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“Flores Mágicas”

Chamava a atenção aquele homem franzino distraindo


os outros detentos que, como ele, pareciam abandonados
num presídio qualquer, em algum ponto da floresta
amazônica. Alegrava a rotina com números de magia, sempre
aos domingos, durante o período de visitas. Ele mesmo não
recebia visitas há muito tempo, mas sempre era solicitado
pelas alas para alegrar os familiares que se dispunham a doar
parte de seu final de semana àqueles miseráveis. Sempre fora
de pouca fala, mas quando encarnava o mágico, se superava.
Era uma moeda a sair da orelha ali, uma carta incinerada que
reaparecia intacta lá e a alegria irrompia, quebrando a
monotonia triste e assombrosa daquelas celas. Embora,
obviamente, nem todos fossem arrebatados por aquele
personagem, era inegável a dúvida sobre o que estaria fazendo
ali aquele homem, que tão pacífico e talentoso figurava. Não
faltavam teorias sobre a vida pregressa do mágico, desde
assalto a bancos até abuso de crianças, mas a verdade é que,
por quarenta minutos, a sedução graciosa daquele
senhorzinho nos impedia de considerá-lo um criminoso,
qualquer que seja.
Tempos atrás havia uma tensão judicial entre os donos
de uma grande madeireira e os índios, pela exploração de uma
área próxima à reserva. Aos domingos, havia feira-livre na vila
dos trabalhadores, onde apresentavam-se artistas que
tentavam complementar a pouca renda do trabalho na
madeireira. Destes, o mais concorrido era o Mágico, que
aprendera o ofício na adolescência, quando viveu num circo.
Numa de suas exibições, percebeu na plateia a presença de
um pequeno índio, de seis ou sete anos. Os olhos do menino
pareciam voar da face a cada número de magia que saía de
suas mãos. O artista também desfrutava da curiosidade do
indiozinho, de forma que não se podia calcular qual dos dois
encantava-se mais. Os homens da tribo desprezavam todos
os madeireiros, apenas o Pajé acompanhava o garoto na
plateia, ainda que destinasse ao mágico o mesmo desprezo
dos demais. Ao acabar o seu número, o mágico, emocionado,
entregou sua cartola ao garoto, a mesma de que, pouco antes,
tirara um ramalhete de lindas flores coloridas. Diante de
surpresa tão arrebatadora, o curumim não conseguia nem
sorrir. Olhando receoso ao Pajé, este acenou positivamente e
o garoto pegou a cartola do mágico tão veloz quanto um
jaguar.
Ao anoitecer, o Cacique convocou os homens da tribo
para decidir a respeito da demarcação das terras da reserva
indígena. Raivoso com os madeireiros, relatou indignado a
destruição das áreas de caça, o assoreamento dos rios e o
avanço cada vez maior sobre a aldeia. Entre brados, sugestões
e gritos de guerra entoados, destacou-se a voz aguda e infantil
de um curumim, desejoso de falar ao chefe da tribo que
descobrira um modo de salvar a reserva. A surpreendente
afirmação do pequeno guerreiro silenciou a todos, e o
Cacique, perplexo, sinalizou para o Pajé que, não menos
surpreso, consentiu na aproximação do menino.
“Eu tenho a magia do homem branco. Com este cocar
mágico posso fazer uma floresta inteira!”
E mostrou a cartola, o que instantaneamente provocou
risos entre os índios. O Cacique ergueu a mão e restabeleceu-
se o silêncio.
“Mostre!”, respondeu o cacique entre desapontado e
desconfiado.
O menino gesticulou sobre a cartola e... nada! Dessa
vez, nem os gritos do Cacique conseguiram conter o ímpeto
das gargalhadas, enquanto o menino desesperadamente
gesticulava e socava o “cocar mágico”, até se irritar,
arremessá-lo no chão e, humilhado, correr para a mata. Além
do Cacique, o único a não rir do pobre curumim foi o Pajé,
que respeitosamente solicitou ficar com o “cocar mágico” e
foi atendido pelo chefe da tribo.
O Pajé comoveu-se com a atitude do curumim e via nela
um valor inestimável para a tribo. Ancião de quatro gerações,
homem sábio, conhecedor das crenças do seu povo, mas
guardião da sensatez daqueles que sobrevivem o suficiente
para enxergar através dos espíritos os estratagemas da ilusão
humana, acendeu uma fogueira e ficou a observar
cuidadosamente a cartola. Apanhou-a pela aba com uma das
mãos, percebeu-lhe o peso, incoerente com a delicadeza do
material e de maneira suave começou a tateá-la a partir do
lado externo em busca de seus segredos. Olhou-a à luz da
fogueira, enquanto buscava da memória os gestos do
madeireiro artista. Sacudiu-a, revirou-a e não obteve sucesso,
detendo-se no medo de avariar o chapéu. Reiniciou,
deslizando com a ponta dos dedos por dentro das abas,
tentando encontrar na textura alguma irregularidade que
fornecesse pista. Descobriu, finalmente, do lado de dentro da
cartola, uma pequena abertura lateral que o ébano do feltro
ocultava e que dava acesso a um fundo falso. Criterioso, o
Pajé descobrira a fechadura, mas sabia faltar-lhe ainda a chave
do mistério: como apareceriam as flores? O Pajé apanhou
algumas folhas e cuidadosamente foi simulando, relembrando
novamente os gestos do mágico para tentar extrair o efeito
surpreendente. Já amanhecia quando o Pajé, além de entender
e aprender os movimentos para o truque, desenvolveu uma
forma de explicar ao indiozinho. Perfeccionista e ainda sem
dormir, foi para a mata colher flores da mesma espécie que o
mágico utilizou.
Já era metade da manhã e um risonho Pajé retornava
para aldeia, ansioso para surpreender o jovem guerreiro. Do
alto de sua sabedoria ancestral, não imaginava, porém, que
seria ele a surpreender-se. Ouviu um estrondo na direção da
madeireira e logo uma fumaça preta encobria o sol. Apressou-
se para ver o que se passava e aos poucos a surpresa revelou-
se trágica: logo que iniciaram-se os trabalhos na madeireira
aquele dia, o pequeno curumim lançou-se em luta corporal
direta com a grua de toras e foi esmagado por uma pilha de
troncos de uma tonelada e meia. A notícia rapidamente
chegou à aldeia. A tribo enfurecida marcou sinais de guerra
pelo corpo com o sangue do menino e pôs fogo na grua. A
situação ficou incontrolável e os madeireiros fugiram pela
mata deixando todos os seus pertences para trás. A morte do
indiozinho causou comoção nacional, acelerou a demarcação
da reserva indígena e a suspensão do direito de exploração da
grande madeireira naquele local.
Diante do monumental prejuízo, a madeireira
responsabilizou o operador da grua, imputando-lhe através de
seus advogados todo o rigor da lei, usando até de manobras
jurídicas para dificultar-lhe a defesa. Em vão, pois o pobre
homem nunca recorreu, aceitando resignadamente seu triste
destino, como se carregasse eterna culpa em sua consciência.
Motivos tinha para isso: ele era o mágico, que brilhou nos
olhos encantados do menino um dia antes.
O Pajé enterrou o pequeno herói com seu “cocar
mágico” no centro da aldeia, e sobre o local ergueu um lindo
jardim. E, finalmente, toda a tribo podia admirar as flores
mágicas que o indiozinho tanto desejara.
Meses depois, o Pajé faria companhia ao curumim,
sucumbindo à triste constatação de que, mais lua menos lua,
a mágica acabaria e, sob o avanço das máquinas, seria o fim
da sua aldeia.

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