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Grupo de Trabalho: Ações Afirmativas, Escrevivências e Epistemologias Negras

ANANSE NTONTAN: A RECONSTRUÇÃO IMAGÉTICA E LITERÁRIA DA


RESISTÊNCIA NEGRA EM “CUMBE” E “ANGOLA JANGA”

Jediael Lucas Rodrigues Araújo - Universidade de Brasília (UnB)


Gabriela da Costa Silva​ -​ Universidade de Brasília (UnB)

Resumo

Este trabalho pretende analisar as obras em quadrinho “Cumbe” (2014) e “Angola Janga”
(2017) do escritor e ilustrador negro Marcelo D’Salete (1979-), através de uma perspectiva
interartística - entre artes visuais e literatura - sobre a reconstrução da história dos Quilombos,
a estética e simbologia negra adotadas pelo autor. Desse modo, busca-se refletir criticamente
sobre a construção histórico-social levantada pelo autor, através de um estudo historiográfico
sobre o que foi o Quilombo dos Palmares. A partir disso, destaca-se o uso e a escolha de
elementos visuais que remetem à ancestralidade africana, propositalmente delineados para
dialogar com a perspectiva negra de resistência, de modo a relacionar a ficção e a arte para
transpor muros históricos e visuais da narrativa literária. Ao final, propõe-se analisar os
aspectos histórico-sociais dos livros e os estudos imagéticos das ilustrações, enfatizando a
influência da simbologia africana na construção das obras, como a presença do Adinkra
Ananse.

Palavras-Chave: Epistemologia Negra. Literatura Negra. Estética.

Abstract
This work aims to analyze the comic works “Cumbe” (2014) and “Angola Janga” (2017) by
the black writer and illustrator Marcelo D'Salete (1979-), through an interartistic perspective -
between visual arts and literature - on reconstruction of the history of Quilombos, the black
aesthetics and symbolism adopted by the author. In this way, we seek to critically reflect on
the historical-social construction raised by the author, through a historiographic study of what
Quilombo dos Palmares was. From this, the use and choice of visual elements that refer to
African ancestry, purposely designed to dialogue with the black perspective of resistance, in
order to relate fiction and art to transpose historical and visual walls of literary narrative,
stands out . In the end, it is proposed to analyze the historical-social aspects of books and the

1
imagery studies of illustrations, emphasizing the influence of African symbolism in the
construction of works, such as the presence of Adinkra Ananse.

Keywords: Black Epistemology. Black Literature. Aesthetics

Introdução

“Nessa teia lateja o movimento político graúdo, coletivo e central da organização


dos refúgios e do embate armado com forças escravistas, movimentos entretecidos
no equilíbrio e na alegria precários da resistência miúda, marginal, nas relações
pessoais fervidas nas águas de sonhos cansados”.

Allan da Rosa​1​.

O percurso para construção desse trabalho se inicia a partir da busca por conhecer e
aprofundar-se na literatura negra nacional, de modo a encontrar obras e discussões sociais em
livros de autoria negra que tratam de inúmeros temas - não necessariamente apenas sobre o
racismo - mas que se debruçem sobre a história dos negros no Brasil. Ao longo do século XX,
organizações negras como Movimento Negro Unificado, Teatro Experimental do Negro,
Imprensa Negra, a Frente Negra Brasileira e entre outras, foram responsáveis pela
reivindicação e reconstrução do imaginário social sobre o negro brasileiro. Estas associações
negras foram fundamentais para esse processo, não só pressionando o espaço acadêmico e
científico, como a política e os inúmeros setores da educação, assim como uma área de
grande importância para impactar e alcançar parte da população: a literatura.
Através da literatura personalidades negras como Lima Barreto, Cuti, Oswald
Camargo, Cidinha da Silva, Miriam Alves, Ruth Guimarães e outros abriram espaço para
tencionar a narração histórica e a imagem construída sobre os negros, para além dos
questionamentos sobre o racismo novos mundos e epistemologias puderam ser criados por
meio da literatura. Por meio deste trabalho, pretende-se apresentar uma das possibilidades
narrativas e criativas utilizadas diante desse cenário, a produção de histórias construídas
diante da busca pela liberdade.
Os quadrinhos do escritor Marcelo D’Salete nos convidam a repensar toda história
colonial brasileira ensinada nas escolas, faz parte não só de um movimento literário como

