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Verbete “Narcisism”, presente em Encyclopedia of critical psychology (2014), p.

1215-1217
Matthew Adams (School of Applied Social Sciences), University of Brighton, UK
Trad. Felipe Taufer

Introdução

A noção de narcisismo foi um chão fértil para combinar as críticas psicológicas, políticas e socio-
culturais ao longo do Século XX. Nos anos 1970 e 1980, o narcisismo se tornou um tropo psicossocial
chave e foi compreendido como a manifestação psicológica de um mal que escorria através da sociedade
capitalista consumidora. O conceito carecia de um escrutínio acadêmico sério nos últimos 20 anos, mas ele
precisa ser resgatado de ser lançado ciclicamente como uma heurística conservadora cansada e
reposicionado como um conceito psicanalítico social sério que ainda pode contribuir para um diálogo crítico
significativo sobre as realidades psicossociais nas sociedades capitalistas contemporâneas.

Definição

Freud foi responsável por converter o potencial metafórico da figura mítica de Narciso em
linguagem psicológica, desenvolvendo este conceito em seu ensaio “Introdução ao Narcisimo” (1915).
Freud distinguiu entre o narcisismo primário e o secundário. O narcisismo primário é uma experiência
universal da infância pré-natal e o recém-nascido, onde não há lacuna de tempo entre a experiência de
necessidade e a gratificação: a “fome” não se desenvolve como uma experiência porque a sua satisfação é
instantânea. Disso resulta que o ego fugidio comporta-se como se fosse a soma do mundo; e porque ali a
necessidade anda de mãos dadas com a sua satisfação, nenhuma distinção acaba sendo feita entre “dentro”
e “fora”, um mundo externo e interno, o eu e o outro. Esse é o estado do narcisismo primário, uma fusão
indistinguível de experiências, experienciadas como um sentido de onipotência ou “sentimento oceânico”.
O narcisismo primário é uma fantasia funcional a partir da qual o ego nasce; -suaviza a realidade do
desamparo e amortece a consciência crescente do bebê sobre a separação entre necessidade e gratificação,
o eu e os outros objetos; a individuação é marcada pela nossa gradual remoção da matriz narcisista
(Richards, 1989, p. 39).
O narcisismo secundário pode ser “ordinário” ou “patológico”. Como a provisão total do
ambiente (historicamente, isso significa a mãe) é responsável por atender à satisfação das necessidades de
uma forma que a individuação possa ser gradualmente realizada "com segurança" no eu em
desenvolvimento, ela também é a fonte de problemas. Embora algum grau de narcisismo seja considerado
necessário para o desenvolvimento saudável, a elaboração de formas patológicas de narcisismo depende de
falhas ambientais, além da frustração ideal, na resposta às necessidades da criança e à individuação
emergente. O que é considerado "apropriado" e "ideal" tem variado de ações notavelmente específicas,
como métodos de amamentação (Mahler, Pine e Bergman, 1975) para orientações gerais, como
desaprovação, rejeição e negligência (White, 1986). Basicamente, se o narcisismo primário de uma criança
for adequadamente mantido e espelhado por seu ambiente, ela acabará investindo energia em outras pessoas
importantes, absorverá com segurança o instinto narcisista no ideal do ego e separará um senso de "eu" do
"não-eu" até o ponto de uma independência saudável. Caso contrário, pode se estabelecer um senso de eu
superexpandido e carente. Esse "eu grandioso" borra sistematicamente os limites entre o eu e o outro em
uma tentativa frustrada de reconciliar a experiência com uma fantasia de onipotência.
Os "sintomas" do narcisismo secundário ou patológico foram documentados em trabalhos
clínicos desde o desenvolvimento do termo por Freud, e o "transtorno de personalidade narcisista" foi
formalmente reconhecido como um diagnóstico desde o DSM-III (publicado em 1980). Os sintomas
incluem autoengrandecimento, sentimentos avassaladores de vulnerabilidade, hipersensibilidade a críticas,
idealização do amor, desprezo pelos sentimentos alheios, atitude manipuladora em relação aos outros, inveja
e crença de que os outros têm inveja de si mesmo; fantasias persistentes relacionadas a sucesso pessoal,
poder, beleza e brilho; e medo generalizado da velhice e da morte. Horney resume as essências gêmeas do
entendimento diagnóstico do narcisismo de forma concisa, descrevendo-o como "parecer indevidamente
significativo para si mesmo e desejar admiração indevida dos outros" (Horney citado em Cooper, 1986, p.
120). No entanto, as orientações críticas em psicologia e psiquiatria resistiram notoriamente à medicalização
e à patologização dos "problemas da vida".

