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Cadernos Negros: a literatura nacional como difusão de consciência

É certo que o racismo e a segregação ainda são operantes no Brasil. A herança de


uma abolição mal resolvida ecoa em todas as instâncias do País e se reflete na
nossa geografia, na sociedade e também na literatura[1]. Porém, tão importante
quanto salientar a existência desse apagamento é valorizar os movimentos de
resistência. Não importa qual seja o período histórico, o preconceito racial jamais foi
recebido de forma passiva; e neste texto falaremos da resistência em uma série de
livros chamada Cadernos Negros, iniciativa literária de contrarresposta à inércia de
exclusão racial no Brasil.

Cadernos Negros é uma série literária independente que veicula textos afro-
brasileiros. A série foi concebida por jovens estudantes que acreditavam no poder
de conscientização, sensibilização e acolhimento da literatura, e viam na poesia
uma possibilidade de expressar e promover uma arte propriamente negra. Os
Cadernos procuram, no seu cerne, combater a discriminação racial e, no campo das
Letras, resistindo de forma literária, social e política.

Os Cadernos foram concebidos durante os anos 1970, num contexto onde


efervesciam movimentos de afirmação e autoestima da população negra. Junto com
as emancipações de Angola e Moçambique da condição de colônias europeias,
havia movimentos como o Black Panthers, Black is beautiful e a Imprensa Negra
Paulista, além do ecoar do ativismo de Rosa Parks, Nelson Mandela, Abdias do
Nascimento e Lélia Gonzalez. Como diversas marés confluindo para um mesmo
sentido, uma onda de luta pela equidade de direitos se espalhava pelo globo
combatendo a discriminação racial.

No Brasil, esse fator combativo foi intensificado pelo acesso da população negra às
universidades. O furor do surgimento de novas entidades de ensino superior no
período permitiu que uma pequena parcela daquela população quebrasse a inércia
social ingressando, mesmo que timidamente, nos espaços de formação cultural e de
ensino. Entre esses estudantes estava o escritor Cuti, então aluno do curso de
Letras da USP.

O que se apresentou como oportunidade foi, para Cuti e seus colegas, uma
experiência de desencanto: o curso de Letras não contemplava a cultura afro-
brasileira; os textos literários com temática racial não eram bem recebidos nem
pelos colegas nem pelas editoras; de viés afro-brasileiro só interessavam autores já
consolidados ou personagens estereotipadas a serviço da mentalidade dominante.
A área das Letras se mostrou mais um ambiente de exclusão, que descartava as
raízes africanas tanto quanto outros setores da sociedade.
Profundamente incomodado, Cuti se junta a seus colegas, que partilhavam de uma
mesma sensação de deslocamento, para questionar o pouco prestígio da literatura
afro-brasileira no Brasil. O grupo, que posteriormente se denominou
Quilombhoje[2] , passou a desenvolver debates que promoviam consciência sobre o
apagamento da figura do negro[3] e sua representação distorcida nos discursos
literários: como, afinal, poderia a maioria da população brasileira se identificar com
as personagens do próprio país se os livros conhecidos traziam figuras e narrativas
toscas, superficiais? E como combater esse distanciamento e essa intimidação num
cenário excludente, onde não interessava que as questões fossem discutidas ou
publicadas?
Como resposta a essa exclusão, Cuti se alia a Hugo Ferreira, seu colega, e estes
concebem o primeiro conceito dos Cadernos: uma publicação independente de
antologias com a temática do “ser negro no Brasil”; um espaço de expressão em
que coubessem as mazelas da população de cultura afro. A dupla se une a outros
sete autores-estudantes[4] e juntos financiam a primeira edição do projeto.

“Cadernos Negros é a viva imagem da África em nosso continente. É a Diáspora


Negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as cicatrizes que
assinalaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mãos o livro.” Neste trecho
da primeira edição, publicada em 1978, Cuti também apresenta a missão das
publicações: “Hoje nos juntamos como companheiros nesse trabalho de levar
adiante as sementes da consciência para a verdadeira democracia racial”.

A série de livros dribla a cultura de exclusão editorial financiando coletivamente esse


que é um dos primeiros espaços de oportunidade literária verdadeiramente
democrático para jovens escritores negros. Os Cadernos não só acolhem textos de
escritores iniciantes como os incentivam, até hoje, a escrever e consumir essa
literatura em particular – a exemplo de Conceição Evaristo, escritora e pesquisadora
mineira que encontrou nos Cadernos a possibilidade de divulgar seu trabalho.

Militantes por excelência, os Cadernos Negros seguem vivos até hoje e seus
volumes anuais alternam o gênero literário a cada ano – nos anos pares são
publicados poemas e, nos anos ímpares, contos -, sempre tratando com sinceridade
e intensidade o que significa ser negro no Brasil.
Alguns exemplares da série encontram-se disponíveis para leitura na biblioteca do
CCSP, incluindo a primeira edição e uma seleção à parte, de dois volumes (“Os
Melhores Poemas” e “Os Melhores Contos”), que foi traduzida para o inglês.

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