "A mente é a forma perceptível
da Deusa, a Chita Kundalini. Todo o Universo tem chegado a existir por meio da
mente. A mente é a luz da consciência numa forma concentrada. A mente é uma
pulsação da energia divina consciente (a chitishakti, em língua sânscrita)." (Pág.
61, cap. sobre a mente.) Escrever um livro de mais de 400 páginas, ein que a
consciência (como atributo essencial de Deus e dos seres, incluindo o homem) é o
tema central, não deixa de ser instigante. Apenas nos surpreende que seu autor
não nos esclareça, sequer de uma maneira preliminar, sobre o sentido, ou os sentidos,
que dá ao termo consciência. Podemos inferi-lo ao longo de sua exposição: seria a
forma primordial da energia divina, que se manifesta de alguma maneira em todos
os seres 4 •
Certamente esse não seria o sentido que subscreveria um psicólogo; ou pelo
menos não é o sentido que teria no campo da psicologia. Nem sequer seria o
significado que lhe atribuiria um leigo quando usasse essa palavra.
115
O inquilino do imaginário
116
A consciência e a questão do inconsciente
117
O inquilino do imaginário
é consciência de algo que ela não é. Isso significa que a transcendência é constitutiva
da consciência. Lemos em L'êntre et le Néant.
"Toda consciência é posicional enquanto se transcende para alcançar um
objeto e se esgota nessa posição mesma: tudo quanto há de intenção em minha
consciência atual está dirigido para o exterior: todas as minhas atividades judicativas
e práticas, toda a minha afetividade do momento se transcendem, apontam para
um objeto e nele se absorvem." (Texto levemente modificado, introd.) 6
Cabe ressaltar que a intencionalidade não deve ser entendida como propósito,
senão como intenção: como aquilo que tende para. Essa é, e é bom enfatizar este
ponto, uma das teses mais interessantes da fenomenologia, pois termina com a
velha idéia de que a consciência (ou a mente) é algo inteiramente fechado nos
intramuros de um sujeito, algo meramente interior, separado do exterior por uma
parede invisível, mas em última instância, intransponível. Ensina-nos que o homem,
enquanto ser consciente, está completamente voltado para o mundo, isto é, é um
ser-no-mundo.
Essa tese sartriana, como se pode apreciar, não é precisamente original; mas
sua segunda tese nos diz algo novo: a consciência não tem nada de substancial, é
uma 'pura aparência', no sentido de que apenas existe à medida que aparece. Mas
precisamente por ser pura aparência, por ser um vazio total Gá que o mundo inteiro
está fora dela), precisamente por essa identidade nela da aparência e da existência
pode ser considerada como o absoluto. Dessa identidade entre consciência e
existência tirará Sartre sua controvertida tese que postula a origem do nada no
seio da existência, chegando mesmo a assimilar ambos os fenômenos: o para si
nadifica e nadifica-se (isto é, gera o nada e toma-se nada).
"É uma paixão inútil."
O ser de um lado; a existência, mero reflexo do ser, tentando inutilmente
alcançar ao menos o pórtico do ser de outro. Estes são os dois absolutos.
Tendo a existência como atributo nuclear a consciência, Sartre nega que
possa haver isso que a psicanálise chama e qualifica como o inconsciente. Tudo o
que possa acontecer a título de fenômeno psíquico só pode ser consciente. Desejos,
representações, sentimentos, impulsos, fantasias, aparecem como formas de relação
do para-si na sua tentativa de alcançar o em-si (o ser do qual é mero reflexo e
negação). Então não há um recalque dessas formas de experiência psíquica? Pode
haver uma repressão de impulsos, sentimentos, desejos, mas isso não significa que
fiquem num hipotético lugar chamado inconsciente, esperando o momento oportuno
para manifestar-se, descuido originado na esfera do ego, o que explicaria os lapsos,
as histórias simbólicas do sono e outras expressões do inconsciente, segundo a
tese freudiana.
Para entender melhor a posição sartriana, acho oportuno referir-me aos
mecanismos de defesa do ego, que, na explicação freudiana, permitem-lhe um
118
A consciência e a questão do inconsciente
119
O inquilino do imaginário
120
A consciência e a questão do inconsciente
É verdade que lhe resultam incômodas, que nos casos mais graves procura
um terapeuta para aliviá-lo de suas idéias e compulsões. Mas não nos esqueçamos
de que há um fator de base: a ansiedade. E um outro não menos importante: a
estrutura de sua personalidade. Ele é um sujeito rígido, controlado e controlador,
programado, egóico (com um ideal de si bem acima da média, embora se possa
julgar negativamente nos períodos de crise). Nega assim os aspectos mais sadios
e naturais da vida: a espontaneidade e os impulsos, que nele geralmente são
fortes. A verdade é que nunca aprendeu a conviver tranqüilamente com os
aspectos naturais da vida. Foi domesticado precocemente na educação familiar,
interiorizando normas severas. É desta perspectiva que temos de compreender
seus sintomas.
Sendo controlado, vive na vigilância de si. É o guardião de si mesmo. Foi
condicionado para isso e fez desses condicionamentos seu projeto de vida. Não
tendo, aliás, desenvolvido nunca uma verdadeira racionalidade, no sentido da
autocompreensão, rara vez chega a entender o que lhe acontece; simplesmente vive
sua divisão que surge como pugna entre as necessidades naturais e o ideal de si.
Viver a divisão. Isso não significa que seja inconsciente; apenas não chega a
compreender como é a montagem dinâmica de suas vivências. É claro, não supera
esta divisão quando fica sabendo como foi que se programou. Para tanto terá de
fazer todo um trabalho de questionamento, de reformulação e de expressão de
suas necessidades, por exemplo. 7•8
121
O inquilino do imaginário
122
A consciência e a questão do inconsciente
123
O inquilino do imaginário
124
A consciência e a questão do inconsciente
125
O inquilino do imaginário
126
A consciência e a questão do inconsciente
127
O inquilino do imaginário
A Consciência e o Inconsciente
128
A consciência e a questão do inconsciente
129
O inquilino do imaginário
130
A consciência e a questão do inconsciente
131
O inquilino do imaginário
esse nada inapreensível que constitui a substância da vida, o tempo. Sem dinamismo
não há tempo; haveria apenas eternidade- esse incrível sonho dos metafísicos.
Para os psicólogos- e também para os leigos-, o que importa é a percepção
do tempo. E nesse ponto os fenomenólogos têm-nos ensinado um bocado. Aliás,
eles têm sido os únicos que se atreveram a freqüentar esse tema.
Ensinaram-nos que a percepção do tempo se relaciona com os estados de
ânimo: sentimos o passo e o ritmo do tempo segundo o predomínio de um
determinado grau de afinação com o mundo. Segundo nosso humor. Não apenas
isso. O predomínio de uma determinada vertente temporal também depende do
ânimo. Para abreviar uma exposição mais minuciosa, observe, a seguir, o quadro
que caracteriza oito estados anímicos e sua temporalização.
Eu diria que o tempo introduz a mudança inexorável em qualquer evento
psíquico. Uma lembrança nunca é a mesma nas repetidas ocasiões que a podemos
colocar no espaço da consciência; sempre haverá alguma variação, por sutil que
seja. Freud afirmava que os conteúdos do inconsciente eram atemporais, no sentido
de que permaneceriam inalteráveis. Eu não sei se existem processos mentais
inconscientes que escapem aos efeitos mutacionais do tempo. Penso que podem
durar muito tempo determinados traumas e alguns desejos, mas é incrível como
eles mudam, tanto que chega um momento que nem sequer os podemos reconhecer.
Faça você uma prova muito simples: retome em diversas ocasiões uma situação
traumática, que provavelmente o envergonhou, envolvendo-o na época num confuso
novelo de sentimentos negativos. Para muita gente, esse tipo de episódio foi tão
132
A consciência e a questão do inconsciente
desastroso para seu autoconceito que passaram a evitar qualquer associação com
eles. Esquivam-se deles; alguns os enterram como coisa podre. Retome um desses
quadros de sua adolescência em que você foi ridículo e tolo (perante sua namorada,
perante seu·s colegas ou em qualquer outro contexto), que lht:< sugira algo desagradável.
Você se lembra bem, mas o evita apenas. Às primeiras vezes você notará pouca
diferença, talvez reaja com emoções semelhantçs às que teve na atuação original,
mas logo vai perceber que aquele quadro adquire uma nova feição. É muito possível
que termine rindo às gargalhadas, olhando com outros olhos o que antes lhe produzia
desgosto e vergonha. Claro, não precisa retomar apenas fatos tristes e ingratos.
133
O inquilino do imaginário
As perturbações da consciência
134
A consciência e a questão do inconsciente
135
O inquilino do imaginário
136
A consciência e a questão do inconsciente
slogans, mas mesmo assim temos certa compreensão do que estamos falando.
Que a maioria das pessoas use uma língua sem conhecer sua estrutura gramatical
e a lógica de sua composição não é um argumento em favor de seu suposto caráter
inconsciente. O importante, quando falamos, é a intenção comunicativa, o uso
intencional do que queremos dizer - operação nada inconsciente.
A psicanálise pretende explicar todas as expressões do psiquismo humano,
inclusive os aspectos da criação cultural, pelas peripécias da libido e pelos
artifícios e jogadas do inconsciente. Também o trabalho criativo, das artes e
das ciências, encontraria nesta usina secreta da mente sua fonte principal.
Devo confessar que não consigo achar um fundamento plausível par!l tamanha
pretensão. Toda teoria que pretenda erigir-se na chave explicativa da enorme
complexidade humana me parece apenas uma miragem da razão.
137
O inquilino do imaginário
138
A consciência e a questão do inconsciente
que ignora a teoria, uma verdadeira mania interpretativa; mania por vezes tão
surpreendente, tão fora de propósito, que nos dá impressão de um verdadeiro delírio
interpretativo. O lamentável é que esse vício não é apenas uma invenção dos
seguidores da psicanálise: encontra-se nos escritos do próprio Freud.
No capítulo primeiro deste livro já comentamos algumas interpretações do
mestre vienense em dois casos clínicos escritos por ele, o de Dora e o do pequeno
Hans. Poderíamos citar inúmeras amostras de seu estilo. Poucas são verossímeis.
Não invoco aqui o bom senso, que amiúde é enganoso e simplório. Carecem de
qualquer justificativa plausível. Quase nunca correspondem a inferências baseadas
em indícios certos ou em princípios lógicos- que é o que faz o cientista, e também
o pesquisador policial, quando se indaga sobre os motivos de um determinado
comportamento ou sobre o significado de um fenômeno (sociocultural, biológico,
físico-natural, existencial).
Com as restrições apontadas acima, o conceito de inconsciente parece-nos
sustentável. O inadmisível são as interpretações dos chamados fenômenos
inconscientes - pelo menos aquelas propostas por Freud e os kleinianos.
Como nos lembra o epígrafe de Jan Casábius no início deste capítulo, não
devemos acentuar a oposição consciente e inconsciente; essa dicotomia é superada
no movimento da existência.
A rigor, não se justifica uma psicologia da consciência nem do inconsciente:
constituem uma só dimensão.
Notas
Sobre a subjetividade:
Subjetivo é tudo aquilo que pertence à ordem do sujeito, assim como o
objetivo é aquilo que pertence à esfera do objeto. O que entendemos por sujeito?
De acordo com seu étimo, ao sujeito corresponde tudo aquilo que subjaz, o
que sustenta, o que aparece como manifesto na conduta. É a pessoa enquanto
núcleo vivencial do que lhe acontece. É o centro unificador da experiência,
centro estruturado parcialmente, com seus vetores diposicionais, suas
constantes afetivas, suas atitudes predominantes, seus valores. Embora seja
usado freqüentemente como sinônimo de pessoa, eu diria que a pessoa é um
conceito mais abrangente, incluindo especialmente a conduta e o desempenho
de papéis, além do ego, que é a representação que a pessoa se faz de si
mesma de acordo com os valores do meio e do papel que lhe corresponde no
contexto social.
Subjetivo é, então, tudo aquilo que pertence à esfera do sujeito, enquanto o
sujeito é o centro unificador da experiência, do acontecer vivido.
139
O inquilino do imaginário
140
Capítulo 6
E depois de andar errante por aí, não importa se mal ou bem acompanhado,
certo dia nem tão diferente de todos os outros, aparecem todos os medos
que a gente foi acumulando ao longo de uma vida. Não falo apenas dos medos
de criança, cujas imagens ainda estão penduradas nos buracos da memória;
falo também dos que vieram depois.
Chegam até a minha porta os medos de minha mãe sufocada na sua condição de
mulher submissa, sujeita a um homem agressivo e encurralado -meu pai.
Aparecem os medos do meu pai, também ele vivendo sua condição de um
camarada sem destino, sempre xingando sua sorte de trabalhador subalterno.
E eu agüentando estes dois medos e tantos outros. Aí estão os medos de minha
irmã, dizendo para mim "se nossa mãe morre, o que vai ser de nós dois? Onde
vamos ficar? Se eles não se entendem, quem se entende nesta droga de mundo?
Se eles se detestam, para que nos deram a vida?" Surgem em seguida os outros
medos. O do primeiro amor perdido, coisa de adolescente, que ainda dói nos dias
frios do inverno; algo já esquecido no tempo, mas que deixou, além da saudade,
uma dúvida: e se o desenlace daquele amor fosse o destino de todos os amores?
Se ainda mesmo isso que tanto se exalta como a razão suprema da vida fosse
apenas uma ilusão impossível, o amor?
Tolice? Fantasias de gente covarde? Pode ser, mas ainda há outros temores. Ter já
trinta anos e andar por aí sem ter um amparo, uma moradia onde se refugiar nos
141
O inquilino do imaginário
E por esta porta surgem outros temores. E se ainda este modesto emprego
fosse água abaixo? Não se rumoreia por aí que estamos em tempos de
recessão? Por acaso milhares já não perderam seus postos de trabalho?
E então como ficaria minha situação? Até se pode admitir ganhar pouco;
o pior é quando se tem um chefe estúpido, prepotente, fascista. Gosta de
humilhar o pessoal. Procuro evitá-lo porque sei que um dia qualquer posso
estourar; e aí vou estourar seus miolos. Esse é meu temor: que amanhã me
torne um assassino. Duas coisas outorgou-me a natureza: saúde e força física.
E de duas coisas me privou o destino: o caminho fácil e a boa sorte. Às vezes
me pego imaginando como o líquido: o levanto pelo pescoço e o esmago
contra a parede. Mas não quero estropiar ainda mais meu destino. Não quero
que meu filho tenha por pai um assassino. E então como fica minha situação?
Inclino a cabeça, me submeto? Procuro outro lugar com um chefe menos
estúpido? Existe mesmo esse lugar?" (Depoimento de um homem casado,
colegial completo, subchefe administrativo numa empresa de transportes).
N da vida de muita gente. Aí estão os medos, que são as feições que adquire
a angústia quando se corporiza em determinadas situações vividas ou
meramente possíveis. Aí estão a frustração e a raiva por não poder superar uma
condição material precária e inquietante, que sempre insinua outra ameaça ainda
pior que a presente. A raiva perante a humilhação e o abuso. Aí está o conflito: o
que fazer perante o abuso e a prepotência? Esmagar a cabeça do cretino ou
submeter-se? Ir embora para onde? Será que existe mesmo um lugar onde o abuso
não esteja presente?
Aí também está o lado histórico de uma vida, apenas indicado em dois ou três
episódios. Não podia faltar aí a família, origem e trama nem sempre superável de
nosso destino pessoal. Tampouco falta o episódio do primeiro amor, geralmente
falido e atormentado, mas carregando a duvidosa glória das experiências primeiras.
Neste capítulo vamos tratar de três formas vivenciais que perturbam a todos
nós, de uma ou de outra maneira, com maior ou menor gravidade, tudo dependendo
do estágio que estamos atravessando e da história pessoal- dois fatores de extrema
importância. São três formas que amiúde se confundem, pois apresentam traços em
comum. Distinguimos estruturas e traços caracteriais inadequados, problemas emo-
cionais e formas neuróticas. Numa primeira idéia, eu diria que os problemas
emocionais são mais setoriais e circunscritos; afetam em menor grau a personalidade
142
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
143
O inquilino do imaginário
Perturbações emocionais
É verdade que a neurose implica algum tipo de perturbação afetivo-
emocional, mas não é suficiente estar sofrendo alguns sentimentos negativos
para sermos neuróticos. Coloco na categoria de perturbação emocional todas
aquelas vivências caracterizadas por um acentuado desequilíbrio na esfera dos
afetos, seja na linha da depressão e da ansiedade, seja na via da agressividade,
da culpa e dos conflitos- vivências decorrentes de fatores situacionais presentes
ou determináveis a partir de eventos passados compreensíveis, sem estrutura
caracterial neurótica.
A maioria das perturbações emocionais são de tipo reativo. O sujeito reage
de um modo muito acentuado perante determinados eventos que o afetaram a
ponto de perturbar sua forma habitual de regular sua interação com o mundo.
Essa é a forma mais comum, mas não é a única. Há perturbações emocionais
que se tomam constantes afetivas, que acompanham o sujeito durante anos,
inclusive. É o que sucede com o sentimento de culpa, tão freqüente na maioria
das pessoas; com a culpa e com certos conflitos.
O sentimento de culpa origina-se da consciência de ter transgredido um
princípio ético, de ter faltado a um dever para com nosso próximo ou para conosco.
Dever e culpa mantêm uma estreita relação. A culpa é experimentada como uma
falta- e quando o indivíduo é religioso, como um pecado, isto é, como uma falta
perante o juízo de Deus. Foi uma falta ao dever; é sentida como algo digno de
castigo e de expiação. Por sua culpa, o indivíduo teme o castigo, mas, por vezes,
procura-o como a única maneira de redimir-se; como Rodión Raskolnikof, o
personagem de Crime e Castigo, que não aquieta sua consciência até o momento
de receber a punição que julga corresponder a seu crime.
A culpa também pode originar-se da consciência de ter descuidado do próprio
desenvolvimento, desviando-se "pelos caminhos da perdição", seja desperdiçando
as boas oportunidades que a vida brindou, seja escolhendo o rumo errado. Neste
caso nos sentimos culpados de nosso infortúnio ou queda final. "Eu sei que mereço
meu destino, me diz um paciente; errei demais e é justo sofrer agora as con-
seqüências; me iludi com tolices, não valorizei as coisas essenciais; durante boa
parte de minha juventude vivi na pura banalidade- no sexo, nos jogos de azar e
numa folia de gente sem critério, insensata mesmo. Perdi minha fortuna mate-
rial, não construí nada, nem sequer uma família. Agora, com mais de 40 anos, o
que me espera? Já fiquei deprimido; agora sei que devo .aceitar com estoicismo
os efeitos de uma vida desperdiçada. Não sou homem de pôr a culpa em outros,
até a fé que legaram meus pais esqueci, pode haver maior descuido que esse?"
Perdas e fracassos provocam-nos tristeza, desânimo e depressão. Por um
determinado período podemos sentir seus efeitos, sentindo que nossa vida perde
sua luminosidade e seu sentido torna-se duvidoso ou francamente negativo. Em
144
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
maior ou menor grau nos desmotivamos, desligando-nos do que até ontem nos
interessava. Uma série de sentimentos negativos impregnam, com matizes
sombrias, a atmosfera que nos envolve.
É uma reação compreensível; passado um tempo nos recuperamos,
superando assim o impasse que nos tinha paralisado.
Por vezes entramos também num período de ansiedade. Perante as
exigências da vida nos sentimos impotentes; certas situações desnorteiam-
nos; outras ameaçam afundar nossa capacidade de manobra; tememos
fracassar ou perder uma posição conquistada ou na qual nos tínhamos
empenhado. Surge perante todos esses casos a possibilidade negativa; pode
ser uma ameaça vaga ou algo mais definido. De qualquer forma, é vivida como
inquietação e tensão.
Tudo isso nos destempera. Torna-nos mais suscetíveis às colisões e
barreiras; amiúde torna-nos irritáveis, agressivos; a mais leve contrariedade faz-
nos estourar. Se não estouramos pela via da agressividade, podemos ir pelo lado
da emoção exagerada, do choro fácil, da vulnerabilidade à flor de pele.
Tudo isso nos enturba e nos perturba; agitamo-nos num emaranhado
confuso de motivos e propósitos cujo sentido nos confunde.
Um amigo confessa-me: "Depois que me veio a suspeita de que Teresa não
gosta mais de mim, entrei de cheio na suspeita; na suspeita de que há um terceiro,
um outro cara que lhe interessa. Comecei a espiá-la. Isso me envergonha, me
diminui perante meus próprios olhos, mas o que posso fazer? Eu nunca havia
sido ciumento. Até um par de meses atrás, pensava que tudo era transparente
entre nós. Ingenuidade minha. Agora ela me parece uma gatá arteira, solapada;
penso que está fingindo o tempo todo. Foi o maldito telefonema que lhe peguei.
Quando a ouvi, quase tive um ataque. Conversava com o cara com uma voz
diferente, toda sedutora. Não podia acreditar no que estava ouvindo; era outra
mulher. Não falaram nada evidente; era só mudança, ou puramente insinuado.
Desde então ando irritado, ansioso, estúpido. Quando lhe pedi uma explicação
dessa conversa, ela se fingiu surpresa, desconversou. Isso me confirmou que
anda em maus passos. Não sei o que vou fazer. O pior é que sinto que ela me
domina; me domina com sua meiguice falsa e com seu eterno ar de inocência.
Estou tenso e desorientado; emocional demais".
Sentimentos negativos diversos, estados de ânimo no vetor de ansiedade e da
depressão, exacerbação do emocional - essas são as perturbações mais comuns.
Mas ainda há um outro motivo que costuma perturbar-nos nessa esfera: as situações
conflitantes. Os conflitos podem surgir em todas as áreas da vida psíquica, assim
como em todos os âmbitos da vida prática. Os mais freqüentes pertencem às
esferas dos valores, das motivações, dos interesses, da sexualidade e dos afetos.
Todas essas esferas se entrecruzam, confrontando-se valores de um tipo com
145
O inquilino do imaginário
QUADRO I
Traços característicos de tipos distorcidos de personalidade
por acentuação de um determinado fator
146
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
147
O inquilino do imaginário
148
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
149
O inquilino do imaginário
150
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
151
O inquilino do imaginário
152
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
153
O inquilino do imaginário
154
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
corriqueiros. Foi o que fez V. J. Wukmir que, baseado na sua própria concepção
do patológico, propôs toda uma nova nomeclatura (Klinorexia para a melancolia,
Kurtorexia para a histeria etc.). Porém, essa substituição só nos serviria como
forma de comunicação interdisciplinar, a menos que cunhemos uma nova teoria
que venha a descartar nossa compreensão atual dos fenômenos; fenômenos,
aliás, muito bem estabelecidos. O que temos de fazer, como pesquisadores
desse campo, é tentar tirar a carga de preconceitos que esse tipo de rótulo
implica2 •
155
O inquilino do imaginário
156
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
157
O inquilino do imaginário
158
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
159
O inquilino do imaginário
QUADRO 11
Diferenças entre a Angústia Sintomática e a Angústia Existencial
160
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
Ansiedade e Angústia.
Angústia Existencial e Sintomática
Lembremos que entendemos por ansiedade uma vivência de expectativa tensa
provocada por uma possibilidade que deixa em suspense nossa posição presente.
Qualquer situação nova que origine expectativas imprevistas tende, normalmente, a
tensionar o campo psicológico. Ficamos naturalmente ansiosos pelos resultados de
uma prova, e o mesmo nos acontece quando temos marcado um encontro que julgamos
importante. É sempre a expectativa que nos coloca cara a cara com a ansiedade.
Mas a expectativa é um aspecto da temporalização: relaciona-se com o futuro.
A temporalidade- as três vertentes do tempo em cuja trama a vida transcorre
- é uma dimensão fundamental do ser humano. O homem não só vive no presente;
apenas a criança o faz, e até os quatro anos. O presente afunda suas raízes no
passado e projeta-se no futuro. Pois bem, existem certas vivências que só têm sentido
por sua conexão com o futuro. A espera e a esperança, a expectativa e a ansiedade
são as vivências que revelam a estrutura prospectiva ou futurível do homem.
Note-se que falamos de ansiedade e angústia como conceitos equivalentes.
Embora alguns autores façam alguma diferença dizendo que a angústia é uma
161
O inquilino do imaginário
162
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
QUADRO IH
Características de ansiedade sintomática ou neurótica
Ansiedade e Angústia - Quando não corresponde, como reação, à situação que a provoca.
Sintomática - Quando se faz periódica e persistente.
- Quando se toma o clima dominante na vida da pessoa, impondo um
sentimento de soçobro existencial.
- Quando a dispara qualquer evento irrelevante.
163
O inquilino do imaginário
A Angústia Existencial
Devemos a Soren Kierkegaard a primeira tentativa de elucidação da
angústia. Corresponde a ele o mérito de haver escrito o primeiro livro dedicado
a essa vivência: O Conceito de Angústia (1844, Copenhague). Como quase
todos os escritos do filósofo, esse texto não é de fácil acesso para o leitor de
nosso ambiente cultural, em nossa época. Embora suas análises sejam
inteiramente pertinentes, de aguda penetração psicológica, sua insistência na
temática do pecado não estimula sua leitura ao leitor contemporâneo. É que a
noção. de pecado nos cheira hoje a coisa do passado. Pecado e proibições de
natureza sexual estão muito associados na cabeça de muita gente. Certamente
pecado não é meramente isso, mas é assim que é entendido esse conceito pela
nova geração. Pecado é pecatus: dívida e falta. Nesse sentido, todos nós somos
pecadores - como justamente ensina a tradição.
Contudo, temos de destacar três contribuições do pensador Danés sobre esse
tema. Em primeiro lugar, ter feito pela primeira vez uma nítida distinção entre
Medo e Angústia. O medo é uma reação de temor perante uma ameaça concreta
e definida, e a angústia surge perante uma ameaça possível. Segundo, ter destacado
o aspecto também positivo da angústia; é verdade que nesse estado nos tensionamos
e sofremos, mas sua inquietude é uma forma de alertar-nos e de estimular-nos na
procura de alguma alternativa melhor. Terceiro, Kierkegaard nos ensinou que a
angústia é uma constante humana, derivada da responsabilidade e expressão de
nossa liberdade; não é algo meramente fortuito, produto de circunstâncias adversas.
