Você está na página 1de 8

Gabriela Lazarini

Escritos sobre a clínica psicanalítica


na adolescência
Writings on psyhoanalytic clinic with adolescents
Gabriela Lazarini

Resumo
Isolamento excessivo, bullying, ameaças à construção da autoimagem, transgressões, cortes no
corpo, desejo de matar e de morrer, fragmentos do discurso que desvelam o uso de drogas,
experiências sexuais com pares do mesmo sexo. O objetivo deste artigo é compreender o que
a adolescência tem a dizer ao psicanalista. Um caminhar dirigido para a expansão da teoria e
dos dispositivos clínicos no campo da psicanálise.

Palavras-chave: Adolescência, Psicanálise, Inconsciente, Eros, Desejo.

Sexo é um troço que não entendo mesmo.


Juro que não entendo.1

Estudar a adolescência é estudar uma tem- possibilitou caracterizá-lo como adulto.


poralidade subjetiva, um tempo “entre Antes de tal nomeação/definição, éramos
dois”, entre dois modos de fazer laço social, todos crescentes.
uma temporalidade implícita na origem eti- No artigo Três ensaios sobre a teoria da
mológica do termo. Segundo um dicionário sexualidade, Freud (1905 [1996] p. 196) nos
etimológico,2 “adolescente” vem do particí- diz que a vida sexual adulta só é assegurada
pio presente do verbo adolescere que, em la- por uma
tim, significa crescer; enquanto o particípio
passado do mesmo verbo originou a pala- [...] conciliação entre as duas correntes di-
vra “adulto” – termos equivalentes a ‘cres- rigidas ao objeto e à meta sexual, a corrente
cente’ [adolescente] e ‘crescido’ [adulto] em da ternura e a corrente sensual [...]. É como a
português. Apesar de a adolescência ser travessia de um túnel perfurado desde ambas
considerada uma ‘invenção sociológica’ re- as extremidades.
lativamente recente, “[...] a palavra ‘adoles-
cente’ é cerca de cem anos mais antiga que Nesse sentido, a adolescência é entendi-
a palavra ‘adulto’”. Isso significa que pensar da como uma passagem que, a princípio, liga
a adolescência como uma fase, como uma nada a lugar nenhum, mas possibilita novas
passagem, só fez sentido a posteriori, ou “combinações e composições que levam a
seja, após a conceituação de sujeito, a qual mecanismos complexos”.

1. Frase do personagem Holden Caulfield do romance O apanhador no campo de centeio de centeio, de J. D. Salinger.
2. Disponível em: <https://www.dicionarioetimologico.com.br/adolescente>.