1
Escritor e educador brasileiro, formado em história pela Universidade de São Paulo, prefaciou o livro Cumbe
(2014) do quadrinista Marcelo D’Salete.
2
acadêmico de uma espécie de releitura da história dos negros. O escritor, quadrinista e
também professor da rede pública de ensino, tem hoje quatro obras publicadas,
cronologicamente são elas “Noite Luz” (2011), “Encruzilhada” (2011), “Cumbe” (2014) e
“Angola Janga” (2017), serão as duas últimas sujeitos de nossa análise.
A obra “Cumbe” recebe esse título justamente por ser um sinônimo de quilombo,
reúne cinco histórias de negros escravizados que se relacionam entre si na busca por liberdade
e resistência negra. Através dos quilombos no século XVII, o autor traça uma linha histórica
ficcional para nos apresentar não só um, mas vários movimentos de resistência organizado
por negros. Ainda, o livro “Angola Janga” segue o mesmo tom, baseado em um estudo
histórico sobre o Quilombo dos Palmares” o autor reconstrói a história de Zumbi e Palmares
sob a ótica dos próprios negros palmarinos durante o século XVII, narra os conflitos políticos
com a capitania de Pernambuco, as desavenças entre as lideranças do quilombo até sua
efetiva queda.
As duas obras, não compõem uma sequência literária, mas aqui serão vistas com
muita proximidade e similaridade, suas provocações e discussões ficcionais serão trazidas
para esse trabalho de modo a perguntar: ​“que história nos foi contada?” e ​“qual história
nossa literatura pode reescrever?”.​ Por meio não só da escrita, os dois livros serão
destrinchados a partir de sua estética, os estudos de desenho e as referências africanas
encontradas em toda construção da obra. A composição artística e literária torna a obra
completa e propositalmente desenhada para refletir no leitor uma sensação de proximidade e
admiração pelo próprio fenótipo negro.
O diálogo entre as artes plásticas e a literatura são recorrentemente levantados ao
longo do trabalho, de modo que uma escritora e um artista possam apontar caminhos para
análise do trabalho de reconstrução histórica realizado por Marcelo D’Salete por meio dos
estudos históricos e da estética africana.

Contexto histórico-social

A compreensão política e artística de ambas as produções supracitadas passam pela


noção histórica-social do contexto o qual elas representam e os desafios levantados na
possibilidade da releitura de um período histórico, mais especificamente a colonização
brasileira. O trabalho apresentado por Marcelo D’Salete passa a princípio por uma análise
histórica e um estudo aprofundado sobre a liberdade negra durante a escravidão, de modo que

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o pano de fundo das histórias sobre a dor, a morte, a resistência o amor e tantas outras se
passam ao longo do século XVII e apontam em direção aos movimentos de resistência.
O cenário das senzalas, lavouras e plantações em que grande parte da historiagrafia
marca o sujeito negro, se divide entre os diálogos nas florestas, a circulação negra no espaço
urbano e as estratégias estabelecidas por ele para construirem diante da opressão uma
alternativa de ocupação. Existe uma preocupação em disputar e recriar a narrativa histórica
não só em termos de narrativa - e epistemológicos - como também do espaço social. Nesse
sentido, Beatriz do Nascimento afirma

Mas por isso mesmo abandonamos metologicamente o estudo dos descendentes de


escravos pelo estudo do negro brasileiro que possui também uma herança
histórica·baseada na liberdade e não no cativeiro. Abandonamos momentaneamente
o estudo das relações raciais e partimos para o estudo dos núcleos de população
negra do passado, os quais, a grosso modo, eram livres da dominação oficial, ou
seja, daqueles assentamentos sociais conhecidos genericamente sob o nome
'quilombos''' (Nascimento, 1976, p.67).