Apesar de todo o dito acima, relacionado com a extrema cautela no uso dos
rótulos diagnósticos, podemos caracterizar alguns aspectos peculiares do existir
164
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
165
O inquilino do imaginário
essa etapa como a matriz das principais linhas do caráter, isto é, como responsável
pelos modos dominantes de relação homem-mundo. Em geral, essa tese me parece
muito plausível. Durante esse período, a criança introduz-se gradualmente no mundo
humano através desse longo e por vezes complicado processo que denominamos
de socialização. Durante esse decênio, o infante conhece uma gama considerável
do repertório de experiências humanas. Contudo, só uma gama considerável; será
durante as outras etapas que conhecerá aspectos novos e decisivos. Na adolescência
emerge uma série de experiências que antes apenas havia suspeitado, ou cujo
significado apenas havia entrevisto de longe. A sexualidade, a necessidade de
autonomia, a procura de um lugar no espaço da produção, a vontade de uma
projeção futura - nesse estágio o jovem descobre-se como possibilidade - são
temáticas desconhecidas pelo infante. De qualquer forma, na infância organizam-
se alguns traços básicos da personalidade.
Não é a variedade nem a quantidade de experiências o que toma tão importante
a infância na constituição da personalidade. É mais a natureza dessas experiências.
São marcantes, porque se dão num plano de afetividade original. Impressionam e
modelam o ser da criança porque a afetam de um modo direto, sem filtros nem
atenuantes. Temos de lembrar que a criança ainda não possui sistemas de filtragem
e barreiras defensivas. Sua relação com os eventos não é modulada por esquemas
conceituais e por esse mecanismo de análise, distanciamento, que chamamos reflexão.
Ela está imersa~ mergulhada no mundo, e mergulhada também em sua natureza- o
corpo. Isso a toma extraordinariamente aberta e receptiva às solicitações de seu
contorno; aberta e sensível. Por viver num contato muito estreito, sem mediações,
com os objetos e as pessoas, está sendo impressionada profundamente. Ela é, aliás,
como uma argila virgem, em que tudo o que se imprime fica escrito de um modo
nítido e, muitas vezes, indelével. "Lembro como me impressionava tudo naquela
época encantada"- escreve Max Nolden. "As imagens dos livros nunca eram apenas
fotografias e gravuras: eram cenas que adquiriam movimento, personagens que viviam
num outro plano, tão real como meu cotidiano ou talvez mais. Até as palavras saíam
da boca das pessoas como algo sólido e consistente, como moedas de um cofr~ e
como água da torneira, sobretudo quando eram faladas por meu pai; ele dizia as
coisas de uma forma indubitável, mais clara que um feixe de luz. Eu podia não
compreendê-las, mas as via. Quase tudo tinha a densidade e o peso do defmitivo. Era
a presença insubomável, amiúde terrível, quase sempre fascinante. Lembro quando
ia à igreja. Aqueles vitrais com a história da paixão de Cristo me fascinavam. Eu via
Jesus carregando a cruz, sentia as chicotadas com que os verdugos atormentavam
seu corpo; ouvia seu fôlego entrecortado pelo cansaço. E quando o padre, num
trecho da missa, proclamava 'se lança satanás nos infernos', eu enxergava essa
cena com todo seu drarnatismo: era uma dança algo grotesca e divertida. E os cheiros,
como me embriagavam! Parecia-me que cada pessoa tinha um cheiro particular;
minha mãe estava impregnada, uma mistura de comidas, suor e jasmim; certos dias
166
Pelas vias do desencontro pessoal - caráter, perturbações emocionais e neurose
percebia seu sangue de mulher, algo muito estranho que me desagradava e me atraía
(só anos depois entendi do que se tratava). De meu pai, o que mais me impressionava
eram suas raivas; então se transfigurava, parecia-me um cão furioso, pronto para
despedaçar a quem estivesse por perto. Todos ficavam com medo; a mãe calava,
nós nos escondíamos em algum buraco. Contudo, quando ele se ausentava, eu sentia
sua falta e o procurava onde ele costumava estar; ele era grande e forte, e com
freqüência seu olhar me envolvia como uma chuva numa tarde de outono, suave e
fresca( ... ). Naquela época, como acreditava em tudo! Não havia palavra em vão
nem gesto insignificante; sobretudo a palavra dos pais era sagrada. Se minha mãe
me dizia que não devia freqüentar o trato de um menino porque ele era um sujeito
ruim, isso era verdade revelada; se me ensinava que Deus está sempre observando
os nossos atos, eu sabia que estava me espiando de alguma maneira. E quando ela
se inclinava perante uma pessoa mais poderosa, me transmitia sua reverência como
se os dois fôssemos seres mínimos ante um ente superior( ... ). Aquele era um mundo
compacto, de uma presença inapelável ao mesmo tempo absolutamente real e
misterioso, completamente familiar e estranho."
Sim, a criança é um ser que acredita. Pelo menos durante os seis primeiros
anos sua fé nos adultos não sofre nenhuma fissura. De seus pais obtém quase tudo:
o alimento, a proteção, o carinho. Deles recebe os cuidados para orientar-se no
mundo. Eles vão colocando as marcas e setas que indicam o sentido e o significado
das coisas e das situações. Como poderia duvidar? Para duvidar é preciso, antes de
tudo, ter a capacidade para tomar certa distância do objeto; duvidar implica saber
colocar-se noutra perspectiva. A criança pode não aceitar algumas normas; pode
protestar perante algumas restrições que obstaculizam e impedem sua espontaneidade
e suas inclinações hedônicas. Contudo, esses protestos não emanam de um
posicionamento diferente, baseado numa razão ou num princípio; são meros reflexos
de um desejo contrariado ou simples tentativa de afirmação de um ego que procura-
suas primeiras formas de expressão. Urna educação adequada leva em conta esses ·
reflexos e tentativas: eles são a manifestação mais genuína de uma mente em
desenvolvimento. Mas não aceitar certas medidas disciplinares- muitas delas bastante
arbitrárias e caprichosas - não implica duvidar. A criança certamente não gosta de
punições e de exigências severas, mas sente a necessidade de letreiros que lhe
indiquem a direção certa da estrada. Acredita-se ou duvida-se, aliás, daquilo que não
pertence ao plano da evidência. Da experiência sensível a criança não duvida. Papai
Noel é para ela urna evidência; se os pais afirmam que é esse personagem quem dá
os presentes de Natal, ela acredita, pois essa informação pertence à esfera da crença.
A fé ingênua no dado perceptivo e na figura de autoridade é a atitude natural
para quem não possui referenciais próprios. E todos os referenciais da criança são
externos, oriundos de seu círculo familiar e da comunidade que o configura. Os
pais e os outros significativos são a autoridade competente, isto é, os autores de
boa parte do universo infantil. Eles definem e demarcam as dimensões mais
167
O inquilino do imaginário
Notas
1) Disfórico - disforia =esta palavra designa qualquer estado de desagrado, insatisfação e desânimo.
2) V. J. WUKMIR. Emoción y Sufrimiento (Barcelona, 1967).
3) MAX NOLDEN. Lo que se oculta en elfondo deZ espejo. Santiago-Chile, 1972.
4) JAMES COLEMAN. Psicologia do Anormal na Vida Contemporânea (São Paulo, 1980).
5) J. J. LÓPEZ IBOR. La Angustia Vital (Espanha, 1950).
6) Uso a palavra logro no sentido espanhol, como sinônimo de realização; equivale ao inglês
achievement. Os logros podem ser materiais, espirituais ou meramente simbólicos.
7) EMÍLIO ROMERO. Essas Inquietantes Ervas do Jardim. (Lemos Editorial, 1996) pág. 87.
168
Capítulo 7
NEGATIVOS NO CIRCULO
EXISTENCIAL DAS NEUROSES
169
O inquilino do imaginário
170
O predorrúnio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses
171
O inquilino do imaginário
até conseguem uma relativa acomodação, obtendo certas gratificações que compensam
em parte o sentimento básico de insuficiência e de outros sentimentos negativos.
172
O predonúnio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses
173
O inquilino do imaginário
Auto-estima e autoconceito
174
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses
175
O inquilino do imaginário
176
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses
ANGÚSTIA DEPRESSÃO
Revela o caráter futurível da existência: seu caráter Revela o estado de queda e de abandono- que é
de mero projeto e de possibilidade. a condição inicial da existência; a queda no
descuido de si.
177
O inquilino do imaginário
<O No DSM-IV (1994) se prescinde do conceito geral da neurose, mantido até então pela Associação
Norte-americana de Psiquiatria. Enquadram-se na categoria de distúrbios da ansiedade os tipos
aqui considerados, menos o depressivo.
178
O predomínio dos sentimentos negativos no círculo existencial das neuroses
CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
179
O inquilino do imaginário
menor grau. Não há ninguém com tão bom conceito de si, tão consciente de seu
valor, que fique invulnerável ao fracasso e às inevitáveis perdas que quebrantam
nossa vida. O desvalor de si, a subestimação, pode ser uma constante; então,
quando isso acontece, falamos de neurose. O mesmo vale para a angústia.
Quando a depressão e angústia são reações circunstanciais, concomitantes
com situações críticas ou desfavoráveis, falamos de depressão e angústia reativas.
Nesses casos, superadas as circunstâncias negativas, o sujeito sai desses estados;
recupera seu equilíbrio. Volta a enxergar o mundo como um horizonte de desafios
e convites, de roteiros feitos e de caminhos por fazer.
180
Capítulo 8
OS TIPOS DE ANSIEDADE
PROPOSTOS PELO DSM-IV ( 1994)
181
O inquilino do imaginário
182
Os tipos de ansiedade
que vai desmaiar, cair inerte diante de um mundo que não lhe permite manter-se
em pé. Desmaiar significa ter ultrapassado os limites de sua resistência. Por
momentos, só sente náuseas- o simples impulso de esvaziar toda a porcaria ingerida
que acumulou em sua vida; pesa-lhe no estômago. É como os personagens de
Sartre, que vomitam cada vez que lhes resulta intolerável uma situação que os
aborrece. "Quando peguei a minha mulher beijando e esfregando-se com seu amante
na sala de nossa casa, me refere um senhor, senti que ia desmaiar, logo me revirou
o estômago e tive que vomitar". Esta é uma simples reação diante de um fato
inesperado e chocante. O momento do estado da ansiedade paroxística (como
diria Brissaud) se produz como conseqüência de um processo de corrosão das
estruturas do sujeito, processo que geralmente leva anos, ou pelo menos alguns
meses, como acontece com as estruturas pessoais mais frágeis. Não esqueçamos
que os contínuos abalos que estremecem a vida afetam de maneira diferente as
pessoas, segundo seja a estrutura e a situação geral que estão vivendo. Os mais
emotivos e menos conscientes da origem de seus conflitos sentem opressão e dor
torácicas; preferem não pensar no aspecto que lhes ofusca a visão do que os
aflige. Sentem dor nesse centro imaginário dos sentimentos.
Para não cairmos num esquema puramente sintomático, vejamos a história
resumida de Andrei, de quem tratei durante quinze meses, por apresentar
manifestações típicas de pânico, além de agorafobia. Trata-se de um jovem de 23
anos, casado três anos com uma mulher de sua mesma idade, que trabalha como
secretária em uma clínica médica. Depois de quatro meses de atendimento, já
passado o período de maior ebulição emocional, Andrei se define como uma pessoa
insegura, imatura, desorientada, medrosa, dependente, de bons sentimentos para
com o próximo; talvez um ingênuo sem chegar a ser tonto. De fato, esses traços o
caracterizam em linhas gerais. Trabalha como contador em uma microempresa,
onde é muito estimado pelos companheiros por sua educação, seu espírito
cooperativo e, talvez, por sua aparência notoriamente tímida. Seu biotipo longilíneo,
medianamente astênico, seus gestos suaves, seu olhar entre convidativo e
reservado, sua voz moderada, seu vestuário discreto, seu andar leve e um pouco
vacilante- tudo isso configura a pessoa insegura ansiosa, levemente introvertida.
Andrei, é o único homem em uma família de seis mulheres, sua mãe e cinco
irmãs maiores. Em diversas ocasiões surgiram dificuldades em razão de gozar do
triste privilégio de ser um menino mimado entre tantas mulheres. Para agravar
mais sua situação, seu pai morreu no seu sexto aniversário.
"-Eu não sei como não sou maricas, criado só entre mulheres; às vezes me
pergunto se não sou, pois basta que eu ande em um parque ou em determinadas
horas da tarde para que logo passe um fulano e me lance um convite; como não
sou de briga, prefiro fugir, fazer-me de desentendido. Dizem que os maricas
percebem outros de sua espécie, por mais dissimulados que sejam. Você que pensa,
pensa que sou um sodomita reprimido?".
183
O inquilino do imaginário
- Não me parece. Ter uma aparência delicada e fina não basta para rotular
uma pessoa como afeminada. Por acaso, já se sentiu atraído por um homem ou já
teve algumas experiências homossexuais?
-Por favor, Dr. Aí seria muita desgraça; apenas sobrevivo com meus medos,
e seria muito pior se ainda resvalasse para o outro lado.
-Pense um pouco, Andrei, nunca se sentiu atraído por um homem?
- Pelo menos nunca percebi, até agora só gostei de mulheres e espero que
pelo menos neste ponto estar no lugar certo.
Às vezes é necessário insistir, questionando um aspecto mal defmido no mundo
de nosso coagente. Suas dúvidas nesta área são mais reflexo de sua insegurança
geral que o indício de um problema homossexual. Andrei também reconhece que sua
relação com a mãe foi um apego excessivo. Bastava um leve resfriado para que a
boa senhora - viúva desde os 38 anos - se mostrasse muito preocupada; ela era
também uma pessoa nervosa e agitada, muito centrada nos cuidados de sua prole,
mas sobretudo no descanso. "Para que você tenha uma idéia de como eram as
coisas, direi que até os 18 anos dormi na mesma cama que minha mãe, e tem algo
mais que me custa confessar, me custa muito, porque sei que tem algo de anormal.
Antes de dormir, minha mãe costumava encostar-se na minha cama, não todos os
dias, mas com certa freqüência. Nessa situação, ela colocava a mão na minha cabeça,
fazendo-me cafuné, e no peito, e começava a me acariciar suavemente; era uma
sensação muito gostosa, penso que tanto para ela quanto para mim. E aqui vem o
que incomoda; quando passava a mão pelo meu peito, eu pensava: agora sua mão vai
descer, vai pegar meu pênis e vai me masturbar. Essa idéia me angustiava, porque
não conseguia tirá-la da minha cabeça". Não é demais dizer que esta senhora nunca
mais quis casar. Contentou-se em edipianizar seu filho- como diria um freudiano.
Andrei confessa que se casou aos 20 anos para escapar de um círculo familiar
que o estava perturbando com a falta de liberdade, como uma maneira de fazer-se
mais adulto, saindo da influência de todas essas pessoas. Contudo, estava consciente
de que só conseguiria essa façanha se tivesse um elemento de apoio; sua atual
mulher foi esse elemento.
Isso não significava uma ruptura com sua família; continuou mantendo um
contato perníanente, porém bem menos freqüente que antes. No primeiro ano, o
relacionamento com sua esposa se deu da forma esperada: água de rosa e belas
promessas de amor, além das delícias do sexo. No segundo, ela lhe expressou seu
desejo de que ele fosse mais adulto, mais firme em seus propósitos; propôs que
fosse menos ingênuo, mais firme e decidido, como deve ser um homem de verdade.
Essa proposta provocou em Andrei o início de seu pânico. Entendeu que sua mulher
não estava satisfeita com sua maneira de ser, o que achava muito justo. Então se
sentia inseguro mas conseguia dar a impressão de um jovem normal. A partir
184
Os tipos de ansiedade
desse período, sentiu que começava a caminhar em areias movediças, que até
poderia perder a esposa se não conseguisse atender suas expectativas. A angústia
começou a mostrar-lhe suas faces mais amedrontadoras. Um dia, de volta a seu
apartamento, no táxi, temendo já não encontrar sua mulher em casa, sentiu uma
vertigem em forma de calafrios que lhe percorreu o corpo. Foi suficiente este
episódio para que a rua se tomasse um lugar ameaçador. Imaginou nos dias seguintes
que chegaria um momento em que não conseguiria ir até a firma, que perderia o
emprego, então sua companheira não teria escrúpulos em abandoná-lo. Voltar a
viver com a mãe e as irmãs solteiras seria um castigo. Eram pessoas boas, mas
que, no esforço em ajudá-lo, terminariam reforçando sua passividade. O pior é que
talvez tivesse um ataque cardíaco, pois sentia uma pressão terrível nessa região,
acompanhada de sufoco.
Foi nesse ponto que decidiu consultar um psicoterapeuta- pressionado, aliás,
por sua esposa. Pelo exposto, está claro que se trata de uma personalidade insegura-
ansiosa, muito vulnerável, passiva, emotiva, com escassa autoconfiança, à procura
de apoio interpessoal (não apenas do terapeuta) para neutralizar em parte a angústia
que lhe provoca sua consciência de ser um indivíduo frágil, mal preparado para
enfrentar um mundo competitivo, agressivo, nada considerado com os débeis.
Durante o tratamento, seus sintomas se acentuaram no período de maior
questionamento de si e de maior esforço para reformular seus padrões vivenciais.
Esta é uma reação normal, sobretudo numa pessoa com pouco senso de in-
dividualidade. Houve uma fase em que não se atrevia a ficar só no apartamento,
pois sua mulher precisava ficar no trabalho até depois das 20 horas; nessas ocasiões
ficava no hall de prédio na companhia do porteiro, simulando interesse num falatório
nada estimulante. Este tipo de truque o exasperava ainda mais. Para facilitar seu
desenvolvimento sugerimos-lhe que participasse de um grupo terapêutico,
paralelamente ao tratamento individual. Depois de 18 meses apresentou mudanças
significativas, o que nos permitiu espaçar as entrevistas, conseguindo uma franca
melhoria alguns meses depois.
O fato de termos destacado os fatores vivenciais e biográficos na gênese do
TP não significa que algum fator bioquímica não possa estar influindo e até
determinando este tipo de reações. É o que mostram as pesquisas de P. Bradwejn
et al. (1993), que provocaram ataques de pânico administrando um péptido chamado
colecistokinin (CCK); este péptido parece modular os efeitos dos neuro-
transmissores. Bastou administrar de 25 mg a 50 mg de CCK para que se obser-
vassem seus efeitos. Em 97% dos sujeitos que sofriam de TP, foram induzidos os
sintomas típicos desta reação (ansiedade, medos, apreensão, tontura,
despersonalização); e 60 % dos sujeitos que não sofriam essas reações
apresentaram-nas igualmente (apud Outley & Jenkins 11 ).
185
O inquilino do imaginário
A Agorafobia
186
Os tipos de ansiedade
era apenas uma dona de casa, uma mulher passiva -como meu marido me falou
mais de uma vez. Essa filha era todo meu consolo; filha que, ademais, se parece
muito com seu pai. Durante uns dois anos fiquei o tempo todo fechada na casa de
minha mãe, debatendo-me entre a depressão e a angústia; agora, com quase 40
anos, não sei o que fazer; é tanto meu sentimento de incapacidade que já no me
atrevo a sair à rua; como tenho ficado todos estes dois anos em casa, a rua me
provoca uma sensação de pavor espantoso. Fico imaginando que vou desmaiar ou
que alguma coisa física pode me acontecer lá fora; só acompanhada por alguém
de confiança me sinto mais segura. Penso inclusive que posso ter uma ataque
súbito e morrer. É algo terrível; e não pense você que não conheço o bairro; faz
mais de 30 anos que vivo aqui".
Trata-se uma pessoa insegura, hiperemotiva, passiva, com uma auto-estima
rebaixada, abalada por seu fracasso conjugal- "antes eu era uma pessoa confiante
na vida; depois que M. me deixou caiu muito meu sentimento de valor; fico me
perguntando por que o destino me fez esta jogada e não encontro uma resposta
satisfatória". Todo indica que se trata de uma personalidade dependente, sem uma
estrutura caracterial neurótica prévia, mas que entrou no círculo da neurose logo
após ter perdido seu eixo de sustentação básico. Uma fração grande de pessoas
constrói sua vida em tomo de um eixo de sustentação básico, ignorando que quanto
mais eixos sustentem uma construção, melhor resiste aos sismos inevitáveis. Para
algumas pessoas, este eixo se centraliza no trabalho; em outras, na fann1ia ou na
religião- e há quem procure algo mais: urna determinada relação amorosa, o cuidado
da aparência corporal. Uns poucos buscam o cultivo de alguma arte ou ciência.
Inés não desenvolveu os traços carateriais básicos que permitem a uma
pessoa enfrentar as perdas e fracassos, as dificuldades e barreiras; nunca enfrentou
desafios nem precisou esforçar-se para alcançar determinadas metas; submeteu-
se ao ditame de um pai autoritário e a uma mãe protetora; com escasso senso
crítico, algo ingênua, desde pequena idealizou um relacionamento amoroso único e
definitivo, feito de carinho e transparência, onde ela seria a rainha do lar. Essa
fantasia não se realizou; apa~onou-se por um homem que era exatamente sua
contrapartida. Seu fracasso a deixou no desamparo e na aflição.
Fobia específica
187
O inquilino do imaginário
por um cão, de ficar presa em um elevador, após uma viagem aérea muito agitada.
Outras derivam de uma emotividade muito sugestionável em que só a idéia de um
bicho desagradável suscita uma reação de intensa repulsa e pavor: medo de baratas,
lagartixas, aranhas. Há também fobias associadas a elementos simbólicos.
A senhora FM, de 54 anos, aposentada, ex-professora primária, tipo magro,
e
extrovertido expressivo, ansiosa insegura, me procura "para bater um papo com
uma pessoa bem preparada". Um dos medos que a preocupam é seu horror a formigas;
as baratas lhe desagradam, mas é capaz de matá-las, porém, diante deste inofensivo
himenotóptero, fica fora de si. Sente igualmente fobia de cachorros, pois diz que foi
atacada por um cão por volta dos 12 anos. É uma mulher muito emotiva e agitada,
com escassa interocepção, dependente da farm1ia, com a qual tem vivido sempre;
suas crenças e valores se ajustam ao padrão tradicional conservador, sem que mostre
um juízo crítico sobre nenhum aspecto do sistema social. Com sua irmã menor mantém
uma relação de tipo simbiótica. Sua irmã me refere que a mãe nunca teve um bom
conceito de FM, reprovando a viva voz alguns comportamentos e estouros emocionais
dela: "Esta desmiolada nunca fica tranqüila, ameaça suicidar-se e nunca cumpre seu
propósito, seria tão bom que deixasse a gente em paz". Examinando com FM este
ponto, ela se mostra esquiva, alegando que a mãe às vezes coloca muita pimenta nas
suas falas, mas é uma pessoa boa. É notório que quer ignorar ou atenuar o conflito
com a mãe. Costumo pedir a meus clientes que escrevam uma carta para seus pais,
mas não é enviada para os destinatários. FM não conseguiu escrever a carta a sua
mãe; escreveu para seu pai (que se suicidou 20 anos passados, logo após constatar
que sofria de hanseníase ): "Que Deus o tenha em seu reino, rezo sempre pela paz
de sua alma; só Deus julga as pessoas". No Questionário de Compreensão do
Mundo Pessoal1 há a seguinte questão: "Faça um elogio sincero a sua mãe". Ela
respondeu: "Apesar de tudo a senhora é uma boa pessoa; a vida não é fácil para
ninguém; a morte de meu pai e a maneira de morrer meu irmão foram um sofrimento
para todos nós". O irmão morreu decirrose hepática, pois era um alcoólatra de
dose diária.
Durante boa parte do processo terapêutico tenta colocar panos quentes em
seus problemas com frases clichês (Deus escreve certo por linhas tortas; ao final
tudo dá certo; é dando que se recebe etc.), o que traduz sua dificuldade para
interiorizar sua experiência, sua visão superficial das coisas. Tenta distrair-se o dia
todo, como uma forma de alienar-se de suas dificuldades e do malogro de sua vida;
procura estar sempre ocupada, faxinando a casa, vendo TV, telefonando ou
procurando a irmã. Sua razão de ser e seu maior eixo de sustento é a sua farm1ia,
da qual é totalmente dependente. Admite que não se concentra nem sequer quando
reza o rosário. Parece estar sempre excêntrica: fora de seu centro; para evitar
alguma forma de contato consigo mesma em termos de introspeção e recolhimento
de si, fala o dia todo. Sua experiência erótico-sentimental é muito reduzida; teve
um namorado aos 25; decepcionada, jurou não se en~olver mais, por temer que
188
Os tipos de ansiedade
189
O inquilino do imaginário
190
Os tipos de ansiedade
idéias políticas e filosóficas deveriam ser difundidas e aceita por todas as pessoas
inteligentes de nossa comunidade. Muitas vezes nos indignamos porque um
interlocutor nos apresenta uma objeção ou faz um comentário desfavorável a nossas
crenças. Já encontrei até um psicólogo que se irritou comigo a ponto de evitar-me
na faculdade onde trabalhávamos, depois de uma discussão sobre os fundamentos
de sua teoria supostamente científica. O colega não podia admitir que se
questionasse a suposta validade de sua doutrina.
As idéias obsessivas são também diferentes das idéias delirantes, que são
manifestações típicas das psicoses; as primeiras se apresentam ao sujeito como
algo estranho, incômodo, sem sintonia com seu próprio ego; são ego-assintônicas às
críticas, querem libertar-se de seu acosso. É possível até justificá-las em determinados
casos, por exemplo, da mãe acossada pela idéia de que seu filho pode ser raptado ou
sofrer um acidente fatal na estrada. Na obsessão de limpeza não faltam argumentos
que apóiem esse hábito exagerado. Estas justificativas são plausíveis. Porém, ter a
obsessão de que a braguilha das calças se abrirá, deixando os genitais descobertos,
é algo muito perturbador. As idéias delirantes são ego-sintônicas: o sujeito crê ser o
novo messias e se veste tal como andava Cristo. Não duvida de sua identidade (é
claro, também existem os impostores que se fingem salvadores só para viver à custa
dos otários). Também podem ser perturbadoras em alto grau, mas a pessoa não
chega a pensar que são simples fantasias de sua mente. Tem uma certeza
incomparável, inabalável, da verdade do que lhe acontece. Só depois de ter passado
por uma experiência delirante é que o indivíduo sabe que são meras invenções de
sua imaginação, que mesmo assim lhe são impostas sem apelação.
