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RESENHA CRÍTICA: “LIVRO - O EU DIVIDIDO – ESTUDO EXISTENCIAL DA

SANIDADE E DA LOUCURA”

Tiago de Brito Pires


Acadêmico do curso de Psicologia da
Faculdade de Imperatriz – Facimp
E-mail: adm.tiagopires@hotmail.com

“A experiência e comportamento que recebem o rótulo de esquizofrenia é uma estratégia especial que uma
pessoa inventa para viver uma situação insuportável (R. D. Laing)

Resumo

O objetivo desta resenha é apresentar a obra do Dr. Ronald Laing (1972), médico psiquiatra,
que a partir das correntes da psicanálise e do existencialismo-fenomenológico, procurou explicar a
loucura e o processo de enlouquecimento com o estudo de pessoas esquizoides e esquizofrênicas.
De forma conceitual e prática, através de seus casos clínicos, apresentou termos como
insegurança e segurança ontológica, absorção, implosão, split, petrificação e despersonalização. A
obra “O Eu dividido” (1972) vai contra os conceitos da psiquiatria ortodoxa que considera os
transtornos mentais como uma expressão de doenças orgânicas do cérebro.
Nas considerações finais, apresento conclusões resultantes da leitura, bem como
apontamentos de pontos inconclusivos e/ ou incompreensíveis da obra.

Palavras-chave: Esquizoides, esquizofrênicos, psicose, self, existencialismo, fenomenologia.

Introdução

A obra “O eu dividido – estudo existencial da sanidade e da loucura” trata-se de um trabalho


diferenciado em que se estuda pessoas esquizoides e esquizofrênicas, com o objetivo de deixar claro
a loucura e o processo de enlouquecimento. Destaca-se como diferencial da obra o fato de examinar
as formas de loucura dentro de uma escala existencial de referência. Utilizando-se desses termos
existenciais, o autor escreve numa linguagem simples, algumas formas de loucuras a partir das
experiências de seus casos clínicos. Para as conclusões de seus casos, destaca-se o uso da psicanálise,
numa visão existencial fenomenológica, sem efetivamente assumir compromisso por qualquer
filosofia existencial, verificando-se ao longo da obra pontos de divergências e influências com
grandes existencialistas como Sartre, Jaspers, Heidegger, entre outros.
A referida obra está dividida em três partes: A primeira parte, ao longo de três capítulos busca-
se a compreensão dos fundamentos existências-fenomenológicos para uma ciência das pessoas, além

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dos fenômenos existenciais-psicológicos para uma compreensão da psicose, encerrando essa primeira
parte, apresentando a conceitos da segurança e insegurança ontológica. Na segunda parte, concentra-
se a leitura, no entendimento do self, self encarnado e desencarnado, bem como o sistema de falso
self e a autoconsciência. Finaliza-se o livro com a terceira parte, em que se apresenta a evolução
psicótica, bem como o falso self no esquizofrênico.
Dr. Ronald Laing (1972), nasceu em Glasgow, Inglaterra, no ano de 1927, médico
psiquiátrico, trabalhou em diversas clínicas, atuando até sua morte como psicanalista independente.
Se destacou por sua abordagem inovadora no trato da doença mental, em especial a experiência da
psicose. Procurou associar as causas e tratamento à correntes existencialista, e, pelo fato de sua
abordagem se distanciar da Psiquiatria ortodoxa, foi considerado como “Antipsiquiatra”, embora
rejeitasse esse título, justificando que a etimologia da palavra ‘psiquiatria’ era “medicina da alma” e
isso era a psiquiatria que ele buscava resgatar dentro de sua abordagem.
Em toda sua história, Laing (1972) defendeu ideia de que os psiquiatras ortodoxos são os
principais responsáveis pela desumanização do paciente, lançando sobre eles, estigmas vistos até
hoje, ao invés de entrar no mundo desse paciente e compreender seu modo de encarar a realidade.

Desenvolvimento
A obra de “O Eu dividido” (1972), procura fazer uma apresentação existencial-
fenomenológica de pessoas esquizoides e esquizofrênicas.

“O termo esquizoide refere-se ao indivíduo cuja totalidade de experiência divide-se


em dois principais sentidos: em primeiro lugar, uma ruptura em seu relacionamento
com o mundo e, em segundo, uma ruptura na relação consigo mesmo” p. 15

Para uma ciência da pessoa esquizoide, é preciso entender que ela é incapaz de sentir-se “junto
com”, percebendo-se “dividida” como duas personalidades e experimentando assim angústia e
isolamento. Por esse motivo, o autor procurou na fenomenologia existencial a busca de conhecer a
experiência da pessoa com o seu mundo e sua relação consigo mesma.
Adiante, o autor justifica a inovação no enfoque existencial, afirmando que os termos
psiquiátricos utilizados continham o objetivo de estigmatizar ainda mais pacientes, representando um
homem isolado dos seus semelhantes e do mundo. Ou seja:

“(...) tais palavras são: mente e copo, psico e soma, psicológico e físico,
personalidade, self, organismo. Todos esses termos são abstratos Em vez
do elo original entre Eu e Você (...). p.17

