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Curso Diagnóstico Psicanalítico – Aula 9: Personalidades Masoquistas

Saulo Durso Ferreira

A palavra “masoquismo” foi criada por R. V. Krafft-Ebing, para descrever casos


de pessoas que buscavam experiências de prazer através do sofrimento
(recomendo a leitura de seu livro: “Psychopathia sexualis”). Krafft-Ebing retira
esse nome do escritor “Sacher-Masoch” no livro “A Vênus das peles”. Freud
segue na utilização do termo no livro “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”, mas abordará de forma mais aprofundada no trabalho “As
pulsões e seus destinos”, que em linhas gerais temos:

A pulsão e seus destinos (1915)

Um conceito básico, provisoriamente obscuro, mas que não dispensamos na


psicologia, é a pulsão (trieb). A pulsão seria um estímulo para a psique – mas
existem outros estímulos para a psique que não as pulsões. O estímulo pulsional
não provém do mundo exterior, mas do interior do próprio organismo. A pulsão
jamais atua como força momentânea de impacto, mas sempre como uma força
constante. Desde que não ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma fuga
pode servir contra ele. A pulsão nos aparece como um conceito-limite entre
somático e o psíquico, como representante psíquico dos estímulos oriundos do
interior do corpo e que atingem a alma. (p. 53)

Elementos da pulsão: impulso, meta, objeto e fonte (p. 57)

a) Impulso: seu elemento motor, a soma de força.


b) Meta: é sempre a satisfação – diversos caminhos podem conduzir à mesma
meta final, de modo que uma pulsão pode ter várias metas próximas e
intermediárias.
c) Objeto: é aquele com o qual ou pelo qual a pulsão pode alcançar a sua meta. É
o que mais varia na pulsão.
d) Fonte: se compreende o processo somático num órgão ou parte do corpo, cujo
estímulo é representado na psique pelo estímulo.

Caminhos da pulsão: (p. 64)


- A reversão ao contrário
- Voltar-se contra a própria pessoa
- A repressão
- A sublimação

Reversão ao contrário – exemplos:


Sadismo em Masoquismo
Voyeurismo em Exibicionismo

Na reversão muda-se a meta, de ativa para passiva: o atormentador (sádico) se


torna o atormentado (masoquista); o que olha (voyeur) se torna o que se exibe
(exibicionista)

Volta contra a própria pessoa


Masoquismo é o Sadismo voltado contra o próprio Eu
Mudança de objeto com meta inalterada
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Quanto ao par de opostos sadismo-masoquismo, o processo pode ser
apresentado da seguinte forma: (p. 66)
a) O sadismo consiste em prática de violência, exercício de poder tendo uma outra
pessoa como objeto.
b) Esse objeto é abandonado e substituído pela própria pessoa. Com a volta contra
a própria pessoa também se realiza a transformação da meta pulsional ativa em
passiva.
c) Novamente se busca uma outra pessoa como objeto, a qual, em virtude da
transformação da meta ocorrida, tem que assumir o papel de sujeito.

O caso C é o comumente se chama de masoquismo. Também com ele a


satisfação se dá pela via original, o Eu passivo se colocando em fantasia no seu
lugar anterior, agora deixado ao novo sujeito (...) não parece ocorrer um
masoquismo original, que não surja a partir do sadismo.
O processo quando para no estágio B, caracteriza a pulsão sádica da neurose
obsessiva (...) a ânsia de atormentar se torna tormento de si mesmo, castigo de
si, e não masoquismo.
No sadismo, além da humilhação, do subjugamento, a inflição de dor. Mas a
psicanálise parece mostrar que infligir dores não se relaciona com as originais
ações pulsionais. A criança sádica não leva em conta a imposição de dor e não
tem esse propósito. Uma vez efetuada a transformação em masoquismo, porém,
as dores se prestam muito bem para uma meta masoquista passiva, pois temos
todas as razões para supor que também as sensações dolorosas, como outras
sensações de desprazer, invadem a excitação sexual e produz um estado
prazeroso, em virtude do qual se admite também o desprazer da dor. Quando
sentir dores se torna uma meta masoquista, pode surgir também,
retroativamente, a meta sádica de infligir dores, que o próprio indivíduo, ao
suscitá-la em outros, frui masoquisticamente na identificação com o objeto
sofredor. Naturalmente se frui, em ambos os casos, não a dor mesma, mas a
excitação sexual que a acompanha, o que é particularmente cômodo na posição
do sádico. Portanto, fruir dor seria uma meta originalmente masoquista, que no
entanto só se tornaria uma meta pulsional em alguém originalmente sádico.

