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INTRODUÇÃO
Ainda que aquilo que tenha ocorrido possa ter sido registrado por
instrumentos altamente tecnológicos, com amplo poder de apreensão e grande
potencial de definição, ainda assim, grande parte dos aspectos, se não a maior
parte deles, ficará ausente do registro e impossíveis de serem trazidos à tona.
“A fotografia da fonte da verdade talvez seja muito boa, mas, da fonte após
turvada pelo fotógrafo e sua máquina; mesmo assim, continua o problema de
interpretar a fotografia.”. (Bion, 1962). Contudo, por mais que nenhum registro
do passado possa ser fiel ao que realmente ocorreu, ainda assim, a biografia
de um autor, de alguma forma, deve justificar sua obra. Isso ocorre tanto com
os avanços na expansão do pensamento, quanto na revelação de limitações
obstrutoras das possibilidades de ampliação reflexiva. Certa proposta teoria
sempre estará subordinada às limitações do seu autor.
Sigmund Schlomo Freud nasceu numa família judia, em 6 de maio de
1856, na pequena cidade de Freiberg, na antiga Moravia, atualmente República
Tcheca. O registro civil original de Freud consta como Segismundo Schlomo
Freud, em que mudou seu nome para Sigmund em 1878. Com dois anos de
idade, mudou-se com a família para Lípsia na Alemanha e em 1860, por
motivos financeiros, sua família é forçada a se mudar para Viena, centro
cultural e político e capital da Áustria. Cidade aonde aquele que viria a ser o pai
da psicanálise recebeu sua educação e passou a maior parte de sua vida.
Freud só saiu de Viena em 1938 com 82 anos, por conta da invasão da Áustria
pela Alemanha nazista de Adolf Hitler (1889 - 1945).
Primeiro entre oito filhos, do casamento de seu pai, Jacob Freud, com
Amalie Nathansohn Freud, Sigmund Freud, muito cedo, se mostra interessado
pelas questões da alma, assim como pela história da Bíblia. Em 1873, ingressa
na universidade e, em 1881, como ele próprio observa em seu ESTUDO
AUTOBIOGRÁFICO (1925), um tanto tardiamente, recebe o grau de Doutor em
Medicina. Neurologia era sua especialização, porém, sempre fora um
questionador sobre onde realmente estaria a origem da dor do ser humano, se
no corpo ou na alma. Freud se mostrava cada vez mais interessando
justamente por aquele paciente que se queixava de padecer sem que
encontrasse origem orgânica na moléstia. Depois de alguns estudos
malsucedidos sobre o uso da cocaína, Freud passa a estudar as doenças da
alma e a escrever uma coleção de obras, o que hoje é um tesouro para o
pensamento da psicologia universal.
Em 14 de setembro de 1886 Freud casou-se com Martha Bernays (1861
- 1951) e tiveram seis filhos. Entre eles a caçula Anna Freud (1895 - 1982),
também destacada psicanalista. No ano de 1923, descobriu um pequeno tumor
no seu palato direito que o leva a sofrer 33 cirurgias. Essa sequência de
cirurgias o fez perder o maxilar superior, tendo de instalar aí uma prótese para
que fosse possível movimentar a boca. Nesse mesmo ano acontece a primeira
difusão das obras de Freud em espanhol na América Latina.
Em março de 1938, acontece a invasão da Áustria pelas tropas alemãs
de Hitler que, tomado por sua intensa perseguição ao povo judeu, então,
mandou queimar qualquer livro que possuísse a assinatura do pai da
psicanálise. As forças do nazismo ainda invadiram a sua residência, forçando a
partida de Freud para Londres, Inglaterra. Contando com a intervenção do
diplomata americano William Bullitt (1891 - 1967) e tendo o resgate pago por
Marie Bonaparte (1882 - 1962), sobrinha bisneta de Napoleão que, além de
ajudar muito Freud, com sua fortuna também ajudou a popularizar a
psicanálise. Assim, Freud pôde deixar Viena com sua família. Em Londres,
estabeleceu-se em uma bela casa em Maresfield Gardes, onde no futuro se
instalaria o Freud Museum. Freud escreveu ali, sua última obra, MOISÉS E O
MONOTEÍSMO (1939).
