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CLÍ N ICA E FOR M AÇÃOAnaDPaula

O Paes
A de
NAPaulaLISTA

A histeria, o desejo e o enigma do feminino


Ana Paula Paes de Paula

Resumo
O objetivo do artigo é evidenciar as relações entre o masoquismo originário e a histeria, argu-
mentando que os sintomas histéricos são uma reencenação do sexual incompreendido, a partir
da experiência primária do masoquismo, que remetem ao enigma do feminino. Para isso, serão
retomados escritos freudianos sobre a histeria, o problema econômico do masoquismo e as ela-
borações lacanianas sobre o objeto a e o gozo, empreendendo um diálogo com Emilse Naves,
que sustenta uma relação entre histeria e pulsão de morte, de modo a resgatar a primazia do
sexual e de Eros.

Palavras-chave: Feminino, Histeria, Desejo.

Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado


Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado
(Vinícius de Moraes)

Neste texto, busco evidenciar as relações norma de comportamento (behavior).


entre o masoquismo originário e a histeria, Podemos, por conseguinte, distinguir um
argumentando que os sintomas histéricos masoquismo erógeno, um masoquismo
são uma reencenação do sexual incom- feminino e um masoquismo moral. O pri-
preendido, inscrito no corpo a partir da meiro masoquismo, o erógeno – prazer no
experiência primária do masoquismo, que sofrimento – jaz ao fundo das outras duas
remetem ao enigma do feminino. Para formas. Sua base deve ser buscada ao longo
isso, retomarei os estudos de Freud sobre a das linhas biológicas e constitucionais e ele
histeria, seu texto O problema econômico do permanece incompreensível a menos que
masoquismo (1924) e as elaborações laca- se decida efetuar certas suposições sobre
nianas sobre o objeto a e o gozo, bem como assuntos que são extremamente obscuros.
farei uma interlocução com Naves (2007), A terceira, e sob certos aspectos a forma
que sustenta haver uma relação entre a mais importante assumida pelo masoquis-
histeria e a pulsão de morte, de modo a mo, apenas recentemente foi identificada
resgatar a primazia do sexual e de Eros. pela psicanálise, como um sentimento de
Freud descreve três tipos de masoquis- culpa que, na maior parte, é inconsciente;
mo – o erógeno, o feminino e o moral. Nas ela porém, já pode ser completamente
suas palavras: explicada e ajustada ao restante de nosso
conhecimento. O masoquismo feminino,
O masoquismo apresenta-se à nossa ob- por outro lado, é o mais acessível às nos-
servação sob três formas: como condição sas observações e o menos problemático,
imposta à excitação sexual, como expres- e pode ser examinado em todas as suas
são da natureza feminina e como uma relações (Freud, [1924] 1996, p. 179).

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A histeria, o desejo e o enigma do feminino