É em diálogo com a proposta de Nascimento que observamos o Quilombo enquanto


espaço de liberdade e fruto da ressignificação da experiência negra brasileira. Os contos
construídos por D’Salete partem desse pressuposto e não só apontam o quilombo como fonte
de vida, mas expõem os dilemas, conflitos políticos e a própria organização nesses espaços.
Esse trabalho passa pelo desenvolvimento de uma análise histórica e sociológica do período
colonial e do imaginário do negro no país, indo de encontro com o mito da democracia racial
para desmontar seus argumentos e expor uma realidade cotidiana.
Em “Cumbe” o aspecto histórico está presente sob a ótica da ficção, os elementos e
acontecimentos narrados representam muito da vida do período, seja através da violência ou
das organizações sociais construídas pelos negros escravizados, mas não são necessariamente
aspectos e fatos historicamente confirmados. Nessa obra encontramos um bom exemplo de
como a literatura torna-se um espaço fundamental para articulação de narrativas plurais sobre
a experiência negra.
A oportunidade de romper com imaginário harmônico dos negros diante do sistema
escravista é colocada em cheque através dos contos da obra, um desses exemplos é “Calunga”
a história que narra o amor entre dois jovens lutando por uma vida longe da violência
dispostos a tudo para sair dessas amarras. O conto recebe esse nome justamente pela figura do
calunga, que recebe o significado do mar sem fim, nele conhecemos a história de Valu e
Nana, ambos negros escravizados que se amam mas serão separados em breve quando Valu
for vendido para outra fazenda.

