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ARTIGO ARTICLE 417

A violência nas relações de conjugalidade:


invisibilidade e banalização da violência sexual?

Violence in conjugal relations:


concealing and taking sexual violence for granted

Sônia Maria Dantas-Berger 1

Karen Giffin 1

Abstract Introdução

1 Escola Nacional de Saúde This article presents the results of a qualitative Este artigo apresenta resultados parciais de um
Pública, Fundação Oswaldo
study of women who had filed complaints of estudo qualitativo, com enfoque relacional-es-
Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
domestic violence, situating gender relations in trutural de gênero, sobre percepções e vivên-
Correspondência a broader context. The authors focus on the cias femininas relacionadas à violência sexual,
S. M. Dantas-Berger
meaning ascribed to sexual coercion in violent tanto no âmbito público (estupro por homem
Núcleo de Gênero e Saúde,
Departamento de Ciências relations, suggesting that conjugal sexual vio- desconhecido) como privado (em relações con-
Sociais, Escola Nacional lence is related to the perverse effects of changes jugais) 1.
de Saúde Pública,
in the sexual division of labor and the aggravat- Foram entrevistadas nove mulheres que de-
Fundação Oswaldo Cruz.
Rua Leopoldo Bulhões 1480, ed double demands on women from housework nunciaram violência conjugal, atendidas no
Rio de Janeiro, RJ and the workplace, in relation to the disman- Centro Integrado de Atendimento à Mulher
21041-210, Brasil.
rsberger@ar.microlink.com.br
tling of the male’s role as provider in situations (CIAM) do Conselho Estadual da Mulher do Rio
sdantas@ensp.fiocruz.br of poverty. In this context, women’s refusal to en- de Janeiro, referência na atenção psicossocial e
gage in sex (a form of resistance which expresses jurídica a casos de violência e discriminação
their desire to be sexual protagonists and com- contra mulheres. Em um hospital público, fo-
municates disappointment with their partners) ram entrevistadas três vítimas de estupro por
can be seen as contributing to the exacerbation desconhecido.
of conjugal violence. In their partial position of Enquanto estudos baseados em entrevistas
“subjects of resistance”, these women reveal a com mulheres estão revelando que a violência
situation of oppression which is rarely referred sexual é comum, há uma relativa “invisibilida-
to as violence: feelings of disgust and repulsion de” desta violência nas denúncias de violências
following sexual relations conceded as “conju- praticadas por homens contra mulheres no
gal rights” are similar to those manifested by âmbito doméstico. A proposta deste artigo é
victims of rape by strangers (which, in contrast, discutir como as relações sexuais acontecem e
is generally recognized as “sexual violence”). qual lugar ocupam nas relações de conjugali-
dade violentas, destacando a ocorrência e os
Spouse Abuse; Women’s Health; Domestic Vio- sentidos atribuídos ao “sexo cedido” e/ou obri-
lence gado por mulheres que denunciaram agressões
físicas e psicológicas de seus parceiros.
A compreensão da violência contra mulhe-
res ganha mais sentido ao adotarmos uma aná-

