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Experiências interseccionais

e práticas de poder na
Nossa América
Mara Viveres Vigoya é dou-
tora em Antropologia pela École
des Hautes Études en Sciences
Soda/es de Paris (EHESS). Pro-
fessora titular da Universidade Na-
cional da Colômbia onde ensina e
realiza pesquisas desde 1998 no
Departamento de Antropologia e na
Escola de Estudos de Gênero. Tem
sido membro da Escola de Ciência
Social do Institute for Advanced
Study em Princeton (USA), e pro-
fessora convidada no Institut des
Hautes Études sur l'Amérique La-
tine (IHEAL), na EHESS de Paris,
na Universidade da Bahia (Brasil),
na Universidade de Guadalajara e
na UAM-Xochimilco (México), na
Universidade Nacional de Córdoba
(Argentina) e no Graduate Institute
of International and Development
Studies (Suíça). Seus interesses
de pesquisa incluem as relações
entre diferenças e desigualdades
sociais e as interseções de gêne-
ro, sexualidade, classe, raça e et-
nicidade nas dinâmicas sociais na
América Latina.

papeisselvagens.com
AS CORES DA MASCULINIDADE
Experiências interseccionais e práticas
de poder na Nossa América
MARA VIVEROS VIGOYA

AS CORES DA MASCULINIDADE
Experiências interseccionais e práticas
de poder na Nossa América

Tradução de Allyson de Andrade Perez

PAPEIS
SELVAGENS
Copyright Q Papéis Selvagens, 2018
Copyright Q Mara Viveros Vigoya, 2018
Copyright da tradução Q Allyson de Andrade Perez
Coordenação Coleção Kalela
Maria Elvira Díaz-Benitez
Projeto gráfico
Martin Rodriguez
Imagem de Capa
Glaucus Noia
Diagramaçã o
Papéis Selvagens
Tradução
Allyson de Andrade Perez
Revisão
Brena O'Dwyer

Conselho Editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina)..I_Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) 1 Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) 1 Jeffrey Cedefio (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) 1 Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) 1 Mônica Menezes (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Viveros Vigoya, Mara.
As cores da masculinidade: experiências interseccionais e práticas
de poder na Nossa América / Mara Viveros Vigoya; tradutor Allyson de
Andrade Perez. - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018.
224 p. : 16 x 23 cm - (Kalela; v. 5)
Bibliografia: p. 189-222
ISBN 978-85-92989-16-3
1. Antropologia. 2. Identidade de gênero. 3. Masculinidade.
4. Sexualidade. I. Perez, Allyson de Andrade. II. Titulo.
CDD 305.3
[2018]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
SUMÁRIO

Prefácio por Raewyn Connell 9

Introdução 15
Como e quando cheguei ao estudo sobre homens
e masculinidades? 18
Por que, como e para que trabalha uma mulher feminista
sobre homens e masculinidades? 21
As cores da masculinidade. Identidades interseccionais
e práticas de poder na Nossa América 24
O conteúdo deste livro 32

Primeira parte
Teorias feministas e masculinidades

1.Para além do binarismo: teorias feministas, homens e


masculinidades 37
O feminismo da "segunda onda", os homens e o masculino 37
Os estudos sobre masculinidade 41
O surgimento das diferenças entre mulheres e sua relação
com a masculinidade 50
Masculinidades sem homens? 54
Conclusão 57

2.Trinta anos de estudos sobre homens e masculinidades


na Nossa América 61
O que se estuda ao se estudar os homens e as
masculinidades na Nossa América? 64
Identidades masculinas 67
Identidades masculinas nossamericanas 68
Trabalho e identidade profissionais masculinas 70
Masculinidades e identidades nacionais e étnico-raciais 73
Masculinidades e violências 77
Violências políticas e sociais 78
As violências das torcidas desportivas e das gangues
juvenis 80
Violências domésticas 81
Problemas, dilemas e tensões em torno da saúde dos
homens 83
As pesquisas sobre saúde sexual e reprodutiva 84
Fatores de risco para a saúde masculina ou a
masculinidade como fator de risco 85
Afetos e sexualidades 86
Práticas e culturas homoeróticas 86
Práticas e representações da paternidade 88
Afetos e expressões emocionais de homens
heterossexuais 90
Corpos de mulheres e identidades masculinas 91
Reflexões epistemológicas 92
Representações culturais das masculinidades 94
Espaços de homossocialidade masculina 96
Conclusão 97

Segunda parte
Masculinidades nossamericanas

3. Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém


da pele 101
A linguagem racista e a experiência vivida do corpo
negro masculino 103
A imaginária europeia dos corpos africanos 105
Sexo, sexualidade e raça nos estereótipos sobre os
homens negros 107
Dionísios negros: "o sabor, a gente traz no sangue" 108
Resistências limitadas 111
"Os do interior te dão fama" 114
Somos Pacífico/Estamos unidos/Nos unem a região/
o visual, a raça/e o dom do sabor... 115
Conclusão 124

4. Os benefícios da masculinidade branca: entre raça, classe,


gênero e nação 129
A branquidade, esse obscuro objeto de estudo 129
Branquidade e masculinidade hegemônica na Nossa
América 134
Branquidade e masculinidade hegemônica na Colômbia 141
A experiência local da identidade masculina branca e
seus benefícios políticos recentes 144
"O homem que os colombianos elegeram por suas
calças bem postas" 145
Um discurso político ancorado em uma identidade
masculina regional 148
Pistas de gênero e raça para decifrar o enigma do
"Presidente Teflon" 151
Conclusão 155

5. As masculinidades no continuum da violência na Nossa


América 157
O continuum da violência na história da Nossa América 158
Alguns consensos em torno da relação entre violência e
masculinidade 162
Projetos de intervenção com homens para prevenir e
reduzir a violência de gênero 165
Violências e resistência masculinas à mudança social 170
Conclusão 175

Conclusão geral
Masculinidades, homens e dinâmicas sociais nossamericanas 177

Agradecimentos 187

Bibliografia 189
PREFÁCIO

Raewyn Connelll

As cores da masculinidade é um livro importante e inspirador.


Combina pesquisa social agudamente observada, apresentação
clara de um campo de conhecimento emergente e uma perspectiva
pós-colonial particular sobre gênero, homens e masculinidade.
Abordando questões sobre masculinidades negras, o livro também
revela a fabricação da branquidade e da masculinidade hegemônica
branca. O público leitor alcançará uma compreensão mais profunda
da violência social, da cultura popular e do racismo, bem como das
mudanças contemporâneas nas relações de gênero.
O livro é, em primeiro lugar, uma importante contribuição
para o crescente campo de estudos sobre masculinidades. Este campo
que começou a partir de sementes plantadas pelo movimento de
liberação das mulheres. Como Mara Viveros aponta, há uma tradição
ativa e complicada no pensamento feminista sobre os homens. Na
geração passada, uma onda de pesquisa social, cultural e psicológica,
conduzida tanto por mulheres como por homens, traçou as formas
pelas quais são construídas as masculinidades.
Estas pesquisas mostraram que não há uma masculinidade,
fixada por nossos genes, mas muitas masculinidades, feitas e refeitas
na história. Algumas versões da masculinidade têm uma posição
hegemônica culturalmente central e ligada à subordinação social das
mulheres. Outras são marginalizadas ou abjetadas. Entrelaçamentos
e combinações complexas ocorrem à medida que a ordem de
gênero da sociedade se transforma. Em algumas circunstâncias, a
masculinidade pode ser exercida por pessoas com corpos femininos,
como, em outras circunstâncias, a feminilidade pode ser encarnada
por pessoas com corpos masculinos.
Pesquisas desse tipo têm sido realizadas nos mais diversos
países em todas as regiões do mundo. Nós temos, hoje, uma vasta

1Raewyn Connell é uma socióloga australiana conhecida por seus trabalhos sobre
as masculinidades. Sua obra clássica Masculinities (1995) ainda não tem tradução
no Brasil. Encontram-se traduzidas pela Nversos duas obras mais recentes: Gênero:
uma perspectiva global (2015) e Gênero em tempos reais (2016). (N.T.)
10 1 Mara Viveros Vigoya

biblioteca de estudos sobre construções locais e históricas da


masculinidade. Mas, como Mara Viveros destaca, essa situação
apresenta um risco. Se imaginarmos o mundo como um mosaico de
culturas separadas, facilmente caímos em uma visão estática, cultural-
essencialista da feminilidade e da masculinidade. Podemos nos
deixar seduzir pelo estereótipo do "machismo" dos homens na região
comumente chamada de "América Latina". Uma das virtudes de As
cores da masculinidade é rejeitar de modo decisivo este essencialismo
- ao mesmo tempo em que é capaz de falar sobre as especificidades da
região, suas culturas e suas construções de masculinidade.
O livro pode fazer isso porque Mara Viveros também
posiciona seu trabalho em outra tradição de pensamento. O
mundo colonial e pós-colonial (fora da metrópole global da
Europa e da América do Norte) sempre foi importante no sistema
de conhecimento moderno, tanto nas ciências naturais como nas
sociais. Mas seu papel tem sido historicamente o de uma vasta
mina de dados, alimentando com matéria-prima uma máquina
de conhecimento universal controlada pelo Norte global. Sempre
houve contestação em torno desta máquina. Em décadas recentes,
as perspectivas criticas se multiplicaram nas ciências sociais e nas
humanidades. Elas incluem o pensamento pós-colonial, a opção
decolonial, a teoria do Sul, as perspectivas afrocêntricas, as ciências
islâmicas e mais.
As cores da masculinidade é um dos textos pioneiros que se
constroem a partir de epistemologias pós-coloniais e mostram sua
importância para a compreensão das masculinidades - de fato, para
a compreensão do próprio gênero. O livro se baseia no trabalho de
intelectuais negros da diáspora, notadamente Frantz Fanon e W.
E. B. Du Bois, e no trabalho das feministas negras, na África e nas
Américas, analisando a interação entre gênero e raça. Baseia-se na
ampla tradição de estudos históricos pós-coloniais para mostrar
como uma ordem de gênero de tipo particular emerge do caldeirão
de conquista, colonização, escravidão, conflitos pós-independência e
mudanças econômicas.
Ao fazer isso, Mara Viveros usa o conceito de
"interseccionalidade", mas também faz uma revisão importante
dessa ideia. Ela a trata como uma dinâmica histórica e não como uma
geometria estática. Por exemplo, ela mostra como a necessidade
de solidariedade sob a opressão racial modifica a política de
Prefácio 1 11

desigualdade de gênero e a forma de mobilização das mulheres nas


comunidades indígenas e afro-colombianas.
A autora deste livro possui uma combinação única de
experiência e habilidades. Ela é uma pesquisadora experiente em
questões de gênero, aliando a pesquisa de campo sociológica a uma
perspicaz análise cultural. Ela tem uma compreensão da literatura
acadêmica em francês, inglês, espanhol e português - poucas(os)
pesquisadoras(es) sobre masculinidades podem dizer o mesmo. Mara
Viveros não é apenas uma pesquisadora empírica, mas também uma
teórica, com um olhar afiado para os limites das ideias convencionais.
A autora vem da intelligentsia de um estado pós-colonial
que sintetiza a história do império. Nas terras que se tornaram
Colômbia, a conquista esmagou a resistência indígena e foi seguida
pela colonização e pelo mestizaje (mestiçagem). Uma economia
escravocrata, instalada nas regiões costeiras, originou a segunda
maior população afrodescendente do continente, menor em
proporção apenas que a brasileira. A violência em grande escala
irrompeu em vários estágios da história do país, na qual estiveram
em jogo o poder neocolonial, a dependência, a insurreição e o
narcotráfico. A vida intelectual foi afetada pelas políticas culturais da
latinidade; Mara Viveros toma distância disso, reivindicando a região
como Nuestra América (Nossa América). No entanto, ela é consciente
da política da linguagem, sendo o castellano (castelhano), a língua do
império, hoje cada vez mais deslocado pelo domínio global do inglês.
Como uma mulher negra, Mara Viveros vive de perto a
hierarquia de raça e de gênero. Sem sentimentalismo, mas sem
hesitar, ela registra a terrível história da escravidão e da violência
racial e suas consequências na sociedade contemporânea. Ela explora
os compromissos, as reivindicações e os atos de solidariedade
através dos quais as comunidades negras têm sobrevivido. As cores
da masculinidade oferece uma notável prova de como a posição de
um(a) autor(a) pode se tornar um recurso para compreender a
sociedade contemporânea.
O livro conta uma série de histórias. Uma é a narrativa geral
da mudança social na Colômbia - colonização, independência,
as lutas por influência e sobrevivência, modernidade,
desenvolvimento dependente e guerra civil. A trajetória histórica
das masculinidades é tecida através desta narrativa, incluindo as
das elites do Estado independente voltadas para a Europa e as das
12 Mara Viveros Vigoya

comunidades subordinadas, sejam indígenas, mestizo (mestiças)


ou afro-colombianas.
Outra é a história do conhecimento - conhecimento
sobre gênero, sobre masculinidades e sobre colonialidade. Uma
característica especial do livro é a apresentação do panorama da
pesquisa sobre masculinidades por toda a Nuestra América (Nossa
América). Poucas pessoas fora da região percebem quão rica é
essa literatura. Seus temas variam do poder e da violência à saúde,
sexualidade, cultura popular e corporificação masculina. Suas
preocupações incluem as tensões entre as normas de gênero e as
mudanças sociais, e o impacto da reestruturação neoliberal - precoce
e devastador nessa região - nas relações de gênero.
Finalmente, o livro conta histórias específicas, às vezes
contundentes e às vezes confrontadoras: o trabalho de dois grupos
de música popular; a perspectiva de um grupo de jovens negros
do interior chegando à capital; as táticas de um político de direita
de sucesso e o assassinato brutal de uma mulher que despertou a
indignação popular. Em cada caso Mara Viveros elucida o significado
mais amplo sem perder a realidade local.
Além de apresentar as histórias e seus antecedentes, o
livro reelabora alguns conceitos importantes no campo. Examina
criticamente a ideia de "multiculturalismo" como uma política de
estado que nomeia a diversidade social e até incentiva a diferença,
mas a separa das ideias de poder e exploração. O livro usa o
conceito de "masculinidade hegemônica", mas também reelabora
criativamente esta ideia no contexto pós-colonial.
Um verdadeiro tour de force é a análise que o livro faz
das masculinidades brancas - em um capítulo inteiro que alça
a discussão dessa questão a um novo nível. Apropriando-se das
recentes discussões dos "estudos críticos sobre a branquidade",
Mara Viveros posiciona firmemente este problema na história
do império. Não (como em certa literatura decolonial) através
de uma simples polaridade entre colonizador e colonizada(o);
mas sim, como um conjunto de transformações que conduzem
da colonização ao presente. A ideia de "puro sangue", por
exemplo, transformou-se de uma preocupação aristocrática entre
conquistadores espanhóis em uma ideologia da diferença dentro
de uma sociedade colonial multirracial; depois, fundiu-se a uma
ideologia da modernidade e da nação na qual o direito à liderança
Prefácio 1 13

era culturalmente garantido a uma minoria.


Em um livro tão abrangente, diferentes leitoras(es)
encontrarão diferentes pontos altos. Para mim, estes incluem
a discussão sobre a política cultural de Álvaro Uribe Vélez, o
"Presidente Teflon". Uribe foi um político claramente de direita
(contemporâneo de George W. Bush nos EUA) que atuou na "guerra
ao terror" para validar sua linha agressiva na guerra civil. Ele
acionou com sucesso uma masculinidade branca autoritária e sua
reivindicação para representar a nação, bem como uma equação
simbólica de virilidade e proteção contra o perigo.
Igualmente fascinante, embora diferente no estilo, é a análise
de Mara Viveros sobre a encarnação das masculinidades negras e a
presença física da raça. Distinguindo entre um foco na pele e um foco
na carne, e baseando-se no pensamento de Fanon, ela tece um relato
sobre música, sexualidade e dança em sua conceituação da encarnação
masculina dentro de um contexto social e político de vulnerabilidade.
Um outro destaque, ainda, é o tratamento sutil que o livro faz
da resistência à mudança. Embora identifique alguns ideólogos dos
"direitos dos homens", a principal preocupação do livro é a recusa
mais difusa que tornou a igualdade de gênero tão difícil de alcançar.
Muitos homens, é claro, não se entendem como defensores de uma
posição de privilégio - por mais claro que possa parecer o privilégio
de gênero para a(o) cientista social. Em vez disso, muitos homens
têm experimentado, nos últimos anos, perda de renda, segurança
e poder no curso da reestruturação econômica neoliberal. Nesse
contexto, mesmo os ganhos econômicos limitados das mulheres, ou
o reconhecimento dos direitos dos homens homossexuais, podem ser
ressentidos e resistidos. Os homens que lucram com o patriarcado,
observa Mara Viveros, não são os mesmos homens que pagam a maior
parte dos custos de masculinidades rígidas ou mudanças econômicas.
As cores da masculinidade pode ser lido como um rico estudo
sobre a Colômbia. Mas o trabalho é relevante de forma mais ampla,
uma vez que os processos analisados aqui podem ser encontrados
em todo o mundo. Como Horácio observou, mutato nomine, de te
fabula narratur: mude o nome e a história é sua! A dinâmica do
neoliberalismo e da masculinidade tem sido ativa no meu país, na
Austrália; a dinâmica da raça, do medo e da virilidade política teve
recentemente uma influência dramática sobre a política dos EUA;
a profunda história da masculinidade e da colonialidade se tornou
14 1 Mara Viveros Vigoya

um foco de debate na índia e na África. Mara Viveros demonstra que


as relações de gênero, localmente realizadas, devem ser entendidas
em um contexto global. Eu acredito que este livro magnífico tem
importantes lições para o mundo.

Sydney, 2017
INTRODUÇÃO

Quando comecei a trabalhar sobre homens e masculinidades,


há quase vinte anos, já tinha acumulado uma sólida experiência
em pesquisas sobre mulheres. Como tantas outras pesquisadoras
feministas, antes, com ou depois de mim, contribui para a
desconstrução da categoria "mulher", no singular, abstrata e geral,
que definiria experiências universais. Foi assim que, a partir
de minhas pesquisas sobre o trabalho feminino na floricultura,
as representações e práticas de saúde e doença de mulheres
camponesas, os direitos das empregadas domésticas ou as trajetórias
de trabalho e familiares de mulheres executivas, pude captar a
diversidade das experiências do sexismo, conforme a classe social
e o local de residência, mas também a idade e a geração. Todavia,
ainda que tenha me interessado muito cedo pelo caráter relacional
do gênero, as lógicas sexuadas que estruturavam as experiências
dos "homens" como empregadores, colegas, vizinhos, cônjuges, pais,
irmãos ou filhos dessas mesmas mulheres, permaneceram durante
muito tempo na sombra de meu trabalho.
Trabalhar sobre homens e masculinidades, sendo feminista,
não é de forma alguma evidente. Os riscos são muitos. Eu destacaria
três que me parecem importantes para situar minha própria
perspectiva de análise, alimentada tanto por minhas experiências
de vida, como por minha prática intelectual. O primeiro risco é a
ilusão de simetria. Se o gênero é, de fato, relacional, ele o é enquanto
relação de poder. Pode-se mesmo dizer, como a historiadora Joan W.
Scott, que o gênero é uma "forma primária de significar as relações
de poder" (Scott, 1986). Não se trata de considerar os homens como
parte de um binômio simétrico, mas de historicizar e contextualizar
estas relações desiguais para compreendê-las a partir de uma
perspectiva crítica. Se estudar as mulheres de forma separada
pode confirmar sua marginalidade, de forma contrária e inversa,
pesquisar sobre os homens separadamente traz o risco de ocultar
as desigualdades de gênero, reificando sua posição dominante. Para
evitar esta armadilha, é necessário entender a masculinidade como
um elemento no interior de uma estrutura e de uma configuração
desta prática social que chamamos gênero: foi o que propôs R. W.
Connell (2005) há mais de vinte anos, destacando o fato de que se
16 1 Mara Viveros Vigoya

trata de um processo dinâmico.


O segundo risco remete aos sofrimentos e aos custos que
representa para os homens responder ou não às rígidas expectativas
sociais e culturais em relação à masculinidade que determinam seu
valor social. Como destaca Christine Guionnet (2012), a questão dos
sofrimentos e dos custos masculinos é um campo minado. A maioria
dos trabalhos que descrevem as normas que oprimem os homens
adotam uma perspectiva muito subjetiva, sem identificar com
clareza a origem social do mal-estar identitário que alguns homens
não conformes às normas podem experimentar. Ora, a análise desse
mal-estar não pode ser feita unicamente a partir do discurso dos
atores sociais; convém levar em conta as relações de gênero, entre
os sexos, mas também entre os homens. Por exemplo, a análise dos
riscos para a saúde das condutas associadas à virilidade, tais como
os comportamentos perigosos relacionados ao consumo de álcool,
um elevado número de parceiras sexuais ou a negligência com
relação aos serviços de saúde — deve se inscrever em uma reflexão
sociológica mais ampla sobre a masculinidade dominante e suas
distintas expressões e efeitos sociais.
Considerar essa posição ambivalente dos homens não deve
impedir os estudos sobre a dominação masculina como o monopólio
socialmente construído dos homens sobre certos instrumentos,
saberes práticos e domínios da vida social (Tabet, 1988). É
necessário, então, analisar, simultaneamente, os efeitos objetivos
e subjetivos da posição dominante dos homens sobre as mulheres
e as consequências nefastas para certos homens das exigências da
masculinidade. Para fazê-lo, deve-se considerar que, da mesma forma
que na diversidade de experiências do sexismo vivido pelas distintas
mulheres, as diferenças de classe, etnicidade/raça, orientação sexual
e idade, entre outras, atravessam a categoria "homens" e distribuem
entre eles custos e benefícios de modo desigual (Connell, 2005).
Deve-se levar em conta também que os homens, em seu conjunto,
se beneficiam dos dividendos assegurados pela sociedade patriarcal,
isto é, das vantagens que tiram, enquanto grupo, da subordinação
das mulheres.
O terceiro risco é o de afirmar que o sexismo é fruto da
ignorância e que os homens poderiam, portanto, aprender a não
ser sexistas: assim, se eliminaria a violência contra as mulheres
através da educação, de oficinas de sensibilização, dos grupos de
Introdução 1 17

apoio etc. Isso equivale a ignorar a profunda cumplicidade que os


homens compartilham no modelo hegemônico de masculinidade e
o interesse que eles podem encontrar em apoiá-lo, mesmo quando
seus comportamentos individuais se distanciam parcialmente dele.
Sem dúvida, é bem-vinda a pergunta sobre o que os homens podem
fazer para combater o sexismo. Seu desejo de agir nesse sentido é
compreensível e necessário; mas não é menos complexo de interpretar.
Com efeito, pode provir de uma atitude defensiva em face ao mal-estar
de tomar consciência de sua própria cumplicidade no sexismo ou,
para dissipar este mal-estar, significar a busca de uma reconciliação
obtida com a condição de enterrar o passado (animado pelo desejo
de se sentir melhor). Pela denúncia pública dos danos do sexismo
para com as mulheres, pode também expressar, simplesmente, uma
solidariedade ou uma forma de abertura para ações futuras.
No entanto, antes de chegar à ação, falta muita escuta por
parte dos homens e, antes de se orientarem para o futuro, é necessário
que eles enfrentem os desafios postos pela dominação masculina em
vigor. Não basta supor que o ato performativo que afirma a existência
de "novas masculinidades"' lhes confere existência social real, como
se apenas a enunciação desta postura realizasse uma ação. Antes
de afirmar "eu não sou sexista ou machista, eu não sou um homem
daqueles que o feminismo critica" (que não é sempre uma afirmação
de má fé, nem implica necessariamente a ocultação da intensidade
dos efeitos do sexismo), deve-se habitar o espaço da crítica, com sua
temporalidade de longa duração, e reconhecer que o mundo que
se critica é o mundo no qual vivemos e para o qual contribuímos
com comportamentos cotidianos. Esta postura, que poderia ser
percebida como prescritiva e capaz de obstaculizar as poucas
iniciativas masculinas nesta direção, provém de minha desconfiança
em face ao rápido advento das "novas masculinidades" nas agendas

'Embora as "novas masculinidades" tenham sido descritas como "posicionamentos


que recusam a ser gendrados e associados permanentemente ao modelo patriarcal
hegemônico" e como uma "insistência eminentemente política" (Garcia, 2012, p.
94), deve-se levar em conta que afirmá-lo não significa torná-lo ato. Para que um
enunciado seja performativo, devem ser preenchidas certas condições. E no caso das
"novas masculinidades", declará-las sem levar em conta as condições que permitem
este enunciado (a existência prévia de atos que elas autorizem) é imaginar que
uma prática pode ser "trazida à experiência através da fala e da representação" (na
mesma perspectiva, ver a critica de Ahmed, 2004, relativa à afirmação do caráter
performativo do antirracismo).
18 1 Mara Viveros Vigoya

públicas. Mais do que lhes proporcionar condições para lutar contra


o sexismo, os estudos sobre homens e masculinidades, inclusive
em suas formas críticas, e os processos organizativos de homens
deveriam se orientar para documentar o sexismo que persiste e se
intensifica de muitas maneiras.
Eis por que uma reflexão crítica sobre a "virada" que podem
representar os estudos sobre a masculinidade no interior dos estudos
feministas é importante. Se esta virada significa basicamente voltar-
se para atender o chamado de alguns poucos homens esclarecidos e
de boa vontade para com as mulheres, não passa de um gesto a serviço
de uma afirmação narcisista. Os estudos feministas e de gênero sobre
homens e masculinidades devem participar pelo menos de uma
dupla virada: uma primeira, em direção à masculinidade como um
tema de estudo legítimo enquanto elemento da estrutura de gênero;
e uma segunda, a partir dos corpos daqueles que desfrutaram das
vantagens patriarcais, em direção à crítica de sua participação e
responsabilidade neste ordenamento de gênero, como tema atual.
Esta "dupla virada", não é suficiente por si mesma, mas permitirá
preparar o terreno para outros tipos de lutas travadas fora do âmbito
universitário e para as quais podemos contribuir a partir de nosso
trabalho de pesquisa.

Quando e como cheguei ao estudo sobre homens e


masculinidades?

Os balanços teóricos e empíricos de Teresita de Barbieri


(1993) e Enrique Gomáriz (1992), sobre o trabalho acumulado no
campo dos estudos latino-americanos de gênero, assinalavam que
existiam grandes vazios sobre as masculinidades na pesquisa e na
reflexão no começo dos anos 1990. Foi neste contexto de relativa
carência de trabalhos sobre os homens como atores gendrados
[generificados]3 que surgiu meu próprio interesse pelo tema. Nesse

3 Diferentes traduções têm sido adotadas no Brasil para o termo inglês gendered

traduzido pela autora por generificado: "gendrado", "generificado", "no/de


gênero" ou, ainda, "marcado/constituído no/pelo gênero". Optamos pelo vocábulo
"gendrado", ainda que não dicionarizado, por sua economia e também por sua
relação etimológica com "engendrar" (do latim ingenero, -are, gerar, fazer nascer,
criar). Segundo o contexto, "gendrado" deve ser, então, entendido como equivalente
Introdução j 19

momento, porém, eu não estava preparada para compreender tal


disposição. Como propõe Renato Rosaldo (2000), em seu livro
Cultura y Verdad, "todas as interpretações são realizadas por sujeitos
que estão preparados para saber certas coisas e não outras". 4 Por isso,
necessita-se às vezes de uma experiência pessoal para poder aceder
a certos significados, para propiciar o desenvolvimento de certos
interesses. No meu caso, esta experiência teve a ver, primeiramente,
com minha consciência de não ser "simplesmente" uma mulher e
de entender que o sexismo não se experimenta sempre da mesma
maneira, já que o sexo não é a única fonte de opressão das mulheres
colombianas. Em seguida, e de forma muito relacionada a anterior,
havia meu desejo de questionar a existência de uma dominação
masculina com efeitos universais e invariáveis. No entanto, foi
somente anos mais tarde, com a descoberta intelectual do Black
Feminism [Feminismo negror e do "feminismo de cor" que meu
desconforto pessoal e intelectual fez sentido.
Dois dos postulados dessa corrente feminista foram
particularmente úteis .à minha própria pesquisa e reflexão sobre
homens e masculinidades. 0 primeiro é a pertinência e o privilégio
epistêmico de um conhecimento situado, construído a partir da
valorização política de uma posição marginal para compreender
a dominação. Assim, minha posição de mulher não-branca no
contexto colombiano me levou a deslocar minhas perguntas sobre a
dominação masculina de um cenário unidimensional de gênero para
outro, pluridimensional, no qual o gênero se entrecruza com outras

à "de gênero" ou "criado/constituído no/pelo gênero". (N.T)


4 Rosaldo escreve: "O etnógrafo, como sujeito posicionado, compreende certos

fenômenos humanos melhor que outros. Ele ou ela ocupa uma posição ou
localização estrutural e observa com uma perspectiva específica. [...] A noção de
posição se refere a como as experiências de vida permitem ou impedem certo tipo
de explicação" (Rosaldo, 2000, pp. 39-40).
5 0 Black Feminism não é o ponto de vista das feministas "negras", mas uma corrente

política feminista de pensamento que define o gênero em relação a outras ordens


de poder como o racismo e a relação de classe. A denominação "feminismo de cor"
foi adotada por algumas feministas chicanas* e "feministas do terceiro mundo"
(Third world feminists) que questionaram o qualificativo "mulheres de cor" e o
ressignificaram como uma nova voz política "positiva", construída a partir da
alteridade, da diferença e da especificidade (ver Dorlin, 2008; Viveros, 2007; Viveros
& Gregorio, 2014). *Chicana se refere a uma pessoa cidadã dos EUA e que pertence
à população de origem mexicana lá existente. (N.T.)
20 1 Mara Viveros Vigoya

formas de dominação (de classe, raça e etnicidade). 6 O segundo


postulado foi a adoção de uma postura feminista não separatista.'
Considero que o separatismo não é uma estratégia analítica e política
adequada para dar conta da complexidade do contexto social no qual
opera a dominação masculina na Colômbia ou para gerar relações de
solidariedade com as lutas feministas.
Por outro lado, algumas teóricas do Black Feminism, como
Beverly Guy-Shefthall (2001), salientaram a importância de incluir, na
historiografia dos movimentos feministas (neste caso, estadunidenses),
o forte compromisso que alguns pensadores e ativistas negros
expressaram e tiveram nas lutas das mulheres por direitos. Frederick
Douglass (2001), Alexander Crummell (2001) e William Edward
Burghardt Du Bois (2001) foram alguns deles e deixaram testemunhos
claros deste engajamento. Por essa razão, é importante recordar, como
ato de justiça epistêmica, sua participação como aliados e apoiadores
das lutas que travaram as mulheres estadunidenses de finais do
século XIX (Foner, 1976; Guy-Shefthall, 2001). Como outras destas
feministas sublinharam, a necessidade de reconstruir e transformar o
comportamento dos homens e da masculinidade não está fundada em
razões altruístas, mas sim em sua compreensão como parte de uma
revolução feminista (hooks, 1981).
As teóricas do Black Ferninism buscaram relacionar-se com
os homens de suas comunidades como possíveis aliados e não
como seus principais opositores e tentaram compreender, de forma
simultânea, a particularidade do sexismo vivido pelas mulheres
negras e as vicissitudes experimentadas pelos homens negros. 8
Como apontaram Aimé Césaire (1955) e Frantz Fanon (1952), os
sistemas de escravização, colonialismo e imperialismo não somente

6 A intersecção entre diferentes relações de dominação pode, com certeza, incluir


outras relações e categorias de dominação, como a nacionalidade, a idade ou a
situação de deficiência.
' O feminismo separatista defende, em maior ou menor medida, a separação
de homens e mulheres na luta feminista, partindo do princípio de que sua união
prejudica as mulheres e reprime seu desenvolvimento político, encorajando
orientações heteronormativas e sexistas.
Neste capitulo, utilizo o termo "negro" como adjetivo e não como substantivo,
considerando que o negro não existe em si como uma substância, mas como uma
qualidade relacional. Em contrapartida, quando faço referência aos membros de um
coletivo, utilizo a inicial maiúscula.
Introdução 1 21

recusaram sistematicamente para eles uma posição dominante


nas hierarquias de gênero, mas também impuseram formas
específicas de terror com o fim de oprimi-los. Inspirada por este
tipo de pensamento, pareceu-me importante, em termos políticos e
analíticos, aprender a me dirigir aos homens e falar sobre eles com
uma voz feminista que os desafia, mas sem diminuí-los, animada
pelo anseio de gerar um espaço de solidariedade e transformação
social com aqueles que expressem seu respaldo às lutas feministas.
É nesta postura que reside a singularidade das contribuições que
me ofereceu o Black Feminism (hooks, 1981) a uma compreensão
complexa da dominação masculina e a seu questionamento político.