Esta diferença indicada nem sempre é clara, pois há idéias obsessivo-compulsivas
que avassalam de tal maneira que o pobre sujeito aparece como um delirante fora de
si. É o que ocorre com os que sofrem da obsessão por contaminação: chega um
ponto em que já não se atrevem a entrar em contato com nada por temor de contrair
um micróbio, um vírus ou qualquer praga que por aí circule. Não dão a mão nem para
a princesa mais esplendorosa, nem abrem a porta puxando a maçaneta, não importa
se atrás dessa porta está o remédio contra sua ansiedade.
Para um exame mais atento do caráter obsessivo-compulsivo, leia o capítulo
"O guardião de si mesmo" deste livro.
191
O inquilino do imaginário
submetido a tortura policial (comum nos regimes ditatoriais), que tenha passado
por violência sexual, ou que tenha sido deixada pelo noivo na porta da igreja. É
claro que o trauma pode ser bem menos dramático; o impacto emocional negativo
depende da personalidade do sujeito. Há pessoas que sofrem determinados
eventos ou situações altamente agressivas ou perturbadoras, sem experimentar
as seqüelas de um trauma; outras, menos preparadas para as contingências
adversas da vida, perante situações de mero confronto e de questionamento de
seus hábitos, reagem de maneira traumática. Diante de um assalto com invasão
do domicílio, as pessoas acusam uma reação bastante diferenciada. É sem dúvida
um fato altamente ameaçador, que amedronta o mais corajoso, sobretudo em
nosso país, onde os malfeitores têm a triste fama de serem impiedosos.
Em crianças, uma discussão exaltada entre os pais, com troca de ofensas
mútuas, pode ser algo altamente traumático; pior ainda se a mulher (ou o marido)
termina na emergência do hospital, por lesões múltiplas. Para um delinqüente
habituado às piores peripécias com a lei, uma troca de tiros com a polícia é parte
prevista de seu negócio, não importa se uma bala acabe alojada em seu abdome e
um par de colegas vai direto para o inferno. Porém, para as senhoritas que
presenciaram as mútuas homenagens da lei com os bandidos, sentindo o zumbido
das balas, isso foi um espetáculo bastante apavorante, que não vai acabar com
uma ducha de água fria. Supõe-se que um militar está preparado para os piores
feitos de uma guerra, e arrebentar com uma granada a cabeça de um monte de
civis suspeitos não lhe tira o apetite. No entanto, a guerra do Vietnã mostrou que
nem todos eram durões implacáveis, pois muitos deles terminaram traumatizados,
meio loucos, perseguidos pelas imagens do horror que eles mesmos protagonizaram.
Uma senhora pode sofrer um trauma depois de haver feito uma cirurgia estética
com resultados desastrosos; em vez de ver no espelho a jovem sorridente de 25
anos, encontra-se com a mesma senhora de 55, com a cara exageradamente
esticada, parecendo uma boneca mal feita, petrificada em plástico. Nestes casos,
as mais frustradas e aflitas exigem reparações na justiça, como acontece com
freqüência nos Estados Unidos, pois naquele país se processa por qualquer prejuízo
192
Os tipos de ansiedade
sofrido -já se viu um caso em que um fiel processou o padre por não celebrar a
missa como Deus manda.
David H. Barlow observa que o Tept é a conseqüência mais comum do estupro,
indicando que o 57% das mulheres vítimas deste tipo de violência sexual
apresentaram esta síndrome em algum momento de sua vida, mas adverte que
outros estudos dão uma cifra ainda muito maior-li.
Várias indícios revelam os efeitos pós-traumáticos, entre outros:
-Atuar como se o evento estivesse acontecendo de novo.
- Reatividade fisiológica diante de sinais internos e externos que representam
os eventos traumáticos. Basta observar uma cena que implique um assédio sexual
insistente para que uma vítima de estupro reaja com os sintomas somáticos do medo.
- Sofrimento psicológico intenso diante de sinais internos ou externos que
simbolizam ou lembram algum aspecto traumático. Para um judeu que sofreu os
horrores do nazismo, basta ver a suástica para que experimente um mal-estar
difícil de controlar. Basta lembrar-se de algumas cenas daquele horror para que o
medo e a raiva, a impotência e a desolação surjam em sua mente.
-Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e diminuição da
responsabilidade geral (evita atividades, locais e pessoas que lembrem o trauma,
sensação de distanciamento em relação a outras pessoas, perda de interesses
significativos etc.).
O Manual indica como seqüelas sintomáticas dois ou mais dos seguinte
itens, não presentes antes do trauma:
a) dificuldades em conciliar o sonho ou em mantê-lo; b) irritabilidade ou
erupções de raiva; c) dificuldades para concentrar-se; d) hipervigilância; d)
resposta de sobressalto exagerada.
O Tept é agudo se sua duração é inferior a três meses, e crônico se dura mais
de três.
193
O inquilino do imaginário
194
Os tipos de ansiedade
inseguro. De acordo com o DSM-IV, a ansiedade não deriva de nenhum dos fatores
até agora assinalados (pânico, fobia social, toe, tas, traumas), tampouco deriva de
outras síndromes, como anorexia nervosa, transtornos de somatização, hipocondria.
O que predomina no TAG é a ansiedade e preocupação excessivas; é a
expectativa ansiosa e a apreensão psíquica e física, como bem sublinha Pefia e
Lillo4 • O sentimento de inquietude se impõe no campo psicológico do sujeito, levando
a uma consciência constante de ameaça ante os acontecimentos mais comuns e
cotidianos. Predomina nele um estado de alerta tenso, que ora passa para a
irritabilidade, ora para a preocupação corrosiva e absorvente. Vejamos um
testemunho:
"Acordo muito cedo, às vezes despertado por um pesadelo ou pelos primeiros
ruídos do amanhecer. Procuro permanecer um momento na cama, porém logo
percebo que essa espécie de verme que corre meu espírito ainda está aí, na
tensão de meus músculos, em um sonho agitado, em toda a atmosfera que respiro.
Para tranqüilizar-me invoco a figura de Cristo e tento imaginá-lo na santa ceia,
conversando com Madalena, ou pego outra cena qualquer. Rezo. Senhor, é verdade
que abandonei meus pais e só os vi na hora da morte; é verdade que fui duro e
injusto com aquela jovem que me amava, não estive à sua altura e não respeitei
seus sentimentos. Mas tu sabes quanto tenho sofrido por esses erros; e por
todos os outros que já cometi. Senhor, coloca tuas mãos em meu coração e livra-
me desta angústia. Tu sabes que não há maldade em minha alma, só ignorância
e todas as feridas que trago desde a minha meninice. Senhor, não permitas que
minha vida se reduza a nada, a um ir e vir sem sentido. Essas e outras orações
me aliviam por alguns momentos, às vezes por algumas horas. Porém, estou sem
trabalho. Você sabe; como uma forma de ajuda, minha esposa e os dois filhos
foram para a casa de meu sogro, pois eu não tinha como sustentá-los nestas
circunstâncias de penúria; isso me humilha; ninguém sabe quanto me humilha.
Tenho buscado uma ocupação qualquer, estou começando em uma profissão
com um mercado de trabalho limitado; há apenas dois anos formado ninguém
parece confiar em mim. Faço o que sobra por aí; dá para pagar o aluguel do
apartamento e para gastos menores. Se pelo menos conseguisse um pouco de
paz, talvez melhorasse minha sorte. O pior é que me irrito com facilidade, isso
tem significado alguns atritos com Yolanda; ela faz o possível para parecer positiva,
mas eu sei que se continuar um tempo mais dessa maneira perderei seu afeto e
o respeito das crianças. Estou com muita raiva; detesto este sistema social que
condena tanta gente a viver na perpétua corda bamba; detesto os políticos, que
além de ladrões se dão ares de grandes dignitários. Deteste essa gente que faz
ostentação de riqueza perante nossa pobreza. É tudo injusto demais. Se pelo
menos conseguisse ocultar minha frustração em casa. Isso é terrível para mim.
Como vão respeitar um pai que não sabe mantê-los com dignidade? Como uma
mulher vai continuar gostando de um sujeito incompetente. Incompetente; um
195
O inquilino do imaginário
fulano inteligente, com um título universitário, com 32 anos, que não sabe dar
conta de suas responsabilidades, que sempre paga o aluguel com atraso, que
simula para os ex-colegas de faculdade que está entrando na profissão, que
arrasta consigo duas culpas pesadas. Estou cansado; na flor da vida algo me
corrói as entranhas, como um ácido amargo. Como escapar de tudo isto? Preciso
sair, caminhar bastante, talvez assim minha alma se aquiete um pouco, minha
alma e meu corpo." (Julio, arquiteto)
Coloquei em forma itálica todas as manifestações de angústia (ou ansiedade
generalizada, como preferem os autores de língua inglesa). Todas elas correspondem
ponto a ponto com as indicadas pelo DSM-IV:
a) inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da pele; b)
fatigabilidade; c) irritabilidade fácil; d) tensão muscular, perturbações do sono; e)
dificuldades de concentrar-se ou sensações de estar com a mente em branco.
O Manual apenas não indica os sentimentos de culpa e de fracasso, de
impotência e de eventuais protestos, de injustiça sofrida e também exercida, que
são prováveis fatores motivantes do processo ansioso. Tampouco enfatiza o
sentimento de agonia e de luta, nem menciona o acosso do nada, que está no
fundo e na superfície da vivência angustiosa. Senhor, não permitas que minha
vida se reduza a nada. Angústia e agonia têm uma raiz etimológica semelhante;
a primeira designa a sensação de opressão da garganta, com a conseqüente
falta de ar (o sufoco da existência); a segunda designa a luta, a luta para
sobreviver; no momento final, agonizar significa a luta entre a vida e a morte.
Pelo escrito acima, é fácil apreciar que um TAG não acontece por uma
simples troca de temperatura ambiental, nem porque a posição dos astros anda
desfavorável. Implica toda a história vital da pessoa, além de sua configuração
caracterial construída ao longo dessa história. Cada um dos chamados sintomas
desenham formas peculiares de relação homem-mundo, que é a forma original
de manifestar-se o Dasein. Por isso, não basta indicar essas manifestações
sintomáticas; é preciso estabelecer seu sentido- inclusive quando são sintomas
somáticos derivados de disfunções biológicas já estabelecidas, é preciso
pesquisar a influência do fator vivencial. Uma diarréia, uma taquicardia e muitas
outras manifestações somáticas têm um substrato psicológico - e por esta via,
um sentido.
O TAG deve satisfazer ainda um outro requisito: acontecer durante seis
meses, na maioria dos dias. Para uma compreensão mais ampla sobre este tipo
de ansiedade, recomendo o capítulo sobre a angústia como uma forma genera-
lizada da queda no desespero, no livro Formas de Sensibilidade: Psicologia e
Psicopatologia dos Afetos. 7 Para um retrato da angústia vivida no ambiente de
uma grande cidade, veja-se o filme Taxi Driver. 3
196
Os tipos de ansiedade
197
O inquilino do imaginário
NOTAS
198
Capítulo 9
OS TRANSTORNOS DA
PERSONALIDADE B A QUESTÃO DOS
TIPOS PSICOLÓGICOS
199
O inquilino do imaginário
200
Os transtornos da personalidade
de eventos e situações que apenas nós como indivíduos temos vivido; podem ser
situações similares às que outras pessoas também viveram, mas houve sempre
algo de único nelas, provocando em nós um impacto incomparável.
A ciência não ignora o indivíduo, o caso único, mas se interessa sobretudo
pela generalidade, pela multiplicidade na qual está inserido o indivíduo enquanto
ente comum agrupado numa classe geral. O caso singular serve como ponto de
partida, mas o conhecimento derivado de sua singularidade adquire validade se é
generalizável para uma multiplicidade de indivíduos. Pedro, João e Diogo são seres
singulares; a ciência, seja na forma de economia, antropologia ou psicologia, está
interessada em estabelecer o que tem em comum estas três pessoas, destacando
o que cada uma destas ciências se atribui como de sua competência. Os três
mostram alguns traços similares, em termos psicológicos? Isto interessa à psicologia.
De fato, são introvertidos, reservados, ativos, pouco emotivos, persistentes,
disciplinados, sérios, tranqüilos- então os três pertencem a um tipo humano chamado
fleugmático (segundo a tipologia temperamental de René Le Senne). 1 Este tipo é
nitidamente diferente dos outros sete discriminados e caracterizados pela teoria
temperamental deste autor. Diferente, mas com semelhanças igualmente nítidas
com respeito a outros tipos com quem compartilha alguns fatores comuns. 1
A ciência, entre outros objetivos, tipifica; procura o que um conjunto de
indivíduos ou fenômenos tem em comum, seja na sua aparência externa, seja no
seu funcionamento e estrutura intrínseca. Este é o objetivo das classificações.
Uma vez que estabelece uma configuração típica, procura averiguar quais são os
fatores determinantes do tipo. Na tipologia deLe Senne, as três grandes dimensões
psicológicas que condicionam um tipo são a primaridade-secundaridade, a atividade-
passividade, a hiperemotividade-hipoemotividade. A primeira dimensão se aproxima
à descrita por Jung como extrovertido-introvertido. São fatores dicotômicos, embora
com um ponto de enlace que permite uma terceira posição. Ora introvertido, ora
extrovertido, conforme a situação e as circunstâncias. Os seguidores desta
concepção supõem com boas razões que estas três dimensões, mais algumas
tendências gerais (amplidão do campo da consciência, grau de avidez, egocentrismo
e alterocentrismo, componente marciano ou venusino etc.), dão conta da diversidade
de seres humanos quando agrupados em classes gerais. Na mesma linha de
raciocínio está a tipologia psicológica de Jung, que igualmente distingue oito tipos
resultantes da combinação de dois grandes fatores básicos (introversão versus
extroversão) e de quatro funções psíquicas universais: intuição, pensamento,
sensação, percepção.
Pela simples inspeção dos fatores indicados, percebemos que todos eles
ressaltam aspectos psicológicos bastante complexos, mas esta ênfase no psicológico
não desconsidera o biológico; isto é muito notório em Le Senne, que concebe estes
fatores como próprios do temperamento, provavelmente determinado por
201
O inquilino do imaginário
202
Os transtornos da personalidade
203
O inquilino do imaginário
204
Os transtornos da personalidade
205
O inquilino do imaginário
Nos outros três tipos, este fator é de fácil identificação; além do egocentrismo,
que é comum a todos eles, o psicopata apresenta uma deficiência na esfera ética:
carece de um senso básico de responsabilidade e de respeito ao próximo. O
histriônico apresenta uma auto-identidade mistificada, falseada - distorcida pelo
desejo egóico de ser mais e diferente do que é propriamente: há um conflito entre
o proprium e o ego. 4 No narcisista existe uma valorização excessiva de si, também
falseada, acompanhada de uma certa ambivalência com respeito aos outros: uma
oscilação entre, por um lado, o menosprezo e, pelo outro, a subordinação ao juízo
alheio.
Proponho duas teses; a primeira é que cada um destes tipos apresenta ora
uma deficiência, ora uma acentuação excessiva de um ou mais fatores de
personalidade; este fator inclui dois ou mais traços, o que termina por direcionar e
influenciar tanto o comportamento do sujeito como seu substrato vivencial. A segunda
tese é que os dez tipos diferenciados podem ser agrupados em três categorias,
cada uma caracterizada por um fator ou eixo vivencial predominante.
A) Tipos na linha do psicótico (auto-identidade mal-integrada e acentuada
deficiência no contato interpessoal):
o esquizóide: deficiência do fator contato social (da simpatia e empatia),
que se expressa numa dificuldade para comunicar-se e numa dificuldade
acentuada para manter relações de intimidade;
o esquizotímico: deficiência acentuada do fator contato social (da simpatia
· e empatia), além de uma acentuada mistificação da auto-identidade
(alienação de si e do mundo);
o paranóico: deficiência acentuada do fator contato social (da simpatia e
empatia), além de uma acentuada agressividade defensiva como expressão
de uma ambivalência profunda contra o próximo- ambivalência decorrente
de um sentimento de injustiça sofrida.
B) Tipos na linha do egocentrismo acentuado (sujeitos muito centrados em
seu ego, com pouca ou nula empatia pelo próximo):
o psicopata: acentuado egocentrismo, além de uma formação deficiente
do senso ético (falta de respeito ao próximo e escasso senso de
responsabilidade);
o histriônico: acentuado egocentrismo, além de uma auto-identidade falseada
de si, distorcida por seu desejo egóico de ser mais e diferente do que
propriamente é. O egocentrismo é disfarçado por atitudes de agrado,
elogios e atenções, que são suas táticas para fazer-se valorizar e aceitar;
o narcisista: pessoa dominada por uma tendência a uma supervalorização de
si, egocêntrica, direcionada por uma ambivalência com respeito ao próximo,
que oscila entre o menosprezo e a subordinação ao juízo alheio. 3
206
Os transtornos da personalidade
207
O inquilino do imaginário
208
Os transtornos da personalidade
Notas
l) Le Senne, René: Traité de Caracterologie ( PUF, Paris, 1945). Existe em português uma exposição
geral da obra de Le Senne no livro de Roger Gaillat: Chaves da Caracterologia (Zahar
Editores, 1976).Estes autores entendem por caráter o que entendemos por temperamento, ·
pois ressaltam seu lado inato, congênito, hereditário. Em geral, os psicólogos entendem que o
caráter é adquirido, bem mais maleável e modificável que o temperamento. Os três grandes
fatores antitéticos discriminados por eles são facilmente discrimináveis assim que se examina
a vida do sujeito e alguns aspectos de seu comportamento.
2) Associação Norte-americana de Psiquiatria: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, 4'edição (DSM-IV, 1994) Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 1996.
3) Nesta mesma categoria, eu colocaria também a chamada personalidade autoritária, muito bem
descrita por Teodor Adorno em seu livro Authoritarian Personality (Nova York, 1950), na
209
O inquilino do imaginário
qual se insere o sujeito adicto a uma ideologia nazista ou fascista. Trata-se de uma pessoa
dominada por uma propensão maniqueísta, que o leva a enxergar as coisas em termos de
opostos inconciliáveis, hierarquizando as relações humanas em termos de autoridade supe-
rior e inferior e estabelecendo julgamentos dogmáticos, geralmente oriundos de um preconceito.
4) A palavra latina proprium me parece adequada para designar o que comumente os ingleses
denominam self, que corresponde ao mais próprio e genuíno do sujeito. Gordon Allport
usou-a neste mesmo sentido.
(& ) Entende-se por fator psicológico dois ou mais traços associados que caracterizam algum aspecto
do comportamento do sujeito.
210
Capítulo 10
O GUARDIÃO DE SI MESMO
# #
211
O inquilino do imaginário
212
O guardião de si mesmo
213
O inquilino do imaginário
Essas pessoas insistem e persistem; sim, são persistentes; uma ou outra vez
reclamam da falta de pontualidade, da falta de ordem, da insuficiente limpeza.
E não adianta muito explicar que as coisas podem ser bem flexíveis e menos
programadas. Elas não cedem.
Raras vezes aceita que o parceiro possa ter um padrão de limpeza e de
ordem bem menos rigoroso que os delas. Podem não criticar, até guardar silêncio,
mas no fundo corttinuam achando inadmissível a conduta do convivente.
É difícil encontrar pessoas desse tipo que se mostrem expressivas e efusivas
na troca dos afetos. Não que sejam frias, nada disso. São indivíduos com fortes
necessidades afetivas, porém, têm dificuldades para ser suficientemente espon-
tâneos nessa área. São pessoas bastante medidas no outorgamento do carinho:
dão só na proporção em que recebem. Se você não procura por elas, ficam em seu
canto, esperando que você tome alguma iniciativa. Não estão dispostas a arriscar
nada, menos ainda nas lides do amor. Quando paparicadas e constantemente
homenageadas, mostram-se contentes e satisfeitas, mas nem por isso conseguem
retribuir com entusiasmo. O entusiasmo franco é pouco comum nas anancásticas.
Não esqueçamos de que a contenção é um traço marcante nelas; bloqueiam
impulsos e emoções. Contudo, seria inverdade afirmar que não se entusiasmam;
simplesmente são moderadas e cautelosas.
Quando o parceiro é pouco efusivo em seus afetos, aí é que ela se congelam
mesmo. Em caso de brigas, sempre inevitáveis num casal saudável, é difícil que
tomem o caminho da reconciliação. Ficam distantes e indiferentes, embora possam
estar com vontade de trégua. É que geralmente são rancorosas e custa-lhes perdoar
quem lhes provocou suas feridas narcísicas.
214
O guardião de si mesmo
215
O inquilino do imaginário
que esse tipo de caráter impermeabiliza o seu portador dos apelos do desejo. É só
mais resistente, menos infrator que o comum dos mortais. Mais cauteloso, incluso
nesse ponto.
O eixo fundamental que define o mundo dos obsessivos é o cuidado. O cuidado
é o que Heidegger denomina um existenciário 2 , uma dimensão ontológica da exis-
tência. Sendo assim, viver implica ter de cuidar de nossa vida. Cuidamos dos modos
mais variados, desde o detalhe mais íntimo até o objetivo mais grandioso. Pelo
cuidado damos conta de nossa vida, atendemos às necessidades e procuramos
realizar-nos. Toda nossa práxis orienta-se, pelo menos em algum grau, sob o signo
do cuidado. Não damos um passo, mesmo quando nos desviamos por caminhos
tortuosos, sem colocar um relance de vigilância. Quando acordamos, inicia-se a
vigília; abrimos os olhos, nos espreguiçamos. Talvez gostássemos de permanecer
alguns momentos mais na penumbra do sono, tranqüilo estado de natureza, mas
não é possível; isso implicaria descuidar dos compromissos que temos, que exigem
sua devida atenção. Temos um esquema de trabalho, certas tarefas solicitam nossa
presença. Já estamos algo atrasados; temos de abreviar algumas medidas higiênicas,
temos de omitir um hábito corriqueiro - ler o jornal, fazer ginástica, tomar café
com nossa família. Precisamos atender o impostergável.
Contudo, quase sempre nos descuidamos de algo; ora a conversa com a
família, ora o treino ginástico, ora deixamos de lado os eventos que dinamizam o
mundo, ou mil aspectos mais, que de longe e de perto nos atingem. Às vezes
cuidamos demais de uma série de coisas que julgamos de primeira importância
para o sucesso profissional e para o crescimento de algum negócio; colocamos
assim no porão das coisas inúteis aquilo que depois, em outra etapa da vida,
percebemos que era o essencial. Como reparar aquele grave descuido? Deixamos
nos deslumbrar por interesses que hoje nos parecem secundários, talvez tolos e
fúteis. Sentimos que vivemos no erro; protegíamos a casca enquanto o miolo da
fruta apodrecia. Como não nos entristecer por grave descuido?
Saber cuidar adequadamente de si é uma arte que nem sempre aprendemos;
ou aprendemos muito mal. Quando nos descuidamos além de certos limites, começa
a degradação, a queda inevitável na decomposição. Podemos chegar ao estado de
abandono, tomando-nos, desse modo, na casa vazia do ser. É o que acontece no
estado de depressão profunda. Então, a existência aniquila-se, embora ainda, por
momentos, possa palpitar o levíssimo hálito da consciência.
A vigilância do anancástico
O homem anancástico é extremamente vigilante. É como um guardião
vigiando um território sob custódia. Como todo guardião, está muito preocupado
com as portas de entrada e de saída. Está preocupado com fechaduras e visitantes
intrusos. Como a maioria dos guardiães, sabe que tem de custodiar algo- um
216
O guardião de si mesmo
217
O inquilino do imaginário
A obstinação e a dúvida
A obstinação tem também uma outra face: é a contrapartida da dúvida. O
homem racional duvida por método, à maneira cartesiana, porque sabe que as
aparências enganam e porque os preconceitos induzem ao erro. O compulsivo
duvida porque está dilacerado por conflitos emocionais, porque não conseguiu um
mínimo de entendimento entre os diversos planos e dimensões de sua existência. É
como se o mundo sempre o estivesse solicitando de perspectivas e direções
diferentes e contrapostas, todas com um peso de atração considerável. Qualquer
direção que se tome deixa a sensação de que bem poderia ter-se optado pelas
outras. Obstina-se para manter uma proposta compacta, que não deixe nenhuma
rachadura pela qual penetre a dúvida. Procura uma certeza absoluta que o coloque
ao amparo da insegurança. Procura um ponto de apoio que lhe sirva de princípio
absoluto. Pode ser Deus, uma causa política, sua profissão, ou um conjunto de
rotinas ritualizadas. Os fanáticos são quase sempre sujeitos compulsivos.
É o paradoxo do indivíduo que afirma uma fé cega para não enxergar seu
fundo de descrença.
O homem que sustenta uma fé convicta é aquele que acredita em si mesmo;
está longe de qualquer fanatismo, embora às vezes pareça intransigente; é por
convicção, não por cegueira.
O fanático apega-se compulsivamente a uma doutrina - política, religiosa,
filosófica. Segue à risca os princípios e os ritos: essa é a garantia de sua tranqüilidade.