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lise que considere as condições em que históri- condição de ser “alta sua incidência e severida-
ca e socialmente se constróem e estabelecem de quando comparada com a violência pratica-
as relações sociais de sexo, ou seja, quando ana- da por mulheres contra homens” 9 (p. 21). No
lisada sob a perspectiva de gênero. Aqui, bus- entanto, numa visão relacional dos gêneros,
cou-se compreender em que medida estereóti- não se pode ignorar nem o fato das violências
pos de gênero, aliados às condições materiais que atingem homens na esfera pública tam-
de sobrevivência, banalizariam ou impediriam bém serem relacionadas aos papéis e ideolo-
uma maior visibilidade do fenômeno da vio- gias de gênero masculinos, nem as possíveis
lência sexual conjugal. conseqüências destas violências públicas para
Contudo, considerando-se a complexidade as relações íntimas entre os gêneros.
do fenômeno da violência contra mulheres e o
lugar que ocupa numa rede de violência maior
ou estrutural, não se pode perder de vista sua A ordem patriarcal e a transição
interseção com outros fatores determinantes, de gênero: os gêneros na história
“gramáticas sociais” ou “sistemas de mediação e a visibilidade da violência sexual
social”, como classe social, raça/etnia, as leis e
representações sociais, entre outros 2,3,4. Uma ordem social de tradição patriarcal por
Sendo assim, entende-se que este tipo de muito tempo “consentiu” num certo padrão de
violência não será igualmente percebido ou vi- violência contra mulheres, designando ao ho-
vido por toda mulher, ou seja, gênero se conju- mem o papel “ativo” na relação social e sexual
gará com outros elementos como idade, condi- entre os sexos, ao mesmo tempo em que res-
ções familiares, sociais, econômicas e culturais, tringiu a sexualidade feminina à passividade e
sem existir um caráter universalizante, mas, à reprodução. Com o domínio econômico do
sim, socialmente estruturado no modo como homem enquanto provedor, a dependência fi-
esses elementos se associam ou não em suas nanceira feminina parecia explicar a aceitação
vidas. de seus “deveres conjugais”, que incluíram o
A delimitação conceitual do problema da “serviço sexual”.
violência contra mulheres implica enfrentar O controle cotidiano da sexualidade femini-
uma espécie de “ambigüidade terminológica”, na nas sociedades de tradição patriarcal acom-
um não-consenso sobre o modo mais apropria- panhou a ascensão da ideologia da família nu-
do de nomear os variados tipos de violência fí- clear, que passou a funcionar como um dos
sica, emocional e sexual 3,5,6,7,8. principais meios de organizar as relações se-
Embora a violência que se baseia em gêne- xuais entre os gêneros. Algumas teóricas femi-
ro seja mais abrangente, já que “vitima” tanto nistas apontaram uma associação direta entre
mulheres como crianças e adolescentes de am- a sexualidade e a situação de opressão e desi-
bos os sexos, muitas vezes, violência “contra gualdade: “a objetificação sexual é o processo
mulheres” e violência “de gênero” ou “baseada primário de sujeição das mulheres” 10 (p. 517); o
em gênero” aparecem como sinônimos ou ter- controle da sexualidade é “o método por excelên-
mos intercambiáveis 4,6. cia do controle cotidiano das mentes e corpos
Neste bojo, por serem as violências de ho- das mulheres nas culturas patriarcais” 11 (p. 165).
mens contra mulheres e meninas mais freqüen- Este foi um dos campos prioritários de luta
temente retratadas ou observadas no âmbito dos movimentos feministas e dos estudos de gê-
das relações familiares e/ou íntimos, os termos nero desde a década de 60, ao chamarem a aten-
“violência doméstica” e “violência intrafami- ção sobre o quanto o que é da ordem privada da
liar” são outras possibilidades terminológicas, família é operado no social: “o pessoal, é político”.
embora não se restrinjam à violência contra as Nos últimos trinta anos, assistimos à cres-
mulheres. cente participação de mulheres no trabalho re-
A Conferência de Direitos Humanos de 1993 munerado e no orçamento familiar, junto com
gerou uma definição oficial das Nações Unidas uma aceitação social da atividade sexual femi-
sobre a violência contra a mulher: “todo ato de nina não-reprodutiva e fora do casamento. A
violência de gênero que resulte em, ou possa re- representação ideológica destas mudanças em
sultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou termos positivos, na celebração da “nova mu-
psicológico da mulher, incluindo a ameaça de lher” que deve trabalhar fora para ser “inde-
tais atos, a coerção ou a privação arbitrária da pendente”, controlar sua fecundidade e ser ati-
liberdade, tanto na vida pública como na vida va sexualmente, indica que estamos perante
privada” 5 (p. 3). uma “transição de gênero” 12.
O que enfatizamos aqui na articulação en- Embora esta relativização da tradicional di-
tre violência masculina e gênero feminino é a visão sexual do trabalho e do controle sexual in-