Por que, como e para que trabalha uma mulher feminista sobre
homens e masculinidades?

Frequentemente me perguntam "por que" e "para que"


trabalha uma mulher feminista sobre homens e masculinidades. Por
trás dessas questões está, em primeiro lugar, a inquietude quanto à
legitimidade e validade de um trabalho sobre homens e masculinidades
realizado por uma mulher. Encontramos aqui uma velha controvérsia
da antropologia,9 que consiste em perguntar se faz sentido o estudo
comparativo das sociedades humanas e, em caso afirmativo, se é
preciso fazer parte de um grupo para poder compreendê-lo. Nos
inícios da "antropologia da mulher", a argumentação de que as
mulheres estavam melhor qualificadas que os homens para estudar as
mulheres deixou aberta a questão sobre a competência das mulheres
para estudar os homens. Por acaso, somente o pertencimento a um
grupo justifica ou autoriza a possibilidade de seu estudo? Afinal, "se
realmente se tivesse que pertencer a um grupo para chegar a conhecê-
lo, a antropologia não seria mais que uma grande aberração" (Shapiro,
1981, p. 125). Por outro lado, é importante considerar que pertencer
ao mesmo sexo não garante que pesquisadoras(es) e pesquisadas(os)
compartilhem experiências e problemas comuns. As diferenças de
classe, étnico-raciais ou geracionais entre mulheres ou entre homens
podem ser às vezes mais fortes que as semelhanças. A suposta

Suscito esta reflexão sobre a antropologia na discussão porque é o campo disciplinar


no qual situo preferencial, mas não exclusivamente, meu trabalho de pesquisa.
22 I Mara Viveros Vigoya

vantagem dos homens na compreensão das masculinidades perde,


então, seu sentido.
Outra aresta interessante desta reflexão é a das relações de
poder no trabalho de campo e no processo de interpretação dos
dados. Em termos gerais, o intercâmbio entre pesquisador e sujeito
pesquisado tem se caracterizado por uma relação hierárquica. O
que acontece com essas hierarquias quando "o pesquisador" é uma
mulher e os sujeitos pesquisados homens? De que maneira isto pode
significar a subversão ou a transgressão desta relação de poder?
Podemos lembrar, primeiro, que os grupos sociais geralmente
estudados pelas ciências sociais têm sido os grupos dominados, como
a escassez de estudos sobre grupos dominantes atesta. Esta ênfase
se deve a que "a diferença" e "a alteridade", terrenos de predileção
da pesquisa social acabaram, muitas vezes, sendo equiparadas a
desigualdade. Assim, quando uma mulher estuda os homens, não
como sinônimo de "seres humanos", mas como homens constituídos
como tais pelo gênero, princípio organizador de normas diferentes
e direitos desiguais, ela desafia o senso comum, para o qual gênero é
equivalente a "mulheres", e argumenta que "o gênero não constrói o
sexo, e sim os sexos" (Bereni et al., 2008, p. 21).
A denúncia do viés androcêntrico de uma grande parte do
conhecimento produzido sobre as mulheres e a desconfiança com
relação aos motivos dos homens para se implicar nas lutas pelos
direitos das mulheres desembocaram muitas vezes em posições
normativas que instituíram como "dever ser" da pesquisa feminista
a condição das mulheres, deixando de lado a análise dos mecanismos
de dominação a partir do ponto de vista do grupo social dominante.
No entanto, o reconhecimento da dimensão relacional do gênero
possibilitou o estudo do masculino por parte das mulheres
feministas, superando tendências culpabilizantes e receosas
dentro do movimento feminista frente ao estudo dos homens
e das masculinidades. Além disso, destaco que a compreensão
da dominação, como uma relação vinculada sempre com outras
relações de poder, quer se chame de "interseccionalidade",
"interconectividade", "simultaneidade de opressões" ou, ainda,
matriz de dominação" - uma dívida que tenho com o legado teórico
e político do Black Feminism - me permitiu articular distintas
narrativas sobre as experiências de ser "homem", "negro", "branco",
"heterossexual" ou "homossexual" na reflexão sobre homens e
Introdução 1 23

les perde, masculinidades na Colômbia.


Na atualidade, os aportes da interseccionalidade" e da teoria
qações de foucaultiana do poder permitem pensar as relações de dominação
tacão dos como um processo complexo e contraditório no qual intervém e é
e sujeito possível a agência dos sujeitos. Ao mesmo tempo, relativizou-se a
rquica. O ideia de que existem sujeitos exclusivamente dominados, como as
ar" é uma mulheres, ou exclusivamente dominantes, como os homens. Embora
isto pode a dominação masculina responda a determinantes estruturais e
le poder? estruturantes, é também um processo paradoxal, caleidoscópico,
ralrnente dinâmico e historicamente determinado, no qual intervêm múltiplas
los, como variáveis que não são necessariamente aditivas, mas sim distintivas. A
:ta ênfase dominação não se exerce a partir da soma de certas condições, mas a
redileção partir de uma determinada forma de habitar o gênero, a classe, a raça,
'aradas a a idade, a nacionalidade etc., como relações sociais que se coproduzem.
Lens, não A análise interseccional, como forma de leitura das
_stituidos desigualdades sociais, refere-se à distribuição do poder e dos
iferentes recursos da sociedade entre todas as posições, incluídas as
gênero é dominantes, pensadas em todas as suas dimensões (Fassin,
• n st rói o 2015). Em meu trabalho, proponho uma análise interseccional,
não apenas dos grupos sociais marginalizados, aos quais está
parte do vinculada historicamente esta teoria, mas também daqueles que
riça com ocupam posições dominantes em distintas ordens sociais, como os
:as pelos homens, as pessoas brancas ou mestiças'l de pele clara na Colômbia
posições e as pessoas heterossexuais. Ao mesmo tempo, busco dar conta
mi riista das desigualdades de gênero, classe e raça de forma diferenciada,
anisrnos levando em conta que cada uma dessas formas de dominação "tem
nin ante.
-
um discurso ontológico diferente da dinâmica das relações de poder,
▪ gênero
Rull-xeres 10 Compartilho o ponto de vista e a definição de Nira Yuval-Davis (2015) que
-ecosas considera a interseccionalidade mais como um conjunto de ferramentas conceituais
Fi ornens e teóricas que como um corpo teórico unificado.
iree nsão '1 Na Colômbia, como de modo geral na América Latina, se reserva o termo "mestiço"
às pessoas que possuem ancestrais europeus e indígenas. Igualmente, nesses
▪ otatras
países, a mestiçagem remete ao mesmo tempo a ideologias nacionais. (No Brasil,
✓li d o termo "mestiço" tem acepção mais geral, denotando as pessoas que possuem
ancestrais de diferentes categorias racializadas. O termo do espanhol colombiano
tee5rico mestizo se refere estritamente ao que, na terminologia tradicional, se chamava de
íst"-* ntas caboclo ou mameluco (descendente de colonizadores portugueses e indígenas). No
ra rico", entanto, preferimos manter a tradução por "mestiço" pelo desuso das categorias
tradicionais mencionadas e pelo uso geral que a autora também faz do termo em
me ris e outras passagens do livro. (N.T.)
24 I Mara Viveros Vigoya

exclusão e/ou exploração" (Yuval-Davis, 2015, p. 194).

As cores da masculinidade. Identidades interseccionais e


práticas de poder na Nossa América

O título deste livro quer visibilizar as distintas "cores",


de pele, gênero e sexualidade que organizam as experiências
dos homens colombianos e minar a ideia de uma masculinidade
abstrata, universal e desencarnada. A metáfora da cor para falar da
diversidade, das diferenças e desigualdades existentes entre homens
e masculinidades é uma estratégia significante potente: a cor é um
signo que transmite mensagens, provoca sensações em relação à
diferença e põe em evidência as analogias que impregnam nossa
linguagem e forma de pensar e atuar frente a ela. Com este título, busco
afirmar não só a diversidade e heterogeneidade das masculinidades,
mas também as desigualdades, tensões, ambiguidades e contradições
que caracterizam as experiências da masculinidade na Colômbia, em
uma sociedade "pigmentocrática". 12
Em meu trabalho prévio sobre homens e masculinidades
na Colômbia (Viveros, 2002), mostrei que a masculinidade não é
um atributo dos "homens", mas sim uma noção relacional e que
não há uma masculinidade, mas muitas. Esta ideia se constrói
em oposição à de feminilidade e em contraste com distintas
masculinidades elas mesmas inscritas em diferentes relações
sociais (de classe, idade, raça, etnicidade, cor de pele e região)
que organizam hierarquicamente os vínculos entre homens. Ao
mesmo tempo, busquei dar conta do caráter extenso das normas
de masculinidade que se impõem a todos os homens sob a forma

" Enquanto o sentido estadunidense da raça se caracteriza pela "regra da gota de


sangue", que determina que descendentes de mestiçagens estão ligadas(os), por
convenção, à raça ancestral (ou histórica) da/o ascendente que pertence a uma
minoria racial (Hirschfeld, 1999, p. 20), na sociedade colombiana, a racialização se
manifesta mais através de um jogo "pigmentocrático" que atravessa as fronteiras
de classe, incorporando as diferenças socioeconômicas. As classes têm assim
cores de pele, no sentido de que, geralmente, as pessoas e famílias mais dotadas
de capitais (social, cultural, escolar, econômico, simbólico etc.) são mais "claras" e,
inversamente, as menos dotadas destes capitais são mais "escuras" (Urrea; Viáfara
& Viveros, 2014).
Introdução 1 25

de mandados comportamentais e morais, apesar da pluralidade


de formas de masculinidade identificadas. Seja para adequar-se a
elas ou para rejeitá-las, os homens devem situar-se perante essas
normas. Sua posição está demarcada pela interação de distintos
fatores, estruturais e posicionais, e das diferenças de recursos que
possuem para confrontá-las. No caso analisado em 2002, mostrei
as diferenças nas normas de gênero que operam em duas cidades
colombianas, Quibdó" e Armenia, 14 e os modelos de masculinidade
hegemônica com base nos quais os homens são avaliados,
incluídos aqueles que os questionam ou não podem assumi-los
subjetivamente (Viveros, 2009).
Ora, por que privilegiar as relações de gênero e raça e seus
entrecruzamentos como eixo de análise central deste livro sobre
homens e masculinidades? Por razões históricas. No contexto
colombiano e latino-americano, as ideologias de raça se entreteceram
constantemente com a dominação de gênero, através do controle
da sexualidade das mulheres e da subordinação dos homens
racializados," para produzir um ordenamento sociopolítico no qual
a genealogia continua ocupando um lugar preponderante (Stolcke,
1992; 2002; Weismantel, 2001; Wade, 2009a). A raça e o sexo/gênero
têm o que Wade (2009a, p. 12) chama de uma "afinidade eletiva" nos
sistemas de dominação e hierarquia. Assim, autoras como Colette
Guillaumin (1992) utilizaram as críticas da categoria "raça" para
pensar o sexo e redefinir as mulheres (e os homens, acrescentaria eu)
não como grupo natural, mas como uma classe social naturalizada.
A comparação entre a dominação sexual e o racismo me foi útil
para entender o tratamento análogo que sofrem as mulheres e os

13 Capital do departamento do Chocó, situado na costa dos oceanos Pacífico e

Atlântico. A população do Choco se autoidentifica majoritariamente como "negra" e


é uma das mais pobres da Colômbia.
14
Capital do departamento do Quindio, um dos departamentos mais ricos da zona
cafeeira do pais, habitada principalmente por descendentes de antioquerios*, um
grupo regional que se autodefine pela ausência de população negra. *Gentílico que
designa o natural do departamento colombiano da Antioquia. O termo será mantido
no original. (N.T.)
'5 No curso dos últimos trinta anos, surgiu uma acepção do conceito de "racialização"
que dá conta do processo social pelo qual os corpos, os grupos sociais, as culturas
e as etnicidades se produzem em termos raciais, como se eles pertencessem a
categorias fixas de sujeitos (Garcia, 2012; Banton, 1996; Primon, 2007).
26 Mara Viveros Vigoya

sujeitos racializados, como grupos que estão sociologicamente em


situação de dependência ou inferioridade e que são pensados como
particulares frente a um grupo geral supostamente desprovido de
qualquer peculiaridade social (Viveros & Gregorio, 2014).
A noção de experiência que utilizo neste livro não a concebe
como um dado preexistente ou como um atributo das pessoas, mas
sim como um evento histórico e discursivo, coletivo e individual que
requer explicação (Scott, 2001). As experiências de masculinidade,
negridade e branquidade' 6 que analiso aqui devem ser entendidas
como eventos historicamente situados, que precisam de uma
explicação particular (da especificidade de sua realidade material
e suas implicações) e que, ao mesmo tempo, produzem novas
explicações a partir de uma consciência especifica desta realidade.
Como observa Patricia Hill Collins (1989), uma das principais
teóricas do Black Feminism, não há pensamento sem experiência e,
por isso, é importante considerar que as experiências geram uma
maneira particular de interpretar as realidades vividas.
Neste trabalho, pretendo dar conta da experiência de
gênero de alguns homens na Colômbia, a partir do conhecimento
que eles expressam sobre esta experiência, como membros de
grupos sociais particulares, e de minhas próprias interpretações,
fruto de um pensamento mais especializado, mas igualmente
situado. Seus comentários e análises do que vivem "como homens"
permitem entender a centralidade das relações étnico-raciais e
de classe para estabelecer hierarquias entre eles, em função de
seus comportamentos no trabalho e na família — dois âmbitos da
organização social profundamente interconectados e modelados por
estas relações. Assim, as representações de uns como cumplídores
(provedores responsáveis, pais presentes e sexualmente contidos)
e dos outros como quebradores (homens sempre prontos para a
festa, a dança e o sexo, mas irresponsáveis como pais e cônjuges)
estão ligadas aos estereótipos raciais que existem sobre uns e outros

Branquidade e negridade são as transposições do inglês blackness e whiteness,


construídas com as palavras "branco" e "negro" e o sufixo "-idade" (como em
brasilidade); o primeiro começou a se impor no português brasileiro, mas o segundo
ainda não. Estas noções permitem abordar o branco e o negro como cores de pele
produzidas socialmente correspondendo a posições hierárquicas distintas no
espaço social: o branco sendo a cor dominante e, portanto, o padrão a partir do qual
as outras cores são produzidas, marcadas e classificadas.
Introdução 27

e aos ordenamentos étnico-raciais e de classe que os localizam em


distintos lugares do espaço social colombiano e lhes "recompensam"
socialmente de forma diferente. Igualmente, o cumprimento ou
não das injunções de gênero em termos de família, paternidade ou
sexualidade podem ser utilizados para reforçar ou às vezes desafiar
as hierarquias sociais e as fronteiras étnico-raciais.
Falar dos homens de Quibdó e Armenia como homens
"negros", "brancos" ou "mestiços"l 7 não foi nada óbvio no início de
meu trabalho sobre masculinidades. Dada a dificuldade que pensar
sobre raça na América Latina gerava no período em que realizei
meu primeiro trabalho de campo (1997-1998), me senti obrigada
a utilizar a linguagem da cultura regional para falar das diferenças
étnico-raciais entre esses homens. Por razões históricas, a raça tinha,
na Colômbia, uma dimensão regional que dava lugar a distinções
entre três áreas geográficas: as zonas costeiras, percebidas como
negras; as zonas andinas do "interior", descritas como brancas e
mestiças; as terras baixas amazônicas, apresentadas como indígenas.
Na Colômbia, a alusão à região de origem permite referir-se à raça e
à etnicidade sem nomeá-las.
Estas dificuldades não estiveram alheias à minha própria
subjetividade como mulher negra ou não branca no contexto
colombiano. Eu me nomeio assim, não por ser filha de um homem
"negro" e de uma mulher "branco-mestiça", mas por ter me
posicionado política e subjetivamente deste modo, consciente do
efeito que podem ter, sobre a vida social e pessoal, os discursos
sobre raça e etnicidade que circulam na Colômbia e que são objeto
de minha reflexão neste livro. Minha identidade "negra" e "mestiça" 18
não é uma identidade que eu sempre tenha pensado e sentido da
mesma maneira; é uma identidade que foi construída e se nutriu dos
debates que suscita a negridade e a mestiçagem na vida cotidiana, na
prática acadêmica, no ativismo cultural, no trabalho transnacional
de ONGs e nas práticas estatais (Wade, 2009b). Assim, minha própria
relação com a negridade e a mestiçagem carrega a marca da trajetória
histórica desses conceitos. É preciso lembrar que, na Colômbia,

17 Utilizo as aspas para sublinhar a distância entre os qualificativos cromáticos


utilizados na Colômbia para fazer da cor da pele um dado objetivo.
' 8 Como assinala Verena Stolcke (2008), as(os) "mestiças(os)" não nascem, mas se
tornam como tais em contextos históricos particulares.
28 I Mara Viveros Vigoya

antes da Constituição de 1991, não existiam senão referências


indefinidas e ambíguas a estes conceitos, ao passo que, hoje, existe
um consenso relativo em torno de uma definição que salienta o
vínculo da negridade com a diáspora africana em um contexto no
qual o discurso sobre a mestiçagem continua tendo poder.
Apesar dos aspectos positivos da transformação
constitucional, e depois, de mais de vinte anos de políticas
multiculturalistas, o balanço que se pode fazer é que as formas de
legibilidade impostas pelo multiculturalismo invisibilizaram, em
primeiro lugar, os nexos das diferenças com as desigualdades sociais
e as relações de dominação e, em segundo, as demandas políticas
que não se expressam como reivindicação de direitos ou não se
definem em termos de diferenças culturais. Poucas são as pesquisas
que mostram como se articulam e entrecruzam as distintas ordens
de dominação e que questionam os efeitos mais problemáticos do
multiculturalismo estatal vigente, sem mencionar os que subsistem
dos regimes de mestiçagem assimilacionistas precedentes. Nesse
contexto, com este livro, pretendo oferecer "novas" perspectivas
de leitura sobre a diferença e a dominação social, que permitam
reconhecer sua estreita relação com as desigualdades em um
ambiente marcado por uma forte celebração da diversidade, assim
como resgatar o caráter complexo e consubstancial das diferenças.
Em meu trabalho, "latino-americano" e "América Latina" são
entendidos como "ideias" resultantes do processo de independência
do controle metropolitano espanhol e português, iniciado, ao redor
de 1830, pelas elites crioulas descendentes da população europeia.
Seu projeto de construir novas nações se confrontou com o dilema
ligado à composição racial das populações "latino-americanas",
visivelmente misturadas, e com o desejo de aceder às vantagens do
progresso e da civilização próprios dos estados-nação modernos
europeus. Esta proposta de "latinidade", que apagava ou desvalorizava
a participação de indígenas e afrodescendentes nessas nações, foi
questionada, no final do século XIX, por intelectuais como o cubano
José Martí. Em uma conferência em Nova York, intitulada "Nossa
América", Martí advertia contra as novas ameaças que pairavam
sobre a América Latina, cuja independência já não era, naquele
momento, ameaçada pelas potências em declínio da Espanha e
Portugal, mas pelo auge e pretensões do nascente imperialismo dos
Estados Unidos. Martí questionava o direito que os estadunidenses
Introdução 1 29

arrogavam de reivindicar para si sós o nome de América e defendeu


uma nova versão da "latinidade", mais inclusiva. Seu projeto de
dissidência se reivindicava, com otimismo, como legatário das lutas
dos nativos americanos e dos americanos de origem africana em
contraposição a uma América anglo-saxã que se apresentava como
branca (Mignolo, 2007; Santos, 2009). A partir deste lugar, fazia um
chamado à união entre os povos hispano-americanos como forma de
apropriação de identidade cultural e de distinção de uma América
"nossa" perante a América anglo-saxã.
Ao longo do século XX e deste século XXI, as transformações
políticas, econômicas, sociais e culturais, mas também a subjetividade
daquelas(es) que habitam este subcontinente, aprofundaram os
questionamentos de uma identidade "latino-americana", forjada para
responder a necessidades ultrapassadas. O imaginário continental se
nutre, atualmente, de novos aportes oriundos dos diferentes povos
indígenas, pessoas afrodescendentes e grupos que reivindicam um
pensamento fronteiriço crítico e questionam a lógica que estruturou
a ideia oitocentista de América Latina. Decidi conservar neste livro
a expressão "Nossa América", como uma forma de reconhecimento
a essas lutas precoces de reapropriação e ressignificação de nossa
identidade, mas incluindo em seus significados as contribuições de
duas pensadoras feministas, Gloria Anzalclúa (1987) e Silvia Rivera
Cusicanqui (1993), à compreensão de seu caráter "mestiço".
A mestiçagem, uma das ficções fundacionais latino-
americanas (Sommer, 1990), foi considerada como a garantia
primordial da homogeneidade nacional na região." Também deu
lugar à famosa "ideologia da mestiçagem", afirmando o surgimento
de uma nova cultura pela fusão harmônica, em termos biológicos
e culturais, do melhor das "raças" e culturas de origem (Batalla &
Arce, 1992). Esta visão tem sido criticada por que invisibiliza as
desigualdades sociais internas ligadas à "raça". "Nossa América"
busca uma reapropriação e um deslocamento do significado do
caráter mestiço de nossa história, inspirado por uma maneira
diferente de perceber a realidade a partir da consciência da Nova
Mestiça da qual fala Glória Anzaldúa e da mestiçagem Cheje narrada

19 Utilizo aqui a palavra "região" no sentido de conjunto de países que possuem

características particulares que lhe conferem uma certa unidade. É principalmente


nesse sentido que ela será empregada neste livro.
30 1 Mara Viveros Vigoya

por Silvia Rivera Cusicanqui.


O que significa isto? A "Nova Mestiça" é um projeto inacabado
de luta para criar um espaço ("a ponte") onde seria possível reunir e
desconstruir simultaneamente as diferentes experiências íntimas e
reivindicações políticas, raciais, sexuais e de gênero que conformam
essa identidade. Nossa América hoje é o projeto da Nova Mestiça e
uma crítica à ideia de que existe um "mestiço universal". É também a
afirmação da capacidade de ressonância que produz habilidade para
viver nos limites, na fronteira, nesse espaço Che'je onde coexistem,
em tensão e em conversação, o colonial e o colonizado. Falar de
Nossa América em vez de América Latina é, finalmente, escolher
uma denominação que não foi criada nos contextos acadêmicos
hegemônicos metropolitanos para dar conta de experiências sociais
particulares.

O conteúdo deste livro

O projeto que constitui este livro é, em termos simples,


repensar e redefinir as experiências da masculinidade do ponto
de vista interseccional. Sua aposta me levou a enfrentar alguns
desafios teóricos. No campo acadêmico dos estudos de gênero
na Colômbia, existem ainda poucas pesquisas que enfocam a
interseccionalidade das diferentes ordens de opressão." Assim, as
reflexões desenvolvidas neste livro contribuem para um terreno
acadêmico que está associado ao âmbito político. Com efeito, as
epistemologias feministas e decoloniais do "conhecimento situado",
que orientam os estudos interseccionais, possibilitam não somente
questionar as supostas certezas da "neutralidade" científica, mas
também alimentar e incidir nas ações políticas dos diferentes
movimentos. Neste último caso, trata-se de propor formas de
atuação ancoradas nas práticas e experiências sociais - sempre
ambíguas e contraditórias - capazes de integrar a complexidade

" Como assinalam Sébastien Chauvin e Alexandre jaunait (2015, p. 55): "Loin de
faire pléonasme avec l'idée d'intersection, à laquelle on la réduit souvent, la notion
d' intersectionnalité en est au contraire la déconstruction critique" que se poderia
traduzir assim: "Longe de ser redundante com a ideia de intersecção, à qual nós
frequentemente a reduzimos, a noção de interseccionalidade é pelo contrário a
desconstrução critica dela".
Introdução 1 31

criada pela imbricação das opressões sociais (Kergoat, 2010).


Nesse horizonte, a primeira parte do livro, Teorias feministas
e masculinidades, aborda os pressupostos e os principais vazios da
teoria feminista para compreender e analisar a dominação masculina,
a existência de novos tipos de homens nas novas circunstâncias
sociais e a necessidade de pensar, de forma dissociada, os homens e
as masculinidades. Em resumo, o primeiro capítulo situa os estudos
sobre homens e masculinidades no campo dos estudos feministas e
de gênero, um campo com tensões, dilemas de poder e configurações
de relações internas próprias segundo os períodos e as tradições
intelectuais e políticas.
A maior parte da literatura sobre o tema foi publicada, em
primeiro lugar, em inglês e, de forma secundária, em francês, e se
refere aos problemas das relações de gênero nas sociedades norte-
americanas e europeias contemporâneas. Eis por que me pareceu
importante rastrear, no segundo capítulo, a forma pela qual se tem
abordado a problemática na Nossa América: os temas tratados,
as ênfases que têm sido feitas e os problemas privilegiados. Este
balanço, sem pretensões de exaustividade, permite identificar o
alcance desses estudos, seus aportes ao subcampo dos estudos
das masculinidades e as resistências que expressam quanto aos
estereótipos sobre as "masculinidades latino-americanas".
A segunda parte do livro, intitulada Masculinidades
nossamericanas, começa com o terceiro capítulo, que examina os
imaginários e estereótipos existentes sobre a sexualidade masculina
negra na Colômbia, em uma perspectiva histórica e a partir do
ponto de vista dos próprios homens "negros" confrontados a
esses imaginários. O capítulo busca compreender as diferentes
maneiras pelas quais estes homens assumem tais estereótipos
(que os apresentam como seres dionisíacos e fundamentalmente
interessados no gozo dos sentidos) e os usos sociais que fazem deles,
chegando, inclusive, a transformá-los em um valor positivo. Rastreia,
igualmente, o papel que desempenham as diferentes formas de
perceber, compreender e pôr em ação o corpo negro masculino
nessas estratégias. Estuda, enfim, o impacto que as práticas musicais
e performativas de alguns grupos, percebidas como símbolos de
afirmação e orgulho da cultura afro-colombiana, podem ter sobre
esses imaginários dos corpos masculinos negros.
O quarto capítulo explora as continuidades e descontinuidades
32 1 Mara Viveros Vigoya

históricas da branquidade no contexto nossamericano


[nuestroamericano], do período colonial aos dias atuais, em relação
a constituição progressiva do significado contemporâneo da raça,
sempre articulada com o sexo. Esta articulação produz hierarquias
sociais e, em particular, uma masculinidade branca hegemônica que
garantiu o domínio dos homens brancos e a subordinação das mulheres
e dos homens não brancos. A título de exemplo dos benefícios que a
masculinidade branca proporciona, analiso o uso midiático que o ex-
presidente da Colômbia, Álvaro Uribe Vélez, fez dos valores associados
à masculinidade e à branquidade, fontes de legitimidade política e de
popularidade. Apesar das múltiplas análises sobre a figura e o estilo
presidencial de Álvaro Uribe, poucas examinaram as dimensões de
gênero e étnico-raciais presentes em seus discursos, comportamentos
e em sua forma particular de governar. Essa abordagem mostra a
utilidade de uma análise interseccional das relações sociais para dar
conta dos fundamentos gendrados [generificados] e racializados do
poder, da autoridade e da legitimidade.
O quinto capítulo explora as transposições entre a violência
estrutural, proveniente da conquista e da colonização da Nossa
América, e a violência simbólica, doméstica e íntima da qual têm
sido vítimas, desde então, principalmente as mulheres, mas também
os homens subordinados em uma hierarquia de masculinidades.
Na Nossa América, atualmente, as mortes violentas de mulheres
excedem em muito o que se reporta e a caracterização, definição
e classificação dos crimes relacionados a esse tipo de violência
são objeto de controvérsia persistente nos estudos feministas
contemporâneos. Neste capítulo, este tipo de assassinato, ancorado
em uma utilização predatória do corpo feminino, é ligado às atitudes
masculinistas favorecidas pela neoliberalização da vida social e pelos
conflitos geopolíticos na região.
Finalmente, quero precisar que cada capítulo pode ser lido
de forma independente, em função das perguntas que motivem sua
leitura. No entanto, é importante assinalar que os capítulos surgiram
uns dos outros, conduzindo quem os lê através de um caminho
que gravita em torno da ideia que dá título ao livro: a análise das
masculinidades à luz de uma perspectiva interseccional. Hoje, é
particularmente importante sublinhar que os estudos sobre homens
e masculinidades recobrem' tanto interpretações progressistas
como profundamente conservadoras e que, sem um conteúdo e um
Introdução 1 33

impulso político que insiste na desconstrução crítica das diferentes


modalidades de dominação e na busca de uma justiça social
indivisível, a referência reiterada à interseccionalidade não é mais
que a repetição forçada de um "mantra multiculturalista" ("raça,
classe, gênero e sexualidade"), para retomar a fórmula de Wendy
Brown (1995). A aposta deste livro é a de escrever evitando as
armadilhas do sexismo, do racismo e da homofobia que, entrelaçados,
atormentam constantemente nossas vidas.
PRIMEIRA PARTE

TEORIAS FEMINISTAS E MASCULINIDADES


1. PARA ALÉM DO BINARISMO: TEORIAS FEMINISTAS,
HOMENS E MASCULINIDADES

A relação entre as teorias feministas e os estudos sobre


homens e masculinidades tem uma longa história. Assim como a
implicação dos homens nas lutas pela igualdade de gênero, ainda
que esta tenha sido sempre uma causa menor para eles (Gardiner,
2005; Van Der Gaag, 2014). No impulso do movimento pelos direitos
das mulheres da segunda metade do século XX, diversas teorias
buscaram explicar as causas da dominação masculina, corrigir as
falsas presunções sobre as mulheres e os homens e prefigurar a
existência de novos tipos de mulheres - e de homens - em novas
circunstâncias sociais. Teóricas feministas do século XX, como Simone
de Beauvoir, questionaram a pretensão masculina de se apropriar
do significado universal da humanidade e de constituir as mulheres
como o Outro. Esta pretensão não era, obviamente, inocente, como
assinala Beauvoir na introdução de O segundo sexo, citando uma
frase de François Poulain de la Barre escrita no século XVIII: "Tudo
o que tem sido escrito pelos homens acerca das mulheres deve ser
considerado suspeito, pois eles são, ao mesmo tempo, juiz e parte". O
problemático, destaca Beauvoir, é que toda a história das mulheres
foi feita pelos homens e, neste sentido, o problema da mulher foi
sempre um problema de homens (Beauvoir, 1977, p. 17).

