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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Curso de Mestrado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano

FELIPE MARANGONI PONTES

PSICANÁLISE DOS VÍNCULOS SOCIAIS: VÍNCULOS E FUNÇÃO CONTINENTE DA


MALHAGEM

São Paulo
2015
FELIPE MARANGONI PONTES

PSICANÁLISE DOS VÍNCULOS SOCIAIS: VÍNCULOS E FUNÇÃO CONTINENTE DA


MALHAGEM

Trabalho de Conclusão de Disciplina apresentado como


exigência para a conclusão da disciplina A Clínica dos
Vínculos na Abordagem Psicanalítica: Violência,
Drogadição, Adoção e Sexualidade.
Docente: Prof. Dra. Maria Inês Assumpção Fernandes

São Paulo
2015
Contemporaneidade, campo social, modelo de família, direitos da criança e do
adolescente, violência. Estes são alguns termos que temos, como sociedade, cada vez mais tido
contato nos últimos anos, nos jornais, telejornais, na arte em geral, na política, no meio
acadêmico, e, como não poderia ser diferente, nas clínicas. Estes termos são da ordem do real
e, como tal, influenciam como os vínculos têm sido estabelecidos entre pessoas, famílias,
instituições, grupos, etc.

Muitos são os impasses que essas novas configurações podem criar. Procuraremos nos
ater a apresentar os conceitos apresentados pelo Prof. Pierre Benghozi acerca da Psicanálise
dos Vínculos Sociais e os pensar sob a temática de contextos de violência intrafamiliar.

Mas afinal: O que é vínculo?

Benghozi (2010), a partir da perspectiva de Bion sobre a dinâmica continente-conteúdo,


nos traz a noção de que o Vínculo é suporte de transmissão psíquica, assim como estrutura de
continente, a qual ele chamará de malhagem.

Nesse sentido, ele difere dois tipos de vínculo: os de filiação e os de afiliação.

O Vínculo de filiação, vertical e diacrônico, é a construção psíquica que se refere aos


ascendentes e descendentes, aos familiares da linhagem genealógica.

O Vínculo de afiliação, horizontal e sincrônico, é a construção psíquica que se refere ao


pertencimento a grupos e instituições, assim como a aliança conjugal, é Vínculo social.

Sendo assim, também se distingue os tipos de afiliação em primária e secundária. Isso


se traduz de maneira simples: os continentes psíquicos primários, como família por exemplo,
são as afiliações primárias, como ser membro da família de origem. Já a afiliação secundária se
traduz aos continentes secundários, como clubes, partidos, instituições.

Vale destacar que Vínculo é diferente de relação, onde “o vínculo pode ser claro, a
relação conflituosa”. (BENGHOZI, 2010, p.54) A relação conflituosa, que muitas vezes
também se traduz como sintoma, pode ter como função o restabelecimento do Vínculo.

O autor fará analogia desse construto teórico ao de uma rede, tal qual uma rede de pesca,
dessa maneira, os vínculos de filiação e afiliação criam nós, intersecções que se traduzem na
malhagem, ou seja, “a malhagem é o trabalho psíquico de construção-desconstrução e de
organização dos Vínculos”. (BENGHOZI, 2010, p.16)
A malhagem, assim como a rede de pesca, é um continente, serve para conter algo. No
caso, o aparelho psíquico grupal familiar e seus continentes genealógicos, são representados
por essa malhagem genealógica.

Sendo, portanto, o Vínculo suporte e vetor de transmissão psíquica dos conteúdos da


família, o autor também diferencia as transmissões de traço e de impressão.

O traço é o conteúdo psíquico positivo, aquilo que está inscrito e revelado,


metabolizado, simbolizado.

A impressão é material psíquico não revelado, presente-ausente, não simbolizado e


metabolizado, e sua transmissão pode pular gerações, como um “buraco de minhoca”, é
transmissão em negativo, como o negativo de fotografia. A impressão não é o objeto em si, mas
marcas, como aquelas que ficam na neve.

Um exemplo é a impressão genealógica da vergonha, a transmissão da vergonha familiar


inconsciente, que se manifesta como “expressões sintomáticas de patologia de continente”
(Benghozi, 2010, p.13). A partir de um “porta-vergonha”, que é o portador desta vergonha,
inominável, indizível, inconfessável, fantasmática. Dessa maneira, a transmissão da impressão
inominável também se expressa como “porta-sintoma”.

