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20º Congresso Brasileiro de Sociologia

12 a 17 de julho de 2021
UFPA – Belém, PA
Comitê de Pesquisa Gênero e Sexualidade

Violência contra mulher e saúde mental feminina: uma análise


construcionista social

Ana Carolina Cerqueira Medrado


Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Pesquisa fomentada pela CAPES

Introdução

O Dicionário Crítico do Feminismo define que as violências contra as


mulheres assumem diferentes facetas: “Elas [as violências] englobam todos os atos
que, por meio de ameaça, coação ou força, lhes infligem [às mulheres], na vida
privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de
intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua
subjetividade” (Alemany, 2009, p. 271).
Outra definição válida para compreensão da violência contra a mulher é a
formulada pela Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. A referida
lei, em seu artigo 5º afirma: “[...] configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial [...]” (Brasil,
2006). O mesmo artigo ainda circunscreve que tal violência pode se dar no espaço
doméstico, na família e em relações íntimas de afeto, independente da orientação
sexual. Ratifica, além do mais, que tal tipo de violência se configura como uma
violação dos direitos humanos e estabelece os diferentes tipos de violência contra
a mulher: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência
patrimonial, violência moral.
Uma conceituação corrente na literatura internacional sobre o tema é a de
violência por parceiro íntimo (Intimate Partner Violence, IPV): "Violência física,
violência sexual, perseguição e agressão psicológica (incluindo táticas coercitivas)
por um atual ou ex-parceiro íntimo" [tradução nossa] (Breiding, Chen, & Black, 2010
como citado em Tiwari et al., 2015, p. 2).
Ainda nessa discussão sobre a diferentes terminologias, partindo de uma
leitura feminista interseccional, bell hooks (2019) destaca que, se atualmente o
termo “violência doméstica” é assunto corrente nos mais diferentes espaços, foram
as feministas que trouxeram o problema à tona. Ademais, ressalta que violência
doméstica inclui uma série de violências no espaço privado, envolvendo não
apenas relações heterossexuais, mas também relações de mulheres com
mulheres, e a vitimização de crianças. Afirma que a expressão “violência
doméstica” é adotada por ser considerada mais suave, mais leve, como se a
violência sofrida dentro de casa fosse menos grave que aquela sofrida na rua, o
que é totalmente improcedente. Refere que o termo “violência patriarcal” é válido
pois transparece quais as relações de poder envolvidas em tal violência, que se
relaciona com as disparidades do sexismo.
Considerando essa compreensão, neste texto adotarei a expressão violência
contra mulher, deixando marcado quem é a principal vítima da violência seja qual
for o termo adotado: violência de gênero, violência patriarcal, violência conjugal,
violência doméstica, violência por parceiro íntimo. Acredito que o uso de qualquer
outra nomenclatura escamoteia o problema, invisibilizando seus alvos basilares e
as relações desiguais envolvidas na perpetração de violência. Ademais, como
veremos, os artigos elencados na revisão de literatura de que se trata este texto,
embora em sua maioria tratem de violência por parceiro íntimo (Intimate Partner
Violence, IPV), trazem diversos tipos de violência dirigidos às mulheres em
diferentes espaços, não somente o doméstico.
Esse breve apanhado conceitual nos dá uma amostra de que, quando se
trata de violência contra a mulher podemos dispor de diferentes tipos de
abordagens e nomenclaturas, mas tendo sempre nós, mulheres, como alvo,
embora sejamos diversas.
Partindo do entendimento de que quando falamos de mulheres não estamos
assumindo uma universalidade, uma experiência monolítica que possa conter as
diferenças sobre o ser mulher é útil nos valermos do feminismo interseccional. A
interseccionalidade, operacionalizada por Kimberlé Crenshaw (2002), é definida
por ela como:
[...] conceituação do problema que busca capturar as conseqüências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios
criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de
mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade
trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que
fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento. (p.177)