O feminismo da "segunda onda", 21 os homens e o masculino

Segundo um relato agora clássico, nos anos 1970, algumas


representantes do feminismo liberal estadunidense, como Betty
Friedan e a National Organisation for women [Organização Nacional
das Mulheres], lutaram para garantir o acesso igualitário de mulheres
e homens aos recursos e oportunidades sociais e estimularam as
mulheres a exercer atividades que tinham sido, até então, reservadas
aos homens. A grande maioria das feministas da época se dedicou

21É importante assinalar que esta periodização das três ondas do feminismo tem
sido amplamente questionada por sua pretensão de homogeneizar, em um só relato
hegemônico, as trajetórias do feminismo em diferentes contextos geopoliticos.
38 1 Mara Viveros Vigoya

à luta pela igualdade de gênero no plano jurídico, nos meios de


comunicação, no seio do Estado e no trabalho; poucas se afastaram
dos feminismos liberais reivindicando a diferença das mulheres e
seu reconhecimento (Fraser, 1997).
Entre meados dos anos 1970 e 1980, as correntes feministas
da diferença ou feministas culturais, prevalecentes nos Estados
Unidos, estimularam a reavaliação da feminilidade, opondo-se à
subvalorização androcêntrica e sexista do mérito das mulheres
e de seus corpos e emoções. Um dos trabalhos mais conhecidos
desta corrente é In a Different Voice: Psychological Theory and
Women's Development [Em uma voz diferente: teoria psicológica e
desenvolvimento das mulheres], de Carol Gilligan (1982). A autora
se opunha às abstrações universalistas, rejeitando, em particular, a
teoria das fases do desenvolvimento moral, elaborada por Lawrence
Kohlberg sobre um modelo masculino instituído como referência.
Uma das críticas mais radicais às representações em vigor da
sexualidade feminina foi a proposta pela psicanalista francesa
Luce lrigaray (1974), que evidenciou o caráter falogocêntrico das
interpretações freudianas e lacanianas da sexualidade feminina.
Ela e Drucilla Cornell (1998) mostraram que estas imagens da
feminilidade mascaravam a debilidade e vulnerabilidade dos homens,
atormentados por suas angústias de castração. Para Cornell, este
tipo de insegurança podia motivar uma política pró-feminista por
parte dos homens, que encontrariam interesse em acompanhar as
lutas do feminismo contra a ordem de gênero e assim minar também
os inalcançáveis padrões de masculinidade.
No entanto, nem todas as feministas percebiam os homens
como possíveis aliados. Na mesma época, trabalhos como o da jurista
estadunidense Catherine MacKinnon (1979) assinalaram a opressão
das mulheres pelos homens como a primeira e mais persistente de
todas as opressões. Para ela, os homens e a supremacia masculina, que
os define enquanto homens, eram o inimigo principal das mulheres,
representadas como suas vítimas. A conquista da igualdade de gênero
implicava, em seu ponto de vista, a abolição ou a transformação
radical da masculinidade. De acordo com MacKinnon, o que define
o sexo e a mulher é a expropriação organizada de sua sexualidade
pelos homens (MacKinnon, 1979, p. 515). Nesta perspectiva, para
MacKinnon e sua colega Andrea Dworkin, a luta contra a pornografia
é um dos principais campos de batalha para as mulheres contra uma
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 39

prática de desigualdade, discriminação e exploração masculina que


gera violência.
Teóricas ecofeministas, como a geógrafa Joni Seager (1993),
identificaram liames estreitos entre a guerra e o culto militarizado da
masculinidade, bem como entre os problemas ambientais e a cultura
masculina das instâncias decisórias neste domínio. Segundo Seager,
a cultura "masculinista", com seus pressupostos competitivos e suas
prerrogativas não questionadas, é a cultura institucional responsável
pelas maiores calamidades ambientais. Nesse sentido, as tentativas
masculinas de dominar a natureza não são apenas nocivas, mas põem
em perigo a sustentabilidade dos recursos naturais e ecossistemas
necessários para a vida humana no planeta (Tickner, 1992). Exorta
os homens a cessar sua cumplicidade com a perpetuação do poder
masculino, a militarização global e a depredação da natureza.
Encoraja também as mulheres feministas e os movimentos
ambientais a admitir que a agenda política ecofeminista só poderá
avançar desfazendo os vínculos entre as estruturas institucionais
masculinistas e os desastres ambientais.
Em contraste com as teorias feministas radicais mencionadas
anteriormente, algumas feministas, como a socióloga e psicanalista
Nancy Chodorow, propuseram outro tipo de explicação da
violência masculina. Em seu livro The reproduction of mothering [A
reprodução da maternidade], escrito em 1978, Chodorow sustenta
que a agressividade masculina e outros atributos tradicionalmente
associados à masculinidade são fruto de certas práticas sociais
como a educação infantil, atribuída quase exclusivamente às mães
e da qual foram isentos os pais. Em sua perspectiva, uma criação
compartilhada poderia produzir estruturas de personalidade
mais igualitárias e oferecer a todas as pessoas oportunidades até
o momento limitadas a cada sexo de forma separada (Chodorow,
1978). Igualmente, pessoas de ambos os sexos poderiam ter uma
maior flexibilidade na escolha de seus objetos sexuais. Estes
argumentos foram muito criticados por negligenciarem o fato de
que essas transformações exigiam importantes modificações nos
estilos de vida masculinos, bem como por subestimarem o efeito
da dominação social, das diferenças culturais e históricas e das
diferenças entre os indivíduos de mesmo sexo."

22 Mais tarde, retomando suas teorias sobre a educação das(os) filhas(os), Chodorow
40 1 Mara Viveros Vigoya

Enquanto os debates feministas estadunidenses se


concentravam na dicotomia entre o poder masculino e a falta de
poder das mulheres ou nas diferenças psicológicas entre homens
e mulheres, do outro lado do Atlântico, se desenvolveu uma outra
reflexão sobre os sexos, não como categorias "biossociais", mas
enquanto classes, no sentido marxista, constituídas por e nas
relações de poder dos homens sobre as mulheres (Mathieu, 2000).
A partir do feminismo materialista francês, autoras como Nicole
claude Mathieu (1991), Christine Delphy (2001), Paola Tabet (1998),
Colette Guillaumin (1992) e Danièle Kergoat (2000) propuseram que
as dominações não eram naturais, mas sim construídas sobre bases
materiais, constituindo grupos dominantes e grupos dominados.
Christine Delphy (2001), uma das figuras principais desta corrente,
precisou, além disso, que as relações de poder dos homens sobre as
mulheres constituíam o eixo central da definição mesma do gênero e
de sua primazia sobre o sexo.
Um dos conceitos chaves desta corrente é o de "patriarcado",
entendido como sistema de subordinação das mulheres baseado
nas relações econômicas (Delphy, 2001, p. 141). Neste sistema, as
mulheres são descritas como uma "classe" fundada sobre a produção
de um trabalho doméstico gratuito que permite definir sua opressão
e exploração em termos completamente materiais (Bereni et al.,
2008, p. 23), de modo que a divisão sexual do trabalho e as relações
sociais de sexo (rapports sociaux de sexe) 23 emergem como termos
indissociáveis formando um sistema epistemológico (Kergoat, 2000, p.
40). As sociólogas Anne-Marie Daune-Richard e Anne-Marie Devreux
assinalaram com pertinência que, para compreender completamente
o funcionamento de uma relação social, era necessário analisar
"ce qui amène chacune des deux catégories en présence à tenir la
position dans laquelle elle est par rapport à l'autre" [o que leva cada

buscou explorar os nexos culturais entre masculinidade, nacionalismo e violência, e


relacionar a participação dos homens em atos de agressão e violência com os ciclos
q ue revezam, durante a infância, as situações de humilhação e dominação entre
homens adultos e jovens rapazes, em diferentes culturas (Chodorow, 2002).
23 É pertinente assinalar as reticências causadas pela polissemia da palavra gênero

ri as línguas latinas como o castelhano (Lamas, 1996). No caso francês, as resistências


à adoção do termo gênero não diziam respeito ao seu caráter polissêmico, mas
s im ao risco de eliminar a dimensão política (das relações de poder) integrada na
couceitualização das relações sociais de sexo.
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 41

uma das duas categorias presentes a ocupar a posição na qual está


em relação à outra]. Nesse sentido, justificaram a importância de
analisar "les pratiques, les représentations et les modes d'insertion
des hommes dans les différents champs de la société" [as práticas, as
representações e os modos de inserção dos homens nos diferentes
campos da sociedade] (Daune-Richard & Devreux, 1992, p. 23).

Os estudos sobre masculinidade

A necessidade de enfatizar a dimensão relacional do conceito


de gênero surgiu desde o início desses estudos. Não obstante, a
maioria das pesquisas centraram sua atenção nas mulheres em
razão da dificuldade de superar o individualismo metodológico para
pensar em termos político-relacionais (Stolcke, 1996), e também
porque as mulheres têm sido as principais afetadas pelas práticas
patriarcais (Armengol & Carabi, 2008). Apesar desses obstáculos,
repensar e redefinir a masculinidade se tornou uma urgência
que fez emergir, nos anos 1970, um novo campo de estudos nas
universidades estadunidenses. Os Men's Studíes ou "Estudos das
masculinidades", como prefere chamá-los Michael Kimmel (2008),
um de seus precursores, nutriram-se de contribuições de diferentes
movimentos sociais como o dos direitos civis, o movimento feminista
e o movimento de liberação gay, e de seus questionamentos sobre
os privilégios e a hegemonia do homem branco heterossexual.
Esses trabalhos foram, em algumas oportunidades, acompanhados
por grupos de homens militantes, como a National Organizatíon
for Men Against Sexism [Organização Nacional de Homens contra o
Sexismo] (NOMAS), que buscaram apoiar os esforços do feminismo
para promover a igualdade entre mulheres e homens em todos os
âmbitos sociais. O nexo entre esses grupos e os núcleos de pesquisa
foi fundamental para a consolidação deste novo campo de pesquisa
nas universidades norte-americanas.
Os estudos das masculinidades seguiram basicamente duas
orientações distintas: as que se definem como aliadas do feminismo
e as que reivindicam uma análise autônoma da masculinidade
(Kimmel, 1992). As primeiras analisaram a construção social da
masculinidade e têm sido realizados por homens que afirmam os
seus vínculos com o movimento feminista e os desenvolvimentos da
42 1 Mara Viveros Vigoya

teoria feminista. As segundas foram influenciadas por uma literatura


de ampla difusão inspirada no movimento mito-poético surgido
ao redor do livro de Robert Bly, Iron John: a book about men [João
de Ferro: um livro sobre homens]. A partir dos contos dos irmãos
Grimm, Bly descreve o desenvolvimento masculino e a profunda
nostalgia que os homens sentem de uma vida com significado e que
deixe marcas. Em relação às disciplinas sociais que os orientaram,
os trabalhos publicados na América do Norte nos anos 1970 e
1980 surgiram dos campos da psicologia e da sociologia, enquanto
nos anos 1990, as análises culturais e literárias da masculinidade
ganharam particular importância (Kimmel, 2008).
A socióloga australiana Raewyn Connell tem sustentado
uma posição muito influente e interessante na primeira dessas
duas orientações, pró-feminista. Desde o inicio de seu trabalho
acadêmico, como Robert William Connell, propõe que as principais
correntes de pesquisa sobre as masculinidades falharam em
produzir um conhecimento cientifico coerente porque não as
integraram às estruturas de gênero mais amplas "como forma de
ordenamento da prática social" (1997, p. 35). Também porque não
pensaram a masculinidade "como uma posição no seio das relações
de gênero, um conjunto de práticas pelas quais homens e mulheres
se comprometem com essa posição, e os efeitos dessas práticas na
experiência corporal, na personalidade e na cultura" (2014b, p. 65). É
importante precisar que, para Connell, o gênero, enquanto estrutura,
deve ser abordado considerando as diferenças, mas também as
interações entre três tipos de relações: as de poder, as de produção e
as de investimento 24 (vinculo emocional), organizadas em torno do
desejo sexual.
Entre as definições da masculinidade, Connell (1997)
identifica quatro enfoques cujas lógicas são distintas, mas que se
superpõem constantemente na prática. No enfoque "essencialista",
o núcleo do masculino é definido em torno de um traço central (a
atividade para a psicanálise, por exemplo), 25 ao qual se acrescenta

24 O termo utilizado por R. Connell é cathexis, proposto por James Strachey para
traduzir o conceito freudiano Besetzung para o inglês. Na tradução das obras
completas de Freud no Brasil pela Imago, feita a partir da edição inglesa, foi adotado
o termo "catexia", o qual é atualmente considerado impróprio para significar os
investimentos libidinais de um sujeito sobre ou em direção a seus objetos. (N.T.)
25 Algumas formulações psicanalíticas associaram, de forma oposicional, a atividade
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 43

uma série de características próprias das vidas dos homens. O enfoque


"positivista" propõe uma definição simples da masculinidade: o que
os homens realmente são. Este enunciado é a base lógica das escalas
de feminilidade/masculinidade na psicologia ou das descrições
etnográficas do que se denomina o modelo de masculinidade. O
enfoque de tipo "normativo" reconhece as diferenças entre homens
e propõe que a masculinidade é o que os homens deveriam ser. Cada
homem se aproximaria em maior ou menor medida desta norma,
porém poucos se adequariam plenamente a ela, o que suscita o
questionamento da legitimidade desta. Finalmente, os enfoques
"semióticos" definem a masculinidade a partir de um sistema de
diferenças simbólicas que contrastam as posições do masculino e do
feminino. Na oposição masculinidade/feminilidade, a masculinidade é
"o lugar da autoridade simbólica" enquanto a feminilidade é definida
pela falta dessa característica. O importante, para Connell, não é definir
a masculinidade de forma mais ou menos inclusiva, mas sim centrar-
se na análise dos processos e relações por meio das quais homens e
mulheres desenvolvem uma existência organizada pelo gênero.
A abordagem do gênero como estrutura organizadora da
prática social supõe, ainda, incluir suas interações com outras
estruturas sociais como a raça, a classe, a nacionalidade ou a posição
na ordem mundial. Dito de outra forma, entender o gênero exige ir
"constantemente mais além do próprio gênero, já que as relações de
gênero são um componente principal da estrutura social como um
todo" (Connell, 1997, p. 38). Em resumo, estudar as masculinidades,
concebe Connell, é investigar teórica e empiricamente a lógica
e as complexidades internas das masculinidades, no interior da
estrutura de gênero e na sua relação com outras estruturas sociais
como a origem étnica, a raça e a classe. Isso permite romper com
o pressuposto de que a masculinidade é uma qualidade essencial e
estática e entender que é, pelo contrário, uma manifestação histórica,
uma construção social e uma criação cultural cujos significados
variam segundo as pessoas, as sociedades e as épocas (Connell,
1997; Kimmel, 1997). Levar em conta a articulação da masculinidade
com as diferenças étnico-raciais, nacionais ou de classe comporta o
risco de simplificar esses nexos, ao ponto de se afirmar a existência
de uma masculinidade "negra" ou de classe trabalhadora (Connell,

à masculinidade e a passividade à feminilidade.


44 1 Mara Viveros Vigoya

2014a, p. 73). Entretanto, trata-se não apenas de reconhecer as


múltiplas masculinidades, mas também de entender as relações que
elas mantêm entre si e identificar as relações de gênero que operam
dentro delas (Connell, 1997).
Um dos principais aportes do trabalho de Connell é sua
contribuição para a distinção das múltiplas formas de masculinidade,
mediante a formalização do conceito de "masculinidade hegemônica"
como uma "configuração das práticas de gênero que buscam
assegurar a perpetuação do patriarcado e a dominação dos homens
sobre as mulheres" (Connell, 1995, p. 77). Para Connell (2014b), a
masculinidade hegemônica não é um tipo de personalidade imutável,
mas a masculinidade que está em posição hegemônica em uma
estrutura dada de relações de gênero, uma posição que está, além disso,
sempre sujeita a questionamentos. Como enfatizam Medin Hagege
e Arthur Vuattoux (apud Connell, 2014b, pp. 11-12), na introdução
do livro Masculinité: enjeux sociaux de l'hégémonie [Masculinidade:
questões sociais da hegemonia], esse conceito permite "construire une
réflexion sur les masculinités au semi'? des études de genre" [construir
uma reflexão sobre as masculinidades no seio dos estudos de gênero]
e a obra Masculinities [Masculinidades] vai "crístalliser des enjeux
politiques de posítionnement face aux détournements masculínistes du
concept [de masculinité hégémonique]" [cristalizar questões políticas
de posicionamento em face dos desvios masculinistas do conceito [de
masculinidade hegemônica]].
Nos anos 2000, a reflexão do filósofo e sociólogo britânico
Victor Seidler (1987; 2007) teve muito sucesso no mundo acadêmico
e militante. Seidler considera que trabalhos como o de Connell são
muito úteis para analisar, descrever e explicar as sociedades sexistas,
porém insiste na necessidade de melhor compreender a dinâmica da
emoção, da comunicação, do poder, das contradições da experiência
de vida dos homens e das demandas das novas gerações no contexto
atual (2007). Seu trabalho destaca uma forte identificação da
masculinidade dominante com a modernidade, marcada pela moral
protestante e pelo colonialismo. Ao mesmo tempo, mostra que a
masculinidade moderna, definida pelos homens das classes e raças
hegemônicas da época, foi intimamente ligada à razão instrumental,
em oposição à natureza e à emoção (1997).
A ênfase na racionalidade masculina permitiu estabelecer a
ideia de que os homens são seres racionais que podem legislar para
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 45

outros, mas sem levar em conta os grandes prejuízos que, segundo


Seidler, esta presunção trouxe para os próprios homens. Negando
para si mesmos o reconhecimento de sua dimensão corporal e
emocional, eles não sabem como integrá-la de maneira construtiva,
dando lugar algumas vezes a violências dirigidas contra outras
pessoas ou contra si mesmos. Para Seidler (2007), é preciso que os
homens redescubram seu corpo e sua emotividade, que desenvolvam
novas solidariedades entre eles, aprendam a cuidar de si mesmos
e a manejar seus sentimentos, sem delegar essa tarefa às mulheres
próximas. O autor propõe criar grupos de reflexão de homens, como
ferramentas de luta contra a desigualdade de gênero e contra o
isolamento individualista que lhes censura o afeto e a proximidade
entre homens.
A partir de finais dos anos 1970, alguns trabalhos sobre a
masculinidade também foram publicados na França. Eles foram em
sua maioria elaborados por autoras(es) que buscavam compreender
os efeitos dos questionamentos feministas sobre a identidade
masculina. Uma obra clássica deste tipo foi o trabalho acadêmico e
militante de Nadine Lefaucheur e Georges Falconnet, intitulado La
fabrication des Mies [A fabricação dos machos], publicado em 1975.
A partir da análise de trinta entrevistas e de quatrocentos anúncios
publicitários, o estudo buscou identificar "o conteúdo da ideologia
masculina" e explicar como se constrói a identidade social masculina
através das experiências masculinas no casal, no âmbito esportivo,
no exército etc. Um de seus principais méritos foi ter dado a palavra
a homens que questionavam os modelos de vida masculina. Neste
sentido, assinala Devreux (1999), a pesquisa antecipou alguns dos
temas que se tornariam centrais nos trabalhos posteriores sobre
os homens e se situou no marco de um projeto antissexista que
buscava traçar novas relações entre os homens, mas também com as
mulheres e as(os) filhas(os).
Durante as décadas de 1980 e 1990, algumas sociólogas,
antropólogas e psicólogas como Anne-Marie Devreux (1988; 1998;
1999), Huguette Dagenais (1998), Michèle Ferrand (1984), Christine
Castelain-Meunier (1988) e Pascale Molinier (1999), entre outras,
continuaram questionando sobre "o silêncio dos homens" e a
identidade masculina no mundo contemporâneo, e também sobre os
homens como seres sexuados e não como referências universais. Os
números especiais de revistas e eventos acadêmicos dedicados ao
46 I Mara Viveros Vigoya

tema da masculinidade e, a amiúde, das masculinidades no plural


se multiplicaram nestas décadas. Também foram realizados vários
programas de pesquisa sobre as violências masculinas (Welzer-
Lang; Barbosa & Mathieu, 1994) e sobre a virilidade defensiva nos
âmbitos profissional e doméstico (Dejours, 1993; Molinier, 1999;
2002), que ressaltam a centralidade do trabalho e da sexualidade no
sistema de gênero.
Muitos dos trabalhos franceses sobre as masculinidades
realizados por homens foram criticados por parte de suas colegas
feministas que tinham estudado o tema. Elas apontaram o foco
na noção de papel, no desconforto masculino e seu desinteresse
pelas práticas e representações dos homens como grupo social
dominante que gera e reproduz uma posição de dominação
(Devreux, 1999). Apesar de alguns trabalhos como os de Pascal
Duret (1999) ou de Christophe Dejours (1988) afirmarem que
a identidade masculina não podia escapar às relações de sexo,
continuavam, segundo Devreux, presos a uma conceptualização
das diferenças entre os sexos em termos de papéis, capazes de se
transformar sem afetar a estrutura e a relação social que os produz.
Paralelamente, esta socióloga questionou a equiparação entre as
especificidades femininas e as masculinas por desconhecer o que
a teoria feminista havia proposto ao longo de sua existência: se
os homens constituem uma categoria social de sexo específica
é porque estão coletivamente em posição de dominação em
relação às mulheres (Devreux, 1988). Para ela, e para o feminismo
materialista francês em geral, é fundamental reconhecer que, como
grupo social, os homens se beneficiaram da subordinação das
mulheres como grupo social, apesar das grandes disparidades que
existem nas vantagens atribuídas a certos homens ou subgrupos de
homens comparativamente a outros homens e às mulheres.
O trabalho de Pierre Bourdieu (1990; 1998) sobre a
dominação masculina merece uma menção particular entre os
estudos franceses sobre os homens e a masculinidade e na relação
entre esses estudos e o feminismo pela importância intelectual
e midiática do autor no panorama das ciências sociais. Bourdieu
introduz seu artigo "A dominação masculina" (1990) sublinhando
que "a suspeita preconceituosa que a crítica feminista lança
frequentemente sobre os escritos masculinos tem fundamento".
Esta primeira afirmação poderia levar a pensar que o autor vai
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 47

se afastar da tradição masculina do tratamento tendencioso do


tema para dialogar com os trabalhos feministas, criticando este
viés interpretativo. No entanto, a obra de 1998 suscitou muitos
dissabores nas leitoras feministas: as observações justas coabitam
com seus desacertos e seu desconhecimento da produção teórica
feminista, principalmente francesa, é flagrante.
Em La domination masculine [A dominação masculina],
Bourdieu realiza uma extensa e lúcida abordagem dos mecanismos
que subjazem de forma quase universal (aparentemente) a relação
de domínio dos homens sobre as mulheres. Ele constrói a reflexão a
partir da extrapolação de uma análise das relações homens-mulheres
na Cabila nos anos 1960, do estudo de uma das obras de Virginia
Woolf e da socioanálise de alguns dos principais postulados da
psicanálise. Não obstante, sua argumentação não supera as limitações
do "masculinismo teórico" 26 (Mathieu, 1999; Thiers-Vidal; 2002;
2004) de outros autores na "descrição do status quo" das mulheres e
em uma espécie de "reconhecimento e confirmação desse status quo".
Para Bourdieu, as mulheres feministas não dispõem de categorias
de análise da realidade social diferentes das que respondem à
ordem simbólica que se instaura sobre a diferença sexual, de forma
que não escapam à dominação que pretendem combater. Ele nunca
considera a possibilidade de abolir a masculinidade como forma de
subjetividade e prática de opressão; pelo contrário, tenta salvaguardá-
la, diferenciando-a da virilidade, que em sua "verdade de violência"
seria seu aspecto negativo (1998, p. 58).
Bourdieu (1990) considera necessário um equipamento
teórico diferente para dar conta da dominação masculina, mas não
enuncia claramente o que este seria e desenvolve pontos de vista
contraditórios. Por um lado, desnaturaliza o destino socialmente
atribuído às mulheres e, por outro, incorre em uma espécie de

" A partir da análise efetuada por Nicole-Claude Mathieu (1999), Léo Thiers-
Vidal (2004) resume o "masculinismo teórico" de Bourdieu da seguinte maneira:
ele ignora as contribuições do trabalho teórico fundador das teorias feministas
francófonas; privilegia a análise da dimensão simbólica da dominação masculina
em detrimento dos aspectos materiais da opressão das mulheres; apresenta, com
poucas exceções, uma visão desencarnada e despolitizada das relações sociais de
sexo; vitimiza e desresponsabiliza os homens; e, finalmente, recusa considerar
qualquer influência das circunstâncias histórico-materiais na forma pela qual os
homens pensam as relações sociais de sexo.
48 1 Mara Viveros Vigoya

naturalização da autoexclusão e da inclinação a "sucumbir à sedução


do poder", minimizando com um "realismo conservador" o alcance de
uma ação coletiva transformadora da qual os homens não poderiam
participar a não ser "escapando à armadilha do privilégio" (p. 30).
Além disso, ele critica algumas posturas feministas por tentarem
universalizar um particularismo, mas reconhece que os homossexuais
podem pôr a serviço do universalismo [...] as vantagens ligadas ao
particularismo" (Bourdieu, 1998, p. 134). Finalmente, a ruptura de
tom em seu "post-scriptum sobre a dominação e o amor" não deixa
de surpreender quando o autor pergunta se o amor é uma "exceção
à lei da dominação masculina" e "uma suspensão da violência
simbólica" (1998, p. 116). Ainda que seja apreciável seu desafio por
incluir o tema dos afetos e das emoções em sua reflexão acadêmica
sobre a dominação masculina - privilégio que uma pesquisadora
em ciências sociais não poderia exercer sem riscos de censura -, sua
explicação antropológica da "trégua milagrosa" da dominação que o
amor permitiria carece de clareza.
Na França, nos últimos dez anos, têm se desenvolvido
numerosos trabalhos e eventos acadêmicos sobre a masculinidade,
com diferentes perspectivas disciplinares e enfoques teóricos. Vale
a pena mencionar trabalhos históricos como o de George Mosse
(1997), o de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello
(2011) e seminários como a Journée d'études EFIGIES27 "Histoíre des
masculinités en France": 1789-1945 [Jornada de Estudos EFiGiES
"História das masculinidades na França": 1789-1945], realizado
em agosto de 2006. O primeiro dos trabalhos citados, L'image de
l'homme: l'invention de la virilité moderne [A imagem do homem: a
invenção da virilidade moderna], traça a evolução do estereótipo
masculino e sua ancoragem na história ocidental moderna desde o
nascimento da sociedade burguesa. Mosse se interessa pela relação
desse estereótipo com as convenções morais da modernidade, o
nacionalismo europeu, o fascismo e o nazismo e pela oposição entre as
masculinidades ideais do escoteiro, do ginasta, do soldado moderno
e do aventureiro, e as masculinidades estigmatizadas de judeus,
ciganos e homossexuais. O segundo trabalho, Histoire de la virilité
[História da virilidade], publicado posteriormente (2011), preenche

EFiGiES é uma associação de jovens pesquisadoras/es em Estudos Feministas, de


27

Gênero e Sexualidade com sede em Paris, França. (N.T.)


Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 49

um vazio existente na história cultural sobre as representações da


virilidade. Da Antiguidade grega e romana ao século XXI europeu,
o livro rastreia as variações temporais e os diferentes contextos de
uma matriz comum ao modelo de masculinidade que os autores
definem como um "ethos viril, hégémonique, fondé sur un idéal de force
physique, de fermeté morale, de puissance sexuelle et de domination
masculine" [ethos viril, hegemônico, fundado sobre um ideal de
força física, de firmeza moral, de potência sexual e de dominação
masculina]. Enquanto o livro de Corbin, Courtine e Vigarello atribui
pouca importância aos contrapontos críticos a esta matriz e às
relações entre a virilidade e o poder político (Edelman et al., 2012;
Molinier, 1999), o seminário sobre "A história das masculinidades
na França entre 1789 e 1945" propôs uma reflexão sobre os homens
enquanto categoria particular das relações de gênero e uma
leitura das construções, discursos, práticas e representações das
masculinidades que se articula às noções de dominação e de poder.
Para finalizar este percurso breve e parcial pelos trabalhos
sobre masculinidade em língua francesa, vou mencionar uma
das raras pesquisas sobre masculinidades contemporâneas na
África e uma compilação de trabalhos de geografia sobre o caráter
sexuado dos espaços e o conhecimento produzido sobre eles. O
primeiro trabalho é o número duplo 209-210 da revista Cahiers
d'études africaines [Cadernos de estudos africanos], coordenado
por Christophe Broqua e Anne Doquet (2013). Os artigos reunidos
questionam a pertinência do modelo binário masculino/feminino
para dar conta das masculinidades no continente africano. Mostram,
ao mesmo tempo, a ampla variabilidade das representações da
masculinidade e a influência do status social, do lugar na estrutura
do parentesco e, particularmente, o critério geracional nestas
representações. Igualmente, evidenciam as lógicas de gênero
implícitas nas violências masculinas, das quais os homens são, ao
mesmo tempo, sujeitos e objetos, e as disputas entre as diferentes
masculinidades para impor sua legitimidade.
O segundo trabalho também propõe novos questionamentos
sobre as masculinidades, desta vez no campo da geografia. Les
espaces des masculinités [Os espaços das masculinidades] (2012),
livro coordenado por Charlotte Prieur e Louis Dupont, analisa o
caráter sexuado da produção do saber na disciplina da geografia,
a produção relacional das masculinidades plurais e a questão do
50 1 Mara Viveros Vigoya

poder e da dominação masculina no e através do espaço. Esses


temas são explorados em terrenos e configurações identitárias
muito diversos: o Bosque de Vincennes, as prisões, Austrália e
Canadá, masculinidades normativas, homossexuais, trans, queer e
femininas. Os trabalhos em língua francesa, como os mencionados
nesta seção, contribuem para consolidar uma perspectiva relacional
que apreende o gênero como uma categoria fundamental de análise
e da transformação do social.