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dique que o patriarcado não é mais o mesmo, tre os tempos de gênero feminino e masculino
seu efeito sobre as mulheres não é homogêneo. estar produzindo ou potencializando conflitos
Para muitas mulheres no Brasil, a necessidade nas relações sociais de sexualidade?
da sua presença no mercado de trabalho acom-
panha o aprofundamento da pobreza e da “du-
pla jornada”. Tendo, agora, responsabilidades Estudos empíricos
não somente na esfera doméstica, mas também
na provisão material da família, vivem uma Tanto no estudo pioneiro de Heise et al. 5, que
atualização das desigualdades de gênero. Co- reuniu dados de 35 estudos em 24 países, co-
mo caracterizar tais mudanças na sexualidade? mo no World Report on Violence and Health 15,
Em seu estudo histórico sobre a construção está comprovada estatisticamente a alta inci-
do estupro como fenômeno social na França dência de violência de homens contra mulhe-
desde o século XVI, Vigarello 13 associa a visibi- res, sendo a forma mais endêmica a violência
lidade contemporânea das diversas categorias sexual e física de companheiros íntimos contra
de violência sexual ao imperceptível nasci- suas mulheres, o que conforma um importante
mento de uma nova visão do sujeito e da inti- problema de saúde pública. Em 48 pesquisas
midade. A mudança na percepção da violência de base populacional, 10-69% das mulheres en-
sexual contra mulheres, ao passar a ser visto trevistadas apontaram terem sido alguma vez
como crime, focaliza e valoriza atos até então alvo de agressão física de seus parceiros; a vio-
desprezados: “uma massa de gestos transgres- lência física é freqüentemente acompanhada
sores se impõe ao olhar, não porque sejam no- da violência psicológica e, em um terço a 50%
vos, mas porque são observados de outro modo” dos casos, pela violência sexual.
13 (p. 225). Necessariamente, este outro modo No Brasil, desde os anos 80, vários estudos
de olhar implica uma mudança na relação so- abordam a questão da violência doméstica e
cial entre homens e mulheres e na abordagem conjugal, com base no trabalho das institui-
da situação da violência sexual, onde a mulher ções policiais e jurídicas, principalmente atra-
busca sustentar, ainda que de forma ambiva- vés das Delegacias Especializadas no Atendi-
lente, uma posição de Sujeito (e não de objeto) mento às Mulheres (DEAMs). Grande parte des-
nas relações sexuais que vivencia. tes trabalhos foi fortemente influenciada pelo
Bozon 14, em estudo com homens e mulhe- movimento de mulheres, que privilegiou o di-
res na França contemporânea, considera as reito da mulher à sua segurança na “privacida-
práticas e as concepções da sexualidade e da de” do lar, e estimulou as denúncias contra os
conjugalidade como “indicadores” do estado maridos agressores.
atual das relações sociais de sexo. Conclui que, No entanto, a carência de estudos popula-
apesar da transformação recente nas ativida- cionais sobre a violência baseada em gênero
des das mulheres na esfera pública, nas nor- no país, bem como de pesquisas operacionais
mas e até mesmo nas práticas sexuais de mu- nos serviços, acaba por impossibilitar um me-
lheres e homens, mantém-se diferenças subs- lhor conhecimento sobre este fenômeno e suas
tanciais em suas visões das relações sociais de conseqüências em saúde. Este tipo de violên-
sexualidade. Enquanto as mulheres aspiram a cia ainda é pouco investigado pelos profissio-
serem sujeitos sexuais e praticam sexo fora do nais de saúde, o que deve colaborar para que
casamento, elas preferem a sexualidade con- seja subestimado em dados oficiais 16,17.
textualizada no âmbito de uma relação de afe- As estatísticas mais recentes, de 267 DEAMs,
to e compromisso, iniciando processos de se- identificaram os crimes mais denunciados pe-
paração quando não estão satisfeitas com as re- las mulheres. Entre 326.693 notificações rece-
lações. Ao mesmo tempo, “nas representações bidas, havia 113.727 queixas de lesão corporal,
masculinas, a mulher continua a ser considera- 107.999 de ameaças e 32.183 para vias de fato.
da como um objeto que se deseja adquirir (e de- Logo depois, encontramos os crimes contra a
pois exibir), mais do que como um sujeito com o honra: 13 mil de injúria; 10.049 de difamação; e
qual se estabelece uma relação” 14 (p. 127). 6.805 para calúnia. Especificamente para o cri-
Este estudo indica que a maior presença na me de estupro, foram totalizadas 4.697 queixas
esfera pública e no trabalho remunerado não em todas as DEAMs do país 18.
tem garantido a estas mulheres as relações afe- Indubitavelmente, a maioria esmagadora
tivo-sexuais que elas desejam, confirmando a dos dados aponta para a maior ocorrência e/ou
importância de uma ótica relacional nas ques- visibilidade das violências físicas, tipificadas
tões de gênero. Aponta para uma certa lentidão criminalmente por lesões corporais, seguidas
do tempo de gênero, mais especificamente, do pelas violências psicológicas, principalmente
gênero masculino. Pode este descompasso en- ameaça, difamação e injúria. A violência sexual,

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especialmente a coerção e/ou violência sexual Quatro mulheres possuíam escolaridade de