Apesar de Crenshaw (2002) ser reconhecida como a primeira a


operacionalizar o termo, diversas outras feminista negras estadunidenses
expandiram a discussão sobre a importância de um feminismo que contemplasse
uma diversidade de mulheres - para além das mulheres brancas, heterossexuais e
de classe média – investigando as interações, principalmente, entre raça, classe
gênero. Podemos destacar entre elas Angela Davis, Patricia Hill Collins, Audre
Lorde e bell hooks. Assim, a proposta do feminismo interseccional é compreender
como as diversas opressões interagem, não partindo de uma percepção aditiva,
mas multiplicativa, conforme Hill Collins (2019): “Os paradigmas interseccionais nos
lembram que a opressão não é redutível a um tipo fundamental, e que as formas
de opressão agem conjuntamente na produção da injustiça” (p. 57).
Dessa maneira, tomar o feminismo interseccional para analisar a violência
contra mulher é ter em conta que a violência ganhará novos contornos ao
assumirmos para além de uma lente de gênero, também uma perspectiva que
encare o racismo e o classismo interagindo e complexificando a experiência de
violência. Concernente a isso, o Mapa da Violência é útil para a percepção dessa
diferença: em relação à violência letal, o homicídio de mulheres brancas teve uma
queda de 9,8% entre 2003 e 2013; já o de mulheres negras, no mesmo período,
cresceu 54,2% (Waiselfisz, 2015). O referido documento ainda participa que, entre
as mulheres, as principais perpetradas por homicídio são as meninas e mulheres
negras: “Em 2013 morrem assassinadas, proporcionalmente ao tamanho das
respectivas populações, 66,7% mais meninas e mulheres negras do que brancas”
(Waiselfisz, 2015, p.73). O Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA, 2020) traz informações semelhantes: apesar do número de
homicídios de mulheres tenha caído de 2017 a 2018, a redução de homicídios no
período entre mulheres não negras foi de 12,3%, enquanto entre as negras a
redução foi de 7,2%. Estendendo a análise para a década, a taxa de homicídio
entre as mulheres não negras reduziu 11,7% e entre as mulheres negras subiu
12,4% (IPEA, 2020).
Ademais, o feminismo interseccional nos auxilia na compreensão da
violência com uma construção social, dessa maneira refuta os discursos
essencialista e de determinismo biológico que procuram associar a violência a uma
determinada natureza, ao que alinha ao construcionismo social, outro referencial
adotado neste texto. Na mirada sobre a violência, tanto as estudiosas do feminismo
interseccional (hooks, 2019), quanto do construcionismo social (Dias & Machado,
2011; 2008; Azambuja & Nogueira, 2009; Guareschi et al., 2006), a
desessencializam e refutam o dualismo feminino/masculino, explicitando que a
violência não é algo inerente e interno, uma característica essencialmente
masculina, mas que é alicerçada por meio das produções sociais.
Apesar das diversas produções adotadas nesta revisão apontarem relação
entre os transtornos mentais e a vitimização por violência - embora não seja
possível estabelecer causalidade, sobretudo pelos desenhos dos estudos (corte
transversal, em sua maioria) – me alinho à visão gendrada de Zanello (2014) e de
Zanello e Silva (2012) sobre o tema. Os autores chamam a atenção para a presença
de certos sintomas nos prontuários de hospitais psiquiátricos do Distrito Federal,
ficando marcado quanto se trata dos homens sintomas relacionados à vida sexual
e ao trabalho e no caso das mulheres aqueles relativos a funções domésticas,
relacionamentos e choro (Zanello & Silva, 2012; Zanello, 2014). Dessa maneira,
“Pensar a implicação das relações de gênero na saúde mental leva-nos a refletir
como os valores e papéis de gênero participam da constituição subjetiva do sujeito,
não apenas no modo como ele se expressa, mas também como sofre” (Zanello,
2014, p.45). Contudo, para além de uma enxergar esses sintomas como presentes
nas queixas dos usuários, é preciso também compreender que os médicos trazem
suas próprias leituras de gênero para seus atendimentos, não há uma neutralidade
quanto a isso, os sintomas identificados nas avaliações psiquiátricas não são algo
natural, mas são construídos embasados numa série de valores morais, inclusive
relativos ao gênero (Zanello, 2014).
Assim, neste trabalho objetivo investigar a relação entre violência contra
mulher e saúde mental feminina considerando a literatura científica disponível,
adotando uma leitura crítica das produções por meio dos referenciais teóricos
assumidos.

