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O mito psicanalítico do desamparo [1]

Jurandir Freire Costa

Wittgenstein, ao falar sobre a certeza, diz: "Nosso saber forma um grande sistema. E é apenas nesse
sistema que o elemento isolado tem o valor que lhe conferimos".O valor da noção de desamparo, em
psicanálise, parece corroborar a tese wittgensteiniana sobre a aquisição de crenças. Repetimos que o
sujeito da clínica é o "sujeito do desamparo", mas pouco perguntamos em que sistema de crenças
essa convicção se apoia. Penso, no entanto, que faz diferença clínica, teórica e ética acreditar que
somos "ontologicamente" desamparados. Por essa razão, sugiro que a noção seja melhor estudada,
para que possamos utilizá-la, quando e se necessário, da melhor maneira possível.

O que se segue é um esboço do que pode vir a ser uma revisão mais acurada da noção de
desamparo. Começo, então, por considerar apenas as grandes linhas do que Freud afirmou sobre o
assunto, procurando ressaltar as "certezas" que tornam a idéia plausível e aceitável.

Freud emprega o termo desamparo em dois principais contextos. No primeiro, o termo aparece na
discussão sobre os estímulos interiores ou exteriores que afetam os organismos humanos. Postula-se,
em teoria, que a resposta adequada a esses estímulos é a "ação específica", que pode ser motora ou
psíquica. A ação específica visa a fazer cessar o estímulo pela satisfação da necessidade ou pela fuga
à situação penosa. Se isso não acontece e o estímulo excede a capacidade de resposta do organismo,
surge o desamparo que pode dar origem a defesas inadequadas, ou seja, aos sintomas
"psicopatológicos".

No segundo contexto, desamparo está referido à idéia de "prematuração" do ser humano. Freud diz
que entre os fatores que contribuem para causar as neuroses, e que criam as condições nas quais as
forças psíquicas se medem umas às outras, três se destacam particularmente: um fator biológico, um
fator filogenético e um fator psicológico. O fator biológico é o estado de desamparo e de dependência
muito prolongado do filhote do homem. A existência intra-uterina do homem é relativamente breve,
em relação à maioria dos animais. Ele é menos acabado que eles, ao ser lançado ao mundo. A
influência do mundo exterior real se acha, por isso, reforçada. A diferenciação do eu com o isso é
adquirida precocemente, os perigos do mundo exterior ganham uma importância maior e, por essa
razão, o valor do objeto é enormemente aumentado, pois ele é o único a poder proteger o eu de tais
perigos. Assim, o fator biológico está na origem das primeiras situações de perigo e cria a
necessidade de ser amado, que jamais abandonará o ser humano.

Nos dois casos, desamparo remete à idéia de despreparo do organismo humano em face de certos
estímulos do meio. No segundo, porém, entra em cena outro fator, a distinção entre o eu e o corpo.
Desamparo do organismo corporal não é a mesma coisa que desamparo de um eu que, em situações
de perigo, apela para o objeto e cria "a necessidade de ser amado que jamais abandonará o ser
humano". No primeiro uso do termo, desamparo designa estados subjetivos descritos de modo
fisicalista. Freud, com ou sem consciência, falava do indivíduo como um organismo físico. Pouco
importa se a idéia de "organismo psíquico" ou de "corpo imaginário" estava pressuposta na descrição.
O fato é que o desamparo era assimilado à necessidades discriminadas selecionadas por meio
reflexos automáticaos. Se estamos com fome, apanhamos o alimento desejado por meio da "ação
específica"; se estamos com sede ou premidos por estímulos sexuais fazemos o mesmo.