Ainda sobre as transmissões, baseado em Kaes (1993, 1994 apud BENGHOZI, 2010),
o autor diferencia as transmissões intergeracionais e transgeracionais.

Na transmissão intergeracional, o material psíquico pode ser recebido, metabolizado e


transmitido a uma nova geração, poderíamos relacionar com o traço.

Na transmissão transgeracional, a temporalidade se torna “circular e mítica” ,


transmitido em estado bruto, sem metabolização, sem simbolização, onde ficam o
inconfessável, o inominável e o indizível, podendo pular gerações, como o já citado “buraco de
minhoca”. Poderíamos relacionar com a impressão.

Essas transmissões acontecem por meio da difração na fratria das lealdades


genealógicas. Essa lealdade pode ser entendida como a herança psíquica familiar, como a luz
branca que atinge um prisma, onde os diversos comprimentos de ondas difratados,
correspondem a membros da fratria, sendo estes, sujeitos singulares, assim como de
pertencimento do grupo. A lealdade genealógica garante este sentimento de pertencimento. A
projeção em um “porta-vergonha/sintoma”, o mito familiar, o ideal de ego familiar assim como
todas as transmissões inter e trans, também acontecem desta maneira. As lealdades genealógicas
garantem o narcisismo grupal familiar.

Quanto ao mito familiar, Ferreira (1966 apud BENGHOZI, 2010), coloca que este
“consiste [de] um conjunto de crenças compartilhadas pelos membros do grupo familiar”.
(p.24). O mito, enquanto co-construção psíquica grupal familiar autorreferente, é um
organizador grupal familiar, ele dá os limites de pertencimento ou não ao grupo familiar, tanto
consciente quanto inconscientemente. Nesse âmbito, dá-se importância aos rituais familiares,
pois é neles que se desenvolvem os mitos, referentes ao ideal do ego familiar, o trabalho sobre
eles é, portanto, de fundamental importância.

Após esta breve apresentação de alguns conceitos, se faz necessário retornarmos ao


conceito central: o de malhagem – constituída de vínculos e dotada de função continente.
Eventuais patologias de transmissão psíquica, estão relacionadas com um enfraquecimento dos
continentes psíquicos, ou seja, furos, e rasgos em uma malhagem – sendo a desmalhagem- e,
por sua vez, significam enfraquecimento nos vínculos.

Contudo, a remalhagem é, não só possível, como necessária, e o sintoma pode se


apresentar como uma tentativa de remalhagem. Vale dizer que problemas de malhagem em
nível de vínculos de filiação, podem ser resolvidos a partir de vínculos de afiliação, e vice-
versa, conforme a difração, as lealdades e a malhagem foram estabelecidas. Sendo assim, a
malhagem, assim como uma rede, é flexível para com os conteúdos, e também pode ser
reconstituída de mais de uma maneira, mas sempre em relação ao Vínculo.

É necessário também pensar sobre as patologias de continente e as de conteúdo. O vazio,


por exemplo, pode se caracterizar como um problema de continente, de malhagem esburacada.
Destacam-se aí as síndromes de adição, como um sintoma-engano, onde o problema é a
malhagem que não contém, e uma tentativa vã de preencher este continente, e não a adição em
si. Mas a necessidade de adaptação da malhagem também se faz presente, conforme o conteúdo
da qual é continente. Dessa maneira, “os Vínculos estão para o continente como as relações
estão para o conteúdo” (BENGHOZI, 2010 p.233, 234) e “transmissão está para o vínculo como
a comunicação está para a relação”. (p.234)

Assinalados alguns conceitos básicos, como pensar a violência familiar? Principalmente


no que se refere a violência contra crianças e adolescentes, em seus diversos âmbitos: violências
psicológicas, físicas, negligência e abandono e a violência sexual e incesto, a qual damos
destaque. Podemos pensar em uma origem? Como pensar o enquadre? Como compreender a
violência que atravessa gerações, e se repete? Como pensar a quebra de vínculos? Como
compreender e lidar com uma possível ressignificação, ou remalhagem?