Método

O presente trabalho é um recorte da revisão de literatura de uma tese de


doutorado em Psicologia Social. Configura-se como uma revisão de literatura
integrativa que, de acordo com Botelho, Cunha e Macedo (2011), assume uma
série de passos como: identificação do tema; delineamento do problema de
pesquisa; escolha da base indexadora e dos descritores e palavras-chave;
estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão; seleção dos artigos
considerando resumo, título e artigo completo; categorização dos resultados;
análise dos estudos; sumarização do conhecimento produzido.
A referida revisão teve como problema a seguinte questão: quais modelos
explicativos estão construídos em torno do adoecimento mental das mulheres na
produção científica disponível na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS)? Assim, a base
indexadora escolhida foi a Biblioteca Virtual em Saúde por ser de acesso livre e por
condensar indexadores como MEDLINE, LILACS, Biblioteca Cochrane, LIS,
DirEve, Leyes, SeCS e Scielo, bem como por possuir diversos mecanismos de
refinamento que facilitam a busca. A pesquisa foi realizada no dia 28 de agosto de
2018 e adotou as palavras-chaves woman e mental health, articuladas com o
operador booleano and (woman and mental health).
A primeira busca resultou em quatro mil seiscentos e setenta e três (4673)
textos. O passo seguinte foi aplicar os critérios de inclusão e exclusão, tais como:
definiu-se os últimos cinco anos de produção (2018-2014); artigos em inglês,
português ou espanhol; artigos completos e revisados por pares; artigos de acesso
aberto; as revisões de literatura e produções teóricas foram excluídas etc. Foram
ainda definidos temas que não respondiam à pergunta de investigação, sendo
excluídos os seguintes: algum tipo de terapêutica/medicamento psiquiátrico;
implementação de algum instrumento de mensuração/protocolo; aqueles que
abordavam apenas a visão de terceiros sobre a saúde mental feminina; aqueles
que falavam apenas sobre Plano Terapêutico Singular (PTS) ou sobre
matriciamento; aqueles que versavam sobre mãe cuidadora de criança com
transtorno mental; aqueles que tratavam sobre mulheres transgênero (por tratar na
pesquisa de tese do adoecimento mental de mulheres cisgênero, partindo da
compreensão de que, no caso de mulheres transgênero, outras especificidades
estariam envolvidas).
Destarte, após leitura do título e, posteriormente, do resumo, foram
selecionados 80 artigos que responderam à pergunta de investigação que foram
organizados em 10 categorias temáticas. Todos os achados foram organizados em
tabelas explicitando ano, autoria, país de realização do estudo, objetivo,
metodologia, principais resultados e categoria temática. A categoria “ciclo
reprodutivo” foi a que condensou mais pesquisas, 22 artigos no total1. Aqui serão
discutidos os artigos referentes à categoria “violência contra a mulher”, que reúne
um total de 15 textos, sendo a segunda categoria com maior número de artigos da
revisão.
O Quadro 01 sintetiza os resultados dessa categoria que compõe 18,75% da
revisão total da tese. Em tal categoria foram incluídos os textos que abordam a
relação entre os diversos tipos de violência contra a mulher (física, sexual,
psicológica e etc.) praticados pelo/a parceiro/a e/ou por terceiros e sua relação com
a saúde mental feminina. Os textos foram divididos em nove subtemas: violência
contra mulheres soropositivas; violência no período gestacional e/ou pós-parto;
violência em zonas de conflito armado; violência contra mulheres em situação de
prostituição; violência contra mulheres com limitação de atividades decorrente de
transtorno mental grave ou crônico; violência contra mulheres em condições de
migração; violência bidirecional; sem especificidade (violência contra mulher de
forma geral); violência contra mãe e filho.

1 A referida categoria foi discutida no artigo “Saúde mental feminina e ciclo reprodutivo:
uma revisão de literatura”. Medrado, A. C. C., & Lima, M. (2020). Saúde mental feminina e
ciclo reprodutivo: uma revisão de literatura. Nova Perspectiva Sistêmica, v. 29, n. 67, p. 70-
84.
Quadro 01: Categoria Violência contra a mulher2
Descrição da Subtemas Produções Total
categoria temática
Nesta categoria Violência contra mulheres Zunner et al. (2015). 01
foram incluídos os soropositivas.
textos que Violência no período Ziaei et al. (2016); 04
abordam a relação gestacional e/ou pós-parto. Kabir, Nasreen e
entre os diversos Edhborg (2014);
tipos de violência Reichenheim et al.
contra mulher (2014); Alhusen,
(física, sexual, Frohman e Purcell
psicológica e etc.) (2015).
praticados pelo/a Violência em zonas de Scott et al. (2015); 03
parceiro/a e/ou conflito armado. Gupta et al. (2014);
por terceiros e sua Sipsma et al. (2015).
relação com a Violência contra mulheres Ulibarri et al. (2015). 01
saúde mental em situação de prostituição.
feminina. Violência contra mulheres Du Mont e Forte 01
com limitação de atividades (2014).
decorrente de transtorno
mental grave ou crônico.
Violência contra mulheres Fernbrant et al. (2014). 01
em condições de migração.
Violência bidirecional. Hellmuth et al. (2014). 01
Sem especificidade Kamimura et al. (2014); 02
(violência contra mulher de Tiwari et al. (2015).
forma geral).
Violência contra mãe e filho. Maddoux et al. (2014). 01

15
Fonte: revisão sistemática da tese da autora, 2018.

2 Em virtude da extensão dos resultados e da limitação de páginas, serão discutidos


apenas alguns artigos.
Resultados

Os estudos selecionados são oriundos de uma diversidade de países:


Estados Unidos (03), Bangladesh (02), México, Canadá, Suécia, Índia, China,
Congo, Costa do Marfim, Brasil, Ruanda, Quênia. Os métodos adotados foram
predominante epidemiológicos, com 13 artigos de corte transversal. Apenas um
estudo é qualitativo, adotando as entrevistas em profundidade e grupos focais como
técnica de produção de informações.
O subtema que concentrou mais trabalhos foi “violência no período
gestacional e/ou pós-parto”. Entre eles, Ziaei et al. (2016) avaliaram a associação
entre todos os tipos de violência doméstica (gender-based domestic violence, que
pode ser cometida por familiar ou parceiro) com o sofrimento emocional (distress)
e o nível de cortisol em gestantes em Bangladesh. Bangladesh é um país com alto
índice de violência doméstica, 53% das mulheres casadas já sofreram violência
física ou sexual de seus parceiros. A pesquisa encontrou que 57% da amostra
experimentou ao menos um tipo de violência doméstica (subdividida em violência
física, emocional, sexual e controle do comportamento) durante a vida, sendo a
mais comum o controle do comportamento e 35% das mulheres apresentaram
sofrimento emocional. A prevalência de sofrimento emocional entre aquelas que
experienciaram algum tipo de violência doméstica foi 46% e todas as formas de
violência doméstica foram associadas com sofrimento emocional. Quanto mais
tipos de violência doméstica a mulher sofreu, maior era a prevalência de sofrimento
emocional, aquelas que passaram por todo tipo de violência tiveram prevalência de
70,3% de sofrimento emocional. As maiores proporções de mulheres com
sofrimento emocional estavam entre aquelas vítimas de grave agressão física
(62,9%) e violência emocional (57,8%).
O último artigo do subtema “violência no período gestacional e/ou pós-parto”
foi o de Alhusen, Frohman e Purcell (2015), realizado nos Estados Unidos.
Objetivaram relatar a prevalência e correlatos de ideação suicida entre gestantes
de baixa renda que receberam atendimento pré-natal em uma clínica obstétrica
universitária em um determinado período de tempo. Estudo com 166 mulheres com
24 a 28 semanas de gestação, as mulheres foram recrutadas em três clínicas
obstétricas que atendiam mais 95% de mulheres afro-americanas e de baixa renda.
93% das mulheres do estudo se identificaram como negras. A prevalência de
ideação suicida foi 22,89%, considerada alta na comparação com outras pesquisas.
Tanto sintomas de depressão, quanto experiência de IPV foram associados com
ideação suicida durante a gestação. Em torno de 20% das participantes relataram
ter sofrido IPV durante a gravidez. Entre essas 86% relataram pensamentos
suicidas durante a última semana. As mulheres com ideação suicida tinham mais
chances de ter baixa escolaridade e baixa renda. A experiência de violência por
parte do parceiro representava um risco nove vezes maior de ideação suicida.
Como implicações clínicas da pesquisa o estudo indica que para mulheres pobres
muitas vezes a gravidez é a única forma de acessar algum tipo de cuidado em
saúde, por isso seria importante considerar os fatores de risco para saúde mental
pobre durante as consultas, inclusive investigar a experiência de violência na
relação conjugal. Salientam a importância de educar profissionais de saúde tanto
para lidar com questões de saúde mental quanto de violência.
O artigo de Fernbrant et al. (2014), produzido na Suécia, foi incluído no
subtema “violência contra mulheres em condições de migração”. Sobre a temática,
os pesquisadores afirmam que mulheres com menores níveis de educação e
dependentes economicamente dos maridos têm mais chances de sofrerem IPV,
bem como mulheres migrantes, principalmente aquelas nascidas em países mais
pobres e de maior inequidade de gênero. Isso se deve, em parte, porque o
isolamento social, muitas vezes por conta de não dominar a língua do país, é fator
de risco para IPV. Tendo isso em consideração, a pesquisa objetivou examinar a
prevalência de IPV entre mulheres tailandesas residentes na Suécia e sua
associação com transtornos mentais. Participaram 804 mulheres, com idades entre
18 a 61 anos. Assim, 19,8% relataram saúde mental pobre, 39,9% afirmaram serem
isoladas socialmente e 22,1% sofriam algum tipo de IPV, de parceiro atual ou
anterior, durante a vida na Suécia ou não. Mulheres com saúde mental pobre
tinham mais chances de ter sofrido IPV, também tinham mais chances de ter uma
saúde geral pior, estarem mais isoladas socialmente, terem baixa confiança social
em relação àquelas com boa saúde mental. Aquelas que sofriam violência do
parceiro atual tinham mais chances de saúde mental pobre que aquelas que
sofreram violência de parceiro passado. Os autores avaliam que o isolamento social
pode ser tanto causa como efeito da violência.
Hellmuth et al. (2014) discorreram sobre o subtema “violência bidirecional”
em pesquisa realizada nos Estados Unidos. Teve como intuito investigar
estratégias de enfrentamento de evitação, uso de substâncias e experiência de
múltiplos tipos de IPV e sua relação com transtornos mentais. A estratégia de
enfrentamento de evitação é associada à saúde mental pobre, sendo conceituada
“como esforços cognitivos, emocionais e comportamentais voltados para regular o
sofrimento e minimizar a ameaça” [tradução nossa] (Roth & Cohen, 1986 como
citado em Hellmuth et al., 2014, p. 2). Dessa maneira, 362 mulheres foram
selecionadas. A amostra foi composta por 133 afro-americanas, 131 latinas e 98
brancas. 64% estavam desempregadas. Violência psicológica e física foram
associadas com transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) severo. Os
resultados indicam que a estratégia de enfrentamento de evitação esteve
relacionado, nos casos de violência psicológica e sexual, com a gravidade dos
sintomas de TEPT, depressão e abuso de drogas.
Entre as produções classificadas no subtema “sem especificidade (violência