O surgimento das diferenças entre mulheres e sua relação com


a masculinidade

A partir da metade dos anos 1980, o eixo da discussão


feminista se deslocou em direção às diferenças entre as mulheres e
entre os homens (Fraser, 1997). Recordemos que, até este momento,
o debate havia privilegiado a oposição entre "a mulher" e "o homem",
deixando de lado a análise das diferenças entre mulheres e entre
homens, segundo classe social, pertencimento étnico e racial,
idade e orientação' sexual. Algumas das principais teóricas do Mack
Feminism, como Michelle Wallace (1978; 1982), Angela Davis (1981),
bell hooks (1981; 2015) e Audre Lorde (1984) examinaram de forma
crítica as dificuldades experimentadas por homens negros para
alcançar as metas que as versões hegemônicas da masculinidade
lhes impunham, sem deixar de lado as características sexistas de
certas formas de masculinidade negra.
Michelle Wallace, por exemplo, começa seu livro Black
macho and the myth of the superwoman [O macho negro e o mito
da supermulher] (1978) afirmando que os homens afro-americanos
foram despojados de sua masculinidade pela supremacia branca.
Por esta razão, argumenta que o cartaz que dizia Iam a man [Eu sou
um homem] que os coletores de lixo mobilizados por Martin Luther
King carregavam em 1968 não era uma afirmação tautológica, mas
uma reivindicação de seu direito à dignidade humana. Por outro
lado, segundo Wallace, durante o período do movimento Black
Power, "muitos homens afro-americanos chegaram a crer que a
masculinidade e a autoridade masculina sobre as mulheres eram
parte essencial de sua liberação" (Wallace apud Gardiner, 2005, p. 43).
Em texto posterior, A black feminist's search for sisterhood [A busca
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 51

de uma feminista negra por sororidade] (1982), Wallace questiona


o sentido de ser mulher quando se é uma mulher negra, lembrando
com veemência os preceitos que os homens negros revolucionários
impunham às suas irmãs nos campi universitários dos anos 1970,
para que se mantivessem em "seu lugar". Ela recorda também
como as mulheres brancas e os homens negros se iludiram com as
possibilidades de emancipação que o encontro amoroso inter-racial
podia significar, como se ter estas relações sexuais e proclamá-las
fosse uma expressão suficiente de luta contra o racismo e o sexismo.
A autora assinala que, embora as relações amorosas inter-raciais
possam efetivamente ser uma expressão antirracista, não o são por
natureza e não podem sê-lo se não questionam o racismo como um
fenômeno estrutural?'
Em Talking back: thinking feminist, thinking black [Retrucando:
pensando feminista, pensando negra], bell hooks (2015) enfatizou a
necessidade de lutar contra a dominação sexista dos homens negros
sobre as mulheres negras, dentro e fora da família, e a importância
de evidenciá-los nos escritos das mulheres negras. Também afirmou
a necessidade de redefinir os termos do movimento de liberação
negro de um modo não sexista e revolucionário. Hazel Carby (1987),
na mesma linha, questionou a pertinência de certos conceitos como
o de patriarcado para tratar das experiências de gênero das pessoas
negras e pobres. Ela observa, por exemplo, que nem todas as mulheres
são dominadas por todos os homens e sublinha que o tratamento
diferenciado dos homens negros em um regime imperial ou colonial
- que se traduz em um maior desemprego que o das mulheres
negras - evidencia a inadequação do conceito de patriarcado para
explicar por que os homens negros nunca obtiveram os benefícios
do patriarcado branco.
Enquanto a estratégia feminista branca foi separatista, a das

28Na França, em uma entrevista dada a Vacarme (http://www.vacarme.org/


article2738.html), Houria Bouteldja tem uma posição similar, ainda que referida
a outro contexto, quando observa: "Je ne crois pas que cette question [Ia mixité] se
résolve au niveau do couple, elle se résout au niveau dela société et plus exactement au
niveau du politique Ça se résout au niveau dela transformation des rapports sociaux,
pas au níveau de l'amour ou des relations interpersonnelles" [Eu não acredito que esta
questão [a mistura] se resolva no nível do casal, ela se resolve no nível da sociedade
e mais precisamente no nível da política. Isso é resolvido com a transformação das
relações sociais, não no nível do amor ou dos relacionamentos interpessoais.] (N.T.)
52 I Mara Viveros Vigoya

feministas de cor tomou outro caminho, como o exemplifica muito


bem o Manifesto do Coletivo do Rio Combahee em 1974.29 Nele, o "luxo
do separatismo branco" é recusado em benefício da solidariedade
com os homens negros, pois, como as mulheres, eles são vítimas da
discriminação racial. O coletivo destacou a necessidade de constituir
um espaço político de alianças e lutas comuns que incluía os homens
racializados, para combater não somente a dominação de gênero
e de classe, mas também o racismo e o heterossexismo. Propôs-
se desenvolver uma análise e uma prática baseadas no princípio,
segundo o qual, a imbricação dos sistemas de opressão racial, sexual,
heterossexual e de classe tornava difícil sua distinção na experiência
concreta das mulheres racializadas. Uma das contribuições mais
importantes do Black Feminism à desnaturalização das categorias de
raça e sexo foi sua oposição a todo tipo de determinismo biológico
e, nesse sentido, também à essencialização dos homens por sua
condição biológica. As mulheres negras têm tido consciência de que
as experiências das mulheres e dos homens negros estão unidas por
solidariedades objetivas e subjetivas, ainda que isso não signifique
que as mulheres negras devam descuidar-se ou tolerar mais o
sexismo dos homens negros que o dos demais.
A esses postulados se somaram as reflexões propostas
pela critica pós-colonial que coincidiu com o Black ferninism em
sua análise da masculinidade como construção histórica e cultural
especifica. Diferentes autoras e autores argumentaram que, nos
contextos coloniais, a masculinidade não podia ser analisada como
uma simples transposição de um modelo construído na metrópole
e exportado para as colônias, mas como uma configuração de
gênero na qual se entrecruzam diferentes eixos de poder (classe,
raça, status etc.)" e diversas dinâmicas que vinculam colonialismo

29 Esta Declaração é de uma organização feminista lésbica radical que recebeu


o nome de uma ação de libertação de 750 escravas(os) conduzida por Harriet
Tubman em 1863 em Combahee River. A Declaração manifestava a vontade delas
de lutar simultaneamente contras as diferentes formas de opressão: racial, sexual,
heterossexual e de classe.
3 ° Africanos, árabes, asiáticos ou nativos americanos nunca constituíram grupos

homogêneos, diferente dos colonizadores. Os primeiros foram feminizados ou


hipervirilizados com base em seu status de colonizados e para responder às
necessidades específicas de cada processo colonial. Os homens colonizados nunca
foram os que definiram a masculinidade ideal, mas aqueles cuja "masculinidade"
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades j 53

e nacionalismo, sociedades coloniais e metropolitanas (Sinha,


1995; Stoler, 2002; Ouzgane & Morra 2005). Ou seja, atribuiu-se
à masculinidade um caráter histórico, dependente das mudanças
econômicas, políticas e culturais trazidas pelas formações sociais
coloniais e pós-coloniais.
Em conformidade com as propostas de Connell (2013),
penso que um melhor conhecimento da história do colonialismo,
das sociedades pré-coloniais e de suas dinâmicas de gênero leva a
reconhecer que não se pode pressupor a existência de uma ordem
de gênero pré-colonial estável. Em primeiro lugar, porque as ordens
de gênero pré-coloniais nunca foram estáticas e, em seguida, porque
se deve considerar as tensões contínuas e violências associadas
às mudanças trazidas pelo colonialismo, que reconstruíram uma
ordem de gênero e relações entre masculinidades conformes às
suas próprias necessidades. As relações de poder pós-coloniais
globalizadas reproduzem e rearticulam essas dinâmicas e esses
conflitos em novos termos, como no caso das violências masculinas
contra as mulheres.
Nesse sentido, não se deve incorrer nem no universalismo
etnocêntrico nem na colonização discursiva de muitas análises
feministas ocidentais a-históricas quando descrevem, por
exemplo, como observa Mohanty (1988), as mulheres do Terceiro
Mundo como vítimas eternas dos homens de suas comunidades,
definidos como "naturalmente" violentos e menos civilizados que
os homens dos países ditos desenvolvidos. No caso francês, Nacira
Guénif-Souilamas e Eric Macé (2004) assinalaram a existência de
um feminismo canônico, insensível às discriminações raciais, que
construiu e desenvolveu sua retórica republicana em oposição a
duas figuras paralelas: a do rapaz árabe e a da mulher com véu.
A identidade do rapaz árabe é reduzida a sua estrita dimensão
viril e ele é descrito como sexista e violento, enquanto a jovem
mulher que utiliza o véu é identificada a uma mulher submissa e
alienada. Para os dois autores, é importante visibilizar os vínculos
entre essas figuras e um imaginário colonial persistente e
reatualizado "na hipermodernidade individualista e democrática
contemporânea" (p. 21).

foi constantemente submetida a uma avaliação baseada em critérios determinados


pelos colonizadores e inscritos em seu discurso de dominação (Joly, 2011).
54 1 Mara Viveros Vigoya

Em uma perspectiva literária, a célebre escritora feminista


chicana Cherríe Moraga (2004) nos oferece outro exemplo dessa
vontade de ultrapassar o essencialismo etnocêntrico com o qual são
descritos os homens chicanos. Em sua peça Shadow of a man [Sombra
de um homem], a dramaturga explora as especificidades do conceito
de masculinidade na cultura chicana e a forma pela qual as relações
de gênero impostas por esta sociedade se revelam destrutivas
e opressivas para as mulheres, mas também para os homens. Sua
proposta teatral tenta levar o público/leitor a reagir ante os modelos
de comportamentos sexuais hegemônicos desta sociedade e a querer
erradicá-los para construir uma nova comunidade chicana, a partir
de uma perspectiva mais centrada nas mulheres, na qual homens e
mulheres possam lutar conjuntamente.

Masculinidades sem homens?

A partir dos anos 1990, as jovens gerações da chamada "terceira


onda do feminismo" começaram a privilegiar os estudos não "da",
mas "das" sexualidades no plural, criticando o caráter binário dos
sexos, instituído pelo gênero, no qual estaria supostamente fundado o
pertencimento a uma humanidade comum. Demonstrando que o caráter
binário do gênero era produto da heterossexualidade institucionalizada,
o movimento "trans" - que engloba transexuais, pessoas transgêneras,
travestis, feminilidades masculinas, masculinidades femininas etc. -
ganhou uma grande importância. Para teóricas como Judith Butler
(1990), este movimento, revela a existência de normas de gênero
habitualmente invisíveis (Fassin, 2008) e manifesta paradigmaticamente
não a conformidade, mas a perturbação do gênero. Na perspectiva
teórica de Butler, a masculinidade e a feminilidade são posições
vazias que não correspondem aos homens e às mulheres. Há também
masculinidades sem homens, como mostram as subculturas lésbicas
como as dos drag kings, das butches, das caminhoneiras, das garçonnes
francesas dos anos vinte e das lésbicas leather (Rubin, 2010). 31

31Os drag kings são, em geral, mulheres artistas que fazem performances do
gênero masculino. O termo butch (literalmente "machão —) se refere a uma mulher
lésbica que se comporta ou se veste de forma muito masculina. As garçonnes eram
mulheres que, na Paris dos anos 1920, rebelando-se contra as normas dominantes
de feminilidade, adotaram visual andrógino. As lésbicas leather (do inglês "couro")
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 55

Essas subculturas foram pouco estudadas e invisibilizadas


por razões ideológicas, como elucida Judith (hoje, Jack) Halberstam,
quando afirma: "Creio que esta indiferença generalizada para com a
masculinidade feminina tem claras motivações ideológicas e serviu
de apoio a complexas estruturas sociais que vinculam o masculino
à virilidade, ao poder e à dominação" (2008, p. 24). Em seu livro
Masculinidad femenina (2008), Halberstam analisa alguns exemplos
de masculinidade feminina no cinema e na cultura contemporânea
para compreender como a masculinidade dominante dos homens se
constrói como o referente autêntico e verdadeiro e as masculinidades
femininas como "as sobras desprezíveis da masculinidade
dominante" (2008, p. 23). Penso com Halberstam que a construção
identitária das masculinidades femininas exprime, mais que o desejo
feminino de se tornar um homem, a vontade de sair do modelo
rígido de masculinidade ou feminilidade e criar masculinidades e
feminilidades alternativas. Muitos casos analisados enfraquecem os
modelos de masculinidade e feminilidade hegemônicas e exploram a
dimensão performativa da masculinidade, pouco abordada até aqui.
A cultura drag king, por exemplo, torna cada vez mais evidente a
teatralidade e a encenação das quais a masculinidade hegemônica,
principalmente branca," depende para se construir.
Para os homens, inclusive homossexuais, a cultura drag king
gera o que Halberstam chama de uma "ansiedade de performance"
para se referir ao "medo neurótico de mostrar a teatralidade
masculina" (2008, p. 262). A masculinidade dominante se construiu
sobre a falsa premissa de sua oposição à feminilidade e, em troca, a
feminilidade se construiu sobre a falsa premissa de uma teatralidade

participam de uma subcultura que adota práticas e instrumentos (tais tomo a


dominação, a submissão, o sadomasoquismo, o uso de roupas e acessórios de couro,
entre outros) com fins sexuais. (N.T.)
" É importante assinalar que Halberstam diferencia a imitação de homens brancos
da de homens negros e latinos: "Por outro lado, ainda que a masculinidade branca
pareça ser algo facilmente acessível à paródia dos drag kings, as masculinidades
negras ou queer são, amiúde, interpretadas pelos drag kíngs com uma intenção de
homenagem ou aceitação, não humorística (2008, p. 262). Poderíamos dizer, então,
que há nesse trabalho de enfraquecimento da masculinidade branca dominante,
uma espécie de solidariedade dos excluídos desses poderes hegemônicos: os
homens negros e latinos hipersexualizados, ou ainda as mulheres dessexualizadas,
sempre com o fim de justificar a opressão, a colonização e a escravização das quais
eles e elas têm sido o objeto".
56 1 Mara Viveros Vigoya

natural. Portanto, se as mulheres são "por natureza" teatrais e


os homens são "por natureza" opostos às mulheres, apontar a
teatralidade do masculino, para Halberstam, romperia o modelo
binário antagônico sobre o qual têm se construído essas identidades
de gênero impostas e os modelos rígidos de todos os gêneros e todas
as orientações sexuais."
Marie-Hélène (hoje, Sam) Bourcier e Pascale Molinier (2008)
propõem um contraponto ao já clássico trabalho de Halberstam, no
número 45 dos Cahiers du genre [Cadernos do gênero], intitulado de
forma sugestiva Les fleurs du mâle: masculinités sans hommes? [As
flores do macho: masculinidades sem homens?]." As autoras afirmam
na introdução que embora a estratégia metodológica de Halberstam,
focalizada na diversidade de "masculinidades sem homens"" tenha
sido importante em seu momento, deixou de lado as diferenças,
hoje reivindicadas, "entre essas masculinidades femininas e as
masculinidades trans emergentes de então" (p. 7). Muitos homens
trans "não apenas viam claramente a ligação entre a masculinidade
biológica e as masculinidades que eles construíam, mas desejavam
essa ligação" (p. 8). 36 Bourcier e Molinier vão mais além da produção
sobre as culturas drag king sem ignorar sua contribuição à crítica ao
sistema heteronormativo; elas reúnem trabalhos contemporâneos
que compartilham uma postura epistemológica e política situada,
cujos autores, que se autorreconhecem como parte da comunidade
queer ou trans, criticam os limites do sistema binário de sexo/gênero.
A seleção de artigos das coordenadoras desse número dá conta do
impulso que trazem "os estudos trans e as transmasculinidades ao
33 Nas palavras de Halberstam: "A concepção da feminilidade das mulheres como
um derivado nos lembra da opinião generalizada sobre o lesbianismo como um
derivado ou não autêntico. [...] No entanto, as performances drag king proporcionam
às intérpretes lésbicas (ainda que, de nenhum modo, todos os drag kings sejam
lésbicas) a rara oportunidade de mostrar o artifício de todos os gêneros e de todas
as orientações sexuais e, portanto, de questionar essa falta de autenticidade da qual,
em geral, só se acusa a identidade lésbica" (2008, p. 267).
34 Com este titulo, as autoras fazem referência à obra clássica de Charles Baudelaire,

Les fleurs do mal [As flores do mal], jogando com a homofonia das palavras mede
[macho] e mal [mal] em francês. (N.T.)
" Como sua resistência "em converter a masculinidade no termo geral de uma
conduta associada aos homens" (Halberstam, 2008, p. 268).
" "Non seulement voyaient clairement le Hen entre la masculinité biologique et les
masculinité qu'il construisaient, mais as désiraient ce lien".
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 1 57

projeto teórico da interseccionalidade [...] pondo em crise o sistema


sexo/classe/raça (p. 12). 37
Paul (antes, Beatriz) Preciado é outro autor importante do
campo dos estudos queer por suas reflexões sobre a construção
social e política do sexo. Em seu livro Testo Yonqui, publicado também
em 2008, analisa as estruturas políticas e de poder que estabelecem
e determinam a experiência corporal das pessoas e, por conseguinte,
seu papel social. Para o autor, no mundo contemporâneo, essas
estruturas se assentam em um modelo capitalista, cujos dois pilares
fundamentais são a indústria farmacêutica e a pornografia. Em
paralelo, descreve seu próprio processo de autoadministração de
testosterona, como "um protocolo de intoxicação voluntária à base
de testosterona sintética" que desafia ditas estruturas.

Conclusão

Os estudos sobre masculinidades irromperam no mundo


acadêmico em meados dos anos 1970, quando algumas instituições,
como a Universidade da Califórnia, em Berkeley, ministraram cursos
sobre o tema. No entanto, não foi senão na década de 1990 que
se consolidou um novo campo de estudos acadêmicos (Armengol
& Carabí, 2008). Nesse decênio, alguns antigos departamentos
de estudos da mulher nos EUA (os da Universidade de Indiana,
Rutgers ou da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, por
exemplo) começaram a incluir tanto os estudos gays como os de
masculinidades em seus currículos e foram renomeados como
departamentos de estudos de gênero. O início de um programa de
mestrado em estudos de masculinidades na Universidade Stony
Brook em Long Island, Nova York, foi recentemente anunciado
pelo sociólogo Michael Kimmel, fundador e diretor do Centro para
Estudos do Homem e da Masculinidade dessa mesma universidade
(New York Times, 8 ago. 2015).
Kimmel (2008, p. 19) propõe dois argumentos para justificar
os estudos de masculinidade como uma importante contribuição
aos estudos de gênero e como um cenário possível de mudança

37 "Les études trans et les transmasculinités au projet théorique de l'intersectionnalité,

b.d en mettant en crise le système sexe/classe/race".


58 1 Mara Viveros Vigoya

dos modelos de gênero. De um lado, apresenta a necessidade de


questionar e transformar os mecanismos pelos quais se cria e se
reproduz a masculinidade, e de outro, a importância de entender
que "a maioria dos homens, apesar de todo o poder que têm sobre
as mulheres", não se sentem poderosos hoje. Seus trabalhos sobre a
violência dos homens contra as mulheres destacam que os homens
não batem nas mulheres quando se sentem poderosos, mas quando
se sentem impotentes ou não gozam dos direitos que acreditam
ser seus. Se fazemos o paralelo desta reflexão com a distinção
estabelecida por Clarisse Fabre e Éric Fassin (2003) entre uma
dominação masculina "tradicional" e uma dominação moderna
"reacionária", a análise de Kimmel ganha em complexidade.
Na atualidade, alguns grupos de homens que pretendem
proteger os direitos de seus congêneres daquilo que chamam
de "os excessos do feminismo" têm ganho maior visibilidade em
diferentes países do mundo (Zemmour, 2006; Soral, 2007; Benatar,
2012; entre outros). Para Fassin, a dominação masculina moderna,
diferentemente da tradicional, não se funda unicamente sobre o
antigo pressuposto da desigualdade entre os sexos, nem sobre a
perpetuação de uma ordem patriarcal intangível e imemorial: ela
se define, pelo contrário, "em reação" ao questionamento dessa
ordem pelas reivindicações de liberdade e igualdade do feminismo
e do movimento social gay e lésbico (Fabre & Fassin, 2003, p. 42)
e constitui, neste sentido, um fenômeno de ressaca que pretende
impedir o sucesso da empreitada. Embora a dominação masculina
tradicional pressuponha o poder masculino, a dominação reacionária
traduz, pelo contrário, um sentimento de perda de poder e uma
reação defensiva frente a essa experiência de enfraquecimento.
Os Men's studies [Estudos sobre homens], que apregoam as
feridas dos homens em sua infância e deixam intacto e inexplorado
o privilégio masculino das classes altas brancas dos países do
Norte Global, mostraram rapidamente seus limites analíticos e
suas carências perante o que seria um projeto teórico, político e
ético feminista emancipador. Vale a pena também assinalar os mal-
entendidos que se produziram nos programas de desenvolvimento
quando a perspectiva "Mulheres e desenvolvimento" foi substituída
por aquela, mais ampla, do "Gênero e desenvolvimento",
supostamente preocupada com um maior equilíbrio entre homens
e mulheres e com a inclusão dos homens nos programas. Embora,
Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades 59

como argumentam Christine Verschuur (2009), Agnès Adjamagbo e


Thérèse Locoh (2015), fosse necessário se interessar pela construção
da masculinidade para compreender melhor as interações entre
homens e mulheres em diferentes momentos históricos e contextos
sociais e culturais variados, na prática a análise crítica dessa
construção foi tão rara que, em termos de integração do gênero nos
programas de desenvolvimento, a política do pender mainstreaming
se converteu, muitas vezes, em pender menstreaming."
O feminismo se diferenciou energicamente dos masculinist
men's studies [Estudos masculinistas sobre homens] e do pender
menstreaming e acolheu com simpatia os esforços pró-feministas
dos homens (Gardiner, 2005, p. 47). Os estudos das masculinidades
realizados por homens que buscam se diferenciar dos enfoques
masculinistas das relações sociais de sexo devem partir de uma
tomada de consciência radical das implicações epistemológicas,
psicológicas e afetivas de sua posição sociopolítica dominante
na ordem do gênero (e da sexualidade) (Thiers-Vidal, 2002;
2004). Igualmente, devem assumir uma perspectiva que acolha as
premissas teórico-políticas .e éticas do feminismo contemporâneo:
sua abordagem do gênero como sistema heteronormativo e binário
que descreve as dominações; sua concepção de gênero como uma
categoria relacional que dá conta de uma ampla dinâmica social na
qual formas de dominação interagem em diferentes escalas (macro e
micro); e, enfim, sua busca por alianças com outros movimentos pela
justiça social e pela "pluriversalidade" que permitam a cada uma e a
cada um desenvolver a multiplicidade de vidas possíveis.

38Jogo de expressões entre Transversalização de gênero e Homensalização de gênero


(cuja tradução faz perder a assonância entre men [homens] e main [principal,
central] que se escuta na língua inglesa). (N.T.)
2. TRINTA ANOS DE ESTUDOS SOBRE HOMENS E
MASCULINIDADES NA NOSSA AMÉRICA

Diferentemente do contexto norte-americano, em quase


todos os países da Nossa América, os estudos sobre homens e
masculinidades foram iniciados por mulheres provenientes do
feminismo. Apenas mais tarde homens, fortemente marcados
pelas teorias e práticas feministas, se interessaram por eles,
por isso a expressão "a costela de Eva" foi empregada pelo
psicólogo e antropólogo Rodrigo Parrini (2000) para dar conta
do processo seguido por este campo na América Latina. O tema
das masculinidades 39 chegou aos currículos universitários graças
ao impulso de algumas feministas acadêmicas implicadas na
institucionalização dos estudos de gênero em várias universidades
da região. Paralelamente, boa parte dos grupos de trabalho com
homens ao longo dos anos 1990 no México, Argentina, Brasil e
Colômbia, concebiam a busca de igualdade de gênero a partir de
uma perspectiva feminista (Faur, 2004; Garcia, 2015).
As pesquisas centradas nos homens e nas masculinidades
realizadas na região têm adotado principalmente a perspectiva
da antropologia, da sociologia, da psicologia social, disciplinas
que se construíram "no marco de uma episteme metropolitana"
(Connell, 2015a, p. 148) e, mais recentemente, a partir da saúde
coletiva," campo de conhecimento desenvolvido na América
Latina nos anos 1990.
Ao passo que os dois paradigmas teóricos até então

" Ver a esse respeito a compilação interessante e muito detalhada que apresentam
Teresa Valdés e José Olavarria (1997) na introdução de seu livro Masculinidad-
es: poder y crisis [Masculinidade/s: poder e crise]. Igualmente, a apresentação de
Homens e masculinidades: outras palavras escrita por Margareth Arilha, Sandra
Unbehaun Ridenti e Benedito Medrado (1998).
4° Nos últimos dez anos, a produção de trabalhos sobre as masculinidades e os
homens tem crescido nas revistas acadêmicas de saúde, especialmente no Brasil,
devido, entre outras razões, ao surgimento do campo de estudos conhecido como
Saúde coletiva. Este campo, desenvolvido na América Latina, buscou superar o
determinismo biológico de muitos enfoques de saúde pública através de uma
perspectiva multidimensional da saúde que integrasse a dimensão política do
trabalho médico.
62 1 Mara Viveros Vigoya

dominantes, o funcionalismo norte-americano e o marxismo em suas


diferentes versões, estavam em crise na América Latina dos anos
1970, novos movimentos sociais, entre os quais, o feminismo, abriram
caminho para a renovação de argumentos teóricos, paralelamente à
perda da centralidade da classe social como categoria analítica.
Simultaneamente ao surgimento de novos movimentos
sociais, a discussão sobre a lógica econômica mundial e as
implicações do capitalismo global para as economias ditas "menos
desenvolvidas" se tornou mais aguda a partir dos anos 1990. Também
ocorreram duas mudanças estruturais nas ordens políticas latino-
americanas. Em primeiro lugar, aquela da "virada à esquerda" 41 da
maioria dos países da região, uma tendência que, mesmo tendo sido
dominante, não pode ser interpretada de forma homogênea como
indica Soledad Stoessel (2014). O chamado "socialismo do século
XXI" não representou uma mudança uniforme das relações sociais
em todos os países da região e os avanços têm concernido mais ao
reconhecimento da diversidade étnica (cuja expressão paradigmática
foi a chegada ao poder de Evo Morales, como primeiro presidente
indígena)» que à redistribuição econômica ou à defesa dos direitos
das mulheres e da diversidade sexual. 43
A segunda transformação estrutural latino-americana
que merece destaque é o reconhecimento da plurietnicidade e
multiculturalidade da região, fruto das lutas dos movimentos
sociais indígena e negro, em sinergia com as reações internacionais
perante a uniformização cultural que acompanha os processos de

41 A "virada à esquerda" é o conceito utilizado pelas ciências políticas para designar


a chegada ao poder de governos de esquerda e de centro-esquerda no continente.
Até o ano de 2016, onze países latino-americanos contavam com governos de
esquerda: Evo Morales na Bolívia; Dilma Rousseff no Brasil; Michelle Bachelet
no Chile; Luis Guillermo Solís na Costa Rica; Rafael Correa no Equador; Salvador
Sánchez em El Salvador; José Daniel Ortega na Nicaragua; 011anta Humala no Peru;
Danilo Medina na República Dominicana; Tabaré Vázquez no Uruguai; e Nicolás
Maduro na Venezuela. Nos últimos dois anos, ao contrário, o panorama político da
região tem sofrido uma "virada à direita", cujos efeitos sociais valerá a pena analisar
posteriormente.
42 Alguns trabalhos políticos designam Benito Juárez, que presidiu o México em
várias oportunidades entre 1857 e 1872, como o primeiro presidente indígena da
região.
43 Razão pela qual questões tão controversas como o aborto e/ou o casamento

igualitário têm tido respostas muito diferentes de um país para o outro.


Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 63

globalização. Uma grande parte dos Estados latino-americanos


integraram a multiculturalidade em suas Cartas Constitucionais."
Esse multiculturalismo estatal tem sido criticado por seus efeitos,
principalmente a invisibilização das demandas e mobilizações
políticas que não se reivindicam como étnicas ou culturais (Viveros,
2013a). Além disso, as oportunidades sociais e teóricas abertas pelo
multiculturalismo colidiram muito rapidamente com os estreitos
limites das políticas econômicas impostas pelo neoliberalismo.
Nesse contexto, a igualdade de gênero se converteu em fórmula vazia
em sociedades que, em muitos casos, acentuaram suas divisões e
desigualdades, mascarando a complexidade da trama das relações
sociais de que padecem as mulheres, principalmente as pobres,
residentes em áreas rurais, de grupos étnicos e de menor idade.
Diferentes perspectivas teóricas têm se desenvolvido
para abordar a multiplicidade e a simultaneidade das opressões
que configuram as experiências das mulheres "nossamericanas".
A primeira, que, há alguns anos, costumamos chamar de
"interseccionalidade", 45- constitui uma abordagem-chave para
pensar a "diferença", a diversidade e a pluralidade. A seguir,
a perspectiva "decolonial" busca entender e explicar as
especificidades das dinâmicas de gênero nos contextos coloniais
e pós-coloniais da região (Lugones, 2008) e, ao mesmo tempo,
questiona a persistente colo nialidade do poder, do saber e do ser. 46
Por último, uma perspectiva "feminista comunitária" 47 busca ir além
da lógica de reivindicação das mulheres confrontadas aos homens

" Como resultado de tais movimentos sociais e processos internacionais, a maior


parte dos Estados latino-americanos (Nicarágua, Brasil, Colômbia, México, Paraguai,
Peru, Bolívia, Equador e Venezuela) promulgaram novas constituições que os
reconhecem como nações pluriétnicas e multiculturais.
45 Ainda que pareça inovadora, muitos trabalhos feministas já tinham abordado esta

perspectiva na América Latina antes que ela recebesse esse nome (Viveros, 2015).
46 A colonialidade denota uma ideologia advinda do colonialismo, capaz de gerar

seu próprio sistema de relações de poder específicas e diferenças entre indivíduos.


Nos termos de Nelson Maldonado-Torres (2007, p. 131), a colonialidade "se refere à
forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas
se articulam entre si, através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça".
47 O Feminismo comunitário é um movimento que nasceu das lutas das militantes

bolivianas da associação Mujeres Creando Comunidad [Mulheres criando


comunidade] e que denuncia, ao mesmo tempo, o patriarcado e o colonialismo do
olhar europeu sobre o continente americano.
64 1 Mara Viveros Vigoya

para pensar a relação de homens e mulheres com sua comunidade


e para constituir uma alternativa à sociedade e ao pensamento
individualistas (Paredes, 2010).
Dessa forma, nos últimos vinte e cinco anos, "um objeto de
estudo suficientemente claro, núcleos temáticos e a acumulação
de uma importante produção de conhecimento" sobre homens e
masculinidades (Gomáriz, 1997, p. 9) tem se configurado na região
em maior ou menor diálogo com essas diferentes perspectivas
teóricas que têm visibilizado a opressão das mulheres na ordem
patriarcal, as opressões racistas e colonialistas, o eurocentrismo
acadêmico e o neoliberalismo econômico.
No entanto, grande parte desses trabalhos escritos em
espanhol são completamente desconhecidos nos contextos
acadêmicos estadunidenses e europeus, que ignoram as
contribuições realizadas em outros lugares e escritos em idiomas
diferentes do inglês. Quem produz o conhecimento, quais são os
saberes válidos e legítimos em um campo de conhecimento e quem
detém o poder de definir as problemáticas: são questões sempre
relevantes. Os estudos feministas e de gênero e, dentre eles, os
estudos sobre homens e masculinidades não escapam a essas
assimetrias da produção e da difusão do conhecimento. Esta é uma
das razões pelas quais considero pertinente consagrar um capítulo
inteiro à produção "nossamericana" sobre o tema, as suas distintas
aproximações teóricas e as suas áreas temáticas.