A deficiência do argumento reside na suposição de que tais estados de carência são "estados de
desamparo". Se isso fosse verdade, poderíamos dizer, de forma igualmente legítima, que somos
desamparados porque precisamos respirar, suar, dormir, andar, deitar, excretar produtos degradados
do metabolismo e assim por diante. Na língua corrente, entretanto, não denominamos tais situações
de "desamparo". Aprendemos que esses estados funcionais fazem parte do ciclo natural e isso basta
para que ninguém viva pedindo ao outro que o poupe do "desamparo" de respirar, de urinar, de suar,
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de ter que dormir ou ter que acordar! Definir tais estados como estados de desamparo significa
atribuir predicados psicológicos a uma entidade que, previamente, foi identificada como incapaz de
possuir tais propriedades. Em outros termos, o sujeito descrito como um feixe de reflexos e
automatismos não é desamparado nem amparado. Essa qualificação não se aplica aquilo que, por
definição, não pode ser suporte de predicados mentais. Não podemos caracterizar, satisfatoriamente,
a identidade do que é definido mediante predicados contraditórios entre si. Uma libélula, um
computador, um relógio à pilha etc. todos têm necessidade de fontes de energia e de informação
para continuarem funcionando. E, se não recebem os estímulos necessários ao funcionamento ou se
os recebem em excesso podem parar de trabalhar, explodir os circuitos ou morrer, se são seres vivos.
Isso, contudo, não nos leva a pensar que abelhas são desamparadas porque dependem de flores para
fazer mel ou que telefones celulares são desamparados porque precisam de bateria para continuar
funcionando.

No segundo uso do termo, Freud se refere, de modo explícito, a existência do eu, e o adendo é
fundamental. A existência do eu autoriza o emprego do termo desamparo, pois estamos diante de um
ser de linguagem que pode saber o que é se sentir desamparado. Falar de desamparo, em uma
descrição psicológica dos organismos humanos, se justifica porque projetamos no bebê ou na criança
as qualidades mentais que possuímos e que eles virão a possuir, no curso do desenvolvimento. Ao
dizermos que o bebê é desamparado porque é prematuro queremos dizer que, em situações similares
a da prematuração, sentimos algo que chamamos de desamparo. As situações são aquelas em que
dependemos de outrem para sobreviver, para viver melhor ou, ao contrário, situações nas quais o
sujeito e o outro são impotentes para deterem o risco de morte ou sofrimento.

A gramática do desamparo é, portanto, rica e intrincada. Ser capaz de reconhecer essa experiência
emocional, significa dominar regras de uso de outros termos e expressões que tornam a crença no
desamparo humano possível e plausível. O "estado de desamparo" não é um fato do mundo mas o
produto de uma determinada leitura do mundo. Tentarei, portanto, analisar alguns dos elementos da
crença que fizeram da noção de desamparo uma peça importante na metapsicologia freudiana.

Três termos, principalmente, estão vinculados ao conceito de desamparo: o eu, o sexo e a morte.
Começo pela idéia de sexo, mais fácil de ser criticada. Freud se referiu, freqüentemente, ao
desamparo como a posição do sujeito frente a violência das pulsões sexuais. A idéia, em minha
opinião, foi superestimada pela posteridade psicanalítica. Não temos nenhuma boa razão para mantê-
la. O sexo concebido por Freud não é um elemento transhistórico ou transcultural da "natureza"
humana. É, apenas, um arranjo imaginário da cultura européia dos últimos séculos. Fazer da
banalidade do sexo o "Mal Radical" é entendível à luz das raízes históricas da psicanálise. Hoje, o
sexo freudiano parece ingênuo ou risível. Na clínica, na psicopatologia da vida cotidiana e no universo
sociocultural da prática psicanalítica, o sexo se tornou mais um ingrediente na ração dos prazeres a
qual os indivíduos têm direito.