Conforme nossa experiência, por determinação das políticas públicas, os casos de


violência são atendidos, como não haveria de ser diferente, em rede. Envolvendo diversas
instituições, com sua malhagem própria, desde a família: áreas da saúde, da assistência social,
do jurídico, etc. Benghozi (2010) colocará que é necessário pensar em um metaenquadre – um
enquadre que se ajuste a outros enquadres e gerar um novo espaço que pode ajudar a criar um
novo continente nas clínicas catastróficas, onde a malhagem ruiu.

O autor ainda propõe o conceito de vínculo psíquico rede, que se estabelece de maneira
intercontinental – entre dois continentes. Dá-se como exemplo os pactos de aliança conjugal, e
entre instituições. Portanto, a rede é compreendida como malhagem intercontinente e como tal,
não está do lado de alguma instituição, não tem uma hierarquia definida, como se cada uma
fosse uma intersecção da malhagem e é um espaço psíquico transitório que emerge conforme
necessidade. Nos casos de violência, o autor dá destaque ao “nó” jurídico desta rede, de maneira
que os trabalhos terapêuticos de remalhagem familiar possam ser realizados.

Inevitavelmente, este processo é complexo e envolve conjuntos inter e transpsíquicos


das instituições que se manifestam em si, entre si e com a família. Faz-se necessário não só a
clareza da rede, mas também dos movimentos transfero-contratransferencial.

Dado o enquadre, poderemos pensar acerca do fenômeno da violência.

Benghozi (2010) colocará que nestes casos, da repetição da violência e do incesto, nos
interessaremos acerca de uma temporalidade genealógica, aquela que atravessará gerações.

Ele colocará, ainda, que “a violência é dessubjetivadora e simbolicida, ela é destruidora


do sujeito [...] um ataque contra o vínculo”. (BENGHOZI,2010 p.53) Distinguirá, portanto, da
agressividade como aquela que convoca e provoca o outro, ou seja, é uma relação com o outro.

Quanto às situações de violência, o destaque dado é à compulsão à repetição da violência


de geração a geração, com ataques ao vínculo e desligamento dos indivíduos, caracterizando a
pulsão de morte.

Será descartada uma visão meramente causalista, mas será pensada como um sintoma
da desmalhagem dos continentes genealógicos grupais familiares e comunitários. Uma
perspectiva dinâmica, que abandona o modelo “carrasco e vítima”, procurando compreender a
dimensão inter e transpsíquica: o que é impressão, negativo, o impensável, inaudível,
inominável e inconfessável que, nesse sentido, corresponde à vergonha na transmissão
transgeracional do negativo.

Dessa maneira, é possível pensar na compulsão à repetição da violência, como heranças


genealógicas que, muitas vezes, também se “validam” nos pactos de aliança conjugal, por meio
da transmissão do negativo advinda de cada família de origem.

Sendo assim, a violência não pode ser compreendida apenas intrapsiquicamente, mas
nos âmbitos intersubjetivos e grupais e de transmissão genealógica. Nesse sentido, os “rituais,
estão inscritos na cultura do grupo familiar e comunitário” (BENGHOZI, 2010 p.68), e aí,
também pode estar o ritual da violência, que se inscreve, paradoxalmente, uma vez que é
simbolicida, como um apagamento. Ou seja, é da ordem do inominável, do indizível, do
inconfessável e do inaudível. É transmissão de impressão e da vergonha. Aos quatro “I”, o autor
ainda coloca que são correspondentes o Inaudito e o Ininteligível.

Contudo, há de se tomar cuidado. O autor interroga: Como o terapeuta pode ouvir o


Inaudível? E responde: Deve-se estar atento ao que surge em nível contratransferencial. Ele
ainda indaga: Comportamentos ditos violentos, não podem ser uma tentativa agressiva de
remalhagem do vínculo negado? O que há a ser ouvido nas violências urbanas, familiares, e
mesmo auto agressivas, como o alarmante índice de suicídio de jovens?

A violência rompe vínculos. E esses rompimentos podem ser transmitidos


transgeracionalmente. A “ruptura é a fonte da vergonha e da humilhação” (BENGHOZI, 2010
p.61). Não saber ouvir a tentativa de malhagem dessas rupturas, podem gerar a desmalhagem
catastrófica da violência, à desumanização, à desnaturalização do outro, e é aí que a violência
é simbolicida, e criará novos rompimentos de vínculos, buracos ou severos rompimentos nas
malhagens, que, transmitidos como vergonha, como impressão, serão conteúdos não
metabolizados, para serem lidados pelas gerações a frente.

