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Curso: Diagnóstico Psicanalítico EAD – Saulo Durso Ferreira

Aula 2 – Níveis de organização da personalidade


Classificar é um recurso muito importante em Diagnóstico, mas é preciso tomar
cuidado em não reduzir uma pessoa à uma classificação, coisas do tipo: “o que
fazer com um borderline”, ou “como intervir num psicopata”. Utilizar a
classificação dessa maneira é uma forma de estigmatizar, uma forma de
“coisificar” e inclusive pode funcionar como estratégia defensiva do psicólogo ou
psicanalista. Diversas vezes quando me pedem orientações para um primeiro
atendimento eu sempre digo: vá lá e atenda. Vá ser surpreendido etc. Algo que
em abordagem winnicottiana seria se colocar no lugar de “espátula” e se deixar
usar. Ou ainda, uma postura orientada por Freud em seus estudos sobre a
técnica, de que cada paciente é uma nova psicanálise. O diagnóstico é um
“norte”, e ainda assim nunca fechado, pode ser revisto a qualquer momento, pois
isso inclusive evita uma situação em que o “psi” conduza o processo para afirmar
seu ponto de vista. Fazemos classificações em todas as áreas da vida e de
nossa realidade, nosso pensamento é classificatório e julgador, e usamos a
classificação para aprender. A classificação pode ser, entre outras coisas, uma
forma de proteger tanto o psi quanto o paciente, como por exemplo: um paciente
com uma estruturação psicótica suporta determinados tipos de intervenção,
enquanto outro, numa estruturação neurótica suporta outro tipo. Cada pessoa
que atendemos é única, com história única, mas a forma que ela apresenta seus
conflitos e questões, ou como apreendem da realidade pode se enquadrar em
“modos de funcionamento”, etc. É o que chamo da relação universal-pessoal.
É importante o universal como forma do sujeito ser incluído num grupo do tipo
“outras pessoas já sofreram com isso”, uma forma inclusive de tranquilizar. Mas
ao mesmo tempo, dentro do universal tem seu modo particular e subjetivo.
Quando alguém me procura e diz: sou borderline ou tenho TOC, eu pergunto,
me conte como é isso, ou me conte o que você quer dizer quando se diz
borderline. Eu procuro sempre incluir a pessoa. Não atendo sintomas, ou
transtornos! Alguém que diz: “procuro terapia pois sou ansiosa”, eu não vou
trabalhar com a ansiedade, eu quero saber a articulação dessa ansiedade com
a história da pessoa.
Algumas classificações
Foucault em “Doença mental e psicologia” apresenta uma classificação que foi
muito utilizada pela psiquiatria e que inclusive se manteve por um certo período
nas classificações psicanalíticas. Foucault utiliza a divisão neurose e psicose:
Na Neurose existe um comprometimento parcial da personalidade.
Na Psicose existe um comprometimento global da personalidade.
Esse tipo de classificação é apresentada por Foucault em sua forma descritiva,
e depois ele apresenta a importância de Freud com suas inferências teóricas e
clínicas para “explicar” as diversas características dessas personalidades.

