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Levantamento crítico da literatura sobre a transmissão psíquica da violência doméstica e

reflexão a partir de Kaes dos casos no âmbito do Brincando em Família.

TEXTO:
O texto aqui proposto terá como foco central um levantamento crítico da literatura sobre a
transmissão psíquica da violência doméstica entre mulheres negras, e reflexão a partir de
Kaes dos casos no âmbito do Brincando em Família. Para isso, o levantamento bibliográfico
utilizou as bases de dados X, Y e Z com artigos publicados nos últimos 10 anos. De modo
geral, a proposta aqui centrada envolve explorar a teoria de René Kaes sobre transmissão
psíquica a relacionando com aspectos que envolvem a escolha e permanência em
relacionamentos conjugais violentos. A partir disso, o discurso de X casos de mulheres
negras que chegaram até o programa Brincando em Família e cuja estrutura familiar se
enquadra em violência doméstica foram analisados à luz dessa mesma teoria - dando vazão
aos aspectos transgeracionais que se expressam na conjugalidade violenta. Ademais, busca-se
compreender como a díade mãe-bebê se constitui a partir de um ambiente violento, e os
efeitos da violência nessa relação. Por fim, espera-se levantar e articular as estratégias de
enfrentamento da violência - pensando a violência doméstica como um problema ligado à
saúde pública.

Violência doméstica
A violência aqui tratada se refere não somente à física, mas também à psicológica,
sexual e moral. A violência conjugal é um tipo de violência doméstica e intrafamiliar - essa
produção está centrada na violência entre o casal, mais especificamente para aquela praticada
pela figura masculina nas relações heterosexuais. Tendo em vista a violência a partir de uma
perspectiva sociohistórica, é possível mencionar a socióloga Maria Cecília Minayo, no que
tange a presentificar a violência como um fenômeno complexo e multifacetado, que envolve
desde aspectos sociológicos, culturais e econômicos. Sendo assim, enredada amplamente por
fatores do microssistema, mesossistema e exossistema (BRONFENBRENNER, 1996), para
além da relação conjugal em si. Assim, a violência pode ser compreendida além de um
produto da dinâmica de um casal em específico ou da sociedade, mas também como um
elemento estruturante e que faz parte da conjuntura social de um grupo.
É interessante salientar aqui um conceito proposto por Minayo (2006), que explana
sobre uma visão popular acerca da violência, contida apenas em seu sentido moral, de modo
que, ela apenas seria expressa através de crime, corrupção, pecado, e algo não tolerado pelas
pessoas. Sendo, principalmente, visualizada como violência física - que atinge diretamente a
integridade física; violência econômica - ligada à manipulação e subordinação do outro, pela
via do capital, e por último, a violência moral e simbólica, referente a uma violação à
dignidade e direito do outro. A partir disso, se evidencia como, em sua maioria, as ideias
contidas no social podem escamotear as distintas vicissitudes envolvidas na violência
doméstica, favorecendo assim, que muitas vezes a violência psicológica que ocorre na relação
conjugal se torne invisível aos olhos da própria vítima.
Apesar da centralidade deste escrito se situar na violência conjugal, vale se ater em
qual estrutura social esta violência ocorre. Como apontado por Marx (2013,p.533), “A
violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenha de uma sociedade nova. Ela é
uma potência econômica”. Dessa maneira, a sociedade brasileira, por exemplo, tem seu lastro
enraizado em uma história de violência,opressão e subordinação dos povos nativos. Além de
uma estrutura social e modelo econômico que se levanta a partir da detenção do poder e uso
da violência por parte dos que possuíam acumulação privativa do capital (RIBEIRO, 2017).
A violência presente nas relações interpessoais constitui uma violação dos direitos
humanos, prejudica a saúde e pode culminar na morte das pessoas envolvidas (Lima &
Werlang; 2011). Este tipo de violência sofre influência do meio social e cultural (D’Oliveira
et al., 2009; Santi, Nakano &, Lettiere, 2010; Schraiber et al., 2007), por isto, durante muito
tempo, não foi reconhecida por lei como um ato passível de punição.