Move-se inspirado por um ideal de pureza doutrinária. Qualquer desvio da ortodoxia
parece-lhe blasfêmia ou traição. Quer ignorar que a vida humana está feita de con-
tradições e conflitos, de negações e rupturas; parece ignorar que para agir é preciso
sujar as mãos. Uma coisa é ser apaixonado por um ideal ou causa; outra bem diferente
é ser fanático. Para um observador superficial podem parecer lobos da mesma
camada; vistos de perto salienta-se uma diferença bem significativa: o apaixonado é
um indivíduo envolvido e envolvente, entregado ao motivo de sua paixão por vitalidade
e entusiasmo; o apaixonado deixa com freqüência de lado todo formalismo e não
218
O guardião de si mesmo
219
O inquilino do imaginário
b) Desde a infância, o indivíduo com esse tipo de caráter tem vivido sob
uma forte gravitação de um dos genitores, geralmente a mãe, que exerce
um domínio avassalador sobre ele; ainda a situação se agrava para a
criança em razão de que esse genitor dominante tenta por diversas
manobras excluir o outro desta relação diádica, ora desprestigiando-o
soterradamente, ora desautorizando-o de alguma maneira. Entre os pais
há um desentendimento implícito, que raras vezes irrompe como franca
hostilidade. Eles mantêm uma fachada de aparente entendimento,
esforçando-se por reprimir uma inconciliável divergência. O conflito é
dissimulado, embora filtre-se constantemente, criando um clima no lar
de cautela, dúvidas, agressividade contida, controle, ansiedade. A criança
interioriza esse clima. Procura ainda mais o amparo da mãe, que lhe dá
afeto e apoio; ela não consegue expressar ódio ou hostilidade contra seu
pai, pois sua mãe nunca é completamente definida em sua desautorização
contra o pai. Por vezes parece detestá-lo, por vezes, compreendê-lo.
Resultado: embora a criança desconfie do pai, permanece ambivalente
a seu respeito.
Um outro detalhe vem agravar a situação: a mãe é dominante em sua relação
com a filha, mas geralmente é uma pessoa insegura e ansiosa, que pretende
conquistar e monopolizar o afeto dos filhos apenas para compensar sua falta de
realização afetiva no plano conjugal e sua insegurança primária. Em conseqüência,
o apoio emocional dado ao filho está impregnado de ansiedade, de amostras de
coragem e de fraquezas.
Esta é a rede relaciona! na qual se encontra preso na infância o futuro
anancástico. De um lado tentando sempre confiar numa mãe que lhe dá afeto, mas
que ao mesmo tempo lhe mostra a necessidade de andar com o máximo de cuidado
para não estropiar uma estrutura muito precária, porém conveniente de manter.
Do outro lado, a figura de um pai que amiúde o solicita, mas que ele não se atreve
a rejeitar nem aceitar, pois enxerga-o através do olhar materno.
"Demorei muito tempo"- confessa uma jovem de 26 anos, inteligente, bem-
sucedida em termos profissionais, solteira - "para dar-me conta do que havia
acontecido na minha vida. Faz apenas dois anos e pouco que comecei a entender
como havia sido a minha vida. Minha mãe foi até um par de anos uma espécie de
deusa; ela regia e mandava em mim; todas as decisões relativamente importantes
que tinha de tomar, primeiro as consultava com ela. Às vezes não fazia o que ela
sugeria, e então eu geralmente me sentia culpada ou em falta. Quando encontrava
algumas dificuldades na gestão de alguma proposta, e quase sempre encontrava,
corria a seu lado para que ela me apoiasse. Quando discutia com algum namorado,
era ela quem sempre me acompanhava nessa dor. Ela me parecia a melhor mãe
imaginável.
220
O guardião de si mesmo
221
O inquilino do imaginário
A neurose obsessivo-compulsiva
222
O guardião de si mesmo
223
O inquilino do imaginário
224
O guardião de si mesmo
225
O inquilino do imaginário
Num capítulo sobre esse assunto, várias questões teriam de ser coloca:das;
pelo menos as seguintes:
- Em que casos o diagnóstico caracterial se torna difícil.
-Determinação das dificuldades mais freqüentes que apresentam na relação
terapeuta--cliente.
- Que tipo de táticas e recursos terapêuticos seriam mais indicados para uma
configuração caracterial dessa índole.
- Os limites de todo tratamento nesses casos.
Por ora, nos interessa considerar apenas o segundo tópico. Diremos os aspectos
mais gerais.
a) É preciso ter muita habilidade como terapeuta para evitar que o cliente se
movimente no plano da intelectualização. O obsessivo tem sérias di-
ficuldades para entrar na esfera afetiva e relativa perícia para conduzir-se
pelas vias da análise racional; pode falar de situações e experiências passa-
das e presentes que o afetaram de um modo decisivo, mas se refere a elas
como se fossem eventos de uma terceira pessoa. Não digo que não se
emocionem cada vez que entram numa trama vivencial que os perturbou
ou cujos efeitos ainda sentem; o que sucede é que bloqueiam as emoções
associadas àqueles eventos marcantes, tentam permanecer longe do círculo
vivencial, mantendo-se como espectadores bem-comportados. Quando se
vêem envolvidos numa onda emotiva muito intensa, que ameaça levá-los
para o âmago de um conflito original, pulam habilmente fora. A essas
manobras de escape deve estar muito atento o terapeuta; do contrário, as
sessões transcorrem durante meses na superfície das águas, sem que se
registre uma única imersão em profundidade. Eles parecem compreender,
fazer um inventário o mais minucioso possível de seus problemas, difi-
culdades e limitações. O que querem é discutir suas dificuldades com um
especialista; querem que lhes proporcione um mapa adequado do território
que estão percorrendo; sentem-se desorientados e não querem se perder
no matagal pantanoso que suspeitam exista em muitos pontos do per-
curso. Pensam que um conhecimento mais apurado do itinerário será a
solução dos atritos pelos quais estão atravessando.
b) Quando estão num período crítico, isto é, quando estão sofrendo o domínio
de idéias, impulsos e atos compulsivos, esperam que o terapeuta lhes
proporcione uma ajuda mágica, que lhes permita liberar-se em seguida
desses sintomas; é uma demanda sensata, sem dúvida, mas que o terapeuta
rara vez pode satisfazer da maneira solicitada. Nesse caso, é comum que
desistam do tratamento, indo procurar soluções alternativas, que não lhes
exija uma renúncia a seus mecanismos; terminam por apelar a fórmulas
religiosas - do tipo passes espíritas - ou se submetem a psicofármacos.
226
O guardião de si mesmo
Para evitar essa saída pouco feliz, o psicólogo deve advertir seu cliente de
que o tratamento não se centraliza nos sintomas, e que o processo
terapêutico será necessariamente prolongado. Os sintomas irão atenuando-
se à medida que ele consiga reelaborar seus padrões vivenciais e seu
estilo de relacionamento com seu mundo pessoal.
c) Também no relacionamento terapêutico, o obsessivo tentará repetir suas
exigências de controle; em matéria de horário, exige pontualidade; na
relação bipessoal, quer postura profissional por parte do psicólogo; dessa
postura profissional espera pelo menos duas coisas: o acatamento de certas
formalidades e a garantia de resultados tangíveis. Se o terapeuta acata
essas formalidades esperadas por seu cliente, é provável que o mantenha
como paciente durante muito tempo, talvez durante anos, mas os resultados
não serão particularmente alentadores. Terapeutas distantes e impessoais,
que mantêm uma atitude de estrita reserva e de cortês entendimento,
provocam uma favorável impressão no obsessivo, pois esta atitude lhes
garante a preservação de seu próprio estilo de comunicação interpessoal.
Melhor ainda se o psicólogo se coloca na cabeceira do paciente, evitando
assim todo encontro cara a cara, segundo o modelo clássico de psicanálise.
É sabido que esse tipo de pessoa mostra certa dificuldade em olhar os
olhos do interlocutor. Quando conversam, evitam o contato ocular, assim
como qualquer outro tipo de contato mais íntimo.
Embora um terapeuta solto e não-convencional possa inicialmente assustar
essa classe de clientes, penso que ele é o mais adequado para tratá-los. Isso por
duas razões básicas. Primeiro, um terapeuta não-convencional- espontâneo, ativo
e expressivo- não se submetará ao jogo do compulsivo, que consiste em manter
formalidades para assegurar seus impulsos e emoções. Segundo, oferece um
modelo de conduta e de expressão que o próprio paciente anda, no fundo, procurando
para si. É supérfluo dizer que no período inicial do processo o terapeuta deve
manter algumas formalidades; só quando o vínculo terapêutico esteja estabelecido
pode permitir-se toda a mobilidade que as circunstâncias do tratamento sugiram.
d) O vínculo terapêutico não é um laço fácil de estabelecer no caso que
estamos comentando. Sabemos que a cautela direciona os movimentos
dessa classe de pessoas; a cautela e a contenção. Demoram bastante
para entregar-se a um relacionamento; demoram para abrir as portas de
seu mundo interior; e, o que é pior, a menor decepção os induz a fechar-
se. Certamente cada caso é um caso. Estamos aqui nos referindo às
configurações mais gerais.
A garantia de resultados tangíveis é uma expectativa razoável que a maioria
das pessoas em psicoterapia alimenta. Todos esperam que um tratamento
dispendioso e comprido os beneficie de um modo ostensivo, claramente
perceptível tanto pelo interessado como pelas pessoas de seu convívio. A única
227
O inquilino do imaginário
228
O guardião de si mesmo
Notas
1) Anancástico: do grego, anankastein: agir compelido por uma necessidade ou impulso.
2) Na concepção heideggeriana, a existência humana caracteriza-se por apresentar uma série de
atributos que são inerentes a seu ser mais próprio: é o que seu autor denomina de existenciário.
Esses atributos ontológicos são, entre outros: a derrelição, a compreensão, a linguagem, o
projeto, o cuidado, a convivência, o tempo e a historicidade.
3) Não está demais dar algumas notícias sobre a história da pesquisa da neurose obsessiva Menciono
em seguida os principais momentos: 1838- Jean E. Esquirol descreveu o primeiro caso de
dúvida obsessiva sob o rótulo de monomania (mania com um tema central único ).1861 -A.
Benedito Morei cunhou o termo obsessão e insistiu em considerá-la uma doença emocional,
não apenas pertencente à esfera do pensamento.1867- Richart Krafft-Ebing introduz o
termo em alemão; observa que essa doença se relaciona com a depressão. 1870- Wilhelm
Griesinger usa o termo para descrever pensamentos repetitivos, que existem apesar do controle
do sujeito e ainda contra seu juízo. 1903- O já famoso Pierre Janet introduz o vocábulo
psicastenia, no qual inclui as obsessões e as fobias.
4) Para um enfoque diferente em alguns aspectos do nosso, o enfoque psicanalítico, consulte-se o
livro de Roger MacKinnon & Robert Michels A Entrevista Psiquiátrica (Artes Médicas,
Porto Alegre, 1992). Como é sabido, Freud afirma que o caráter obsessivo-compulsivo deriva
diretamente da fase anal- período no qual se inicia no controle dos esfíncteres e l}as imposições
do autocontrole. Se por acaso a criança se fixa neste estágio, apresentará posteriormente os
traços típicos deste tipo caracterial.
229
Capítulo 11
A PROCURA DE SI
NO ESPELHO DO OUTRO
O caráter histriônico e a questão da
auto-identidade
"Por vezes eu fico me olhando no espelho. Vejo um cara de feições duras, com os
estragos do tempo impressos numa pele algo seca e rugosa, com um olhar ainda
brilhante mas com um longo lamento no fundo das pupilas. Esse aí sou eu?, me
pergunto. Esse é o cara que os outros vêem? Será que eles também ouvem meus
lamentos e fingem não escutar? Será que eu estou nesse rosto, debaixo da pele,
circulando no sangue, preso entre os ossos, tentando agarrar-me a alguma coisa
no movimento das mãos? Ou será que estou sempre em outro lugar? Longe de mim,
perto de não sei o quê. " (Professor- 30 anos, casado)
"Carrego muitos personagens comigo, mas um sempre me.acompanha em meus
diálogos imaginários. É meu sócio nessa espécie de teatrinho que se forma em
minha mente em certos momentos. É um cara bichoso, que logo começa a falar com
timbre e expressões comuns entre os bichas. Supeito que é minha parte
homossexual ou uma gozação tola. É como se estivesse num canto de minha mente,
esperando um momento de expressão.
'Você está muito sério, meu querido'- me diz. 'Não quer divertir-se um pouco,
garotão? Aí vai passando um bofe. Não seria bom pegar sua coisa? Aposto que
você é virgem, que ninguém acariciou suas zonas sensíveis ainda. Você não sabe o
quanto é bom, garotão. '
É algo assim. Variam suas provocações. Diverte-me. Não que eu goste de bichas,
eu nunca me senti atraído por homens; meu negócio são as mulheres.
Não é o único personagem, aliás. Existe em mim um outro sócio. É um espécie de
sábio, que me anima com suas palavras estimulantes e honestas.
'Não desamine, meu jovem; você já passou por tanta porcaria e sempre deu um jeito
para sair limpo. Não se assuste com os pilantras, nem com essa onda de infâmia que
231
O inquilino do imaginário
inunda as ruas da cidade e que invade até os espíritos mais insuspeitos. Você está
por cima de tUdo isso. Não se lembra de seus maus tempos e como você foi em frente,
ainda que machucado e mancando?' É como se fosse meu pai- esse homem que eu
perdi quando era garoto. " (Ezequiel, professor - 30 anos, casado).
E comum, com toda a perplexidade que provoca quando nos deparamos com as
dúvidas associadas à sua problemática. É uma questão que surge na maioria
das pessoas, especialmente nos períodos de crise. No período adolescente emerge de
uma maneira inevitável: forma parte do processo de individuação, que nesta etapa
afeta todos os planos da existência. Em nenhuma outra etapa é tão urgente e tão difícil
tomar-se pessoa. Em sete anos precisamos ser reconhecidos como indivíduos (dos 14
aos 21 ), tendo que enfrentar todas as tarefas que os anos adultos nos exigem. Contudo,
não apenas nesta etapa surge em toda sua complexidade esta questão. A rigor, nunca
é um problema completamente resolvido. De qualquer maneira, bem ou mal termina-
mos por aceitar e adotar uma forma de ser em que nos sentimos em relativa sintonia.
Relativa e condicionada. Relativa à nossa história pessoal; condicionada pelas
condições de nossa existência (este é o requisito básico de todo condicionamento).
Certamente muita gente não chega a perceber o caráter problemático da identidade
pessoal. Apenas chegam a colocar-se o famoso Quem sou eu?, sem tentar dar
alguns passos adiante; ficam numa momentânea perplexidade, como paralisados
pelo tamanho da questão. Contentam-se em verificar os dados da carteira oficial
de identidade que lhes indica o sexo, a idade, a profissão, a nacionalidade e o nome
próprio. Limitam-se aos referenciais básicos, que são os grandes suportes sociais
do que somos aos olhos dos outros.
Os períodos ou fases críticas, algumas previsíveis e outras inesperadas, com
todas as 1!1Udanças implicadas, afetam de alguma maneira esta área; ademais,
qualquer mudança significativa, seja no plano biofísica, mental ou existencial, se
reflete ho proprium. Em razão de estarmos em contínua transformação, o proprium
nunca é algo concluído e definitivo, embora sempre persistam fios e linhas constantes
que nos permitem manter uma identidade no percurso temporal. Se não fosse
assim, não nos reconheceríamos em nossa história.
Não é nÓssa intenção examinar em detalhe a questão da identidade pessoal.
Apenas queremos chamar a atenção para como ela se apresenta num tipo de perso-
nalidade determinada - o tipo histriôiúco, nome que tende a substituir o conhecido
caráter histérico (Hy). Nesse tipo é um problema central, pois a pessoa não apenas não
se encontra em seu gênero, mas também em outros aspectos de sua identidade pessoal.
A histeria já teve seus tempos áureos. Foi na época de Charcot, de Pierre
JanetedeFreud, lá nos últimos lustros do século XIX. Naquele tempo, os psiquiatras
e psicólogos que procuravam destacar-se precisavam pelo menos escrever alguma
232
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
monografia sobre esse fenômeno tão surpreendente. Era mesmo tão freqüente
assim esse tipo de perturbação psicológica ? Ou apenas correspondia a uma espécie
de moda da época, que levava os psiquiatras a diagnosticarem sob um mesmo
rótulo fenômenos diversos? Essa é uma questão ainda não esclarecida.
Hoje nos chamam muito menos a atenção os chamados sintomas histéricos,
e nem são esse tipo de pessoas a clientela majoritária dos psicoterapeutas.
Diríamos que os famosos sintomas de conversão que outrora provocaram tanta
celeuma são hoje menos freqüentes, sem chegar a serem raros. Ainda vemos
gente que apresenta uma pseudoparalisia ou uma cegueira, sem lesão anatômica.
Mas uma coisa são os grandes sintomas histéricos, que levaram tantos velhos
mestres do século XIX a postular a hipótese de um subconsciente como fórmula
para explicar tão estranho fenômeno (hipótese que encontrou finalmente num Freud
seu mais afortunado continuador), e outra história é o chamado caráter histérico.
Como tipo caracterial não é algo insólito, aí estão os homossexuais feminóides,
nem sempre rebolantes e perfumados, mas sempre evidentes e explícitos.
Estranha-se que os poucos autores que escrevem hoje sobre esse tema não
mencionem a estreita relação que há entre homossexualidade e caráter Hy, que
a mim me parece até óbvia. Sustento aqui que tanto a homossexualidade (de
feição feminóide, no homem) como a histeria se originam de uma problemática
comum: de uma auto-identidade mal definida. Certamente o problema da
identidade pessoal não afeta apenas esses dois tipos psicológicos; está igualmente
presente em todos os quadros da psicopatologia (em particular nas neuroses e
nas psicoses), adquirindo sua feição peculiar segundo seja o padrão sintomático.
Interessou-me oferecer aqui a estrutura básica do caráter Hy (abreviatura
internacional para designar esse tipo humano). Insisto que há uma notória diferença
entre apresentar alguns traços (como ser sedutor(a) ou ter urna expressividade algo
dramática) e encaixar-se no caráter Hy, o que supõe toda urna estrutura mais complexa.
Abordo também dois fenômenos bastante surpreendentes associados à neurose histérica:
os sintomas de conversão e os raros casos de personalidade múltipla. Proponho como
explicação plausível destes dois fenômenos a hipótese de que se trata de algo análogo
ao que acontece na hipnose (auto-indução de um sintoma), por um lado, e do predomínio
do personagem sobre a pessoa, de outro. Tento mostrar que o tipo caracterial se origina
pela formação de urna auto-identidade falseada, mistificada, extrínseca.
As imagens do histérico
Circula por aí uma série de imagens do que seja a histeria. Como boa parte
das imagens que ganham a rua, elas misturam uma dose de verdade com certos
exageros, criando dessa maneira um estereótipo ou uma caricatura.
233
O inquilino do imaginário
234
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
235
O inquilino do imaginário
236
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
Mas existe também a coquete e o dom-juan, que parecem estar numa caça
permanente de emoções e ocasiões eróticas. Procuram impressionar com olhares
convidativos - promessas silenciosas de afagos e sensações inefáveis. Os
movimentos ondulantes da coquete, seu modo de destacar as curvas anatômicas,
os fingimentos de sua voz, tudo revela nela uma espécie de cio cálido ou discreto,
segundo seja a intenção do momento. E o dom-juan não fica atrás. Não importa
que seja um modesto galã de subúrbio ou um playboy com todos os emblemas do
sucesso econômico; ele fará sentir sua presença de macho apaixonado, competente
nos prazeres do corpo. Saberá tocar duas fibras muito sensíveis na alma feminina:
sua vaidade e seus sonhos românticos. Vivendo de representações, ele sabe obsequiar
belas imagens verbais, de si e da mulher que pretende seduzir.
QUADRO I
Esquema dos fatores e traços dominantes do caráter Hy
2. Fatores tendênciais:
a) Acentuada emotividade (rápida permeabili- b) Egocentrismo: dificuldade para enxergar
dade aos estímulos situacionais). Excitabilida- - as situações de uma perspectiva alheia.
de, labilidade, agitação emocional. d) Tendência à extroversão: maior neces-
c) Forte gravitação do plano imaginário nos r-- sidade de contato interpessoal e necessidade
outros planos do mundo pessoal: tendência a de expressar os eventos intrapessoais.
viver fantasias como se fossem eventos reais. e) Insuficiente desenvolvimento da indivi-
dualidade: maior subordinação ao juízo do
3. Traços e atitudes derivadas: outro.
237
O inquilino do imaginário
238
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
239
O inquilino do imaginário
240
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
figura que já exaltou nossa imaginação. Eles estão presentes, falam conosco, surgem
em cenários que já vivemos e que não existem mais. São também os personagens
que nós vivemos. Ao longo da vida vamos tendo ofícios diferentes, com status e
situações peculiares. Eu já fui mensageiro, vendedor, funcionário de alfândega,
tradutor, editor, gerente, escritor, psicólogo, professor- só para citar os ofícios dos
quais me lembro nesse momento. Em cada uma dessas atividades fui um
personagem. E não acabam por aí as metamorfoses de um homem. Aí estão também
os personagens que sonhamos ser; que sonhamos e por vezes tentamos ser.
Personagens modelos, que por vezes falam mais alto que nossa própria voz.
Personagens vividos, como ignorá-los se eles já definiram nosso ser em mais
de um aspecto?
Personagens sonhados, como delimitar suas presenças se ainda deambulam
pelas sendas de um horizonte que ainda nos promete um futuro possível?
Todos esses personagens são visitantes ou interlocutores ocasionais, por vezes
acompanhantes cotidianos. Povoam nosso campo imaginário, mas temos sobre
eles um razoável controle; podem impor-nos sua presença e até incomodar-nos
em mais de um aspecto, mas nunca nos dominam, impondo-nos "sua vontade". Se
isso chega a suceder, o indivíduo experimenta uma cisão psicótica ou histérica,
segundo seja a maneira de ser vivida uma divisão intrapessoal desse tipo.
Na chamada dupla personalidade Hy, coexistem dois personagens que se
alternam, ignorando-se mutuamente; um personagem é a pessoa habitual, aquela
que predomina no indivíduo; a outra é a personalidade intrusa- a sombra, como
diria Jung. Repito: esse é um fenômeno raríssimo. Quando chega a acontecer,
mobiliza psiquiatras e psicólogos como se se tratasse do maior portento. A maioria
dos colegas nunca viu um caso tão singular. A própria literatura especializada
registra poucos casos.
A procura de si no espelho do outro - uma primeira aproximação desse
problema me parece aquela que coloquei nas linhas anteriores. Normalmente
existem, em todos nós,- uma série de personagens que habitam nosso universo
pessoal. Contudo, na Hy acontece algo mais: esses personagens adquirem uma
espécie de autonomia, impondo-se ao sujeito, seja como entes estranhos, seja como
uma forma postiça de ser (como acontece com o bicha e o travesti).
Este é o fenômeno que precisamos compreender.
Sugiro duas linhas explicativas que nos permitem entender por que e como se
desenvolve esse tipo de manifestação. Uma relaciona-se com o caráter típico do
Hy (esquematizado no quadro 1). Outra relaciona-se com o que se conhece como
os fenômenos de transe.
Penso que os traços dominantes desse tipo dão conta per se da dinâmica
geral da conduta histérica e das vivências que essa conduta- implica. No capítulo
seguinte exponho em detalhes a configuração geral desse caráter.
241
O inquilino do imaginário
242
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
* Dr. Queiroz conseguiu, graças a suas demonstrações mediúnicas, uma notoriedade nacional, embora
seus procedimentos provocassem acaloradas discussões tanto nos meios religiosos quanto nos círculos
médicos. Por ter cometido um erro médico fatal, o Conselho de Medicina cassou seu título, o que não
o impediu de continuar atendendo a milhares de pacientes que procuravam nele curas milagrosas. A
sorte de Queiroz nem sempre lhe foi propícia. Depois de ter conseguido uma cadeira na Câmara de
DeputGdos, que compensava a cassação de seu título de médico, morreu assassinado por seu motorista
e guarda-costas, que justificou seu crime dizendo ser Queiroz um péssimo patrão "que se negava a
pagar o salário no prazo justo".
243
O inquilino do imaginário
244
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
245
O inquilino do imaginário
246
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
247
O inquilino do imaginário
QUADRO 11
Esquema de alguns fatores que influem na auto-identidade
e a configuram segundo as diferentes dimensões existenciais.
Dimensão corporal:
a) a imagem corporal
b) a corpo como vitalidade e como
dado primário da consciência de si.
Dimensão motivacional:
a) as motivações como vetores
e tendências que orientam o Dimensão axiológica:
sujeito a) a influência dos valores in-
b) como fontes energéticas e teriozados junto com os va-
necessárias a serem preenchidas lores do grupo de inserção
248
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
sempre o ego está em contradição e em ruptura consigo mesmo. Nas pessoas eubiósicas,
a representação de si reflete com bastante fidelidade o ser mais genuíno do indivíduo.
Na literatura é freqüente que ego e eu sejam usados como sinônimos. Na
psicanálise, o ego corresponde à parte consciente da personalidade, aquela que
está encarregada de coordenar as exigências do superego e as demandas pulsionais
do Id, além de atender às conveniências e imposições da realidade. Na minha
concepção, o eu é simplesmente o agente da pessoa: o indivíduo enquanto agente
de si mesmo. Assemelha-se ao ego freudiano, mas não está subordinado ou preso
a um superego ou Id. Opera como síntese de todas as dimensões da existência,
sem que essa síntese suponha a superação dos conflitos e as demandas que essas
dimensões impliquem.
No plano do si-mesmo (o selj), o sujeito aceita-se no que é, ainda quando isso
lhe seja doloroso. Aceita sua realidade, o que não significa que, sendo dolorosa ou
frustrante, não tente mudá-la. Primeiro o sujeito reconhece-se nessa realidade;
sua mera ratificação ou mero questionamento dependerão da avaliação que ele
faça da situação e de suas possibilidades. Não vive nem age em função de uma
mera representação ("Tenho de casar-me com esse cara, pois não quero ser mãe
solteira", "Preciso de um título universitário, pois me permite conquistar um melhor
status, não importa o que seja").
Não se pense que é algo anormal transitar pelo plano da mera representação
(fantasiada de si). Acontece corriqueiramente com todos nós; não é aqui que reside
o problema. O problema reside no predomínio da mera representação sobre o ser-
mais-próprio. No histérico há primeiro uma não-aceitação de um aspecto básico·
de sua realidade. Trata-se de uma tentativa de escapar de uma situação pelo menos
incômoda, por vezes tortuosa, quase sempre conflitante. Essa situação exigiu do
sujeito algumas táticas de simulação. Para aliviar-se do incômodo, o sujeito descobriu
que precisava apelar para certos truques e artimanhas. Esses truques eram um
artifício seja para obter aceitação, seja para ganhar mais espaço, mas sempre
implicavam uma negação ou mistificação de si mesmo.