praticada por parceiro íntimo no âmbito priva- nível fundamental incompleto; quatro nível
do, está pouco evidenciada ou inexistente nas médio (sendo duas incompletos); e uma de ní-
estatísticas disponíveis: “é praticamente impos- vel superior. Seis foram registradas no serviço
sível desvendar, nos dados estatísticos, situações como brancas e três como pardas. O tempo de
de estupro conjugal, porque elas estão escondidas relacionamento variou entre 6 e 22 anos: qua-
em outros itens, como o de lesões corporais” 19 tro delas mantinham o relacionamento conju-
(p. 48). gal entre seis a dez anos, três entre 11 a 15 anos
Principalmente a partir da segunda metade e duas por mais de 20 anos. Uma entrevistada
dos anos 90, existe consenso quanto à carência teve 4 filhos e as outras entre 1 e 3 filhos. Duas
de dados apropriados sobre a violências sexual declararam renda familiar menor que um salá-
contra mulheres no Brasil, e sobre a necessida- rio mínimo, duas entre um a dois salários, três
de de serem realizadas investigações quantita- entre três a cinco salários, uma de seis salários
tivas e qualitativas que colaborem para a com- e outra de vinte. Sete tinham trabalho remune-
preensão do problema 9,20,21. rado, quatro em empregos formais e três infor-
No campo da violência sexual doméstica, a mais, uma estava aposentada e outra era “do lar”.
associação entre lares violentos e estupro con- Para todos os nove casos, o motivo registra-
jugal vem sendo detectada, mais consistente- do para a procura do serviço foi a violência de
mente, em estudos internacionais. Entre os prin- gênero doméstica. Em oito casos, lesão corpo-
cipais resultados de um estudo nacional pio- ral foi denunciada no primeiro atendimento;
neiro de sobre a violência doméstica e sexual em cinco destes, houve a associação da lesão
22, baseado em 3.193 entrevistas com usuárias corporal com algum outro tipo de violência, in-
de 19 serviços de saúde, encontramos: “40% cluindo violência psicológica, através de discri-
das mulheres entrevistadas declararam violên- minações, intimidações, e/ou ameaça. Uma mu-
cia física – exclusiva ou conjugada com a forma lher, em seu primeiro atendimento, registrou a
sexual – cometida pelo parceiro atual ou ante- ameaça como tipo exclusivo de violência.
rior; 5% relataram casos exclusivos de violência Não encontramos nenhum registro em que
sexual. A violência sexual, portanto, ocorre so- a violência sexual houvesse sido notificada em
bretudo associada à violência física” 22 (p. 2). suas fichas de primeiro atendimento. Porém,
Sendo a violência sexual associada à violên- em atendimentos subseqüentes, algum relato
cia física dos parceiros nos casos de violência técnico ligado a possíveis situações de violên-
conjugal, qual o lugar ocupado pela sexualida- cia sexual foi registrado em quatro casos.
de nestas relações? Existiria a queixa de “estu- Conscientes das possíveis barreiras para o
pro marital” entre mulheres que viveram a si- compartilhamento público dessas vivências,
tuação de violência conjugal? Quais elementos apostamos na importância e possibilidade de
ou conteúdos poderiam ser relevantes para rompermos com este silêncio naturalizado que
que elas identifiquem, nomeiem ou dêem visi- parece impedir esta nomeação, tanto em seu
bilidade às agressões sexuais que vivem dentro âmbito “assistencial” como “político”, dificul-
do casamento? Quais seriam os efeitos ou con- tando qualquer avanço. Neste sentido, busca-
seqüências deste tipo violência, especialmente mos propiciar à mulher, através de uma intera-
em termos da saúde e da sexualidade femini- ção social específica (pesquisadora-pesquisa-
nas? Estas são algumas questões que orientaram da), meios de elaborar e tornar públicos seus
o estudo e que ora trataremos de apresentar. significados da violência, bem como de com-
partir estas experiências, respaldada por cui-
dados éticos e técnicos.
Material e métodos

No CIAM foram realizadas e gravadas, com con- Alguns resultados


sentimento oral e escrito, em consonância com
a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Gênero e sexualidade: aprendendo e vivendo
Saúde, um total de nove entrevistas semi-es- estereótipos, desigualdades e impasses
truturadas com mulheres entre 25 a 51 anos
que efetivaram queixas de violência conjugal, Para muitas das entrevistadas, as expectativas
mas sem necessariamente relatarem coerção de realização refletiram sua formação familiar
e/ou violência sexual. Estes dados foram com- para o casamento, a constituição e cuidados
plementados por análise de dados próprios do com a família: “(...) minha formação, meus pais
serviço, observação de rotinas de atendimento me colocaram isso: família, casa, para sem-
e entrevistas com informantes-chaves. pre...” (Estela). “(...) E eu sempre tive vontade de