contra mulher de forma geral)” estão o de Kamimura et al. (2014), na Índia e o de
Tiwari et al. (2015), na China. Na Índia, um terço das mulheres foi vitimada
fisicamente ou sexualmente durante algum momento de suas vidas. Entre os
fatores de risco para IPV no país estão: baixa renda familiar, menor escolaridade,
pertencer a casta baixa, uso de álcool pelo marido, posição econômica inferior das
esposas em relação aos maridos e o desemprego feminino. Foram selecionadas
mulheres em 18 organizações comunitárias de saúde, que atendiam mulheres
pobres, sendo incluídas 167 mulheres no estudo. As participantes tinham em torno
de 35 anos, mais de um terço delas tinha segundo grau ou alto nível de
escolaridade, 60% estavam empregadas, tinham renda por pessoa um pouco maior
que a média local, um quarto era de casta alta, 26,9% vivam em casas feitas com
material precário (lama e feno), 85% tinham casamentos arranjados. Nenhum fator
socioeconômico foi associado com IPV. Quase 40% sofreram “apenas” violência
física. As vitimadas de IPV tinham saúde mais pobre e autoestima mais baixa que
o grupo de mulheres que não sofriam. Ainda sofriam de mais sintomas de
ansiedade, depressão e somáticos. Ser de casta alta foi associado com melhor
saúde. A maioria das vítimas não encontrou ajuda de fontes informais, como
amigos e família ao pedir socorro em virtude da violência sofrida. Sugerem que os
serviços comunitários de saúde estejam atentos à IPV.
Já Tiwari et al. (2015), em trabalho na China, se debruçaram sobre as
diferentes tipologias de IPV: terrorismo íntimo (IT) e violência conjugal situacional
(SCV). Os dois tipos se diferenciam no sentido que o IT envolve controle por parte
do parceiro e o SCV não envolve controle. Os dois tipos de violência têm impacto
diferente nas vítimas: vítimas de IT têm mais sintomas depressivos, de TEPT, e
maior abuso de substâncias que as vitimadas por SVC. Demandam também
diferentes formas de detecção e intervenções. A pesquisa foi de natureza quali-
quanti. As mulheres foram recrutadas em abrigos para vítimas e centros
comunitários. Destarte, 613 mulheres foram selecionadas e 200 participaram da
etapa de entrevistas. 539 mulheres foram identificadas como vítimas de ambos os
tipos de IPV, dessas, 39,9% de IT e 60,1% de SCV. As 39,9% foram vítimas de
violência física e alto nível de controle do parceiro e nenhuma delas revidou a
agressão. As demais sofreram violência física, mas com baixo nível de controle.
Outros dados relevantes sobre os resultados: 26% das mulheres tinham os maridos
ao menos 10 anos mais velhos; dois terços continuavam casadas com os
agressores; mais de 70% das mulheres não tinham trabalho pago; e 95,4% tinham
filhos. Comparadas com as vítimas de SCV, significativamente mais vítimas de IT
foram recrutadas de abrigos, estavam desempregadas, tinham uma diferença de
idade do parceiro de mais de 10 anos e dificuldades financeiras. A duração em anos
do SCV foi maior do que do IT, mas as vítimas de IT relataram uma escalada de
violência ao longo dos anos. Os dois tipos de violência tiveram impactos diferentes
na saúde mental: a depressão severa foi 59,9% para vitimadas por IT e 15,7% para
SCV; TEPT foi de 65,6% para IT e 19,1% para SCV. A pesquisa traz ainda os
relatos da entrevista, uma delas chegou a ser agredida seguidamente com uma
barra de ferro, foi mordida no seio precisando de sutura e só saía acompanhada de
motorista e duas empregadas, não tinha cartão de crédito e sua conta no banco era
limitada a cem dólares. Outra relatou que não conseguia ajuda porque bater na
mulher “faz parte da vida”. Os autores afirmam que a violência que inclui controle é
a de maior efeito negativo à saúde mental e que a sociedade chinesa é tolerante à
violência contra a mulher.
A pesquisa de Maddoux et al. (2014), dos Estados Unidos investigou
violência contra mãe e filho. Teve como variável a resolução de problemas sociais,
definida “como resolução de problemas da vida real que atua como moderador e
mediador da inter-relação entre eventos de vida estressantes e bem-estar”
(Maddoux et al., 2014, p. 2). Os autores afirmam que a baixa habilidade de
resolução de problemas pode ser associada a transtornos mentais, como TEPT.
Participaram 285 mães e 285 crianças, díade mãe e filho. As mulheres tinham idade
entre 18 e 52 anos, 56,7% eram hispânicas ou espanholas. Todas as mulheres
tinham sido vítimas de violência física ou sexual por parte do parceiro (foram
selecionadas em abrigos de mulheres ou aquelas que recorreram à justiça por
conta da violência). Aquelas com menores pontuações em relação à resoluções de
problemas tinham mais chances de ter TEPT, depressão e somatização. Os
resultados não abordam a relação com a violência.
Além de vitimizadas nas relações com seus parceiros, as mulheres também
são mais vulneráveis em zonas de conflito armado pois, para além das agressões
comuns às sofridas pelos homens, sofrem ainda violências sexuais e as
repercussões de tais violências. Sobre isso, Scott et al. (2015) avaliaram a saúde
mental de mulheres que criam filhos frutos de estupros, bem como o estigma e a
aceitação da mulher e da criança pela comunidade. O estudo foi realizado na
República Democrática do Congo e 757 mulheres participaram. Dessas, 80,6%
relataram terem sido vítimas de dois ou mais estupradores. Além disso, 90%
relataram que os estupradores eram de um único grupo armado. Outros achados
demonstraram que 48,6% tinham sintomas de depressão maior, 57,9% de TEPT,
43,3% de ansiedade e 34,2% reportaram ideação suicida. As mulheres casadas
tiveram menos chance de apresentar tais sintomas. Aquelas com dois ou mais
estupradores apresentaram mais chance de TEPT e ideação suicida. Estigma por
parte da comunidade foi referido por 38,4% e esteve associado aos transtornos
investigados. Mulheres que relataram estigma contra a criança (fruto do estupro)
tinham mais chances de todos os tipos de transtornos citados.
Discussão