Em relação ao incesto, o autor coloca que existem confusões nas fronteiras


intergeracionais, ou seja, as posições dos integrantes da família ficam confusas, assim como
seu espaço, gerando uma indiferenciação. Esse clima incestuoso, onde não se diferencia o que
é íntimo, o que é privado e o que é público, facilita o rompimento da fronteira e a consumação
do ato. Na atenção desses casos, se faz imprescindível a intervenção da área jurídica, tal como
um superego.
As configurações de clima incestuoso, podem, antes de levar ao ato em si, gerar outros
sintomas que apresentem esta situação, tal como o que Benghozi (2010) descreverá como
sintoma-engodo.

Ele os descreve como as diversas adições e compulsões, sendo elas atos sexuais, roubo,
toxicomaníacas, como alcoolismo e uso abusivo de drogas, entre outras. Estes sintomas,
procuram apresentar um problema de continente, um problema de malhagem esburacada. Como
exemplificado, pensando a malhagem tal qual uma rede de pesca, se esta tem um buraco, não
conterá os peixes, assim como a malhagem não poderá conter os conteúdos psíquicos, dessa
maneira há uma clínica do vazio, o vazio do continente, enquanto a malhagem continua a ter
seus vínculos rompidos, pouco a pouco, até gerar uma desmalhagem catastrófica, onde a mesma
desfia, perdendo toda a capacidade continente. Assim como uma manifestação sintomática
comum é a estafa, e usa a metáfora do barco para explica-la, pensando um barco com uma fenda
no casco, sendo este um problema de continente. E a tentativa de escoar toda a água que inunda
esse barco, sem parar, é extenuante, pois ele continua a encher. Sendo assim, um sintoma é o
desabamento por esgotamento.

Dessa maneira, “a construção de sintomas, é a solução inconsciente que permite


gerenciar essas problemáticas” (BENGHOZI, 2010 p.111)

Em sumo, cabe assim entender a “violência como expressão sintomática de um


enfraquecimento da função continente” (BENGHOZI, 2010, p.61)

No momento, cabe referir ao que o autor chama de anamorfose. Ele se refere a este
conceito, como uma muda de continente, diante de acontecimentos que engajam, não só o nível
individual, mas todo o nível grupal genealógico, trazendo à tona mudanças nos níveis somático,
psíquico e de vínculo social. Além disso, é continuidade a um processo de crescimento, mas
também um rompimento. Acontecimentos comuns de anamorfoses são momentos do ciclo da
vida, como a adolescência, a gravidez, nascimento, etc. Por serem, as anamorfoses,
acontecimentos mutatórios, elas testarão a resiliência da malhagem, assim como deixarão mais
evidentes as suas falhas, seus buracos. “A clínica da anamorfose é a clínica da vergonha e do
ideal do ego grupal” (BENGHOZI, 2010 p.107).

Nesse sentido, o autor diferencia as situações de crise que surgem em acontecimentos


anamórficos. Sendo as seguintes condições: a crise, em crise e a catástrofe.
A situação de crise é quando a malhagem resiste ao acontecimento anamórfico. O
suporte se traduz nos continentes comunitários sociais e culturais e as ritualizações de apoio
recíproco.

A situação em crise é quando a malhagem está esburacada, e nesse sentido, pode surgir
o sintoma como tentativa de remalhagem, que pode evitar, até certo ponto, o aumento dos
buracos do continente. Contudo, a remalhagem não é, de fato, realizada, o aumento dos danos
pode acontecer.

Por fim, há a desmalhagem catastrófica, onde o rasgo da mesma é grande e contínuo,


gerando, o que o autor chama de hemorragia narcísica grupal, onde diversos membros do grupo
podem apresentar simtomatologias de descontigenciamento genealógico, que não são
suficientes para conter o aumento destes rasgos.

Em sumo, é possível compreender, até o momento, a violência, em todas as suas


vertentes, tal como o incesto, como algo simbolicida, destruidor de vínculos, diferente da
agressividade que procura ser algo, tal como o sintoma, que busca a remalhagem. Contudo, se
o que é da ordem do inaudível, do indizível, do inominável, inconfessável, não for devidamente
ouvido e compreendido, esta agressividade se tornará violência em seu sentido simbolicida.

