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O Paes
A de
NAPaulaLISTA
Resumo
O objetivo do artigo é evidenciar as relações entre o masoquismo originário e a histeria, argu-
mentando que os sintomas histéricos são uma reencenação do sexual incompreendido, a partir
da experiência primária do masoquismo, que remetem ao enigma do feminino. Para isso, serão
retomados escritos freudianos sobre a histeria, o problema econômico do masoquismo e as ela-
borações lacanianas sobre o objeto a e o gozo, empreendendo um diálogo com Emilse Naves,
que sustenta uma relação entre histeria e pulsão de morte, de modo a resgatar a primazia do
sexual e de Eros.
Vale a pena frisar que Freud aponta originário. Pode-se especular que essa
o masoquismo erógeno como a referência compensação regula o equilíbrio entre
primordial para os masoquismos moral prazer-desprazer: a elevação da tensão,
e feminino. Além disso, ele considera o causadora do desprazer, é compensada
fenômeno problemático e do domínio do com um rebaixamento dela.
incompreensível, referindo-se às bases No entanto, Freud ([1924] 1996)
biológicas e constitucionais do sujeito, sustenta que uma parte dessa tensão fica
situando-o no campo do pulsional e do retida na forma de masoquismo erógeno,
autoerotismo, pré-genital e pré-simbólico, para preservar a pulsão de vida, uma vez
podendo ser categorizado como um regis- que um rebaixamento total dela levaria ao
tro do real lacaniano. princípio do Nirvana, que está a serviço
Freud ([1924] 1996, p. 180) aponta da pulsão de morte. De acordo com Fortes
que as fantasias masoquistas colocam o (2007), o masoquismo originário seria, as-
sujeito em uma posição feminina, que sim, um remanescente do momento desse
para ele implica passividade, como nas encontro originário entre a pulsão de vida
situações “ser castrado, ou ser copulado, e a pulsão de morte.
ou dar à luz a um bebê”. Isso porque o Esse remanescente é correlato do ob-
masoquismo erógeno acompanha todas jeto a lacaniano, pois no registro do real
as fases de desenvolvimento da libido, é um resto que expressa uma ausência
derivando seus revestimentos psíquicos – a perda de um gozo absoluto (Lacan,
cambiantes: [1962-1963] 2005), que seria a extinção
da tensão causada pela excitação e a ren-
O medo de ser devorado pelo animal to- dição à pulsão de morte, ou, em outras
têmico (o pai) origina-se da organização palavras, um gozo inassimilável que não
oral primitiva; o desejo de ser espancado pode ser simbolizado e que inaugura uma
pelo pai provém da fase anal-sádica falta produtora de sentidos.
que a segue; a castração, embora seja O masoquismo feminino baseia-se in-
posteriormente rejeitada, ingressa no teiramente no masoquismo erógeno, mas
conteúdo das fantasias masoquistas como o segundo está no campo do pulsional e
um precipitado do estádio de organiza- do autoerotismo, e o primeiro, assim como
ção fálica e da organização genital final o masoquismo moral, no campo do laço
surgem, naturalmente, as situações de social, uma vez que é figura da submissão
ser copulado e dar nascimento, que são e da culpabilidade. No entanto, enquanto
características da feminilidade (Freud, o masoquismo moral é “[...] uma espécie
[1924] 1996, p. 182). de obediência irrestrita às injunções do ou-
tro social”, o masoquismo feminino “[...]
Logo, o masoquismo faz referência ao se materializa no relacionamento com o
sexual e estaria, assim, ligado à construção outro, ao qual o sujeito se oferece com
da vida pulsional e aos processos de exci- o objetivo de ser aviltado e humilhado”.
tação mais primitivos, cuja tensão causada Em outras palavras, o masoquismo moral
no organismo é percebida originariamente aparece sob forma de injunções da cultura,
como desprazer. Na tentativa de reduzir e o masoquismo feminino ocorre diante
essa tensão, uma parte dessa energia é do objeto amoroso, “[...] pois aqui se faz
colocada para fora a serviço de uma função necessária a encenação masoquista com o
sexual ativa, que é o sadismo, mas a outra outro” (Fortes, 2007, p. 39).