Transmissão psíquica em René Kaes - o negativo e as relações conjugais violentas


A teoria aqui proposta e referenciada será a de René Kaes - psicanalista francês que
inicia seus estudos sobre a transmissão psíquica a partir de 1985, como contribuição de
pesquisa à Universidade Lumière-Lyon II, na França. Esse autor também bebe da produção
acadêmica de Freud, o qual tem seus estudos sobre o conceito analisados desde em torno de
1895. É possível suscitar que dentre as produções clássicas do autor, a obra “A interpretação
dos Sonhos” de 1900, anuncia o conceito de transmissão psíquica inconsciente de modo mais
palpável - onde teoriza sobre as formas de transmissão intrapsíquica e processos de
identificação com a fantasia do desejo do outro. Contudo, já em 1895, através da obra
“Estudos sobre a Histeria", Freud remete a conceitos que articulam a neurose com a
transmissão psíquica através das gerações. (Y referência)
Kaes nutre sua teoria a partir de análises de cunho semântico, em que identifica quatro
termos fundamentais na teoria de Freud que remetem a ideia da transgeracionalidade.
Übertrarung - termo polissêmico, com uma mais de uma possibilidade interpretativa, mas
que pode se deixar traduzir em “uma qualificação do fato de transmitir ou até uma
transmissibilidade” (Y referência). Die Vererbung - que estaria atrelado a passagem de
elementos entre gerações, como uma herança. Die Erwerbung - alude ao processo de receber
algo decorrente de uma transmissão. E por último, Die Erblichkeit - termo cujo esteio central
é o adjetivo erblich, que pode ser compreendido como hereditário. A partir desses termos,
reflexões e análises da obra, Kaes inicia seu trabalho de construção dos seus próprios
conceitos e teorias.
Para entender um pouco da teoria de Kaes, e também como ela se relaciona com a
transgeracionalidade da violência doméstica em relacionamentos conjugais de mulheres
negras, apontaremos também algumas concordâncias da sua teoria com a de outros autores
franceses da época, que também se debruçaram sobre a transmissão psíquica. Granjon (2000),
por exemplo, psicanalista francesa, entende que:

“Estes passados sob silêncio, ou mantidos em segredo, estes


restos insensatos de um acontecimento inaceitável estão fora do
alcance de um trabalho psíquico, mas vão obstruir a psique do
sujeito e do grupo, permanecendo em estado bruto,
consagrados à repetição e oferecido às identificações da criança
com a secreta esperança de que esta, herdeira e suplente
narcísico, possa realizar este trabalho fracassado.” (p. 26)

