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X "Meu Caminho Para a Fenomenologia" – Aula 2

"O Paciente Psiquiátrico – Esboço de uma Psicopatologia Fenomenológica"


Van den Berg

Estudante, 25 anos, não frequenta as aulas; solitário, desconfiado e


temeroso. Poucos amigos (só conversa sobre assuntos teóricos). Só se
relaciona com prostitutas, mas mesmo com elas raramente tem contatos
físicos. Evita sair de casa durante o dia, pois da última vez que o fez sentiu
que as casas desabavam sobre ele. Sente as ruas vazias e as pessoas,
distantes. Procura o psiquiatra devido a fortes palpitações cardíacas para as
quais nenhum médico consultado encontra explicações orgânicas. Visita
seus pais uma vez a cada três meses, sempre se sentindo deprimido a partir
do momento em que embarca no trem, culpando-os por sua infelicidade.
Evita pensar no seu futuro.

Van den Berg divide as queixas apresentadas pelo paciente, em quatro


categorias:
1) seu mundo
2) seu corpo
3) as relações com outras pessoas
4) seu passado e seu futuro

Por dois objetivos: O primeiro é apresentar o sofrimento do paciente tal


como experienciado pelo mesmo:
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“O fenomenologista nunca tem necessidade de hipóteses. As hipóteses


surgem quando a descrição da realidade termina prematuramente. A
fenomenologia é a descrição da realidade”

Procura descrever os fenômenos como eles são. É um fenomenologista;


respeita os fenômenos que são registrados e os incidentes da maneira que
ocorrem. (...) Ele perturbaria as coisas, se as examinasse reflexivamente.
Então, ele se abstém de fazê-lo – isto não significa que, no futuro, ele verá
as coisas superficialmente. Pelo contrário, é de opinião de que, não
submetendo as coisas a uma inspeção reflexiva ele será capaz de vê-las
mais claramente e com mais realidade. (Van den Berg, 1955/1994, p. 57)

"O Ser da Compreensão" – Monique Augras

Em seu livro , a mais despojada de preconceitos”.

Tal atitude seria um antídoto ao “Leito de Procusto”, (o ladrão que


oferece hospedagem a viajantes em sua casa, onde mantém duas camas,
uma pequena e outra grande. Aos viajantes baixos, oferece a cama grande
e, prendendo- os, estica-os até que caibam perfeitamente. Aos viajantes
altos oferece a cama pequena, cortando suas extremidades. Desse mito
surge a expressão usada para se referir ao esforço de encaixar uma situação
num quadro teórico, mesmo que seja necessário distorcê-la para que caiba
bem.
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Critica explicita a Psicopatologia e a Psicanálise, o livro "O Paciente


Psiquiátrico" é uma oportunidade de contestar as hipóteses psicanalíticas:
A cada uma das categorias exploradas (mundo, corpo, outros, tempo)
corresponde uma hipótese psicanalítica:

- Relação do paciente com mundo externo Projeção

- Relação com os sintomas corpóreos Conversão

- Modo de se relacionar com os outros Transferência

- Modo de relação com o passado e futuro Mitificação

Estas hipóteses se sustentam sobre o conceito de inconsciente –, que para


Van den Berg é desnecessário.

- A vivência é pré-reflexiva e difere das explicações psicológicas e


psiquiátricas tradicionais, que são posteriores, secundárias, reflexivas. A
característica mais marcante da experiência humana é a não
separação entre sujeito e objeto, homem e mundo. Ela se revela
também na imediatidade com que a significação do mundo aparece,
isto é, não há objetos brutos, puros, desprovidos de significados que,
num segundo momento, recebem significações como se fossem
etiquetas.

Exemplo: do convite feito a um amigo para jantar em casa, (comprar um


vinho especial para a ocasião; arrumar a casa). O amigo liga desmarcando
o ansiado encontro. Há então uma transformação no modo de vivenciar
espaço e tempo, sua casa parecendo mais vazia e silenciosa, o tempo
passando mais lentamente; o vinho não diz mais do encontro, só da
ausência.
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O autor demonstra que para a compreensão fenomenológica não há uma


divisão entre sujeito e objeto; A garrafa (objeto) revela imediatamente, de
um só golpe, a solidão de quem aguarda o amigo (sujeito).

Não há na experiência a separação interior-exterior.