Esse texto está localizado entre “Introdução ao narcisismo” e “Luto e


melancolia”. E é possível localizar como esse textos se complementam, no
“Introdução” a ideia de investimento libidinal; no “Pulsão” um dos caminhos da
pulsão no voltar-se contra a própria pessoa e no “Luto” o modelo de um
sadismo voltado contra o próprio Eu nos casos de Melancolia. Ainda é possível
acrescentar o texto de 1920 “Além do princípio do prazer” e finalizar com “O
problema econômico do masoquismo”.

A leitura de Nancy McWilliams

Pessoas de personalidade “masoquistas” ou “autodestrutivas” são suas piores


inimigas. Esse tipo de personalidade, ou até mesmo esse tipo de
comportamento, preocupou Freud em seu tempo, pois isso contradisse uma de
suas máximas que o psiquismo funciona a partir do “princípio do prazer”, ou seja,
buscar prazer e se afasta do desprazer.
Freud faz uma distinção entre um padrão geral de sofrimento para atingir algum
objetivo do “significado estritamente sexual do masoquismo”, criando o nome
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“masoquismo moral” (p. 292). Reich foi outro autor fundamental para a
compreensão do masoquismo, descrevendo inclusive um tipo de caráter
específico (caráter masoquista) que não só busca sofrimento e tem atitudes
autodestrutitvas, como também possuem um desejo inconsciente de torturar os
outros com a própria dor (retomando Freud no texto As pulsões e seus destinos,
o Masoquista sentiria prazer no sadismo, e o Sádico na identificação com o lugar
do Masoquista).
Nos tempos atuais, o masoquismo pode assumir diversas leituras e
interpretações, desde aspectos saudáveis de altruísmo, passando por
workaholics e chegando até personalidades psicóticas autodestrutivas.
McWilliams adota o termo masoquismo de uma forma específica, de acordo com
a autora “o termo masoquismo, do modo como é usado pelos psicanalistas, não
tem conotação de um amor pela dor e pelo sofrimento. A pessoa que se
comporta de forma masoquista enfrenta dor e sofrimento na esperança,
consciente ou inconsciente, de alcançar algum bem maior”. Essa posição de
McWilliams é claramente influenciada por Reich, pois ele, diferentemente de
Freud que considerava o Masoquismo algo que contradizia o Princípio do Prazer,
mantinha a dinâmica masoquista dentro da busca pelo prazer, no entanto
encouraçado dentro de defesas rígidas que impossibilitavam a descarga libidinal,
assim, cortes, autoflagelações etc, eram tentativas de romper a pele e possibilitar
a circulação da libido.
Os masoquistas variam de formas anaclíticas e introjetivos:
a) Anaclíticos - masoquistas relacionais: suas ações masoquistas resultam de
manter um apego a qualquer custo.
b) Introjetivos - masoquistas morais: que organizam sua autoestima em torno da
própria capacidade de tolerar dores e sacrifícios.

Pulsão, afeto e temperamento

Existem poucos estudos sobre as origens de uma personalidade masoquista. Da


mesma forma que Freud descreve um narcisismo primário em TODAS as
personalidades e que difere de uma Personalidade Narcisista, existe também um
Masoquismo Primário em TODAS as personalidades e que difere de uma
Personalidade Masoquista. McWilliams traz uma hipótese, com relação a origem
dessa personalidade, em “traumas e maus-tratos na infância” e que “causam
efeitos diferentes em crianças de gêneros diferentes: meninas abusadas tendem
a desenvolver um padrão masoquista, enquanto meninos na mesma situação
tendem a se identificar com o agressor e a se desenvolver em uma direção mais
sádica” (p. 296).
O mundo afetivo da pessoa masoquista é semelhante ao da pessoa depressiva
(mesmo princípio dinâmico, como vimos em Luto e melancolia), porém: “tristeza
consciente e sentimentos de culpa inconscientes são comuns, mas, além disso,
a maioria dos masoquistas facilmente sentem raiva, ressentimento e mesmo
indignação em relação ao próprio comportamento” (p. 296).