Vale a pena frisar que Freud aponta originário. Pode-se especular que essa
o masoquismo erógeno como a referência compensação regula o equilíbrio entre
primordial para os masoquismos moral prazer-desprazer: a elevação da tensão,
e feminino. Além disso, ele considera o causadora do desprazer, é compensada
fenômeno problemático e do domínio do com um rebaixamento dela.
incompreensível, referindo-se às bases No entanto, Freud ([1924] 1996)
biológicas e constitucionais do sujeito, sustenta que uma parte dessa tensão fica
situando-o no campo do pulsional e do retida na forma de masoquismo erógeno,
autoerotismo, pré-genital e pré-simbólico, para preservar a pulsão de vida, uma vez
podendo ser categorizado como um regis- que um rebaixamento total dela levaria ao
tro do real lacaniano. princípio do Nirvana, que está a serviço
Freud ([1924] 1996, p. 180) aponta da pulsão de morte. De acordo com Fortes
que as fantasias masoquistas colocam o (2007), o masoquismo originário seria, as-
sujeito em uma posição feminina, que sim, um remanescente do momento desse
para ele implica passividade, como nas encontro originário entre a pulsão de vida
situações “ser castrado, ou ser copulado, e a pulsão de morte.
ou dar à luz a um bebê”. Isso porque o Esse remanescente é correlato do ob-
masoquismo erógeno acompanha todas jeto a lacaniano, pois no registro do real
as fases de desenvolvimento da libido, é um resto que expressa uma ausência
derivando seus revestimentos psíquicos – a perda de um gozo absoluto (Lacan,
cambiantes: [1962-1963] 2005), que seria a extinção
da tensão causada pela excitação e a ren-
O medo de ser devorado pelo animal to- dição à pulsão de morte, ou, em outras
têmico (o pai) origina-se da organização palavras, um gozo inassimilável que não
oral primitiva; o desejo de ser espancado pode ser simbolizado e que inaugura uma
pelo pai provém da fase anal-sádica falta produtora de sentidos.
que a segue; a castração, embora seja O masoquismo feminino baseia-se in-
posteriormente rejeitada, ingressa no teiramente no masoquismo erógeno, mas
conteúdo das fantasias masoquistas como o segundo está no campo do pulsional e
um precipitado do estádio de organiza- do autoerotismo, e o primeiro, assim como
ção fálica e da organização genital final o masoquismo moral, no campo do laço
surgem, naturalmente, as situações de social, uma vez que é figura da submissão
ser copulado e dar nascimento, que são e da culpabilidade. No entanto, enquanto
características da feminilidade (Freud, o masoquismo moral é “[...] uma espécie
[1924] 1996, p. 182). de obediência irrestrita às injunções do ou-
tro social”, o masoquismo feminino “[...]
Logo, o masoquismo faz referência ao se materializa no relacionamento com o
sexual e estaria, assim, ligado à construção outro, ao qual o sujeito se oferece com
da vida pulsional e aos processos de exci- o objetivo de ser aviltado e humilhado”.
tação mais primitivos, cuja tensão causada Em outras palavras, o masoquismo moral
no organismo é percebida originariamente aparece sob forma de injunções da cultura,
como desprazer. Na tentativa de reduzir e o masoquismo feminino ocorre diante
essa tensão, uma parte dessa energia é do objeto amoroso, “[...] pois aqui se faz
colocada para fora a serviço de uma função necessária a encenação masoquista com o
sexual ativa, que é o sadismo, mas a outra outro” (Fortes, 2007, p. 39).
parte permanece libidinalmente presa no O que busco evidenciar é uma identi-
organismo, caracterizando o masoquis- dade entre o processo que funda o maso-
mo erógeno, também conhecido como quismo originário e o mecanismo da histe-
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ria. No Rascunho K, Freud ([1896] 1996) uma oportunidade de excitação sexual


sustenta que a histeria ocorre a partir de despertasse sentimentos preponderante
uma experiência primária de desprazer, ou exclusivamente desprazerosos, fosse
que decorre de excesso de tensão, levando ela ou não capaz de produzir sintomas
a uma descarga obrigatória que precede a somáticos. [...] O caso da nossa paciente
formação do sintoma. Dora ainda não fica suficientemente
Tal experiência se origina de um caracterizado acentuando-se apenas a
trauma (Freud, [1893-1895] 1996), que inversão do afeto; é preciso dizer, além
resulta de um encontro com o sexual que disso, que houve aqui um deslocamento
não é compreendido nem assimilado pelo da sensação. Ao invés da sensação genital
sujeito, que ignora o que é o sexual e está que uma jovem sadia não teria deixado
despreparado para ele, de modo que a de sentir em tais circunstâncias, Dora foi
experiência vivida foge à representação, tomada por uma sensação de desprazer
gerando um vazio inominável que cria própria do tubo digestivo – isto é, pela
uma lacuna na psique. Como não se trata repugnância. A estimulação de seus lá-
de uma ideia ou símbolo, essa experiência bios pelo beijo foi sem dúvida importante
sequer pode ser recalcada: trata-se de um para localizar a sensação nesse ponto
afeto em estado puro, que não pode ser específico [...]
psiquicamente elaborado, porque sobra
um “resto”, um quantum de energia, que Masson (1986, p. 169), referindo-se
fica obstruído e não pode ser descarregado. ao Rascunho K, de Freud ([1896] 1996),
Sustento que essa experiência traumá- também afirma que “[...] a histeria pres-
tica é análoga ao que ocorre no masoquis- supõe, necessariamente, uma experiência
mo originário, que é um primeiro encontro primária de desprazer – isso é de natureza
com a excitação sexual vivida pelo corpo passiva”. Nesse rascunho, Freud faz uma
como desprazer e passividade. É essa re- associação entre histeria, feminilidade,
miniscência do masoquismo originário que desprazer e passividade, que reforça minha
o histérico passa a carregar no corpo. Ela argumentação, criando uma correlação
é revivida na cena originária de trauma, entre o masoquismo originário e a forma-
que o coloca em posição de assujeitamen- ção dos sintomas histéricos.
to, ou seja, deixa-o sem possibilidade de A descoberta sexual da criança se
reação ou resposta. Esse “resto” que não é fundamenta em uma experiência primá-
simbolizável nem recalcado, retorna para ria de passividade que se liga à fantasia
ser descarregado e origina seus sintomas. da sedução, mas esse primeiro encontro
No Caso Dora, Freud ([1905] 1996, p. com o sexual, na realidade, ocorre antes,
37-38) é muito claro quanto à percepção na constituição do masoquismo originá-
da excitação sexual como desprazerosa rio, estabelecendo um primeiro trauma
como elemento para caracterizar o com- psíquico, que é marcado no corpo mas
portamento histérico, o que reforça essa sem simbolização, que vai ser relembrado
ligação entre masoquismo originário e os pelo histérico.
sintomas histéricos, que procuro demarcar: Esse trauma ocorre devido a uma pri-
meira experiência passiva que não pode
Nessa cena – a segunda da sequência, ser significada, cuja tensão causada não foi
mas a primeira na ordem temporal – o descarregada, uma intrusão realizada pelo
comportamento dessa menina de qua- ataque pulsional, que mais tarde se traduz
torze anos já era total e completamente para o histérico, na cena originária, em
histérico. Eu tomaria por histérica, susto e repulsa, rememorando a sua impo-
sem hesitação, qualquer pessoa em que tência e a ausência de elaboração psíquica.
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A histeria, o desejo e o enigma do feminino