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019 163


Escritos sobre a clínica psicanalítica na adolescência

Nas palavras de Freud (1905 [1996] p. [...] verdadeira anatomia mítica, que corres-
196), ponde menos à estrutura dos órgãos genitais
do que a uma espécie de geografia afetiva do
[...] também aqui há uma oportunidade para corpo da parturiente (Lévi-Strauss, 1975, p.
perturbações patológicas, caso essas reorde- 224).
nações não se realizem.
O objetivo é narrar e nomear as dores
Daniela Viola e Ângela Vorcaro (2018, p. físicas de uma maneira que essas mulhe-
1) explicam que a adolescência é uma res possam apreendê-las “pelo pensamento,
consciente ou inconsciente”. Essas dores, re-
[...] tarefa psíquica que precisa incluir, em vestidas em “monstros fantásticos e animais
uma mesma equação, a escolha do objeto se- ferozes”, capturam as causas e identificam os
xual e a separação da família, com o conse- pontos que resistem ao livramento dos males
quente encaminhamento do jovem em dire- “bem definidos” pela cultura dos povos tra-
ção à sociedade mais ampla. dicionais (Lévi-Strauss, 1975, p. 225).
Um longo percurso é cantado, recheado
No Seminário 10: a angústia, Lacan por obstáculos, invasões, torneios, descidas
([1962-1963] 2005) caracteriza essa pas- e subidas, entradas e saídas de situações obs-
sagem como uma reformulação periódica curas auxiliadas pela convocação de “abrido-
de conceitos, uma passagem de um siste- res de caminho”, por quedas e resgates, por
ma conceitual para outro, quando consi- personagens como os espíritos protetores,
dera haver um curto “momento de resis- os espíritos maléficos, as criaturas sobrena-
tência”. turais e os animais mágicos que fazem parte
Viola e Vorcaro (2018) identificam nos de um sistema coerente que corresponde à
fenômenos da adolescência moderna a cosmologia indígena. O xamã, com seu can-
ausência de um tipo de operação psíquica to constituído por sons, ritmos, entonações
compreendida pelo antropólogo Lévi-S- e torções, pela letra enraizada em suas tra-
trauss como “eficácia simbólica”. Eficácia dições, apropria-se de um corpo desde en-
simbólica é o termo para a transmissão de tão metaforizado como travessia. Um ritual
algo impossível de ser significado, uma sustentado pela voz que enuncia o nascimen-
referência aos ritos de passagem, justa- to ao pedir passagem para um novo sujeito,
mente o que garante o atravessamento do abarcando todo o percurso desde a prepara-
impasse adolescente nas sociedades tradi- ção até a sua consolidação.
cionais. Na adolescência, todo esse percurso se
As pesquisas etnográficas de Lévi-Strauss atualiza tendo como protagonistas não mais
compreendem como nas culturas indígenas as parturientes ou os xamãs, porta-vozes da
sul-americanas determinadas “representa- trama fantasmática transmitida pela tradi-
ções psicológicas” são invocadas, através do ção; são os próprios jovens das comunidades
canto dos xamãs, no intuito de curar certas tradicionais, aqueles que até esse momento
doenças (Lévi-Strauss, 1975). não desfrutavam de nenhum tipo de status
Segundo Lévi-Strauss (1975, p. 221), o social, os responsáveis por conquistar o aval
canto dos xamãs “[...] constitui uma manipu- de pertencimento a determinado grupo. É
lação psicológica do órgão doente” de onde quando os meninos se preparam para o con-
se espera uma cura. fronto, para os desafios predeterminados
Na descrição do tratamento ofertado nos pelos rituais, quando apenas suas ações irão
partos difíceis, por exemplo, o canto descre- lhes garantir um lugar social hierárquico de-
ve em detalhes uma finido pela divisão social do trabalho.

