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VERSÕES DA HOMOSSEXUALIDADE NA PSICANÁLISE

Luciana Marques1

Após todos os movimentos que ao longo dos anos assistimos contra a patologização da
homossexualidade, e apesar de todo o esforço de Freud ao abordar o sujeito do inconsciente,
valorizando a pulsão e admitindo todas as variações possíveis à sexualidade humana;
encontramos, ainda hoje, uma retórica de argumentos psicanalíticos calcados no ideal da
heterossexualidade enquanto norma, que colaboram com a difusão do imaginário social da
complementaridade dos sexos.

Desconsiderando os aportes freudianos, psicanalistas contemporâneos, contaminados pela


moral sexual conservadora e pelo discurso médico curativo, (re)interpretam a homossexualidade
como um desvio da “maturação” pulsional capaz de reconhecer a anatomia diferencial dos
corpos e marcam o cenário atual com versões imaginárias que substituem a ética da psicanálise 2
pela normatização do sujeito.

Na contramão da pulsão, que marca a essência polimorfa e aberrante da sexualidade


humana, a noção de instinto retorna à cena e nos revela a necessidade de sustentação da clínica
fundada por Freud: a clínica do desejo.

O presente trabalho - um fragmento de pesquisa de doutorado sobre a homossexualidade


e as versões desviantes que desde Freud encontramos na literatura analítica - tem por objetivo
pontual nos reconduzir ao universo da falta de objeto originário, inerente ao sujeito falante,
retomando um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise: o conceito de pulsão.

Com Freud, sabemos que a psicanálise se recusa a considerar os homossexuais como


possuidores de características especiais; uma vez que a pulsão e sua inerente plasticidade nos
revela que o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige
esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base
química. (FREUD, 1905)
1
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia-Médica (HUPE/UERJ), Especialista em Gestão de Saúde
(IMS/UERJ), Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA), Doutoranda do Programa de Pós-graduação em
Psicanálise (IP/UERJ).
2
 Ética do desejo.
Tal atração de base química, instintiva, com objeto específico, jamais foi empregada por
Freud para se referir ao sujeito falante. Diferente dos animais, que nascem com o savoir-faire
que o objeto do instinto propicia; o humano, enquanto ser de linguagem, está para além da vida
biológica e se caracteriza pela impossibilidade de completude, não lhe restando nenhuma
naturalidade possível.

No entanto, constantemente, verifica-se a aproximação sinonímica entre o conceito de


pulsão e instinto que, por conseqüência, produz equívocos entre os psicanalistas que corroboram
para a difusão de desvios teóricos e técnicos.

Uma das principais reduções do conceito freudiano que alicerça uma série de outros
desvios é a tradução que James Strachey optou ao transcrever a Trieb freudiana como instinct na
tradução inglesa das obras completas de Freud. Sua desastrosa escolha do termo não só
favoreceu a biologização do conceito, como também reforçou a idéia do possível encontro com o
objeto ideal.

A NARTH (The National Association for Research and Therapy of Homosexuality) é um


claro exemplo, dentre vários, de distorção da técnica psicanalítica baseada na promoção da
biologização da sexualidade humana. A Associação Nacional de Pesquisa e Terapia da
Homossexualidade, fundada em 1992 e inicialmente presidida por Charles Socarides, embora
não tenha nenhuma ligação direta com a IPA, é composta por vários psicanalistas que são
membros da Associação Psicanalítica Americana.

Esta organização, que afirma ser capaz de modificar a orientação sexual das pessoas com
base na teoria psicanalítica, assume a posição oficial de que a homossexualidade é um transtorno
que precisa ser tratado. Segundo Socarides, primeiro presidente da NARTH, “os homossexuais,
não importa o seu nível de adaptação e de funcionamento em outras áreas da vida, são
severamente deficientes na área mais vital: as relações interpessoais”; o que justifica seu
entendimento de que a orientação homossexual, não só precisa como deve ser modificada, já que
segundo ele, “o movimento gay é um destruidor dos direitos da sociedade”. (BERGGREN,
[20--?])