Disto depreende-se que a psicologia fenomenológica supera a


dicotomia sujeito-objeto e a separação interior-exterior. Sujeito e
objeto, homem e mundo estão inti-mamente relacionados e não há um
sem o outro. Nessa correlação sempre aparecem significados. Estes
não são atribuídos posteriormente por uma consciência dotada da
capacidade de significação. As coisas aparecem significativamente como
a garrafa, que presentifica o amigo ausente e revela a solidão daquele que
o espera. Augras (1986) afirma assim que o ser humano existe sempre em
‘situação’. Por isso, nosso esforço é o de compreender a experiência
vivida.

"A realidade (objeto) é transformada em ‘mundo’ pela percepção humana, de


modo que não existem objetos puros, mas sempre objetos percebidos, e,
portanto, significados. Por isso pode-se dizer que o humano é criador de
mundo; “sujeito e objeto, homem e mundo vão criando-se reciprocamente”

Van den Berg mostra também que o que as coisas são (o que significam)
depende de quem se relaciona com elas. Ex do carvalho; Para pessoas
diferentes, o carvalho é diferente:
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- Para o caçador, o carvalho é um abrigo para pássaros e uma oportuni-


dade para se abrigar do sol.
- Para o madeireiro, é um objeto que pode ser medido, cortado e vendido.
- Para a moça romântica, faz parte de uma paisagem apropriada ao amor.

Assim, para o fenomenólogo compreender quem é o outro, cabe a este


investigar seu mundo, tal como “ele o vê na observação direta e diária” (p.
38), pois a relação entre o ser humano e seu mundo é de tal intimidade que
torna equivocada qualquer tentativa de separação.

Isto instaura uma oposição entre o pensamento fenomenológico e a filosofia


cartesiana, que divide a realidade entre res cogitans (coisa pensante; sujeito
pensante) e res extensa (corpo; matéria).

Na fenomenologia, a relação entre aquele que percebe (sujeito) e o que é


percebido significativamente (objeto) é, segundo Augras (1986), uma
dialética inesgotável, pois há infindáveis modos possíveis de perceber e de
se perceber percebendo o mundo.

Homem e mundo não se separam; qualquer tentativa de cisão é uma


abstração que perde a especificidade humana. Isso implica que conhecer o
outro é conhecer o seu mundo. Assim, é possível prescindir do conceito
psicanalítico de projeção. Homem e mundo estão tão intimamente ligados
que como alguém está aparece imediatamente em seu mundo. Não se trata,
pois, de projetar num mundo ‘externo’ desprovido de significados e
colorações aspectos psicológicos e afetivos ‘internos’.

O paciente está doente; isto significa que o seu mundo está doente ou, mais
literalmente (embora isto pareça estranho), que os seus objetos estão doentes.
Quando o paciente psiquiátrico conta como seu mundo lhe parece, está a
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“Nada nos autoriza a afirmar que a nossa observação é mais verdadeira


que a do paciente. Também nossa própria observação prova apenas o que
parecemos e o que somos” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 43). É um
trabalho descritivo, não explicativo.

A psicoterapia fenomenológica é um modo de escutar e compreender o sentido


da vivência de quem me procura como psicólogo a partir de como essa pessoa
experimenta o seu mundo e não do que eu penso sobre ela.

A Fenomenologia revela que a percepção da realidade objetiva não pode


ser critério para o diagnóstico da psicopatologia, pois não há uma
‘realidade objetiva’. Há realidades percebidas, apenas. Assim, entende-se
que o convencimento e o sugestionamento não são intervenções
psicológicas viáveis, pois partem do pressuposto de que há uma realidade
erroneamente percebida pelo paciente.

A existência é um eixo a partir do qual o espaço ao redor se organiza

As dimensões do espaço são criadas a partir da centralidade do corpo. O


espaço próprio não é delimitado pelos limites do corpo, estendendo-se para
além da cútis até onde perdura uma sensação de unidade consigo mesmo.
Daí que muitas psicopatologias são patologias do espaço, como as fobias
espaciais, a sensação de permeabilidade ou porosidade, a catatonia. O
médico trabalha com o corpo reflexivo, objeto material, enquanto o
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fenomenólogo com o corpo pré-reflexivo, imerso no mundo da experiência


cotidiana. Ex. da moça que se arruma em frente ao espelho para um
passeio na cidade. Ao avaliar se está bonita, ela já está lá na cidade,
olhando-se através dos olhos dos que a olharão. Mostra, assim, que para a
Fenomenologia o corpo humano é primordialmente vivido (pré-reflexivo,
corpo que sou).

