Você está na página 1de 8

Apresentação aos Três ensaios de teoria sexual de Sigmund Freud

Por Daniela Danesi


Freud foi acusado de pansexualista, de só “pensar naquilo”, de colocar o sexo no
centro de todas as explicações dos males dos seres humanos. Mas o que será que o pai
da psicanálise considerava ser a sexualidade? Por que lhe dar um lugar de destaque tão
grande em sua teorização?
Para buscar responder a essas questões começarei contextualizando que apesar
da moral vitoriana jogar um manto de hipocrisia sobre os desejos sexuais da burguesia
europeia e vienense, muito se escrevia em final de século XIX sobre a sexualidade.
Aliás, para precisar melhor, o discurso sobre o sexo desenvolveu-se com muita força a
partir do século XVIII adentrando o século seguinte.
Esse discurso buscava contribuir para o controle e a disciplinarização dos
corpos tão necessária ao desenvolvimento da sociedade capitalista europeia. Corpos,
esses, submetidos a um ideal branco, patriarcal, heteronormativo e cisgênero que
continua a impor as suas amarras até hoje.
Podemos ver, então, como na época de Freud o assim chamado campo da
sexologia, ciência biológica e natural do comportamento humano, acabava resultando
em um ideal higienista. Os seus estudos ocupavam-se em descrever e classificar tudo
aquilo que escapava à sexualidade normativa heterossexual patriarcal e cisgênera, cuja
finalidade seria a reprodução, e que era visto como uma “aberração”, tais como: a
bissexualidade, as experiências trans, a zoofilia, a homossexualidade, entre outras.
Foi nesse caldo de pesquisas científicas sobre o sexo que fizeram a sua entrada
os desenvolvimentos que culminaram com o surgimento da obra freudiana. Mas a
semelhança em suas visões certamente termina aqui!
Freud afasta-se tanto do campo da patologia como da moral, promovendo uma
verdadeira ruptura epistemológica com as teorizações de seus contemporâneos, ao
abandonar uma concepção biológica da sexualidade em prol de uma abordagem
psíquica do sexual.
Inaugura, assim, um outro olhar sobre a sexualidade que entrelaça conceitos
como desejo, libido, pulsão, bissexualidade, fantasia, sexualidade infantil e
inconsciente. A consequência de suas formulações teóricas resulta em uma gradação

1
entre o normal e o patológico que deriva da ampliação do conceito de sexualidade, do
qual a genitalidade torna-se apenas uma das possibilidades.
Antes de apresentar seu texto principal sobre a ampliação do conceito de
sexualidade, Três ensaios de teoria sexual, gostaria de fazer um pequeno percurso pelos
inícios de sua obra mapeando a entrada desse conceito.

Da teoria do trauma à sexualidade infantil

A importância da sexualidade adulta para a etiologia das neuroses, enquanto


fonte dos sofrimentos e dos conflitos que os pacientes apresentavam na clínica, surgiu
desde os seus textos iniciais. Já podemos encontrar a noção de desejo e defesa, levando
à formação dos sintomas nos textos: As neuropsicoses de defesa (1894), Projeto para
uma psicologia (1895) e Estudos sobre a histeria (1895).
Em seguida a estas descobertas teóricas iniciais, Freud vai cada vez mais
retroceder no tempo ao escutar de suas pacientes histéricas relatos de acontecimentos
sexuais vividos na infância a partir da sedução imposta por um adulto. Desenvolve,
então, a Teoria da Sedução com o seu componente traumático, que logo será abandonada
em 1897 com a descoberta da importância do que denominou como realidade psíquica e
do mundo da fantasia.
Esta virada conceitual permitirá a Freud articular o campo da sexualidade com o
do inconsciente, levando-o à formulação do Complexo de Édipo e dos desejos amorosos
e hostis que a criança experimenta pelos responsáveis por seu cuidado.
Vemos, assim, como Freud parte do campo da psicopatologia para, a partir de
seus Três Ensaios, enfatizar cada vez mais a ideia da constituição do psiquismo de todo
e qualquer ser humano entrelaçada com o caminho da sexualidade.
Nesse texto ele afirma o desenvolvimento psicossexual da criança como o
percurso através do qual nos constituímos enquanto seres sexuados e construímos a
nossa maneira de estar no mundo, buscar prazer e amar.
Para pensar a sexualidade infantil e suas características perversas-polimorfas (ou
seja, capaz de se satisfazer de várias formas, utilizando várias partes do corpo) introduz
um conceito metapsicológico, Trieb, traduzido, nessa tradução, por impulso. Este se
tornará um dos pilares de seu arcabouço teórico, junto com o conceito de inconsciente
cujas características foram apresentadas em outro de seus grandes livros A interpretação
dos sonhos (1900).