Inaugura-se a angústia do histérico, Para Naves (2007), assim como na


que, segundo Naves (2007), é primeira- dinâmica sadomasoquista, a histeria re-
mente uma angústia sinalizada pelo perigo presenta a passagem da voz ativa à voz
de proximidade com a pulsão de morte, passiva: a reação sádica é recusada e con-
uma vez que a descarga total no momento verte o corpo, alvo ativo, em alvo passivo.
do masoquismo originário significaria o A fantasia busca a significação desse gozo
encontro com o princípio do Nirvana. masoquista que excede a linguagem, fan-
No registro lacaniano (Lacan, [1962- tasia essa ligada à satisfação autoerótica,
1963] 2005), essa angústia se situa em uma masturbatória, que escapa à satisfação
posição mediana, entre o gozo e o desejo. genital e é a base dos sintomas histéricos
Esse gozo é justamente o resto que resiste à que emergem no corpo, em busca do que
significação e ao mesmo tempo possibilita Lacan nomeia como “gozo que não seja
a constituição de um sujeito desejante, não-todo”, ou seja, que não seja um “gozo
porque o confronta com a falta. Em outras mortífero” e que é “gozo do corpo”.
palavras, a condição de superação de an- Segundo Naves (2007, p. 191), o que
gústia ocorre pela instauração do desejo, está em questão é o sujeito se colocando
que constitui outra dificuldade para o como objeto, pois “[...] o masoquismo
histérico, que prefere sustentar a posição feminino diz respeito a um modo de gozo
de gozo e a negação da falta. presente na fantasia masculina, que reduz
Ocorre que, para alguns autores, a mulher a um estado de objeto”, sendo
como Naves (2007) e Pereira e Scapin que para Lacan [...] o homem tem acesso
(2015), por exemplo, o histérico não pode à mulher quando é possível reduzi-la a
nomear seu desejo e sabe que este não um objeto, que ele denomina de objeto a,
pode nunca ser satisfeito, pois seria um através da fantasia.
desejo puro e simples de morte, ou seja, A mulher por sua vez excede esse
do encontro com princípio do Nirvana ou gozo, que é fálico e a lógica da castração
o gozo mortífero. (Silva; Santos, 2017), uma vez que seu
Naves (2007) discute em sua tese objeto a se refere a um gozo enigmático,
de doutorado a relação entre histeria e não nomeado, o gozo total que flerta com
masoquismo, enfatizando que a histeria é a pulsão morte. No entanto, na esperança
não uma sexualidade repudiada, mas uma de ser a “mulher” e decifrar esse enigma, se
perversão repudiada. A autora considera sujeita a ser o “naco de carne” da fantasia
que o masoquismo é uma perversão por masculina e se oferece ao gozo fálico.
excelência, pois consiste na “[...] busca De acordo com Lacan ([1975] 2008),
de uma satisfação no sofrimento físico ou ser homem remete a um significante que é
psíquico, em uma posição de passividade o falo, mas ser mulher remete a significan-
diante do objeto” (Naves, 2007, p. 181). te algum, se colocando como enigma. O
Essa perversão consiste em uma re- gozo feminino independe do falo, motivo
gressão a um autoerotismo, caracterizado pelo qual no registro lacaniano a relação
por um gozo instalado no corpo. Recusan- sexual não existe, pois tanto para o homem
do as tendências pervertidas originadas do quanto para a mulher, o gozo é do corpo, e
pai e diante de um sentimento de culpa para o primeiro esse gozo é fálico: logo, o
que é inconsciente, assim como a repre- desencontro na relação sexual está selado
sentação, que no caso do masoquismo de saída.
originário nem chega a se formar, a histeria A mulher, quando alcança a genitali-
demanda a punição, e isso consiste na ofer- dade, não se sustenta no lugar de objeto
ta do corpo ao ataque pulsional; então, o de gozo do Outro, pois não se exime de
sofrimento derivado se converte em gozo. desejar. No caso da histeria, o sujeito se
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Ana Paula Paes de Paula