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criar uma família, de ter uma família de poder zes, em contrapartida à imagem do homem que
cuidar de uma casa – da minha casa. (...) Ter falha: “..é o que as pessoas falam: ‘muitos ho-
uma casa, uma família, continuar trabalhando, mens gostariam de ter uma esposa igual a você,
progredir, eu sempre pensei assim...” (Moema). que é uma mulher que trabalha, que se dedica
Assuntos “sexuais” não foram, ou foram pou- à casa, se dedica ao trabalho, não te vê na por-
co, abordados em casa. Amigas, profissionais ta de bar, não te vê conversando com homem
ou serviços de saúde, a escola e o trabalho, cola- nenhum’ – é muito difícil eu conversar com ho-
boraram de alguma forma, na formação/orien- mem, eu tenho muita amizade com senhoras...”
tação destas mulheres: “então eu fui sendo cria- (Moema).
da assim, eu não tive orientação nenhuma. A Observamos que quanto mais as parceiras
minha família não tem diálogo (...) Isso tudo eu pareceram cobrar ou querer dos maridos o que
fui descobrindo na escola, né? Aí, depois, vêm as eles “deveriam dar”, segundo o padrão tradicio-
amigas que ensinam...” (Moema). nal, como provedores, mais o conflito e as agres-
Com pouca orientação familiar e expressões sões entre o casal se acentuava. Para eles, em
pouco afirmativas da sua sexualidade, mas com casa como na rua, a atuação feminina parecia
a busca de felicidade e progresso na vida atra- revelar seu próprio “desvalor”: “e ele fica revol-
vés do casamento e/ou da maternidade, foram tado porque ele vê que eu com pouca dificulda-
morar com seus maridos e parceiros em diferen- de ou muita dificuldade, eu consigo honrar meu
tes arranjos conjugais, sem necessariamente se nome – é coisa que eu mais tenho amor é a meu
sentirem prontas para o relacionamento a dois. nome limpo, – e ele, realmente, ele não tem no-
Contudo, além de não se virem correspon- me limpo... E ele desconta tudo em cima de
didas nas suas expectativas de progresso a par- mim: fica uma pessoa insegura, frustrada, não é
tir do enlace matrimonial, se viram compro- capaz de nada, né? Não tem vontade de ir à
metidas e solitárias, tanto nas funções tradicio- frente (...). Ele é super-revoltado com isso... E is-
nalmente femininas de “gestão doméstica e afe- so é a maneira que ele tem para destruir o que
tiva” 23, como também no sustento econômico eu tenho...” (Suzi).
familiar. Muitas apontaram uma falta de ambi- Em paralelo, expressaram descontentamen-
ção e/ou de vontade de progredir de parceiros, to em se sentirem tratadas como objetos ou se-
alguns em situação crônica de desemprego: “e res sem autonomia, e sua resistência foi um
o que ele sabe fazer é brigar, é fazer as agressões, motivo para brigas. Nas entrevistas, manifesta-
é quebrar as coisas. Ele não ajuda em nada em ram suas aspirações a participarem mais livre-
casa, a assistência, os alimento são eu que com- mente do mundo público, mas quanto mais
pro, e, as coisas dentro de casa, alguma coisa que romperam com padrões femininos tradicionais
eu tenho, foi através do meu trabalho” (Suzi). de domesticidade e passividade, mais o confli-
“(...) Porque se meu marido tivesse sabido to conjugal se radicalizava: “...ele nunca acei-
retribuir todo esse amor, junto comigo (...) pelo tou este meu jeito. Ele acha eu tinha que ser só
menos uma parte do que eu faço pra ele, seria a dele, e não conversar com ninguém... Pra ele se
coisa mais linda, mais importante da minha vi- eu não conversasse com ninguém, era uma boa.
da... Ser feliz com ele. (...) Ele nunca foi um pai [Você aceita isso?] Não porque eu preciso de to-
companheiro, de sair com elas, de fazer passeio, do mundo. Tenho dois filhos (...) então eu não
de levar elas no médico junto comigo... Sempre posso me virar contra as pessoas, por causa de-
só fui eu...” (Elaine). le... Ele não vai deixar de trabalhar para ficar
“Ele acha que o que ele coloca dentro de ca- com as crianças em casa (...) Ele não aceita, ele
sa é o suficiente e não é. [Ela fala para parceiro] acha que eu tenho que ser sozinha pra depender
Então você tem que trabalhar porque a gente só dele, entendeu? Ficar a seu dispor...” (Geisa).
tem um filho (...) Melhorar a casa, fazer mais
cômodos – a gente já tem um quarto e para fa- Qualificando as agressões e violências
zer um quartinho dele [filho] lá... Assim, progre-
dir (...) minha casa é de telha, então nunca tive- Entre as agressões nomeadas, predominou a
mos uma oportunidade de botar uma laje. Quer violência física. No entanto, as agressões coti-
dizer, se ele trabalhasse, dava para... se ele pen- dianas ligadas ao sofrimento emocional, afeti-
sasse em progredir...” (Moema). vo e moral, violência que denominaremos co-
mo “psicológica”, foram recorrentes e freqüen-
Conflitos, violência e vida conjugal: temente consideradas as piores: “ele só sabe, é
queixas e resistências femininas e masculinas agredir, machucar... Não precisa de uma arma
pra te atacar: ele desmoraliza (...) não precisa
A imagem da mulher virtuosa – que todo ho- nem usar a mão, (...) te difamando, eu acho que
mem gostaria de “ter” – apareceu algumas ve- é a coisa pior que existe!” (Gal).