O que se estuda ao se estudar os homens e as masculinidades na


Nossa América?
As pesquisas sobre os homens e o masculino na região são
muito heterogêneas. Os primeiros trabalhos centravam a análise no
machismo definido como o culto da virilidade, integravam pesquisas
sobre grupos domésticos 48 ou sobre a socialização de meninos
e meninas em diferentes contextos sociais. Os problemas mais

48 Os trabalhos sobre a personalidade masculina e feminina em diferentes


contextos culturais familiares (Gutiérrez de Pineda, 1994; Dussán de Reichel,
1954) constituíram, na Colômbia, uma base importante e documentada para os
estudos posteriores sobre a configuração dos papéis femininos e masculinos nesta
sociedade,
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 65

frequentes dos trabalhos dos anos 1950 e 1960 sobre o machismo


eram seu caráter descritivo, a tendência para tratar o machismo do
ponto de vista do indivíduo, destacando os aspectos patológicos e
negativos, e a perpetuação de uma imagem estereotipada do homem
latino-americano, particularmente do camponês e do operário
(Ramírez, 2005). Em contraste com as deficiências dessa literatura,
outro tipo de pesquisas sobre masculinidade se desenvolveu a partir
da década de 1980, incorporando as contribuições acadêmicas do
feminismo à compreensão da construção cultural do gênero, dos usos
da sexualidade e das relações inter e intragênero (Gomáriz, 1992). A
partir desse momento, se têm publicado mais livros e artigos sobre
os homens e as masculinidades e também têm se multiplicado os
encontros integrando esta problemática como tema de reflexão e
discussão (Garcia, 2015). Em paralelo, no nível institucional, tanto as
organizações não governamentais como os programas de estudos de
gênero incorporaram a temática da masculinidade em suas políticas,
programas e ações."
Essa crescente presença do masculino em pesquisas,
programas universitários e organizações sociais dá conta da força das
transformações nas relações de gênero na região. De certa forma, já
é um lugar comum a referência à dita "crise da masculinidade" como
expressão das tensões entre os atributos culturalmente designados
aos homens e as reações subjetivas às importantes mudanças sociais,
econômicas e ideológicas protagonizadas pelas mulheres (Gutmann,
1999; Valdés & Olavarría, 1997; Viveros, 1997).
Examinarei agora como tem sido abordado o tema na Nossa
América a partir dos anos 1980. Os trabalhos analisados constituem
pontos de referência parciais em relação ao conjunto da produção
acadêmica sobre o tema no continente. Busco oferecer informações
úteis sobre alguns debates em torno das masculinidades realizados
nos últimos trinta anos e estimular a discussão e a análise do processo
de construção desta produção teórica. Minha revisão da literatura

49Ver os trabalhos de Teresa Valdés e José Olavarria e de Margareth Arilha, Sandra


Unbehaun Ridenti e Benedito Medrado antes mencionados na primeira nota deste
capítulo. No México, tem sido muito importante a reflexão de Ana Amuchastegui
(2001) acerca da pesquisa sobre homens e masculinidade. Vale a pena assinalar
que, no Chile, se levou a cabo um dos programas de pesquisa e documentação sobre
homens e masculinidades mais longos do mundo nas últimas décadas (Connell,
2015a, p. 142).
66 1 Mara Viveros Vigoya

passou por duas grandes etapas. A primeira deu origem a um estado


da arte publicado em 2002 compreendendo os trabalhos realizados
entre 1980 e 1990 (Viveros, 2002); a segunda etapa compreende os
últimos quinze anos e se centra na análise de artigos acadêmicos" e
dos anais dos cinco Colóquios internacionais de estudos sobre homens
e masculinidades realizados em diferentes países da região.
Estes colóquios constituíram um desafio importante
para dar a conhecer as tendências da pesquisa sobre homens e
masculinidades na região. O primeiro, realizado em 2004 em Puebla,
México, teve como tema o questionamento do androcentrismo
nas ciências sociais e deu lugar, dois anos depois, à publicação
da revista virtual, La Manzana: Revista Internacional de Estudios
sobre Masculinidades" [A Maçã: Revista Internacional de Estudos
sobre Masculinidades]. Em 2006, o segundo Colóquio, igualmente
realizado no México, se chamou "Violência: o jogo do homem?" e
dele surgiu o livro Masculinidades: el jueg o de género de los hombres
en el que participan las mujeres [Masculinidades: o jogo de gênero
dos homens do qual participam as mulheres], editado por Juan
Carlos Ramírez e Griselda Uribe. Em 2008, realizou-se o terceiro
Colóquio, em Medellín, Colômbia, sobre o tema "Masculinidades e
multiculturalismo: perspectivas críticas. A diversidade constrói a
equidade?"." Em 2011, o quarto Colóquio em Montevidéu, Uruguai,
deu seu título aos anais publicados: Políticas públicas y acciones
transformadoras [Políticas públicas e ações transformadoras] e,
finalmente, o quinto encontro acadêmico foi realizado em 2015 em
Santiago do Chile em torno do tema "O patriarcado no século XXI:
mudanças e resistências".

5° Os motores de busca utilizados são a Scientific Electronic Library Online (Scielo)


e a Biblioteca Digital Feminista Ofelia Uribe de Acosta, do Sistema de Bibliotecas da
Universidade Nacional da Colômbia. Escolhi essas duas ferramentas eletrônicas
por seu rigor acadêmico e porque suas bases de dados podem ser consultadas
livremente por qualquer pessoa.
" Guitté Hartog, docente da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla, México,
dirigiu a revista desde seu surgimento em 2006 até o ano de 2015.
52 Diferentemente de outros colóquios, este contou com uma forte participação da
comunidade acadêmica francesa, com a presença de: Louis-Georges Tin, Nacira
Guénif-Souilamas, Pascale Molinier, Elsa Dorlin e Éric Fassin. Contou também com
a presença de Judith Halberstam, cujo livro Female masculinities [Masculinidades
femininas] foi publicado em espanhol (Halberstam, 2008).
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 67

Grande parte das publicações desses últimos quinze anos


provém do Brasil e do México, seguidos da Colômbia e do Chile, com
uma produção bem menor da Argentina." A distribuição sexuada
é equilibrada: 41% das pesquisas consultadas são conduzidas por
homens ou grupos de homens; 40% por mulheres ou grupos de
mulheres; e 19% são resultado de grupos mistos. Dos 499 trabalhos
recolhidos, somente 1% foi realizado nos anos 1980, 13% entre 1990
e 2000, 41% de 2000 a 2010 e os 45% restantes foram produzidos
em somente seis anos, de 2010 a 2016. A tendência mostra um
aumento nítido dos estudos sobre masculinidades na região.
Eu classifiquei e organizei esse amplo volume de textos
em função das temáticas abordadas. Os sete eixos principais que
identifiquei não constituem uma taxonomia rígida dos trabalhos
analisados, mas uma organização indicativa dos conteúdos
privilegiados pelas(os) autoras(es). A ordem de apresentação dos
temas abordados segue o percentual que representam no corpus
dos trabalhos. A questão das identidades masculinas representa
30% dos trabalhos consultados; os trabalhos sobre masculinidades
e violências compõem 18% do total. O terceiro conjunto, sobre
problemas, dilemas e tensões em torno da saúde dos homens, reúne
16% dos trabalhos. Na quarta e quinta posições, reunindo cada um
14% da produção, aparece o tema afetos e sexualidades seguido pelo
das reflexões epistemológicas sobre os estudos das masculinidades.
Em sexto lugar, estão os trabalhos que analisam as representações
e produções culturais das masculinidades com 6%. Finalmente,
os trabalhos sobre os espaços de homossociabilidade masculina
representam 2% das pesquisas consultadas.
Para cada um desses temas, realizo a seguir, uma apresentação
sucinta de alguns dos principais trabalhos.

Identidades masculinas

A construção do que significa ser um homem é o tema mais


trabalhado nas pesquisas - mais frequentemente exploratórias.

" A abundância desta produção sobre homens e masculinidades no México e no


Brasil se refere ao fato de que estes dois países contam igualmente com a maior
quantidade de revistas especializadas em estudos feministas e de gênero.
68 1 Mara Viveros Vigoya

Bastante heterogêneas entre si, elas privilegiam, no entanto, três


ângulos de abordagem: a influência do contexto social, econômico
e cultural sobre as definições da masculinidade; o vínculo entre
identidade masculina e atividades no âmbito laboral; e, por último, as
interações entre identidades nacionais e étnico-raciais e construções
identitárias masculinas.

Identidades masculinas nossamericanas

Algumas autoras e autores como Hernán Henao Delgado


(1994; 1997), javier Pineda (2005), Maria Elena Villamil (2013),
na Colômbia; Matthew Gutmann (1994) e Alejandra Salguero
(2009), no México; Santiago Bastos (1999), na Guatemala; e Norma
Fuller (1997; 2012) e Liuba Kogan (1996), no Peru, estudaram as
identidades masculinas, com especial atenção aos efeitos do contexto
econômico, político, social e cultural no qual elas se constroem e às
suas mudanças nas últimas décadas. Henao Delgado, por exemplo,
explora as transformações nos papéis e nos valores associados a
cada gênero na Colômbia depois dos anos 1960 com o surgimento
dos movimentos feministas. No mesmo sentido, Salguero analisa as
novas exigências sociais feitas hoje aos homens mexicanos urbanos
que, não sendo exclusivamente provedores, adquirem maior
responsabilidade e protagonismo no lar e na criação de filhos e filhas.
O trabalho etnográfico de Gutmann (1994) sobre as diferenças
intergeracionais nas construções identitárias masculinas dos homens
de uma colônia popular da Cidade do México evidencia os efeitos da
crise econômica mexicana dos anos 1980 sobre as relações de gênero
e os valores tradicionais associados às mulheres e aos homens. O autor
mostra como esses processos macrossociais "erodiram o machismo"
e remodelaram suas interações cotidianas. A dinâmica interna dos
lares das classes populares é também o objeto dos trabalhos de Bastos
(1999) e Pineda (2005), respectivamente na cidade da Guatemala e em
Cali, tentando ir além da constatação da dominação masculina. Bastos
questiona a análise muito comum da relação entre responsabilidade
econômica e autoridade doméstica, que tende a confundir as normas
com as práticas. Ele propõe partir de uma concepção da chefia do lar
mais ancorada na realidade e menos sensível aos papéis prescritos,
considerando, por exemplo, que vários membros de cada lar, homens
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 69

e mulheres, podem compartilhar o exercício do poder.


Na Colômbia, Pineda (2005) estuda os efeitos dos programas
de microempresas - alternativas laborais muito dependentes do apoio
das mulheres - nas identidades masculinas, enquanto Villamil (2013)
se debruça sobre as diferenças geracionais do que significa "ser
homem" no setor rural no cenário da precarização geral das economias
camponesas colombianas no contexto neoliberal. Pineda assinala
a existência de práticas alternativas - ou pelo menos ambíguas - de
masculinidade nestes lares, enquanto Villamil mostra corno a ligação
das jovens gerações rurais às Forças Armadas regulares podem
infletir suas trajetórias econômico-laborais: esta via afasta os jovens
camponeses do "trabalho duro" e do "sofrimento" da vida rural (re)
capitalizando, em um contexto belicista, as qualidades próprias de
uma socialização centrada no vigor físico e na resistência emocional.
No outro extremo do espaço social, os trabalhos de Kogan
(1996) e Fuller (1997) analisam a construção da masculinidade
nas classes médias e altas da sociedade peruana. Kogan estuda
as particularidades da identidade masculina dos homens
limenhos de classes altas, em um contexto de forte valoração
do bem-estar econômico e atitudes muito conservadoras que
freiam as possibilidades de transformação ou modernização dos
papéis sexuais. Fuller (1997) identifica três configurações das
representações da masculinidade na cultura peruana de classe
média - natural, doméstica e exterior -, fundadas em códigos
morais diferentes e potencialmente opostos. Seu estudo etnográfico
demonstra que essas diferentes configurações comportam
exigências contraditórias e geradoras de tensões ao longo da vida
dos homens, que são obrigados a satisfazê-las segundo o momento
do ciclo vital no qual se encontrem e os elementos de sua história
pessoal que estejam em jogo.
Com esses trabalhos, as autoras e os autores que mencionei
demonstram que a masculinidade - e a feminilidade - são identidades
construídas sobre referenciais sociais e não sobre dimensões
biológicas, e que esses referenciais opressivos para as mulheres e
danosos para os homens mudam em função do contexto social e
dos momentos de suas vidas. Diferentemente de muitos trabalhos
focados nos papéis sexuais e nos custos de uma masculinidade
que transforma os homens em "objetos de êxito" (Farrell, 1993),
as pesquisas sobre as identidades masculinas da região centraram
70 1 Mara Viveros Vigoya

suas análises nas relações de poder institucionalizadas e nas


transformações sociais. Assim, as identidades descritas se articulam
às crises e transformações econômicas, bem como a seu impacto nas
relações de gênero. Os homens são confrontados com novos desafios
e demandas, já não são os provedores únicos e também contribuintes
obrigados a reconhecer o novo poder de negociação das mulheres na
família e na sociedade (Pineda, 2005).

Trabalho e identidades profissionais masculinas

As pesquisas sobre o lugar do trabalho nas construções


identitárias masculinas da região evidenciaram seu caráter
obrigatório: é um destino incontornável associado ao exercício
da masculinidade (Fuller, 2001; Olavarría, 2001; Viveros, 2001).
No entanto, a partir dos anos 1980, a globalização transformou os
processos produtivos das empresas e introduziu novas tecnologias
e práticas gerenciais que modificaram a organização do mercado de
trabalho e a própria concepção do trabalho (Arango, 1997; Pineda,
2005). O artigo Trayectorias labora/es masculinas y cambios en el
mercado de trabajo [Trajetórias laborais masculinas e mudanças no
mercado de trabalho] de Amalia Mauro, Katia Araujo e Lorena Godoy
(2001) dá conta dessas transformações com base em uma pesquisa
realizada em Santiago do Chile. Embora a centralidade do trabalho na
identidade masculina seja um traço comum a todos os entrevistados,
alguns deles, principalmente os universitários, profissionais
e técnicos tomam certa distância da norma e consideram que
trabalhar não é uma característica exclusiva dos homens. Ao mesmo
tempo, percebem o desemprego como uma ameaça a sua identidade
masculina, primeiro pela perda de prestígio e segundo, por impedir
que assumam essa função associada a seu papel social. As autoras
concluem que se, antes, o modelo predominante de trabalhador e
de relação laboral implicava o desenvolvimento de uma carreira
linear, sustentada por uma clara divisão sexual do trabalho, hoje,
a constante reestruturação produtiva e organizacional obriga os
homens a desenvolver novas capacidades e habilidades para se
adaptar às mudanças e enfrentar, não tanto a empresa ou instituição,
mas o mercado de trabalho como um todo.
Com a crescente participação das mulheres no mercado
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 71

de trabalho, os lugares de trabalho historicamente masculinos


se tornaram mistos, mas os estereótipos de gênero subsistem
entre empregadoras(es) e empregadas(os). Alguns trabalhos
sobre masculinidades exploram os efeitos desses estereótipos
na experiência profissional dos homens que exercem atividades
reputadas como femininas, como a enfermagem, a docência ou
a de cabeleireira, ou masculinas como a condução de caminhões
e o trabalho agrícola. Alfonso Hernández (2000; 2011) analisa
a construção da identidade profissional dos homens em uma
situação de trabalho na qual são minoria: como enfermeiros em
um hospital de Guadalajara, México. 54 O primeiro achado desta
pesquisa indica que esta profissão não é a primeira opção de
nenhum dos entrevistados que, uma vez empregados, buscaram
todos se distinguir de suas colegas mulheres, fundamentalmente
realizando atividades que exigissem força física, "prova" de sua
masculinidade. Por outro lado, o autor mostra que os homens
buscam ansiosamente um avanço rápido na hierarquia dos postos
"compatíveis" com sua categoria de "homens" e atribuem esta
atitude à sua "masculinidade", sinônimo para eles de desejo de
sucesso e superação de si. Hernández demonstra, em síntese, que
mesmo em setores profissionais tradicionalmente femininos, os
homens chegam com vantagens, gozam de melhores condições que
as mulheres e competem com elas, não somente por seu desempenho
no trabalho, mas também em nome de sua superioridade "natural".
A docência é outra profissão "feminina" analisada por
várias(os) autoras(es). Mercedes Palencia (2000) examina a
presença masculina no ensino pré-escolar a partir de um trabalho
etnográfico em uma escola pública da Cidade do México. Rogério
Machado (2012) dá conta da força estrutural das instituições
escolares brasileiras a partir dos relatos de cinco docentes, cuja
corporalidade não encarna a masculinidade hegemônica, centrada
na virilidade e na capacidade econômica. Enquanto Palencia expõe
as diferentes estratégias pessoais e profissionais que os homens
docentes utilizam para reforçar seu status masculino em espaços

54Guadalajara é a capital do estado de Jalisco, de onde são originários os charros*,


símbolo ao mesmo tempo da nacionalidade mexicana e da virilidade de seus
habitantes. *0 charro é um cavaleiro habilidoso no manejo do cavalo e dos laços que
se veste com traje especial composto de jaqueta curta, camisa branca e chapéu de
aba longa e copa cônica, com calças justas para os homens. (N.T.)
72 I Mara Viveros Vigoya

feminizados, Machado evidencia, na contracorrente do senso


comum, o potencial criativo que esse tipo de corporalidade oferece
ao exercício docente e as vantagens que traz para gerar proximidade
com as(os) estudantes.
Através de uma pesquisa qualitativa em Bogotá, Colômbia,
Alanis Bello (2012) se interessa pela estruturação de diferentes
masculinidades entre os cabeleireiros e estilistas. A autora identifica
três formas e posições de masculinidade: a dos "barbeiros hip-
hop", a dos "estilistas gays" e a dos "artistas do salão de beleza". Os
barbeiros hip-hop - herdeiros da barbearia como espaço e ofício
masculino - articulam esse estilo masculino-viril do corte de cabelo,
os legados ancestrais do penteado "afro" e a estética da cultura hip-
hop. Os estilistas gays gozam do que a autora chama o "privilégio
da viadagem [mancada]", ou seja, as prerrogativas atribuídas a uma
sexualidade não heterossexual, e neste caso específico seu status
"natural" de profissionais da beleza; este tipo de cabeleireiros
atende principalmente mulheres e jovens de setores médios. Por
último, os "artistas do salão de beleza", uma minoria de homens
brancos donos de grandes centros de estética, nos quais o cuidado
pessoal não é simplesmente um assunto de beleza, mas um "estilo de
vida" e uma "arte". A autora mostra que esta tipologia corresponde
a uma hierarquização interna das masculinidades nesse campo
profissional, de acordo com a classe, a raça, o gênero e a sexualidade
dos homens que exercem esta atividade.
Os trabalhos de Luciane dos Santos (2000), no Brasil, e
Mauricio Menjívar (2012), na Costa Rica, exploram, diferentemente,
o desempenho laboral em empregos reconhecidos como
tradicionalmente masculinos. Santos analisa as relações de gênero
e trabalho de um grupo de condutores de transporte de carga
a partir de uma pesquisa qualitativa realizada em duas cidades
brasileiras. A profissão de caminhoneiro é uma atividade que exige a
incorporação de certos atributos associados à masculinidade como
a alta resistência física e emocional, o sangue frio frente ao perigo e
o espírito aventureiro. A autora assinala também que a potência do
caminhão, percebido como uma extensão do corpo do caminhoneiro,
se confunde com uma autoimagem de virilidade, valor e força
física. Apesar do caráter solitário do - trabalho, os caminhoneiros
desenvolvem estratégias coletivas que reforçam sua solidariedade
de classe e de gênero, especialmente durante os momentos de
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 73

encontro em bares e restaurantes à beira da estrada. Segundo


Menjívar (2012), em seu trabalho histórico sobre a construção da
identidade masculina em filhos de agricultores costa-riquenhos,
os trabalhos agrícolas também são ocupações que fortalecem a
identidade masculina. A análise das entrevistas com homens adultos,
que em sua infância trabalharam em espaços agrícolas, evidencia o
importante papel que tiveram essas tarefas na conformação de sua
masculinidade e na estruturação do significado de "ser homem". O
processo que descrevem inclui a incorporação precoce ao mundo do
trabalho, a realização de atividades que ultrapassam as capacidades
físicas, o controle emocional e a rivalidade com outros homens no
trabalho, incluindo os próprios pais.
Nessa aproximação às identidades masculinas, as pesquisas
apresentadas identificam o trabalho e o emprego como elementos
distintivos da masculinidade e como atividades que permitem
aos homens ocupar um lugar social no mundo adulto masculino.
Elas mostram também que há várias maneiras de encarnar a
masculinidade no âmbito profissional, conforme as dinâmicas
socioeconômicas. Assim, se as sociedades industriais construíram
um modelo de homem dedicado quase exclusivamente ao trabalho
remunerado, o processo de globalização trouxe novas formas de
trabalho masculino no setor terciário, um setor heterogêneo que
tradicionalmente incorporou as mulheres, especialmente no setor
de serviços domésticos e pessoais (como os salões de beleza) e nas
atividades do setor público de educação e saúde (como a docência
e a enfermagem). Apesar das mudanças no mercado de trabalho, as
atividades mencionadas indicam que as ordens de gênero do lugar de
trabalho continuam favorecendo o grupo dos homens em detrimento
do grupo das mulheres e, dentro do grupo dos homens, aqueles que
estão melhor posicionados em um espaço social estruturado pela
classe, pelo gênero, pela idade e pelo pertencimento étnico-racial,
entre outros vetores de hierarquização.

Masculinidades e identidades nacionais e étnico-raciais

Na Nossa América, os ideais de masculinidade foram


construídos em diálogo com os de raça e nação e cooperaram
frutiferamente para criar categorias como a de "homem latino-
74 I Mara Viveros Vigoya

americano". Na prática e em um contexto histórico muito cambiante


desde o período colonial até nossos dias, esta categoria se
revelou instável e frágil: nem a masculinidade nem as identidades
nacionais mostraram ser noções sólidas e fixas. Algumas autoras,
como Milagros Palma (1990) e Sonia Montecino (1991; 1995),
examinaram os ideais de masculinidade prevalecentes na região
e os vincularam com os tipos de sociedades que a colonização
ibérica produziu. O exagero e a arbitrariedade do predomínio
masculino estão relacionados, segundo elas, à ilegitimidade que
marcou o nascimento real e simbólico dessas sociedades e à relação
problemática com o feminino, associado à figura da Malinche." Este
ponto de vista, observa Fuller (1996), tem a vantagem de considerar
as especificidades históricas das sociedades ibero-americanas para
explicar a dinâmica das relações de gênero. Ele ignora, no entanto, o
processo de modernização no qual estão inseridas atualmente e as
peculiaridades de cada uma delas.
Os trabalhos de Ondina Fachel Leal (1992a; 1992b), no
Brasil, Matthew Gutmann (1994), no México, e Norma Fuller
(1996), no Peru, exploram essas particularidades e os modos pelos
quais as diferentes identidades culturais (locais ou nacionais) se
articulam com as identidades masculinas. No trabalho Suicídio,
honra e masculinidade na cultura gaúcha," Leal estuda a dimensão
reivindicatória do suicídio como prática masculina assumida frente
à velhice e à doença, ameaçadoras para a identidade viril do gaúcho,
obrigado a ser forte e impetuoso para domar a natureza que o rodeia.
Nesse mesmo sentido, Leal analisa o mito fundador da sociedade
pastoril gaúcha, a salamandra do Jarau, 57 como uma encenação da

55 A Malinche foi uma das mulheres nahua que os indígenas tabascos entregaram
aos colonizadores espanhóis como tributo. Esta mulher, que teve uma relação com
o conquistador Hernán Cortés, desempenhou um papel de grande importância na
colonização do que hoje chamamos México, já que falava várias línguas indígenas do
território. Ela e Cortés tiveram um filho, Martín, convertido, de forma alegórica, no
iniciador do processo de mestiçagem.
56 A cultura gaúcha é aquela dos trabalhadores rurais da pecuária extensiva,

habitantes dos Pampas latino-americanos.


57 Este mito narra a história de uma bela princesa moura transformada em

salamandra que seduz os homens e os atrai para uma caverna escura na qual,
depois de superar difíceis provas, podem obter de sua mão sete dons: sorte no jogo;
talentos musicais e poéticos; conhecimentos terapêuticos; carisma; e poder sobre
os homens etc., que constituem características culturalmente prescritas para ser
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 75

luta do homem gaúcho para não sucumbir ao encanto das mulheres,


consideradas como seres perigosos tanto para sua identidade
masculina como de gaúcho. A partir dessa perspectiva, a narrativa
sobre a salamandra do jarau é examinada como um mito e um relato
da autogestação e autocriação do homem gaúcho.
Os trabalhos de Gutmann e Fuller questionaram a análise
de Octavio Paz, muito influente na extensa discussão sobre o
"machismo" na sociedade mexicana e, por extensão, nas sociedades
nossamericanas, com a obra O labirinto da solidão (1998). No artigo
Los hijos de Lewis: la sensibilidad antropológica y el caso de los pobres
machos [Os filhos de Lewis: a sensibilidade antropológica e o caso
dos pobres machos] (1994), Gutmann argumenta que, na sociedade
mexicana, a virilidade desempenhou um papel tão notável como
símbolo nacional que México começou a significar o machismo e o
machismo a significar México. Seu trabalho refuta a ideia de uma
masculinidade mexicana uniforme e "machista", que transcenderia
as diferentes classes sociais, os grupos étnicos e as gerações, em
favor de uma análise que ressalta os nexos entre o "machismo", o
nacionalismo e o racismo em um contexto de profundas desigualdades
sociais. O trabalho de Fuller sobre homens urbanos do Peru também
questiona "a validade da identificação da masculinidade na América
Latina com o chamado machismo" (2012, p. 144). A partir de sua
pesquisa, a autora conclui que o machismo, ainda muito presente
como discurso, representa, sobretudo para os jovens peruanos, uma
expressão dos aspectos mais frágeis ou controversos do masculino,
bem como uma maneira de elaborar as demandas contraditórias
de uma masculinidade "difícil de viver" em um mundo incerto e em
mutação, tanto para homens como para mulheres.
Desde os anos 1990, a caracterização e o reconhecimento,
das sociedades nossamericanas, não somente como policlassistas,
mas também pluriétnicas e multiculturais, marcou a substituição
de um projeto de nação homogênea, e, portanto, mestiça, pelo de
uma nação concebida como um espaço comum de grupos que se
distinguem por suas diferenças étnicas e culturais (Gros, 2000). A
Colômbia e o Brasil são os dois países nos quais se desenvolveu o
maior número de estudos sobre as masculinidades "negras". Não é
por acaso: nas últimas três décadas, as pesquisas sobre diferentes

reconhecido como um verdadeiro gaúcho.


76 1 Mara Viveros Vigoya

aspectos da identidade "negra" se multiplicaram e movimentos


sociais étnico-raciais "negros" surgiram ou se consolidaram nos dois
países. Muitos dos trabalhos realizados (Streicker, 1995; Viveros,
1997; 1998; 2001; Urrea Giraldo 82. Quintín, 2001) afirmam que
as normas, posições e identidades masculinas se constroem não
apenas em oposição a uma feminilidade pré-existente, mas também
à masculinidade de outros homens com diferentes inscrições
étnicas e raciais. Outras pesquisas como as de Urrea Giraldo, Reyes
e Botero Arias (2008), Maria Elvira Díaz (2006) e Gil Hernández
(2008) ilustram os estereótipos associados aos homens "negros"
como símbolos de uma sexualidade "natural" que supõe que eles são
evidentemente heterossexuais, obstaculizando suas práticas sexuais
que não confirmem essas suposições. Osmundo Pinho (2014)
aborda o tema das intersecções de raça e gênero a partir de um outro
ângulo: o da formação das identidades masculinas negras de setores
populares no âmbito escolar. Sua pesquisa indica que a escola, como
instituição promotora de mobilidade social, surte pouco efeito nos
homens jovens de setores populares da Bahia (Brasil) para quem a
escola é uma instituição muito desvalorizada. Entender a forma pela
qual suas posições de gênero, classe e raça se afetam mutuamente
permite a Pinho decifrar, parcialmente, o que ele chama "o enigma
do fracasso escolar dos jovens negros das classes populares".
Apesar de algumas contribuições importantes sobre as
masculinidades indígenas no México (Núriez Noriega, 2009; Díaz
Cervantes, 2012; 2013), no Equador (Villavicencio, 2013) e da
existência de uma grande variedade de povos indígenas na Nossa
América, o tema das masculinidades indígenas foi pouco explorado
na região. Como os homens "negros", os homens indígenas têm sido
objeto de múltiplos estereótipos e imaginários, porém de natureza
muito distinta. Enquanto os homens "negros" têm sido percebidos
como hipersexuais e hiperviris, mas também como pais ausentes,
cônjuges infiéis e estudantes fracassados, os homens indígenas
são imaginados como homens atávicos, imóveis, desmotivados
e hipossexuais ou como homens primitivos e bons selvagens.
Estes estereótipos geraram obstáculos ideológicos, teóricos
e metodológicos que explicam a ausência, a marginalização
e a negligência dos estudos sobre homens indígenas no geral
e particularmente sobre aqueles que têm práticas sexuais
homoeróticas.
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 77

Trabalhos como o de Núfiez Noriega convidam a desenvolver


interpretações mais complexas da sexualidade masculina e da
masculinidade indígena para dar conta dessas experiências sexuais
dissidentes. Por sua vez, Díaz Cervantes adverte sobre a necessidade
de ampliar e aprofundar, a partir de categorias epistemológicas
descolonizadas, o conhecimento sobre os múltiplos efeitos da
irrupção da ordem patriarcal e heterossexista entre os povos
indígenas em diferentes momentos de sua história. O trabalho
de Villavicencio mostra as dificuldades que os homens indígenas
enfrentam em sua integração urbana e as resistências que opõem
à sua desvalorização social a partir de suas práticas de trabalho
tradicionais e dos comportamentos hiperviris associados ao
estereótipo da masculinidade urbana mestiça. Em resumo, os três
trabalhos dão conta da necessidade de criar e utilizar novos conceitos
para documentar os desafios e ambivalências que esses homens
enfrentam em uma ordem de gênero modificada pela colonização,
pela construção dos Estados nacionais e pela globalização neoliberal.
Documentando as interações entre identidades de gênero,
identidades nacionais, regionais, étnicas e raciais, as diferentes
pesquisas descritas nesta seção confirmam a inexistência de uma
masculinidade "pura e simples". Certos trabalhos demonstram
que o "machismo" é um termo que merece ser discutido, já que
não caracteriza a complexidade de relações de gênero na Nossa
América (Fuller, 1997; 2012; Gutmann, 1998). Outros sublinham
que as identidades de gênero dos homens se constroem sobre os
jogos masculinos de poder e rivalidade, mobilizando diferentes
formas de dominação relacionadas à nacionalidade, à etnicidade e
à raça e estabelecendo hierarquias objetivas e subjetivas entre as
identidades gendradas.

Masculinidades e violências

A relação das masculinidades com as distintas violências


- política, socioeconômica, conjugal, de delinquência comum etc.
- que marcam a história da Nossa América é um tema ineludível.
Elas estão presentes desde o início na fratura imposta pela
conquista e pela colonização europeia e, mais tarde, na dominação
das classes oligárquicas e na permanência dos regimes militares
78 1 Mara Viveros Vigoya

no poder durante grande parte do século XX. Elas caracterizam


também uma realidade contemporânea atravessada pelas guerras
e conflitos armados, narcotráfico, crise e recessão econômica e
políticas neoliberais. Em resumo, na Nossa América, a construção
das identidades masculinas tem se realizado em um contexto de
violência histórica, estrutural e cotidiana.