Isso é o que costuma acontecer com o tipo histérico não homossexual. Os
traços característicos podem configurar-se desde a infância ou surgir no início da
adolescência - período no qual se registra uma fase notória de mudança de
identidade. Na infância surgem algumas situações que levam a criança ao uso de
certas táticas de simulação. A mais comum relaciona-se com a conquista do afeto
dos pais. Surge quando a criança precisa disputar o afeto com algum irmão. Cria-
se assim um clima de competição. Um dos filhos percebe que para manter ou
ganhar uma posição de privilégio tem de jazer o jogo do outro. Neste jogo os
pais não são completamente inocentes. Pelo contrário, geralmente criam as
condições básicas para que o cenário das simulações seja possível. Uma mãe que
condiciona sua doação de afetos segundo seja a conduta do filho, ou declara suas
249
O inquilino do imaginário
preferências pelo filho que mais reverencia seu ego, já monta um cenário propício.
Outro tanto pode fazer o pai, que nesses lances não fica de fora. Como a mãe, ele
também pode ser um manipulador, pois basta que um dos genitores seja um declarado
manipulador do círculo familiar para que a criança sinta que ela também precisa
manipular as malhas da rede.
O outro intervalo crítico para a confirmação da identidade é a adolescência.
Anos difíceis em nossa cultura. Período de entrada em diversos planos da vida.
Em sete anos (dos 14 aos 21 anos) precisamos adquirir uma nova personalidade,
que nos permita navegar em mares adultos. Períodos de desafios e tentações, de
ousadias e mascaradas. E sobretudo de miragens. Em sete anos temos de conquistar
. um mundo: ter uma profissão, definir a escolha erótica, redefinir o relacionamento
com a família, explorar os meandros do espaço social, reformular a maioria dos
valores. Nem o bom Deus escapa de um acerto de contas.
Perante tantas tarefas, nada tem de surpreendente que fiquemos confusos e
desconcertados, agitados por um amontoado de sentimentos contraditórios. Para
muitos jovens há descobertas bastante desalentadoras, que os afundam na convicção
de que precisam representar para sobreviver num universo onde todos colocam as
melhores vestimentas para dissimular os defeitos do corpo.
250
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
251'
O inquilino do imaginário
essa diferença. Só um idiota não se apercebe disso. Só que uma coisa é observá-
la de um ônibus ou na tela da TV, outra é entrar na gaiola dos ricos sentindo-se um
pássaro sem penas.
"Aos 14 anos perdi minha inocência. Não foi na primeira transa, nem quando
deixei de acreditar'emDeus. Perdi-a devagar, à medida que fui tomando consciência
de como eram as coisas mundo afora. Na riqueza dos outros percebi minha pobreza.
"Foi quando entrei para o primeiro colegial, numa escola de classe média alta.
Eu morava com minha mãe numa casinha modesta, num bairro popular (minha
irmã morava com uma tia num setor melhor da mesma cidade); tive de estudar de
manhã e trabalhava como office-boy numa firma de máquinas de escrever.
"Era tolo freqüentar essa escola, mas minha pobre mãe tinha conseguido
uma bolsa pàra mim. Isso já me incomodava. Ficaria alia título de favor. Eu nunca
fui um camarada humilde, desses que aceitam sua sorte com resignação. Era filho
de operário e órfão de pai, mas tinha boa aparência e o sobrenome de minha mãe
era francês. Esses já eram bons motivos para sentir-me à vontade.
"Foi a entrada nessa escola 'para gente distinta' -como costumava dizer
minha mãe - que começou essa espécie de neurose que atormentou meus dias
durante quinze anos. Neurose, não é esse o nome que se dá a essa forma de
piração, mistura de desespero e de mentira, de percepção de uma realidade dolorosa
e de exagero imaginativo?
"Agora digo isso, mas naquela época eu era um garoto ingênuo, que se deslumbrou
com as belas formas de toda essa rapaziada que freqüentava aquela maldita escola
(maldita é uma forma de dizer, mas houve um momento em que esse palácio para
gente 'de boa classe' me pareceu detestável e desejável ao mesmo tempo).
"É certo que a morte de meu pai me tinha abalado (havia falecido no ano
anterior); ele era um homem que me inspirava sentimentos contraditórios; era
triste e alegre, tranqüilo e briguento, dizia mentiras e falava verdades; carinhoso e
indiferente, responsável e irresponsável. Ora uma coisa, ora outra. Antes de morrer
ele me falou: "Seja alguém na vida, rapaz. Não fique por baixo. Eu não consegui
sair deste inferno, mas você sairá. Você é bem melhor que eu."
"Nunca me esqueci de suas palavras. Por esse estímulo lhe perdoei todas as
tolices; lhe perdoei que nos houvesse deixado no desamparo, sem nenhum patrimônio.
Só anos depois entendi de onde tinha surgido essa idéia diretriz que surgia em mim
como vontade de ser uma pessoa notável.
"Até antes de entrar nessa escola eu era um garoto normal, sem maiores
ansiedades, acreditando que com boa conduta e dedicação ao trabalho eu acharia
o caminho correto. É verdade que já queria destacar-me na escola, tiràndo boas
notas e sendo elogiado pelos professores. Pensava que se conseguisse uma boa
profissão teria um futuro esplêndido. Então viveríamos numa bela casa, num bairro
de gente de classe A- ou, como dizia minha mãe, no bairro das mansões.
252
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
"Eu tinha autoconfiança; a autoconfiança que um garoto pode ter; algo ainda
frágil; não fingia. Podia exagerar algum fato ou adornar uma história; apenas isso.
Na escola do bairro onde morávamos, todos éramos iguais; pessoas simples.
"A mudança começou quando entrei na nova escola, 'para gente fina'. Lembro
quão contente ficou minha mãe por ter conseguido a bolsa naquela escola. 'Aí se
relacionará com outro tipo de pessoa. Não precisa você dizer que somos uma
farmlia modesta. O Diretor garantiu-me que você terá o mesmo tratamento de
todo mundo.'
"Foi o contraste entre minha situação e a de meus colegas que me levou a
essa espécie de farsa e de pequenos fingimentos. Foi aí que me senti por baixo.
"Primeiro me mantive na defensiva, mas sou um cara expansivo, atento ao
que acontece ao meu redor. Não resisti à tentação de mostrar que eu era o melhor.
Não foi difícil. Estava mais bem preparado; sabia mais, era mais esperto. Só que
havia um porém tremendo: não pertencia àquele ambiente. E o pior é que senti de
imediato que não podia revelar o que constituía minha realidade mais própria.
"Essa turma me desprezaria se dissesse a verdade. Tinha de inventar.
"Sim, comecei dizendo que morava em outro bairro. Depois inventei que meu
pai era funcionário de uma empresa multinacional e que viajava continuamente.
"Minhas mentiras não pararam por aí. Como éramos do norte, meu sotaque
era uma verdadeira acusação. Para esconder minha origem, comecei a falar com
sotaque carioca - igual a um menino dessa cidade, que era muito elogiado. Claro,
às vezes me esquecia e reaparecia o linguajar nordestino. Agora me digo: como
era idiota. Talvez, mas era minha maneira de valorizar-me perante aquela turma.
"Lembro-me de que uma professora me chamou a atenção por minha
maneira de falar. Talvez querendo me ajudar. Só que eu já tinha entrado em
cheio em fantasias compensatórias; acreditava que falando assim me tomava
mais interessante. Menti também para ela, dizendo que tinha vivido toda a
infância no Rio e que reaparecia esse sotaque quando voltava a encontrar-me
com os familiares desse estado. Talvez ela soubesse de meus conflitos; lembro
que se limitou a dizer-me que ela gostava mais quando eu falava com meu
sotaque natural. Eu, compenetrado em meu novo personagem, continuei a minha
farsa .... "
Depois, já fora dessa escola, Hermes foi mais longe com esse tipo de
farsa. Como tinha um razoável conhecimento do francês, falava com um leve
sotaque estrangeiro e, se a ocasião pintava, dizia que tinha morado alguns anos
na França e que já lhe resultava difícil falar português. Fazia isso especialmente
quando entrava numa loja elegante ou quando paquerava uma moça que queria
conquistar na hora. "Você sabe, as mulheres são doidas por estrangeiros, pois
imediatamente o imaginam rico e bem-sucedido. É o que acontece em todos os
países-colônias."
253
O inquilino do imaginário
254
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
255
O inquilino do imaginário
"Claro, no exame de fim de ano, aquele bom senhor nos deu o troco com
juros altíssimos. Como a prova era escrita e nós éramos notáveis nessa matéria,
sempre tínhamos um monte de colegas pedindo ajuda. Assim que passei a primeira
informação, o cara, que estava de olho, me pegou a prova e me expulsou da sala
alegando 'falta de honestidade por estar trocando informações com outro aluno'.
Um zero. Não deu outra: o erudito em Biologia, o sabidão da turma, tinha de repetir
esse ano.
"Quando fui à Diretoria expor a situação, advertindo que era uma clara
vingança daquele macaco por ele ser um medíocre repetidor de textos escolares,
o cara, que estava presente, tentou dar-me um soco; fui mais rápido, dei-lhe um
violento chute no saco. Depois desse diálogo tão pouco acadêmico, fui expulso
com todas as honras cabíveis.
"Esse foi o primeiro passo da minha queda. Depois daquilo comecei a detestar
o ambiente escolar. Se antes era pretensioso, a partir de então me tomei arrogante;
se antes me sentia por baixo, comecei a sentir-me por cima, como se uma força
extraordinária e um destino magnífico estivessem orientando minha procura. Tudo
isso misturado com períodos depressivos, pois minha situação material piorou com
a morte de minha mãe, quando eu tinha apenas 17 anos. Se antes acreditava num
Ser Superior, que estabelecia certa ordem cósmica e impunha uma justiça enigmática
no reino dos homens, agora tudo isso me pareceu um grande embuste, uma simples
invenção para consolar os coitados desse mundo.
"Sem pais, sem Deus, quase sem farm1ia (minha irmã sempre foi mais apegada
à tia Cristina do que a nós, e eu não sentia a mínima simpatia por essa velha porque
sempre censurava a minha mãe pelo fato de ter-se casado com um operário de
fábrica e não com um homem de bem). Mais ainda: sem trabalho, pois a partir da
expulsão da escola, parava muito pouco em qualquer emprego. Não daria outra:
entrei num período de revolta, de ansiedade e de tentativas que quase sempre
terminavam em frustrações e novas dores. Quase sempre tive também breves
períodos de triunfos e de aventuras emocionantes. É de meu temperamento pegar
o lado lúdico e teatral dos dramas humanos."
Seria difícil encontrar uma descrição melhor dos mecanismos psicológicos
usados por esse tipo que essa auto-análise oferecida por Hermes. Indivíduo
inteligente, dotado de uma extraordinária vontade para superar sua precariedade
material, ambicioso, de uma rica vitalidade, querendo conquistar uma posição que
compensasse sua condição social, caiu nas miragens da representação no período
mais crítico do desenvolvimento da personalidade- a adolescência.
Já afirmei que certos traços histeróides são bastante freqüentes na etapa
juvenil. De fato, este é um estágio crítico, o mais crítico de todos os estágios
humanos. Lembremos que é o período de mais quebras e desajustes, registrando-
se nele a maior percentagem de psicoses e neuroses - pelo menos na sua fase
256
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
257
O inquilino do imaginário
Homossexualidade e histeria
De passagem, em páginas anteriores, afirmei que o protótipo da histeria
como forma caracterial encontrávamos no homossexual feminóide, amaneirado,
exibicionista, emotivo, expressivo. Diria que é o caso extremo pelo lado masculino.
É pertinente dizer que só uma parte deste tipo de homossexuais mostra os traços
mencionados de uma maneira acentuada. Muitos deles aparecem como pessoas
delicadas, atenciosas, por vezes tímidas. Levemente femininas. Ficamos na
dúvida, perguntando-nos se se trata apenas de uma personalidade com um
componente venusino mais forte, mas heterossexual. Percebemos seu componente
histriônico quando emerge em primeiro plano seu interesse erótico e quando
pinta um possível parceiro sexual. E sobretudo observamos este componente
quando se encontram num ambiente gay. Diríamos que nestas situações se desinibe
completamente.
É bom fazer um outro alcance. Sabe-se que existe também o homossexual
homem, com atitudes e comportamentos inteiramente masculinos, sem elementos
histriônicos, que inclusive nos meios gay mantém esse padrão. Neste caso, eu
diria que se trata de um bissexual com preferências por pessoas de seu próprio
sexo, mas capaz de experimentar prazer com indivíduos de sexo oposto. Ainda
mais, neste tipo a origem de sua preferência sexual se deve a um condicionamento
258
A procura de si no espelho do outro: o caráter histriônico e a questão da auto-identidade
259
Capítulo 12
"Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Já me tinha destroçado os
sapatos e me penetrava na carne. De vez em quando, inquieto, voava em meu
contorno e depois recomeçava sua tarefa. Passou por aí um senhor que observou a
cena por um momento e logo me perguntou como podia suportar o abutre.
-É que estou sem defesa - respondi. O bicho veio e me atacou. Claro que tentei
lutar, tentei estrangulá-lo, mas é um tipo de animal muito forte.
Até tentou devorar-me a cara, por isso preferi sacrificar os pés.
Como vê, estão quase despedaçados.
- Como é possível deixar-se torturar dessa maneira - diz o senhor.
Basta um tiro e pronto!
-Você acha? Quer você disparar o tiro?
-É claro, é só ir a procurar o fuzil. Consegue agüentar meia hora?
-Não sei dizer- respondi. Mas sentindo uma dor pavorosa, agreguei: Procure o
fuzil, por favor.
- Bem, diz o senhor, vou o mais rápido possível.
O abutre escutara tranqüilamente a conversa, olhando alternadamente.
Reparei que ele captou tudo. Então levantou o voô, depois se levou para tomar
impulso como um lançador de dardos, desceu e me penetrou o bico até o mais
profundo de meu ser. Na queda, senti, aliviado, que o abutre se introduzia
impediosamente nos abismos infinitos de meu sangue"
(Frans Kafka: O abutre)
que significa esta bela alegoria kafkiana? Uma ave voraz e impiedosa
261
O inquilino do imaginário
262
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
irônico, que lhe permite aliviar seu sufoco interior, aspergindo seu ambiente com
eflúvios de vitríolo e perfume, seja procurando nas imagens ausentes o reencontro
com paraísos perdidos. O primeiro está condenado a uma autodestruição lenta e
sofrida, sem maiores glórias. O segundo aprende a conviver com a adversidade e,
não raro, sabe transformar suas aflições em arte e poesia.
263
O inquilino do imaginário
"De que adianta chorar sua ausência, me digo; e para que esta estúpida
obstinação de querer reter tantos momentos vividos juntos, sabendo que nunca
mais viverei na sua alma? De que adianta ouvir as melodias que falavam de nós
refletindo todos os sentimentos que nos uniam?
"De que adianta ficar aterita ao mais mínimo sinal de seu impossível regresso?
Querer ouvir o seu assovio como quando ele entrava em casa ou esperar que seja
sua a voz do outro lado do fio quando se levanta o telefone. De que adianta pensar
que tudo está sendo um pesadelo, que amanhã acordarei e será tudo como antes
de sua partida? De que adianta dormir, se o sono não apaga o acontecido?" 1
264
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
265
O inquilino do imaginário
266
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
267
O inquilino do imaginário
consigo achar uma saída que me permita erguer a cabeça. Será que o senhor me
entende? Nunca havia sentido algo semelhante. Fui perdendo o fôlego. Sempre fui
batalhador e a luta não me amedrontava, mas todos estes anos foram me corroendo
e agora estou sem ânimo para nada; antes, pelo menos, era impulsivo- e agressivo,
não o nego; mas penso que era melhor assim; não esta espécie de canseira, esta
espécie de falta de gosto pela vida."
Pela maneira de estar sentindo sua vida, não é difícil inferir que Ramon está
sofrendo uma reação depressiva prolongada. Quando falamos de reação, temos de
descartar previamente a hipótese de traços caracteriais de tipo depressivo, traços que
o infortúnio apenas fez acentuar. Não é o caso de Ramon. Por tudo o que nos refere
sua atitude perante a vida, denotava um modo de ser assertivo, positivo, batalhador e
confiante. ''Foram estes últimos 4 anos os que foram minando minha capacidade para
enfrentar a adversidade. No passado, já enfrentei dificuldades de todo tipo, sem que
me sentisse desanimado dessa maneira. Isso de achar que a vida é uma droga ou de
andar vendo os aspectos sombrios das coisas não era comigo. O que me quebrou foi a
perda da minha companheira, perda tanto mais dolorosa por ser eu o culpado."
Observe-se bem: houve uma quebra, algo que o sustentava se afundou; já
estava fragilizado, só faltava uma ruptura a mais.
A reação de abatimento não costuma ser tão prolongada. Depois de dois ou
três meses, a pessoa começa a dar sinais nítidos de que começa a recuperar-se da
quebra sofrida. Certamente os efeitos negativos de uma perda significativa podem
durar anos e inclusive estender-se para toda a vida, mas apenas ficam como feridas
que doem quando mexidas e cutucadas. Espera-se que o indivíduo enxergue com
melhor disposição as coisas à medida que se distancia dos eventos geradores de
seu quarto-minguante. Esse seria o processo normal. A capacidade para refazer-
se de peripécias que abalam nosso projeto de mundo faz parte dos recursos básicos
que uma pessoa dispõe para enfrentar a vida.
Contudo, nem sempre é possível curar-se de algumas vicissitudes. Não por
simples fraqueza nem por estar mal dotado para encarar as dificuldades. Como no
caso mencionado acima, o sujeito pode passar por todo um período, anos inclusive,
caracterizado pelo malogro pessoal e o desencontro. Não acertar em propostas
decisivas pode ser motivo suficiente para minar a estrutura mais bem construída.
Seria vã arrogância afirmar que alguém é imune a fracassos reiterados. Já vi
sujeitos basicamente autoconfiantes que se foram lentamente quebrando à medida
que não acertavam em suas vidas. ·
Lembro-me de um administrador de empresas, homem otimista e bem
estruturado. Ficou desempregado, lá pelos anos 83-84, quando a recessão era
brava no Brasil. Os três primeiros meses os passou intranqüilo. Aos seis meses a
intranqüilidade transformou-se em nítida ansiedade. Quando ia pelo oitavo mês
sem conseguir um emprego na sua área, começou simplesmente a ficar desysperado.
268
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
A neurose depressiva
269
O inquilino do imaginário
O tédio
O tédio é um sentimento que costuma aparecer em boa parte dos depressivos;
muitos depressivos não se queixam de outra coisa a não ser de tédio. Como se a
vida fosse para eles um grande e persistente bocejo. Não é surpreendente essa
forma de apreender-se na situação que estão vivendo. Desmotivados, sem tesão
pelos aspectos mais vitais da realidade, encurralados nas quatro paredes invisíveis
do isolamento existencial (paredes que às vezes não são tão invisíveis assim),
muitas vezes sem motivos reais e suficientes para sentir-se infelizes (alguns
depressivos são sujeitos bem-sucedidos no plano material e com logros apreciáveis
em mais de um campo), só podem experimentar tédio. O tédio é a resultante de
toda essa constelação vivencial.
Quando uma pessoa acusa tédio persistente, admitindo que em geral não tem
motivos maiores para queixar-se da vida - salvo as mazelas inevitáveis que
perturbam a todos os mortais-, podemos suspeitar de que se trata de uma depressão
mascarada, que o sujeito controla mediante racionalizações ou simplesmente por
uma falta de verdadeira intimidade consigo mesmo.
Outra forma de depressão mascarada é o pessimismo. O pessimista é um
camarada que sempre descobre o lado ruim e negativo de uma proposta, de um
270
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
empreendimento, de uma iniciativa. Alguém disse que um bom teste para detectar
se uma pessoa é pessimista ou otimista é a prova do copo de água. De fato,
quando pedimos a um sujeito que julgue quão cheio está um copo de água cujo
líquido está até a metade, o pessimista nos dirá "que está quase vazio", enquanto o
otimista julgará "que está quase cheio". ·
O pessimista pode ser um cidadão próspero, bem-sucedido nos itens
convencionais do sucesso, mas mesmo assim, ainda reconhecendo sua boa fortuna
em aspectos significativos, continua ressaltando a irremediável caducidade das
rosas - não sua beleza nem seu perfume.
Eu diria que o chamado temperamento melancólico (assim chamado já por
Hipócrates) costuma apresentar-se seguindo três linhas vivenciais: uma tristeza
recorrente, um pessimismo por vezes até bem-humorado (lembremos que todo
grande humorista é um melancólico) e uma notória tendência para ficar cutucando
as feridas - além de um sentimento de malogro pessoal, apesar de todas as
realizações positivas. Apesar de todos estes traços inconvenientes, essas pessoas
sabem encarar suas obrigações, transformando inclusive suas deficiências em outras
formas de eficiências.
O desvalor
O desvalor é outro sentimento comum. Na reação depressiva não está
presente no início. Seu surgimento depende das vicissitudes do percurso. Se o
desencaminhamento se prolonga, com todo o infortúnio que isso implica, termina
por instalar-se. Frustrado e bastante desligado do círculo da vitalidade convidativa,
o sujeito percebe seu abandono e sua falta de possibilidades; aí surge a percepção
de que é a própria vida que carece de um valor intrínseco. Pode reconhecer seu
valor em alguns aspectos parciais (é um cidadão competente na sua profissão, até
afortunado em certos aspectos), mas essa verificação é de tipo intelectual - não
afeta a esfera afetiva da pessoa, esfera em que se origina sua problemática.
Virgílio, um professor de línguas que atendi por estar passando por um período
prolongado de declínio anímico, me escreve: "O que posso dizer-lhe? Me dá a
impressão de que a vida perdeu seu valor intrínseco. Minha vida, é claro. Antes
acreditava na minha vida (inclusive em qualquer vida humana) como algo sagrado,
que eu precisava preservar, cultivar e cuidar. Nada mais precioso que a vida: era a
fonte de tudo o que existia, a fonte de todo valor. Algo se perdeu e minha própria
vida se esvaziou de seu sentido. Agora ando por aí, como barco sem rumo, sem
importar-me muito para onde estou indo. Só o que sei é que estou indo para o nada.
Sentindo assim a realidade do mundo, que valor podem ter as coisas e os tristes
eventos que por acaso eu protagonizo? Agora vivo como por detrás de um vidro
escuro, num longo, longo crepúsculo e com a expectativa de uma noite bem mais
escura ainda. Apenas a música me acompanha: aí ainda existe uma vaga e longínqua
271
O inquilino do imaginário
esperança. Esperança de quê? Não sei. Talvez nem sequer seja a esperança.
Simplesmente me esqueço de que existo; me esqueço de que sou um fracasso
irremediável; me esqueço de que ninguém se importa comigo (nem sequer Jesus
Cristo, nem a puta que me pariu). O senhor se importa? Seria engraçado que se
importasse, não é verdade? E ainda que se importasse, que diferença faria? O
senhor me escuta uma ou duas horas por semana, me acompanha um pouco durante
estes breves momentos e logo se esquece de mim. Como poderia ser de outro
modo? Para não esquecer-me teria de amar-me, mas o amor é a coisa mais rara
que existe na face da Terra. Nem sequer nascemos por amor: somos gerados
pelo desejo, não pelo amor. E assim, tudo começa errado. No fundo você pensa
igual a mim, só que você não liga para isso, não é verdade? E a mim me dói esta
constatação. Eu sou um fraco. Você é forte, os outros são fortes, pois aceitam a
- vida em toda a sua rudeza, em toda a sua desolação e crueldade. E eu não consigo.
Isso é tudo doutor!!!".
Agora vivo por detrás de um vidro escuro, no abandono e na desolação, no
desvalor e na impotência, no fracasso e no esquecimento (na solidão: ninguém se
importa comigo): isso é o que me expressou Virgílio.
Quando uma pessoa chega a um dado grau de afundamento, não apenas
ficam em questão os relacionamentos interpessoais- o simples contato, a amizade,
o amor. Também se duvida de um tipo de relacionamento de ajuda, como é a
relação terapêutica. Duas atitudes costumam manifestar-se em relação ao
terapeuta. Uma, de dependência e de espera de um toque mágico que o tire do
estado de prostração: o sujeito vê o terapeuta como depositário do poder, da
cordialidade e do apoio. Outra atitude caracteriza-se pela desconfiança e dúvida
com respeito à disposição e às possibilidades de qualquer tratamento, vendo no
terapeuta um mero agente externo que se arroga as prerrogativas de um médico
de almas.
A culpa
O sentimento de culpa é outra temática afetiva que dilacera o espírito de
quem percorre as vias descendentes da melancolia (outro nome para designar esta
forma vivencial quando adquire as feições do neurótico). Não é um sentimento
gratuito, que emanaria de uma suposta falta inconsciente. Não. Via de regra, a
culpa tem sua razão de ser: o sujeito cometeu uma falta, um erro, ou de alguma
maneira não soube cumprir com seu dever. Não se pense que todo sentimento de
culpa se direciona pelo lado da depressão. Há uma culpa que emana da pura
consciência da responsabilidade - consciência que nos adverte dos "maus passos
e dos desvios" que amiúde caracterizam nossa caminhada.
A culpa oriunda do mero senso de responsabilidade pode até perturbar,
mas geralmente é o próprio sujeito quem procura uma reparação que o libere
272
Detrás de um vidro escuro. As vivênCias dominantes na depressão
do mal que por acaso causou. Na culpa depressiva, a pessoa atormenta-se por
infrações cometidas, mas que rara vez pode reparar, ora porque são
irremediáveis, ora porque são faltas que terminaram por prejudicar o sujeito,
principalmente.