164 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019


Gabriela Lazarini

É interessante sublinhar que tes afetivamente que nas famílias ocidentais,


o que, em seu entendimento, contribui para
[...] em muitos casos, esses rituais são caracte- a ausência de estados emocionais indesejados
rizados por provações físicas dolorosas e por (Viola; Vorcaro, 2018, p. 4).
marcas no corpo, como circuncisões, perfu-
rações, tatuagens, retirada de dentes e cabe- Além da temporalidade regida pela tradi-
los, amputações, etc. (Viola; Vorcaro, 2018, ção, os variados modelos de passagem têm
p. 5). em comum a função de reconhecimento e de
instituição dos jovens em uma comunidade.
No que diz respeito à sexualidade des- Os ritos de iniciação têm o caráter de modifi-
ses jovens, a antropóloga Margareth Mead, cação radical do estatuto e do sentimento de
(1928 citada por Viola; Vorcaro, 2018, p. identidade dos iniciados, que ascendem, as-
4) descreve os tabus, as obrigações e os privi- sim, a um saber superior e a um novo status
légios impostos às meninas de um povoado social, anteriormente cobiçado. Como even-
polinésio que habita a ilha de Samoa, ao sul tos que assinalam uma morte simbólica, os
do Oceano Pacifico. A pesquisadora explica ritos asseguram a transmissão social e o reco-
que nessa sociedade o tema do sexo, assim nhecimento do sujeito pelo grupo, bem como
como a exposição às cenas de gravidez, do demarcam a diferenciação entre homens e
ato sexual, do nascimento e da morte, faz mulheres (Viola; Vorcaro, 2018, p. 5).
parte do cotidiano das famílias. A ideia oci-
dental de privacidade não se aplica a essa E o que tudo isso tem a ver com a proble-
sociedade. O ponto principal de diferencia- mática adolescente atual?
ção é que os assuntos relacionados ao sexo Num esboço de resposta, podemos dizer
são públicos, estabelecidos como “estruturas que o adolescente das sociedades ocidentais
inevitáveis da existência”. se rebela contra o seu ‘destino’ e confronta,
Nessas condições, a escolha sexual não é através de atos, palavras, queixas e transgres-
um dilema moral, o que acarreta a ausência sões, a herança simbólica que fixa a realiza-
de impasses complexos devido a determi- ção de seu ser num lugar predeterminado.
nados posicionamentos que podem causar As experiências vividas e contadas pelos
conflitos familiares ou rejeição social. Quan- adolescentes reatualizam a trama simbólica
to à educação de crianças e adolescentes, eles transmitida pela tradição ordenada segundo
são instruídos sobre o sexo em seus aspectos as leis da linguagem. São esses atos que per-
morfológicos. mitem que os conteúdos recalcados relativos
à constituição cultural de instituições como
A diferença sexual é instituída desde cedo por estado, família e religião venham à tona.
tabu, já que meninas e meninos são mantidos É nesse tempo de passagem que as lacunas
separados até a adolescência (Mead, 1928 ci- de um passado são recolocadas, revestidas
tada por Viola; Vorcaro, 2018, p. 4). pelas grandes questões que causam como-
ção e discurso social. Os atos adolescentes
Trata-se de uma organização social em que os são enunciações que, assim como as provo-
conflitos são minimizados por uma tendên- cadas pelos xamãs, apelam pelo nascimento
cia à homogeneização. No plano familiar, isso de sujeitos inscritos, num tempo a posterio-
também é verificado. Mead (1928) atribui o ri, numa nova/velha lógica: a dos adultos do
temperamento brando e pouco conflituoso Ocidente.
dos membros de uma família samoana à ma- Às expensas de uma cronologia, o tempo
neira como as crianças são criadas. De acordo subjetivo da adolescência tem como marco
com ela, pais e filhos são muito mais distan- a impossibilidade de apreensão plena do sa-