Dessa maneira, à luz da teoria de Granjon (2000), é possível conceber que a partir da
não elaboração de determinado conteúdo ou situação transmitida por gerações antecedentes,
essa então poderá se tornar um acontecimento traumático. Desde que, tal circunstância incite
uma forte incipiência de sensações não possíveis de serem toleradas pela psique do indivíduo,
também atravessada por fagulhas de pensamento não elaborado ou bem representado acerca
do ocorrido. A partir do que alude a autora, esse processamento traumático acaba por
atrapalhar a integração psíquica harmônica, gerando então, lacunas e criptas na psique.
Explorar mais a teoria da autora.
Consoante à Kaes (1991), em seu conceito do negativo, compreende o envolvimento
de um pacto inconsciente entre os indivíduos de uma mesma família, sendo imposto em todo
laço e conjunto intersubjetivo. De acordo com esse mesmo autor, aquilo que é transmitido e
passado entre gerações é o que não é retido, lembrado, e acaba por atravessar a realidade
psíquica por meio da doença, vergonha, objetos perdidos e lutos. Kaes (1993) também aponta
que o que é transmitido pode permitir e assegurar a continuidade de alguns vínculos
intersubjetivos, como seria o caso de algumas relações conjugais violentas que permanecem.
Além de também influenciar na conservação de alguns ideais e mecanismos de defesa.
As zonas de silêncio, tabus, segredos e pagamentos criadas pelas famílias são
territórios férteis para sustentação da repetição - em que o sujeito acaba por repetir o que não
é elaborado, dito, ou não está presente no reconhecimento de sua história. Consoante aos
escritos de Kaes (2001, p.20) “o narcisismo da criança apóia-se sobre o que falta na
realização dos ‘sonhos de desejo’ dos pais”, ou seja, a transmissão também ocorre a partir de
uma ausência, falta, surgindo em diferentes gerações como códigos, enigmas ou signos. O
conceito de negatividade sustentado por Kaes (2003) se apoia justamente nessa lacuna, como
uma necessidade do aparelho psíquico do sujeitos de assumir posturas de recusa, rejeição,
desmentir, renunciar, apagar e suprimir com o intuito de preservar um interesse maior da
organização psíquica, seja esse interesse inerente exclusivamente ao sujeito ou ao grupo que
faz parte.
Nesse sentido do que é apagado, silenciado e renunciado, em muitas famílias tratar
sobre a violência conjugal que ocorre entre diferentes gerações pode ser uma temática difícil
e muito forte. Levando em consideração um sistema sociocultural onde se valoriza
instituições como o casamento, muitas mulheres podem persistir em relações violentas para
manter o que seria uma “estrutura” de família e casamento que atravessa o imaginário comum
como algo que deve ser mantido, custe o que custar. Consoante à perspectiva de Zanello
(2016), sobre os dispositivos amorosos, no caso das mulheres “o amor diz respeito à sua
identidade, como uma experiência vital”. Dessa maneira, muitas mulheres acabam amarradas
a relações conjugais por acreditarem que precisam genuinamente delas.
Kaes (1997) defende a existência de um aparelho psíquico do sujeito singular,
responsável por atualizações e ativações de estruturas psíquicas preexistentes no próprio
agrupamento, como na família. Dessa maneira, sobre esse último, as ativações podem, por
exemplo, despertar um comportamento de repetição de algo já preexistente dentro da família
- como é o caso da permanência em relacionamentos violentos e abusivos. Temática que em
sua maioria compreende o negativo (conceito articulado por Kaes) do grupo familiar, e que é
transmitido entre as gerações.
Dentro da estrutura psíquica pulsionada por Kaes (1997, p. 182), a fantasia original se
apresenta como um modelo dos organizadores psíquicos do sujeito, "funciona como
organizador de lugares subjetivos em um roteiro que determina as posições correlativas e
permutantes", nos levando a questionar se dentro dos relacionamentos conjugais onde há a
violência, haveria também uma projeção fantasiosa atuando propulsora de ideias, como a de
que "ele vai mudar, vai melhorar", assumida por muitas mulheres em relacionamentos de
abuso físico e/ou psicológico.
Dessa maneira, a fantasia também abre espaço para que ideias pertencentes a estrutura
e história de cada sujeito possam se alojar, costurar ou descosturar seus espaços nos sítios
subjetivos do outro. A partir de Kaes a fantasia possibilita e provoca uma “polaridade entre
desejo e proibição", como em uma espécie de jogo onde há uma busca pela satisfação de
desejos e/ou a própria fuga como defesa contra eles. Assim, seria possível então refletir sobre
as relações de desejo presentes na relação conjugal, e de que maneira o vínculo permanece
em relações de violência doméstica.