Dizer que o eu não é senhor de sua morada porque ela foi sitiada pelo inquilino sexual é um
anacronismo. Proprietários e inquilinos sexuais vivem, atualmente, na bela harmonia prescrita pelos
meios de comunicação da sociedade narcisista de consumo. É possível que alguns indivíduos ainda se
sintam desamparados em face do clamor do sexo. Mas isso é a exceção e não a regra. A regra é
aceitação dos impulsos sexuais, quaisquer que sejam, como desejos legítimos aos quais devemos
ceder, para nos realizarmos como sujeitos modernos, liberados e satisfeitos sensual e
sentimentalmente. Não vejo como insistirem uma idéia que é desmentida, diariamente, por contra-
exemplos flagrantes. A menos, é claro, que tomemos o sexo como parte dos dogmas doutrinários, o
que não me parece uma atitude psicanalítica recomendável.

Pode-se argumentar, entretanto, que o sexo domesticado e comercializado não é o sexo abominável
de que fala Freud. O sexo freudiano é o sexo da "pulsão sexual de morte", como o teoriza Laplanche,
ou o sexo que exibe o "ponto de gozo" do Real, como em Lacan. Nesses casos, porém, o sexo não é
traumático por si; ele é a pura sombra de um iceberg que está em outro lugar. Definir o sexo
causador do trauma como "pulsão sexual de morte" implica esvaziar a força psíquica da sedução, da
cena primitiva e da castração, em benefício teórico da morte. Na psicanálise freudiana, sexo era sexo
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e morte era morte, e os dois podiam ser causas independentes de traumatismo e desamparo. Do
mesmo modo, fazer do sexo uma articulação significante da emergência, no simbólico ou no
imaginário, do Real, do gozo ou do objeto a implica considerar o "trauma sexual" como um trauma
acidental e periférico. O verdadeiro trauma e o verdadeiro desamparo são causados pela angústia que
invade o sujeito interpelado pelo Real, pelo gozo ou pelo objeto a.

Dessa forma, ou o sexo continua sendo o "sexo original" de Freud, e sofre os efeitos da relativização
histórica de seu papel, ou se torna um simples representante de pulsões ou gozos mais potentes, que
são os verdadeiros responsáveis pelo trauma do desamparo. Querer prestigiar, igualmente, os "dois
sexos", tentando valorizar o lugar comum da cultura e a pretensa radicalidade da teoria é um
procedimento que não se sustenta.

A idéia do desamparo em face da morte é mais complexa e convincente. Desse aspecto, o que salta à
vista são as inconsistências dos comentários freudianos. Freud diz que não podemos representar a
morte, pelo fato de não sobrevivermos a ela. E, por não podermos representá-la, ela se torna
traumática, pois sempre se apresenta ao psiquismo como se fosse a primeira vez. Isto é, não existe
"ação específica" contra a morte porque não existem traços mnésicos de experiências que nos
predisponham a controlar aquele tipo de ameaça .

Essa afirmação é refutada por numerosos exemplos dados pelo próprio Freud. Ele mostra que, na
clínica e na vida cultural, não paramos de "representar" a morte, ao construir teorias sobre sua
natureza e sobre o destino dos mortais. De modo breve, para Freud, pensar na morte do outro é se
defrontar com a ambivalência sentimental que nos liga a ele, e vir a sentir a culpa que nos leva a
inventar deuses, religiões, crimes e castigos espirituais; pensar na própria morte, é tremer diante do
fim da vida e, de novo, criar fantasias religiosas que assegurem a imortalidade da alma.

A questão, por conseguinte, é saber que idéia Freud tinha de "representação" para dizer que não
podemos representar a morte? É óbvio que, ao falarmos de ambivalência e culpa em relação aos
mortos ou criarmos deuses e religiões relacionadas com a imortalidade da alma estamos
"representado a morte". Como aceitar, portanto, que não podemos representar aquilo sobre o que
não paramos de falar? A afirmação se esclarece ao considerarmos os sentidos da expressão
"impossibilidade de representação". No primeiro sentido, a impossibilidade deve-se ao fato da morte
ser um mistério para a imaginação humana. Esse sentido é fraco, do ponto de vista teórico, pois se
aplica a qualquer coisa, dependendo da interpretação. A vida também é um mistério, o cosmos é um
mistério, "tudo o que é" é um mistério já que "poderia não ser". A morte, assim, não teria o
monopólio da irrepresentabilidade só pelo fato de ser um mistério. Outras coisas, tão misteriosas
quanto, são comumente representadas. A menos, é claro, que declaremos, de forma axiomática, que
tudo o que misterioso é, por definição, irrepresentável. Essa querela sobre verdades analíticas e
sintéticas é irrelevante para a teoria psicanalítica do desamparo nascido da consciência da morte.