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019 165


Escritos sobre a clínica psicanalítica na adolescência

ber sobre o sexo que irrompe no sujeito, dito Não apenas a ausência do conflito, mas
de outro modo, do saber sobre o desejo do a ausência de reguladores simbólicos, de
Outro – um tempo de luto dos ideais fami- leis inscritas nos códigos do Direito Cons-
liares que nortearam os laços subjetivos na titucional em consonância com as transfor-
infância e constituíram toda uma trama fan- mações identitárias, efeito dos movimentos
tasmática que deixou de funcionar (Ferrão; feministas, raciais e LGBT+ nas últimas dé-
Poli, 2014). cadas. Sem adentrar nessa questão, visto não
A vivência do desamparo, o lado obscu- ser esse o objetivo desse artigo, ainda assim
ro de um campo aberto pelo impossível do questionamos: o que distingue, por exemplo,
desejo, é efeito de uma condição que som- a concepção moderna de pessoa humana da-
breia o espaço narrativo que tende a se abrir, quela advinda das culturas gregas, romana e
na medida em que o jovem se distancia da judaica antiga, do pensamento cristão primi-
família e se autoriza a transitar nos espaços tivo e escolástico?
públicos. Um movimento que vem sendo Segundo Marcus Vinicius Parente Re-
cerceado pelas expectativas dos adultos de bouças e Analice Franco Gomes Parente,3 a
nossa época fascinados pelas possibilidades crença dogmática na ideia de dignidade da
imaginárias atribuídas à adolescência como pessoa humana é uma ideia capital que co-
uma fase de prazer e liberdade. loca “o homem em primeiro plano” num
Valéria Sampaio Ferrão e Maria Cristina mundo “multifacetado de bruscas e fugazes
Poli (2014, p. 52) explicam que mudanças existenciais”, imerso em novos
paradigmas que caracterizam o “que se tem
[...] ser jovem virou slogan usado pela publici- denominado globalização”. Nesse contexto,
dade como ‘o melhor’, ‘o sucesso’, significantes encorajaria o debate a aprovação de leis que
que fixam o sujeito referenciado pelo ‘Eu Ide- garantam a sobrevivência e o convívio com
al’ em detrimento do ‘Ideal de Eu’ – conceitos a diferença identitária, ao circunscrever o
freudianos. campo de confronto dialético.
Na contramão de uma passagem que faz
Nesse contexto, fica comprometida a fun- nascer sujeitos de direitos e deveres, qua-
ção de guia do ‘Ideal de Eu’, intermediado se aos moldes da descrição de Lévi-Strauss
pela imagem que responde do lugar desti- (1975), que cartografa as coordenadas sim-
nado ao sujeito no desejo do Outro (Lacan, bólicas que inauguram o tempo da infância
([1953-1954] 2009). Na atualidade, há um (do infans) e o do adulto, abre-se “[...] uma
vazio do lado do adulto que desampara o brecha para os adolescentes serem coopta-
adolescente. dos por Estados totalitários ou Instituições,
Ao se perceberem num mundo que dita como a Igreja e o Exército”.
regras, em que não há/existe um “conflito ne- Alinhadas com Freud ([1921] 1996) na
cessário” entre suas inovações, seus sonhos e discussão trazida no texto Psicologia das
seus ideais que contrariam os referenciais ou massas e análise do Eu, Ferrão e Poli (2014, p.
os caminhos impostos por pais e professo- 52) revalidam o convite de Maria Rita Kehl
res, os jovens deixam de se posicionar como (2008) de pensar como “o esvaziamento da
autores de sua própria narrativa (Ferrão; experiência tira o sentido da vida”.
Poli, 2014, p. 52).
O efeito dessa ausência são relatos de ex-
periências não ouvidas nem reconhecidas
em sua magnitude, sejam transgressoras, 3. Para saber mais, consultar REBOUÇAS, M. V. P.;
PARENTE, A. F. G. A construção histórica do conceito de
sejam heroicas, atos que permanecem silen- pessoa humana. Disponível em: <http://www.publicadireito.
ciados. com.br/artigos/?cod=066d47ae0c1f736b>.

166 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019


Gabriela Lazarini

As autoras comentam sobre o Ao buscar em Freud algumas respostas


para a problemática adolescente, notamos
[...] paradoxo da depressão de uma cultura que, nas sociedades ocidentais, é o amor en-
que tem a juventude como ideal, apoiada em tre jovens e adultos, ou melhor, a confiança
sensações efêmeras de prazer, onde se cava que torna incondicional amor entre eles, o
um buraco cada vez maior pela falta de sen- que está sob provação.
tido. Uma hipótese alinhada com a defini-
ção freudiana acerca da identificação, ou
Em Psicologia das massas e análise do Eu, seja, com “a mais remota expressão de um
Freud ([1921] 1996, p. 106) explica que nes- laço emocional com outra pessoa” (Freud,
ses dois grupos artificiais, Igreja e Exército, [1921] 1996, p. 115). Essa definição é atre-
a causa do laço que une cada integrante do lada como função à trama edípica, quando
grupo ao líder é o amor de Cristo ou do “co- Freud explica que a identificação para o me-
mandante-chefe” por todos os integrantes, nino, por exemplo, é o que o impulsiona a
um amor de “pai que ama a todos igualmen- tomar o pai como ideal, sendo capaz de de-
te e, por essa razão, eles são camaradas entre senvolver, a partir daí, uma relação do tipo
si”. anaclítica para com a mãe.
Freud enfatiza que o líder desses grupos Assim, as duas correntes dirigidas ao obje-
tem a função de garantir a distribuição do to – a da ternura e a sexual, que teriam como
amor de modo igualitário, do contrário o destino o “avanço irresistível no sentido de
pânico pode surgir como um sinal de au- uma unificação da vida mental” – acabariam
sência dessa função distributiva que quan- por se reunir, “o complexo de Édipo normal
tifica as forças psíquicas envolvidas no laço origina-se de sua confluência”. Teríamos, as-
entre os integrantes, o que pode acarretar sim, aquilo que Freud ([1921] 1996, p. 115)
não só na dissolução do grupo mas também compreendeu como um adulto. Ainda que
no aumento dos crimes e dos atos de vio- pertinente, essa análise teórica desconside-
lência. ra o que acerca do inconsciente, nos chama
Nesse texto, Freud defende que os laços atenção nesse texto e em tantos outros do
emocionais constituem a essência da men- autor.
te grupal, nomeia de ‘Eros’4 esse poder que Destaco uma citação:
mantém unido tudo o que existe no mundo.
Diz ainda que o abandono de tudo o que dis- Sabemos que as neuroses de guerra que asso-
tingue um integrante do outro, possibilitan- laram o exército alemão foram identificadas
do, inclusive, a influência do líder do grupo como sendo um protesto do indivíduo contra
por sugestão, só pode ocorrer em decorrên- o papel que se esperava que ele desempenhas-
cia da necessidade que cada integrante tem se [...] (Freud, [1921] 1996, p. 107).
de preservar a harmonia com os membros,
de preferência a estar em oposição a eles, “de Para Freud, o duro tratamento dos solda-
maneira que, afinal de contas, talvez o faça dos alemães pelos seus superiores na guerra
ihnen zu Liebe”5 (Freud, [1921] 1996, p. em questão seria a causa daquilo que no-
103). meou como “moléstia”. Freud ([1921] 1996,
p. 107) chega a escrever que “as reivindica-
ções da libido” não foram bem apreciadas
4. “Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o pelos superiores e que, por isso, os soldados
‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força se dirigiram para outro mestre.
amorosa, a libido da psicanálise [...]” (FREUD, 1921 [1996],
p. 102). Na lição de 22 de janeiro de 1964 do seu
5. Em consideração a eles ou pelo amor deles. Seminário 11: os quatro conceitos fundamen-