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Podemos verificar algumas dessas inferências na citação a seguir do livro da
McWilliams:
“A distinção neurótico versus psicótico teve importantes implicações clínicas. A
essência dessas implicações, consideradas à luz do modelo estrutural de Freud,
era que a terapia com uma pessoa neurótica deveria envolver o enfraquecimento
de duas defesas e a obtenção do acesso ao id de modo que as energias
pudessem ser liberadas para uma atividade mais construtiva. Entretanto, a
terapia com uma pessoa psicótica deveria ter como foco o fortalecimento das
defesas, em busca da cobertura das preocupações primitivas, influenciando
realisticamente circunstâncias de angústia de forma que elas se tornem menos
negativas, encorajando o teste da realidade e empurrando o id de volta para o
inconsciente. Era como se a pessoa neurótica fosse uma panela no fogão com
a tampa muito fechada, fazendo com que a tarefa do terapeuta fosse deixar que
algum vapor escapasse, enquanto a panela do psicótico seria aquela que está
fervendo, solicitando que o terapeuta retire a tampa e baixe o fogo. “(p. 67)
Lacan localizou na obra de Freud três tipos de estratégias para os sujeitos
lidarem com a castração, e cada uma configuraria uma estrutura clínica: neurose,
psicose e perversão. Esse modelo até hoje é utilizado na escola francesa, porém
não trataremos dele aqui, seguiremos outro caminho.
Diagnóstico da Psicologia do Ego: neurose sintomática; caráter neurótico e
psicose.
Aqui continuamos da divisão neurose-psicose, porém temos a ampliação, ou
uma divisão na divisão, sobre as neuroses e devemos isso a Reich. No livro
“Análise do caráter”, Reich faz um resumo da teoria e clínica de Freud até então
e aponta algo muito importante: que o trabalho de eliminação de sintomas não
encerra o trabalho psicanalítico. De acordo com Reich, com as experiencias de
prazer e desprazer, o “ego” modifica sua estrutura, criando um verdadeiro
sistema de couraças. Essas se funcionarem de maneira adaptada (em situações
de desprazer se contraem e em situações de prazer relaxam) mantem o sujeito
num estado psíquico saudável, porém, quando está desadaptada funciona de
forma patológica. Reich descreve forma não adaptadas de couraça, ou caráter,
como por exemplo o caráter histérico, compulsivo etc. Assim, não bastaria a
eliminação de sintomas, era necessário fazer uma análise do caráter.
A diferença entre neurose e psicose já desenvolvemos um pouco anteriormente,
o importante aqui é distinguir a diferença de uma neurose sintomática de um
caráter neurótico. De forma muito resumida podemos colocar da seguinte forma:
Neurose sintomática = ego distônico
Caráter neurótico = ego sintônico
Ou seja, um é estranho ao ego outro não. Ou ainda, um é sentido como estranho
para a pessoa (sintoma), algo que ela quer se livrar. E o segundo a pessoa sente
como o seu “jeitão” desde sempre. Essa estranheza do sintoma faz com que seja
mais fácil de se trabalhar em análise, mais estimulante para ambos psi e