O segundo sentido é mais preciso. A morte, aqui, não é irrepresentável por ser misteriosa mas porque
só podemos "representar" aquilo que experimentamos. Como o sujeito da experiência da morte não
existe, pois o morto não é mais sujeito, pode-se dizer que a "não-experiência" da morte acarreta,
necessariamente, sua "não-representação". O argumento, como veremos a seguir, embora coerente
no núcleo argumentativo, se desdobra insatisfatoriamente, ao confundir acepções da expressão
"impossibilidade de representação" pertencentes a registros lógico-conceituais diversos.

Comecemos por testar a validade da asserção, "só podemos representar aquilo que experimentamos".
A asserção pode ter vários contra-exemplos. Podemos representar a curvatura do tempo, o
nascimento do universo, os buracos negros, o alucinado rancor vingativo de Medéia ou a demência
racista de Hitler sem que sejamos, obrigatoriamente, levados a "experimentar" tais convicções
científicas e tais sentimentos destrutivos. Por que, então, a morte teria o privilégio de não ser
representável por não ser experimentável?

A objeção ao argumento é que, no caso da morte, nenhum sujeito passado, presente ou futuro
poderia vira experimentá-la, enquanto, nos outros casos, alguns experimentaram ou podem vir,
teoricamente, a experimentar aquilo de que se fala. Mas não é isso o que Freud diz. Ele diz que não
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podemos representar a morte porque, em nosso inconsciente, jamais morremos; quem morre é
sempre o outro. Dito de outra forma, o princípio do prazer e a onipotência do desejo não nos deixam
morrer, até o último suspiro.

O raciocínio faz sentido, mas está longe de solucionar o problema, já que o próprio Freud se
encarrega de assinalar uma exceção a essa regra, o caso das pessoas queridas. Ao perdermos
alguém que amamos, diz ele, sentimos sua morte como se fosse nossa, graças ao mecanismo da
identificação. Como a identificação é inconsciente, podemos dizer que a morte é representada no
inconsciente. Pode-se replicar, contudo, que a inferência é ilegítima. Nos casos de identificação com a
morte de pessoas queridas, só uma parte do eu se identifica com a morte do outro. Representar
plenamente a morte, na terminologia de Freud, é poder identificar a experiência de cessação da vida
com a totalidade identitária do sujeito. Ou seja, representar a morte de "um pedaço de mim" não
eqüivale a representar a morte de "todo eu".

A alegação, à primeira vista, é aceitável, até percebermos as falácias em que se baseiam. Em


primeiro lugar, não somos feitos só de inconsciente. A melhor prova é que podemos tomar distância
do mecanismo inconsciente para analisá-lo em suas leis. Em segundo lugar, dizer que "não podemos
representar a morte no inconsciente" não equivale a dizer que "não podemos representar a morte".
Como dissemos, o segundo enunciado pode ser parafraseado da seguinte forma: "uma pessoa viva
não saberia dizer o que é a morte para alguém que está morto". Ora, expresso dessa maneira, a
frase "não podemos representar a morte" diz, simplesmente, que representação e experiência são
atributos de sujeitos vivos ou, em uma formulação mais direta, de "sujeitos e não de cadáveres".

O equívoco de Freud é evidente. Ele identificou impossibilidade lógica à impossibilidade psicológica.