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019 167


Escritos sobre a clínica psicanalítica na adolescência

tais da psicanálise, Lacan ([1964] 2008, p. Segundo Lacan ([1964] 2008, p. 28), a de-
25-26) discursa sobre o título O inconscien- finição de que “o inconsciente é estruturado
te freudiano e o nosso. Inicia com o poema como uma linguagem” torna a psicanálise
curto de Aragon Contracanto, para retomar muito mais acessível ao campo da ciência do
o que foi dito ao longo do seu seminário do que na época de Freud. Um acesso pela via
ano anterior a respeito da função do -ϕ e de da linguística,
sua correspondência com as formas diversas
do objeto a. [...] cujo modelo é o jogo combinatório ope-
Ainda na introdução, sublinha que uma rando em sua espontaneidade, sozinho, de
das coordenadas indispensáveis para a apre- maneira pré-subjetiva – é essa estrutura que
ciação de seu ensino é que as pessoas dá seu estatuto ao inconsciente.

[...] não podem, onde estão, imaginar até que A linguística é o que garante que há sob
grau de desprezo, ou simplesmente de desco- o terreno do inconsciente “algo de qualificá-
nhecimento para seu próprio conhecimento, vel, de acessível, de objetivável”. Lacan cita O
podem chegar os praticantes [da psicanálise] pensamento selvagem7 (Lévi-Strauss, 1969)
(Lacan, [1964] 2008, p. 26). como fundamento para o inconsciente.