Individuação e Conjugalidade
A partir de Kaes (1993), o sujeito não é auto-engendrado, ou nasce totalmente pronto,
seu processo de subjetivação se dá no contato e nas relações com o outro, como também a
partir da metabolização da herança familiar que recebe. Sendo então, a realidade psíquica
obtida por meio da elaboração do que é admitido pela transmissão, onde o sujeito se
configura em um emaranhado de articulações próprias e singulares, como também a partir de
enquadramentos recíprocos na interação grupal.
Ainda na seara da subjetivação ou individuação relacionada a transmissão psíquica, as
autoras Magalhães e Féres-Carneiro (2004, 2005, 2007) propõem que a via da emoção e
afetividade permitem a transmissão de muitos elementos psíquicos de quem o sujeito tem
uma relação de confiança e afeto. Havendo assim, uma confluência entre o que é novo, o que
é transmitido, aprendido, elaborado e não elaborado, sendo todo processo permitido a partir
das relações com o outro, para que a identidade do sujeito possa ser formada (Falcke &
Wagner, 2005).
Nesse caminho da relação com a família de origem, entende-se que o modo como as
necessidades dos sujeitos foram atendidas ou não, ao longo do seu desenvolvimento, podem
afetar relações que são estabelecidas futuramente, tendendo a repetição (Anton, 2012;
Ayelmer, 1995; Falcke & Wagner, 2005; Rehbein & Chatelard, 2013) . Visto que, ao longo
desse desenvolvimento muitos elementos transpsíquicos não foram compreendidos ou
elaborados pelo sujeito na relação familiar.
A escolha conjugal pode ser um exemplo de reflexo das relações primárias
estabelecidas e de elementos transgeracionalmente adquiridos. De modo que, o indivíduo que
se mantém na eterna dança do se fazer pertencer, encontra lugar muitas vezes para dividir
suas felicidades, angústias, e se sentir pertencente, na relação conjugal (Anton, 2012; Féres-
Carneiro & Magalhães, 2005). Sendo assim, a escolha de um companheiro (se tratando aqui
de relações heterossexuais entres homens e mulheres), não é apenas individual, mas também
se constitui diante de um cenário contextual com histórico familiar e social referente aos dois
envolvidos (Falcke, Wagner & Mosmann, 2005).
De acordo com Eiguer (1985) e Magalhães (2009), a escolha amorosa é inconsciente,
ocorrendo a substituição do objeto amoroso presente no romance familiar (em referência ao
conflito edípico) por um amor possível, mas que ainda permanece enlaçado com o amor
infantil recalcado. Para compreender mais detalhadamente a estrutura conjugal que se
estabelece entre dois sujeitos a teoria de Janine Puget e Isidoro Berenstein (1993) será
atravessada. Os psicanalistas argentinos referenciados observavam o vínculo conjugal a partir
de uma tríade composta por dois egos e um conector (ou intermediário) cuja função central
envolve a conexão entre os egos. Pesquisar mais sobre a teoria dos autores
Em “O Ego e o Id” (1923/1980), o ego é descrito como o mediador dos impulsos
oriundos do Id e das demandas do superego. Freud (1923/1980, p. 72) define o "ego como
uma pobre criatura que deve serviços a três senhores e, consequentemente, é ameaçado por
três perigos: o mundo externo, a libido do Id e a severidade do superego”. Enquanto a
estrutura intermediária estaria aliada ao ego em sua função de barrar e filtrar excessos de
excitações - que por sua vez, poderia provocar a desorganização do sistema psíquico do
indivíduo, segundo Kaes (2001).
Para compreender melhor os processos mencionados anteriormente, pode-se conceber
que em uma situação onde uma mulher está em uma relação conjugal violenta, pode haver
tantos elementos transgeracionais provenientes de um silenciamento que cruza gerações,que
o excesso de material silenciado, pode, em dado momento, romper com a barreira do
"intermediário", e assim, produzir algo que poderá ser destrutivo ao sujeito, como o trauma,
aceitar a violência do parceiro ou outras ações autolesivas, por exemplo. Dessa maneira, o
trauma pode se configurar como um produto do rompimento da barreira egóica.
Contudo, enquanto o espaço intermediário estiver mantido e em funcionamento, ele
poderá atuar como o “espaço transicional” abordado na teoria winnicottiana, como aponta
Kaes (2001), e seria, por sua vez, também responsável pelos processos elaboração e
compreensão dos elementos traumáticos e heranças transmitidas. De modo que, na relação
conjugal seria justamente esse espaço o proporcionador da formação do “eu conjugal”. Esse
último, seria um “psiquismo compartilhado” pelo casal, como acusa Puget (2000), e tornaria
possível o contato dos elementos traumáticos presentes em ambos os sujeitos, possibilitando
uma reconfiguração egóica dos sujeitos.
Introdução - racialidade no Brasil
A forte relevância da discussão racial quando se trata de transgeracionalidade da
violência doméstica entre mulheres é assegurada diante do quadro histórico da população de
Salvador - Bahia, território ao qual essa produção se refere, tendo em vista a atuação do
Programa Brincando em Família nessa territorialidade. Dados sobre a população de
Salvador
Essa pesquisa considera a forte importância do recorte racial nas discussões acerca da
violência doméstica. A partir da perspectiva da autora Barbieri (1993), torna-se fundamental
em países pluriétnicos, considerar o lugar da racialidade nas relações sociais e de gênero,
visto que esse fator, segundo ela, redefine as formas como as relações se dão. O referencial
teórico aqui centrado para abordar sobre essa questão, serão os conceitos de “negra/o”
explorados por Munanga (2008), Souza (2021) e Guimarães (1995) - os quais se atém a
construção social e psicológica do racismo e relações raciais estabelecidas entre os
indivíduos.
Contudo, como pondera Guimarães (2005), apesar de alguns autores se predisporem a
pesquisar sobre a questão racial no Brasil, por muito tempo o Brasil foi referenciado por
diversos autores como Gilberto Freyre, no início do anos 30, Donald Pierson a partir dos anos
40 até 70, antropólogos e sociólogos que discursavam sobre uma sociedade brasileira
harmônica, no que tange às relações raciais. Tal cenário da época é perfeitamente ilustrado a
partir de um recorte do Dictionary of race and ethnic relations de Cashmore (1994), que diz:
Em suma, o Brasil pode ser descrito como uma sociedade onde
as distinções de classe são profundamente marcadas, onde
classe e cor sobrepõem-se mas não coincidem, onde a classe
muitas vezes prevalece sobre a cor, e onde a "raça" é matéria de
foro individual e de preferência pessoal ao invés de filiação
coletiva (Cashmore 1994, p. 49).