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A intimidação não só por força física, mas ela resiste, ele fala] Ah! É, né? Sua puta, pira-
pela força psicológica ou coerção, a opressão e nha, safada! Você não quer transar comigo por-
dominação pelo medo e culpabilização, foram que tu ‘fode’ com os outros...” (Elaine).
sendo desveladas: “(...) Eu não fico com raiva A violência física, de fato, exacerbou-se em
em uma briga não, mas eu fico com medo... (...) alguns casos quando negaram o sexo como
Realmente, eu tinha medo de que ele fizesse al- obrigação conjugal: “..eu comecei a me reservar
guma coisa comigo: eu esperava às vezes, ele tanto, que chegou ao ponto de eu notar que a
dormir, e eu, ali no sofá, ou fico assim na cama, agressão aos filhos, a mim, era por causa disso,
aí eu adormecia. Mas, não apagava, qualquer entendeu?” (Zilka).
barulhinho que eu escutasse – ou ele mesmo se Destacamos que o “consentimento” ao sexo
mexendo, se eu escutasse – eu abria o olho, e fi- não desejado foi relativo para algumas mulhe-
cava ali quietinha...” (Moema). res, visto que, manifestaram nojo e repulsa si-
A maioria respondeu que reagia frente às milares às reações ao estupro cruento, como
agressões, mais especificamente frente à vio- encontrado no estudo de Machado 24: “eu me
lência física, sempre com a intenção de se de- senti imunda, eu me senti imunda, suja, porque
fenderem ou evitarem a violência. Vale ressal- juntou a raiva dele me pegar assim, só para sa-
tar que os relatos de violência física e atenta- tisfazer a vontade dele e não respeitar o que eu
dos contra suas vidas foram mais freqüentes estava passando” (Moema).
no caso dos maridos do que no caso dos estu- “Teve uma época que eu fazia sem vontade
pros cruentos 1. (...) aí, quando ele virava pro canto e dormia, eu
dizia: ‘Graças a Deus!’ Eu ía pro banho, me lava-
O sexo na conjugalidade violenta va toda...” (Mary).
O sexo vaginal forçado no casamento mui-
A degradação crescente da relação se refletiu to poucas vezes foi significado como “violên-
igualmente na qualidade das relações sexuais, cia”, parecendo enquadrar-se socialmente e se-
transformando a cama num campo de batalha, xualmente como “normal” na relação. No en-
revelador, em alguns casos, do desprazer se- tanto, concretiza uma situação de opressão pa-
xual cronificado. Para a maioria, o sexo foi um ra mulheres que consideram o sexo como as-
dos motivos mais freqüentes para que a violên- pecto de uma relação maior: “eu não consigo
cia se instalasse. nem entender a natureza dele – ele acaba de me
Segundo os relatos, a relação sexual ocor- bater, de me dar socão, cuspir na minha cara,
reu, muitas vezes, sob forma de coerção “natu- puxar meus cabelos, aí (...) ele vai dormir, aí de-
ralizada” ou como “cláusula” prevista no con- pois quando ele acorda, ele vem como se nada
texto das obrigações conjugais. Todas relata- tivesse acontecido, vem querer me agarrar a for-
ram alguma situação do parceiro querer e in- ça, me beijar. Aí, eu: ‘Pára! Sai daqui! Eu não sou
sistir na transa apesar dela não querer; nenhu- jumenta...’ Que jumento é que acaba de morder
ma delas fez uma denúncia prévia desta situa- a jumenta e, na mesma hora, já tá indo prá ci-
ção nos serviços que buscaram. O sexo cedido ma dela!” (Elaine).
ou sob resistência foi recorrente, mas pouco “[Ela diz] Vem cá, você acha que eu tenho ca-
nomeado como violência. pacidade para isso? Você faz o que faz, você me
De modo geral, apesar de tentarem “resis- bate, você me humilha, você diz que eu sou isso
tir” – dizerem não – acabavam “cedendo” à re- e aquilo, e aquilo outro, e você acha que eu vou
lação sexual, algumas vezes por temerem a ter cara de pau de chegar e [um ditado popular]
agressão física, a perda de apoio financeiro ou ‘eu vou me abrir para você?!’ Eu não sou mulher
acusações de infidelidade: “então, quando ele de zona não, eu não sou mulher de zona, não,
bebe, ele não deixa eu dormir, ele tenta fazer se- que aceita tudo quanto é coisa e está lá (...) Di-
xo comigo à força... Se eu não fizer, ele não dei- zia que não queria. Ah! Porque meu marido, eu
xa eu dormir, entendeu? Então – [Entrevistado- sinto que ele é assim, eu sou para ele tipo um
ra questiona: o que você faz?] – eu, o único jeito objeto, né? Uma coisa que ele comprou, né? Eu
é fazer, né, que é para eu poder ter sossego, eu acho que não deveria ser assim...” (Zilka).
poder dormir e poder ter paz, porque senão eu O sentido de “violência sexual” e/ou do que
não tenho... Se eu não deixar ele fazer, aí ele co- seria a “pior” violência sexual, esteve associado
meça a querer me bater, me agredir, me escu- àquilo que transgride a moralidade – violência
lhambar... Dizer que eu estou com homem na moral, objetificação, e para algumas mulheres,
rua... Que eu tenho macho na rua.” (Geisa). o sexo anal.
“[Quando ela nega o sexo, ele diz] Você é minha
mulher, está aqui pra que? Ele pega, me deita na
cama, à força(...). Eu deixo, não tem como! [Se