Violências políticas e sociais

Devido à realidade dolorosa e já antiga do conflito armado


colombiano, superado em duração apenas pelos conflitos entre
Israel e Palestina e entre índia e Paquistão, não é de estranhar
que muitas(os) cientistas sociais convertessem este fenômeno em
tema fundamental de pesquisa. No entanto, faz pouco tempo que
a importância da incorporação de uma perspectiva de gênero não
limitada às mulheres nessas reflexões se tornou evidente (Theidon,
2009; Murioz Onofre, 2012; entre outros). Kimberly Theidon
examina a masculinidade construída em contextos de guerra e
sua ligação com a propensão dos homens jovens colombianos de
classes populares a se vincular a grupos armados. Da mesma forma,
Murioz Onofre analisa a produção de "masculinidades bélicas" no
conflito armado, de acordo com três práticas específicas: a disciplina
militar institucionalizada, os métodos paramilitares e de "limpeza
social", e a promoção massiva de heróis da pátria. Theidon conclui
sugerindo estratégias de intervenção que permitam desconstruir
a masculinidade do combatente e reconstruir o sentido do que
significa "ser homem". Já Murioz assinala a necessidade de resistir
às práticas de guerra instituídas através das tecnologias de governo
e materializadas nas instituições militares. O trabalho de Murioz
Onofre também dialoga com a reflexão que fazem Mónica Murillo e
Guiné Hartog (2008) sobre os efeitos da ideologia militar na vida
cotidiana dos homens mexicanos. As duas pesquisas enfatizam a
forma pela qual o recurso à idealização das figuras militares legitima
governos armamentistas e bélicos. Elas concordam também sobre o
fato de que a lógica militar de defesa da pátria e a acusação de toda
pessoa que pensa diferente como um inimigo acentuam as violências
em cada um desses países. Como Murioz Onofre, as autoras concluem
que a única maneira de transformar esse tipo de .masculinidade é
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 79

propor outros imaginários sociais, outras lutas e novos referentes


que sustentem outros valores de gênero.
O deslocamento de populações 58 gerado pelos enfrentamentos
entre os diferentes atores armados - guerrilhas, grupos paramilitares
e exército nacional - é uma das problemáticas mais graves do conflito
armado na Colômbia. A pesquisa de Claudia Tovar e Carol Pavajeau
(2010) evidencia a falta de reflexão acadêmica e política sobre os
efeitos desse deslocamento nos homens: a maior parte das pesquisas
sobre o tema analisam as mulheres e as crianças. O estudo de Tovar
e Pavajeau assinala que dois elementos afetam a masculinidade
dos homens deslocados. Primeiro, o fato de não terem enfrentado
os atores armados que os expulsaram do território junto com sua
família de forma que perdem a legitimidade como salvaguardas
e protetores de seu lar e, segundo, o fato de não poderem assumir
o papel de provedores econômicos em virtude de não exercerem
trabalhos de campo no contexto urbano. Essas mudanças na ordem
de gênero suscitam frustrações e perturbam as relações de casal, o
exercício da paternidade, a sexualidade e os projetos de vida.
Jan Hopman (2001), no Chile, e Irene Castillo e Claudio
Azia (2011), no México, fazem parte dos autores que analisaram
os vínculos entre o militarismo, o patriarcado e a masculinidade
hegemônica. Como os pesquisadores mencionados anteriormente,
eles demonstram a importância da formação militar para os homens,
como ferramenta que sustenta, justifica e recria os valores patriarcais
dominantes na sociedade civil. Assim, sublinham o papel da cultura
militar na perpetuação de uma lógica bélica para a resolução ou
tramitação dos conflitos sociais. Os diferentes trabalhos reunidos
nesta seção propõem incorporar os direitos humanos e uma cultura
de paz na formação militar e nas interações cotidianas no seio das
instituições militares. Trata-se de impulsionar mudanças nos tipos
de masculinidades construídas e ensinadas, idealmente orientadas
por uma perspectiva ética feminista.

" Múltiplas pesquisas sobre o conflito armado na Colômbia mostram que o


deslocamento forçado não pode ser lido como uma consequência das ações violentas
dos grupos armados, mas como um objetivo de muitas das intervenções armadas
para criar terras baldias - em territórios indígenas, negros e camponeses - que, em
seguida, são exploradas por multinacionais apoiadas por grupos paramilitares. Ver
http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/.
80 I Mara Viveros Vigoya

As violências das torcidas desportivas e das gangues juvenis

Os homens jovens, vítimas de exclusão social e marginalização


econômica, formam um grupo cuja dinâmica geracional tende a
incorporar a violência como elemento identitário (Anderson &
Umberson, 2001) e a manifestá-la de múltiplas formas - torcidas
desportivas, gangues de bairros, grupos de delinquência etc. (Abarca,
2001; Medan, 2011; Cruz Sierra, 2014; Ordófiez, 2015). Humberto
Abarca relaciona a violência masculina juvenil das torcidas locais de
futebol de bairros periféricos de Santiago do Chile com a realocação
forçada de suas famílias de origem pela ditadura militar chilena
durante a década de 1980. Segundo sua descrição, a convivência
forçada nessas zonas gerou violência e deu lugar à criação de grupos
de jovens e torcidas organizadas de futebol, como mecanismo
regulador de uma ordem baseada na defesa da territorialidade. O
autor conclui argumentando sobre a necessidade de reconhecer as
torcidas organizadas desportivas como interlocutoras nos espaços
dos bairros e de criar oportunidades de emprego para os homens
jovens permitindo desenvolver projetos de identidade pessoal e
coletiva centrados na solidariedade e não na violência.
Mariana Medan, por sua vez, analisa as lógicas de um projeto
de intervenção estatal para prevenir a delinquência juvenil na zona
sul da grande Buenos Aires. Seu trabalho identifica as discrepâncias
existentes entre as concepções do projeto sobre os riscos e benefícios
de prevenir a delinquência e as dos homens jovens pobres que o
programa busca alcançar. Essas diferenças limitam o impacto potencial
do projeto e sublinham a necessidade de redefini-lo a partir de um
enfoque de gênero que permita compreender, em primeiro lugar, a
relação entre a violência e a construção social de masculinidade desses
homens e, em segundo lugar, as dificuldades deles em afastar-se dos
comportamentos delitivos e dos códigos de sociabilidade masculina
que o programa questiona sem propor alternativas.
A pesquisa de Jorge Ordoriez, no bairro de Aguablanca em
Cali,59 mostra como pertencer a uma gangue e estar em uma zona
determinada do bairro permite aos jovens definir "um dentro e um
fora" e se apropriar das regras de socialização entre o grupo de pares

O distrito de Aguablanca é um setor da cidade de Cali caracterizado por sua


marginalidade, pobreza e um alto índice de delinquência.
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 81

e os "outros", situados fora do território. Nesse contexto, a violência


adquire uma estrutura identitária na qual o respeito pelos seus e a
obrigação de proteção às pessoas do próprio território se convertem
em uma regra de coesão grupal. O autor conclui que a violência
não é tanto o fracasso do vínculo social, mas uma forma de relação
social que constrói outros vínculos. Por sua vez, Salvador Cruz Sierra
aborda a construção da categoria "homem jovem" através dos relatos
de quatro ex-membros de gangues em Ciudad Juárez, no México,
durante os anos 1990 e o início dos anos 2000. Seu estudo visa a
demonstrar que a categoria "homem jovem", convertida em sinônimo
de violência social, não pode ser entendida sem levar em conta que
nela confluem muitas desigualdades de gênero, sexualidade, classe,
etnia e idade. Como no trabalho anteriormente citado, Cruz Sierra
assinala que ser homem e conquistar uma posição na masculinidade
dominante faz parte de um exercício performativo que põe em cena
uma experiência moldada a partir das opções disponíveis na cultura
e na sociedade nas quais vivem esses jovens.

Violências domésticas

Os primeiros trabalhos sobre violência masculina realizados


no México, Nicarágua e Chile em finais dos anos 1990 centraram
suas reflexões nos programas de intervenção com homens imersos
em relações familiares violentas (Liendro, 1998; Sequeira, 1998;
Valenzuela, 2001). Os diferentes autores compartilhavam o desejo
de apreender o problema da violência conjugal para além da ideia de
vítimas e agressores e da estigmatização dos homens como "seres
violentos ou agressores" per se. Todos coincidem em que .esses
comportamentos mascaram uma experiência subjetiva de conflito
caracterizada pelo medo, a vergonha e uma forte sensação de
vulnerabilidade. Os estudos fazem, igualmente, referência ao papel
da religiosidade católica e da socialização familiar na justificação
de certos privilégios masculinos aos quais se tem de renunciar
para poder abandonar os comportamentos violentos em nível
individual, interpessoal e coletivo. Os estudos indicam, de diferentes
formas, a importância da proximidade e das trocas frequentes
com o movimento social de mulheres no trabalho para entender e
responder aos padrões sociais que modelam a masculinidade.
82 Mara Viveros Vigoya

O trabalho de Juan Carlos Ramírez (2001) compartilha com


as pesquisas anteriormente mencionadas a crítica à visão estática
sobre a violência doméstica na qual sempre há uma vitima, a mulher
passiva e resignada, e um agressor, o homem ativo, impositivo e
disposto a infligir o próximo golpe. Os resultados de sua pesquisa
realizada com homens de três gerações residentes em um bairro
popular de Guadalajara, México, mostram diversas formas de
relações entre esses homens e suas parceiras, sua família e grupos
de pares, em ruptura com muitos estereótipos corriqueiros sobre
homens violentos. Vale assinalar que as pesquisas latino-americanas
sobre violência no contexto das relações heterossexuais nas quais
os homens são as vítimas são muito escassas. As que encontrei
(Trujano Ruíz, 2007; González Galbán & Fernández, 2014; Rojas-
Andrade et al., 2013), compartilham dois enunciados, apesar de seus
diferentes enfoques e metodologias. Em primeiro lugar, indicam que
a tendência de homens que manifestam ter sofrido maus-tratos por
parte de suas cônjuges tem aumentado, o que contrasta com o baixo
número de registros desse tipo de situações. Os estereótipos que
associam os homens à força e as mulheres à fraqueza contribuem
para que muitos se sintam ridicularizados ao fazer as queixas ou ao
reconhecer sua situação de vulnerabilidade. Em seguida, os estudos
mencionam a mudança do papel da mulher, que se torna uma
provedora econômica no espaço familiar, o que poderia afetar as
dinâmicas familiares, mas não analisam a relação entre essa mudança
e a violência das mulheres para com os homens. No trabalho realizado
por Rodrigo Rojas et al. (2013), no Chile, os autores analisam as
resistências que os homens maltratados opõem à desvalorização da
qual são objeto, enquanto homens submissos, que se deixam montar
por suas mulheres. Estes homens se apresentam como bons homens
em contraposição aos homens maus, violentos e irracionais e as suas
próprias parceiras, definidas como emocionalmente descontroladas.
Como assinala Ramírez (2005), os desafios que implicam uma
compreensão mais complexa e refinada da violência se tornam
interessantes. Esta compreensão deve permitir incluir a violência
exercida pelas mulheres, entendidas como sujeitos que participam
de uma cultura patriarcal da qual podem tirar vantagem individual
ao submeter o outro ou a outra, mesmo quando elas ocupam, como
grupo, uma posição dominada na ordem de gênero.
Os trabalhos mencionados indicam que a violência política
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 83

e social que tem caracterizado a história dos países da região tem


afetado diretamente as dinâmicas sociais e familiares, gerando
doenças, deficiências, mortes, deslocamentos geográficos,
reagrupamentos territoriais, atos delitivos etc. Uma socialização
mediada pela violência como forma de solucionar os conflitos tem
construído homens e mulheres que produzem e reproduzem essas
formas de relação nos âmbitos privado e público. 60 Dito de outra
maneira, a violência nos espaços privados está ligada ao contexto
macrossocial, da mesma forma que a violência política e social
encontra eco na violência familiar.

Problemas, dilemas e tensões em torno da saúde dos homens

Na América Latina, as pesquisas sobre a saúde dos homens


emergiram nos anos 1990 com a pergunta acerca do papel
dos homens na saúde sexual e reprodutiva (SSR), um conceito
intimamente relacionado aos movimentos feministas dos anos 1960
e 1970, cujas lutas evidenciaram o caráter político da sexualidade e
da reprodução (Figueroa, 1995; 1998; Salcedo, 1995; Viveros, Gomez
& Otero, 1997; Viveros & Gomez, 1998). Apesar da perspectiva de
gênero ter sido um dos temas recorrentes das políticas e programas
de SSR, não tem havido consenso sobre o que esta significa. No
caso dos trabalhos sobre homens, masculinidades e saúde sexual
reprodutiva, o gênero tem sido apreendido de duas maneiras. De
um lado, como uma variável sociodemográfica que permite fazer
um inventário das diferenças entre homens e mulheres no âmbito
reprodutivo; de outro, como um conceito transversal às relações
sociais que explica os riscos específicos de morbidez e mortalidade,
bem como as diferenças no recurso e acesso dos homens e das
mulheres aos serviços de SSR (Lefiero Otero, 1992; Gomenroso et
al., 1995; De Keijzer, 1995; Córdova Plaza, 2006; Salinas, 2006). Nos
últimos quinze anos, novas pesquisas têm abordado a saúde como
uma "janela" privilegiada para observar os efeitos das práticas de

" A esse respeito, o grupo Conflito social e Violência, da Universidade Nacional da


Colômbia, desenvolveu uma série de diálogos com homens de diferentes condições
sociais e idades para refletir sobre sua identidade de homens, suas relações com
as mulheres na vida cotidiana, suas relações familiares, a tomada de decisões e a
maneira de enfrentar e resolver os conflitos que se apresentam (Jimeno et al., 2007).
84 1 Mara Viveros Vigoya

gênero dos homens e as injunções que caracterizam a construção


social da masculinidade (de Keijzer, 2003; 2006; Fuentes Barrera,
2015; Ovalle, Balbuena Bello & Guerrero Mondaca, 2010).

As pesquisas sobre a saúde sexual e reprodutiva

Alguns trabalhos como os de Juan Guillermo Figueroa (1995;


1998), Hernando Salcedo (1995) e Mara Viveros e Fredy Gomez
(1998) assinalam a forte influência do comportamento dos homens
sobre a saúde das mulheres e sobre as decisões reprodutivas dos
casais, em contraste com a pouca importância geralmente atribuída
a eles nos trabalhos sobre o tema. Figueroa propõe estratégias
analíticas e metodológicas para superar a invisibilidade da
presença dos homens no âmbito da saúde reprodutiva. Ele sugere
especialmente o acompanhamento das transações que se constroem
em torno das opções reprodutivas e a identificação das normas
institucionais e dos pressupostos androcêntricos das interpretações
médicas que dificultam a equidade de gênero. Por sua vez, Salcedo
analisa a influência das relações de gênero nas representações
masculinas da vida sexual reprodutiva, no sentido atribuído ao
desejo e, também, nas decisões dos homens com relação ao aborto.
Viveros et al. exploram o imaginário institucional, social e pessoal
sobre a vasectomia em Bogotá e as negociações que dão lugar a esta
decisão contraceptiva nesses diferentes contextos.
Muitas das pesquisas que relacionam masculinidades,
sexualidades e saúde têm buscado dar resposta à expansão da
pandemia de HIV/aids (Córdova Plaza, 2006; Salinas, 2006;
Hernández, 2008). As pesquisas realizadas por Rosío Córdova Plaza
e Héctor Salinas, no México, concordam em três aspectos. Primeiro,
que a enfermidade tem afetado majoritariamente os homens que
têm relações sexuais com homens (HSH). Em segundo, que se deve
distinguir entre a identidade e as práticas sexuais de forma a dissociar
a autoidentificação de um sujeito como homossexual ou gay de suas
trocas sexuais com outros homens. Finalmente, que as intervenções
estatais de prevenção não levam em conta o risco que as práticas
sexuais dos HSH implicam, nos encontros fortuitos e sem proteção
que perpetuam a lógica hegemônica da virilidade valorizando a
exposição aos riscos e a penetração. Uma das raras pesquisas que
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 85

abordaram o tema do HIV e das relações heterossexuais foi realizada


por Daniel Hernández (2008) com homens de origem purépecha61-
que emigram para os Estados Unidos. Por meio de entrevistas com
casais, o autor constata que os homens entrevistados não concebem a
sexualidade como um âmbito de direitos das mulheres. Seu desejo de
ver suas esposas grávidas é uma forma de legitimação e reafirmação
de sua virilidade e constitui também um mecanismo de controle
sexual no momento de seu retorno ao México. Mantendo relações
sexuais desprotegidas, eles lhes transmitem patologias contraídas
durante a viagem, sendo a mais comum o HIV. As três pesquisas
permitem concluir que o reconhecimento da maleabilidade das
concepções e condutas sexuais é um requisito indispensável para
conceber estratégias diferenciadas no âmbito da prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis, entre elas o HIV. Ao mesmo
tempo, elas assinalam que a demonstração da masculinidade é um
fator de risco não somente para a saúde dos homens, mas também
para a de suas esposas.

Fatores de risco para a saúde masculina ou a masculinidade como fa-


tor de risco

A partir de perspectivas diferentes, Benno de Keijzer (2006),


Lucero Fuentes Barrera (2015) e Lilian Ovalle, Raúl Balbuena e
Julio Guerrero Mondaca (2010) analisam os mecanismos pelos
quais os modelos de comportamentos gendrados que chamamos
masculinidade afetam a saúde dos homens. De Keijzer observa
que, no contexto atual de precarização do trabalho, muitos dos
empregos oferecidos aos homens exigem um forte desempenho
físico e provas de coragem. A ausência de cuidado e de prevenção
- comportamentos opostos ao que se entende por masculinidade
e que lhes são socialmente proibidos - constitui uma das causas
de sua menor expectativa de vida e um fator de vulnerabilidade
que aumenta frente a doenças que poderiam ser diagnosticadas
mais cedo.
Fuentes Barrera (2015) compartilha o argumento de de

" A comunidade purépecha é um povo indígena que habita, primordialmente, no


estado de Michoacán, México.
86 Mara Viveros Vigoya

Keijzer e assinala que doenças como o câncer podem estar associadas


a práticas de risco como o consumo de tabaco e álcool e, além disso,
são detectadas em estado mais avançado, entre outras razões porque
os homens não recorrem a tempo aos serviços de saúde. A pesquisa
destaca a particularidade da experiência do câncer de testículos
e o efeito simbólico de sua localização em uma zona do corpo
masculino que encarna a virilidade de maneira a pôr em questão a
identidade masculina dos pacientes que são expostos à ameaça da
doença. Em um outro âmbito, Ovalle, Balbuena, Guerrero Mondaca
e sua equipe (2010) realizaram um estudo etnográfico das práticas
de risco de usuários de drogas injetáveis em uma cidade mexicana.
Suas conclusões confirmam que resistir à dor da inoculação das
substâncias, emprestar seringas e não pedir ajuda médica em
períodos de abstinência faz parte de uma forma de masculinidade,
cujas exigências tornam esses homens particularmente vulneráveis
ao adoecimento.
Em resumo, as diferentes pesquisas demonstram de um lado,
que a saúde dos homens está muito marcada por práticas de gênero
que incluem atitudes violentas e imprudentes em âmbitos diversos
como o da condução de veículos, dos vícios, das relações familiares
e da sexualidade. E, de outro lado, que o planejamento de políticas
que levem em conta os homens como sujeitos gendrados é vital para
promover seu autocuidado e o cuidado com seu entorno pessoal e
para melhorar sua qualidade de vida e a de toda a população.

Afetos e sexualidades

Os estudos que abordaram as práticas afetivas, sentimentais


e sexuais masculinas trabalharam quatro eixos temáticos: as práticas
e culturas homoeróticas, incluindo as produzidas nos espaços
virtuais; as práticas e representações da paternidade; os afetos e
expressões emocionais de homens heterossexuais; e, por último, as
"masculinidades sem homens".

Práticas e culturas homoeráticas

Uma série de trabalhos que buscou desconstruir os modelos


Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 87

masculinos na esfera sexual foi publicada simultaneamente ao


surgimento de movimentos que reivindicavam o direito à diversidade
e à dissidência sexual (Garcia, 1999; Serrano, 1994; Cáceres, 1995;
Parker, 1998). Esses estudos assinalam, principalmente, que a
adoção de traços ou comportamentos identificados como masculinos
ou femininos, ou de um papel passivo ou ativo nas relações sexuais,
é independente da orientação sexual. Nesse sentido, as pesquisas
sobre o tema conseguiram dissociar as práticas sexuais das
identidades. Com relação às múltiplas interpretações das práticas e
culturas homoeróticas e seus nexos com as transformações sociais,
cabe destacar o trabalho de Carlos Cáceres (1995), em Lima, no
contexto de um projeto de prevenção de HIV/aids, e o de Richard
Parker (1998) no Rio de janeiro.
Cáceres propõe uma taxonomia muito interessante da
diversidade das experiências homoeróticas em Lima a partir da
descrição de uma série de "personagens" de diferentes cenários
sociais e cujos contornos não são nem fixos nem claramente
determinados. Nas classes populares e associadas a culturas
tradicionais, encontramos o bissexual "ativo" ou "mostardeiro"
[mostacero] que exibe uma estética rude e viril; a "bicha" [manca] ou
"viado" [cubro] afeminado que não costuma se autodesignar como
"homem"; e a travesti que manifesta maneiras femininas exageradas.
Nas classes médias, temos o "entendido", que participa de encontros
homossexuais clandestinos, o "bissexual casado", o "bissexual gay"
e o "gay" que faz parte plenamente da cultura homossexual local e
assume um estilo "macho". Parker, por sua vez, chama atenção sobre
a homossexualidade como categoria sexual específica, tanto no
Brasil como em outros países da América Latina. A partir de uma
ampla revisão bibliográfica e de sua experiência etnográfica no Rio
de janeiro, ele assinala o rápido surgimento de diversas culturas e
subculturas organizadas em torno do desejo homoerótico no Brasil e
analisa seus vínculos com diferentes estruturas sociais e econômicas
tradicionais, modernas e pós-modernas que coexistem nos países da
América Latina.
O papel das ferramentas virtuais nas práticas sexuais é um
tema emergente nos trabalhos sobre as relações homoeróticas.
Várias pesquisas no Brasil (Silva, 2009; Miskolci, 2013; Lanzarini,
2015) têm acompanhado comunidades e grupos de discussão online
sobre práticas sexuais entre homens. Luís Augusto Vasconcelos
88 1 Mara Viveros Vigoya

da Silva tem se interessado especialmente pelas experiências


relacionadas ao barebacking.62 Sua pesquisa demonstra que a
reivindicação por muitos homens de práticas sexuais sem proteção
é uma forma de rejeitar as lógicas higienistas e de controle, uma
forma limite de expor o corpo aos riscos e de experimentar de
maneira mais real as relações sexuais. Richard Miskolci (2013)
e Ricardo Lanzarini (2015) estudam as práticas homoeróticas
de homens que se consideram heterossexuais nas redes sociais
virtuais. Os dois autores concordam que os homens que ingressam
nessas redes separam a busca de amor e o prazer, dois âmbitos com
efeitos de gênero opostos. Enquanto as relações românticas, nas
quais se desfruta da companhia e proximidade de outro homem,
os feminizam e os tornam "homossexuais", as relações sexuais sem
implicações românticas com homens lhes permitem continuar sendo
heterossexuais. A virtualidade lhes permite levar uma vida paralela
na qual expressam seus desejos sexuais ao lado de uma existência
cotidiana inscrita na lógica heterossexual.

Práticas e representações da paternidade

A paternidade, uma das experiências mais importantes na


vida dos homens, é uma prática social complexa e multifacetada
(Fuller, 1997; de Keijzer, 1998; de Suremain & Acevedo, 1999). Em
seus trabalhos sobre homens peruanos da classe média urbana,
Norma Fuller (1997) identifica várias de suas dimensões e assim
as descreve: uma dimensão natural da paternidade, como a prova
última de virilidade; uma dimensão doméstica, que permite aos
homens exercer o lado nutrício da masculinidade; uma dimensão
pública, pela qual os homens transmitem os valores que permitirão
a seus filhos realizar suas obrigações no espaço público; e, por fim,
uma dimensão transcendental, que converte o homem em criador
que assegura a continuidade da vida. Benno de Keijzer (1998)
assinala que apesar do valor cultural atribuído ao fato de ser pai
no México, esta não é a função mais citada e reivindicada por seus

62Segundo o autor esta categoria dá conta das relações sexuais sem proteção,
especialmente o sexo anal, mas o termo também pode designar outros tipos de atos
sexuais com penetração sem uso de preservativo.
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 89

entrevistados, cujo exercício da paternidade se faz de diferentes


maneiras: os pais ausentes, os pais tradicionais, os pais patriarcais
e os pais igualitários. As práticas paternas que ele descreve são
diversas, ambivalentes e inclusive contraditórias, e se modificam
ao longo da vida dos homens e em sua relação com seus diferentes
filhos. Marie Dominique de Suremain e Oscar Acevedo (1999)
mencionam, por sua vez, a nova exigência social e filial de uma maior
presença dos pais, que os homens das classes populares de Medellín
não conseguem cumprir em razão da precariedade econômica e
social em que vivem. As três pesquisas mostram que a importância
da experiência da paternidade só se afirma socialmente quando
corresponde às normas que regem as relações de gênero, raça e
classe em cada sociedade; sublinham, igualmente, a defasagem
entre o modelo cada vez mais generalizado do pai próximo, descrito
como ideal, e a prática real dos homens. Em alguns casos, como no
Peru e no México, estes não conseguem se subtrair às injunções
de gênero que os afastam das tarefas domésticas e da criação dos
filhos. Em outros casos, como na Colômbia, as condições materiais
de existência não permitem concretizar o desejo de uma maior
presença e proximidade com as(os) filhas(os).
As práticas e representações da paternidade variam também
em função das trajetórias de vida dos pais, de sua orientação
sexual e dos problemas que podem incapacitar os filhos (Cardoso,
1998; Siqueira, 2001; Haces Velasco, 2006; Libson, 2012; Ortega
& Casillas, 2008). O trabalho de Lourenço Cardoso e o de Maria
Juracy Siqueira, no Brasil, revelam um "muro de silêncio" sobre
a paternidade adolescente, tanto do .lado das instituições e de
assistentes sociais envolvidas(os) com o tema, como na literatura e
na pesquisa. As duas pesquisas confirmam que se atribui um lugar
secundário aos pais adolescentes no processo reprodutivo e que
a anulação social da paternidade adolescente acaba por legitimar
sua ausência enquanto pais.
O outro tema que evidencia a diversidade da experiência
paterna é o das paternidades homossexuais. Entre os trabalhos
encontrados, destaco o de Maria de Los Ángeles Haces Velasco
(2006) e o de Micaela Libson (2012) no México. Uma das conclusões
dessas pesquisas é a de que para superar as dificuldades associadas
à lógica heteronormativa, os homens homossexuais que assumem
sua paternidade se veem fadados a enfatizar e reivindicar em seus
90 1 Mara Viveros Vigoya

discursos uma participação na criação e nos cuidados de seus filhos e


filhas maior que a assumida pelos pais heterossexuais. A experiência
de pais de filhas e filhos portadoras(es) de deficiência é um campo
ainda menos explorado. No estudo realizado por Patricia Ortega e
Magdalena Casillas (2008), no México, a novidade teórica e prática
se refere à centralidade da categoria de cuidado nas experiências
paternas, que se afastam do mero cumprimento da função de
provedores para se centrar na atenção e na proteção em relação às
filhas e, particularmente, às filhas em situação de deficiência.

Afetos e expressões emocionais de homens heterossexuais

Os trabalhos de Genoveva Echeverria (2015), Patricia


Garcia (2011), Argelia Gómez Ávila e Alejandra Salguero Velázquez
(2014) têm por objeto a forma pela qual os homens heterossexuais
estruturam sua relação com as expressões emocionais. Echeverria
estuda as concepções de amor de um grupo de jovens chilenos;
Garcia, Gómez Ávila e Salguero Velázquez se debruçam sobre os
discursos acerca da vida amorosa de homens solteiros mexicanos
da classe média. Os jovens estudados por Echeverria expressam
as contradições experimentadas entre a importância que eles
atribuem ao mundo das emoções e sentimentos em suas vidas e suas
dificuldades para manifestá-los em função das exigências impostas
pela masculinidade hegemônica. Não sabendo dominar a expressão
de suas emoções, a experiência do amor, que eles veem como um ideal,
se torna para eles um assunto complexo. Os discursos dos solteiros
de classe média mexicana analisados por Garcia (2011), Gómez Ávila
e Salguero Velázquez (2014) expressam, como diria Connell (1997),
cumplicidade com o projeto hegemônico de masculinidade. Eles
tentam assumir papéis que lhes dispensam das ligações amorosas
e se enchem de aventuras sexuais. É como se a vida intima, sexual e
emocional desses homens tivesse se adaptado a novas dinâmicas nas
quais o ideal de esposo, pai e provedor principal perdeu importância.
Apesar das autoras mostrarem como os homens mobilizam o discurso
sobre a equidade de gênero em assuntos relacionados à igualdade
econômica, nenhuma delas questiona como eles só reivindicam essa
igualdade quando lhes trazem "dividendos patriarcais".
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 91

Corpos de mulheres e identidades masculinas

Para terminar, farei referência a dois trabalhos que assinalam


a importância de pensar a masculinidade sem homens biológicos e de
analisar a construção da identidade e da experiência de gênero para
além das normas corporais. O primeiro é apresentado por Andrea
Lacombe em seus artigos Entendidas e sapatonas: socializações
lésbicas e masculinidades em um bar do Rio de Janeiro (2007) e Más
allá de Ias fronteras dela piei: masculinidades de mujeres en un bar dei
centro de Rio de Janeiro (2008)." O segundo é a pesquisa de Guilherme
Almeida (2012) sobre a aparição, no Brasil, de uma nova categoria
identitária, o "homem trans". A partir de estudos etnográficos,
Lacombe expõe os desafios que supõe a existência de mulheres,
em sua maioria lésbicas, que assumem diferentes formas de ser
mulheres. Suas performatividades expressam diferentes economias
do desejo, mediante formas particulares de se vestir, modos de
ocupar espaços e formas de linguagem corporal que escapam à
lógica da heterossexualidade obrigatória. Essas formas, que se
aparentam mais à masculinidade que à feminilidade, desestabilizam
o caráter universal das categorias "homem", "mulher", "feminilidade"
e "masculinidade". Lacombe explora as fronteiras do corpo fora da
pele, fronteiras deslocadas pelos gestos e estéticas que lembram que
o corpo biológico é só uma dimensão de sua configuração total.
Almeida explora a experiência identitária dos "homens trans"
no Brasil, mostrando que esta se diferencia tanto da identidade
lésbica como de outras expressões de gênero de pessoas cujos
corpos foram designados como femininos no nascimento, mas que
se opõem a essa designação, sem, no entanto, se afirmarem como
"homens" de maneira constante. Seu trabalho examina também
os vínculos entre o surgimento dos homens "trans" e sua rápida
capacidade de indiferenciação sexual a partir dos processos de
transexualização garantidos pelas modificações corporais como
a mamoplastia e a ingestão de hormônios. Ele discute, ao mesmo
tempo, o uso da expressão "homem trans" e algumas características
comuns a esses sujeitos que vivem processos bastante complexos de
autoidentificação e de construção da masculinidade. Os trabalhos de

Para além das fronteiras da pele: masculinidades de mulher em um bar do centro


do Rio de Janeiro. (N.T.)
92 1 Mara Viveros Vigoya

Lacombe e de Almeida assinalam a trama particular das experiências


de masculinidade que se produzem em corpos não categorizados
biologicamente como de homem. O dilema que eles apresentam
não é unicamente o da desaparição das categorias, mas também os
efeitos políticos e subjetivos que suscitam tanto a visibilidade como
a indiferenciação de seus corpos.
Em conclusão, os afetos e a sexualidade masculinos
compreendem uma gama ampla e complexa de relações que passam
não somente pelas orientações sexuais, os desejos, os gostos e as
identidades de gênero e sexualidade, mas também pelos contextos
sociais e culturais nos quais se expressam e se encarnam essas
relações. Podemos concluir com base nos trabalhos revisados que a
relação entre sexo, gênero e sexualidade é de grande complexidade
e que as formas pelas quais se constroem as identidades sexuais
e de gênero, os afetos e as relações dos homens entre eles e com
seus(suas) filhos(as) dependem, em grande parte, de categorias
localmente disponíveis para abordar o gênero e a sexualidade. Além
disso, vale assinalar que o ponto focal dos trabalhos se deslocou do
comportamento sexual em si mesmo, da identidade sexual e dos
afetos e representações em direção às práticas socioculturais e aos
espaços, inclusive virtuais, nos quais se produzem e constroem essas
relações.

