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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2015
FELIPE MARANGONI PONTES
São Paulo
2015
Contemporaneidade, campo social, modelo de família, direitos da criança e do
adolescente, violência. Estes são alguns termos que temos, como sociedade, cada vez mais tido
contato nos últimos anos, nos jornais, telejornais, na arte em geral, na política, no meio
acadêmico, e, como não poderia ser diferente, nas clínicas. Estes termos são da ordem do real
e, como tal, influenciam como os vínculos têm sido estabelecidos entre pessoas, famílias,
instituições, grupos, etc.
Muitos são os impasses que essas novas configurações podem criar. Procuraremos nos
ater a apresentar os conceitos apresentados pelo Prof. Pierre Benghozi acerca da Psicanálise
dos Vínculos Sociais e os pensar sob a temática de contextos de violência intrafamiliar.
Vale destacar que Vínculo é diferente de relação, onde “o vínculo pode ser claro, a
relação conflituosa”. (BENGHOZI, 2010, p.54) A relação conflituosa, que muitas vezes
também se traduz como sintoma, pode ter como função o restabelecimento do Vínculo.
O autor fará analogia desse construto teórico ao de uma rede, tal qual uma rede de pesca,
dessa maneira, os vínculos de filiação e afiliação criam nós, intersecções que se traduzem na
malhagem, ou seja, “a malhagem é o trabalho psíquico de construção-desconstrução e de
organização dos Vínculos”. (BENGHOZI, 2010, p.16)
A malhagem, assim como a rede de pesca, é um continente, serve para conter algo. No
caso, o aparelho psíquico grupal familiar e seus continentes genealógicos, são representados
por essa malhagem genealógica.
Ainda sobre as transmissões, baseado em Kaes (1993, 1994 apud BENGHOZI, 2010),
o autor diferencia as transmissões intergeracionais e transgeracionais.
Quanto ao mito familiar, Ferreira (1966 apud BENGHOZI, 2010), coloca que este
“consiste [de] um conjunto de crenças compartilhadas pelos membros do grupo familiar”.
(p.24). O mito, enquanto co-construção psíquica grupal familiar autorreferente, é um
organizador grupal familiar, ele dá os limites de pertencimento ou não ao grupo familiar, tanto
consciente quanto inconscientemente. Nesse âmbito, dá-se importância aos rituais familiares,
pois é neles que se desenvolvem os mitos, referentes ao ideal do ego familiar, o trabalho sobre
eles é, portanto, de fundamental importância.
O autor ainda propõe o conceito de vínculo psíquico rede, que se estabelece de maneira
intercontinental – entre dois continentes. Dá-se como exemplo os pactos de aliança conjugal, e
entre instituições. Portanto, a rede é compreendida como malhagem intercontinente e como tal,
não está do lado de alguma instituição, não tem uma hierarquia definida, como se cada uma
fosse uma intersecção da malhagem e é um espaço psíquico transitório que emerge conforme
necessidade. Nos casos de violência, o autor dá destaque ao “nó” jurídico desta rede, de maneira
que os trabalhos terapêuticos de remalhagem familiar possam ser realizados.
Benghozi (2010) colocará que nestes casos, da repetição da violência e do incesto, nos
interessaremos acerca de uma temporalidade genealógica, aquela que atravessará gerações.
Será descartada uma visão meramente causalista, mas será pensada como um sintoma
da desmalhagem dos continentes genealógicos grupais familiares e comunitários. Uma
perspectiva dinâmica, que abandona o modelo “carrasco e vítima”, procurando compreender a
dimensão inter e transpsíquica: o que é impressão, negativo, o impensável, inaudível,
inominável e inconfessável que, nesse sentido, corresponde à vergonha na transmissão
transgeracional do negativo.
Sendo assim, a violência não pode ser compreendida apenas intrapsiquicamente, mas
nos âmbitos intersubjetivos e grupais e de transmissão genealógica. Nesse sentido, os “rituais,
estão inscritos na cultura do grupo familiar e comunitário” (BENGHOZI, 2010 p.68), e aí,
também pode estar o ritual da violência, que se inscreve, paradoxalmente, uma vez que é
simbolicida, como um apagamento. Ou seja, é da ordem do inominável, do indizível, do
inconfessável e do inaudível. É transmissão de impressão e da vergonha. Aos quatro “I”, o autor
ainda coloca que são correspondentes o Inaudito e o Ininteligível.