coloca como objeto causa de desejo, uma Assim, as dores físicas na histeria são a
vez que não é capaz de nomear seu próprio representação de um intolerável psíquico
desejo: goza dos próprios sintomas, pois e na minha argumentação isso remete ao
o desejo real seria o do gozo enigmático, masoquismo originário, que é algo que a
“gozo que não seja não-todo”, que não história do corpo foi incapaz de formular
consegue alcançar. e converteu em sintoma.
O gozo fálico equivale à libido nar- Para Emilse Naves (2007), a histeria
císica, mas na histeria há uma falha não remete a uma defesa contra um gozo
identificatória (Freud, [1921] 1996): na sexual intolerável, mas à impossibilidade
identificação com o pai, busca-se como de se defender da pulsão de morte, de
referencial o falo ao qual nunca vai se modo que a autora procura deslocar um
ter acesso, de modo que [...] na impossi- pouco a explicação da histeria do sexual
bilidade de se sustentar nesse referencial para o pulsional, cedendo à ideia de que
simbólico, abre-se espaço para emergência Freud sustenta a ubiquidade da pulsão de
de um gozo puramente pulsional que retor- morte.
na sobre o próprio corpo (Naves, 2007, p. Nas palavras da autora:
196). Devido a essa falha identificatória,
o corpo narcísico não é totalmente cons- Ao considerarmos na histeria, a primazia
tituído, abrindo espaço para regressão ao do conflito e defesa de representações
corpo autoerótico, que está no domínio sexuais, não estaremos deixando de
das pulsões parciais. observar que o desejo sexual na histeria
Desse modo, qualquer experiência de opera uma outra modalidade, que é modo
perda e de incompletude para os histéricos de atualizar a insistente emergência da
remete a essa ferida narcísica, o que leva pulsão de morte nas suas mais variadas
o histérico a buscar tanto a perfeição do formas? (Naves, 2007, p. 46).
corpo (daí as histerias pós-modernas en-
volverem cirurgias plásticas e tratamentos Diferentemente de Naves (2007) e
estéticos, adição em exercícios físicos e baseando-me em Lacan ([1975] 2008),
compras, distúrbios alimentares), quanto retomo a primazia freudiana do sexual
a reparação dessa falha identificatória. nas neuroses, sustentando que a histeria
Assim, a falta no Outro causa no his- é uma reação ao gozo sexual enigmático,
térico uma tentativa desesperada de suprir “o gozo que não seja não-todo”, sem re-
essa lacuna, porque embora o referencial presentação, que aponta para o próprio
paterno na histeria seja insuficiente en- enigma do feminino, para o problema da
quanto sinal de identificação simbólica, identidade sexual.
ele se posiciona como o seu eu ideal, não Os fundamentos do funcionamento
castrado, possuidor do falo. histérico como a insatisfação, a insacia-
Esse ferimento narcísico na histeria faz bilidade e a frustração de fato traduzem
o sujeito se colocar na posição de objeto, e a busca por uma não resposta, mas con-
a dor histérica é análoga à dor provocada trariamente a Naves (2007), defendo
pelo masoquismo originário: que isso remete não necessariamente
ao gozo mortífero, mas ao enigma do
[...] a dor é a expressão de um ferimento feminino: o histérico, paradoxalmente,
narcísico que faz do corpo uma tentativa tem horror à passividade implicada no
de resgatar um resto de gozo ao qual o su- feminino, mas se oferece como objeto
jeito não pode renunciar, justamente por de desejo, renunciando ao próprio de-
ter sido incapaz de representá-lo (Naves, sejo, para ter acesso ao falo, realizando a
2007, p. 200). fantasia masculina.
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A histeria, o desejo e o enigma do feminino