Aquilo que rompe, ou destrói os vínculos constituintes da malhagem, deixa uma marca
a ser metabolizada, simbolizada, um buraco a ser remalhado, se assim não o for, essa marca
fantasmática, impressão, em negativo, será telescopada para outras gerações, em uma
temporalidade mítica. Está aí a compulsão a repetição, a falha no continente, que demanda uma
remalhagem, ao tempo que, se não metabolizada, criará novos buracos e transmissões
genealógicas de impressão que se potencializarão em momentos de anamorfoses, comuns à
vida, e a tentativas sintomáticas de remalhagem. Temos, de certa maneira, um movimento
cíclico, que se categoriza na compulsão à repetição, na pulsão de morte. Também expresso nos
pactos de aliança conjugal, que são malhagens afiliativas entre duas famílias, que trazem ambos
continentes e permite gerenciar os rasgos e rupturas dos mesmos.

Nesse sentido, o autor coloca que uma das formas essenciais de violência é aquela que
em seus efeitos contaminantes, nas transmissões transgeracionais, são os ataques contra os
rituais, pois eles são de função simbolizante essencial. Assim, dá destaque na violência contra
da ritualização da morte, pois esta é processo essencial na elaboração do luto. Sem a
ritualização, ou a desumanização do processo, da qual irá exemplificar as chacinas, tal como as
violências genocidas, há um rompimento grave na malhagem familiar e comunitária, que irá ser
transmitida na impressão, em negativo, afeta o ideal de eu-grupal, quebra Vínculos filiativos e
afiliativos.

Sendo assim, como é possível desenvolver situações de remalhagem?

A princípio, o autor nos traz a ideia de que o pacto entre grupo e família e terapeuta, é
um vínculo afiliativo, o qual poderá ser um ponto de partida para pensar a remalhagem, a partir
do que ele chama de malhagem afiliativa terapêutica, que vai emergir da transferência e da
contratransferência dos indivíduos e do grupo, no campo terapêutico. Se há campo, pensamos
também em enquadre, e do metaenquadre já citado, como parte do processo psicoterapêutico.
Muitas vezes, o enquadre será atacado, e nesse sentido, é possível entender como se dão o
ataque aos vínculos, ou as tentativas de remalhagem.

Todavia, ao dar atenção à dimensão contratransferencial, ouvir e acolher o insuportável


do real, a abordagem terapêutica deverá ter em foco a construção do que o autor chama de
neocontinente narrativo genealógico grupal familiar e comunitário.

Vale destacar, que vínculos filiativos rompidos podem ser remalhados a partir de
vínculos afiliativos, ou seja, a reconstrução psíquica é sempre possível.

O neocontinente narrativo é a construção que emerge do campo que o espaço terapêutico


permite, a partir da reconstrução, ou ressignificação do mito familiar, das associações livres, do
conteúdo das vidas de cada um, e seus relacionamentos entre si, das funções continentes
exercidas, da simbolização da fratria dos seus pactos e com qual razão esses foram
estabelecidos, da simbolização da herança genealógica advinda da difração, etc. Quando a
família se configura, após um período que o autor chama de ilusão grupal, como uma entidade
psíquica que pode elaborar novas histórias, diferentes das existentes junto ao mito familiar, o
neocontinente narrativo poderá compor o afresco familiar genealógico.

Nesse sentido, para que o neocontinente narrativo possa ser desenvolvido, Benghozi
(2010) coloca que a família tem que se apropriar ou trazer ela mesmo a demanda. Quando essa
demanda é vinda de um terceiro, como um psicólogo, uma psiquiatra, um assistente social, etc.,
o demandante é convidado a participar das entrevistas familiares, até que a família possa se
apropriar da demanda e as entrevistas possam se configurar como psicoterapia familiar. Em
caso de impossibilidade de comparecimento real do demandante, este é solicitado a enviar por
escrito a demanda, que será lida para a família.
O neocontinente é um trabalho de desconstrução narrativa, e construção de uma
narrativa alternativa, em relação à dinâmica inconsciente familiar, de flexibilização da
malhagem, ou mesmo da reconstrução ou reforço dela, para que possa lidar com o conteúdo
traumático. Esse trabalho se dá no âmbito da metatransferência, onde se encontram
transferência e contratransferência. Contudo, essa dinâmica não acontece apenas no enquadre
terapêutico, mas no metaenquadre da rede, em paralelo aos trabalhos de psicoterapia individual,
de responsabilização jurídica, de educação, etc.