Lacan está se referindo à função da voz do Antes de qualquer experiência, antes de qual-
psicanalista, “um instrumento”, uma fala que quer dedução individual, antes mesmo que
também corresponde ao lugar do -j.6 se inscrevam as experiências coletivas que só
Lacan ([1964] 2008, p. 27) diz claramente são relacionáveis com as necessidades sociais,
que o inconsciente freudiano é “outra coisa”, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as
o que ele chama de “recusa do conceito”. La- linhas de forças8 iniciais [...] Antes ainda que
can dedica todo o Seminário 11 aos quatro se estabeleçam relações que sejam propria-
conceitos freudianos principais, quais sejam: mente humanas, certas relações já são deter-
o inconsciente e a repetição, a transferência e minadas. Elas se prendem a tudo que a na-
a pulsão. Anuncia que, ao tratar do conceito tureza possa oferecer como suporte, suportes
de transferência, pretende criticar o que uma que se dispõem em temas de oposição. A na-
análise tem de “[...] profundamente proble- tureza fornece, para dizer o termo, significan-
mático, e ao mesmo tempo diretor, a função tes, e esses significantes organizam de modo
da análise didática”; isso sem minimizar “o inaugural as relações humanas, lhes dão as es-
lado movente, se não escabroso” de uma truturas, e as modelam (Lacan [1964] 2008,
aproximação com esse conceito. p. 28).
Para Lacan, todo conceito, para ser esta-
belecido, implica numa aproximação com “a O importante, para nós, é que vemos aqui o
realidade que ele foi feito para apreender”, nível em que – antes de qualquer formação
uma aproximação ao que nos impõe, sob a do sujeito, de um sujeito que pensa, que se si-
forma do cálculo infinitesimal. Inconsciente,
por exemplo, como o mínimo finito, conce- 7. Segundo nota introdutória da 8ª edição, a tradução literal
bido apenas por um “salto, por uma passa- do termo “pensamento selvagem” é o nome da flor conhecida
gem ao limite, é que ele chega a se realizar”. no Brasil como amor-perfeito, amor-perfeito silvestre,
ou amor-perfeito bravo, ou ainda violeta-tricolor (Viola
tricolor, L., pensamento dos campos, erva·da·trindade).
8. O lugar de opacidade descrito pelo amante no poema de
6. Lugar de hiância, do que sobra essencialmente da função Aragon. Assim como a fala do psicanalista, corresponde
da causa, do “inanalisável” dos conceitos, do que apesar de a algo de anticonceitual, indefinido e não racionalizado –
escrito, não pode ser racionalizado (Lacan, [1964] 2009, p. corresponde a CAUSA e se distingue da LEI (Lacan, [1964]
29). 2009).

168 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019


Gabriela Lazarini

tua aí – isso conta, é contado, e no contado já Freud entende como causa da doença dos
está o contador. Só depois é que o sujeito tem soldados a falta de amor dos mestres para
que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como com seus subordinados, de acordo com a
contador (Lacan [1964] 2008, p. 28). citação freudiana “[...] as reivindicações da
libido não foram bem apreciadas” (Freud,
Retomando o que dissemos no início do [1921] 1996, p. 107).
artigo, compreendemos a adolescência como Em contrapartida, para Lacan, o que cau-
o intervalo entre esses dois tempos, entre o sa é o desejo. Lacan ([1964] 2008) fala do
antes e o só depois de um reconhecimento amor, do Eros conceituado por Freud com
do sujeito enquanto “contador”. É esse o do- certa ironia. Segundo ele,
mínio onde a lógica de forças determinantes
organiza o que se entende como cadeia sig- [...] o inconsciente se acha na margem estri-
nificante, serve de suporte para as relações tamente oposta à de que se trata no amor, do
humanas, na medida em que organiza os ele- qual todo mundo sabe que é sempre único e
mentos de uma língua em temas de oposição: que a fórmula quem perde um encontra dez
preto-vermelho; amor-ódio; medo-desejo, encontra nele sua melhor aplicação (Lacan,
etc. O desfalecimento, o tropeço, a rachadura, [1964] 2008, p. 32, grifo do autor).
a surpresa, o achado, o que manca ou claudi-
ca são efeitos de uma lacuna, de uma fenda, A neurose, assim como o amor que faz
de um intervalo ou hiância no encadeamen- um, tem caráter absoluto, coloca-se como
to da cadeia significante – é “algo que aparece miragem sobre “o fundo de uma totalidade”,
como intencional, certamente, mas de uma aos moldes de uma cicatriz, “não cicatriz da
estranha temporalidade”, é algo “não realiza- neurose, mas do inconsciente”.
do” num outro tempo, definido como desejo Retomo a palavra de Lacan ([1964] 2008,
inconsciente (Lacan, [1964] 2008, p. 32). p. 33, grifo do autor):
Voltamos a Freud ([1921] 1996), que ad-
mite a dimensão da causa, tão defendida por [...] vocês concordarão comigo em que o um
Lacan, quando entende as neuroses de guer- que é introduzido pela experiência do incons-
ra como um protesto dos soldados alemães ciente é o um da fenda, do traço da ruptura.
contra o papel destinado a eles mesmos en-
quanto sujeitos de desejo. Ao contrário do que Lacan brinca com a as palavras, com essa
interpretou Freud como causa da neurose de definição de inconsciente como conceito re-
guerra, o tratamento duro dos superiores pos- ferenciado pela linguística de Lévi-Strauss
sibilitou aos soldados uma resposta, talvez a (1969):
única naquele contexto, para a seguinte ques-
tão: o que o Outro quer de mim?9A neurose Aqui brota uma forma desconhecida do um,
de guerra desencadeou novos laços, novos o Un do Unbewusste. Digamos que o limite
arranjos simbólicos, determinou a falha, o do Unbewusste é o Unbegriff – não o não con-
atraso, ao atrapalhar ou romper com o objeti- ceito, mas o conceito da falta (Lacan, [1964]
vo dos mestres de guerra de ganhar batalhas. 2008, p. 33).
Em Freud, “moléstia”, “neurose de guerra” é a
resposta advinda do confronto com o desejo Agora que chegamos neste ponto, nos
do Outro, que instaura a dimensão da perda, permitam uma provocação: se as neuroses
do inconsciente, um lugar onde o encontro é de guerra dos soldados de Freud tinham algo
sempre com o vazio de significação. a dizer a respeito do desejo de seus mestres,
a clínica psicanalítica, ao fazer realizar o in-
9. A submissão? A morte? consciente, inscrita nesse tempo lógico que é