Ele os descreve como as diversas adições e compulsões, sendo elas atos sexuais, roubo,
toxicomaníacas, como alcoolismo e uso abusivo de drogas, entre outras. Estes sintomas,
procuram apresentar um problema de continente, um problema de malhagem esburacada. Como
exemplificado, pensando a malhagem tal qual uma rede de pesca, se esta tem um buraco, não
conterá os peixes, assim como a malhagem não poderá conter os conteúdos psíquicos, dessa
maneira há uma clínica do vazio, o vazio do continente, enquanto a malhagem continua a ter
seus vínculos rompidos, pouco a pouco, até gerar uma desmalhagem catastrófica, onde a mesma
desfia, perdendo toda a capacidade continente. Assim como uma manifestação sintomática
comum é a estafa, e usa a metáfora do barco para explica-la, pensando um barco com uma fenda
no casco, sendo este um problema de continente. E a tentativa de escoar toda a água que inunda
esse barco, sem parar, é extenuante, pois ele continua a encher. Sendo assim, um sintoma é o
desabamento por esgotamento.
No momento, cabe referir ao que o autor chama de anamorfose. Ele se refere a este
conceito, como uma muda de continente, diante de acontecimentos que engajam, não só o nível
individual, mas todo o nível grupal genealógico, trazendo à tona mudanças nos níveis somático,
psíquico e de vínculo social. Além disso, é continuidade a um processo de crescimento, mas
também um rompimento. Acontecimentos comuns de anamorfoses são momentos do ciclo da
vida, como a adolescência, a gravidez, nascimento, etc. Por serem, as anamorfoses,
acontecimentos mutatórios, elas testarão a resiliência da malhagem, assim como deixarão mais
evidentes as suas falhas, seus buracos. “A clínica da anamorfose é a clínica da vergonha e do
ideal do ego grupal” (BENGHOZI, 2010 p.107).
A situação em crise é quando a malhagem está esburacada, e nesse sentido, pode surgir
o sintoma como tentativa de remalhagem, que pode evitar, até certo ponto, o aumento dos
buracos do continente. Contudo, a remalhagem não é, de fato, realizada, o aumento dos danos
pode acontecer.
Aquilo que rompe, ou destrói os vínculos constituintes da malhagem, deixa uma marca
a ser metabolizada, simbolizada, um buraco a ser remalhado, se assim não o for, essa marca
fantasmática, impressão, em negativo, será telescopada para outras gerações, em uma
temporalidade mítica. Está aí a compulsão a repetição, a falha no continente, que demanda uma
remalhagem, ao tempo que, se não metabolizada, criará novos buracos e transmissões
genealógicas de impressão que se potencializarão em momentos de anamorfoses, comuns à
vida, e a tentativas sintomáticas de remalhagem. Temos, de certa maneira, um movimento
cíclico, que se categoriza na compulsão à repetição, na pulsão de morte. Também expresso nos
pactos de aliança conjugal, que são malhagens afiliativas entre duas famílias, que trazem ambos
continentes e permite gerenciar os rasgos e rupturas dos mesmos.
Nesse sentido, o autor coloca que uma das formas essenciais de violência é aquela que
em seus efeitos contaminantes, nas transmissões transgeracionais, são os ataques contra os
rituais, pois eles são de função simbolizante essencial. Assim, dá destaque na violência contra
da ritualização da morte, pois esta é processo essencial na elaboração do luto. Sem a
ritualização, ou a desumanização do processo, da qual irá exemplificar as chacinas, tal como as
violências genocidas, há um rompimento grave na malhagem familiar e comunitária, que irá ser
transmitida na impressão, em negativo, afeta o ideal de eu-grupal, quebra Vínculos filiativos e
afiliativos.
A princípio, o autor nos traz a ideia de que o pacto entre grupo e família e terapeuta, é
um vínculo afiliativo, o qual poderá ser um ponto de partida para pensar a remalhagem, a partir
do que ele chama de malhagem afiliativa terapêutica, que vai emergir da transferência e da
contratransferência dos indivíduos e do grupo, no campo terapêutico. Se há campo, pensamos
também em enquadre, e do metaenquadre já citado, como parte do processo psicoterapêutico.
Muitas vezes, o enquadre será atacado, e nesse sentido, é possível entender como se dão o
ataque aos vínculos, ou as tentativas de remalhagem.
Vale destacar, que vínculos filiativos rompidos podem ser remalhados a partir de
vínculos afiliativos, ou seja, a reconstrução psíquica é sempre possível.