Podemos pensar, como um caso de agressão física constante de pai contra filho, por
exemplo, como que o mito familiar está configurado, e qual (ou quais) buracos da malhagem
foram transmitidos em negativo, qual a função econômica deste tipo de conduta, e mais: qual a
função dela na família, uma vez que não pensamos em um caso isolado, mas constante. Qual o
papel da mãe e de outros integrantes da família neste caso? O filho, talvez “porta-vergonha”,
torna-se alvo das agressões. Na difração das lealdades genealógicas, como coube isso ao filho?
Essas perguntas devem ser respondidas no campo terapêutico, contudo, é necessária a
responsabilização legal do pai por seus atos, por uma ação educativa, de toda a família, dos
direitos da criança e do porque é errôneo a agressão, etc. Essa é articulação do metaenquadre,
necessário para este tipo de atendimento, ou seja, é, como chama o autor, a concepção
transdisciplinar do tratamento e complementar uns dos outros.

O afresco familiar genealógico, como uma nova representação de temporalidade mítica


é a construção que irá garantir a remalhagem. Além da dinâmica transfero contratransferencial,
o autor propõe ainda duas técnicas, a do genograma e do espaçograma.

A técnica do genograma, amplamente utilizada por profissionais da saúde em geral, nos


remete à ideia de árvore genealógica, de uma representação concreta dos ramos do grupo
familiar e o afresco familiar genealógico pode se desdobrar dessa prática. Essa prática, feita
preferencialmente em quadro disposto desde a primeira sessão, permite que as narrativas sejam
construídas e revisitadas, até ao mito de criação e aos mitos genealógicos, é também possível
compreender, tanto para a família, quanto para o analista, como se dão os Vínculos filiativos e
seus possíveis rompimentos, apagamentos, etc. Ao escreve-los e projetá-los, é possível pensar
sobre eles, é possível dar novos significados.

Outra técnica, usada concomitantemente, é a do espaçograma. Consiste na representação


em desenho, ou por meio de outro material, como argila, por exemplo do espaço no qual a
família vive. A representação deste espaço familiar, e como ele é ocupado, nos traz a
representação do espaço psíquico individual e familiar e como a organização genealógica está
realizada.

É um recurso que também deixa muito claro o clima incestuoso (Aulagnier,1986 apud
Benghozi, 2010), que pode acontecer entre as duas famílias de origem, assim como a
diferenciação, ou a falta dela, do que é íntimo, do que é privado, e do que é público, que na sua
indiferenciação pode gerar o que o autor chama de vínculo incestuoso, onde há uma
proximidade erótica, pois, as fronteiras de diferenciação entre estas três instâncias não estão
claras, assim como não estão os papéis, ou seja, as fronteiras hierárquicas não são claras. O
papel dos pais e dos filhos não é clara, e isso leva ao clima incestuoso. O pai é amigo? Irmão?
Amante? E o irmão, o que é? Essas indiferenciações, no espaço, se traduzem no psíquico, e
vice-versa, a fraqueza dessas fronteiras, que como tal, impõe um limite, facilitam para
consumação de um possível ato de incesto.

Dessa maneira, no espaçograma, o corpo psíquico grupal familiar genealógico, assim


como o de seus indivíduos pode ser projetado, e se torna um “convite à viagem pelos contos e
lendas da epopeia familiar genealógica que se desconstrói em terapia” (BENGHOZI, 2010,
p.252).

No trabalho com ambas as técnicas, e a aproximação de ambas, surge a noção de


genoespaçograma, onde se dará o acesso para o que é mítico familiar, acesso ao jogo das
lealdades genealógicas e sua difração, junto às associações verbais e de acontecimentos, é
possível também perceber os lapsos no discurso e nos espaços, assim como os paradoxos,
principalmente das alianças conjugais, assim como sintomas, malham e desmalham, e nesse
sentido, é possível também perceber quais são as funções de economia psíquica da família.
Enfim, o genoespaçograma é suporte para um trabalho de figuração psíquica.