Não poder representar a morte no inconsciente é uma impossibilidade de natureza empírica,
explicável em razão do modelo psicanalítico do aparelho psíquico; "não poder representar a morte"
tout court, é uma impossibilidade lógica dependente do jogo de linguagem racionalista e materialista.
Nesse jogo, aprendemos que, entender o sentido correto de palavras como sujeito, morte, vida,
experiência e representação, significa entender que os mortos nada podem experimentar ou
representar. Ao dizer que "não podemos representar a morte no inconsciente", Freud faz uma
constatação clínica; ao dizer que "não se pode representar a morte" explicita um contra-senso
semântico-pragmático e um truísmo do senso comum. Assim como, na língua corrente, aprendemos
que não faz sentido perguntar como um bebê, antes de nascer, representaria ou experimentaria seu
futuro nascimento, também aprendemos que não faz sentido perguntar como um morto representaria
seu futuro estado de morte ou de não-existência. A menos, é óbvio, que se parta de crenças
espiritualistas na existência desencarnada do sujeito, o que não se aplica ao vocabulário da
psicanálise.

Se o que foi afirmado é válido, a idéia da morte como causa do desamparo traumático perde sua
consistência. No caso da negação inconsciente da morte, fica claro que a defesa onipotente protege o
sujeito do traumatismo. Onde há negação da morte não pode haver traumatismo provocado pela
morte. No caso do contra-senso lingüístico, só haveria trauma se continuássemos a manter a crença
contraditória na possibilidade e na impossibilidade de existir um eu que sobrevivesse a própria morte
para ser traumatizado por ela.

É curioso notar que esse último caso foi objeto das magníficas análises de Epicuro e, em seguida, de
Lucrécio sobre o medo supersticioso de morrer. Epicuro, ao dizer que "onde a morte está, não
estamos e onde estamos a morte não está" ou que "a morte nada é para nós", mostrou que o medo
psicológico da morte se apoiava, de forma implícita, em crenças religiosas sobre a imortalidade da
alma, e não o inverso, como se costuma pensar. Porque acreditamos na sobrevivência do sujeito após
a morte, imaginamos, apavorados, qual deveria ser a experiência de alguém que morreu e que
continua a manter todos os desejos, aspirações e expectativas de alguém que está vivo, inclusive a
de ser imortal. Essa é, diziam os epicuristas, a origem da crença religiosa do medo da morte, imposta
aos indivíduos como se fosse algo natural, espontâneo eineliminável.

Mas, pode-se retrucar, a morte causa do trauma nem é a morte física, nem a imagem da morte física
recusada pela fantasia inconsciente. A morte que impede sua própria representação é a angústia de
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aniquilação do eu. Freud, ao se referir ao desamparo, em última instância dizia isso. A impossibilidade
de representar a morte seria, desse modo, uma forma abreviada de dizer que o eu não pode imaginar
seu próprio desaparecimento, sem se sentir traumaticamente desamparado. Ao contrário da angústia
sexual, que pode ser sanada pela intervenção do poder libidinal do objeto, a angústia de morte não
encontra alento em nenhuma potência ao alcance da imaginação do sujeito.

O argumento é razoável. Mas, novamente, inferimos de observações empíricas e contingentes,


fundadas em exemplos clínicos, conclusões sobre a "natureza do sujeito" que aparecem,
incorretamente, como necessárias. Não podemos garantir, de forma alguma, que o medo de morrer
seja o mesmo para todas as pessoas, em qualquer cultura e em qualquer momento histórico.
Desamparo diante da morte é uma construção imaginária como qualquer outra e não uma invariante
psíquica, universalmente presente em todos nós. Se, por exemplo, nos convertermos à idéia de que a
morte não é um mal, não temos razões para reagirmos desamparadamente a ela. Tudo, portanto,
depende das crenças e julgamentos presentes em nossas emoções. Lucrécio, ao dizer que "as feridas
da existência são alimentadas, em grande parte, pelo medo da morte", queria mostrar que aquilo que
sentimos depende daquilo em que acreditamos.