2
Prosseguiremos, então, o nosso percurso tecendo algumas considerações sobre o
Trieb freudiano.

“O que será que me dá,


Que me bole por dentro, será que me dá”1
Para podermos nos aproximar do Trieb freudiano precisamos indicar que
algumas possibilidades de tradução deste conceito foram escolhidas nas edições
recentes de sua obra no Brasil que partem, todas, da leitura do original alemão. São elas:
instinto, pulsão e impulso.
Também é importante comentar que os Três ensaios nos falam exclusivamente
dos impulsos sexuais, visto que a tematização da destrutividade só será descrita por
Freud em seu texto Além do princípio do prazer (1920).
O conceito de Trieb faz a sua entrada no Projeto para uma psicologia (1895),
texto considerado como pré-psicanalítico, pois ainda muito apoiado em um vocabulário
fisicalista. Nele Freud descreve uma força constante de excitação que é interna ao
aparelho neuronal, da qual ele não tem como fugir. Ou seja, se conseguimos nos
proteger e nos afastar de estímulos externos o mesmo não acontece quando os estímulos
provém do interior do corpo, delimitando assim uma das características principais do
impulso, o de ser uma força constante e inesgotável que faz uma exigência de trabalho
ao aparelho psíquico.
Será no texto As pulsões e seus destinos (1915) que Freud, dentro do conjunto
dos artigos dedicados à metapsicologia2, dará ao impulso o seu estatuto central na obra,
descrevendo-o como sendo um conceito que habita a fronteira entre o psíquico e o
somático, cuja fonte situa-se no corpo e cuja meta é a busca do prazer.
No arco temporal entre esses dois textos encontramos os Três ensaios como o
grande discurso do Trieb freudiano em que definitivamente separa-o da noção de
Instinkt. Este último será poucas vezes utilizado em sua obra e sempre ligado aos
instintos dos animais.
Podemos, então, pensar a noção de impulso como a grande subversão que Freud
faz, nesse texto, arrancando a sexualidade humana da regência da biologia, com os seus

1
Chico Buarque de Hollanda O que será (À flor da pele)
2
Conjunto de 5 artigos – As pulsões e seus destinos, O recalque, O inconsciente, Suplemento
metapsicológico à teoria dos sonhos, Luto e melancolia - em que Freud apresenta, de forma sistemática,
os conceitos fundamentais da Psicanálise que dão sustentação à clínica psicanalítica e constroem a
identidade epistemológica desta teoria

3
comportamentos inatos, imutáveis, hereditários, adaptativos e comuns em cada espécie
animal.
A noção de impulso sexual, ao contrário, tem como a sua grande característica
não ter um objeto fixo para buscar satisfação e sim, variável e contingente. Pode tanto
investir, para a sua obtenção de prazer, partes do corpo (autoerotismo), quanto o próprio
eu (narcisismo) ou os objetos da fantasia e os objetos externos. Pode até mesmo ter a
sua energia desviada da realização direta da satisfação sexual, através da sublimação,
para investir outros campos como a criação artística ou o trabalho.
A título de exemplo podemos pensar em um cirurgião que utiliza os seus
impulsos sádicos em prol do cuidado de seu paciente ou um ceramista que molda a
argila como derivação dos seus impulsos anais. Ou, até mesmo um psicanalista, que
desvia a sua curiosidade voyeurista para a escuta de seus analisantes.
Esse texto nos convida, então, a pensar sobre a capacidade simbólica e criativa
de todo ser humano que nos permite buscar construir os caminhos possíveis para dar
conta das intensidades e dos enigmas inerentes a um corpo, que por estar imantado pela
presença do outro e pelo campo da linguagem, já não é regido pelo instinto biológico e,
sim, transformado pelo psíquico e pelo campo da cultura. Corpo, esse, não mais
pensado enquanto apenas um organismo e, sim, enquanto um corpo erógeno.
A partir dos Três ensaios Freud procura responder de onde se originam esses
impulsos que partem do corpo e são capturados pelo aparelho psíquico.
Apresenta dois caminhos distintos: um deles considera o impulso enquanto de
origem endógena e o outro, que trará consequências muito significativas ao resto de sua
obra e de autores pós-freudianos, colocará a fonte do impulso como originada a partir da
relação do bebê com o outro cuidador. É assim que Freud nos brinda com um dos mais
belos parágrafos de seus Três ensaios:
Haverá quem talvez resista a identificar com o amor sexual os sentimentos
ternos e o apreço da criança por quem dela cuida, só que eu acho que uma
investigação psicológica mais precisa poderá estabelecer essa identidade acima
de qualquer dúvida. A relação da criança com a pessoa que dela cuida é-lhe
uma fonte de excitação e satisfação sexuais que flui sem cessar das zonas
erógenas, sobretudo porque essa pessoa, via de regra a mãe, considera a criança
com sentimentos que provêm de sua vida sexual, acariciando-a, beijando-a,
acalentando-a e tomando-a de modo bem claro como substituta de um objeto
sexual de plena validade. A mãe provavelmente se assustaria se lhe
esclarecêssemos que, com todas as suas ternuras, ela desperta o impulso sexual