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A lógica estabelecida sob esses sujeitos está diretamente vinculada ao sentimento de
paralisia e aceitação da condição, no entanto, de uma forma trágica, Valu e Nana retiraram a
própria vida para se encontrar no Calunga e viver outras possibilidades em um novo mundo.
Ainda que trágico, inúmeros escravizados adotaram estratégias semelhantes para
interromperem o ciclo da escravidão. A partir dessa experiência podemos observar que “a
fuga, longe de ser um espontaneísmo ou movido por incapacidade para lutar, é, antes de mais
nada, a decorrência de todo um processo de reorganização e contestação da ordem
estabelecida” (Nascimento, 1976, p. 73).
Existe uma preocupação em apresentar sujeitos humanizados, dignos de cidadania e
liberdade perante uma estrutura organizada diretamente para condená-los à opressão. A
reconstrução histórica, ou seja, a possibilidade de rever o passado não passa pela idealização
dos sujeitos e suas histórias, mas sim por um esforço de romper com os estigmas e o
apagamento das resistências negras.
Em “Angola Janga” D’Salete explora mais afundo as possibilidades de um diálogo
entre literatura e história, com intuito de narrar a vida em Palmares durante o século XVI e
XVII o autor consultou mapas, relatos, estudos historiográficos e até mesmo trabalhos sobre a
escravidão no Brasil para nos contemplar com uma obra complexa e profunda sobre o que foi
o maior Quilombo da América Latina. Assim como em Cumbe, a centralidade da obra está na
liberdade e na resistência negra, de modo que inicia a trajetória de Palmares pela liderança de
Ganga Zumba passa pelos grandes conflitos entre ele e Zumbi e se encerra com a efetiva
queda de Palmares.
Há grande importância nesse eixo narrativo, de modo que apesar de todo estudo
realizado pelo autor a voz escolhida para orientar as inúmeras histórias expostas são as vozes
quilombolas, dos negros escravizados - livres ou não - em detrimento de qualquer registro
enviesado ou violento. Em todas as histórias de ambas as obras, essas vozes repercutem em
homens, mulheres e crianças negras que tem tanto a expressar sobre seu contato direto com a
colonização. Diante dessa questão, faz-se necessário apontar que esses sujeitos não são
idealizados, tratados sob a insígnia do heroísmo, em verdade são apenas humanos, sujeitos
complexos e localizados em seu próprio tempo.
A partir da escolha política levantada pelo autor, discussões como a presença da
tradição bantu no cotidiano das personagens, sua relação com a arte, o corpo, a música e o
próprio território são fundantes em sua percepção de liberdade e resistência. É por meio das
ferramentas de cunho histórico que D’Salete estabelece a voz do negro no primeiro plano para
organizar em termos literários sua proposta de reconstrução da narrativa histórica. Algumas
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das ferramentas utilizadas por ele estão distribuídas ao longo do livro, dentre elas, os relatos
de autoridades da época sobre Palmares. No início de cada capítulo o autor apresenta trechos
de documentos do período, essa ferramenta possibilitou perceber o discurso hegemônico da
criminalização da resistência negra, um desses relatos afirma que o negro “é gente bárbara e
que vive do que rouba” (D’Salete, 2017, p.216).
Além desta ferramenta, a linguagem fortemente utilizada para demarcar a herança
africana nas obras do autor, considerando desde a linguagem corporal até a linguagem falada.
Uma grande marca disso está na presença de um glossário ao final da obra, em que palavras
como “brenha”, “anguêri”, “cuvera” e “macota”​2 entre outros, são traduzidas dado o uso
recorrente das personagens. Existe no uso da linguagem um propósito de romper com a noção
colonizadora anteriormente proposta por Fanon e aproximar o leitor não só do que Lélia
afirmou como pretoguês, mas com uma dinâmica anticolonial.
O glossário é construído reunindo referências de autores como Kabengele Munanga e
Nei Lopes, pesquisadores que se dedicaram a repensar a língua portuguesa por meio das
referências e origens africanas. Esse aspecto também é percebido por meio do título das obras
seus significados, visto que ao longo da narrativa é perceptível o cunho político da sua
escolha. Em Cumbe o escritor Allan da Rosa apresenta a obra sob a ótica da história da
resistência, inicialmente destacando o significado da palavra “Cumbe”, de modo que a
apresenta como sinônimo de quilombo para alguns dos países latinos. Entretanto, destaca que
nas línguas do Congo e Angola, Cumbe traria um sentido relacionado a luz, as forças e
poderes dos reis, de modo que evidentemente o nome da obra em si expressa grande parte da
intenção de Marcelo D’Salete, dialogar com a herança africana para pensar a vida e a história
negra.
Em “Angola Janga”, esse aspecto não poderia ser distinto, no entanto apresenta
características mais amplas e conectadas com o período histórico. Segundo o próprio autor,
Angola Janga era o nome dado ao Quilombo dos Palmares pelos negros escravizados e livres
do período, representava o lugar de fuga de recomeço. No glossário da obra, D’Salete articula
as definições estabelecidas por Clóvis Moura e Nei Lopes em obras distintas, afirmando que a
expressão teria origem do quimbundo no qual significaria “pequena Angola”. (D’SALETE,
2017).
A partir desses aspectos e ferramentas utilizadas por meio da literatura, o autor

2
​Respectivamente as palavras são apresentadas no glossário com os seguintes significados: matagal; entidade de
origem guarani que se refere a um morto-vivo da floresta;doença; homem importante. (D’Salete, 2017,
p.415-418)
6
apresenta duas obras literárias que pretendem ressignificar a narrativa da resistência e
liberdade negra. Em diálogo com Flávio Gomes, Nei Lopes, Joel Rufino, Elisa Larkin
Nascimento e outros Cumbe e Angola Janga articulam o que há de teórico na produção do
pensamento negro de forma didática e literária, pensando não só a ficcção mas a estética
negra sob uma ótica precisa e necessária. Os livros podem ser olhados de forma separada e
pensados por meio de suas particularidades, entretanto a tentativa realizada neste trabalho foi
organizar um conjunto de aspectos existentes em ambos que se concretizam e caminham em
direção a um grande movimento acadêmico de afirmação da existência negra.