Reflexões epistemológicas

A questão das circunstâncias históricas e sociológicas da


produção de conhecimentos sobre as masculinidades e de seus
critérios de validação não constitui uma preocupação central dos
trabalhos na região, com algumas exceções, como o trabalho de Ana
Amuchástegui (2001). Ressaltarei, no entanto, alguns pontos de
vista expressos em alguns artigos mobilizados para este capítulo.
Uma questão comum consiste em assinalar os limites das pesquisas
sobre homens que não mobilizam a teoria feminista em suas análises
(Gil, 2008; Medrado & Lyra, 2008; Menjívar, 2010). Franklin Gil
observa, por exemplo, que o conceito de "novas masculinidades" se
limitou a legitimar novos estilos de vida masculinos oferecidos pelo
mercado - como o dos metrossexuais e o dos "donos de casa" - que
não questionam o modelo atual de dominação sobre as mulheres,
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 93

nem interrogam os privilégios dos homens na sociedade. Por sua


vez, Benedito Medrado e Jorge Lyra, dois pesquisadores brasileiros
interessados nos estudos sobre homens e masculinidades no campo
da saúde, da sexualidade e da reprodução, destacam a importância
de trabalhar com marcos teóricos que apreendam o caráter plural,
polissêmico e crítico das leituras feministas do gênero. Esta é, para
eles, a única maneira de chegar a uma compreensão complexa e
crítica das masculinidades capaz de problematizar a dicotomia
natureza-cultura, dar conta das intersecções do gênero com os outros
marcadores sociais e romper com modelos explicativos binários que
ignoram as contradições e as falhas nas relações de poder.
Mauricio Menjívar (2010) prolonga essas críticas e
argumenta que os estudos das masculinidades não podem ser
interpretados em si mesmos como iniciativas que defendem as
transformações e a igualdade de gênero e que, ao contrário, um
bom número de pesquisas conservadoras tem buscado manter a
dominação masculina. Menjívar critica não apenas os pressupostos
políticos que têm dominado as pesquisas sobre masculinidades,
mas também os limites do uso das categorias críticas, como a de
"masculinidade hegemônica". Na perspectiva do autor, que segue
a argumentação de Demetrakis Demetriou (2001), o conceito de
masculinidade hegemônica não é o referente mais pertinente para
dar conta da estruturação das identidades masculinas porque
oferece prioridade explicativa às relações intergênero sobre
as intragênero. Para Menjívar, além disso, é crucial explicar as
circunstâncias particulares nas quais se estabelece a subordinação
de certos homens, por motivos raciais por exemplo, mas também
os recursos de que dispõem de acordo com cada contexto.
A socióloga Ange La Furcia (2013; 2015) faz um balanço
das potencialidades e dos vazios interpretativos dos principais
pontos de debate abertos pelos estudos colombianos. Para ela, os
maiores acertos desses trabalhos são, de um lado, o questionamento
do denominado "machismo latino-americano", expressão
mistificadora que naturaliza o sexismo dos homens da região e
se apoia em estereótipos de classe, raça e sexo e, de outro lado, o
desenvolvimento de análises interseccionais no âmbito da etnicidade
e da sexualidade. Ela aponta também duas deficiências: a primeira,
a ausência de trabalhos sobre masculinidades em grupos indígenas,
como experiências ancoradas na longa duração da colonialidade e
94 1 Mara Viveros Vigoya

na ideologia da mestiçagem; a segunda, é a necessidade de incluir


a experiência dos homens trans nas pesquisas, enquanto categoria
identitária de gênero que pode subverter ou perpetuar o modelo de
saber/poder neocolonial.
Do meu ponto de vista, embora tenha havido avanços nos
estudos sobre masculinidades na região, para além do "momento
etnográfico" - definido por Connell (2006) como o dos estudos
empíricos realizados para apreender as construções locais e
nacionais das masculinidades -, ainda falta um diálogo mais estreito
com a teoria feminista e um maior questionamento das agendas
políticas que orientam os estudos das masculinidades. Da mesma
forma, os trabalhos que consideram as masculinidades como parte
de uma trajetória histórica global ainda são raros. Trata-se, nesse
sentido, de conectar os relatos das masculinidades locais com as
histórias que vinculam diferentes áreas geopolíticas, os processos
coloniais, neocoloniais e os do liberalismo econômico mundial. A
masculinidade "como a globalização, se entende melhor em termos
de longa duração que evitam conclusões fáceis sobre suas supostas
características essenciais" (Strasser 8.1 Tinsman, 2010, p. 92). É
igualmente importante destacar que as estruturas de raça e classe
não operam em abstrato, mas, por exemplo, pelo viés de tecnologias
de subjetivação e de normalização cujo funcionamento deve ser
estudado empiricamente a nível local. Será, então, possível vincular
as estruturas molares de classe, raça e sexo às estruturas moleculares
dos afetos, sentimentos, emoções e representações estéticas, sem
supor que as últimas são lógica e ontologicamente dependentes das
primeiras (Viveros, 2015).

Representações culturais das masculinidades

Entre outras teóricas feministas, Teresa de Lauretis (1992)


assinala que o gênero é uma representação e que os estudos
das representações culturais da masculinidade podem ser
particularmente relevantes para analisar sua construção social.
Nas duas últimas décadas, tem sido crescente o interesse pelas
imagens da masculinidade na literatura, no cinema, na publicidade
e nos meios de comunicação. O objetivo é entender melhor como os
modelos das masculinidades se constroem social e culturalmente
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 1 95

e encontrar novos referentes menos ancorados nas imagens


tradicionais (Armengol & Carabí, 2008). Os trabalhos sobre as
representações culturais das masculinidades emergem atualmente
na América Latina e vão desde o estudo da literatura e das revistas de
alta difusão até o das peças publicitárias. Anselmo Peres Alós (2013)
e Patricia Ruiz-Bravo (2000) analisam diferentes obras literárias
latino-americanas que problematizam as identidades masculinas do
continente e os regimes heteronormativos de sexo e gênero. Embora
cada um deles escolha obras diferentes, coincidem em analisar a obra
No se lo digas a nadie [Não contes isso a ninguém] de Jaime Bayly,
indicando que seu trabalho permite retraçar os conflitos políticos e
econômicos que atravessaram a sociedade peruana e sua influência
na construção de diferentes formas de masculinidades, desde a
hegemônica, representada por algumas personagens dotadas de
poder, dinheiro, e status, até a marginalizada, representada por
dissidentes sexuais pobres.
A revista Men's Health [A saúde dos homens], anunciada
como "a maior revista masculina do mundo" é uma das revistas para
homens mais lidas no Brasil e a que promove mais ativamente o ideal
do "novo homem" (Ramos, 2011; Ribeiro; Araújo & Rohden, 2013;
Ribeiro & Russo, 2014). Essas características merecem que seus
pressupostos ligados ao gênero, à masculinidade e à sexualidade
sejam examinados mais de perto. A imagem do "novo homem",
oposta à do homem tradicional, difundida pela revista, é a de um
homem que se preocupa com seu corpo enquanto "máquina" e que
o mantém através do exercício físico e pela atenção que ele presta à
saúde, porque ele sabe que esta lhe facilitará seu sucesso profissional
e sexual. A valorização e a defesa dessas novas formas de ser homem
e a desqualificação da masculinidade tradicional são claramente
identificáveis no discurso da revista. As pesquisas concluem que
essas estratégias discursivas expressam a necessidade de convencer
os leitores ou de levá-los a negociar os sentidos que dão significados
à masculinidade para que adotem as normas sugeridas pela revista
sem temor de ver sua heterossexualidade posta em questão.
O ideal de masculinidade hegemônica é mantido nos espaços
publicitários (Londofio & Calderón, 2015; Castro & Cunha, 2015) e
pelas indústrias culturais que sustentam diferentes nichos do mercado
musical como o hip hop (Neira Cruz, 2015) e a música conhecida como
popular na Colômbia (Lesmes Espinel, 2016). Nicolás Londofio e
96 1 Mara Viveros Vigoya

Laura Calderón (2015), na Colômbia, e Roney Castro e Magaldi Cunha


(2015), no Brasil, examinam as propagandas locais do desodorante
Old Spice na televisão, no Youtube e no Facebook. Ambas as pesquisas
concordam que esses comerciais reafirmam valores como a força,
a coragem e o poder de sedução sobre as mulheres, que são, como
vimos, os mesmos veiculados pela revista Men's Health. A pesquisa
colombiana se interessou, além disso, pela reação do público e concluiu
que, embora os comerciais reanimem um discurso já conhecido sobre
"o homem de verdade", seu efeito depende do público. Sérgio Lesmes
Espinel identifica, nas canções e nas figuras masculinas arquetípicas
que estas convocam, uma forte resistência institucional e individual às
mudanças na ordem de gênero nos últimos quarenta anos. Enquanto
Andrea Neira Cruz vê na figura dos jovens hip-hoppers de Medellín
reconfigurações e desafios parciais à masculinidade hegemônica,
particularmente perceptíveis em seu trabalho comunitário como
artistas e gestores culturais.
Tanto os estudos da revista Men's Health como as análises
das propagandas comerciais e dos contextos culturais do hip hop
ou da música popular na Colômbia coincidem em assinalar que, no
contexto de uma economia global, o bombardeio da imagem de uma
identidade masculina viril, forte e heterossexual é uma ferramenta
útil para criar necessidades de consumo diferenciadas segundo o
sexo. Paralelamente, as análises ressaltam o impacto das indústrias
musicais na reprodução e reforço de modelos hegemônicos de
masculinidade centrados na heterossexualidade, na autoridade
masculina e na disponibilidade feminina. Indicam, igualmente,
a maior ou menor capacidade de agência do público frente às
injunções e às ideologias de gênero que difundem os produtores
dessas revistas, peças publicitárias e canções.

Espaços de homossocialidade masculina

Para terminar, farei uma breve referência aos estudos sobre


espaços de homossocialidade masculina como lugares identitários
nos quais transcorre uma parte da vida de muitos homens e nos quais
se exibe o capital produtivo, social e simbólico masculino. Os trabalhos
analisados nesta seção abordam o tema das interações entre homens
nesses espaços, cujo uso lhes é quase exclusivamente reservado.
Trinta anos de estudo sobre homens e masculinidades na Nossa América 97

Denise Fagundes Jardim (1992; 1995) estuda a construção


da identidade masculina nas classes populares brasileiras a partir
da descrição dos butecos, bares onde os homens dos bairros
populares de Porto Alegre se encontram para falar de política,
esporte ou negócios, excluindo, na medida do possível, assuntos da
vida privada, que só são abordados de um modo impessoal, lúdico e
codificado, sem consequências para a vida pessoal daqueles que ali
se reúnem. A capacidade de suportar o álcool é uma das expressões
performativas privilegiadas, pela qual os clientes do buteco
produzem e reforçam uma imagem pública positiva de si mesmos.
As academias e centros esportivos são outro cenário contemporâneo
importante de representação da masculinidade, como o indica
Edison Gastaldo (1995) analisando a forma pela qual se exibe o
corpo masculino em uma academia de esportes de combate. Três
regras moldam essa exibição: sua utilização exclusiva para a luta, o
desprezo pela dor e pelo cansaço e a submissão à disciplina férrea
que rege essa prática. Por último, o trabalho realizado por Eduardo
Archetti (1998), na Argentina, onde o futebol é um elemento
central da identidade nacional, mostra a importância dos estádios
de futebol como espaços nos quais os torcedores dramatizam sua
identidade masculina através dos cantos de torcida, defendendo-a
com veemência enquanto desqualificam a dos adversários. As três
pesquisas expõem os critérios que organizam as relações entre
homens: a força, o controle e o poder. Elas mostram, além disso, como
a gestão do "território", que designa um sentido a um lugar - seja o
do bar, da academia ou do estádio de futebol -, e a história comum
que eles constroem aí os convertem em espaços de afirmação da
masculinidade adulta e juvenil.

Conclusão

O campo acadêmico dos trabalhos sobre homens e


masculinidades continua crescendo em meio a debates nos quais
as vozes afirmam a necessidade de compreender a masculinidade
no interior da estrutura maior do gênero (Connell, 1997) e em
sua articulação a uma dinâmica social na qual participam outras
estruturas e ordens de poder como a classe, a raça e a etnicidade, a
idade, a situação de incapacidade e outras diferenciações emergentes
98 1 Mara Viveros Vigoya

nas sociedades contemporâneas. Eu quis mostrar a pertinência de


dar conta da diversidade da produção acadêmica nossamericana
sobre masculinidades: ela faz parte de um conhecimento cada vez
mais internacional (Connell, 2015a), mas que continua marcado
por dois pressupostos que já assinalei (Viveros, 2002). Primeiro, o
que consiste em designar às pesquisas latino-americanas o lugar de
exportadoras de matérias-primas de conhecimento (de experiências
sociais) e de importadoras de paradigmas para interpretar e
tratar teoricamente essas matérias-primas; e, em segundo lugar,
a persistência de uma imagem essencialista e homogeneizadora
da "masculinidade latino-americana", relacionada aos imaginários
coloniais, modernizadores e europeizantes sobre as masculinidades
dos grupos sociais dominados.
Ainda que provisória e imperfeita, a síntese oferecida neste
capítulo me permite afirmar que, com a ajuda de estudos históricos
e contemporâneos, vale a pena continuar documentando, mais
e melhor, as resistências, mas também as adesões dos homens
desses grupos - camponeses, "índios", "Negros", dissidentes sexuais,
pessoas em situação de deficiência - às normas hegemônicas da
masculinidade, e que é importante, igualmente, reabilitar o caráter
potencialmente contestatório de suas lutas.
SEGUNDA PARTE
MASCULINIDADES NOSSAMERICANAS
3. CORPOS NEGROS" MASCULINOS: MAIS ALÉM OU
MAIS AQUÉM DA PELE

Embora ela admitisse a ideia como especulação monetária, não se


resolvia a aceitar que um negro pudesse ser médico de confiança,
nem que se entregasse a carne de um parente a um homem de cor.
Ninguém recomendaria a um negro a edificação de um palácio, a
defesa de um réu, a direção de uma controvérsia teológica ou o
governo de um país.
Alejo Carpentier
O século das luzes

Em janeiro de 2014, a revista cultural colombiana Arcadia65


descrevia a trajetória artística de Chocquibtown, um grupo musical
cuja canção Somos Pacifico tinha recebido menção especial no
Festival de Música do Pacífico Petronio Álvarez de 2008, considerada
uma mostra da música do Pacífico do futuro. O grupo, que mescla
rap com música do Pacífico, conquistou grande popularidade e goza
de reconhecimento nacional e internacional. No final do artigo de
2014, o jornalista, um dos gestores culturais mais influentes à época,
evocava a "magia" que produzia a conjunção dos talentos dos três
integrantes do grupo - "a força de Tostao, o carisma de Goyo e a

64 Na Colômbia, as denominações "negro", "afro-colombiano" e "afrodescendente"

têm sido objeto de intensos debates nos âmbitos acadêmico e político. Para as (os)
militantes da organização Cimarrón, uma das primeiras e principais associações
políticas negras, o termo negro deveria ser abolido do vocabulário, pois seria uma
categoria criada para legitimar a escravização e a dominação social. Admitem seu
uso unicamente como adjetivo e não como substantivo e militam pelo uso dó termo
afro-colombiano como substantivo para definir um novo ator social, do qual se
destaca a especificidade cultural (afro) e a integração política (colombiana). Para
discussões mais amplas sobre o tema, ver Cunin (2002). No meu ponto de vista, não
se pode ignorar que em um mundo onde o negro não está validado, nem cultural nem
socialmente, assumir o termo negra(o) como um elemento de resistência cotidiana
é estratégico e político. Revalorizar o que é negro significa reivindicar como positivo
o que foi objeto de discriminação e desvalorização. A autodenominação pode
produzir um sentimento de identidade assumido positivamente e se tornar uma
forma de subverter o sistema de classificação dominante (ver Curiel, 1999; Lavou-
Zoungbo, 2001, entre outras(os)).
Garay (2010). Artigo disponível em: <http://www.revistaarcadia.com/musica/
articulo/somos-pacifico/20351>.
102 I Mara Viveros Vigoya

cadência de Slow" - e afirmava que sua importância residia em sua


capacidade de gerar um ritual de comunhão, afirmação e orgulho da
cultura negra.
Esse tipo de comentário dá conta de algumas das mudanças
trazidas pelo multiculturalismo estatal na Colômbia. Por exemplo, a
ideia de que a música popular pudesse ser contagiada pelo folclore
do Pacífico - o que não acontecia há mais de quarenta anos - e que
novos setores da população pudessem se interessar por uma música
tradicional identificada como negra. Eu aproveitei a oportunidade
dessa reflexão para rastrear as conexões entre esse novo interesse
pela música do Pacífico e a maneira pela qual essa expressão musical
se articula com as percepções sexualizadas e racializadas dos corpos
masculinos negros na Colômbia. Veremos mais adiante que essas
percepções têm sido elaboradas em uma história marcada pela
escravidão, pela experiência colonial, pelo desejo de participar do
"concerto das nações modernas" e pela adoção estratégica de uma
política multicultural com o objetivo de gerar maior inclusão social
e reconhecimento da diversidade. Nesse sentido, explorar essas
conexões é também adentrar nas relações sociais e discursos que as
têm constituído.
Quando se evoca a fascinação branca pelo erotismo,
sensualidade e "febre" dos corpos negros, é geralmente nas mulheres
negras jovens que se pensa; os imaginários e estereótipos sobre a
sexualidade masculina negra só foram ocasionalmente estudados. É
interessante, então, analisar as respostas dos homens negros frente
a esses imaginários quando, por exemplo, são descritos como seres
dionisíacos, fundamentalmente centrados no gozo dos sentidos
através do consumo de _álcool, da dança e da sexualidade. Eles
assumem esse estereótipo como negativo ou o transformam, pelo
contrário, em um valor positivo? E neste caso, como interpretar a
transformação de um elemento "negativo" da identidade negra em
um valor positivo? É uma forma de resistência através da afirmação
da diferença? É uma reelaboração de concepções racistas? É uma
cumplicidade com o modelo hegemônico da masculinidade? Que
papel desempenham as diferentes formas de entender, perceber
e pôr em ação o corpo negro masculino nessas estratégias? Que
impacto têm as práticas musicais e performativas de grupos como
Chocquibtown e Herencia de Timbiquí, símbolos de afirmação e
orgulho da cultura afro-colombiana nesses imaginários sobre os
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 103

corpos masculinos negros?


Utilizo diversas fontes para responder a essas questões.
Primeiramente, três pesquisas realizadas entre 1998 e 2014
(Viveros et al., 1996; Viveros, Gil Hernández & Angola, 2010;
Viveros & Gil Hernández, 2012) centradas na problematização
das masculinidades" e das identidades negras na Colômbia; em
seguida, uma primeira análise da produção musical e performativa
dos grupos mencionados anteriormente, que faço dialogar com os
resultados destas pesquisas. Explorarei, em primeiro lugar, os efeitos
da linguagem e dos imaginários racistas na experiência vivida do
corpo masculino negro; depois, examinarei como sexualidade e raça
se imbricam nos estereótipos sobre os homens negros enquanto
seres naturalmente dionisíacos, levando em conta que a atração da
sociedade branca por algumas características do mundo negro e a
resposta deste frente a ela se dão em um contexto de dominação-
resistência (Wade, 1997; Mosquera & Provansal, 2000). Finalmente,
analisarei as propostas musicais e performativas de Chocquibtown e
Herencia de Timbiquí como processos intersubjetivos que desafiam
parcialmente a alienação da qual os corpos negros masculinos têm
sido objeto na Colômbia.

A linguagem racista e a experiência vivida do corpo negro


masculino

No capítulo L'expérience vécue du noir [A experiência vivida do


negro] de Peau noire, masques blancs [Pele negra, máscaras brancas],
Frantz Fanon conta uma anedota que lhe aconteceu quando estava
terminando seus estudos de medicina em Lyon, no início dos anos
1950. Enquanto passeava pela rua, ele cruzou com um garoto branco
que disse a sua mãe "Olhe o preto! Mamãe, um preto!". Essas palavras,
saídas da boca do menino, petrificaram Fanon, que se descobriu "um
objeto em meio a outros objetos" (1952, p. 88), "como um corpo
desancado, desconjuntado, demolido, todo enlutado, naquele dia
branco de inverno" (p. 91). Fanon constata que essa palavra fazia
dele "um objeto bidimensional de geometria euclidiana". Estava "aí

66Lembro que minha reflexão não adota uma posição essencialista que assimilaria
os homens à masculinidade.
104 1 Mara Viveros Vigoya

fora" sem ter um "dentro" (Gordon, 2009, p. 240). Mas não há só as


palavras, há também "os olhares brancos, os únicos verdadeiros",
os que o "dissecam" e o "fixam", no sentido em que se fixa uma
preparação para um corante e "tendo ajustado o micrótomo", eles
realizam, objetivamente, cortes na (sua) realidade (Fanon, 1952,
p. 93). A força da linguagem o congelou; ele se encontrava em uma
situação de bloqueio epistêmico, definido por Lewis Gordon (2009)
como "um momento de suposto conhecimento total de um fenômeno,
que impede de continuar a fazer questionamentos" (p. 141).
Os estereótipos - essas ideias que fazemos de alguém ou
de alguma coisa a partir de imagens que são "exteriores" e não
possuem um "dentro" - constituem também uma situação de
fechamento epistêmico, que não tolera perguntas. Surgem quando
avaliamos uma pessoa e a percebemos como uma realidade
ontológica "sobredeterminada do exterior" (Fanon, 1952, p. 93);
nunca têm uma forma interrogativa. O próprio dos estereótipos é
a simplificação da realidade a partir de um número reduzido de
elementos específicos que são exagerados, da ocultação consciente
ou do simples esquecimento. Com base nos estereótipos,
presumimos que já sabemos tudo o que precisamos saber de uma
pessoa ou grupo, definindo cada unidade que o compõe por seus
elementos. Dito de outra forma e para resumir, "quando se viu um,
já se viu todos" (Amossy, 1991).
Na Colômbia, algumas expressões da linguagem cotidiana
mostram que os estereótipos desqualificadores a respeito das
pessoas negras ainda existem. "Trabalhar como um negro", por
exemplo, significa trabalhar em excesso (como um escravo), não se
refere à capacidade de trabalho da pessoa que utiliza essa expressão,
mas ao fato de assumir uma carga de trabalho excessiva para seu
status sociorracial. Da mesma forma, qualquer desvio em relação
às normas sociais, estéticas ou morais ou qualquer comportamento
inadequado, acompanhados da expressão "tinha de ser negro"
converte o equívoco ou desvio da norma em uma característica
essencial das pessoas negras.
Mas, como a mera evocação da palavra negro pode ter
tanto poder e paralisar de tal modo? William Edward Burghardt
Du Bois (1953) oferece elementos para a resposta quando observa
que as pessoas negras têm, ao mesmo tempo, um ser exterior, fixo,
construído pelo olhar dos outros e um ser "interior" que se dá conta
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 105

de que ele ou ela é percebida como um ser sem ponto de vista,


desumanizado. Esta interação entre a visibilidade, o pensamento e
sentimento que ela suscita faz desmoronar o esquema corporal e
instaura um "esquema epidérmico racial" (Fanon, 1952, p. 90). Du
Bois acrescenta que as racionalizações do pensamento ocidental
são incapazes de dar conta desta sobredeterminação do corpo como
"coisa", pois elas não autorizaram as pessoas assim "alterizadas" a se
comportarem como seres críticos, nem desenvolverem a consciência
crítica necessária para questionar a teodiceia da civilização ocidental.
Ora, os estereótipos raciais sobre as populações negras existem há
muito tempo tanto no continente americano, como no europeu.

A imaginária europeia dos corpos africanos

Quando os escravos africanos chegaram a estas terras


americanas, eles já tinham um lugar no imaginário colonial da
região. Alimentado pelas representações construídas na Europa
antes da colonização espanhola, em função das viagens comerciais
e da conquista empreendida na África, esse imaginário se fez mais
complexo com a experiência da escravidão na América. A imaginação
colonial relacionou a sexualidade desviante com a diferença
racial e cultural e com as terras longínquas. Assim, os homens
colonizados - e/ou escravizados - foram representados como
excessivamente libidinosos e sexualmente incontroláveis (Brancato,
2000; McClintock, 1995; Young, 1995; Wade, 1993; 2009a). Para o
Estado colonial, os poderes sexuais atribuídos aos homens negros
ameaçavam a pureza racial e a instituição familiar 67 e atuavam como
elementos catalisadores do dualismo corpo-espírito, próprio desta
tradição (Borja, 1992). A sexualidade foi, assim, um meio de manter
ou anular a diferença racial.
Michael Taussig (2009) associa as atitudes europeias com
relação à cor com a divisão colonial do mundo na qual o homem "em

67 Desde o inicio da colonização, alguns homens negros buscaram tirar partido


das leis dos brancos levando a cabo uniões, legais ou não, com mulheres indígenas
livres. Em suas relações com os espanhóis, as mulheres escravizadas adotaram
condutas idênticas utilizando o erotismo como vetor de ascensão social para
si e sua prole em uma sociedade extremamente hierarquizada (Bastide, 1970;
Bernand & Gruzinski, 1988).
106 1 Mara Viveras Vigoya

estado natural" ama as cores vivas, enquanto os europeus as temem.


Vanita Seth (2010) prolonga e matiza esta afirmação mostrando
as condições epistêmicas e históricas que permitiram pensar a
diferença. Segundo ela, do século das Luzes ao século XIX, a cor da
pele passa a ser um marcador cada vez mais utilizado nos tratados
científicos para evocar as "bases fisiológicas da diferença" entre
africanos e europeus. O africano se tornou "a pessoa da pele", o sujeito
definido em termos epidérmicos comparativamente ao europeu,
que se converteu na "pessoa do olho", definida em termos escópicos
(Benthien, 2004). Stuart Hall (1997) acrescenta que o olhar europeu
sobre a África era ambíguo. O continente era percebido como um lugar
misterioso, mas, no entanto, frequentemente contemplado de forma
positiva, como mostra a inclusão dos santos negros na iconografia
cristã medieval. Esta imagem se transformou gradualmente e o
simbolismo cristão começou a associar o negro com o mal e o
branco com o bem (Bastide, 1970). Nas representações pictóricas
católicas, o diabo foi personificado com a pele negra contrariamente
aos santos, às virgens e aos anjos, cuja pele era branca. Os africanos
foram declarados descendentes de Ham, condenados na Bíblia a ser
"escravos de escravos de seus irmãos" pela eternidade.
As hierarquias racistas foram defendidas e legitimadas pela
razão científica ao longo da história. Hegel declarou, neste sentido,
que a África não era "parte histórica do mundo nem "tinha
movimento ou desenvolvimento que exibir" e, até o final do século XIX,
exploradores e colonizadores europeus descreveram o continente
africano "como [...] uma terra de fetichismo, povoada por canibais,
demônios e bruxas [...]" (apud McClintock, 1995, p. 41). Os imaginários
sobre os africanos contribuíram para desenvolver um etnocentrismo
sexual profundamente enraizado entre os europeus. "Além de ajudar
a desenvolver um sentido de superioridade cultural e tecnológica
europeia e a fechar os olhos às atrocidades cometidas, havia razões
materiais claras para descrever os africanos como seres sexualmente
selvagem e promíscuos. Estas razões estavam relacionadas ao
colonialismo e ao tráfico de escravos" (Nagel, 2003, p. 96).
Do mesmo modo que Américo Vespúcio e Cristóvão Colombo
descreveram os habitantes do Novo Mundo, os etnólogos europeus
representaram durante muito tempo as mulheres e homens africanos
como seres animalescos, cujos desejos sexuais transbordantes
deviam ser controlados para o bem da moral branca. Este argumento,
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 107

repetido a exaustão durante séculos, se converteu em um meio


eficaz para justificar a escravização e todo tipo de excessos, como os
estupros das mulheres nativas e africanas nas Américas. As palavras
e as imagens sexuais racializadas descritas participam dessa
arqueologia retórica, significativa e perturbadora das raízes sexuais
do pensamento e do discurso racista contemporâneo.

Sexo, sexualidade e raça nos estereótipos sobre os homens


negros

Diversos autores têm mostrado que as formas de nomear


a dominação sexual e a dominação racial se superpõem de várias
formas. Para Sylvia Wynter (1990), o início da modernidade
colonial corresponde ao momento no qual as diferenças sexuais
e raciais se vinculam através de apreensões diversas dos corpos
e suas associações com a pele; quando a cor da pele, visualmente
diferenciada, se torna a característica primária pela qual se define
a diferença étnica. Eleni Varikas (1990) assinala que, a partir da
Revolução Francesa, a designação da opressão feminina passou pela
metáfora da escravidão, recorrer a outras categorias de excluídos(as)
mais visíveis e universalmente reconhecidas foi uma forma de
nomear a invisibilidade do caráter social da exclusão das mulheres.
Além disso, os grupos dominados sexualmente (como as mulheres ou
os homossexuais) ou racialmente (os não-Brancos) são identificados
com a natureza, não com a cultura e se veem caracterizados pela
mesma ambivalência imputada à natureza (Stengers, 1984, p. 52):
ou são passivos e dependentes como as crianças e descritos como
carentes (de iniciativa, de capacidade intelectual e de vontade) ou
são excessivos (em emotividade, irracionalidade e sexualidade).
Essas aproximações existem tanto no nível do senso comum
como dos especialistas. É, com efeito, sobre a base de estudos
supostamente imparciais, com dados "puramente empíricos",
que as mulheres e o feminino foram representados como a raça
inferior dos sexos e que os não-brancos foram assimilados à espécie
feminina entre as espécies humanas (Schiebinger, 1987; Brancato,
2000). Neste sentido, tanto o negro como o feminino desafiam o
entendimento racional e significam uma falta. Por outro lado, assim
como a feminilidade pode ser definida a partir de estereótipos
108 1 Mara Viveros Vigoya

opostos - como o da virgem e o da prostituta, ou o da mãe e o da


bruxa -, podem-se atribuir ao "outro", no sentido étnico-racial,
características femininas que vão em um ou em outro sentido. Assim,
o homem negro68 pode ser representado como primitivo, dócil e
afável, porque não representa uma ameaça para a masculinidade
hegemônica ocidental (poderosa, autoritária e cheia de iniciativa)
ou, ao contrário, como brutal e sexualmente insaciável por oposição
ao homem branco, descrito desta vez como um cavalheiro civilizado
e protetor. Em resumo, nas sociedades coloniais e pós-coloniais,
estruturadas pelo racismo, um homem é viril somente na medida em
que isso pode ser útil aos interesses da masculinidade hegemônica
das classes dominantes.
Na Colômbia, a persistência dos estereótipos de origem
colonial a respeito dos homens negros desempenha um papel chave
na configuração de sua masculinidade. É interessante analisar as
reações dos homens negros frente a esses estereótipos e seus efeitos
no seio da comunidade negra. Para abordar o tema, vou retornar à
minha experiência etnográfica com grupos de jovens entrevistados
de Quibdó, capital do departamento do Chocó, um dos mais pobres
do país e com maior porcentagem de população negra. Essas
entrevistas coletivas foram realizadas em Bogotá, a capital do país,
uma cidade com baixa porcentagem de população negra e onde o
cotidiano desses jovens quibdosefíos é continuamente interpelado
pelas representações de que são objeto.