4
do filho e prepara sua posterior intensidade...aliás, se a mãe compreendesse
mais a respeito do elevado significado dos impulsos para o conjunto da vida
psíquica, para todas as realizações éticas e psíquicas, ela se pouparia todas as
autorecriminações mesmo após o esclarecimento. Ela apenas cumpre sua tarefa
quando ensina a criança a amar”. (FREUD, 1905, p. 75)

Pequeno guia para ler os Três ensaios

Os títulos de seus três ensaios são: “As aberrações sexuais”, “A sexualidade


infantil” e “As reconfigurações da puberdade”.
No primeiro ensaio Freud repertoria as descrições dos autores que escreviam
sobre o sexo em sua época, detendo-se principalmente nas classificações dos desvios do
instinto sexual quanto ao objeto sexual e à meta sexual. Ao longo desse ensaio somos
levados a compreender a estratégia freudiana que mais do que acompanhar as
considerações desses pesquisadores propõem-se a subvertê-las quando, em seu último
parágrafo, nos indica que aquilo que era considerado enquanto um comportamento
perverso nos adultos nada mais é do que a sexualidade que encontramos nas crianças.
Abre alas, assim, ao seu fundamental segundo ensaio em que encontramos
segundo as palavras de Garcia-Roza3: “o pequeno ‘perverso polimorfo’ com sua
sexualidade fragmentada em pulsões parciais vagando entre objetos e objetivos
perversos” (GARCIA-ROZA, 2004, p. 96).
Freud também descreve, nesse segundo ensaio, as barreiras que o campo da
cultura impõe ao livre escoar das moções pulsionais. Essas barreiras derivam no
processo de recalcamento que se inicia a partir do desenvolvimento da repugnância, do
pudor e da consciência moral. Se as imposições destas barreiras inicialmente são feitas
pelo cuidadores, representantes do processo civilizatório, num segundo momento se
fazem internas, promovendo todo o campo de negociações psíquicas a partir do conflito
incontornável entre desejo e lei, o almejado e o proibido e condenado por cada
sociedade.
Por fim, o terceiro ensaio é dedicado à análise da sexualidade genital que, após a
puberdade, tomará a sua forma adulta com a organização das pulsões parciais ao redor
do eixo da genitalidade e o investimento em um objeto de amor. Sua meta não será
apenas a busca do prazer mas também a reprodução da espécie.