Estética e Simbologia negra


Como destacamos o extenso período de pesquisas, leituras e estudos a respeito da
cidadania e liberdade dos sujeitos negros no Brasil, esse aspecto se reflete no arcabouço
alcançado em suas personagens. As obras “Cumbe” (2014) e “Angola Janga” (2017) são
traçadas em conexão não só com a proposta teórica buscada pelo autor, mas também com a
insurgência e representação defendidas por outras figuras importantes para a consciência
negra no Brasil.
De acordo com Abdias Nascimento, "a ideologia da brancura se arvora em valor
absoluto. Tudo o mais é a sombra do inexistente. O negro-africano não teve história, nunca
teve cultura; sua existência “natural” sempre careceu de arte, religião e sutileza” (Nascimento,
1978, p. 174). Nesse sentido, em ambos os livros, a estética e a imagem são colocadas de
forma fundamental não só para ressignificar a presença, cultura e resistência do povo negro
no período colonial, mas também, a narrativa apresentada e suas protagonistas. Os
quadrinhos, compostos pelas imagens criadas por meio de referências negras sobre a história
dos Quilombos e Mocambos brasileiros, são colocados através da perspectiva quilombola e
aproximam a ficção das verdadeiras histórias de resistência negra de Zumbi dos Palmares,
Nana, Aqualtune, Ganga Zumba e outras personagens importantes.
Os desenhos criados por D’Salete são atravessados por uma grande preocupação em
relação à forma visual e artística sobre representação dos protagonistas e o desenvolvimento
de suas histórias. Nesse sentido Conceição Evaristo afirma,

tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física,
interditado em seu espaço individual e coletivo pelo sistema escravocrata do passado
e, ainda hoje, pelos modos de relações raciais que vigoram em nossa sociedade,
coube aos brasileiros, descendentes de africanos, inventarem formas de resistência
que marcaram profundamente a nação brasileira. ​(EVARISTO, 2009, p. 18).

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Logo, a sensibilidade e o cuidado para a criação imagética dessas histórias
complexifica o andamento dessas lutas e organizações por liberdade. Além disso, a relação
teórica com as artes visuais dos dois livros criam possibilidades contra-hegemônicas das
culturas negras para rompimento do imaginário social criado acerca da ilustração pacífica das
pessoas negras no período escravista. Em complementação e continuidade na construção de
pessoas negras nas obras, o estudo referencial africano aprofunda a subjetividade imagética
de cada personagem, de modo que, a ancestralidade também tenha seu espaço nas importantes
camadas dessas histórias. Abaixo é possível observar o processo de criação de Marcelo e os
primeiros traços de um romance histórico contado do ponto vista quilombola​3​.
A simbologia negra é um dos elementos
norteadores de “Angola Janga” (2017) e
“Cumbe” (2014), os caminhos que essas
histórias seguem possuem elementos
culturais ligados à ancestralidade que são
fundamentais para entender a mensagem que
cada narrativa destaca. Na obra lançada em
2017, Marcelo D’Salete demonstra como as
encruzilhadas de Cuca, Lueji, Osenga,
Acotirene, Zumbi e dos demais personagens
se articulam por meio do Adinkra Ananse
Ntontan. Além disso, a simbologia africana
une-se com a imagem para construir as
personagens fora de representações
estereotipadas e racistas acerca dos negros.
Nesse sentido, a estética e as características
das protagonistas da obra destacam a
subjetividade africana, alvo de apagamento e
embranquecimento no contexto colonial.
Os adinkras, que são “um conjunto de símbolos gráficos de origem Asante (Gana),
encerram uma mensagem de sabedoria transmitida por gerações”​4​. Nesse sentido, o Ananse
Ntontan, “símbolo da sabedoria, esperteza, criatividade e da complexidade da vida​5​,“