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VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONJUGALIDADE 423

Discussão e conclusões textualizadas pelo outro lado da moeda: o des-


monte da identidade masculina de provedor.
As expectativas de realização da maioria parti- Nestes novos tempos, as mulheres, além de
ram das representações tradicionais da divisão dizerem que estão “cansadas de sofrer”, que
sexual do trabalho patriarcal: homens na pro- “sentem-se usadas” no relacionamento, apon-
dução/no público e na chefia da casa, mulheres tam “falhas” do marido no seu papel de ho-
na reprodução/na esfera doméstica, eventual- mem/pai-de-família e negam a eles – pelo me-
mente “ajudando” no trabalho remunerado. nos interiormente – a posse do seus corpos.
Entretanto, elas viveram uniões conjugais Assim, recusá-los na cama, dizer não ao se-
que exigiram delas funções e responsabilida- xo não-desejado, pode ser visto como um “con-
des na provisão material permanente ou até a trapoder”, que comunica mágoas e manifesta
chefia da casa, antes responsabilidades pre- um protesto frente às desilusões com seus par-
ponderantemente associadas aos homens. Em- ceiros, numa tentativa de refusar o papel de ob-
bora esta “transição de gênero” 12 seja celebra- jeto sexual – sem, no entanto, significar a ins-
da como condição principal da “nova mulher” tauração das mesmas como sujeitos sexuais,
ganhar espaço e autonomia, observamos os que realizam sua própria vontade. Como vimos,
efeitos perversos do aprofundamento da dupla o Sujeito sexual representado pelas mulheres
jornada feminina. O tradicional controle mas- em geral, afirmou que a sexualidade insere-se
culino baseado em seu papel de provedor está numa relação mais ampla, não podendo ser re-
em xeque e a resistência de ambos parceiros à duzida a um ato genital. Na sexualidade, alcan-
sua transição, radicaliza conflitos e colabora çaram a posição parcial de “sujeitos do não”.
para a ocorrência da violência, inclusive se- Assim colocado, o ato sexual não consenti-
xual, entre o casal. do não tomou diretamente a conotação de vio-
Nolasco 25 conclui que o homem nesta si- lência no discurso destas mulheres quando de-
tuação, tendo perdido a base anterior da sua nunciaram violências. Porém, alguns aspectos
identidade de gênero, mas sem palavras para se assemelharam às marcas do estupro cruen-
nomear “o novo”, reage com violência. Giddens to: ter nojo da relação, se lavarem imediata-
26 (p. 92) considera esta situação como relacio- mente; perderem ou terem pouco desejo se-
nada à “derrocada” da ordem patriarcal: “é pos- xual; correrem riscos de uma gravidez indese-
sível que boa parte da violência que os homens jada; contraírem infecções sexualmente trans-
praticam hoje contra a mulher, não seja apenas missíveis.
a persistência do velho sistema, e, sim, uma in-
capacidade ou recusa de adaptar-se ao novo. Ou
seja, não é apenas a continuação do patriarca- Considerações finais
do tradicional, mas uma reação contra a sua
derrocada”. Até que ponto diferentes níveis de visibilidade
Dessa perspectiva, não podemos entender e abordagem da violência sexual – como crime,
as relações conjugais sem entendermos as penalizado social e juridicamente e, como na-
transformações na divisão sexual do trabalho tural no contexto dos contratos conjugais –
patriarcal no contexto da precarização atual do deixam, de certa forma, esvair-se a possibilida-
trabalho. O fenômeno da violência conjugal, si- de de se nomear e/ou tratar como “estupro” –
tuado nas relações interpessoais, é remetido às modalidade de violência já incluída na atenção
relações de trabalho, estruturais 4. em saúde das mulheres – uma coerção a rela-
Ao mesmo tempo, as “novas mulheres” que ções sexuais não desejadas pela mulher?
entrevistamos também não mais se adequam Reconhecemos que a atuação do setor saú-
às representações tradicionais que colocariam de na trajetória das mulheres em situação de
como destino feminino “agüentar” situações violência conjugal foi limitada em comparação
de objetificação e violência, para que o casa- à atenção proporcionada às mulheres entrevis-
mento (e o seu próprio reconhecimento social tadas que viveram o estupro cruento e procu-
como sujeito moral) fosse mantido. São avan- raram ajuda. A maior parte destas, após busca-
ços claros, se comparados às pesquisas sobre rem a delegacia, foi encaminhada para um ser-
violência doméstica realizadas há cerca de vin- viço de saúde e atendida dentro do protocolo
te anos 27. previsto pelo Ministério da Saúde 28.
Retomamos as contribuições de Vigarello 13 Nesse sentido, importantes iniciativas in-
sobre a emergência de uma nova visão da mu- tersetoriais somaram-se para fazer valer direi-
lher como sujeito e a visibilidade da violência tos das “vítimas”, especialmente o direito a in-
sexual e enfatizamos que as aspirações das mu- terromper uma gravidez decorrente do estupro
lheres de serem sujeitos sexuais estão agora con- (conforme previsto, desde 1940, no Código Pe-