Desse modo, a partir da ideia de que no Brasil não existiriam estigmas, distinção e
preconceito, o racismo se manteve e ainda se mantém velado na constituição da sociedade
brasileira. Assim como, a distinção racial quando se trata das relações conjugais permeadas
por violência não são relevantes nas discussões dos artigos sobre o tema. Trazer apanhado
geral dos artigos
Situar conceito racial utilizado
Aparato histórico sobre as relações afetivo-sexuais e o lugar do matrimônio na vida das
mulheres negras
Para ancorar as discussões aqui pretendidas, uma análise sócio-histórica do cenário ao
qual se instituem as relações conjugais das mulheres negras no Brasil entre 1871 a 1888 (ano
da abolição da escravidão, no sentido oficial) é de extrema importância, caracterizando a
sociedade que ampara e legitimou, por muito tempo, relações conjugais permeadas por
violência doméstica. O momento histórico referenciado foi pautado em relações de abuso,
violências de diversos tipos, e ainda uma imposição às mulheres consideradas como negras,
em que elas “não podiam” estabelecer relacionamentos estáveis com qualquer homem,
segundo Guterres (2010).
Em suma, consoante a Santos (2013), no Brasil, durante o período colonial e imperial
os relacionamentos sexuais da grande maioria das mulheres negras eram induzidos a
aumentar a mão de obra e os lucros de seus proprietários. De modo que, a mulher negra
escravizada vivenciava situações constantes de violência sexual, onde seu corpo era
compreendido como objeto de satisfação dos desejos e fantasias dos homens da época.
Quanto à caracterização e estrutura dos relacionamentos desenvolvidos por mulheres negras
ainda na época referenciada, estes fugiam da estrutura conjugal convencional da época, que
envolvia em sua maioria o casamento e filhos - Amaral (2014) propõe que somente em
alguns momentos esse tipo de casamento era incentivado entre os escravizados com o intuito
de evitar desobediências e rebeliões.
Termos como submissão, prostituição, violência sexual, subordinação, e reprodução
de mão de obra podem ser utilizados para caracterizar as relações a que mulheres negras
escravizadas acabavam sendo subordinadas. Nesse ponto, cabe aqui ressaltar a presença da
solidão da mulher negra, que reverbera em seus “não relacionamentos” e relacionamentos até
hoje. Onde essa mulher não era preterida ou nomeada quando se tratava de matrimônio. Os
homens negros, por sua vez, se beneficiavam de relacionamentos interraciais para se
proporcionarem alguma mobilidade social, garantindo um maior poder diante da sociedade.
Pontuar algo da realidade atual - artigo violência
Ainda nessa seara das escolhas afetivo-sexuais das mulheres negras, a partir da
pesquisa de uma das pioneiras dessas temática, Elza Berquó, em seu estudo Nupcialidade da
população negra no Brasil de 1987, contempla-se o fato de que o casamento das mulheres
negras nessa época se dava de forma tardia e em menor frequência do que entre as mulheres
brancas, homens negros e brancos. Consoante à Berquó (1987), nesse período também foi
possível constatar um alto número de mulheres negras solteiras. Portanto, coube aqui um
descamoteamento histórico com o intuito de refletir sobre elementos condicionantes para
estabelecer relações estáveis.
Dessa maneira, quando se atribui à mulher a condição do casamento como inerente a
sua condição de sujeito, como é o caso das tecnologias de gênero segundo Teresa de Lauretis
(1984), se impõe a ela também um dever, onde a mulher negra acaba imersa em um padrão
de subjetividade socialmente aceito e desejável, tendo seu processo de subjetivação,
afetividade e de perceber a si e ao mundo totalmente engendrados por uma estrutura social.
Considerando um cenário de formação de suas relações amorosas tão marcado por elementos
destrutivos e abusivos como os destacados anteriormente, e ainda uma baixa preterição dos