Sendo assim, tanto a espacialidade do espaçograma, como a temporalidade do


genograma, configuram o mito familiar.

Todo este trabalho, da compreensão dos diversos níveis de complexidade, das


articulações, dos níveis lógicos, se situa no que o autor chama de “modelo epistemológico da
complexidade”.

É necessário, portanto, pensar no ecossistema relacional e os laços que aí estão


engajados, dessa maneira, ele não é centrado em uma única causa, mas em uma pluralidade
complexa, que envolve uma circularidade onde cada indivíduo tem suas significações acerca
do grupo e dos outros indivíduos e estão marcados pelas transmissões difratadas, mas que a
simples soma desses indivíduos não configura o grupo, este tem uma nova identidade. É
também um processo dialético. Nesse sentido, pensa-se não em hipóteses psicogenéticas, mas
na reorganização dos laços familiares.

Essa posição também traz um olhar ético na aliança terapêutica, por conta do caráter
transcontextual dos sintomas. O “porta vergonha” já está situado, não é função do analista
manter esta posição. Devemos compreendê-la, inclusive a função de memória familiar que este
carrega consigo. Compreender a difração das lealdades genealógicas: porque este carrega o
sintoma e por qual razão a família deve se lembrar dele?

O processo terapêutico, de remalhagem, é, portanto, não somente de tratamento com


implicações terapêuticas, mas também preventivo, uma vez que ao remalhar os continentes, a
compulsão a repetição para as outras gerações estará prevenida.

Por fim, esta complexa teoria da Psicanálise dos Vínculos Sociais, nos leva, de fato, a
pensar a clínica contemporânea, seus impasses e particularidades. A violência, em específico,
é um fenômeno complexo, interdisciplinar, problema que atinge o individual e o coletivo. Ao
nos depararmos com situações de violação de direitos, não mais podemos nos ater apenas ao
indivíduo e à psicoterapia individual como compreensão deste problema assim como a única
maneira de lidar com ele, mas devemos procurar, em parceria com os diversos órgãos da rede,
jurídicos, de assistência, saúde, e outros, onde também incluo a psicoterapia individual, buscar
compreender a complexidade do mesmo e entender como ele se situa na dinâmica da malhagem
e da composição dos vínculos.

A violência não é apenas o ato pelo ato, embora simbolicida, também é simbólico. Na
sua complexidade, envolve toda a família em um dinâmica que traduz o ato como algo da
história dessa família, transmitido transgeracionalmente.

Quando pensamos em incesto, como algo da vergonha, da humilhação, da violação,


embora este, normalmente, possa envolver outras violências, como a física, a psicológica e a
negligência, a maneira de compreensão não poderia ser diferente. Como estão (des) organizados
os vínculos da malhagem? Quais são as tentativas inconscientes de remalhagem? Como
poderemos, no vínculo afiliativo do enquadre terapêutico, no movimento transfero
contratransferencial, ajudar na reconstrução desses vínculos e na ressignificação familiar? Ao
respondermos estas perguntas, quando nos deparamos com a demanda, já estaremos dando os
primeiros passos no sentido da remalhagem familiar grupal, na ressignificação do mito familiar
genealógico.

O constante trabalho de malhagem, desmalhagem e remalhagem é, portanto, o que


garante funções continentes de transformação psíquica, esse será o espaço de elaboração dos
continentes genealógicos da família e do grupo, assim como de seus membros, além da
transformação dos materiais psíquicos transmitidos inter ou transgeracionalmente.

Sendo assim, os conceitos apresentados pelo Prof. Pierre Benghozi, na disciplina em


questão e no livro referência, são de fundamental importância para compreender estas
demandas com as quais temos tido cada vez mais contato. Ao estudar tais conceitos, não
somente há a reflexão para compreendê-los e relacioná-los entre si, mas também há uma
reflexão sobre nosso papel enquanto aqueles que se debruçam a pensar e atender estas questões
ditas contemporâneas e como os vínculos têm sido formados e o que estaremos transmitindo
para as gerações posteriores.

Referência

BENGHOZI, P. Malhagem, Filiação e Afiliação: Psicanálise dos Vínculos: Casal, Família,


Grupo, Instituição e Campo Social. São Paulo: Vetor, 2011.

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