3
​Imagem retirada do livro “Cumbe”.
4
D’Salete, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017.
5
Ibid., p. 415
8
direciona a perspectiva da trajetória das personagens de maneira não-linear, haja vista que, é
contada para além das guerras e lutas dos Quilombolas. No conto “O abraço”, o Ananse
Ntontan é colocado como o guia e o direcionador de caminhos.
A personagem Cuca, uma mulher detentora de saberes
ancestrais, tem o papel de mostrar aos quilombolas os melhores
caminhos para a liberdade. Em um dos momentos desse conto,
o personagem Soares se direciona para Osenga e afirma, “ fale
com a cuca… descubra o nosso caminho’’. Assim, partir do
referencial africano, D’Salete possibilita reimaginar os fatos da
história dos Quilombos de Palmares, “para que podemos
transpor muros e acessar, pela poesia e arte, aqueles homens e mulheres”​6​.
Os livros “Cumbe”(2014) e “ Angola Janga” (2017) são resultados de como a imagem pode
ser central para narrar histórias. Mesmo com histórias diferentes, ambos possuem momentos
em que o texto não é o foco, mas sim, apenas os traços que constroem como um todo essas
narrativas. Com isso, a metodologia utilizada para abordar as experiências de luta e liberdade
das pessoas negras, aprimora não só os contos dos livros, mas também a riqueza das obras
como um todo, desde a capa até a apresentação de cada quadrinho presente.

Conclusão

Ao final dessa exposição, nota-se o potencial literário para articular e expressar parte
do desenvolvimento téorico sobre a experiência negra, além de apresentar aspectos reais da
trajetória de liberdade conquistada pelos sujeitos negros. Há em Cumbe e Angola Janga uma
compreensão urgentemente necessária sobre a história do Brasil, ainda que representem parte
da vida negra no século XVI e XVII seus contos narram a pluralidade do que de fato foi a
experiência negra.

Assim, a proposta elencada nas obras configura-se não só pelo estudo historiográfico
mas por sua articulação com a dimensão estética dos quadrinhos. A escolha por elementos
africanos, os estudos e esboços desenvolvidos pelo autor visam ampliar o fenótipo negro, de
modo a fugir dos estereótipos e caracterização racistas sobre o que foi o corpo negro. O
esforço empregado pelo autor ao construir a obra dialoga diretamente com a possibilidade de
repensar o passado mediante a novas narrativas, fabulando sob fontes históricas uma outra
lógica de vida, que é pautada através da cidadania negra, liberdade e resistência.
6
Ibid., p. 415
9
Desse modo, é possível observar como a estética e a literatura são fundantes em
ambas as obras, de modo que a narrativa sobre a liberdade é contemplada e realizada em
conjunto sob esses aspectos. A imagem construída pelo autor, nos leva a repensar os
currículos escolares, as narrativas cinematográficas, os arquétipos literários sobre o negro
brasileiro, com intuito de abrir caminhos para uma nova perspectiva.

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Referências Bibliográficas

D'SALETE, Marcelo. ​Angola janga.​ Fantagraphics Books, 2019.

D’SALETE, Marcelo. ​Cumbe. ​Veneta, 2014.

D’Salete,Marcelo. ​Exposição Narrativas Negras​. 2017. ​Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=x_g4_EKL_mI>. Acesso em: 28 jan. 2021.

EVARISTO, Conceição. (2005), “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face”​, in


N. M. B. Moreira & L. Schneider, Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora, João
Pessoa, Idéia.

NASCIMENTO, Abdias. (2016), ​O genocídio do negro brasileiro. 2 ed. São Paulo,


Perspectiva.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. ​Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual:


Possibilidade nos dias da destruição​. Filhos da África, 2018.

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