seus corpos para o matrimônio, pode ser possível pensar que muitas mulheres negras que
alcançam o status social de “casadas” não queiram abandoná-lo facilmente, mesmo que essa
decisão seja inconsciente e esteja atrelada a permanência em um relacionamento violento.
O dispositivo amoroso, proposto por Zanello (2016), assegura o argumento
anteriormente enunciado, visto que, se refere ao fato das mulheres possuírem a mediação
masculina como uma presença fundamental e necessária para uma boa relação consigo
mesmas, onde a construção da sua subjetividade - o que envolve autoestima, aspirações para
o futuro, modo como como compreende o modo e como se relaciona com ele - se dá a partir
da escolha masculina sobre elas.
Ainda dentro de uma revisão sociohistórica para compreender tal cenário e
percepções engendradas culturalmente, é importante descrever a história a partir de um
referencial de gênero, raça e classe, fatores que modificam drasticamente o rumo tomado. O
conceito de gênero aqui adotado tomará como esteio a teoria de Teresa de Lauretis (1987), a
qual define gênero como “produto e processo de um número de tecnologias sociais ou
aparatos biomédicos” (LAURETIS,187, p.208). Quanto às tecnologias sociais ou aparatos
biomédicos, outros autores como Besse (1999), discute sobre o lugar da classe no processo de
influência social, no sentido que, o matrimônio moderno e família nuclear são dispostos no
imaginário comum como instituições “biologicamente naturais” (BESSE, 1999,p.6-7) -
sendo assim, um exemplo de tecnologia social, onde o ideal de uma classe é projetado sobre
as outras como uma aspiração a ser conquistada.
Além disso, é interessante discorrer sobre o papel do Estado em todo processo de
institucionalização do lugar da mulher nos diferentes âmbitos da vida, de modo que, em
meados de 1940, o Estado foi convocado a intermediar as mudanças mediantes da
modernização, com o sistema sistema patriarcal vigente, de modo a por meio de políticas
públicas e leis, cada vez mais ditando e servindo aos interesses individuais da burguesia
dominante.
A partir da concepção de Besse (1999), mas realizando uma distinção racial entre a
realidade para mulheres brancas e negras. O autor coloca que as exigências da “economia do
consumo”, atingiam em grande maioria as mulheres de classes médias e altas,
majoritariamente mulheres brancas - que recebiam oportunidades profissionais e
educacionais, mas acabavam condicionadas ainda a ótica de submissão e dependência
matrimonial. De modo que, apesar de ocuparem o mercado, ainda eram postas na posição de
cuidadoras, enfermeiras e recepcionistas - alimentando um estereótipo socialmente
engendrado da mulher como “indefesa, dócil, cuidadora”. Enquanto é importante ressaltar,
que as mulheres negras que sempre estiveram na condição de existência a partir do trabalho e
exploração na história do Brasil, continuavam ainda em posições de serviços de limpeza,
cozinha, trabalhos pesados - em uma espécie de racionalização das suas “capacidades inatas”,
como mulheres fortes.
Não fugindo do limiar acerca de compreender os processos em torno da violência
conjugal nos relacionamentos das mulheres negras, no que concerne à violência aos
instrumentos normativos brasileiros, o Código Filipino era uma legislação presente no Brasil
colônia, que esteve vigente até a criação do Código Criminal Brasileiro, somente em 1830.
Nesse código instituído e praticado socialmente, a violência dentro da relação matrimonial
era normatizada e permitida, onde cabia ao marido castigar, ou até mesmo matar sua espesa
em caso de adultério ou somente uma suspeita, mesmo sem qualquer comprovação do ato,
conforme afirma Silva (2021), em “Em legítima defesa da honra: a luta contra a naturalização
da violência contra as mulheres”.

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