parte permanece libidinalmente presa no O que busco evidenciar é uma identi-
organismo, caracterizando o masoquis- dade entre o processo que funda o maso-
mo erógeno, também conhecido como quismo originário e o mecanismo da histe-
96 Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 95 – 102 • jun. 2019
Ana Paula Paes de Paula
coloca como objeto causa de desejo, uma Assim, as dores físicas na histeria são a
vez que não é capaz de nomear seu próprio representação de um intolerável psíquico
desejo: goza dos próprios sintomas, pois e na minha argumentação isso remete ao
o desejo real seria o do gozo enigmático, masoquismo originário, que é algo que a
“gozo que não seja não-todo”, que não história do corpo foi incapaz de formular
consegue alcançar. e converteu em sintoma.
O gozo fálico equivale à libido nar- Para Emilse Naves (2007), a histeria
císica, mas na histeria há uma falha não remete a uma defesa contra um gozo
identificatória (Freud, [1921] 1996): na sexual intolerável, mas à impossibilidade
identificação com o pai, busca-se como de se defender da pulsão de morte, de
referencial o falo ao qual nunca vai se modo que a autora procura deslocar um
ter acesso, de modo que [...] na impossi- pouco a explicação da histeria do sexual
bilidade de se sustentar nesse referencial para o pulsional, cedendo à ideia de que
simbólico, abre-se espaço para emergência Freud sustenta a ubiquidade da pulsão de
de um gozo puramente pulsional que retor- morte.
na sobre o próprio corpo (Naves, 2007, p. Nas palavras da autora:
196). Devido a essa falha identificatória,
o corpo narcísico não é totalmente cons- Ao considerarmos na histeria, a primazia
tituído, abrindo espaço para regressão ao do conflito e defesa de representações
corpo autoerótico, que está no domínio sexuais, não estaremos deixando de
das pulsões parciais. observar que o desejo sexual na histeria
Desse modo, qualquer experiência de opera uma outra modalidade, que é modo
perda e de incompletude para os histéricos de atualizar a insistente emergência da
remete a essa ferida narcísica, o que leva pulsão de morte nas suas mais variadas
o histérico a buscar tanto a perfeição do formas? (Naves, 2007, p. 46).
corpo (daí as histerias pós-modernas en-
volverem cirurgias plásticas e tratamentos Diferentemente de Naves (2007) e
estéticos, adição em exercícios físicos e baseando-me em Lacan ([1975] 2008),
compras, distúrbios alimentares), quanto retomo a primazia freudiana do sexual
a reparação dessa falha identificatória. nas neuroses, sustentando que a histeria
Assim, a falta no Outro causa no his- é uma reação ao gozo sexual enigmático,
térico uma tentativa desesperada de suprir “o gozo que não seja não-todo”, sem re-
essa lacuna, porque embora o referencial presentação, que aponta para o próprio
paterno na histeria seja insuficiente en- enigma do feminino, para o problema da
quanto sinal de identificação simbólica, identidade sexual.
ele se posiciona como o seu eu ideal, não Os fundamentos do funcionamento
castrado, possuidor do falo. histérico como a insatisfação, a insacia-
Esse ferimento narcísico na histeria faz bilidade e a frustração de fato traduzem
o sujeito se colocar na posição de objeto, e a busca por uma não resposta, mas con-
a dor histérica é análoga à dor provocada trariamente a Naves (2007), defendo
pelo masoquismo originário: que isso remete não necessariamente
ao gozo mortífero, mas ao enigma do
[...] a dor é a expressão de um ferimento feminino: o histérico, paradoxalmente,
narcísico que faz do corpo uma tentativa tem horror à passividade implicada no
de resgatar um resto de gozo ao qual o su- feminino, mas se oferece como objeto
jeito não pode renunciar, justamente por de desejo, renunciando ao próprio de-
ter sido incapaz de representá-lo (Naves, sejo, para ter acesso ao falo, realizando a
2007, p. 200). fantasia masculina.
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A histeria, o desejo e o enigma do feminino
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