Os artigos elencados na revisão integram o paradigma científico moderno,


produzindo discursos sobre a relação entre a violência contra a mulher e a saúde
mental feminina. Sendo assim, constroem uma inteligibilidade sobre a temática:
protocolos, normativas, diretrizes, medidas, intervenções. Têm ainda implicações
na vida cotidiana, delineando o que é aceitável, correto, normal, bem como
comportamentos, maneiras de existir, de se constituir como pessoa e padrões de
relacionamento.
Nesse cerne, é válido situar os conceitos de discurso e sentido, na definição
do construcionismo social. Grosso modo, o discurso pode ser considerado aquilo
que permanece estável na linguagem, podemos tomar o exemplo dos discursos
científico, psiquiátrico e jurídico construídos sobre a temática em questão neste
texto. Já os sentidos são construídos nas interações cotidianas, o foco está na
polissemia da linguagem (Spink & Medrado, 2013). Assim, nas trocas sociais as
pessoas constroem os próprios sentidos sobre a violência, a normalidade e o que
é ser mulher. Contudo, entre os profissionais psi os discursos científicos muitas
vezes prevalecem guiando a prática, sobrepujando os sentidos. Destarte, sobre a
nossa temática o referencial construcionista social nos leva a “[...] considerar que
os discursos sobre violência, mais que descreverem uma verdade, atuam na
construção do fenômeno e das pessoas, orientando suas práticas no cotidiano”
(Lenz-de-Oliveira et al., 2010, p. 433).
Os artigos elencados na revisão foram produzidos em uma diversidade de
países. Entretanto, como uma característica dos estudos quantitativos, podemos
perceber uma tendência a universalização e a homogeneização das diferenças
culturais. Contudo, tanto o gênero quanto a compreensão da violência constroem
e são construções de determinada cultura, contextualizados também socialmente
e historicamente (Dias & Machado, 2008). Assim, há uma variação cultural,
histórica e social sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, sobre quais são
os comportamentos tidos como masculinos ou femininos, o que é pouco
considerado nas produções destacadas. Uma breve menção às questões culturais
é feita no artigo de Ziaei et al. (2016) de Bangladesh, apenas mencionado como
um país de alto índice de violência doméstica, o que é corroborado com os
resultados da pesquisa de Zabir, Nasreem e Edhborg (2014), no mesmo país.
Kamimura et al. (2014) referem a Índia como país de alta vitimização de mulheres
por violência e Tiwari et al. (2015) afirmam que a China é um país tolerante à
violência contra mulher. Nenhum dos artigos se aprofunda sobre a relação entre
gênero e violência construída nas culturas em tela.
Não obstante, é preciso compreender também as culturas como produções
sociais, o que significa dizer que não são estanques, reificadas e dadas. Não
essencializar a cultura nos leva também a não essencializar as diferenças de
gênero e sua relação com a violência, ou seja, ser violento não é algo
inerentemente masculino, nem ser passiva é algo da natureza feminina. Dias e
Machado (2011), discutindo algumas teorias sobre o amor e violência, criticam as
teorias de abordagem evolucionista/biologicista que postulam o ciúme como
estratégia evolutiva. Nesse sentido, o ciúme é encarado como uma defesa contra
“intrusos” no relacionamento, o que justificaria comportamentos de controle e
assédio, como o terrorismo íntimo estudado por Tiwari et al. (2015), o que seria
uma característica eminentemente masculina. As autoras se opõem justamente a
esta leitura intraindividual e essencialista, que identifica determinadas disposições
internas masculinas que predispõe à violência e encaram-na como natural nos
relacionamentos amorosos. Acrescentam ainda que tais teorias, ao se aterem a
uma interpretação biológica dos relacionamentos, com fins reprodutivos,
desconsideram uma série de outros relacionamentos que fogem à díade homem-
mulher em idade reprodutiva. É justamente contestando uma ciência positivista que
se diz neutra, mas produz que discursos machista, racista, individualista,
essencialista e de universalidade que surge o movimento construcionista social
(Gergen, 2011).
Já em uma leitura construcionista social sobre as relações amorosas, o
gênero e a violência são considerados não apenas as diferenças culturais, mas
também raciais/étnicas, etárias entre outras intersecções. Há o desafio de, ao
analisar tais intersecções, não partir para uma perspectiva grupal ou
essencializadora. Outro ponto problemático comum aos artigos da revisão é
justamente a falta de uma análise da raça/etnia e classe social como um
determinante social em saúde e não apenas como dados sociodemográficos. Como
um exemplo temos a produções de Fernbrant et al. (2014) que não chegaram a
considerar que o isolamento social de mulheres tailandesas na Suécia pode ter
relação com racismo/xenofobia vivenciado no país. Outros apesar de mencionarem
classe e/ou raça (Alhusen, Frohman e Purcell, 2015; Kamimura et al., 2014; Gupta
et al., 2014; Maddoux et al., 2014; Hellmuth et al., 2014) ao não se aprofundarem
sobre como tais marcadores interagem com a vitimização de violência e sua relação
com os transtornos mentais deixam subjacente uma interpretação que é a raça ou
classe per se como determinante e não que “O núcleo essencial da concepção de
causalidade da doença mental não se encontra numa determinada classe ou
gênero, mas sim nas relações estabelecidas entre classes e gêneros,
caracterizadas pela opressão e subordinação de um grupo por outro” (Ludermir,
2008, p. 461).
Mesmo na compreensão das intersecções dos diversos marcadores sociais
é necessário conceber a diversidade de experiências que compõe a vida de cada
pessoa e a possibilidade de existência de discursos concorrentes e ambíguos
coexistindo (Dias & Machado, 2008). O que implica dizer que há diversas maneiras
na mesma cultura de ser homem e ser mulher, negro e negra, solteiro e casado,
mais alinhados ou menos alinhadas aos discursos dominantes sobre gênero, raça
e relacionamentos amorosos. Concernente a isso, a experiência de violência na
relação amorosa vai variar de acordo com a adesão ou não à determinados
discursos mais prevalentes em certa sociedade.
A cultura influencia por quem, quando e como nos apaixonamos (Hatfield &
Rapson, 2005), não só pelos constrangimentos que as regras e expectativas
a este nível impõem, mas também, acrescentamos nós, pelo seu efeito
paradoxal - o desejo da quebra da norma, da transgressão. (Dias &
Machado, 2011, p. 501)

