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relações violentas e contexto social A literatura antropológica sobre o tema sugere que a violência fami-
liar, em qualquer uma de suas modalidades, não pode ser reduzida
à lógica do agressor e da vítima, uma vez que se passa no âmbito de
relações que se desenrolam num contexto social dado e dão sentidos
muito diversos a um mesmo ato (Oliveira & Vianna, 1993; Muniz,
1996; Fonseca, 2000).
Dadas as hierarquias de gênero e de idade que estruturam so-
cialmente as famílias e são internalizadas pelos sujeitos, a violência
familiar é a expressão de relações de poder que incidem, principal-
mente, sobre aqueles que ocupam lugares mais vulneráveis: crianças,
mulheres e idosos. Os lugares de vítima e agressor, todavia, não são
a violência familiar é o grau extremo do abuso nas relações fixos; eles participam de um mecanismo relacional, cujas persona-
desenvolvidas em âmbito familiar e pode se manifestar de formas gens podem mudar de lugar. Podem ocorrer, por exemplo, maus-
distintas, mais ou menos explícitas. Trata-se, pois, de um fenômeno tratos ou atos violentos de filhos adolescentes e jovens contra seus
que decorre da própria configuração das relações familiares social- pais ou de mulheres contra seus maridos, de acordo com as desigual-
mente construídas. Ao contrário de outras modalidades de violência, dades na configuração das relações familiares.
a familiar diz respeito não apenas a um ato, mas também a relações Há dificuldade de se pensar a violência como um fenômeno so-
violentas que se dão entre pessoas conhecidas e aparentadas. cial, construído no âmbito das relações que os seres humanos es-
Para a antropologia, um ato em si mesmo não é violento. Ele é tabelecem entre si sob formas dinâmicas, porque sociais, culturais
qualificado como tal pela concepção que se tem dele num determi- e históricas, e que se explicaria pela própria lógica dessas relações.
nado contexto. Em outras palavras, o fenômeno da violência pos- É mais fácil representá-la como uma aberração, estranha ao universo
sui o caráter relativo dos fatos sociais. Nomear a “violência” é uma moral de uma sociedade que se considera justa. No que diz respeito à
construção social, ou seja, um ato que é considerado uma forma de violência familiar, essa dificuldade se acentua em face da naturalização
violência e passível da mais rigorosa punição numa determinada das relações familiares, cujo modelo é biológico, e sobretudo do valor
sociedade, representada por sua instância jurídica, pode ser reco- moral que se atribui à família em nossa sociedade. Nessa ótica, a famí-
nhecido como prática legítima em outros contextos sociais. Desse lia, “sacralizada” como instância de afeto e proteção, opõe-se à noção
modo, a violência familiar se define por referência aos valores e de conflito, que passa a ser “satanizada”, tornando-a polar e excludente
modos de se relacionar em família, numa perspectiva que implica em relação ao que se entende por família.
considerar não só os atores envolvidos no ato violento (o agressor Diante da violência familiar, portanto, o antropólogo deve evi-
e a vítima), como também o contexto de violência que lhe confere denciar as matrizes sociais a partir das quais o comportamento vio-
significados. lento: a) ocorre; b) justifica-se perante seus agentes; e c) é qualifica-
do como tal pela sociedade. A pergunta do antropólogo é esta: qual o
saffiotti, Heleieth I. B.
(1996) “No fio da navalha: violência contra crianças e adolescentes no Brasil
atual”. In: madeira, Felícia Reicher (org.) Quem mandou nascer mu-
lher? Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/unicef.