Na verdade, o desamparo só aparece como uma idéia consistente, ao aceitarmos os termos do


debate cultural em torno da imagem do eu utilitarista e racionalista. Explicitando, à imagem
triunfalista de um eu senhor de si mesmo, ilusoriamente consciente de seus "melhores interesses", a
psicanálise responde com o "eu trágico ou romântico" do inconsciente e da pulsão de morte. Em
outros termos, diz-se que o eu da razão é uma ficção imaginária, criada para ocultar a "ferida da
existência" ou ameaça de castração. O eu psicanalítico, pelo contrário, é apenas uma aparência
ilusória, um semblante sintomático do sujeito do desamparo, fadado ao mal-estar, à incompletude e
ao angustiante enigma do desejo do Outro. O sujeito, dividido pela pulsões, pelo simbólico ou pelo
Real, encontra a seu dispor "formações egóicas" prêt-à-penser que ocultam o originário e irredutível
desamparo, em favor da totalidade narcísica.

Em suma, o eu desamparado é a versão deflacionária da farsa narcísica do eu triunfante. Vista desse


ângulo, a questão da onipotência e da impotência são lances do mesmo jogo de linguagem, o da
autonomia x heteronomia do sujeito na relação com o outro. Gregos, romanos, cristãos, românticos,
iluministas e socialistas, para citar o que existe de mais marcante em nossa tradição cultural, se
debateram, ao longo dos séculos, com o assunto. E, a saída para o dilema, em geral, consistiu na
pergunta: quem ou o quê domina quem ou o quê. Isto é, o impasse entre liberdade e servidão,
consenso e coerção, obediência e rebeldia, lei e transgressão ou conformismo e desafio, foi visto, na
maioria das vezes, da perspectiva da racionalidade instrumental. Se deixarmos, no entanto, as
fronteiras desse mapa, podemos redescrever o problema de modo a perceber outras faces do sujeito.
No acervo das idéias facilmente disponíveis, mencionaria as alternativas dos pós-aristotélicos céticos,
estóicos e epicuristas; dos primeiros cristãos; de Nietzsche; dos socialistas marxistas ou as teses
centrais da doutrina budista.

Vejamos, a titulo de ilustração, o caso do budismo. Na concepção budista, o problema central da


existência humana não é a autonomia e a heteronomia. Essa dicotomia já é herdeira de uma visão do
mundo que o budismo recusa. Não se trata de fazer o eu aceitar a dependência para com o outro,
nem tampouco levá-lo a inventar estratégias e instrumentos contra essa dependência. A questão,
simplesmente, inexiste, pois, o outro e o eu não são entidades isoladas e antagônicas, disputando a
precedência no jogo da submissão. Os dois são parte da mesma rede contingente de condições e
dependência. O laço entre o eu e suas contingências não é imaginado como de subordinação,
sujeição ou restrição da liberdade. Não há, no budismo, a figura da alienação ontológica, existencial
ou emocional, da vontade do sujeito em relação ao outro. A vontade é recuperada no momento
mesmo em que é posta à serviço de algo maior que eu. Esse algo, entretanto, não é imaginado como
uma potência ou uma força com objetivos próprios e estranhos aos objetivos do eu. O espiritualismo
budista não olha o universo como um embate de forças do Um contra o Múltiplo ou do Maior contra o
Menor. Todas essas imagens são percebidas como efeitos do apego do sujeito à identidade-egóica.
Ao renunciarmos à ilusão da identidade, a liberdade aparece como adesão voluntária à uma espécie
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de ordem cósmica que se reduz ao nada, ao vazio. O desamparo, portanto, é uma emoção acidental,
contingente, "ideológica", fruto de nosso apego aos mecanismos de segurança ego-identitários.