Dessa maneira, valendo-se dos estudos culturais, da sociologia e da


antropologia, Dias e Machado (2008), autoras que adotando o referencial
construcionista, afirmam que as culturas em que há maior desigualdade social e
uma maior disparidade de poder entre homens e mulheres ocorrem maiores taxas
de vitimização feminina por violência. Semelhante ao que problematizam Fernbrant
et al. (2014) na introdução do artigo sobre IPV de mulheres tailandesas que residem
na Suécia. No entanto, os autores não avaliam de maneira mais aprofundada como
as diferenças culturais entre a Suécia e a Tailândia podem influenciar na
experiência de IPV, mas parte dos resultados indica que, ao mudarem-se para a
Suécia, as mulheres sofreram menos agressões nas relações.
Encarar o amor e a violência como produzidos socialmente e culturalmente
faz com que “[...] o contexto social e cultural confronta-se com a responsabilidade
de proporcionar significados sobre o amor que facilitem a co-construção de
discursos e práticas relacionais mais igualitárias, abertas, livres e não violentas”
(Dias & Machado, 2011, p.504). Nessa tônica, torna-se inaceitável a
inescapabilidade da violência expressa na declaração “bater na mulher faz parte da
vida”, o que foi dito a uma mulher chinesa ao pedir socorro (Tiwari et al., 2015). É
a naturalização da cultura e do gênero como algo acabado e incontornável que faz
com que os casamentos arranjados apontados no estudo de Kamimura et al. (2014)
não sejam encarados como mais uma forma de violência, ao mesmo tempo em que
são os valores cultivados na cultura ocidental que nos fazem ver tais matrimônios
com estranheza, não há uma interpretação neutra.
A análise das diferenças de culturais, étnico/raciais e de gênero nos ajudam
a entender os conflitos armados discutidos por Scott et al. (2015), Gupta et al.
(2014) e Sipsma et al. (2015) em países africanos. Os textos em destaque trazem
uma nova perspectiva para nossa análise fugindo da vitimização da mulher como
uma experiência de “foro íntimo” e “privado”, ao que me oponho neste texto, para
uma leitura política. Em tais contextos, o corpo da mulher aparece como um campo
de batalha, um território a ser dominado e marcado, tendo o estupro e suas
consequências como arma de guerra. Concordo com Angela Davis (2017) ao
reconhecer que a violência sexual contra a mulher se mescla tanto a sua
experiência como pessoa quanto à violência fruto da lógica colonial, na história do
Brasil isso fica evidente com o estupro de indígenas e mulheres negras
escravizadas durante o período colonial ou das presas políticas durante a ditadura.
Davis (2017) também refuta o estupro como uma inclinação psicológica masculina
ao questionar o motivo pelo qual os países em crises socioeconômicas e com altos
índices de todos os tipos de violência têm níveis epidêmicos de violência sexual.
Ainda destaca situações em que o estupro é política oficial, como na Guerra do
Vietnã, em que os estadunidenses eram estimulados a violentar as vietnamitas, e
em sociedades sob ditaduras fascistas. Assim, apesar dos estudos em tela tratarem
da violência de grupos armados locais, um olhar crítico desconstrói a dicotomia
heróis X vilões, já que muitas vezes os agentes pacificadores e humanitários usam
das mesmas armas que os perpetradores locais. Referente a isso, ressalto as
denúncias contra soldados e funcionários da ONU em missão, principalmente no
continente africano, estuprando mulheres e até mesmo crianças3, bem como contra
soldados brasileiros em missão de paz no Haiti4.
Outro aspecto que é importante atentar é sobre a adesão à ideia da violência