VIrgílio: "Sou culpado, sim. Irremediavelmente culpado. Fui estúpido, cego,
não percebi a tempo o que estava acontecendo com minha mulher (a esposa morreu
num acidente de carro logo após o casal ter tido uma forte discussão, que não era
a primeira, pois estavam passando por um período de desentendimento). Deixei
meus filhos sem a mãe (um casal de 8 e 6 anos) e terminei perdendo-os com toda
justiça, já que eles optaram por ficar com os avós. Não tinha nada para alegar em
meu favor. Não fui bom pai. Agora, quando vejo meus filhos a cada 15 dias, só
sinto tristeza: eles também perderam tudo: perderam suas raízes, seu contexto
familiar, o espaço onde cresceram, a escola onde estudavam. Sei também que não
mereço o carinho deles. Às vezes gostaria tanto que me perdoassem, que tudo o
que aconteceu tivesse sido um simples acidente e que eles estivessem comigo;
mas não, escolheram ficar com os avós".
O sentimento de culpa, ou simplesmente a culpa, é mais comum do que se
poderia pensar numa primeira instância. De fato, quase todos nós somos culpados
de ou por algo. Isso é assim em razão de que somos responsáveis. Responsáveis
pelo que fazemos e responsáveis por nossa vida. Como seria muito pesado carregar
todos erros, pecados, desvios e más ações que protagonizamos ou das quais
participamos de alguma maneira, precisamos aliviar nossa culpa colocando a
responsabilidade por eles em outros agentes. Agimos de modo incorreto porque
fomos enganados, porque a sorte, o destino e o azar nos jogaram um lance perverso.
Em outras palavras, justificamos a culpa esquivando-nos da possível respon-
sabilidade que nos cabe. É o que se conhece com o nome de racionalização: qualquer
aparente razão nos serve de alívio. "Menti para não magoar você"; "Aceitei o
convite de outro homem porque você não ligava mais para mim", "Falei mal, difamei-
o, porque estava com raiva de você; não é que eu pense isso de você. Era minha
raiva". São escusas, desculpas, mas que operam como supostas razões suficientes.
"Me sentia muito só, por isso aceitei a companhia da primeira que apareceu."
"Nesse emprego ganhava muito pouco: me vi obrigado a roubar certas mercadorias
para aumentar meu ganho" - e mil escusas do mesmo gênero.
Ser autêntico é justamente assumir por inteiro a responsabilidade do que nos
compete, sem apelar para nenhuma escusa ou álibi que amenize nossa culpa. Todas
as expressões de desculpa mostradas acima podem ser colocadas de um modo
diferente, que revelem a verdadeira natureza dos atos julgados errados. "Sim, aceitei
o convite dessas duas amantes; é verdade. Não consegui resistir à tentação. Sabia
ao que estava me expondo. A única coisa que lhe posso dizer agora é que sinto por
nós, porque ainda me sinto ligado a você. Não tenho desculpa."
273
O inquilino do imaginário
A tristeza
A tristeza costuma estar presente, igualmente, no ânimo depressivo, embora
na depressão intensa o que se experimenta seja uma espécie de vazio, algo
que o próprio agente qualifica como "uma incapacidade para sentir". "Não
sinto nada", afirma uma mulher com forte tendência para o abatimento, "apenas
tudo parece-me vazio e desolado, como se pairasse em todas as coisas uma
enorme indiferença; tudo parece-me longínquo e amortecido. Nem sempre ·é
assim; às vezes me sinto muito triste, triste e emotiva. Não sei o que é pior, se
esta apatia, como se fosse espectadora distante do que acontece, ou se a
tristeza, com a dor, a necessidade de chorar e a sensação penosa de que nada
tem jeito."
274
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
275
O inquilino do imaginário
laços que sustentam o nosso ser anímico. A vivência sofrida dessa ruptura anímica
é um sentimento. E justamente desse sentimento é que se vai organizando, à medida
que ganha terreno no mundo do sujeito, o processo depressivo.
O primeiro é a tristeza, que nos aflige e dói como um corte feito na carne
viva. Quando perdemos algo (um braço, um bem físico) ou alguém, podemos
revoltar-nos e até cair no desespero. Podemos chorar e gritar nosso infortúnio.
Essa é uma reação muito compreensível.
Depois do desespero, já passado o período de agitada tormenta, entramos na fase
da tristeza. Em silêncio, de um modo bastante mais discreto, começa o luto- o momento
sombrio de nosso sofrimento; como sentimento, é presença de uma ausência que rompe
o nosso senso de apego e de integridade: perdemos algo que nos era essencial.
Dependendo da magnitude existencial da perda e dos próprios recursos do sujeito para
superar seu infortúnio, a tristeza pode levar a um processo depressivo ou não.
Se a pessoa consegue circunscrever a soma de sofrimento à ruptura e à
perda parcial, então é possível que se mantenha por um tempo variável como um
estado disfórico, superável pela própria dinâmica da vida. Porém, se o estado
começa a propagar-se por outras regiões do ser anímico, levando o sujeito a um
desânimo generalizado, entramos num possível processo depressivo.
Quando estamos tristes, ainda permanecem intactos nossos recursos egóicos.
Tomamo-nos sensíveis e vulneráveis, mas ainda conservamos a capacidade de
enfrentar as dificuldades. Tendemos a isolar-nos ou a buscar companhia, segundo
seja o nosso temperamento (introvertido ou extrovertido). Se a perda ou malogro
não alcançou provocar feridas egóicas, deixando o nosso autoconceito fora de ques-
tão, é provável que vamos lentamente aceitando o motivo da dor e distanciando-nos
de seus efeitos. A tristeza que nos provocou a ruptura com um amigo ou a perda do
emprego passam para segundo plano quando vemos que ninguém é insubstituível e
quando conseguimos um cargo similar ao perdido. Ninguém é insubstituível é muito
dizer, mas, em grande medida, verdadeiro. Só no amor a pessoa amada toma-se
única e insubstituível.
276
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
A depressão e a morte
Eu diria que o tema central da depressão é a morte. É verdade que o depressivo
vive o abandono e a indigência, o fracasso e a impotência, a solidão e o vazio
cinzento, mas o que está patente em tudo o que percebe é a fisionomia desfigurada
da morte. Heidegger ensinava que o homem é um ser-para-a-morte. Nem sempre
temos consciência desta verdade; como tantas outras, a escamoteamos. Só após
os 40 anos percebemos que o tempo passou, que nossa vida passou para além da
metade de seu percurso; aí começa nossa preocupação com a finitude e o fim. É
certo que não faltam episódios que nos lembrem nossa condição mortal; já sofremos
um acidente com risco de vida, pessoas queridas foram conduzidas ao cemitério,
uma enfermidade nos revelou as fraquezas do corpo. <
277
O inquilino do imaginário
278
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
Dimensão corporal
a) O corpo perde ou diminui seu caráter instrumental, sendo vivido como
carga e como fonte de preocupações. Aparecem dores e supostas doenças
(hipocondria).
b) Imagem corporal negativa.
c) Andar encurvado, encolhido, frouxo- expressão que traduz o movimento
da própria existência do sujeito.
d) Expressão geral de apagamento e de fadiga.
e) Diminuição do apetite sexual e das necessidades de ingestão; perturbações
do ciclo hípnico.
f) Em geral, descuido da aparência.
Dimensão interpessoal
a) A comunicação toma-se problemática.
b) O sujeito tende a isolar-se, fechando-se em si mesmo.
c) Tende a desligar-se dos apelos e das solicitações sociais (questões
econômicas, históricas, coletivas) ou as considera sem solução.
d) Percebe-se sem amigos ou questiona o valor da amizade.
Dimensão da práxis
a) O indivíduo tende à passividade, deixando de lado ou descuidando de suas
obrigações e compromissos ou descuidando deles.
279
O inquilino do imaginário
Dimensão motivacional
a) Notória perturbação das necessidades básicas (sono, comida, sexo).
b) Desmotivação generalizada (falta de interesse, desvitalidade).
c) Perda do sentido da vida._
Dimensão afetiva
a) Predomínio dos sentimentos negativos em todas as esferas.
b) Fortes sentimentos de impotência e de indigência, de solidão e de abandono,
de tédio e de vazio.
c) Presença de sentimentos de autocomiseração e de culpa.
d) Desprezo de si e vontade de morrer. Auto-agressividade.
e) Predomínio de um clima emocional agitado, mas por vezes aparece o vazio.
Dimensão valorativa
a) Quebra e descrédito de todos os valores, salvo aqueles que traduzem a
negatividade (desintegração, decomposição, queda, destruição, morte).
b) Na alternativa melhor, o bem se coloca no outro (nas outras pessoas).
c) O sujeito tende para certo niilismo e, nos casos menos autodestrutivos,
para um ceticismo irônico.
Dimensão espaço-temporal
a) O sujeito tende a se refugiar no passado, se desliga do presente e se
desinteressa pelo futuro (perda das possibilidades).
b) O espaço esvazia-se e as coisas se tomam estranhas. O mundo perde seu
brilho e seu cromatismo.
Dimensão psicológica
a) Há uma quebra do eu, que renuncia a sua função de agente e coordenador
das diversas dimensões e planos da existência.
280
Detrás de um vidro escuro. As vivências dominantes na depressão
Notas
1) Escritos e declarações de clientes em psicoterapia
2) Idem.
3) Para um enfoque mais clássico, recomendo o livro de Franscico Alonso Femandez: IA
Depresión y su diagnóstico (Ed. Labor, Espanha, 1988).
4) O livro de Marie Cardial Palavras pará dizer é autobiográfico, mas centralizado em seu
transtorno psicossomático: um fluxo menstrual contínuo.
281
Capítulo 13
SOBRE A LOUCURA
A impossibilidade de conviver com
os outros e de adaptar-se
à realidade
"Lembra-se das folhas de outono? Dos dias anuviados e do riso das crianças? Eu
me lembro. E se lembra quando você brincava com os cachorros no pátio de sua
infância, enquanto nossa mãe cantarolava uma canção? Eu me lembro. E se
lembra do dia em que havia um monte de gente rezando em torno de um féretro,
enquanto nossa mãe chorava? Por acaso quem estava no caixão não era nosso
pai? Não se lembra? Eu me lembro. "
Q
uando fiz a cadeira de Psicopatologia nos anos de minha preparação para
psicólogo ( 1963-68), lembro que o professor usava diretamente os pacientes
internados no hospital onde era médico-chefe para "assim ilustrar melhor
as aulas teóricas sobre perturbações das funções psíquicas".
Nossa tarefa consistia em entrevistar, em pequenos grupos, um ou dois
internados por semana. O professor entendia que dessa maneira nos iríamos fa-
miliarizando "com a doença mental em todos os seus tipos, desde o louco episódico
até o crônico irrecuperável".
283
O inquilino do imaginário
Tenho bem gravado o primeiro dia que entramos no setor onde os internados
permaneciam reclusos (1965). A maioria de nós, estudantes de um terceiro ano,
muito crus ainda, tinha a imagem que circula por aí nas ruas do preconceito, que
faz do louco um ser bizarro, imprevisível e ... ameaçador.
Quando entramos no setor A do hospital, eu até me surpreendi; observei que
a maioria do pessoal internado mostrava um comportamento bastante tranqüilo e
sociável; todos eles pareciam mui razoáveis, sentados em poltronas, quietos ou
folheando alguma revista. Numa primeira impressão ninguém diria que se tratava
de uma população diagnosticada como psicótica. Alguns se aproximaram; era
evidente que queriam contato; outros permaneciam sumidos em seus pensamentos
ou pareciam adormecidos, provavelmente sob os efeitos de alguma droga calmante.
Nós, as visitas, estávamos bem mais agitados que eles.
Nada de que se horrorizar; será que haviam preparado tudo aquilo? Onde
estavam os catatônicos, com suas posturas extravagantes e sua famosa rigidez de
autômatos? Onde estavam os hebefrênicos, com seus riscos tolos e o olhar fixo
não se sabe em que ponto magnético? Havíamos nos preparado para impressões
fortes, esperávamos ver cenas terríveis da tolice e da insensatez humanas, e apenas
estávamos observando um grupo esparso, sem maiores contatos entre si, de gente
aparentemente calma, talvez algo ausente, mas nada muito diferente do que se
encontra nas grandes salas de espera dos consultórios médicos de hospitais
estaduais. Consultamos uma enfermeira. Por acaso toda essa gente eram os ... ?
Sim, sim, eram os pacientes que estavam na fase de recuperação. Ela nos explicou
que havia três setores. Estes eram os que já tinham passado pela fase pior e
tinham um prognóstico positivo. Logo poderíamos ver os que se encontravam numa
fase de surto e de crise; aí nos enumerou os quadros que lá observaríamos -
esquizos, PMD, alguns alcoólatras. A coisa pior viria no pavilhão C; aí encon-
traríamos os que não tinham esperança, os crônicos, os que permaneciam anos e
anos no manicômio, abandonados por suas fanu1ias- eram os dementes, os epiléticos,
os débeis mentais enlouquecidos; insinuou que aí teríamos tudo o que os leigos
imaginavam dos orates.
Confesso que essa informação nos reanimou bastante; nós andávamos em
grupinhos de 3-4 colegas e nos demos olhadas de cumplicidade, comunicando-nos
discreta e educadamente nossas expectativas. O professor tinha insistido que a conduta
de um futuro profissional da área teria de ser a de uma pessoa sensata, acostumada
a lidar com as piores misérias da condição humana. Nada de reações emocionais
próprias de adolescentes e de leigos simplórios. Tínhamos que nos comportar como
cientistas, atentos observadores ainda nas situações mais extremas.
Foi uma recomendação pertinente, sem dúvida; pelo menos nos obrigava
a manter as aparências; nos advertia de que tínhamos de fazer um aprendizado
de atitudes apropriadas. Mas ainda dominavam em nossas mentes as repre-
284
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
285
O inquilino do imaginário
"Lembra-se, padre, das folhas do outono? Dos dias anuviados e do riso das
crianças? Eu me lembro. E se lembra, padre, quando você brincava com os cachorros
no pátio de sua infância, enquanto nossa mãe cantarolava uma canção? Não se
lembra? Eu me lembro. E se lembra do dia em que havia um monte de gente,
rezando em tomo de um féretro, enquanto nossa mãe chorava? Por acaso quem
estava no caixão não era nosso pai, o seu e o meu? Não se lembra? Eu me lembro.
Lembro-me de tudo, desde o primeiro momento em que saí do ventre de minha
mãe até o último momento em que morri. Lembra-se do dia de nossa morte? Eu
me lembro. E agora estamos aqui entre todos estes mortos, esperando o juízo final,
afastando os vermes para que não devorem nossa alma. Ainda conserva sua alma
ou já a perdeu?"
Agora estava chorando, aos soluços. Aquele homem estava sofrendo e eu
não sabia o que fazer. O pranto das pessoas sempre me toca, mas o pranto de
um homem, mais que o de uma mulher, me estremece e me confunde. Aquilo me
paralisava. Era uma mistura daquilo que o professor nos tinha ensinado como
delírio e de iluminação poética; ele me chamou em mais de uma ocasião de
padre, logo depois de irmão, para em seguida colocar-se entre todos aqueles
mortos, à espera do juízo final. Lembro de que antes que eu conseguisse reagir
de alguma forma, veio, uma enfermeira, pegou-o gentilmente pelo braço e o
levou para o quarto.
Esse foi um dos episódios mais fortes que vivi num ambiente psiquiátrico.
Houve muitos outros, mas talvez por ser o primeiro que me colocava de frente
a algo que escapava à minha compreensão, se gravou em mim de modo inde-
lével. Nunca esqueci essa seqüência de padre, irmão e morte. Foi uma iluminação?
Penso que esse episódio me ensinou muita coisa. Antes de visitar
periodicamente um manicômio, tinha observado umas 4 ou 5 pessoas mentalmente
perturbadas. Minha atitude para com elas era muito semelhante à que predomina
na maioria dos leigos. Uma mistura de curiosidade e receio. É verdade que há uma
fração da população que experimenta outros sentimentos; medo e horror são
bastante comuns; gozação e menosprezo também o são. Uns poucos experimentam
simpatia e compaixão.
Eu nunca senti menosprezo nem horror. A figura de Dom Quixote me era
familiar e muito querida, de modo que tendia a vê-los com simpatia e curiosidade.
E certa dose de receio: eles representam o profundamente estranho, o que escapa
a nossa compreensão. Eles podem parecer acatar as regras do jogo; podem ficar
mexendo as peças no tabuleiro de xadrez das convenções e normas sociais, com
inteligência inclusive, mas num momento qualquer não acatam mais as regras, se
deixam totalmente ganhar ou simplesmente dão uma palmada nas peças ou um
chute no adversário. E sobretudo têm a mania de confundir as peças (por acaso
aquela pessoa não me chamava de padre e irmão?) Parecem não importar-se se
286
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
estão mexendo com um peão ou com o rei, se o bispo cavalga ou se é o cavalo que
monta no bispo. Tudo isso nos resulta muito ameaçador.
Penso que aquele episódio, em particular, me ensinou uma atitude de respeito
perante uma pessoa que se encontra nesse estado. Que essa atitude não emana de
um princípio geral do tipo "devemos respeitar a todos os nossos semelhantes, a
qualquer pessoa" (eles não são pessoas no sentido jurídico, nem são nosso
semelhante, pois representam o estranho). Emana da convicção de que no fundo
irracional da conduta e da vivência psicóticas há um chamado e um clamor que
não está sendo atendido nem pela pessoa que o formula, nem muito menos pelos
outros - por quem ouve esse chamado.
O respeito é a atenção que devemos dar a esse chamado, pois ele não só
atinge a quem o proclama, senão a todos nós: na loucura se revelam tanto os
limites da razão quanto a vigência de uma verdade que a razão não assimila -
embora enxergue.
Senti também naquele ambiente e no apelo daquele homem isso que alguns
autores depois me repetiram: a loucura como forma mais radical da ruptura do
vínculo interpessoal. Estavam juntos mas isolados uns dos outros, na mais completa
solidão - a solidão de quem se perdeu a si mesmo, de quem perdeu sua alma.
Alma: uma das mais belas intuições que nos legou a tradição.
Alma como princípio vital que anima a matéria orgânica, como princípio que
unifica todas as suas partes num todo unitário e permanente nos limites do tempo.
Alma como núcleo essencial da personalidade, que mantém acesa o sentido
da vida e como elo que mantém a continuidade de nossa existência no devir do
tempo.
Aprendi muito no contato com os pacientes (como costumam ser chamados
pelos médicos, querendo sublinhar assim a perda de suas capacidades para serem
agentes). Devo confessar que aprendi pouco no ensinamento das noções e dos
conceitos; os mestres estavam mais interessados em estabelecer um diagnóstico
dos doentes que compreender um mundo ou o percurso de uma vida. É bem verdade
que é difícil compreender o mundo da loucura e mais difícil entender como é que
foram entrando e construindo esse mundo.
É bem mais fácil analisar condutas e funções psíquicas; não é difícil perceber
quando o pensamento de uma pessoa está perturbado, mostrando-se incoerente,
concretista demais, de ideação pobre, fugitivo ou inibido. E assim para outras
disfunções mentais. O difícil mesmo é saber como se chegou a tudo isso no percurso
de uma vida.
Naquela época, e não faz tanto tempo, meus professores não conseguiam
compreender a importância de uma mudança de perspectiva. Limitavam o estudo
da psicopatologia a um exame das funções psíquicas básicas. Desse exame
287
O inquilino do imaginário
288
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
289
O inquilino do imaginário
290
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
Eu o aprecio por seu lado prático: permite classificar numa espécie de grande
painel os distúrbios mais notórios da pessoa. É útil sempre que não se perca o
princípio holista de que os setores e as funções de um sistema, embora sejam
separáveis para propósitos de análise, pertencem a um todo ou sistema que as
influencia, as condiciona e as regula. Com esse espírito é que ainda justifico seu
uso. Falamos de alucinações, para citar um exemplo pertinente, como uma
perturbação da representação, mas temos que enfatizar quando um sujeito ouve
vozes que lhe censuram suas "trapaças e sem-vergonhices", é todo seu psiquismo
e sua existência que estão em jogo. Costumamos designar por eu essa síntese da
totalidade psíquica em movimento: entendemos assim que essas alucinações são
apenas um sintoma, uma manifestação parcial, que de diversas maneiras
compromete o eu, revelando urna falha em sua estrutura funcional- falha oriunda
de um processo orgânico ou de uma insuficiente integração da unidade do eu,
pouco importa.
Quando constatamos que um indivíduo está apresentando algumas crenças e
ocorrências delirantes, mas que ainda mantém sua capacidade de juízo e de contato
com a realidade social, não podemos pensar que felizmente se trate de uma
perturbação localizada- como se fosse uma fratura que só atingiu a perna esquerda,
mas que o traumatizado ainda pode caminhar com ajuda de uma muleta. Essas
crenças delirantes estão refletindo um descarrilamento existencial profundo que
afeta todo o mundo desse indivíduo. (Veja o gráfico que esquematiza a integração
das funções psíquicas.)
Mais do que o eu, os psicólogos preferem usar o conceito de personalidade,
como a configuração psicológica mais abrangente, ficando o eu como um aspecto
desta unidade maior. Nesse sentido, nunca podemos descuidar e menos ainda ignorar
esta totalidade, embora possa parecer-nos dificilmente apreensível nas suas
características originais devido às profundas alterações sofridas pelo processo
patológico desencadeado. Em alguns casos, só são detectáveis alguns traços ori-
ginais- inteligência, alguns interesses, certos mecanismos defensivos. Tudo o mais
está exacerbado, deformado, alterado.
Feitas essas ressalvas, podemos dar algumas pistas para entendermos o que
está acontecendo com uma pessoa suspeita ou já diagnosticada como psicótica.
Nosso instrumento básico será o contato e o diálogo; podemos usar também
algum teste; é um recurso muito válido que nos pode dar dados precisos para um
diagnóstico.
291
O inquilino do imaginário
292
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
pesadelo que sempre se repete: um homem a persegue com uma faca, apa-
rentemente com a intenção de violá-la. Além do mais, ela sabe que possui poderes
mediúnicos que não está desenvolvendo (como manda sua crença) e isso a pode
levar a graves perturbações, inclusive de ordem psíquica. O que fazer? Por sua
-fala, sua movimentação, sua sugestionabilidade, sua falta de espírito analítico, certo
poder de sedução, posso inferir que me defronto com uma pessoa com alguns
traços histéricos. Contudo, qual é a natureza de sua percepção com referência ao
homem do teto? Alucinação? Sugestão? Ou fenômeno espírita? São questões que
não podem ser respondidas.
É claro que às vezes o delírio é bem evidente: são os casos que fazem do
louco a figura inconfundível- aquela menina que acredita ser a Virgem, ou aquele
senhor que se pretende Cristo, ou o cidadão que se sente perseguido por uma
máfia sinistra. Nesse caso, nossa tarefa será principalmente tentar compreender
de que está falando verdadeiramente o sujeito em seu delírio. Mas geralmente as
coisas são bastante sutis.
As alucinações mais freqüentes são auditivas e visuais. Importa averiguar se
a pessoa as aceita como um fato natural ou se chega a questionar a realidade de
tal fenômeno. Em que circunstâncias se manifestam? Como ela reaciona? Que
significado tem para ela? As vozes que ouve apenas murmuram, como falando
entre si, ou se referem claramente a ela? São ameaçadoras ou amistosas? Ouve-
as dentro ou fora da cabeça?
Não é raro que o internado não mostre nenhuma produção delirante durante
uma entrevista. O único que notamos são outras manifestações do psicótico.
É provável que se mostre desligado, com pouco interesse em manter um
diálogo, sendo preciso ir colocando-lhe algumas questões a que ele vai respondendo
de modo monossilábico ou num discurso pouco intelegível; ou pode falar bastante,
mas logo percebemos que não está interessado em ser ouvido ou em manter um
diálogo propriamente. É uma fala autista, sem intenção comunicativa.
Certa ocasião entrevistei Luís, um homem de 25 anos, operário, internado no
hospital há sete dias. Queixa-se de ter grandes dificuldades para coordenar seu
pensamento, mostrando também um escasso interesse na conversa - só responde
quando solicitado. Parece ausente, rindo de modo intermitente, sem nenhuma razão
aparente. De qualquer forma, mostra orientação espaço-temporal (sabe onde se
encontra e desde quando, mas ignora por que motivo se encontra neste lugar); informa
sobre sua farm1ia e das atividades que desempenha em seu emprego e revela uma
afetividade plana, sem nenhuma emotividade que denuncie algum sentimento es-
pecial em relação às pessoas mencionadas. Para facilitar sua verbalização - e para
ver se na escrita exprime algo mais - lhe peço que escreva o que quiser. Luís
escreve, depois de pensar um momento: "Suzàna: escrevo-lhe esta carta para
comunicar a você que me encontro bem e que tenho saudades de você".
293
O inquilino do imaginário
SENSOPERCEPÇÃO
Captação e apreensão de dados e informações tanto do mundo externo como do -+I
1-+
interno mediante receptores especializados: os órgãos sensoriais.
TOMADA DE CONSCIÊNCIA
I
· Discriminação e integração do real. Permite a atenção e a orientação no mundo e I
1-+ a integração das diversas funções psíquicas. +oi
I Podemos considerar o Eu como a síntese dinâmica da totalidade psíquica. I
I I
I
AFETIVIDADE
I I
1) Na sua interação com o mundo, o sujeito é afetado, atingido em seu ser.
1-+ +'I
2) O homem avalia e valoriza os objetos, as situações e os estímulos, colocando-
os em termos positivos ou negativos (que é a forma mais geral de valorização).
II
- CRENÇAS 1 -
MEMÓRIA NECESSIDADES
São os pres-
Armazenagem de infor- supostos exis O homem é um ser de
mações, o que permite tenciais que necessidades biológicas e
reconhecer, comparar, sustentam e psicossociais.
discriminar. orientam ao
sujeito
REPRESENTAÇAO -
Reprodução e criação men-
tal do real. (0 Imaginário)
V' ''
' ' ,
INTELIGÊNCIA
Discriminação, raciocínio
e juízo do real. Permite a
avaliação do real.
I
+oi
Conceitos, juízos,
raciocínio, pensamento.
294
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
Pergunto-lhe quem é Suzana. Observo que escreve com lentidão, letra legível:
-É a filha de Cristo- responde. A resposta já insinua uma ocorrência de tipo
delirante, mas não posso tirar essa conclusão ainda.
- Você está falando de uma filha de Jesus Cristo, Luís?
-Sim, Nosso Senhor. Ficou um momento em silêncio antes de responder-me.