Assim, possivelmente o desejo que o o restabelecimento da satisfação sexual


histérico não quer assumir é o desejo de ter primária original, experiência ambígua,
falo, que o colocaria na posição simbólica pois remonta ao masoquismo originário,
de homem, mas ao mesmo tempo ele abre que mistura dor e prazer.
mão de ter acesso ao que é ser mulher, que Assim, as reminiscências histéricas
resiste ao significante fálico e assume seu são uma repetição no corpo do próprio
desejo sem se oferecer como objeto. Esse trauma, uma rememoração do irrepresen-
é o enigma, o impossível que o histérico tável do masoquismo originário, de modo
não consegue solucionar: assumir a inexis- que há sempre uma conotação sexual,
tência de um significante equivalente para mesmo quando o sexual não se apresenta
o feminino, como o falo é para o masculi- claramente: o corpo fala e exibe as lem-
no, de modo a nomear seu desejo sem se branças do que não pode ser represen-
posicionar como objeto. Certamente na tado, presentificando esse primeiro gozo
histeria, que provoca o desejo do Outro, ambíguo do masoquismo originário em
castra-o por colocar a falta do lado dele, uma reencenação da emergência do corpo
mas o fato é que o Outro no caso tem sim- pulsional, resgatando não exatamente um
bolicamente o falo e é nessa armadilha que conflito sexual, mas uma incompreensão
o sujeito histérico se coloca, oferecendo-se do sexual e do próprio feminino.
como objeto. Por outro lado, é importante enfatizar,
Em síntese, retomando a ideia de como aponta Naves (2007), que o histé-
que os “histéricos sofrem principalmente rico tem uma relação ambivalente com
de reminiscências”, colocada por Freud e aquele que seria o seu objeto de amor, em
Breuer ([1893-1895] 1996), a origem é o um duplo movimento de destituição dele
trauma. Os histéricos são sujeitos prema- (ao se colocar como objeto, atribui a falta
turamente excitáveis e o que constitui esse ao Outro) e de devoção a ele (que tem o
trauma é uma experiência sexual precoce falo), que não pode falhar como referencial
vivida passivamente, que aponta para uma identificatório. Dessa forma, percebemos
configuração sintomática que expressa a que, dialeticamente, o histérico “quer ser o
economia pulsional, a emergência do sim- falo e quer ter o falo” (Souza, 2011), mas
bólico e da linguagem e a excitação pulsio- em qualquer dessas posições não resolve
nal indizível. Esses elementos remetem ao o enigma do feminino.
masoquismo originário, evidenciando que Nesse processo, ele coloca seu corpo à
na histeria essa experiência é vivida com disposição do ataque pulsional e se oferece
extrema suscetibilidade e marca o corpo ao sacrifício enquanto objeto de amor,
no sentido do real lacaniano. encenando os sintomas histéricos ao se
Esse trauma é caracterizado por Freud objetificar oferecendo o próprio corpo e
([1893-1895] 1996) como algo pré-sexual, se apassivando nas suas relações afetivas.
que, na cena originária ocorrida após a Logo, o horror gerado pelo masoquismo
marca do masoquismo originário, remete originário se mostra sem solução, e o
à teoria da sedução e à teoria da fantasia: resultado é ceder ao esquema de gozar da
inicia-se aí o sacrifício do corpo, que se dor da passividade, sem nunca alcançar o
apresenta como alvo assujeitado a um que é ser uma mulher.
gozo masoquista. Diante das considera- O histérico quer ser amado, mas está
ções trazidas anteriormente, concluo que impossibilitado de amar porque teme se
a histeria significa suportar a violência da fundir ao objeto, uma vez que busca ser
história de vida do corpo, que, engendrado o objeto: ele se oferece como objeto do
pela fantasia, reencena o que foi vivido. A Outro e quer ser o Outro, possuidor do
satisfação autoerótica na histeria resgata falo. A aproximação do objeto se afigura,
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Ana Paula Paes de Paula