No ano seguinte, depois de dois dias em coma, Sigmund Freud,
bastante debilitado, faleceu em 23 de setembro de 1939, às três horas da
madrugada. Não suportando mais o sofrimento decorrente do câncer, do qual
era vítima há treze anos, morreu tranquilamente por meio de injeções de
morfina. A seu pedido, e com o consentimento de Anna Freud, recebeu do
médico e amigo, que cuidou de seus últimos dias, Max Schur (1897 - 1969),
três injeções de três centigramas de morfina. Seu corpo foi cremado em
Golders Green. Freud morrera em sua forma material, no entanto, continua vivo
e crescendo em pensamento, e esse trabalho é amostra plena desse fato.
Vale lembrar que a época de Freud e, em especial, no lado do mundo
em que viveu, houve intensa produção de pensamento na arte, ciência e
filosofia. Personalidades como os físicos Albert Einstein (1879 - 1955) e Max
Karl Ernst Ludwig Planck (1858 — 1947), o pai da física quântica, o pintor
Gustav Klimt (1862 - 1918), os compositores de música erudita Johann Strauss
(1804 —1849) e Arnold F. Walter Schönberg (1874 — 1951) e o filósofo
Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), produziram grandes obras
contemporaneamente.
A QUEBRA DE NARCISISMO
UM NOVO MÉTODO
INSTÂNCIAS DA MENTE
O INCONSCIENTE - Ics.
O sonhar
O Reprimido
O EGO
A ideia de Freud para o ego (eu) é justamente como sendo uma parte do
id, modificada pelo contato com a realidade. Em SOBRE O NARCISISMO:
UMA INTRODUÇÃO, o pai da psicanálise parece não acreditar que o ego seja
um componente inato da estrutura psíquica. Freud propõe“...que estamos
destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode existir no
indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido.” (Freud, 1914) No
entanto, Melanie Klein acreditava que desde o início da vida já existiria um ego,
mesmo que rudimentar e primitivo. Muito provavelmente, pelo fato de Klein ter
vivido a experiência de maternagem, pode ir mais longe com a compreensão
da relação primitiva do bebê. Para a pensadora esse ego primitivo irá se
desenvolvendo conforme experiências bem-sucedidas nos primeiros meses de
idade. Seguindo se ampliando conforme os impulsos advindos do id possam
ser transformados pela ação da maternagem. Por conta da fragilidade do ego
no início da vida, existe incapacidade do uso da repressão, sendo assim,
interage com o mundo externo e se defende através do mecanismo de cisão e
projeção (identificação projetiva).
O ego (Ich) surge como fator de ligação para os processos
psíquicos. Parte do aparelho psíquico que abre mão do princípio do prazer em
nome do princípio da realidade. Dessa maneira cada parte do id que se torna
ego deve então abrir mão de certa cota de satisfação de prazer, logo deve
haver aí certa tolerância ao desprazer. Freud fazia uma analogia da relação
entre ego e id com a figura de um cavaleiro tentando dominar seu cavalo.
Dessa forma o ego parece ser uma instância de organização coerente dentro
dos processos mentais. Freud propõe que o ego é constituído por precipitados
de catexias abandonadas. Ligações objetais que contribuíram com a formação
do ego por meio de modelos. Porém, para que possa haver ligação objetal
esse vínculo deve ter passado por outro processo psíquico num modelo de
ligação mais primitivo chamado identificação. Contudo, se a forma abandonada
de ligação não conseguiu evoluir para ligação objetal e manteve-se como
identificação com o objeto, então o ego não poderá contar com essa
experiência para nutrir-se e expandir em seu processo de desenvolvimento.
Portanto, o ego parece se desenvolver conforme a capacidade da evolução no
vínculo através do modelo da ligação objetal.
Como vimos anteriormente, na proposta de Bion, que fora discípulo
de Klein, do id brotam os elementos beta, o nome que deu para as pulsões
desordenadas que tenderiam por procurar a realidade. Buscando no mundo
externo (num movimento de Eros) um objeto que possa ser capaz de contê-lo e
através de certa função alfa, de transformar elementos beta em elementos alfa,
que dessa forma passam então a fazer parte dos conteúdos oníricos e ficam
assim disponíveis a serem pensados. Dessa forma, através de um modelo
continente/contido agora esses elementos podem integrar-se ao ego e a
personalidade consciente. A partir da função alfa da mãe o bebê vai
aprendendo a fazer isso por si mesmo e então a capacidade de autocontenção
das emoções está localizada no ego. É o centro organizado e organizador do
“aparelho pensador”.
Entretanto, apesar das tentativas de diferenciação entre ego e id, em 1923,
Freud alerta: “O ego não se acha nitidamente separado do id; sua parte inferior
funde-se com ele.” Existe no ego uma parte inconsciente ou pré-consciente de
onde são gerados os mecanismos de defesa do ego. São recursos auto-
defensivos que antes de tudo privam por um bom funcionamento psíquico.