Em síntese, o denominador comum ao rol de idéias no qual o budismo se inscreve é a reinterpretação


da questão da autonomia e da heteronomia. Cada uma delas procura rever o problema, sem recorrer
aos critérios do domínio instrumental ou do utilitarismo de interesses. Desse modo, termos como
vontade, decisão, liberdade, controle, autocontrole etc. ganham novos sentidos. O objetivo da
independência ou auto-suficiência não é sujeitar o outro ao interesse do sujeito ou desprezá-lo, afim
de, ilusoriamente, prescindir dele. O que se busca é pensar, sentir e agir de modo a conciliar a
iniciativa subjetiva no campo da praxis com o respeito pelas circunstâncias que condicionam a forma
como se pensa, sente e age. O outro não é mais pensado como algo que escraviza, aliena ou subjuga
mas como algo que o "incita ou intima o sujeito a ser" sempre outro, de modo previsto ou imprevisto,
na relação consigo, com os outros e com o mundo.

Mas o que parece sobremodo interessante é observar é como o cerne dessas teses se aproxima de
algumas das mais inteligentes formulações psicanalíticas sobre o sujeito. Cito, como exemplo, as de
Slavoj Zizek e de Winnicott. Zizek é um dos mais inventivos pensadores da atualidade. Não importa
saber se sua leitura lacaniana da psicanálise é filosófica e, de fato, é ou mais ou menos fiel a Lacan.
Para os propósitos do trabalho, o essencial é notar a singularidade de sua teoria do sujeito.

Zizek, ao discutir o trabalho de Alain Badiou, L'être et l'évenement, apresenta uma imagem do sujeito
em tudo avessa à concepção que o define como ser do desamparo. Badiou, segundo ele, denuncia a
maioria das teorias da subjetividade, entre as quais a psicanalítica, como incapaz de distinguir o Ser
do Evento. O Ser é tudo aquilo que se dá ao conhecimento e que se forma a partir da "multiplicidade
de experiências ainda não estruturadas simbolicamente"(Zizek, 1998, p. 236). A multiplicidade
original, a fonte e a origem do Ser, é chamada por Badiou de "situação". A "situação", ao se
estruturar sob o modo de uma "unidade", assume a forma do "estado de situação". O "estado de
situação" é uma reduplicação simbólica que envolve sempre Excesso e Vazio. O Vazio é o que existe
nos interstícios do múltiplo e que é desconsiderado, cognitivamente, para fins da ordenação de uma
"situação" em um "estado de situação". O Excesso, por sua vez, é o que é deixado de fora quando a
disparidade do múltiplo, que precede ontologicamente o Ser, passa de "situação" a "estado". O Ser,
finalmente, é o efeito da transformação da "situação" em um determinado "estado de situação" , e
que virá a se constituir como ordem ontológica estabelecida. O Ser, por conseguinte, ao fixar uma
dada ordem ontológica em uma certa estrutura simbólica exclui o Vazio e o Excesso de sua
organização. É nesse cenário ou dessa dinâmica que emerge o Evento.

O Evento é o que ocorre, de modo imprevisível, ex nihilo, na estrutura do Ser. Não como algo que
surge do Fora ou do Além, mas como efeito da própria inconsistência, potencialmente criadora e
subversiva, da "situação". O Evento é, dessa maneira, a Verdade da "situação" e o sujeito do Evento
é o agente que intervém na situação, identificando os sinais e efeitos do que se tornará a Verdade-
Evento. Em resumo, o sujeito é, simultaneamente, efeito e agente da Verdade-Evento. Badiou
oferece, como exemplos de Eventos, os episódios históricos da Revolução francesa e a criação do
Cristianismo por são Paulo, após a morte de Jesús de Nazaré. O Evento, diz ele, é a morte de Jesus e
a Verdade-Evento é o que transforma a morte na doutrina cristã.

[1] Texto apresentado no V Fórum Brasileiro de Psicanálise, Recife-PE, 17 a 20 de Junho de 1999. A


referência completa deste texto é Costa, Jurandir Freire. O mito psicanalítico do desamparo in:
Revista Agora, V. 3, N. 1, Rio de Janeiro, 2000, p. 25 – 47.

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