Continua rindo, tal como tem feito desde o início da entrevista. É o que os
manuais de psiquiatria identificam como o riso tolo dos hebefrênicos.
-Luís (ele parece não ter me ouvido; olha o papel que acaba de escrever).
-Luís -lhe repito-, por acaso Cristo tinha uma filha?
Repito-lhe a pergunta para ver se o levo a uma mudança de ocorrência, mas
ele insite: "Suzana, é a filha de Cristo".
Como se vê, o delirante nem sempre emerge na comunicação verbal. Temos
de apelar para certas táticas que induzam o internado a uma outra forma de
expressão. Pedir-lhe que escreva ou que desenhe é um bom procedimento para
que se expresse.
295
O inquilino do imaginário
ele logo tomava ameno e cordial, parecia um indivíduo normal, talvez com uma
grande necessidade de contato, um leve toque de narcisismo intelectual e com
alguns jeitos venusinos discretos. Pois bem, esse senhor escrevia, tendo editado
dois livros sobre assuntos que julgava de sua inteira competência. Gentilmente
me presenteou com um desses livros. Já na capa do livro o leitor ficava
impressionado com os títulos que honravam seu percurso histórico. Entre outros
títulos que ele se atribuía era o de psicolingüista e de professor de uma
distinguidíssima universidade. Se fossem verdadeiros todos esses títulos (o que
nunca verifiquei), ele era simplesmente uma eminência. O livro adverte no subtítulo
que se trata de uma nova arte de pensar. Na entrega, num tom jocoso, seu autor
me informa que o livro supera toda a semiótica contemporânea, e quem for
capaz de compenetrar-se no sentido de sua mensagem entrará no reino da
criatividade pura. Depois de uma hora de conversa com esse homem brilhante,
eu não duvido de que estou levando algo sem dúvida interessante. Se o livro
fosse a metade do que havia sido a conversa do autor, já seria uma contribuição
nas questões que interessam à semiótica e à lingüística. Na dedicatória ele me
escreve um trocadilho; aliás, ele se qualifica sem falsa modéstia "como mestre
em trocadilhos"; de fato, durante a conversa toda, ele condimentou sua exposição
com todo tipo de trocadilhos "para assim enriquecer a palavra com a invenção
do instante".
A surpresa veio quando comecei a ler o texto. Os primeiros parágrafos tinham
seu sentido, mas logo entravam de cheio no campo do que o velho Kraepelin chamava
de esquizofasia, uma espécie de afasia própria dos esquizos. Capítulos e mais
capítulos, todos eles com títulos sugestivos e atraentes. Depois de uma menção a um
autor famoso, especialmente do campo das ciências humanas, nosso professor
comenta, ratifica ou parece refutar alguma tese com uma majestosa ensaiada de
palavras, prosseguindo sem que o leitor mais obstinado consiga decifrar duas frases
do texto. Veja você e aprenda o que ele nos diz da Análise Transacional:
"Assim a Lei da Id-ad é loi de l'âge (AGE), onde os sintomas de uma
doença mental, logo no início das perturbações létricas, de letras, ligam-se
mais à idade do paciente do que propriamente às causas da moléstia. Nas
psicoses alucinatórias (de luz) crônicas, consideradas siderais, em toda a
série de idade (cidades), encontram-se os mesmos sintomas dúbios (do BIO-
b 10 detém), mas em proporções, como se vem mostrando, inversas ou em
versos semânticos. Se, ao redor ( ROD) dos 25 anos, predominam as
perturbações motoras e sensoriais, já nas proximidades dos 50 anos
predominam as intuições, o eco do pensamento, as alucinações psíquicas.
Na absorção de um pensamento magnético e coerente que confunde o normal
como o A-normal, até que (AT que) a Análise Transacional (AT) seja plenamente
entent;fida em só lida leitura, onde TIO é também DEZ e FRE é irmão, onde
todos os viventes e falantes vão de mão, ir de mão. " O autor, sem dúvida uma
296
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
297
O inquilino do imaginário
298
Sobre a loucura: a impossibilidade de conviver com os outros e de adaptar-se à realidade
vital com a realidade - contribui para essa apatia, interrompida por periódicos
momentos de irritabilidade e agitação.
No indivíduo paranóide, o clima emocional está associado à desconfiança, ao
receio, ao medo e à prevenção contra supostos inimigos e perseguidores. A
ansiedade e o extremo resguardo são traços marcantes.
Eugênio Bleuler ( 1911) mostrou que uma das características dos esquizofrênicos
era a ambivalência afetiva. Vivem divididos entre o amor e o ódio; talvez essa seja
a cisão originante de seus conflitos mentais, pelo menos um dos fatores. Há outros,
de tipo psicológico, como uma identidade muito diluída e absorvida por personagens
conflitantes, que só podiam gerar ambivalência; além de prováveis fatores orgânicos,
nunca suficientemente demonstrados, mas muito possíveis.
Lopez lbor (1953) enfatizou o fato de que, antes que se desencadeie o delírio
nesse tipo de paciente, há uma fase de humor pré-delirante caracterizada por uma
sensação de que algo muito estranho está acontecendo, algo sinistro e ameaçador;
experimenta uma inquietude tensa, que por vezes vai por via da ameaça e por
vezes na direção de um alvoroço. Maupassant, que nos deixou um bom testemunho
de seu processo psicótico, escreve:
"Estou doente, decididamente. E tão bem que eu estava no mês passado.
Estou com febre, com uma febre atroz, ou antes, um enervamento febril, que toma
tanto minha alma quanto meu corpo. Tenho sempre essa horrível sensação de um
perigo iminente, essa apreensão de uma desgraça que está por chegar, ou da morte
que se aproxima, esse pressentimento que é sem dúvida o pressentimento de um
mal ainda desconhecido, geralmente no sangue e na carne (16/05)". E dias depois
anota:
"Nenhuma mudança! O meu estado, na verdade, é esquisito. À medida que
a tarde avança, invade-me uma incompreensível inquietação, como se a noite
ocultasse para mim alguma terrível ameaça. Janto às pressas, depois tento ler;
mas não compreendo as palavras; mal distingo as letras. Caminho então de um
lado para outro da sala, sob a opressão de um receio confuso e irresistível, o receio
do sono e o receio do leito." (25/05)
Alonso Femandez, ratificando essa etapa de humor pré-delirante que precede
a percepção e a inspiração delirantes, nos diz que se trata de uma percepção vaga
e difusa de algo raro e estranho que acontece ao redor do sujeito; uma especial
significação que, no momento, lhe resulta indecifrável.
Nas psicoses ciclotímicas (PMD, depressão, mania), o fator afetivo é de
primeira importância, tanto que dá o nome a esse tipo de perturbação. Todo processo
depressivo é doloroso, inclusive quando os elementos marcantes são de vazio e de
tédio- dois sentimentos que aparecem nesse estado. Os sentimentos de indigência,
de abandono, de culpa e de impotência impregnam todo o mundo do sujeito, levando-
o a uma extrema prostração. Na mania, o dominante é a exaltação egóica e uma
299
O inquilino do imaginário
300
Capítulo 14
O INQUILINO DO IMAGINARIO
"Não sei o que me acontece, mas me desligo; perco o contato com o que está ao meu
redor. Sempre tive o hábito de falar sozinho quando estava só, mas bastava a
proximidade de alguém para eu parar. Só que a semana passada me peguei em
plena Av. Paulista discutindo acaloradamente com minha mulher; em voz alta. De
pronto me apercebi do que estava fazendo, quando vi que um monte de curiosos me
olhava com ar zombeteiro. Estava só, no meio da multidão. Foi como se despertasse
de um sonho. Então compreendi que havia enlouquecido." (Depoimento de H.B., um
homem de 40 anos, passando por uma intensa crise de angústia.)
A loucura e o imaginário
ssim como há diversas maneiras de entender o que seja a loucura, há
301
O inquilino do imaginário
302
O inquilino do imaginário
303
O inquilino do imaginário
aí sei que esse dia ou mesmo a semana toda está perdida. Já pedi a Deus que me
tirasse a vida, mas ele me falou que eu tinha de expiar meus pecados". (27 anos,
transtornada depois de um aborto).
Esse é um tipo de vivência caracterizada pelo empobrecimento da vida psíquica,
o embotamento da consciência de si - o esvaziamento interior. Podemos postular
que esse tipo corresponde a pessoas menos dotadas intelectualmente ou já sofrendo
uma deterioração intelectual pelas condições de isolamento, passividade e
cronicidade da doenÇa.
Contudo, o fato de que registremos esse empobrecimento da atividade mental
em todas as esferas numa porcentagem considerável de pessoas psicóticas, não
invalida a tese de que eles também vivem num plano predominantemente imaginário,
embora este plano esteja igualmente empobrecido.
Transitar pelas vias imaginárias não significa que o sujeito seja fantasioso,
nem criativo; em determinados casos pode até sê-lo.
Esse trânsito pode ser muito vagaroso, com todos os sinais do cansaço e da
desmotivação, apenas perturbado por ocasionais fantasmas e figuras espectrais;
pode assemelhar-se a um deserto. Eu diria que é o que acontece com esse tipo de
pessoa. De todas as maneiras já não sabem lidar com os requerimentos e imposições
dos outros - todos aqueles que nos dão as coordenadas do real. Perdidos, sem
socorro externo, deambulam por caminhos desérticos.
Existem também os esquizos mais ativos, igualmente inaptos para
estabelecer um verdadeiro contato afetivo e efetivo com seus semelhantes -
essa me parece uma característica da loucura -, mas habitando um âmbito
imaginário mais dinâmico e complexo, mais agitado e por vezes tenebroso.
Cada qual desenha e povoa um mundo de acordo com a sua experiência e
segundo seja a feição e a natureza de seus conflitos. De qualquer maneira, as
temáticas e as variações que formam o urdume das fantasias predominantes
não são muitas, repetindo quase sempre determinados roteiros, certos perso-
nagens, a forma de expressar e experimentar uma artimanha ou uma ocorrência
imaginada.
Voltemos aos castelos no ar.
O que nos ensina essa intuição do saber anônimo? Ensina que os dois tipos
alimentam fantasias insustentáveis, incompatíveis com o princípio de realidade.
Os dois tipos agem segundo objetivos errados, mas o alcance do extravio marca
a diferença. O intuito do neurótico permanece em perpétua distância de seu
cumprimento; talvez como miragem e alívio parcial de suas dores. Não chega ao
abandono de sua base de sustentação; só que essa base é muito frágil Gá dizíamos
em outro capítulo que sua auto-estima era pobre e seu sentimento de poder
reduzido). Por essa razão vive na ansiedade ou desliza para a depressão (que é
o refúgio na passividade). O supercontrole do obsessivo, com sua necessidade
304
O inquilino do imaginário
Um saber comum nos ensina que as crianças e os loucos tendem a viver suas
ficções como verdadeiras, confundindo e misturando fantasia e realidade. Um
saber menos comum nos adverte de que esta confusão não é apenas uma propensão
de crianças e de loucos; acontece com todos nós em certo grau. Num grau maior
do que supomos.
Contudo, estaríamos errados se pensássemos que as fantasias infantis têm
o mesmo caráter que as fantasias que povoam o mundo mental de um louco. A
criança entra e sai de um jogo imaginário com extrema facilidade. Transforma
um cabo de vassoura num cavalo, e basta-lhe uma simples vestimenta de batman
para sentir que se transformou neste personagem; mas ela sabe que é fingimento,
um faz-de-conta.
O louco vive o imaginário como real e até com mais intensidade que as
situações objetivas e concretas que configuram sua realidade. Pode distinguir
entre o falso e o verdadeiro, entre o fictício e o real, sempre que esses elementos
não entrem na esfera de seu delírio. Ele pode saber o que deve fazer para
obter determinados resultados ou para ter um desempenho adequado num
trabalho. Pensa e age corretamente nesse plano de sua realidade. Mas existe
305
O inquilino do imaginário
todo outro plano onde predomina sem restrição sua fantasia: é o plano de seus
delírios.
Só quando está em surto psicótico, ou quando os delírios tornam-se
dominantes e invasores, é que já não lhe é possível conviver com uma realidade
compartilhada. Nesse caso torna-se um prisioneiro do imaginário; mas essa não
é a condição predominante entre os psicóticos. Vivem parcialmente num plano
delirante, embora esse plano termine por direcionar e caracterizar um mundo de
estranhamente e exclusão. De modo precário, uma fração considerável deles
(de 50% a 60%) pode levar uma vida de relacionamento interpessoal reduzido. Eu
diria então que são inquilinos do imaginário, pois têm a capacidade para sair dos
intramuros da alienação para admitir certas exigências externas que um convívio
mínimo lhes impõe.
Para levar essa idéia um pouco além, eu diria que todos nós - qualificados
convencionalmente como normais -somos passageiros e visitantes do imaginário;
entramos e saímos dessa esfera com relativa facilidade, sem nos importarmos.
muito com os limites entre a ilusão e a realidade, entre a ficção e o dado concreto,
entre a fantasia e os fatos. Superamos essas dicotomias na prática, vivendo
umas e outras.
Visitantes e freqüentadores discretos; inquilinos e moradores permanentes,
mas com um juízo certo sobre algumas realidades; prisioneiros permanentes de
um mundo delirante e onírico. Tais são, me parece, os modos mais característicos
de viver as ficções da vida.
Seria errado colocar a imaginação na linha do simplesmente ilusório. Imaginar
é uma função básica da mente que consiste em conceber eventos, personagens
e situações como meramente possíveis, em consonância com realidades
conhecidas ou não. Imaginar é superar o simplesmente dado para projetar-se
para um plano puramente possível. Na sua acepção mais elementar, é aprender
ou intuir o esquema de algo com os olhos do espírito: configurar uma imagem.
De todo modo, imaginar é uma forma da representação - ou pelo menos de um
aspecto desta função mental, pois a representação inclui a lembrança e a idéia,
que são três aspectos diferentes, embora se interpenetrem mutuamente.
A idéia relaciona-se com o conceito e, por esta via, com o entendimento.
A lembrança evoca um evento passado, seja na forma da mera imagem da
situação, seja no dito e no intencionado. Na forma mais plena, como vivência,
lembrar é ouvir o apelo do que já fomos, não importa se já esteja deformado pelo
vaivém do tempo ou fantasiado pelas necessidades presentes. Fantasiados na
direção da negatividade - com suas cores sombrias - ou do embelezamento -
com suas pretensões de grandeza e de glórias cerimoniais.
Imaginar não é reproduzir uma imagem - o rosto da pessoa amada ou a
Catedral de Brasília. Isso é lembrar. Podemos compor uma imagem com dados
306
O inquilino do imaginário
307
O inquilino do imaginário
308
O inquilino do imaginário
309
O inquilino do imaginário
Valores e crenças
o+ As representações: idéias, lembranças, fantasias, imagens egóicas
Mitos e preconceitos
o+ As constantes afetivas: atitudes, sentimentos Normas e imagens
o+ As necessidades: biológicas, existenciais Criações artísticas, religiosas etc.
o+ Os saberes e valores
O contexto sociocultural da pessoa
-
310
O inquilino do imaginário
311
O inquilino do imaginário
levar a um massacre suicida todos seus seguidores. Contudo, cabe ressaltar que ainda
no exemplo da Comunidade de Jim Jones existia um fundamento prático- racional:
uma crença sensata numa nova forma de vida diferente de qualquer outra passível de
realização num contexto capitalista e tecnocrático. A proposta da comunidade não era
delirante; o delirante emergiu na cabeça do líder quando se defrontou com uma ameaça
de fiscalização por parte do senado norte-americano - ameaça que ele interpretou
como uma perseguição intolerável. Não é um ponto pacífico se esse redentorista já era
paranóide desde o momento em que iniciou sua tentativa utópica de fundar um novo
reino dos justos. Podemos julgar como excessivamente utópica sua pretensão de fundar
uma Comunidade dos Justos (tão freqüente na história da religiosidade ocidental), mas
toda tentativa de criar um novo tipo de sociedade contraria o sistema vigente, é utópica
(e essa tese vale igualmente para a doutrina cristã, na sua tentativa de oferecer um
novo projeto humano no seio da sociedade judaica e do Mundo Antigo).
Existe ainda uma diferença não menos importante. As crenças entendidas
como pressupostos existenciais, isto é, como convicções orientadoras, guardam
uma relativa coerência com a conduta do sujeito, seja na procura de objetivos, seja
nos relacionamentos interpessoais, seja ainda nos atributos creditados aos objetos
de sua crença. Se eu acredito que o casamento é a melhor opção para ter alguma
realização no plano erótico-sentimental, procurarei conseguir uma parceira que
sustente a mesma crença; ou no caso de que já esteja nesse estado, procurarei
manter o casamento, pelo menos evitando os conflitos dissolventes.
Isso vale para qualquer tipo de crença; se acredito que o melhor meio para
conseguir meus objetivos é a honestidade, procurarei agir segundo esse preceito;
se por acaso infrinjo esse princípio, provavelmente apelarei para racionalizações
que atenuem em parte meu sentimento de culpa; em caso contrário, orientado pela
convicção de que a maioria age fingindo ser honesta para assim manter uma fachada
de respeitabilidade, seguramente agirei de um modo coerente com essa premissa.
Essa coerência relativa entre crença e comportamento interpessoal não é
observada nas crenças delirantes. Ali Ramadam tem mostrado essa característica
com muito acerto. Vejamos o que ele escreve:
"Esse é um aspecto fundamental em todos os delírios e alucinações de natureza
endógena: o que os caracteriza, sem exceção, é que determinam, no doente,
modificações peculiares de conduta em relação às pessoas (algumas ou todas,
mas, ao contrário do que se poderia esperar, bloqueiam todas as condutas que
permitiriam modificar e corrigir os supostos fatos que lhes servem de conteúdo. O
doente nada faz para se precaver do envenenamento; prefere brigar com a esposa
que o envenena. O que se proclama Deus não usa seus poderes divinos para
livrar-se do vício de fumar, nem para se libertar do hospital; prefere discutir, agres-
sivamente, com todos os que contestam sua divindade. Uma doente, que durante
anos procurava médicos e tentava convencê-los de que sofria de câncer na mama,
312
O inquilino do imaginário
313
O inquilino do imaginário
conduta destas pessoas e não sua maneira de pensar e os processos internos que
agitam seu espírito -, desfrutará de uma idéia bem mais visual do que seja o
imaginário psicótico se tiver acesso direto ao depoimento de algumas pessoas que
passaram uma estada prolongada nesse universo dividido- não apenas conflituado
nem mal-integrado, que isso acontece até com os chamados normais.
Não são muitos os depoimentos de pessoas psicóticas, cujo testemunho escrito
nos sirva como documento de análise de como se processa o pensamento e as
vivências dominantes nesse tipo de pessoa. Julgo pertinente oferecer o documento
escrito de uma pessoa que passou por uma experiência esquizo.
Trata-se da história de Ornar, a quem tratei por quase um ano em Santiago do
Chile. Na exposição que a seguir ofereço ao leitor, tive especial cuidado em
proporcionar os.dados biográficos fundamentais de Ornar, visando configurar assim
as linhas básicas de seu caráter e da dinâmica de seus conflitos. Como o leitor
apreciará, Ornar apresenta traços marcadamente paranóides, com as disposições
afetivas que tendem a gerar esse tipo de reação quando o sujeito já não consegue
lidar com as dificuldades que ameaçam seu precário senso de segurança.
314
O inquilino do imaginário
para rebaixar, fazer gozação, xingar meu pai. Meu pai era um cara caladão; nunca
se impunha em nada; quem mandava em casa era Dona Elvira- assim ele chamava
a mãe. Acho que eu considerava que todos os maridos eram como ele, algo retraídos
e subordinados às mulheres.
"Parece que algo aconteceu com meu pai. Parece que ele começou a
defender-se. Suponho que não agüentou mais a tirania da velha. Palavras vão,
palavrões vêm, um dia deu uma tremenda surra em minha mãe. Acho que a velha
nunca pensou que o panaca reagiria com essa fúria. Dona Elvira ficou puta; o
denunciou à policia. Resultado: o patife covarde, segundo a expressão dela, se
mandou. Foi embora. Desapareceu. Nos deixou. Isso mesmo. Se mandou sem
dizer nada; minto, falou para minha irmã, que era a primogênita. Durante anos ela
chorou sua ausência. Eu também senti sua falta.
"Nunca mais apareceu em casa; nunca mais soubemos qual foi seu destino.
Assim mesmo. Abandonou a firma, desapareceu da cidade. Voltou para sua pátria,
Espanha? Não sei, ninguém sabe. Minha mãe dizia que tinha fugido com uma
amante. Não parecia importar-se.
"Deve ter sido a partir desse fato que eu me apercebi em que trem tinha embarcado.
Até então era um menino confiante e sonhador. Continuei sendo sonhador, mas perdi a
confiança. Não de sopetão, mas aos poucos. Talvez tenha sido algo notório no ginásio.
Não gostei de algumas professoras, sobretudo da velha de matemática, que um dia me
perguntou, perante toda a turma, o que fazia meu pai. Eu, inocente, lhe respondi que
tinha largado a casa, que não sabia onde se encontrava. Aí a velha fez alguns comentários
sobre lares desfeitos e as tristes conseqüências que isso tinha para os filhos; isso gerava
revolta, jovens delinqüentes, doenças mentais e, nas mulheres, prostituição. Eu nem
sabia o que significava essa palavra, mas ficou gravada na minha cabeça.
"Quando terminou seu falatório, me sentia envergonhado, por baixo. Pensei que
não poderia voltar mais a essa escola. Em casa contei tudo a Dona Elvira. Apanhei
como se fosse culpado de um crime. Minha mãe berrava. Imbecil, imbecil, toma isso,
para que aprendas a manter a boca fechada! E batia com seu sapato onde caísse. Não
sabes que não deves ficar falando sobre teu pai? Não te falei que se alguém te perguntasse
tinhas que dizer que ele trabalhava em Valparaíso? E vamos batendo.
"Aí foi que aprendi bem a lição. Ela nos dizia que felizmente o bosta tinha
desaparecido; agora tinha que mentir; precisava dizer para os outros que papai só
aparecia em casa nos fins de semana porque trabalhava longe. Continuei nessa
maldita escola durante o ano todo; procurei permanecer escondido, em segundo
plano. Eu que até alguns meses era um menino espontâneo e algo pretensioso,
tomei-me esquivo e algo encolhido. Era encolhido perante os outros; nunca o fui
no fundo de mim mesmo. Eu que era confiante me tomei desconfiado. Houve
outras mudanças com o passar do tempo. Só uns três anos mais tarde, mais ou
menos aos 15-16, é que de sociável passei a ser solitário propriamente.
315
O inquilino do imaginário
316
O inquilino do imaginário
317
O inquilino do imaginário
''Nos vimos duas ou três vezes mais. Cada encontro foi pior. Eu havia começado
psicologia e alguma coisa entendia de neurose~ lhe insinuei, muito discreta e
delicadamente, que consultasse um terapeuta. Seria uma simples orientação para
avaliar sua vocação e seus interesses, talvez para ajudá-lo no lado emocional.
"A partir dessa conversa, Ornar me evitou. Dois anos depois tive notícias
dele por intermédio da irmã. Havia sido internado numa clínica para que se
recuperasse de uma reação paranóide."
Vera agregou algumas pinceladas novas a este quadro traçado pelo amigo. E
Mário, além de confirmar o que Ornar já tinha relatado para mim, nos ofereceu
alguns traços caracteriais do camarada na sua fase adolescente: sua sensibilidade,
suas pretensões intelectuais, uma notória arrogância junto com uma agressividade
irônica. Estes são justamente os traços que predispõem uma reação paranóide:
Sensibilidade - inteligência - arrogância - vontade de ser alguém
Sentimento de injustiça sofrida- frustração - desconfiança- agressividade
Vera é uma mulher beirando os 38, de aspecto bem disposto e atento.
Sempre sentiu um afeto muito especial por seu irmão, embora nunca soubesse -
confessa - expressar adequadamente este carinho. "Aliás, ninguém de nossa
família sabe exprimir afetos positivos. Eu e Renato tomamos consciência de que
era necessário assumir a responsabilidade material da casa assim que o pai nos
deixou. Não havia problemas econômicos, pois o pai passou todos os bens imóveis
para nós, mas era conveniente cuidar desse aspecto: não queríamos descer de
padrão de vida. A idéia de manter uma boa posição econômica sempre foi um
ideal irrenunciável para todos nós. Talvez por isso Ornar se sentisse tão humilhado
por ter de trabalhar num emprego sem qualificação. Por isso sentiu seu fracasso
escolar como algo insuportável. Infelizmente, minha mãe nunca lhe poupou
críticas: o julgava desleixado, sem sentido prático, sem disciplina nenhuma. Até
certo ponto ela tinha razão; Ornar sempre gostou de literatura. Agora trabalha
em algo prático, porque aprendeu que a realidade pode ser melhor que a fantasia.
"O pai? Não o julga; sofreu muito por sua ausência e pelo modo de retirar-se
de cena. Pensa que seus pais não se amavam, e que nunca se entenderam. Podia
ter havido uma separação menos dolorosa, mas não foi assim. Está convicta de
que se o pai estivesse por perto Ornar não adoeceria, pois nele haveria encontrado
os suportes necessários para enfrentar as maiores dificuldades. Ornar sempre
gostou do pai.
"Quando Ornar começou a trabalhar num emprego melhor, lá em Talca, a
mãe reavaliou seu juízo em relação a ele. Contudo, já era tarde; o jovem já não
podia apreciar essa mudança materna: carregava consigo toda uma história de
mágoas e conflitos."
Voltemos agora ao depoimento de Ornar sobre como foi seu período de
passagem pelo inferno - como ele o qualifica.
318
O inquilino do imaginário
"Eu não sei precisar quando entrei no inferno, mas quando deixei o colegial e
me defrontei com a necessidade de ter um trabalho que permitisse atender minhas
necessidades básicas, aí foi que o desespero e o medo começaram a atormentar-me.
"Deixar a escola foi talvez a primeira grande tolice que cometi na minha vida,
e ainda mais no último ano do colegial. A verdade é que eu queria trabalhar e
terminar os estudos num colégio noturno; assim mudaria de ambiente e me tomaria
independente no plano material. Ingenuidade a minha. Não sabia que o mercado
de empregos era uma desgraça. Contudo, não foi simples burrice. Eu via que meus
dois irmãos mais velhos já estavam ganhando bons salários; eram independentes;
eu era um parasita. Minha situação era já de distanciamento da farm1ia e de conflito.