E da mesma forma, pensamos a relação do homem com outros homens. Os


conceitos psicológicos que tentam explicar a possibilidade de relação entre
duas pessoas partem do pressuposto de que são originalmente entidades
separadas. A experiência pré-reflexiva é contrária a essa separação, pois as
relações com outros são de proximidade, intimidade ou distância, sempre
situadas num acontecimento no mundo.
Ex: do homem que olha pelo buraco da fechadura.

O olhar de reprovação do outro, distancia-o daquilo que olhava. A


reprovação mostra que não compartilham o mesmo mundo, os mesmos
significados; aquilo que suscita a curiosidade de um é considerado errado
pelo outro.

A existência é sempre compartilhada. É coexistência. Conhecer-se (si mesmo)


é conhecer os outros que (se) é: “A compreensão de si fundamenta-se no
reconhecimento da coexistência, e ao mesmo tempo constitui-se como ponto
de partida para a compreensão do outro”

Lembrando que ‘coexistência’ é para Heidegger, o mesmo que


‘intersubjetividade’ é para Husserl.

Toda a realidade é uma construção compartilhada. O mundo é uma [...]


construção recíproca de significações, mediante a qual cada indivíduo recebe
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Fenomenologia e Temporalidade

A fenomenologia considera o aspecto temporal do sofrimento relatado.


Mostra que o ser humano é histórico e que seu passado nunca fica
registrado tal como aconteceu. O passado sempre reaparece à luz do
presente; “O passado que tem significância é o passado presente”. E assim,
não trabalhamos com o passado... pois se o passado ainda está presente, ele
não passou.

O futuro é o que está por vir, como está vindo ao nosso encontro agora;
sublinhando-se agora e vindo. O futuro está vindo em nossa direção.
Pensando no futuro, o tempo corre para nos encontrar e nós estamos aí, no
tempo que está vindo para nós. (Van Den Berg, 1955/1994, p. 78)

O futuro se entremeia com a vivência do presente e do passado. Nesta


ordem de ideias, o passado não é imutável, pois o significado de um
acontecimento se transforma juntamente com a história do indivíduo.
O futuro também atua, enquanto esperança ou receio. Nesta perspectiva,
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não é o passado que determina o presente, nem este o futuro. Ao


contrário, é o sentido da trajetória do ser que modifica a significação
do passado e do presente. (Augras, 1986, p. 31)

"Fenomenologia como atitude de não julgamento"

O ser humano não ‘projeta’, pois está intimamente entrelaçado em


experiências significativas com os objetos que encontra, influenciando-
se e revelando- -se mutuamente.

Não ‘converte’, pois a experiência humana é sempre corpórea; os


significados do que é vivenciado no mundo influenciam e revelam como
corporeamente alguém está. Quando estou imerso numa situação, meu
corpo está tão intimamente ligado a ela que ele desaparece.

Os pacientes não ‘transferem’, pois a relação entre as pessoas não é de


indivíduos isolados que etiquetam os outros com seus significados e
sentimentos; as relações são o compartilhar as coisas do mundo,
aproximando-se ou distanciando-se uns dos outros.

Não ‘mitifica’ pois não há um registro único do passado. O passado


advém do futuro, aparecendo à luz dos projetos. Ele é sempre mutável,
adquirindo aspectos daquele que a ele se reporta.

A Psicologia Fenomenológica aparece então como uma atitude de


observação dos fenômenos tal como são experienciados pré-
reflexivamente, isto é, antes que teorias sobre a relação sujeito-objeto, o
espaço, o corpo, as relações inter-humanas e o tempo interfiram no
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Para Van den Berg os adultos, à medida que vão se tornando teóricos,
perdem o acesso irrefletido, não mediado por explicações psicológicas, à
experiência vivida. Por isso ele é elogioso dos pintores, dos poetas e da
criança: são “fenomenologistas natos”.

O psicólogo fenomenológico ocupa o lugar de alguém que não julga o


paciente. A Psicologia Fenomenológica não é corretiva de
comportamentos desajustados ou equivocados.

É necessário que nos esforcemos para não cair em julgamentos dos


comportamentos daqueles que nos procuram, por mais diferentes de nós
que eles possam ser.

Por isso a importância de terapia para alunos de psicologia e


supervisionandos, pois assim conseguirão reconhecer quando a experiência
do outro convoca repreensões, críticas e julgamentos.

Alguns dos pressupostos atuais que caracterizam o ser-psicólogo


fenomenológico existencial: a compreensão da existência humana, o
cuidado com as teorizações e o contraponto à psicanálise.

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