Para Melanie Klein, em sua obra A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE
SÍMBOLOS NO DESENVOLVIMENTO DO EGO de 1930, a capacidade de
formação de símbolos é o que permite estar ligado a aquilo que não está
disponível ao alcance dos órgãos dos sentidos, portanto, na capacitação do
ego abre-se mão de certa urgência na confirmação dos órgãos dos sentidos. A
partir da estruturação egóica nos tornamos mais capazes de tolerar faltas e
ausências, por conta da ampliação na capacidade de contenção ou
autocontenção. É possível afirmar que o nome popular do ego é autoestima,
sendo que as capacidades de auto-reconhecimento e auto-confiança são
funções do ego. O ego é em última instância, aquilo que estamos sendo e
quando o sujeito está confiando naquilo que ele está sendo é sinal de que sua
autoestima se encontra num bom nível, logo a mente está saudável. Um ego
bem nutrido, integrado e bem estruturado, significa uma boa vinculação
consigo mesmo e isso reflete justamente na capacidade de vincular-se às
coisas do mundo de forma afetuosa e verdadeira. A capacidade que se pode
ter em reconhecer o outro, sem que isso comprometa o reconhecimento de si
mesmo, coincide com a autoestima. Logo, a gratidão é sinal do bom
funcionamento mental.
O Conceito de Símbolo
Sobre a Identificação
Objeto
FASE ANAL
FASE FÁLICA
Sem que haja um critério cronológico rígido, por volta dos três anos de
idade, a libido inicia nova organização que em condições favoráveis, se
estenderá até por volta do quinto ano de vida. Agora a erotização passa a ser
dirigida e concentra-se nos genitais, desenvolve-se o interesse infantil pela
genitália e a masturbação torna-se naturalmente frequente. Mas, apesar da
fase fálica se organizar de forma onde os impulsos concentram-se nos órgãos
genitais, a função de reprodução ainda não se encontra desenvolvida de forma
suficiente. “A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta
fase, a genital.” (1905). A atenção é toda voltada ao órgão genital masculino (o
falo), devido à forma interna do órgão sexual feminino. Freud descreve o
quanto oculto ficam aspectos que definem o gênero sexual quando propõe na
conferência sobre a FEMINILIDADE: “Com seu ingresso na fase fálica, as
diferenças entre os sexos são completamente eclipsadas pelas suas
semelhanças. Nisto somos obrigados a reconhecer que a menininha é um
homenzinho” (Freud, 1933) Um homenzinho que imagina ter sido castrado, em
que o órgão não tenha crescido, ou ainda que não tenha sido agraciado com
um falo. Sendo assim, não temos a distinção entre masculino e feminino, mas
sim fálicos ou castrados. “Nela, a divisão em opostos que perpassa a vida
sexual já se constituiu, mas eles ainda não podem ser chamados de masculino
e feminino, e sim ativo e passivo.” (Freud, 1905)
O Complexo De Édipo
PERÍODO DA LATÊNCIA
Freud não inclui esse período como sendo uma fase entre as outras que
descreve, já que não está relacionada a uma área erógena no corpo físico, no
entanto penso ser muito importante reconhecer a relevância das experiências
vividas nesse período que fica entre a fase fálica e a genital. Essa importância
vem, sobretudo dos desdobramentos das possíveis fixações nessa ocasião e
suas prováveis consequências para o desenvolvimento emocional saudável.
Através dos estudos psicanalíticos descobrimos que os germes dos
impulsos sexuais já estão presentes no recém-nascido, continuam a
desenvolver-se durante algum tempo, para então serem dominados por
progressivo processo de supressão, por conta da introdução da educação para
a vida civilizada. O período da latência se estende, em média, dos seis anos de
idade até a puberdade, que inicia por volta dos nove anos de vida, não tendo
tanto rigor dentro dessa noção cronológica. Como já mencionado nesse
trabalho, mas digno de ser repetido tantas vezes quanto necessário, cada caso
apresenta certas possibilidades de experiência. Neste período a criança
demonstra “aparente” diminuição do interesse sexual, o que seria o resultado
dos fortes impulsos genitais, conflitados pelas normas e regras sociais. Digo
aparente, pois, esse interesse continua, mas agora, como num retorno à
épocas de autoerotismo e do narcisismo, a criança se afasta do mundo externo
(outro) e busca a satisfação por si própria, mas ainda com imagens e fantasias
que incluem o outro.