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paciente) e com resultados mais claros. Confira algumas das perguntas feitas
por terapeutas para delimitar se a questão do paciente é sintomática ou de
caráter na página 68.
Essa divisão aparece de forma “disfarçada” no DSM, em que os transtornos do
Eixo I equivalem aos “ego distonicos” e os transtornos do Eixo 2, os transtornos
da personalidade, correspondem ao tipo “caráter neurótico”.
O Eixo 2 é um importante aliado na categorização de características gerais. O
agrupamento é feito da seguinte maneira:
Grupo A: Esquisitos e Persecutórios
1- Paranóide
2- Esquizíde
3- Esquizotípico
Grupo B: Dramáticos e Manipuladores
1- Narcisista
2- Borderline
3- Histriônico
4- Borderline
Grupo C: Inibidos e Ansiosos
1- Obsessivo
2- Esquiva (Evitante)
3- Dependente
Resumindo, aqui temos a seguinte divisão:
Neurose Sintomática / Caráter Neurótico / Psicose
Diagnostico das relações de objeto: delineamento das condições borderline
Apesar da “tradição” em classificar os pacientes em neurose e psicose, alguns
quadros pareciam não se encaixar completamente em uma ou em outra.
Podemos inclusive encontrar isso em Freud, com o caso do Homem dos Lobos,
que, apesar de Freud cuidar do aspecto “obsessivo” do Homem dos lobos,
claramente a questão de seu sofrimento não se limitava a isso. Alguns
consideram que esse foi o caso que colocou em crise o diagnóstico standard e
rígido em estruturas. Esses casos que não se enquadravam foram aparecendo
cada vez mais e “no meio do século XX (...) Adolph Stein notou que pessoas com
traços que ele chamou de borderline pioravam ao invés de melhorarem; assim
como quadros chamados “como se” e narcisistas” (McWilliams, p. 72).
A compreensão por esses tipos de pacientes, o “borderline” cada vez mais foi se
ampliando, e logo passaram a ser caracterizados por uma “estabilidade em suas
instabilidades” e ainda “eram muito sãos para serem considerados loucos, e
muito loucos para serem considerados sãos”. (p. 72) Outra característica
importante a ser destacada aqui é a utilização de defesas primitivas sem uma
total perda do teste de realidade (p. 73)
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Psicose, neurose e borderline
“(...)Indivíduos em um estado psicótico pareciam fixados em um nível não
individualizado no qual não conseguiam diferenciar o que estava em seu interior
e o que estava fora deles. Já as pessoas em condições borderline eram descritas
como fixadas em lutas diádicas entre um total entrosamento (o qual temem que
possa obliterar suas identidades) e um completo isolamento (que identificam
com abandono traumático). E, por fim, aqueles com dificuldades neuróticas eram
entendidos como tendo alcançado a separação e a individuação, porém com
conflitos entre, por exemplo, coisas que desejavam e coisas que temiam, sendo
o protótipo disso o drama edipiano. Esse modo de pensar fez sentido diante de
tantos quebra-cabeças e desafios clínicos. Ele focalizava os motivos pelos quais
uma mulher com fobias parecia estar agarrada à realidade por um fio, enquanto
uma segunda estava bizarramente estável em sua instabilidade, e, ainda, uma
terceira era um protótipo de saúde mental, apesar de ter fobias.” (p. 74) – Para
completar veja a citação no último parágrafo da página 75).
Estrutura em nível neurótico
• Um algo grau de capacidade de funcionamento apesar do sofrimento
emocional.
• Defesas mais maduras, principalmente repressão.
• Senso integrado de identidade.
• Conseguem delinear seu comportamento em geral, seus valores, gostos,
hábitos, virtudes, etc.
• Em contato sólido com grande parte da realidade.
- Confira os exemplos da página 78.
Estrutura em nível psicótico
• Em um nível extremo as pessoas estão mais desesperadas e
desorganizadas.
• Geralmente expressam alucinações, ilusões de pensamento, ideias de
referência, forma de pensar ilógica, etc.
• Defesas primitivas como isolamento, negação, controle onipotente,
idealização, desprezo primitivo, projeção, etc.
• Sentem um pavor imobilizante de seu fantasioso potencial super-humano
para a destruição.
• Como posso saber se existo? – pergunta relativamente comum.
• Crenças místicas não são estranhas ao ego.
• Dificuldade para colocar seus conflitos psicológicos em perspectivas.
Falta-lhes o funcionamento reflexivo.
• Insegurança ontológica.
• Produção de contratransferência calorosa do tipo proteção paternal.
• Maravilhosos em seu apego e assustadores em suas necessidades.
• Acessam realidades profundamente tristes, que a maioria de nós prefere
ignorar, de uma forma que não suportaríamos.

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• Enxergam nossas falhas e limitações com uma clareza assustadora.
Organização de personalidade borderline
• Uso de defesas primitivas, mas existe uma diferença com o paciente
psicótico: quando o terapeuta faz uma intervenção relativa a uma
experiencia primitiva, o paciente borderline pode corresponder ao menos
temporariamente.
• Provocação de contratransferência principalmente pelo uso da
identificação projetiva (como por exemplo na desvalorização do
terapeuta).
• Desorientação ao descrever sua personalidade e superficialidade na
descrição de outro (como forma de desdenhar do interesse do terapeuta).
• Apegados à insegurança.
• Problemas com tolerância e autocontrole, rapidamente ficam irritados em
situações nas quais outros sentiriam vergonha, inveja, tristeza ou outros
afetos.
• Não existe o terror existencial como há nos esquizofrênicos.
• A capacidade de alguém na faixa borderline de reconhecer sua própria
patologia é bastante limitada.
• Geralmente chegam à terapia com queixas como ataque de pânico,
depressão, estresse, por mandato, etc.
• Busca desesperadamente vínculo e uma vez que o tem faz de tudo para
romper e reviver uma “rejeição”.
Caligor, Kernberg e Clarkin (2008) consideram a importância do “Borderline” tão
grande que a colocam como uma das grandes estruturas da personalidade,
como podemos verificar na tabela a seguir:

Níveis de organização Da Personalidade


Normal Neurótico Borderline
Identidade Consolidada Consolidada Pouco Consolidada
Defesas Predominam Predominantemente Predominantemente
maduras repressão dissociação
Rigidez Adaptação flexível Rigidez Rigidez grave
Teste de realidade Intacto e estável Intacto e estável Intacto mas que se
deteriora

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E ainda:

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