Debates Críticos

O interesse crítico no narcisismo foi usado por análises para chamar a atenção para as contingências
políticas, culturais e sociais do narcisismo. Apesar de não ser o primeiro, o documento mais conhecido e
documentado dessas análises foi “A Cultura do Narcisismo” (1979) de Christopher Lasch. No seu núcleo,
o argumento de Lasch é o de que o narcisismo está em alta não como uma desordem, mas como uma
resposta psicológica mais difusa a forma com que as relações sociais estão organizadas e institucionalizadas:
como um traço cultural mais do que psicológica. Lasch afirma que vários componentes da sociedade
contemporânea agem em coalisão para criar uma cultura do narcisismo e um tipo de armadilha contingente
na qual normas e expectativas encorajam individuos narcisistas. Isso dá combustível para formas de vida
psicossociais narcisistas, sejam elas espetaculares ou políticas, a corporizarização do esporte, o colapso da
autoridade na vida familiar, conselhos baseados na promessa de valor pessoal, um medo excessivo do
envelhecimento, a redundância do “movimento de consciência”, relações de gênero trivializadas, uma
sistema de educação estupizante ou o trabalho/emprego sem sentido. Em todas essas áreas e tantas outras,
Lasch aplica uma teoria psicanalítica complexa, particularmente fazendo uso da abordagem das relações
objetais, da história social e da crítica cultural para produzir um efeito retórico poderoso.
O capitalismo tardio é uma cultura de narcisismo principalmente porque desintegra as relações
(“objetais”) interpessoais primárias, as quais são necessárias para o desenvolvimento da personalidade
autônoma, amplamente por usurpar a autoridade dos pais e instanciar relações mercadorizadoras no seu
lugar. Uma vez que as relações parentais e pessoais são enfraquecidas, os limites entre o eu e o outro nunca
são adequadamente firmados e são carregados com impressões afetivas de necessidade e dependência,
abrindo o caminho para um regresso potencial a fantasias narcísicas de onipotências e autossuficiências
refletidas em relações interpessoais. A vulnerabilidade é atingida por uma cultura capitalista que facilita
fantasias de especialidade (“ser-especial”) e onipotência que apresenta uma sala de espelhos narcisista,
espelhando promessas infladas de grandeza e independência. Claro que o seu argumento é mais complexo
e detalhado que isso, e “A Cultura do Narcisismo” (1979) deveria ser lida conjuntamente com “O Mínimo
Eu” (1984), livro no qual Lasch tenta enfrentar tais críticas.
A tese de Lasch de modo algum foi aceita acriticamente e, em particular, foi sujeita a algumas
críticas feministas fortes. Ele foi acusado de desvalorizar a importância do vínculo materno-infantil e o
valor psicológico e social dos sentimentos de apego, dependência mútua, relacionalidade e identificação
com os outros. Sua crítica é indiscutivelmente investida de conservadorismo social, ao aludir a tempos
melhores no passado, quando as famílias eram obedientes (ao pai), a autoridade era respeitada e as pessoas
eram mais voltadas para os outros. Afirma-se também que ele não consegue captar as variadas e múltiplas
experiências de agência que desafiam as normas conservadoras nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Tanto a esquerda quanto a direita utilizaram posteriormente o narcisismo, em termos muito mais gerais,
como um marcador de fragmentação psicossocial e/ou individualismo egoísta. Entretanto, apesar, ou talvez
por causa, do florescimento do diálogo crítico que se seguiu à publicação seminal de Lasch, atualmente os
psicólogos críticos raramente se envolvem com o narcisismo como um conceito de valor sério. Ele ainda
aparece como um motivo de patologia cultural, atingindo escalas epidêmicas em alguns relatos; dando o
alarme sobre os perigos do fenômeno social, desde as redes sociais até a cirurgia cosmética (Twenge e
Campbell, 2009). Na pior das hipóteses, é reciclado como uma heurística conservadora cansada, que associa
o conceito ao hedonismo irresponsável, ao libertarianismo e à vaidade, para combater de forma simplista a
erosão do espírito comunitário, da autoridade e dos valores "tradicionais" (por exemplo, Lipovetsky, 2005,
p. 10).
É possível que essa seja uma oportunidade perdida para os psicólogos críticos de hoje. Há muitas
práticas aliadas ao capitalismo de consumo que ressoam ostensivamente com um conceito de narcisismo
informado psicanaliticamente, como a televisão de reality shows e de transformações, a hipocondria e a
dismorfia corporal. Seguindo Michel Foucault, uma estrutura discursiva e determinista tem sido
efetivamente utilizada para interrogar esses fenômenos, usando os conceitos de governamentalidade e
subjetivação. No entanto, uma abordagem crítica de relações objetais tem o potencial de explorar de forma
proveitosa a dinâmica emocional e intersubjetiva em jogo. Essa perspectiva tem um destaque renovado no
contexto da "virada para o afeto", que orienta muitos trabalhos psicológicos críticos atualmente - um
interesse ressurgente no afeto, na incorporação e na experiência não representativa da subjetividade e dos
relacionamentos. Abordando o narcisismo por meio das lentes do pós-estruturalismo e das relações
objetais, a virada para o afeto certamente seria um avanço em relação à pseudo-análise normativa e
acusatória que parece ter se tornado o destino do conceito atualmente. Theodor Adorno considerava o
conceito de narcisismo de Freud uma de suas "descobertas mais magníficas", mas ficou desapontado com
as tentativas subsequentes de desenvolvê-lo (Adorno, 1968 [1955], p. 88). Talvez ainda haja tempo.

Referências
Adorno, T. (1968[1955]). Sociology and psychology. In I. N. Wohlfarth (Trans.), New left review,
(pp. part 1, 46, 67–80; part 2, 47, 79–97).

Cooper, A. M. (1986). Narcissism. In A. P. Morrison (Ed.), Essential papers on narcissism (pp.


112–143). New York: New York University Press.

Freud, S. (1915). On narcissism: An introduction. In J. Strachey (Ed.), Standard edition of the


complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 65–96). London: Hogarth Press.

Lasch, C. (1979). The culture of narcissism. New York: Norton.

Lasch, C. (1984). The minimal self. New York: Norton Press.

Lipovetsky, G. (2005). Hypermodern times. Cambridge, UK: Polity.

Mahler, M. S., Pine, F., & Bergman, A. (1975). The psychological birth of the human infant:
Symbiosis and individuation. New York: Basic Books.

Richards, B. (1989). Images of Freud: Cultural responses to psychoanalysis. London: Dent.

Twenge, J. M., & Campbell, W. K. (2009). The narcissism epidemic: Living in the age of
entitlement. New York: Simon & Schuster.

White, M. T. (1986). Self relations, object relations, and pathological narcissism. In A. P. Morrison
(Ed.), Essential papers on narcissism (pp. 144–164). New York: New York University Press.

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