Com a repressão das ideias incestuosas, componentes do complexo de
Édipo, acontece uma reclusão da vida social. A energia da libido fica
temporariamente deslocada de seus objetivos sexuais. A criança é inundada
por sentimentos como asco, vergonha e o constrangimento toma conta. As
exigências dos ideais estéticos e morais, são fatores que contribuem com o
afastamento do mundo externo quanto ao aspecto sexual. A partir da
consolidação do superego e a maturidade do ego, o caminho aponta para
vivências posteriores, deslocando-se dos pais para professores, treinadores e
outros adultos, representantes de autoridade. A criança tende a juntar-se em
grupos do mesmo sexo. Faz piadas a respeito dos problemas sexuais.
Na latência são criadas forças psíquicas que têm a função de dar conta
de bloquear o curso do instinto sexual que se pronuncia no mundo externo.
Essas forças irão, então, buscar recursos para assistir a demanda que tem um
fluxo continuo. Como a energia libidinal é permanentemente gerada, não pode
ser simplesmente eliminada, tão pouco suporta eficientemente a repressão,
geram assim grande tensão interna. Boa parte dela é canalizada para outras
finalidades. Assim, ela é direcionada ao que Freud denominou sublimação para
o desenvolvimento intelectual, religioso, artístico e social da criança.
“Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante esse
desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua orientação
para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação,
adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais.
Acrescentaríamos, portanto, que o mesmo processo entra em jogo no
desenvolvimento de cada indivíduo, e situaríamos seu início no período de
latência sexual da infância.” (Freud, 1905)
O objetivo deste período é o aumento da habilidade para lidar com o mundo
das coisas e pessoas ao redor, sendo que hereditariedade e educação são
corroborantes nesse processo de repressão dos impulsos. “Após o fim deste
período de latência, como é chamado, a vida sexual avança mais uma vez,
com a puberdade; poderíamos dizer que tem uma segunda eflorescência.”
(Freud, 1905)
FASE GENITAL
PERVERSÃO
Os desvios no amor
... A saber, que o homem não é realmente um só, mas verdadeiramente dois
em um. Digo dois, porque o estado dos meus conhecimentos não vai além
desse ponto. Outros virão, outros me ultrapassarão nessa mesma direção, e
aventuro-me a pensar que o homem será finalmente conhecido como um
simples agregado multiforme de cidadãos incongruentes e independentes uns
dos outros. O Médico e o Monstro, Robert Louis Stevenson (1850 - 1894).
Dr. Jekill deixa uma carta relatando sua experiência, que antes de tudo,
traz a revelação de um momento reflexivo daquele que tivera um insight
(compreensão interna) sobre si mesmo. Alguém que havia descoberto o terrível
fato de que talvez sua maior perversão fosse justamente o que o sustentara
vivo. Talvez em sua busca por ser alguém livre de imperfeições, fora obrigado
a criar, no quarto dos fundos de sua alma, um ser perverso. Alguém que ele
mesmo não conhecia, e quando o pode conhecer, foi o fim. Na obra de
Stevenson, Dr. Jekyll, um dedicado médico que reunira em torno de seu nome
qualidades como as de cavalheirismo, educação e bondade, desenvolve uma
fórmula que permite transformá-lo em Mr. Hyde, um ser frio e nefasto que age
essencialmente por seus impulsos. O uso da poção decompunha a
manifestação da personalidade do médico, que assim se revelava alguém
dividido. Um recurso criado por ele, antes de tudo, para conseguir continuar
vivendo. Justifica-se com o argumento de que, amiúde era tomado por certos
desejos estranhos que ameaçavam o desenvolvimento e até a existência do
médico bem-sucedido. Na verdade, o preparado farmacológico não criava
alguém novo, mas revelava uma parte escondida no interior do gentleman. Ao
beber da poção, o médico era arremessado para a extremidade avessa do
médico, ocupando sua alma da irracionalidade do monstro. O uso da
substância química criava um fenômeno onde era evitada assim a experiência
do conflito, já que delegava a cada parte do eu uma característica. Enquanto
Dr. Jekyll (que carrega a morte em seu nome; kill), abriria mão do desejo
proibido e assim revelava um homem amável e preocupado com o outro; Mr.
Hyde (escondido), de forma inversa, abre mão da realidade e satisfaz o
impulso perversamente, atacando pessoas num ódio mortal pelo ser humano.