De fato, não é de se espantar que este procedimento homofóbico e contaminado por


crenças importadas de uma moral sexual social, receba apoio, inclusive financeiro, de membros
da direita radical religiosa, demonstrando a dificuldade, ainda existente, de se desvincular a
teoria psicanalítica da crença pessoal em que é formulada por esses discursos.

Infelizmente, este panorama desviante que avalia critérios comportamentais e exclui


qualquer referência à subjetividade, promove, em nome da psicanálise, a possibilidade de
encontro com o objeto absoluto, substituindo a ética analítica por uma terapêutica que, baseada
no discurso do mestre, submete o sujeito à fantasia de completude do analista e lhe anula o
desejo. (LACAN, 1969)

É lamentável que o conceito de pulsão ainda sofra tal reducionismo, uma vez que a
escolha de Freud pelo termo Trieb especifique-se por tratar de uma força poderosa e irresistível
que, exclusivamente ligada à sexualidade humana, impele. Caracterizada pela falta de objeto
determinado, a pulsão surge, com Freud, como um conceito único e sem correlatos. (HANS,
1996)

A pulsão é uma força constante (Konstant Kraft) cujo impulso parte de uma excitação
interna que tende à satisfação, através de um objeto inespecífico escolhido, tão somente, por
prestar-se com mais eficiência na contingência de uma dada situação.

É essa constância da força pulsional (Drang) que nos indica que este quantum de
excitação (Reiz) concernente a pulsão, não pode ser extinto e que, por sua vez, sua relação com
alvo (Ziel) acarreta na restrição de uma satisfação sempre parcial, devido à impossibilidade de
eliminação do estímulo vindo da fonte.

Este paradoxo da satisfação parcial, que nos remete à categoria do impossível do gozo
absoluto, é retomado por Lacan ao afirmar que o objeto nasce como perdido e irrecuperável,
embora você jure que esteve lá. (LACAN, 1964)

Das Ding – a Coisa que promete responder pela essência do sujeito – é o que se trata de
reencontrar; contudo, este objeto absoluto que tornaria possível a satisfação plena e a extinção da
falta, de fato, nunca esteve presente. Das Ding é a própria representificação da falta originária, é
o núcleo real do inconsciente, sem nome e sem imagem, e em torno do qual se estrutura a
linguagem, determinando que a cada encontro com o objeto privilegiado pela pulsão, a Coisa
seja sempre representada por “Outra coisa”. (LACAN, 1959)
Assim das Ding se caracteriza como velado; como ponto de não-saber sobre o sexual que
constitui a base da estrutura do sujeito falante e desvenda a posição de indiferenciação na qual o
sujeito surge.

Será então, a partir da eterna presentificação desta hiância entre os objetos pulsionais, que
o sujeito consegue obter, e a busca por das Ding, que o sujeito será relançado na cadeia
significante onde a falta se fará motor da própria estrutura do desejo enquanto promessa que
nunca será cumprida, pois a pulsão, ao apreender o objeto, apreende de algum modo que não é
justamente por aí que ela se satisfaz.

Portanto, o sujeito está fadado a uma falta originária. Não existindo objeto ideal capaz de
completá-lo, todo objeto será sempre inadequado, mantendo o caráter circular do percurso
pulsional que marca o sujeito de que trata a psicanálise: o sujeito do desejo.

Logo, a cada objeto que vem ocupar o vazio, revela-se o fato de não ser nele que a pulsão
encontrará a satisfação plena, marcando o impossível do reencontro e justificando a afirmativa
freudiana, fundamental para pensarmos toda e qualquer escolha do sujeito, seja homo ou
heterossexual: o objeto (Objekt) é o que há de mais variável na pulsão.

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