"Isso de procurar emprego é uma escola muito boa: termina com as ilusões
de qualquer um; aí acaba a juventude e quebram a cara os mais durões.
"Só encontrava porcaria; ofícios humildes para gente sem qualificação
profissional. Tentei ser vendedor; foi o mesmo que oferecer santinhos para o diabo.
Fui um tempo breve vendedor de loja; logo me mandaram embora quando o chefe
percebeu que eu fazia descontos especiais para moças bonitas. Tolice, mas era o
recurso que eu tinha para conquistá-las. Finalmente caí em cobranças.
"O que mais me amargurava era o contraste entre mim e meus irmãos. Renato
era o sucesso em pessoa, eu era o fracasso na sarjeta. Ele costumava, aliás, fazer
alguns comentários maliciosos sobre meus pruridos intelectuais. 'Vamos, poeta,
aceita as regras do jogo. De leituras e sonhos ninguém vive. Trabalha, pega algumas
garotas e poetisas depois.' Eram seus conselhos.
"Hoje eu entendo que eram conselhos sensatos; na época feriam meu orgulho;
humilhavam, pois eu estava tentando achar um emprego decente; queria e sonhava
ser uma pessoa destacada e meritória. Senti-me muito frustrado por ter que
abandonar o último ano do colegial. Que outra coisa podia fazer? Não estava em
condições psicológicas para atender às exigências da escola. Vivia uma grande
angústia. Ninguém me entendia. Ninguém. Não me atrevia a extravasar meus
sentimentos, salvo em momentos de raiva ou apelando para a ironia- o que me
tomava mais antipático perante meus colegas. Sentia-me muito só. Divagava o dia
todo, perdido nas mais tétricas fantasias.
"Passei quatro anos e pouco assim. Aos 21 anos me ofereceram um emprego
como oficial administrativo numa outra cidade. Fui com muita esperança para essa
cidade. Assim me liberava de algo que já não agüentava mais: permanecer na casa
materna. Foi então que comecei a suspeitar de algo que primeiro me assustou, mas
que com o tempo foi tomando corpo :qa minha mente: havia um mistério no
desaparecimento de meu pai que eu tinha de desvendar.
"Foi nessa mesma época que comecei a sonhar com o regresso de meu pai.
Sim, ele voltava; eu era menino de 10 ou 12 anos. Tocavam a campainha, eu abria
a porta e lá estava ele, sorrindo para mim. Não sei quantas vezes tive esse sonho.
319
O inquilino do imaginário
320
O inquilino do imaginário
Nesse momento poderia enfrentar um tanque. Era um fulano mais alto que eu, jovem,
de tipo esportivo. Venho saldar as contas contigo, porco nojento -lhe falei. O fulano
me olhou surpreso. Não te lembras de mim, porco? Não queres tirar o sarro novamente?
Sai daí que agora vou te esmagar a língua, cretino!
"Não sei o que mais falei. Devo ter continuado agredindo-o. Só vi que o cara saía
do caixa com revólver na mão. Ouvi que me ameaçava, que eu caísse fora dali
antes que disparasse. Dispara, cretino, dispara. Pensas que me assustas? Não me
assustava nem um pouco, pelo contrário, via o medo na sua cara. Covarde, não
sabes que a mim ninguém ofende. Via o medo dele no tremor da mão que
empunhava a arma. Não te atreves a matar-me, verme?
''Lembro-me de que com um movimento rápido o peguei pelo pulso, obrigando-
o a soltar o revólver. Aí senti um violento impacto no rosto e imediatamente me vi
no chão. O cara me tinha esbofeteado. Não sei quantos socos mais me acertou,
nem quantas vezes rodei pelo solo. Apenas sabia que tinha que pegá-lo no abraço
do urso; tinha que imobilizá-lo com as mãos; aí residia meu poder. Não sei como
aconteceu, mas consegui. Não sei socar; sei que tenho duas tenazes nas mãos. Sei
que o paralisei pelos pulsos e em seguida lhe dei um violento empurrão em direção
a uma vitrine. O cara pareceu ficar ali, meio inconsciente. Não me importava.
"Devia parecer o demônio em pessoa. Lembro que um grupo de curiosos me
olhava, afastando-se temerosos quando eu saí por uma das portas hiterais.
"O que aconteceu nos meses seguintes?
''Devo ter ficado um mês fechado na kitchnette, saindo apenas nas noites. Durante
o dia escutava música, escrevia e maquinava o andamento de meu ódio. Sim, também
daria uma lição de fidalguia ao irmão de minha namorada. O cretino também se tinha
permitido chamar a atenção da irmã porque ela se mostrava subserviente comigo. Iria
procurá-lo à saída da faculdade. Até com meu grande amigo, o Mário, devia acertar. A
última vez que nos encontramos ele tinha insinuado uma provocação malévola. Por
acaso ele tinha acreditado no falatório perverso de Elvira? Não seria surpreendente se
houvesse prestado atenção a essa... essa assassina.
"Sim, agora entendia tudo. Agora atava os fios de uma trama que até então
nunca entendera. Agora me parecia claro o que aquela mulher tinha feito com o
meu pai, e o que tinha feito comigo. Como não tinha conseguido dominar meu pai,
decidiu matá-lo para assim ficar com sua fortuna. Como eu era o único que me
parecia com o velho, ela sempre me tinha aporrinhado a vida, humilhando-me,
amaldiçoando-me.
"Então ela também tinha de morrer. Foi como se em todos os muros estivesse
escrita esta sentença.
"Depois dessa descoberta, devo ter ficado mais de uma semana chorando
aos berros. Era demasiado dolorosa para mim esta conclusão. Eu preferia a versão
oficial, essa que astutamente eles tinham forjado. Eles: Renato e Fernando, juntos
321
O inquilino do imaginário
- com a velha. Só minha irmã era inocente. Ela também tinha acreditado que o pai
estaria na Espanha, longe de uma mulher que nunca lhe deu afeto.
"Depois desta descoberta apoderou-se de mim uma angústia mortal. Aí já
estava no terceiro círculo. Por um período, o ódio cedeu lugar a outros sentimentos.
O que predominava era o medo; sentia-me ameaçado por tudo. Procurava manter
o máximo de silêncio no apartamento; assim evitaria qualquer visita inconveniente.
Temia que o fulano da lanchonete aparecesse acompanhado de alguns capangas
ou da polícia. Sentia que estava condenado a um destino atroz, solitário e sem
àpoio de ninguém. Aí, nesse transe doloroso, clamava por meu pai. Pai, onde quer
que te encontres, dá-me uma dica, não me deixes aqui nesta teia de aranha.
"Passava por minha mente um cinema contínuo de imagens; cenas antigas,
já vividas; cenas futuras, que pressagiavam meu exílio e encurralamento. Cenas
caóticas que não acertava entender.
"Uma dessas noites acordei transpirando. Acabava de ter aquele sonho do re-
gresso do pai. Ele parecia envelhecido, de feições duras. Entendi que estava furioso.
Censurava alguma coisa que eu não entendia. Depois gesticulava e queria mostrar-me
alguma coisa. Era um caixão. Levantava a tampa e dentro estava ele mesmo, morto.
"Já não tive nenhuma dúvida. Esse sonho era uma mensagem direta daquilo que
me estava atormentando. Ele fora assassinado por minha mãe e eu precisava vingá-
lo. Levantei-me às pressas. Estava amanhecendo. Fui até a rodoviária. Sentia uma
espécie de embriaguez. Parecia-me que tudo estava acordando para uma nova era.
Experimentava uma mistura de excitação pungente e de expectativa ansiosa. Fui
caminhando até a estação. Ao entrar no ônibus que me levaria a S., senti que todos me
observavam. Já todos sabiam o que ia fazer. Liam o meu pensamento; trocavam olhares
significativos. Dois caras iam conversando; pareceu-me que falavam em código para
que eu não captasse o que se comunicavam. 'Em toda família existe este tipo de
problemas', falou um. Sem vacilar cutuquei-lhe o ombro. O cara voltou-se algo smpreso.
'É conveniente não se meter em problemas de fann1ia que não é a sua, está entendido?'
-lhe adverti, e sem esperar resposta fui sentar-me na frente, sozinho.
"Na cidade de S., que tão bem conhecia, tudo me pareceu muito estranho. Estava
desconcertado. Não reconheci a praça Almagro. Será que tinha pego o ônibus errado?
Demorei um bocado para aproximar-me de um transeunte para certificar-me de onde
me encontrava. Sentia que as pessoas me olhavam de relance; estavam espiando
minhas intenções. Onde podia resguardar-me um pouco de toda essa multidão? Era
terrível ser objeto da curiosidade malévola de toda essa gente. Como era possível que
não houvesse reparado até então nessa espécie de radar que usavam todos para captar
as manobras e intenções dos outros. Se pelo menos usassem óculos escuros.
"Fui a um quiosque de jornais. Comprei uma revista; o jornaleiro me confirmou
o nome da praça. Mudou muita coisa por aqui nestes dois últimos anos -comentei.
Não é que as coisas mudem, companheiro, é a gente que muda e por isso nos sentimos
322
O inquilino do imaginário
estranhos nos mesmos lugares -respondeu. Achei muito profunda sua observação.
Um jornaleiro nunca teria suficiente inteligência para distinguir entre ousia e nous.
"Compreendi em seguida que aquele homem estava ali representando um
papel. Policial disfarçado? Não. Observei melhor. Os traços do homem me
permitiram agora identificar de quem se tratava. Era o professor Rodriguez, meu
professor de Filosofia no colegial. Era algo absurdo; devia ser pura confusão minha.
"Não podia continuar ali. Lá na frente havia uma igreja. Talvez estivesse
aberta. Lá pelo menos ficaria longe desta multidão odiosa. Já dentro do templo
tentei rezar. Rezar para quem? Deus nunca ouviu minhas preces. Quando pequeno
ficava olhando para Jesus pendurado na cruz, mas ele permanecia com a cabeça
inclinada como se uma dor insuportável lhe impedisse todo movimento. Invocar a
presença de um outro deus? Nunca conheci outro. O deus dos filósofos, abstrato e
ininteligível, era algo impossível para mim. Jesus, tu que precisas renunciar a tudo
para cumprir tua missão, dá-me forças para cumprir a minha. Estava em pé
contemplando o Filho do Homem, cravado na cruz. Contemplava-o e repetia meu
pedido. Queria ter um sinal que me orientasse na minha dolorosa missão.
"Não sei quantas vezes repeti essa prece, nem quanto tempo fiquei em pé sentindo
a dor do nazareno. De repente, observei a resposta. Seu rosto começou a mudar deva-
gar. Quem estava ali com o rosto infinitamente triste era meu pai. Senti uma espécie de
vertigem. Tive de afirmar-me para não cair. Não podia ser. Já não me atrevia a abrir os
olhos. Quando os abri, ainda trêmulo e assustado, tudo parecia normal. Apenas algumas
mulheres estavam ajoelhadas, rezando para um deus longínquo e ignoto.
"Andei umas duas horas, devagar; sei que a casa de minha mãe está a uns
sete quilômetros da praça Almagro, lá em Nunhoa; nem precisei tocar a campainha;
a empregada estava saindo. Ficou olhando-me, como se não me reconhecesse.
-Sou eu, Rosa. Tem gente em casa?
-Deus! Sr. Ornar, está doente?
"Não respondi; estava demasiado cansado; precisava achar um canto qualquer
para descansar e fugir da luz do meio-dia, que jogava reflexos brilhantes sobre as
coisas provocando-me a sensação de vertigem.
"Minha mãe? Estava na ca_sa do Renato. Voltaria à noite. Respirei aliviado.
Não estava com vontade de esitagar uma mosca. Eu estava esmagado.
" - Parece tão cansado, Sr. Ornar. Quer que lhe prepare algo para comer?
"Rosa sempre foi uma mulher prestativa. Uma vida de servidão lhe tinha
ensinado uma humildade tranqüila, por vezes algo bovina. Não, preciso dormir.
Ainda está desocupado o quarto dos fundos? Sim, esse era meu quarto. Estava
quase igual como o tinha deixado dois anos atrás. Antes de adormecer fiquei
contemplando uma fotografia de nós quatro pendurada na parede; eu tinha aí uns
10-11 anos e já-a melancolia assomava nos meus olhos.
323
O inquilino do imaginário
324
O inquilino do imaginário
32S
O inquilino do imaginário
sala ampla; era o dormitório da mãe; devagar me aproximei da cama. Teria uma
morte tranqüila. Jamais gostei de nenhuma forma de crueldade. A cama estava
vazia. Olhei ao redor. Ela estava de costas, na janela, observando o céu estrelado.
Parecia uma menina no desenho de seu corpo, visível na sua camisola transparente.
De súbito, ela se voltou mas não deu mostras de ter-me visto. Seu rosto estava
quinze anos mais jovem. Sentou-se numa das poltronas, perto da cama; na outra
poltrona estava meu pai, tal como minha memória o conservava na época da infância.
O pai me fez um sinal com a cabeça. Coloquei minhas mãos no pescoço dela,
delicadamente, e comecei a apertar, devagar. Ela esperneava, esperneava. Na
tentativa de safar-se das tenazes que a estrangulavam, afundou suas unhas nos
meus pulsos que começaram a sangrar. Vi que o sangue inundava seu corpo. Ouvi
que dizia: por que fazes isso, filho? Ao longe alguém pareceu responder: por acaso
ele não era tua cruz? Agora não carregas mais essa cruz. Logo ela ficou imóvel.
"Saí correndo do quarto; de novo percorri o túnel interminável. Quando cheguei
ao meu quarto estava sufocando; quase não conseguia respirar. Tentei abrir a
janela. Ao fazer um movimento brusco quebrei um dos vidros. Não sei o que
aconteceu. Cai no chão sem consciência.
"Uns tapas fortes no rosto me acordaram. Um homem de branco e Renato
tentavam levantar-me. O quarto inteiro estava salpicado de sangue, principalmente
a camisa e a calça.
''Foi o que me contaram. Eu ouvia vagamente as vozes, via vagamente os rostos;
pareciam fantasmas. Talvez esteja morto; estão retirando meu cadáver - pensei.
"Contaram-me que fiquei 15 dias em sonoterapia. Um dia qualquer me
encontrei num quarto típico de hospital. A primeira percepção foi o rosto do Dr.
Goldstein, redondo, vermelho, de óculos. Havia também uma moça de branco,
sorrindo. Inês, pensei. Ela me perdoou e está aqui 'para juntos nos amarmos outra
vez'. Tentei levantar-me, mas senti que estava sem forças. Inês, ajude-me; a moça
se aproximou, ajustando-me uma almofada nas costas; lhe peguei a mão e ficamos
um longo tempo assim, até que adormeci de novo. Não sei que tipo de sono é esse
que a gente fica meio consciente ouvindo o que se passa ao redor, como se
estivessem sussurrando. Ouvia as vozes de Vera, de Goldstein e ... de minha mãe.
Sairá do sono quase curado. De toda maneira, fique longe dele por algum tempo.
Era a voz de Goldstein. O que fazia Elvira lá? Era seu maldito espírito que andava
pairando por aí.
"Já um pouco mais lúcido, tudo me parecia tão longínquo. As coisas haviam
perdido essa aura entre luminosa e maléfica. Era como se houvesse acordado de
um longo sonho. Agora só me restaria o silêncio e a morte.
''Fiquei uma semana assim, naquele hospital. Todos pareciam amáveis comigo.
Estranho. Todos: Hortência, Fernando, Vera, o médico, o primo Oscar, as
enfermeiras. Sem que eu perguntasse nada, Goldstein me informou que eu estava
326
O inquilino do imaginário
numa clínica particular para pessoas estressadas. Poderia voltar para casa de
Elvira assim que eu me sentisse à vontade.
"Deveria estar me gozando.
"Um desses dias, tentando repor-me de minha fraqueza física, andei pelos
corredores da clínica. Tudo era muito discreto e silencioso. A enfermeira ficou
arrumando o quarto. Queria saber onde estariam os guardas; essa história de que
era apenas um centro médico não me convencia. Eu era um assassino, e dos mais
detestados. Assim que cheguei perto da portaria observei que havia um sujeito
grandalhão, de uniforme. Sem dúvida um policial.
"Entrei num salão onde um senhor idoso olhava a TV; cumprimentou-me com
um movimento de mãos e com um sonoro bom-dia; apenas lhe respondi. Não estava
com vontade de conversa. Pela janela via-se um jardim e, mais além, a rua. O que
seria de minha vida agora? Antes, ainda no desespero, tinha uma pequena esperança;
seria um pequisador em história antiga; não me importava muito trabalhar para
sustentar-me, contanto que fosse uma atividade solitária. Sempre senti uma notória
aversão pelos grupos. Aos 25 anos havia chegado ao limite da vida, sem nenhuma
perspectiva. Eles conseguiram o que queriam; estava numa clínica de pirados; pirados
discretos e tranqüilos como esse senhor aí, colado à TV. Seria este um manicômio
para pirados assassinos? Bom, não tinha nenhuma importância. Assassino? Era algo
tão remoto; será que havia sonhado tudo aquilo? Não, não podia me enganar. Viajei
desde Talca para cumprir uma obrigação com meu pai. Isso ainda estava claro na
minha mente; mas a noite do cumprimento de minha missão me parecia agora apenas
um pesadelo. Nesse momento surgiu em mim uma pergunta que me deixou tremendo:
como podia ter ido tão longe a ponto de fazer tudo aquilo? Tinha enlouquecido mesmo?
''Essa pergunta rolou pelo chão como uma grande bola de cristal, que estourou
em seguida, em milhares de cacos. Levantei-me; fui até o canto da TV. Não tinha
força para recolher esses cacos. Naquela tela fiquei olhando imagens, inúmeras
imagens da vida, essa que escorria lá fora, nas ruas e nos afazeres das gentes. As
pessoas viviam assim, como eram mostradas nessa tela: numa permanente distração,
sem importar-se muito com nada, brincando e labutando. Eu não tinha feito isso;
não sabia distrair-me nem brincar; nem sequer tinha labutado."
Deixo por aqui a exposição de Ornar. O leitor deve ter já os componentes
básicos desta vida; em primeiro lugar, as linhas gerais de sua história pessoal, tão
importante para a compreensão da montagem e estruturação de seu caráter; logo
estão os personagens e seus respectivos cenários. Por último, apresentei os episódios
e os momentos cruciais que levaram Ornar na direção de um refúgio no imaginário.
Não resulta difícil entender como aconteceu sua entrada no plano delirante, gradual
e progressiva, até chegar a sua tentativa de assassinato da mãe.
Felizmente, essa fantasia agressiva de Ornar não se realizou de fato. A cena
do assassinato, com todas as suas peripécias, foi um sonho. Ficou na esfera da
327
O inquilino do imaginário
realização onírica. A cena de agressão verbal à mãe, essa sim, ocorreu. Imerso
num clima de agitação emoçional, absorvido pela idéia delirante de vingar a suposta
morte do pai, estimulado por um profundo ressentimento, Ornar viveu essa noite a
culminação de um processo. Oscilando entre o medo e o ódio, num estado
paroxísmico; sentindo-se sufocado, tentou abrir a janela do quarto; quebrou um
vidro, que feriu seu punho direito. Ao amanhecer estava em um charco de sangue.
Provavelmente esse acidente provocou o detalhe do estrangulamento da mãe com
sua reação e autodefesa.:
Ornar ficou em tratamento com o Dr. Goldstein durante um ano. Quando
fez contato comigo, já estava em outra etapa. Sabia discernir o real do imaginário.
Tinha conseguido um emprego de maior hierarquia, mais de acordo com seu
autoconceito; inclusive com sua família o relacionamento se encaminhava para
um reconhecimento mútuo: do ressentimento contra a mãe só ficaram alguns
resquícios. Tinha ainda dificuldade para relacionar-se com pessoas de carne e
osso, mas sabia que não podia continuar convivendo com seres puramente ideais,
do reino do intangível e luminoso- como eram seus heróis até então. "Todas as
pessoas vivas que admirei (o sábio Nicolai, o professor Ariel Dorfman, o deputado
Altamirano) eram personagens de outro plano, entes ideais, que eu observava de
longe. Agora tenho de aprender a gostar de meu próximo." Não é fácil gostar de
seres de carne e osso, simples mortais, limitados, contraditórios, oscilantes, como
todos nós. É mais fácil admirar ídolos distantes, talvez protetores por sua majestade
inalcançável.
Observando a trajetória da vida que nos apresenta Ornar, logo reparamos que
tem vivido subordinado ao juízo negativo do outro. Negado por sua mãe desde o
final da infância, não consegue nos anos posteriores liberar-se dessa condenação.
Internaliza essa negação e essa condena, fechando-se às outras possibilidades
inerentes a sua liberdade. Identificado com a figura do pai, que abandona o cenário
familiar para tornar-se o grande ausente e o injustiçado aos olhos do menino Ornar,
ele mesmo termina por alíenar-se de sua situação real, refugiando-se num mundo
imaginário; muito sensível e, em conseqüência, bastante vulnerável aos embates
da vida, essa foi a maneira de aliviar uma situação que lhe resultava insuportável.
Uma maneira certamente inautêntica, pois lhe negava igualmente uma saída
verdadeira: aquela que lhe permitiria superar seus conflitos parentais e a dor de ter
perdido muito c~do as duas fontes de afeto e reconhecimento- os dois fatores que
todo filho precisa para desenvolver-se de um modo eubiósico: ciente tanto dos
desafios e dos riscos que a vida comporta quanto de seu potencial realizador.
Encurralado pelas dificuldades crescentes de seu cotidiano, revoltado com seu
fracasso, cobrado por seu próprio ideal de si, entra progressivamente num mundo
onde o outro surge como o adversário, o inimigo potencial e sempre suspeito. Foi
um processo lento, que se foi articulando durante anos até chegar a seu ponto de
impasse e ruptura: seu surto paranóide.
328
O inquilino do imaginário
329
O inquilino do imaginário
330
Notas e livros
1) Advirto o leitor não-familiarizado com a psicopatologia e com as noções básicas da psiquiatria
que existem diversos tipos de psicose (nome técnico para a loucura). De acordo com sua
origem dominante, as psicoses podem classificar-se do modo seguinte:
a- Psicoses orgânicas: provocadas por determinantes biológicos conhecidos (lesões e tumores
cerebrais, perturbações endócrinas, deficiência de nutrição etc.).
b- Psicoses tóxico-infecciosas: resultantes de doenças infecciosas - difteria, pneumonia, febre
tifóide; uremia, anemia perniciosa- ou ingestão de remédios - brometo, por exemplo; de
metais, chumbo, gases, monóxido de carbono etc.).
c- Psicoses demenciantes (demências): Demência senil, arterioesclerose cerebral e paralisia geral
progressiva. Outras três doenças mais podem ser incluídas nesta categoria, as três implicando
deterioração cerebral: a) o Mal de Alzheimer; b) a doença de Pick (descrita pelo tcheco Arnold
Pick em 1892); c) a coréia de Huntington (descrita por George Huntington em 1872).
d- Psicoses funcionais ou endógenas: a) a esquizofrenia (que inclui quatro tipos: esquizofrenia
simples, hebefrenia, catatonia e delírio paranóide. Alguns autores falam igualmente de paranóia
(que incluiria delírios sistematizados). b) A psicose maníaco-depressiva, que pode apresentar-
se como mania (aceleração de todos os processos psíquicos e exaltação egóica de si) ou como
depressão (lentificação dos processos psíquicos e abatimento generalizado).
2) Sobre as relações entre a criatividade e a imaginação e sobre o desenvolvimento correlativo
destas duas capacidádes, veja-se meu artigo "A Exploração Ativa do Campo Imaginário"
(Arquivos da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista-Existencial, São Paulo, 1989).
3) Zacaria Borge Ali Ramadam: Psicoses Vinculadas- Estruturas Psicopatológicas lnaparentes
(São Paulo, 1979).
4) De todos os documentos escritos por pessoas que viveram a loucura, deixando-nos o depoimento
de sua experiência, quatro me parecem de extraordinário valor: a) Daniel Paulo Schreber:
Memórias de um Doente dos Nervos (1903)- Tradução portuguesa de Marilene Carone
(Graal, 1984). Este é sem dúvida o texto mais rico e complexo de todos. b) Guy de Maupassant:
"O H orla" (figura na coletânea Bola de Sebo, Editora Globo, 1987). c) Hannah Green: Nunca
lhe Prometi um Jardim de Rosas (Editoralmago, 1974). d) Mary Barnes: Viagem Através da
Loucura (Rio de Janeiro, 1982).
5) Convém esclarecer que o esquizóide e sobretudo o esquizo tendem a se relacionar com
personagens mais que com pessoas. Jorge Nicolai era um sábio alemão, famoso nos anos 50
e 60 no Chile. Ornar freqüentou as aulas do professor Dorfman no início dos anos 60.
Altamirano era um conhecido dirigente do Partido Socialista, notável por sua oratória .
Embora fosse uma pessoa de aparência agradável, apenas algo esquivo e formal, Ornar carecia
de amigos: "Além do Mário nunca tive outro amigo- me falou. Sempre as pessoas me
inspiraram certa reserva e eu ainda mais a elas. Até agora só me relacionei com seres imaginários.
García Lorca, Dorfman, Dom Quixote, Nicanor Parra, uma moça da farmácia da esquina
(Luciana): nunca existi para eles, mas eles povoavam meu reino. Inês? Ela foi muito importante
para mim, mas quando a conheci já tinha entrado na pior fase de minha vida. Não podia
corresponder seu carinho. Agora entendo o que perdi". Perguntei-lhe como podia apreciar
dois poetas tão diferentes quanto Lorca e Parra. Sorriu. Respondeu: eu os aprecio justamente
por isso. Em Lorca, o dramatismo; em Parra, seu terrível bom humor- que eu não possuo.
6) Ronald Laing: O Eu Dividido (Editora Vozes, 1975).
7) Ronald Laing e Esterson: Loucura, Sensatez e Famaia (Belo Horizonte, 1979).
331
e
LEMOS
EDITORIAL