Entretanto, o maior oprimido e grande sacrificado pelos atos perversos de Mr.
Hyde seria exatamente Dr. Jekyll.
O que poderia nos permitir cogitar, com propriedade, sobre o que é
perversão, que tipo de argumento poderia nos autorizar diagnosticar ou
designar algo como sendo perverso?A palavra "perversão", se entendida por
um vértice onde é utilizada a linguagem coloquial, ganha logo um formato
malévolo, um representante venenoso da crueldade. No dicionário (Michaelis
2003), encontraremos a palavra como sinônimo de expressões que aparecem
desde contaminação, infecção, até corrupção, ou mesmo depravação. Se
estivermos utilizando um vocabulário coloquial, encontraremos a palavra
perversão como significado de algo que se encontre, quem sabe, no avesso do
que é humano. Na medicina (quiçá a primeira ciência a estudar o termo), a
palavra perversão aparece como classificação de uma enfermidade, ou
descrição de algum tipo de degeneração.Nenhum desses significados atende
os requisitos de nossa reflexão, contudo, se procurarmos a origem da palavra,
encontraremos no latim, PERVERTERE, de PER, “totalmente”, mais
VERTERE, “virar”.
A partir dos estudos da Psicanálise, sobre tudo na obra de Sigmund
Freud, TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, a conotação
da perversão ganha alguns importantes ponderadores, apontando para a
mesma direção semântica do radical latim da palavra. Através de um exame
mais cuidadoso, podemos apreciar maduramente a palavra em seu significado
e assim perceberemos certos pontos de vista que permitem deslocar o conceito
da posição fixa, no extremo oposto do bom, do bem, do humano e perceber um
significado mais amplo que poderia abarcar o termo. No segundo tópico do
primeiro capítulo da obra freudiana de 1905, o termo é descrito como uma
espécie de desvio. Mas é importante percebermos que esse desvio ocorre no
caminho em direção ao encontro sexual, ou a cópula em si. Como que um
adiamento temporário no objetivo da cópula, assim como um desvio no
caminho do desenvolvimento sexual, descrito como sadismo, masoquismo,
pedofilia, exibicionismo, voyeurismo, etc. Um atalho que desvia do outro, ou do
objeto, e se direciona à satisfação narcísica. Como se em certo momento a
vontade de buscar o objeto externo convertesse simplesmente em desejo de
satisfação do impulso. A parte da libido que ficou presa à satisfação nos
objetos primitivos (fixação) apresenta-se na vida adulta como perversão. São
pulsões que não conseguem encontrar satisfação no objeto, se desviando
antes do encontro.
Em UMA CRIANÇA É ESPANCADA - UMA CONTRIBUIÇÃO AO
ESTUDO DA ORIGEM DAS PERVERSÕES SEXUAIS, Freud propõe
que:“Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de causas acidentais na
primitiva infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode,
à luz do nosso conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de
perversão.” (Freud, 1919) Porém, é importante percebermos que, apesar de
parte do eu pressionar a totalidade a olhar para outro lado, só pode desviar-se
aquele que segue alguma direção. Freud postulara em 1905 sobre uma
polêmica ideia que ainda hoje nos parece de difícil compreensão, ou no mínimo
pega o leigo de surpresa, com certa sensação (muitas vezes repleta de
restrições em seu reconhecimento) de que sempre sentira algo que ao mesmo
tempo acaba de conhecer.
Logo, perceberemos o fato de que utilizamos muito mal a palavra
perversão, ou pelo menos limitamos muito sua utilização se atribuirmos a ela
um movimento de reprovação. A ideia é que a perversão se apresenta como
componente até mesmo da vida sexual saudável, sendo considerada pelo
sujeito como qualquer outro pensamento secreto. Freud dá um passo imenso
na direção da necessidade de desfazer a fronteira insolúvel entre saúde e
doença, pelo menos no âmbito psicológico, ou seja, quando se estuda a mente
humana.