Dionísios negros: "o sabor, a gente traz no sangue"

Nas múltiplas entrevistas que conduzi em torno dos


estereótipos sobre os homens negros como seres dionisíacos,
meus entrevistados evocavam sempre o talento para a dança como
um atributo que lhes era próprio porque o "levavam no sangue". O
questionamento dessa suposta evidência da dança como talento
natural das pessoas negras lhes parecia absurdo; nossos diálogos

" Nos contextos coloniais, como o descrito por Fanon, a qualidade viril dos homens
sempre está posta em questão. Dai sua afirmação de que o homem negro não é um
homem e sua rejeição visceral do papel reservado para ele como homem negro
desumanizado, mesmo quando seu mais ardente desejo é ser um homem (Gordon,
2009).
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 109

eram sempre acompanhados de movimentos das mãos, dos braços,


da cintura e de risos em uníssono. Essa expressão quinésica era
uma maneira de encenar o substrato não-verbal de uma afirmação
identitária (Losonczy, 1997). Eu podia entrever em muitos deles a
satisfação de serem dotados de aptidões que pareciam conferir-lhes
uma certa superioridade e constituíam, nesse sentido, atributos
compensatórios para sua imagem no contexto colombiano, no qual
ser negro equivale potencialmente a ser discriminado.
Você não gosta que lhe cortejem? Não gosta de se sentir
bajulada? Me perguntaram surpreendidos por minha inquietude
- de mulher negra universitária - frente a sua interpretação
dessa imagem. É algo genético, está no sangue, a gente é assim. O
que acontece é que nós, Negros, temos sabor. Disseram, definindo-
se a si mesmos como o grupo situado no alto da escala quanto
às potencialidades corporais. Falar isto assim era afirmar
implicitamente que eles tinham, por fim, encontrado um terreno
no qual os Brancos perdiam, o da dança e da música.

A gente só dança porque tem sabor no sangue. Desde pequenos, a


gente nasce em uma terra de diferentes folclores e isso nos força
muito a aprender a dançar, a mexer o corpo. Desde crianças, a gente
já sabe mexer a cintura. [...] Pra gente, a dança é uma diversão, algo
espontâneo que se chama sabor, 'esse cara tem sabor' e é disso que
a gente toda gosta, não é uma profissão.

Diversos autores (Bastide, 1970; Losonczy, 1997; Wade,


1993; Arango Melo, 2008; entre outros) afirmam que a música e a
dança têm sido, historicamente, bases culturais importantes para as
pessoas negras. A linguagem corporal, gestual e rítmica surge como
um dos pilares mais sólidos de diferenciação e de autoidentificação
dos Negros frente à América dos indígenas, dos mestiços e dos
Brancos e como o fundamento mais resistente da memória coletiva
implícita afro-americana (Losonczy, 1997). Na Colômbia, a música
e a dança têm sido dois núcleos constitutivos da identidade negra, e
também, são elementos a partir dos quais as pessoas negras têm sido
percebidas e avaliadas pelas pessoas mestiças ou branco-mestiças
do interior do país.69 Trabalhos etnográficos como o de Ana Maria

" A música negra foi integrada ao repertório musical da sociedade colombiana e


reconhecida como uma contribuição das pessoas negras à identidade e à história
110 1 Mara Viveros Vigoya

Arango Melo (2008; 2014) nas comunidades afro do Chocó assinalam


"que para além do estritamente musical e rítmico [dancistico],
[...] há um complexo universo de códigos sonoros e corporais que
inundam a cotidianidade deste território e que são a entrada para
compreender muitos elementos de suas formas de ser, imaginários,
cosmologia e desejos" (2014). A partir da capital do país, que se
autorrepresenta como branco-mestiça, o mundo negro é percebido de
forma ambivalente: primitivo, subdesenvolvido, inclusive moralmente
inferior; mas também poderoso e superior no âmbito da dança, da
música e das artes amorosas. Esta dimensão pareceria permitir, como
assinala Fanon, uma relação de coexistência entre o mundo objetivo e o
mundo subjetivo negro, no qual "as 'mãos sonoras' devoram a garganta
histérica do mundo" e trazem um pouco de "alimento humano" a uma
sociedade branca mecanizada (2008, p. 117).
Apesar do entusiasmo inicial de nossas conversas, o
desencanto aparece e um de meus entrevistados resume assim um
sentimento compartilhado:
A gente daqui sabe que tem muitas capacidades intelectuais,
demais, e muitas vezes não veem a gente dessa forma, mas só
pelo lado da dança e do sexo, e não tentam ver o que realmente a
gente leva dentro ou o que a gente é como pessoa. Quando querem
desvalorizar a gente, eles dizem isso, e mais 'dão língua', não pela
frente, mas por trás, dizem coisas que são falsas. Eu gostaria muito
de que as pessoas prestassem mais atenção às nossas capacidades
intelectuais.

Com efeito, essa suposta superioridade dos Negros remete


a um campo desvalorizado sob vários aspectos: material, posto que
essas habilidades não geram necessariamente riqueza econômica
e simbólica; cultural, porque, na escala de valores dominantes,
as formas culturais negras não fazem parte da ideia mesma de
cultura colombiana; e, enfim, moral, porque o corpo e a carne ainda
são considerados como os territórios por excelência do pecado.

nacionais, particularmente atrativa pelo impulso dionisíaco que ela traz (Wade,
1997). Isto não significa, no entanto, que a relação que a sociedade colombiana
branca ou branco-mestiça mantém com o negro esteja desprovida de ambivalência.
Por outro lado, deve-se levar em conta que todas essas categorias - branco, branco-
mestiço, negro - são relacionais e não constituem grupos socialmente homogêneos.
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 111

Em resumo, na escala civilizatória, o negro representa um estágio


inferior. Assim, a atração da sociedade branco-mestiça colombiana
por algumas características do mundo negro e a resposta que este lhe
apresenta se inscrevem em uma relação de dominação-resistência;
que outorga poder econômico e político à sociedade branca, enquanto
as pessoas negras utilizam a música e a dança como formas culturais
de resistência contra a dominação branca (Wade, 1993; Mosquera
Provansal, 2000).

Resistências limitadas

Uma das estratégias corriqueiras dos entrevistados consiste


em transformar esse imaginário em atributo positivo (Agier, 1992),
invertendo a relação de dominação. Suas habilidades para a dança
e a música se transformam, assim, nas "características joviais da
raça", como dizem alguns deles e em uma fonte de superioridade
no domínio corporal. Este recurso, mobilizado por outros grupos
dominados através da história - como os movimentos feministas
europeus do século XIX que se autodesignavam parias para
representar sua posição social (Varikas, 1990; 1995) - é o que
Michel Agier chama de a utilização "[d]as homologias formais de
inversão e supernaturalização da identidade". Para o autor "[a]
s tendências dionisíacas, até agora opostas à competitividade e
ao trabalho, são transformadas em uma competência festiva da
raça, criadora de cultura e de diversões mercantis" (Agier, 1992, p.
61). Este procedimento, que dá um sentido positivo à identidade
coletiva, é utilizado por nossos entrevistados quando transformam
o termo piche pejorativom - em um signo de união, cumplicidade
-

e solidariedade entre os negros. O procedimento é similar quando


retomam o termo raza [raça] para se descrever enquanto grupo
e fazer o elogio das qualidades físicas, mentais e artísticas das
pessoas negras. Inclusive, a associação eventual do negro com
o primitivo é transformada em expressão de sua proximidade à
"natureza", com toda a força evocadora que pode ter essa imagem.
Quando os entrevistados idealizam a vida de seus avós que

70 O termo niche designa, de início, uma pessoa negra e, por extensão, uma pessoa de
condição social inferior e de comportamento vulgar ou de mau gosto.
112 1 Mara Viveros Vigoya

viviam sadios e felizes em uma natureza paradisíaca, com várias


mulheres e muitos filhos - prova de suas capacidades sexuais
e genitoras -, eles retomam a visão romântica da natureza e a
ideia amplamente difundida do "bom selvagem", pela qual foram
percebidos. A esse respeito, um deles afirma:

Antes, pelo menos no Chocó, os homens eram bem mais quentes. No


campo, eles tinham três ou quatro mulheres e satisfaziam a todas
e com todas tinham filhos [...] Eu tenho um avô que tem noventa e
seis anos e a última filha, eu não sei se é dele, tem quinze anos. E ele
está bem firme e nós somos tipo oitenta netos.

Os entrevistados evocam com nostalgia um passado rural, no


qual os homens negros se vangloriavam de todo seu ardor "natural" e
consumiam alimentos naturais (desprovidos de elementos químicos)
que mantinham sua potência física e sexual superior à dos Brancos:"

Antes, no campo, os velhos lá, a comida deles era toda natural; se


queriam tomate diziam: "anda, me traz um tomate lá da sotea","
como dizemos lá no Chocó. Agora, pra tudo o que é cultivado, eles
começam a usar pesticidas e isso vai de uma forma ou de outra
afetar alguma célula da parte viril. Eu creio que isso [a capacidade
viril] foi se perdendo pouco a pouco... Mas chegou o Viagra [risos] e
isso influenciou muito a alimentação...

Esta idealização não só opera com relação ao natural, mas


também como um modelo de masculinidade que valoriza o número
de parceiros sexuais e de filhos como prova de virilidade. Virgínia
Gutiérrez de Pineda, em seu trabalho clássico sobre Familia y cultura
en Colombia [Família e cultura na Colômbia], afirma, utilizando
a linguagem da época, que "o macho autêntico desta subcultura
(a do complexo cultural negroide ou do litoral flúvio-mineiro) é
aquele que dá mostras de virilidade procriando uma descendência

71 São atribuídas virtudes afrodisíacas a muitos alimentos próprios da região


do Choco, como a pupunha e o borojó. Não sabemos se esta crença provém da
constatação do comportamento poligâmico dos homens ou se, pelo contrário, a
potência sexual é percebida como o resultado das propriedades desses alimentos.
72 As soteas são cultivos especiais realizados em canoas elevadas do chão, nas quais
se cultivam frutas e legumes como a cebola, o coentro, o tomate etc. (Montes, 1999,
p. 169).
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 113

ilimitada, rica em homens que multipliquem seu sangue e seu


sobrenome e se convertam em prova viva de sua capacidade
procriadora" (1994, p. 301). No entanto, a descrição aparentemente
neutra da antropóloga e o comentário de nosso entrevistado, ambos
glorificando a virilidade e capacidade procriadora dos "homens do
complexo cultural negroide", expressam uma assimilação passiva
de representações estereotipadas da masculinidade negra como
sexualmente irrefreável, carregada de "erotismo animal" e, portanto,
menos apta para realizar o ideal patriarcal que outras formas de
masculinidade como a dos homens branco-mestiços do complexo
cultural da Antioquia [departamento colombiano, situado no
noroeste do país] ou a da montanha.
Alguns dos jovens quibdoseã os explicam essa suposta
superioridade sexual dos homens negros não como um atributo
natural, mas como um produto da cultura, essencializada como
"cultura tropical", que transmite uma relação diferente com o corpo
e a sexualidade, e também códigos amorosos e sexuais particulares:

Em nossa cultura não é como aqui [em Bogotá]. Lá [No Quibdó],


quando um cara gosta de uma menina, diz a ela. O cara propõe e ela
decide... e pronto. Lá, se divertir ou estar com uma garota é normal
e o cara tenta fazer com que ela se sinta o melhor possível. Lá, é
como o clima, a gente vive desse jeito: quente, alvoroçada. Lá a gente
vive muito alvoroçada e se fala muito em tesão [arrechera]73 [...] e a
forma de se vestir influencia muito nisso. Tu sabes que tudo entra
pelos olhos e as mulheres de lá andam de sainhas, de shortinhos,
de top, tudo isso influencia. Aqui em Bogotá, tem que andar bem
coberto por causa do clima. Aqui, com tudo coberto, a visão não
se diverte e não envia nada ao cérebro, não envia a informação
necessária [risos].

Nesse mesmo sentido, outro deles elucida:

Um cara desde que nasce, desde menino, já sabe o que é uma


mulher. Não é como aqui que os meninos aprendem mais tarde e
começam a conhecer a mulher depois dos doze anos ou mais. Lá, na

7' No dicionário de Maria Moliner (2007), arrecho é um termo popular utilizado


em alguns países (Bolívia, Colômbia, Cuba etc.) e em botânica que significa rígido
e erguido, garboso. Por extensão, arrechera é utilizado para designar a excitação
sexual ou a indignação e a cólera.
114 I Mara Viveros Vigoya

nossa cultura, desde menino já se é curioso pra tocar uma menina,


tocar uma mulher, desde os dez anos [risos].

"Os do interior te dão fama"

Nem todos os homens de Quibdó afirmam essa superioridade


com tanto entusiasmo, ou desejam enfatizar suas "diferenças" com
relação aos demais colombianos. Alguns insistem em assinalar que
esses supostos poderes sexuais e sensuais decorrem mais de uma
atribuição feita por seus companheiros de estudo em Bogotá que de
seu ponto de vista próprio:
Essa opinião, eu conheci desde que eu cheguei aqui a Bogotá,
conheci através dos colegas. Porque eles diziam "esse moreno é
uma fera em tudo", mas às vezes... Lá na tua terra, pra ti lá isso é algo
simples e normal, já pra vocês aqui, isso passa dos limites.

Outro entrevistado afirma com pertinência:


Não somos nós que nos damos prestigio, eles é que se interessam
por nós. Eles dizem "o Negro é tal coisa". Não é que a gente se sinta
prestigiada, são eles, os do interior, que te dão fama. Às vezes, eles
exageram... eles te dão prestigio e desprestigio também! [muitos
risos].

Este comentário vai na mesma direção que o de Frantz


Fanon quando declara que "[e]nquanto o Negro estiver em casa
não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas,
experimentar seu ser por outro" (1952, p. 88). Seria possível
objetar que este é o caso para todo indivíduo que tem a experiência
de viver fora de casa. No entanto, para as pessoas negras, afrontar
o "olhar branco" é enfrentar uma experiência particular, a de ter
uma "dupla consciência", como o expressou precocemente Du Bois
no começo do século XX. Essa dupla consciência dá a estranha
sensação "de estar sempre se olhando através dos olhos de um
outro, de medir a alma própria com a medida de um mundo que
os considera como um espetáculo, como uma diversão tingida de
piedade desdenhosa" (Du Bois, 1953). Vale a pena precisar que
o conceito de Du Bois não se refere unicamente à experiência
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 115

da população negra nos Estados Unidos, mas às experiências


posteriores à escravização das populações negras em geral (Gilroy,
2003, p. 174). É um conhecimento de seu corpo não mais "na
terceira pessoa, mas em tripla pessoa", responsável não só por seu
corpo, mas por sua raça e por seus ancestrais, a partir da trama e da
urdidura dos "mil detalhes, anedotas, relatos com os quais o olhar
branco o teceu" (Fanon, 1952, p. 90).
Os entrevistados são conscientes da ambivalência dessa
imagem que, simultaneamente celebra sua destreza e talento para
a dança e a música, e os "fixa" nelas de forma humilhante. José, por
exemplo, destaca:

A gente se encontra com os Brancos e eles te dizem: "Vocês, o que


vocês sabem fazer é dançar" e quando te dizem isso assim, a gente
deve tomar como uma desvalorização, "Tu só sabes dançar, não há
mais nada a fazer".

Com estas palavras, José continua meu diálogo com


Fanon quando este descreve o que experimenta ao ser remetido
à irracionalidade: "eu fui construído com o irracional; me atolo
no irracional. Irracional até o pescoço" (Fanon, 1952, p. 99). Este
suposto elogio é também uma forma de lhes designar "seu lugar"
em um mundo que segue uma lógica redutora e sem fissuras: na
escala hierárquica da criatividade, a Razão é branca, enquanto o
ritmo, a música e a dança são negros. Mas não se pode romper esse
dualismo? Não é possível passar do estatuto de objeto coisificado
àquele de sujeito desse corpo, um corpo que faria de nós "seres que
interrogam" (Fanon, 1952, p. 188) e interpelam esse olhar? Não é
possível ser/ter um corpo negro em que razão e emoção não sejam
construídos em dicotomia?

Somos Pacifico/Estamos unidos/Nos unem a região,/o visual, a ra-


ça,/e o dom do sabor...

Édouard Glissant afirma, em Le discours Antillais [O discurso


caribenho] (1981, p. 462), que, para as pessoas negras, a música, os
gestos e a dança são modos de comunicação tão importantes quanto
as palavras, por seu alcance prático e sua centralidade na expressão
116 1 Mara Viveros Vigoya

política da cultura. Essa singularidade quinésica das populações que


saíram da escravidão não pode ser desligada das brutais condições
históricas dessa experiência. Da mesma forma, os elementos de
subjetividade encarnada dessa singularidade não podem ser
apreendidos unicamente em termos cognitivos ou éticos, ignorando
os componentes estéticos específicos da comunicação negra (Gilroy,
2017, p. 110).

Imagem 1. Chocquibtown, disco El mismo (2015)

Com base nessas premissas, me interesso pela produção


musical de dois grupos do Pacífico, Chocquibtown e Herencia de
Timbiquí, cujas propostas musicais e performances mostram que
eles tentam desafiar, mediante essa conjunção única da música e
do corpo, a alienação da qual os corpos negros masculinos têm sido
objeto. Argumento que se pode explorar, através dos atos musicais
e das performances, os significados relacionais do corpo masculino
negro enquanto diferença perpetuamente redefinida e reconstruída
na interação com o olhar branco que o racializa e o sexualiza.
Para analisar as performances musicais, utilizo a
diferença estabelecida por Michelle Ann Stephens (2014) entre
o "esquema racial epidérmico" e o da "carne que experimenta
e provoca sensações". Stephens mostra que a subjetividade e a
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 117

performatividade negras são estruturadas pela tensão entre o


modelo centrado na pele, a visibilidade e a alteridade, e o modelo
centrado na carne, no toque e na semelhança. Essa distinção é útil
porque permite admitir que o sujeito negro existe "antes da raça"
e que a negrura é, ao mesmo tempo, a sede da experiência carnal
e da consciência política e cultural. Essa tensão permite, enfim,
descrever o processo que se desencadeia quando os homens negros
se tornam os sujeitos de um corpo capaz de interpelar esse olhar
branco que os aliena.

Imagem 2. Herencia de Timbiquí

Apresento brevemente os dois grupos. Chocquibtown ganha


seu nome da abreviação das palavras Choc (Chocó), Quib (Quibdó)
e Town (cidade); é composto por Carlos "Tostao" Valencia, sua
esposa Gloria "Goyo" Martinez e seu irmão Miguel "Slow" Martinez.
É literalmente um assunto de família. Chocquibtown se define como
um grupo de hip-hop e música alternativa que mistura sons urbanos
(funk, hip-hop, reggae, pop, ritmos latinos e música eletrônica) com
sons do litoral Pacífico: o bambazú, o bunde e o aguabajo.74 O grupo,
que começou de forma independente no ano 2000, agora trabalha para
Sony Music Latin e já foi vencedor do prêmio Latin Grammy Awards.
Herencia de Timbiquí, por sua vez, é um grupo formado

74 Danças ou ritmos da costa pacífica colombiana. (N.T.)


118 Mara Viveros Vigoya

por onze músicos, todos homens, que se apresentam como


"afrodescendentes orgulhosos de suas raizes africanas". Desde 2006,
eles têm se dedicado a fusionar os saberes tradicionais e sua herança
familiar musical com elementos da música urbana contemporânea
para criar uma sonoridade ao mesmo tempo global e enraizada no
litoral pacífico colombiano.
No caso de Chocquibtown, as letras de algumas canções,
sempre fundamentadas no gênero hip-hop abordam assuntos muito
próximos àqueles antes evocados pelos entrevistados. A canção
intitulada Una raza 1/amada sabor [Uma raça chamada sabor] retoma
muitos dos elementos descritos nos parágrafos precedentes: "Venho
saboroso porque o ritmo me possui, é parte do meu corpo, vem nos
meus genes, sangue do meu sangue herança, geração após geração,
pois nascemos com sabor". 75
No entanto, essa "raça chamada sabor" inclui não somente
os "Negros" mas também os: "sambos, chombos, cholos, incas, maias,
chibchas",76 um amplo espectro de populações não-brancas. O que
elas têm em comum é sua posição de subalternidade e seu desejo de
superá-la, razão pela qual elas continuam "Indo em frente, embora
o dinheiro não seja suficiente" [Echando para adelante, aun que el
dinero no alcance] e se apropriam do que se diz sobre elas: "Como
os 'selvagens', entram suaves no ritmo, o que dá calor aos corpos"
[Como los "salvajes; le pegan suave ai ritmo, el que da calor a los
cuerpos]. Esta canção é, de certa maneira, uma proposição pós-
racial: descreve a humanidade como uma raça cheia de sabor, que
não se "rege por sua pele, nem sua cor", enfatiza a conexão humana
e a harmonia global e utiliza o poder comunicativo do ritmo para
reunir sem distinção "estudantes, nativos e imigrantes", afirmando
que o sabor pertence a todos. É também, através das categorias
convocadas (estudantes, nativos e imigrantes), um convite para
encontrar na música e no ritmo um recurso de mobilização política
das causas sociais de diferentes populações subalternas.
Na canção De donde vengoyo [De onde eu venho], outro de seus
grandes sucessos, Chocquibtown expressa a consciência da relação

75 Vengo sabroso porque el ritmo me tiene, es parte de mi cuerpo, viene en mis

genes, sangre de mi sangre herencia, generación tras generación, pues nacimos


con sabor.
" Termos que se referem a categorias mestiças na América Latina colonial e a povos
indígenas pré-colombianos. (N.T)
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 119

inversa entre a riqueza do capital cultural do Chocó e a pobreza


material de seus habitantes: "De onde eu venho, a coisa não é fácil, mas
sempre e da mesma forma sobrevivemos" [De dónde vengo yo la cosa
no es fácil pero siempre, igual sobrevivimos]. Essa sobrevivência está
ancorada na diversidade cultural encarnada na população do Chocó;
daí o tom celebratório usado para falar das expressões musicais e
dançantes como formas de resistência às dificuldades conjunturais
e sociais. O "nós" citado na canção enfatiza a particularidade dessa
força coletiva manifestada para ficar happy e cheios de energia
frente às piores dificuldades: pobreza, deslocamento de populações,
corrupção, exploração e racismo.

A mesma pessoa (fragmento)

Eles não sabem, não, o quão bem me sinto


Eles não sabem tudo o que represento
Eu sou o mesmo que caminha, eu, de lado a lado
Ou que anda em carros de luxo, vidros espelhados
Orgulhoso da minha mãe, eu te juro
Criado à base de queijo e banana da terra madura

Com os lábios grossos, lábios grossos


Filho de Eleguá e com teu mesmo sangue
Vai Atrato," fica San Juan, Baudó"
Viva a floresta, selva do Chocó

Me sinto bem como sou


Não faço mal a ninguém
Meu avô acreditou também
NÃO VEM ME REBAIXAR

Se de repente o café se derrama


Joga a culpa nessa mesma pessoa!
Se o arroz pegado queima,
Joga a culpa nessa mesma pessoa!"

77 Município colombiano localizado no departamento colombiano do Chocó. (N.T.)


78 San Juan e Baudó são rios que atravessam o Chocó. (N.T.)
79 Elos no saben no / Lo bien que me siento / El/os no saben / Todo lo que represento
120 I Mara Viveros Vigoya

A canção El mismo [A mesma pessoa] denuncia os estereótipos


sobre "o negro" que representam concreta ou simbolicamente
características e comportamentos negativos. A cada vez que acontece
algo de errado, o estereótipo aponta imediatamente o responsável,
"sempre o mesmo": um "negro". A estratégia para combater o
estereótipo consiste em ressignificar positivamente os atributos
físicos e comportamentais percebidos como negativos - "os lábios
grossos", "passear em carro de luxo de vidros espelhados" - e incluí-
los na enumeração de condições positivas como estar "orgulhoso
de sua mãe". Este procedimento deslegitima o preconceito descrito
como absurdo e totalmente inconsciente de "o quanto ele [o negro] se
sente bem em tudo o que ele representa". Assim, a dupla consciência
(de minorias incluídas em uma maioria), experiência fundadora da
população afro de toda a América, permite valorizar essas canções
na medida em que representam tanto a música negra como a música
nacional colombiana.
O grupo Herencia de Timbiquí atribui igual ou maior ênfase
que Chocquibtown à tradição, à continuidade cultural e à música
como fatores de coesão essencial. Em sua canção Negrito [Pretinho],
o grupo associa os traços fenotípicos negros - a cor da pele, a forma
do nariz, o volume dos lábios e os cabelos crespos - com a herança
e a tradição africana reivindicadas como uma "bênção" e associadas
ao legado político das lutas de Nelson Mandela, Martin Luther
King e Benkos Bioho, líder de escravos quilombolas na Colômbia
do século XVII. O trabalho musical do grupo está ligado a projetos
de intervenção dos quais eles também participam para promover
junto aos jovens "a convivência e a paz do litoral Pacífico mediante a
valorização da cultura".
A canção Coca por coco denuncia os cortes de árvores nos
bosques e a substituição de cultivos tradicionais pelo da coca, que
engendrou "inimizades e o fim da paz em territórios que foram
paraísos de pescadores" e que hoje são parte do conflito armado e

/ Yo soy el mismo que camina yo, de lado a lado / O que anda en carros de alta gama,
vidrios polarizados / Orgulloso de mi madre, te lo juro / Criado a punta de queso
y plátano maduro / Con ia bemba grande, bemba grande / Hijo de Elegua y con tu
misma sangre / Atrato andá, queda San Juan, Baudó / Viva la manigua, selva dei
Chocó / Como soy me siento bien / No le hago mal a nadie / Mi abuelo creyó también
/ NO VENGAS ACHICOPALARME / Si de pronto se le nega el café / Échale ia culpa ai
mismo /Si se le quema el cucayo biambe / Échale ia culpa ai mismo.
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 121

sua necropolítica.

Coca por coco (fragmento)

Começaram a cortar toda a mata


Para um produto novo plantar
Se esqueceram de plantar inhame,
Pupunha, mandioca e jaca
E trouxeram gente de outros lugares
Para que viessem lhes ajudar
Hoje em vez do coco, se cultiva a coca
E em vez de amores, tem inimizade
Em vez de huapuco se come bazuko 8°
Em vez de garapa, é maconha que dão
E como consequência dessas mudanças feias
Em nosso paraíso se acabou a paz (bis)"

Na canção fronía - Pronia], eles evocam um amor contrariado


em que a mulher deixa de amar seu amante porque, de uma maneira
"incrível", dizem, "apaixonou-se por outra mulher". A ironia do
caso é que essa "outra mulher" é justamente aquela por quem o
amante negligenciado vai se apaixonar numa festa em que ele tenta
esquecer sua mágoa. Essa canção é ainda mais interessante porque
é uma das poucas que rompem com o ideal de heterossexualidade
que acompanha a revalorização do corpo negro como território
de prazeres sensuais, e que questiona a afirmação da virilidade
do homem negro e o caráter maternal da mulher negra como
características "naturais" (Viveros, 2002; Stephens, 2014).
O estilo musical de Herencia de Timbiquí explora padrões
tradicionais de sonoridade geralmente associados à masculinidade.
Os instrumentos utilizados, como a emblemática marimba de

80 Droga de baixo custo, similar ao crack, resultante da mistura de folhas secas de


coca com adulterantes como o ácido sulfúrico e o querosene. (N.T.)
81Se pusieron a talar todo el bosque/Para un producto nuevo sembrar / Se olvidaron
de plantar papachina, conchaduro, yuca y ia pepa e pan / Y trajeron gente de otros
lugares /para que los vinieran asesorar / Hoy en lugar de coco se cosecha coca / Y en
lugar de amores hay enemistad / En lugar de huapuco se come bazuco / Y en lugar de
guarapo marihuana dan / Y como consecuencia de esos malas cambios / En nuestro
paraíso se acabc; la paz (bis).
122 I Mara Viveros Vigoya

pupunha, o bumbo, os cununos,82 as congas, o trompete e a bateria


têm sido relacionados, por sua sonoridade e tamanho, com os corpos
masculinos (Millán de Benavides &Quintana Martínez, 2012). Alinha
melódica da orquestra também é cantada por homens. A ausência
de cantoras no grupo os leva a se valer da linguagem emocional e
afetiva nas canções para se expressar com liberdade, flexibilizando
as fronteiras de gênero que designam "um gênero aos gêneros
musicais, aos sons, ao tamanho dos instrumentos e aos papéis de
homens e mulheres na prática musical" (Millán de Benavides &
Quintana Martínez, 2012, p. 12).
Como caracterizar a construção de gênero do grupo
Chocquibtown? Pela forma como se apresenta, o trio designa a
força das relações familiares da sua região de origem como uma
"bênção diária" que lhes tem permitido permanecer unidos por
mais de quinze anos. No entanto, não se pode ignorar que na família
chocoana, a divisão sexual do trabalho se estende ao universo da
música e ordena as práticas musicais em termos de gênero. Goyo,
a cantora MC, 83 produtora do grupo, é descrita como "o coração da
banda, a alma e a beleza africana por excelência". 84 Suas habilidades
vocais e seu espírito são fundamentais na produção musical do
grupo e ainda que Goyo tenha feito da voz seu instrumento, a
divisão do trabalho no grupo confirma a ordem convencional de
gênero (Quintana Martínez, 2012; Velásquez, 2012), segundo
a qual os homens assumem a instrumentação, a percussão e o
manejo da técnica, enquanto as mulheres cantam ou dançam. Por
outro lado, os videoclipes das canções de Chocquibtown celebram
o "tesão" [la arrechera],a potência sexual, o talento para a dança, a
força e a resistência física masculina para aguentar as inclemências
do clima, beber álcool sem limites e sustentar por longos períodos
a atenção e a alegria do público nas festas. Dito de outra maneira,
eles contribuem para manter e ressignificar positivamente as
representações sobre os homens de Quibdó como quebradores
(Viveros, 2002). O cânone musical, seus processos e sua reprodução

82 cun uno é um instrumento de percussão em forma de tambor cônico, originário


do litoral pacifico, presente em grupos de marimba e em festas tradicionais. (N.T.)
°3 "Mestre de cerimônias" ou MC designa o rapista ou quem conduz o público ao
longo do espetáculo.
84 Ver www.chocquibtown.com/biografia.
Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele 1 123

também se referem à participação e representação do papel de


Goyo que, enquanto cantora, confirma a sua feminilidade e sua
capacidade de sedução e funciona como garantia da virilidade de
seus parceiros musicais que jogam com a imagem do homem negro
como ícone sexual.
Apesar desses matizes que os diferenciam, ambos os
grupos compartilham a mesma estratégia: reconstruir, celebrar
e representar o litoral pacífico como um lugar paradisíaco; retirar
sua inspiração de ritmos tradicionais para mesclá-los com uma
instrumentação contemporânea e letras que transmitem mensagens
sociais; e expandir, com o apoio do multiculturalismo estatal, a ideia
do "afro" como uma categoria abrangente, que vai além da região
costeira do Pacífico e se revela particularmente importante nos
contextos urbanos (Wade, 2009b). Suas consciências subjetivas,
objetivadas nas formas musicais e na linguagem da fusão musical,
tornam audíveis e acessíveis as estruturas que condicionam o lugar
subalterno do negro (Pinho, 2014).
Chocquibtown e Herencia de Timbiquí têm mostrado grande
habilidade para ganhar audiência entre os jovens brancos d