Processos defensivos e adaptativos

As defesas também são parecidas com aquelas utilizadas por pessoas


depressivas. A introjeção e a idealização. Na introjeção atribuem a si mesmas
defeitos dos outros, a fim de manter esse outro de forma idealizada. E ao mesmo
tempo a idealização serve para manter a pessoa sempre aquém de uma imagem
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inalcançável de si mesma. Além disso usam o acting out em suas ações
autodestrutivas (como forma de gerenciar a angústia vivida numa experiência
traumática). Como dito anteriormente, esse padrão de sofrer numa forma
workaholic, por exemplo, é uma maneira de negar o sofrimento e “apenas
continuar trabalhando sem parar”.

Padrões relacionais

Uma das definições mais precisas na diferenciação das personalidades


masoquistas em relação às depressivas foi feita por Emmanuel Hammer, que
afirma: “um masoquista é uma pessoa depressiva que ainda tem esperança”
(McWilliams, p. 300), ou seja, ainda não desistiram de ser amado. Ainda que
envolva pais violentos, “qualquer atenção dos pais é mais segura do que uma
negligência” (idem). Esther Menaker delimita da seguinte maneira: “por favor,
não me deixe; vou me ferir em sua ausência” (idem). Ann Rasmussen considera
que essas pessoas têm mais medo do abandono do que da dor ou da morte:
“Quando separadas de seus espancadores, muitas sentem um desespero tão
agudo que sucumbem à depressão maior e mal conseguem funcionar (...) Muitas
se descrevem como incapazes de se alimentar, de sair da cama e de interagir
com outras pessoas.” (p. 301).
McWilliams também traz a hipótese de pessoas que introjetaram padrões
relacionais em que estão associados apego com dor; e também situações de
pessoas que enfrentam uma grande dor em algum momento da vida de forma
elegante e controlada e, gratificadas pelo reconhecimento dos outros ao fazer
isso, se mantém num padrão masoquista de sofrimento silencioso.
Por fim, neste ítem, é importante destacar que, uma pessoa de personalidade
masoquista não necessariamente manterá esse padrão em situações sexuais,
pelo contrário, muitas vezes essa via do sofrimento ocorre na vida somente no
dia a dia.

O self masoquista

O self masoquista é semelhante ao self depressivo, mas existe aqui aquele


diferencial da “esperança” e também de um certo triunfo sobre o outro que
causou sofrimento, como aparece em alguns relatos de situações de abuso em
que a pessoa abusada sorri de forma sádica ao descrever seu algoz perdendo
forças, ou se descontrolando na tentativa de machucá-la.
De forma contrária aos depressivo, que preferem o isolamento, os masoquistas
muitas vezes se comportam de forma mais paranoica (projetiva), porém
precisam de alguém “sempre a mão para ser o depósito de suas inclinações
sádicas rejeitadas” (p. 3040).

Transferência e contratransferência

A ideia chave da transferência é: “clientes masoquistas tendem a reencenar com


o terapeuta o drama da criança que precisa de cuidados mas só os recebe se
demonstra sofrimento” (p. 304) e com isso acaba por levar a dois tipos de
contratransferência: contramasoquismo e sadismo:

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Contramasoquismo: terapeuta ser generoso em excesso tentando convencer o
paciente de seu sofrimento é apreciado e de que pode confiar que não será
atacado.
Sadismo: se essa forma generosa não causa efeito algum o terapeuta pode
perceber sentimentos de irritação estranhos ao ego, seguidos de retaliação
sádica.

Diagnóstico diferencial

Não se esqueça que, assim como o “narcisismo” faz parte do desenvolvimento


normal, o masoquismo também e com isso suas características estão presentes
em diversas personalidades. No entanto McWilliams coloca que duas
personalidades são comumente confundidas com o masoquista: o depressivo e
o dissociativo:

Depressivas: como dito anteriormente, o masoquista é um depressivo com


esperança, isso implica em diferenças de tratamento: a pessoa depressiva
precisa aprender que o terapeuta não irá abandoná-la, rejeitá-la, julgá-la e que
estará disponível quando ela precisar. A pessoa masoquista precisa descobri a
autoconfiança, e não o sofrimento desamparado e que seu terapeuta não tem
interesse particular em detalhes de seu atual tormento. Se tratar uma pessoa
depressiva como masoquista, isso pode provocar um aumento da depressão ou
até mesmo suicídio, se tratar um masoquista como depressiva, poderá reforçar
a autodestrutividade do paciente.

Dissociativo
A confusão com esse tipo de personalidade se refere principalmente aos
episódios de autoflagelo, em que personalidades dissociativas fazem tais atos
sem consciência alguma e as masoquistas tem maior consciência. Na primeira
“não se recordam que o fizeram” na segunda se recordam ou reduzem a
importância.

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