como uma questão individual, presente nos artigos em tela, como um problema que
pode ser solucionado se for adotada determinada terapêutica, o que aparece de
maneira mais evidente no texto de Hellmuth et al. (2014) sobre estratégias de
enfrentamento mais adequadas em situações de IPV, ou o de Maddoux et al.
(2014), sobre o treino de resolução de problemas. Destarte, tais produções
sustentam um discurso psicologista, que responsabiliza as vítimas ao defender que
a experiência de violência pode ser prevenida ou superada com uma determinada
habilidade interna, um comportamento que possa ser aprendido. Nesse sentido,
estudos construcionistas que abordam a violência contra a mulher (Azambuja &
Nogueira, 2009; Dias & Machado, 2011; Guareschi et al., 2006) ratificam que as
intervenções em saúde no que concerne à temática têm se dado de maneira
individualizante, com um encaminhamento à terapia, enfocando a autoestima, o
empoderamento feminino e estratégias de evitamento de agressão. Ou seja, a área
da saúde apenas adaptou o soberano discurso científico moderno à problemática,
o que faz com que a violência seja “tratada” como mais um problema de saúde
como qualquer outro (Azambuja & Nogueira, 2009). Ademais, “Ao encerrarmos a
violência em um espaço doméstico, familiar, privado, retira-se seu caráter político-
social, encarcerando a em um ‘‘terreno facilmente psicologizante, familiarizante,
intimizante’’ [...]” (Guareschi et al., 2006, p.127).
Destarte, para além de uma defesa sobre a importância da área da saúde
se atentar para a violência contra a mulher - como sugerem Alhusen, Frohman e
Purcell (2015) e Kamimura et al. (2014) - é preciso também se atentar para como
esse cuidado é feito. Sobre isso, Azambuja e Nogueira (2009) alertam para a

3 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/03/sexo-oral-por-biscoitos-as-denuncias-de-
abuso-sexual-contra-soldados-e-funcionarios-da-onu.html
4 https://oglobo.globo.com/epoca/larry-rohter/os-abusos-dos-soldados-brasileiros-no-haiti-
24194803
recente preocupação dos profissionais de saúde sobre a violência de gênero, o que
não acontece sem alguns problemas como a individualização e psicopatologização
da questão o que, segundo as autoras, faz com que “A violência de gênero, ao ser
reduzida a uma categoria diagnóstica, torna-se um problema controlável e
manipulável pelos recursos oferecidos pelo discurso médico” (p.1728).
Essa discussão nos remete ao cerne deste texto, o que faz com que nos
perguntemos em que medida os sofrimentos oriundos de situações de violência têm
sido medicalizados e rotulados por um psicodiagnóstico. Sobre isso, o debate mais
frutífero se dá em relação ao transtorno mental comum (TMC), investigado no artigo
de Reichenheim et al. (2014), produzido no Brasil. O TMC é comumente associado
às questões sociais como disparidade de gênero, desemprego e trabalho informal,
baixa renda e baixo nível de escolarização (Ludermir, 2008; Zanello, 2014). Por
conta disso, Zanello (2014) levanta a suspeita sobre a possibilidade de
patologização de mazelas sociais no diagnóstico de TMC. O que coloca as
mulheres mais pobres mais vulneráveis a sofrer de TMC, mesmo que seja na forma
de silenciamento das desigualdades sociais. Apesar de tal discussão não incluir a
vitimação por violência e se resumir ao TMC, as questões levantadas neste texto
nos deixam essa suspeita (que pode ser tema de trabalhos futuros), o que nos
aponta para a possibilidade de as mulheres estarem também sendo vitimadas por
violência institucional e simbólica, encobertas por um véu de cientificidade.

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