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Diante disso, Laing (1972) afirma sua crença no a filosofia existencial, que procura combinar
a experiência pessoal em relação aos outros no mundo de cada um por meio de um termo que
signifique o todo.
(...) Em fenomenologia existencial, a existência em questão pode ser a
nossa, ou a do outro. Quando o outro é um paciente, a fenomenologia
existencial torna-se uma tentativa de reconstruí sua maneira de ver-se a si
mesmo em seu mundo (...) p.24

Ainda com críticas a termos psiquiátricos em uso, o autor inicia o segundo capítulo dessa
primeira parte, falando sobre a representação da psicose como perda de contato com a realidade, ou
falha no ajuste social ou biológico. Para ele é preciso repensar a forma implícita que se nomeia um
psicopata. Isso não quer dizer que ele está desconsiderando que essa pessoa seja realmente uma pessoa
que possa colocar ele e os outros em perigo e precise de cuidados médicos. Ele só considera que
existem pessoas sadias, que possuem mentes completamente doentia e que a sociedade não o
considera perigoso. Nisso Laing (1972) confessa ter dificuldades em ser psiquiatra, pois possui
dificuldades de encontrar sinais e sintomas de psicose em seus pacientes, lembrando-nos que se pode
considerar o comportamento do paciente como “sintoma” de uma “doença”, e pode-se ver também
um comportamento como uma expressão de sua existência. Afinal, a construção existencial-
fenomenológica é uma hipótese da maneira como o outro está sentindo e agindo. Como descobrir?
Ouvindo-o.
Para ouvi-lo é preciso entender a interpretação como função do relacionamento com o
paciente. Isso obriga a suspender o modo de ver “sintomas” de “doença”, agindo assim com
neutralidade, pois ao considerar as ações do paciente como “sinais” de “doença”, se dá uma imposição
das categorias de pensamento, eliminando uma margem aberta para possibilidades de compreensão.

(...) A arte de compreender no ser de um indivíduo, os aspectos a


que observamos como expressão de sua maneira de estar-no-
mundo, exige que relacionemos suas ações com sua maneira de
viver a situação em que se encontra conosco. p.33

Segundo Laing (1972), o terapeuta precisa ter versatilidade para encontrar uma visão estranha
e talvez alienada do mundo, assumindo suas possibilidades psicóticas sem renunciar à própria
sanidade, chegando à compreensão existencial do paciente. Essa compreensão ultrapassa os
conhecimentos intelectuais chegando ao sentimento do amor, pois para compreensão do é preciso
estar na posição de começar a “amá-lo” de forma eficaz, pois não se ama um aglomerado de “sinais
esquizofrênicos”. O autor afirma que é preciso conhecer o esquizofrênico, sem destruí-lo, afinal de

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contas, o que ele é determina a maneira considerável do terapeuta para com ele. A dificuldade do
estabelecimento de uma relação entre médico e paciente, diz muito mais sobre a personalidade do
médico, do que a psicopatologia do paciente.
O estabelecimento dessa relação, parte dos elementos básicos do “reconhecer que o outro é a
pessoal que ele julga ser” e “ele reconhece que eu sou a pessoa que julgo ser”. A divergência desses
elementos, após tentativas de vencê-las, sugere-se a loucura. Laing (1972), então conclui:

“(...) que a sanidade ou a psicose seja testada pelo grau de


conjunção ou disjunção entre duas pessoas, das quais uma é sadia
por consenso geral.” p.37

Dentro dessa relação de sadio e o psicopata, “um homem irreal” ao afirmar sua identidade está
expondo o desejo de se revelar e o desejo de ocultar-se, porém, esta exposição o torna vulnerável,
fazendo com que o “homem irreal” procure esconder-se, assumindo ações que não constituem seu
verdadeiro self. O conflito entre “selfs” motiva o surgimento de uma pessoa incompreensível,
restando a morte de sua “verdade” e a tentativa de comunicação dessa “verdade” traz para si o “ser”
louco. Nesse sentido, o esquizofrênico está desesperado, pois ou ele é deus ou ele é o demônio. A
compreensão a todo tempo da singularidade e diferenciação desse indivíduo, é uma necessidade do
terapeuta.
Para expor de modo mais preciso a natureza da investigação clínica, em que a pessoa consegue
perceber sua presença no mundo como uma pessoa viva e completa, Laing (1972) apresenta conceito
da segurança primária ontológica que é a ausência parcial ou total das convicções derivadas de uma
posição existencial. Uma pessoa ontologicamente insegura assume uma posição de refém de uma
constante ameaça, torna-se insegura de si, com dificuldades de enfrentar todos os riscos da vida com
m senso da própria realidade e identidade, enfrentando consequências como as três formas de
ansiedade: absorção, implosão e petrificação/despersonalização.
- ABSORÇÃO: Nela o indivíduo teme estabelecer relações com qualquer outra pessoa, na
possibilidade de perder a sua identidade; e para preservá-la, sob a pressão do temor de ser absorvido
na outra pessoa, isola-se (p. 46 a 48).
- IMPLOSÃO: Nesse tipo de ansiedade, o indivíduo se sente que vazio, embora ele deseje
preencher esse vazio, ele percebe qualquer contato com a realidade, como uma ameaça, pois teme
que o mundo venha a invadir “a sua realidade” (p. 48 a 49).
- PETRIFICAÇÃO e DESPERSONALIZAÇÃO: Nesse tipo de ansiedade, o indivíduo tem
ideia de ser “petrificado” por outra pessoa; o pensamento de ser parcialmente despersonalizado numa