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019 169


Escritos sobre a clínica psicanalítica na adolescência

a adolescência, tem o que a dizer a respeito LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos
do desejo dos seus? fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido
por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno.
2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano
Abstract no Brasil).
Excessive isolation, bullying, threats to the
construction of self-image, transgressions, cuts LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de
in the body, desire to kill and die, fragments Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
that reveal the use of drugs, sexual experiences LÉVI-STRAUSS, C. Pensamento selvagem (1969).
with same-sex couples. The purpose of this Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus,
article is to understand what adolescence has 2008.
to say to the psychoanalyst. A path directed
towards theoretical expansion and clinical VIOLA, D. T. D.; VORCARO, A. M. R. A
adolescência em perspectiva: um exame da
devices in the field of psychoanalysis. variabilidade da passagem à idade adulta entre
diferentes sociedades. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v.
Keywords: Adolescence, Psychoanalysis, 34, e3448, 2018 . Disponível em: <http://www.
Unconscious, Demand, Desire. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
37722018000100507&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 10 fev. 2019. Epub Sep 17, 2018. <http://dx.doi.
org/10.1590/0102.3772e3448>.
Referências
Recebido em: 10/03/2019
FERRÃO, V. S.; POLI, M. C. Adolescência como Aprovado em: 12/04/2019
tempo do sujeito na psicanálise. Adolesc. Saúde, Rio
de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 48-55, abr./jun. 2014.
Sobre a autora
FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego
(1921). In: ______. Além do princípio de prazer, Gabriela Lazarini
psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Psicóloga pela Faculdade Ruy Barbosa
Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio (Salvador-BA).
de Janeiro: Imago, 1996. p. 79-154. (Edição standard Psicanalista.
brasileira das obras psicológicas completas de MBA em psicologia organizacional,
Sigmund Freud, 18). relações de trabalho e gestão de pessoas
pela Faculdade Ruy Barbosa (Salvador-BA).
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios Endereço para correspondência
sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901- E-mail: <gabilazarini@gmail.com>
1905). Direção geral da tradução de Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 119-229. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, 7).

KEHL, M. R. A fratria órfã: conversas sobre a


juventude (2008). São Paulo: Olho d’Água; 2018.

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de


Freud (1953-1954). Texto estabelecido por Jacques-
Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-


1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
2005. (Campo Freudiano no Brasil).

170 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 51 | p. 163–170 | julho/2019

Você também pode gostar