então, como angustiante, pois ele sabe que


ceder a isso seria se perder de si mesmo: o Referências
objeto é, assim, ao mesmo tempo amado FORTES, I. Erotismo versus masoquismo na teoria
e odiado (Souza, 2011). freudiana. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 19, n. 2,
Esta citação de Naves (2007, p. 125) p. 35-44, 2007.
ilustra bem isto – a busca do histérico:
FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895).
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão.
[...] por um objeto idealizado se refere a Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard
uma esperança de completude imaginária brasileira das obras psicológicas completas de
que só leva a uma hiância ainda maior de Sigmund Freud, 2).
seu eu, trazendo uma ameaça constante
de entrar em um estado melancólico. FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de
histeria (1905 [1901]). In: ______. Um caso de
histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade
Certamente, isso mostra a aproxima- e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da
ção que Naves (2007) sustenta entre a tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
histeria e a pulsão de morte. No entanto, 1996. p. 19-116. (Edição standard brasileira das
também evidencia a primazia do sexual e obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).
de Eros, porque realizar esse desejo de ser
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo
o Outro e ter o falo, seria assumir a posi- (1924). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos
ção masculina que não decifra o que é ser (1923-1925). Direção-geral da tradução de Jayme
mulher. Daí o impossível da nomeação do Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 177-188.
desejo pelo histérico e de sua satisfação, (Edição standard brasileira das obras psicológicas
cuja chave seria o feminino, que implica completas de Sigmund Freud, 19).
na admissão da falta, no rompimento da FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego
lógica fálica e na assunção do desejo pelo (1921). In: ______. Além do princípio de prazer,
objeto de amor.j psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922).
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 79-154. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas
HYSTERIA, DESIRE AND
de Sigmund Freud, 18).
THE ENIGMA OF THE FEMININE
FREUD, S. Rascunho K. As neuroses de defesa
Abstract (1896). In: ______. Publicações pré-psicanalíticas
The aim of the article is to highlight the e esboços inéditos (1886-1889). Direção-geral
relationships between original masochism and da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. p. 267-276. (Edição standard
hysteria, arguing that the hysterical symptoms brasileira das obras psicológicas completas de
are a reenactment of the misunderstood sexual Sigmund Freud, 1).
from the primary experience of masochism,
which refer to the enigma of the feminine. LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-
For this, Freudian writings on hysteria, 1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
the economic problem of masochism and 2005. (Campo Freudiano no Brasil).
Lacanian elaborations on “object a” and
enjoyment will be resumed, undertaking a LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-
dialogue with Emilse Naves, which sustains 1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
a relation between hysteria and the death Tradução de M. D. Magno. 3. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).
drive in order to rescue the primacy of sexual
and Eros. MASSON, J. M. A correspondência completa de
Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904).
Keywords: Female, Hysteria, Desire. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

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A histeria, o desejo e o enigma do feminino

NAVES, E. Para além do desejo. Um estudo


sobre histeria e pulsão de morte, 2007. 303 f.
Tese (Doutorado em psicologia) - Instituto de
Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

PEREIRA, F. B.; SCAPIN, A. L. Desejo insatisfeito:


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Revista Uningá, Maringá (PR), v. 23, n. 2, p. 31-36,
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- Centro Universitário Ingá.

SILVA, A. C.; SANTOS, K. A. O feminino e


a perspectiva lacaniana de superação da lógica
fálica. Reverso, Belo Horizonte, v. 39, n. 74, p.
39-46, dez. 2017. Publicação semestral do Círculo
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SOUZA, E. C. L. L. A (in)satisfação histérica:


entre o falo e a falta. Congresso Nacional de
Psicanálise da Universidade Federal do Ceará;
Encontro de Psicanálise UFC, 6; 15, 2011. Anais...
Fortaleza: UFC, 2011, p. 1-7.

Recebido em: 15/06/2018


Aprovado em: 15/04/2019

Sobre a autora

Ana Paula Paes de Paula


Professora titular da FACE-CEPEAD-UFMG.

Endereço para correspondência


E-mail: <appp.ufmg@gmail.com>

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