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relação, enche-o de pavor e afasta-o dos relacionamentos, como uma tentativa para preservar a sua
identidade (p. 49 a 58)
Na parte II da obra, Dr. Laing (1972) relaciona a forma de relacionamento consigo mesmo
das pessoas inseguras ontologicamente. É demonstrando ao longo dessa segunda parte os conflitos
interiores e existenciais, esse processo é nominado de split, que é visto como uma tentativa de lidar
com a insegurança básica.
Laing (1973) convida todos nessa obra a reflexão nos conceitos básicos da situação humana e
a experienciação do corpo, ou seja, de como o paciente se vê em relação ao mundo, vejamos:
- SELF ENCARNADO: em circunstâncias comuns, a pessoa sente que o próprio corpo está
vivo, é real, substancial e sente-se a si mesma viva real e substancial.
- SELF DESENCARNADO: O indivíduo sente o próprio self mais ou menos separado ou
desligado do corpo.
- SELF CONSCIOUSNESS (Autoconsciência): Sugere no sentido comum do termo a
percepção de si mesmo e a percepção de si mesmo como objeto da observação de outra pessoa.
- FALSO SELF: É um modo de não ser a si mesmo.
Dr. Laing (1973) na tentativa de consolidar os conceitos apresentado, finaliza sua obra e
correlaciona-os com casos clínicos de esquizoides e esquizofrenia e alerta aos profissionais da área
de que na terapia a árdua tarefa se dá no encontro do self verdadeiro, o que leva ele a crer que é uma
possibilidade.

Considerações finais

O habitual olhar psiquiátrico ortodoxo não possui domínio sobre outras possibilidades da
patologia da psicose. É com base nisto que, Dr. Ronald Laing (1972) escreve sua obra “O eu dividido
- estudo existencial da sanidade e da loucura”, que objetiva dar uma nova concepção sobre o olhar
terapêutico da psiquiatria na compreensão da esquizoide e esquizofrenia a partir dos fundamentos
existenciais-fenomenológicos e da psicanálise, sendo considerado por muitos como “antipsiquiatra”,
ainda que rejeitasse esse título, sob a justificativa de que fazia psiquiatria no sentido etimológico da
palavra “médico da alma”.
Toda a obra é escrita a partir de casos clínicos de seus pacientes, apresentando conceitos
existenciais para a justificativa da tese aplicada. Termos como self, self encarnado, self desencarnado,
sua aplicabilidade cotidiana do paciente no relacionamento consigo mesmo e com o mundo, bem
como seus conflitos expõe uma possibilidade da compreensão da vulnerabilidade do paciente
portador de psicose, motivando profissionais de saúde mental para um acolhimento a partir da matriz
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compreensiva – existencial – fenomenológica no tratamento das psicoses. Laing (1972) alerta em sua
obra que as evoluções de certas psicoses estariam intrinsecamente ligadas à possibilidade do
indivíduo não ter atingido uma posição de segurança ontológica básica, fazendo com que o
esquizofrênico entre numa luta pela vida para não se perder no seu próprio self.
O livro escrito em 227 páginas ora propõe a aplicabilidade de um novo método terapêutico,
ora confunde-se como diário de bordo de seus casos clínicos, o que pode reduzir a importância do
valor metodológico apresentando. Apesar de apresentar o olhar fenomenológico existencial, a obra
se diverge em alguns momentos com obras de autores fenomenológicos consagrados, como
Kierkegaard, Jaspers, Heidegger, Sartre. Tal divergência é justificada e apresentada pelo próprio autor
no prefácio do livro. A tentativa de dar um novo olhar terapêutico sobre os pacientes psicóticos, reduz
a possibilidade terapêutica medicamentosa, induzindo em alguns momentos os leitores a uma
narrativa antipsiquiátrica, o que considero, que seria uma oportunidade do autor, que foi desperdiçada,
para complementar a multidisciplinaridade da psicopatologia.
Considero que, diante de rica leitura e contribuição para o campo de saúde mental a obra se
difere do olhar ortodoxo existente no tratamento das psicoses e possibilita que outras correntes
terapêuticas possam debater o assunto sem reduzir apenas ao campo medicina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAING, Ronald David, 1927 – O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. Tradução de
Áurea Brito Weissemberg. Petrópolis, 4ª edição, Editora Vozes, 1982.
BIOGRAFIA DE RONALD LAING. In : Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_Laing. Acesso em 23 /04/2021

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