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424 Dantas-Berger SM, Giffin K

nal Brasileiro). Pouco a pouco, uma atenção lência e coerção implicados nas vivências fe-
mais integral em saúde tem sido normatizada, mininas da sexualidade?
através da qual, além do aborto legal, o acesso Abordar a violência contra mulheres e sua
à anticoncepção de emergência e à profilaxia interface com a saúde, bem como dar visibili-
para o HIV são algumas rotinas previstas. No dade à questão da sexualidade e do sexo força-
período de 1997 a 2002, o número de serviços do na conjugalidade implicaria, entre outras
habilitados para aplicação do protocolo passou tarefas: no reconhecimento da violência como
de 17 para 66 27. “objeto” do setor saúde, considerando-se tanto
Já no que se refere às mulheres em situação a concepção ampliada de saúde como o im-
de violência doméstica/conjugal, quando en- pacto provocado na qualidade de vida 30; na in-
contramos alguma referência relacionada à tegração de temas como sexualidade, gênero e
atenção em saúde que buscaram ou recebe- direitos humanos na prática de equipes multi-
ram, não avaliamos que tenham sido atendidas disciplinares para humanização do atendi-
dentro de rotinas de atenção sensíveis à abor- mento e problematização das situações abor-
dagem da violência doméstica e sexual 8. A maior dadas; em acolher e fazer interagir demandas
parte dos programas e serviços de saúde não femininas e masculinas, buscando-se facilitar
conta ainda com protocolos de atenção para tanto uma maior assertividade do Sujeito se-
casos de violência doméstica e sexual contra a xual feminino (para além dos “sujeitos do não”)
mulher, apesar de se constatar uma relativa dis- como resgatar a reciprocidade entre os gêneros
ponibilidade das mulheres, quando entrevista- em tempos de precarização das relações de tra-
das, relatarem a situação que vivem 29. balho e de renegociação de “dívidas conju-
Vale registrar que, mesmo nos casos de es- gais”; na operacionalização interdisciplinar do
tupro cruento, onde a atenção em saúde foi de atendimento em saúde; e, na articulação inter-
alguma forma garantida, o fato das mulheres setorial de serviços (Delegacias, Instituto Mé-
entrevistadas não serem ouvidas ou abordadas dico-Legal, Unidades de Saúde, entre outros)
– pelo menos nas consultas que relataram ter que faça valer o direito a uma atenção integral
participado – em suas questões relativas ao se- para “vítimas”, “autores” de violência e seus fa-
guimento de suas vidas sexuais e afetivas com miliares, evitando-se a “revitimização” através
seus parceiros após o estupro, foi recorrente. de uma “rede articulada de assistência médica,
Mais uma oportunidade perdida de se acolher, psicológica, jurídica, policial e social” 8 (p. 21).
identificar e tratar dos diferentes níveis de vio-

Resumo Colaboradores

A partir de uma abordagem relacional-estrutural de S. M. Dantas-Berger elaborou o projeto, participou da


gênero e sexualidade, este artigo apresenta resultados redação preliminar e elaborou com K. Giffin o artigo
parciais de um estudo qualitativo com mulheres que final. K. Giffin participou da redação, edição e revisão
denunciaram violência conjugal. Focaliza a ocorrên- do artigo final.
cia e os sentidos atribuídos ao fenômeno da coerção
sexual marital, apontando para a possibilidade da
violência sexual conjugal estar relacionada aos efeitos
perversos de transformações na divisão sexual do tra- Agradecimentos
balho e do aprofundamento da dupla jornada femini-
na quando relacionado ao desmonte da figura de ho- Agradecemos à Fundação Ford e à Secretaria Esta-
mem provedor em situações de pobreza. Neste contex- dual de Saúde do Rio de Janeiro pelo apoio financeiro
to, a recusa feminina ao sexo – contrapoder que ex- ao estudo.
pressa o desejo de ser sujeito sexual e comunica pro-
testos contra as desilusões relacionadas aos parceiros –
pode colaborar para a exacerbação dos atos violentos
masculinos. Na posição parcial de “sujeitos do não”, as
mulheres revelam ainda uma situação de opressão
quase nunca por elas diretamente nomeada como vio-
lência: no nojo e repulsa que manifestam contra o se-
xo cedido como débito conjugal, se assemelham aos
sentimentos de vítimas de estupros por desconhecidos
– estes sim, de modo geral, mais reconhecidos social-
mente como “violência sexual”.

Maus-tratos Conjugais; Saúde da Mulher; Violência


Doméstica

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):417-425, mar-abr, 2005


VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONJUGALIDADE 425

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