Nesse sentido, para que o neocontinente narrativo possa ser desenvolvido, Benghozi
(2010) coloca que a família tem que se apropriar ou trazer ela mesmo a demanda. Quando essa
demanda é vinda de um terceiro, como um psicólogo, uma psiquiatra, um assistente social, etc.,
o demandante é convidado a participar das entrevistas familiares, até que a família possa se
apropriar da demanda e as entrevistas possam se configurar como psicoterapia familiar. Em
caso de impossibilidade de comparecimento real do demandante, este é solicitado a enviar por
escrito a demanda, que será lida para a família.
O neocontinente é um trabalho de desconstrução narrativa, e construção de uma
narrativa alternativa, em relação à dinâmica inconsciente familiar, de flexibilização da
malhagem, ou mesmo da reconstrução ou reforço dela, para que possa lidar com o conteúdo
traumático. Esse trabalho se dá no âmbito da metatransferência, onde se encontram
transferência e contratransferência. Contudo, essa dinâmica não acontece apenas no enquadre
terapêutico, mas no metaenquadre da rede, em paralelo aos trabalhos de psicoterapia individual,
de responsabilização jurídica, de educação, etc.
Podemos pensar, como um caso de agressão física constante de pai contra filho, por
exemplo, como que o mito familiar está configurado, e qual (ou quais) buracos da malhagem
foram transmitidos em negativo, qual a função econômica deste tipo de conduta, e mais: qual a
função dela na família, uma vez que não pensamos em um caso isolado, mas constante. Qual o
papel da mãe e de outros integrantes da família neste caso? O filho, talvez “porta-vergonha”,
torna-se alvo das agressões. Na difração das lealdades genealógicas, como coube isso ao filho?
Essas perguntas devem ser respondidas no campo terapêutico, contudo, é necessária a
responsabilização legal do pai por seus atos, por uma ação educativa, de toda a família, dos
direitos da criança e do porque é errôneo a agressão, etc. Essa é articulação do metaenquadre,
necessário para este tipo de atendimento, ou seja, é, como chama o autor, a concepção
transdisciplinar do tratamento e complementar uns dos outros.
É um recurso que também deixa muito claro o clima incestuoso (Aulagnier,1986 apud
Benghozi, 2010), que pode acontecer entre as duas famílias de origem, assim como a
diferenciação, ou a falta dela, do que é íntimo, do que é privado, e do que é público, que na sua
indiferenciação pode gerar o que o autor chama de vínculo incestuoso, onde há uma
proximidade erótica, pois, as fronteiras de diferenciação entre estas três instâncias não estão
claras, assim como não estão os papéis, ou seja, as fronteiras hierárquicas não são claras. O
papel dos pais e dos filhos não é clara, e isso leva ao clima incestuoso. O pai é amigo? Irmão?
Amante? E o irmão, o que é? Essas indiferenciações, no espaço, se traduzem no psíquico, e
vice-versa, a fraqueza dessas fronteiras, que como tal, impõe um limite, facilitam para
consumação de um possível ato de incesto.
Essa posição também traz um olhar ético na aliança terapêutica, por conta do caráter
transcontextual dos sintomas. O “porta vergonha” já está situado, não é função do analista
manter esta posição. Devemos compreendê-la, inclusive a função de memória familiar que este
carrega consigo. Compreender a difração das lealdades genealógicas: porque este carrega o
sintoma e por qual razão a família deve se lembrar dele?
Por fim, esta complexa teoria da Psicanálise dos Vínculos Sociais, nos leva, de fato, a
pensar a clínica contemporânea, seus impasses e particularidades. A violência, em específico,
é um fenômeno complexo, interdisciplinar, problema que atinge o individual e o coletivo. Ao
nos depararmos com situações de violação de direitos, não mais podemos nos ater apenas ao
indivíduo e à psicoterapia individual como compreensão deste problema assim como a única
maneira de lidar com ele, mas devemos procurar, em parceria com os diversos órgãos da rede,
jurídicos, de assistência, saúde, e outros, onde também incluo a psicoterapia individual, buscar
compreender a complexidade do mesmo e entender como ele se situa na dinâmica da malhagem
e da composição dos vínculos.
A violência não é apenas o ato pelo ato, embora simbolicida, também é simbólico. Na
sua complexidade, envolve toda a família em um dinâmica que traduz o ato como algo da
história dessa família, transmitido transgeracionalmente.
Referência