“As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético
dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos, em sua
totalidade, na disposição sexual indiferenciada da criança, e cuja supressão ou
redirecionamento para objetivos assexuais mais elevados — sua “sublimação”
— destina-se a fornecer a energia para um grande número de nossas
realizações culturais.” (Freud, 1905)
É o que propõe Freud no seu FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO
DE HISTERIA, e se pudermos sustentar a direção desta proposta, verificamos
que reprovar a perversão é reprovar parte do eu. Este afastamento temporário
do objeto externo tem a exclusividade e fixação como constituinte em seu
modelo. O estudo da perversão está diretamente ligado ao reconhecimento dos
estados neuróticos, já que Freud propõe que "a neurose é o negativo da
perversão", ou seja, enquanto o neurótico fantasia, o perverso atua (accting
out). Esse desvio ocorreria por meio de uma fixação decorrente da
impossibilidade de satisfação do desejo sexual na infância durante as fases do
desenvolvimento da libido, o que faria com que no neurótico, a partir da
repressão do impulso, criassem-se sintomas que serviriam ao aparelho
psíquico como substitutos da satisfação sexual. Logo entendemos que a
neurose esconde um desejo perverso, encoberto pelo sintoma. A partir deste
ponto de vista, com auxílio da psicanálise, pudemos reconhecer que todos nós
temos uma coleção de neuroses e, da mesma forma, passamos assim a
perceber a perversão como certa característica que pode ser descoberta até
mesmo no sujeito dito saudável. Mesmo no adulto que, pelo menos a priori,
conquistara o status de maturidade, conserva-se em sua personalidade (em um
lugar secreto) partes infantilizadas que amiúde se revelam em situação de
hiperexcitação, ou mesmo no prenúncio da perda do objeto amado.
Ora, assim como nos orienta o poeta romano Publio Terêncio Afro (195-
185 a.C. - 159 a.C.), em sua obra HEAUTONTIMORUMENOS: “sou homem:
nenhum assunto humano julgo alheio a mim”. Antes de Freud, Terêncio já
havia alertado sobre os meandros da mente humana. Essa busca consiste em
certa expansão para um nível onde cada um de nós guarda uma cota de toda
característica que possa ser atribuída ao ser humano. Se para Freud cada um
de nós guarda uma parte perversa (portanto, também neurótica), em 1957 na
obra, DIFERENCIAÇÃO ENTRE A PERSONALIDADE PSICÓTICA E A
PERSONALIDADE NÃO PSICÓTICA, Wilfred Bion, propõe um vértice de
pensamento que expande essa ideia no nível psicótico, onde ele reconhece
uma certa área psicótica presente na mente de cada sujeito. Sendo que a
possibilidade do analista reconhecer em si mesmo a faceta do psiquismo que
não mantem conexão com a realidade externa, ou seja, a descoberta de certa
parte psicótica em sua própria mente, seria para Bion o que o capacitaria a
receber e acolher pacientes que apresentem a predominância desse
funcionamento mental.
Antes de tudo, a perversão é uma espécie de dificuldade de reconhecer,
integrar-se e interagir com o real. Isso se pensarmos o ato sexual como um
modelo de encontro entre duas partes diversas da realidade onde existe a
possibilidade de criação de uma terceira.Verificamos por esse caminho que,
através de uma escala de evolução, a perversão estaria para o amor como um
primeiro tipo, ou ainda, um modelo menos desenvolvido, entretanto em
desenvolvimento. Um protótipo do amor que tenta bravamente seguir em frente
na tentativa de desenvolver-se, sem a garantia de que o consiga. Por
conseguinte, é o caminho que percorre o bebê até que aprenda a amar. Até
que possa ser capaz de retribuir aquilo que recebeu de seus dedicados
cuidadores e criar assim um modelo que possa servir a cada nova aproximação
amorosa em sua vida. Tento propor que talvez quem hoje ame um dia desejou
perversamente. Eros (deus do amor) é filho de Afrodite (deusa da beleza,
sedução) a geradora do afrodisíaco.
Mas, voltando ao belíssimo romance proposto no início do texto, se o
médico tivesse sido capaz de tolerar a imperfeição contida em seus
pensamentos perversos, teria a chance de integração das partes de sua
personalidade, abrindo assim a oportunidade de viver algo real, logo imperfeito.
Talvez custasse a ele momentos de “monstros”, contudo sob sua
responsabilidade, em detrimento da perfeição do gentil médico bem-sucedido.
Essa integração da personalidade só pode ocorrer quando existe a capacidade
de tolerar o desconforto do encontro com um ser total. Enquanto a
fragmentação é prazerosa por livrar o sujeito das responsabilizações, a
integração é desconfortável por demandar compromisso consigo mesmo.
Seguindo o mesmo caminho, percebemos que, a despeito da formulação
popular, onde o título de perverso é atribuído à descrição do vilão, malvado e
agressor, também o papel de vítima se encaixaria na descrição perversa,
quando cada agressor carrega uma vítima dentro de si, pronta a ser projetada
naquele que possa oferecer um modelo adequado para receber essa
atribuição.
REFERÊNCIA