3
Garcia-Roza, L. A. – Freud e o inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004

5
Freud reencontra nesse ensaio uma certa concepção biológica da sexualidade,
muito contrastante a toda abertura e plasticidade com a qual nos convidou a pensar em
seu ensaio anterior.
Para adentrar a leitura deste texto complexo também é importante saber que foi a
obra que Freud mais modificou ao longo da vida, sem, porém, se propor a reescrevê-la
numa síntese coerente. Preferiu acrescentar novos parágrafos e notas de rodapé à
medida que o texto foi recebendo novas edições em 1910, 1915, 1920 e, finalmente a
última, em 1924.
Nestas, inclui, quase como enxertos, os novos desenvolvimentos teóricos que
trabalhou em textos posteriores como por exemplo: as fases do desenvolvimento da
organização sexual: oral, anal e fálica; o narcisismo e a evolução progressiva para a
primazia do genital.
Se por um lado a retomada desse texto, ao longo de tantos anos, mostra-nos o
quanto Freud o considerava um eixo importante de sua obra por outro lado, à medida
que adentramos a sua leitura, temos a sensação de dialogar com vários Freuds, que nem
sempre se harmonizam, se complementam chegando até mesmo a se contradizerem.
Apenas nas notas de rodapé percebemos as datas dos acréscimos sendo que no
corpo do texto nem sempre nos damos conta do ano em que determinadas considerações
foram incluídas o que nos causa a impressão de que esse escrito contém inúmeras obras,
com diferentes orientações, costuradas num único texto feito uma colcha de patchwork.
Acompanhando a nossa metáfora podemos dizer que estes retalhos são
costurados a um tecido de base que sustenta o feitio da colcha, ou seja, o texto inicial de
1905. O psicanalista francês Jean Laplanche sugere a importância de acompanhar essa
primeira edição para extrair dela toda a sua potência disruptiva em relação ao que era
pensado como sexualidade até então.
Ali encontramos a sexualidade infantil como a grande descoberta freudiana, que
nos fala de um sexual ampliado além dos limites da diferença entre os sexos, além do
sexuado (desenvolvimentos esses que serão acrescentados nas edições posteriores,
conforme comentado), ligado à noção de apoio, às zonas erógenas, ao autoerotismo e à
pulsão parcial que busca incessantemente o prazer sem conhecer apaziguamento.
Freud descreve esta sexualidade enquanto perversa polimorfa, buscando a
satisfação de forma anárquica e autoerótica, demonstrando o quanto somos habitados
por uma plasticidade que foge a qualquer possibilidade de ser encaixada em uma
normatividade mas, ao contrário, aponta para os percursos do desejo enquanto

6
múltiplos, singulares, marcados pelas vicissitudes dos encontros e desencontros da
história de cada sujeito.
Descreve também outra importante característica que nos diferencia dos animais,
ou seja, que a sexualidade humana nasce em dois tempos: está presente desde o
nascimento sob a forma de autoerotismo e investimento nas pessoas que nos proveram
dos cuidados iniciais (geralmente a mãe e o pai ou qualquer pessoa responsável por
esses cuidados), para depois ser submetida ao recalque e retornar com novas
intensidades implementadas pela entrada na puberdade, com sua prontidão para o
encontro com os objetos amorosos, após um intervalo chamado por Freud de latência.
Parece-me muito importante enfatizar aqui o aspecto mais subversivo dos Três
Ensaios, qual seja, a descrição do que Freud considera ser a sexualidade infantil
pensada como um manancial que compõe os conteúdos inconscientes, eternamente
vivos, pulsantes, criadores tanto de sintomas a partir do retorno do recalcado, quanto das
realizações do desejo na fantasia, nos sonhos e nos atos falhos. Pensada tanto como
fonte de movimentos em direção ao amor ou à violência quanto possibilitadora de
realizações sublimatórias a partir do que o campo da cultura nos oferece.
Ao acompanhar as considerações freudianas do texto inicial de 1905, menos
desenvolvimentistas e normativas em relação aos adendos que acrescenta em suas
sucessivas edições, nada na sexualidade humana nos faz pensar em um equilíbrio a ser
alcançado, em impulsos domados e organizados ao redor de um instinto reencontrado.
Muito pelo contrário, nesses Três ensaios reconhecemos as moções impulsivas que
habitam esse estrangeiro, em nós, nomeado por Freud de inconsciente, fontes de
inspiração que ao construir os seus caminhos de deriva levam o ser humano tanto para
as suas realizações mais sublimes e à possibilidade de amar quanto, também, às
realizações mais nefastas.
Reconhecer a importância e atualidade desses aspectos do texto permite-nos
estar à altura do nosso tempo histórico e, enquanto psicanalistas, podermos contribuir
com um olhar e uma escuta em que corpos e desejos que não se encaixam na
cisheteronormatividade deixem de estar submetidos a práticas sociais de apagamento,
opressão e patologização.
Por fim me junto a tantos autores que reconhecem a importância da leitura
cuidadosa dos Três Ensaios para recuperar o legado ético que Freud inaugura em sua
clínica que aponta para uma escuta da singularidade da construção dos percursos
desejantes de cada um de nós!

7
São Paulo, 15 de agosto de 2021

AMARAL, Mônica Guimarães Teixeira do. O três ensaios... Psicologia USP, São
Paulo, v.6, n. 2, 1995, p. 63-84

Você também pode gostar