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“O Sabiá”

Belo dia de sol, início da primavera. Sobre a trave que


sustenta o balanço da pequena praça, um tímido sabiá
aguarda a revoada de crianças que logo tomará o lugar. Aos
poucos, um pequeno pelotão uniformizado aproxima-se.
Meninos e meninas, por volta de dez anos de idade,
começam a povoar aquele parquinho antes vazio, enchendo
o pequenino pássaro de expectativa. “Quando será que irão,
de fato, brincar?”
Embora ocupem o pequeno playground da praça, as
crianças não se divertem com os brinquedos, utilizando-os
apenas como apoio para sentar ou escorar seus corpos. Suas
atenções estão voltadas aos seus aparelhos celulares, que
mantém em constante contato com o olhar. Nem conversar
entre si o fazem, apenas raras vezes utilizam a voz. O
pássaro emite um canto agudo, com toda a potência que a
natureza lhe privilegiara, mas é quase completamente
ignorado, à exceção de um garoto que sacode a estrutura do
balanço para intimidá-lo e fazê-lo voar dali. O sabiá voa até
ocultar-se entre as árvores. “O que há com essas crianças?
Talvez estejam preocupadas para não sujar as roupas porque
devem ir à escola mais tarde...” Levantando voo, avista uma
escola.
A escola é enorme, com duas amplas quadras, um
imenso jardim e um playground muito maior que o da praça.
Além disso, estruturas de madeira que permitem escaladas e
tem até um espaço de cimento com ondulações para a
prática de skate. Mas as crianças que estão lá também não
brincam, não jogam, não escalam e nem andam de skate.
Cada uma do seu jeito, na sua posição preferida, absorvidas
completamente pelas telinhas luminosas dos celulares.
Sobrevoando o espaço escolar, o curioso sabiá consegue ver,
pelas janelas, que as crianças em aula também tem os olhos
conectados em telas brilhantes sobre suas carteiras, e os
professores, enquanto aguardam a realização das atividades
pelos alunos, também não conseguem escapar da gravidade
exercida por aquelas fontes retangulares de luz. Pousado
numa das tabelas da quadra de basquete, o pássaro reflete:
“Talvez, se eu voar até um bairro afastado, lá eu encontre
crianças brincando.”
Voa, então, até a comunidade pobre, uma concentração
desorganizada de casebres de madeira ou alvenaria precária,
coberta por incendiárias teias de cabos elétricos no alto e de
riachos fétidos no chão, incrustada num morro que mais
parece um gigantesco barranco. Ali, a experiência é mais
triste. Além de não ver crianças brincando, vê crianças
empunhando armas, sensualizadas e entorpecidas, como se
fossem a miniaturização de homens e mulheres miseráveis.
Angustiado, voa para o campo, onde as bucólicas imagens
aéreas das plantações, numa geometria verde, evocam a
harmonia entre homem e natureza. Num rasante, a desilusão
novamente envolve o sabiá, que constata crianças descalças
pelos canaviais, exaustas e famintas, a cortar cana para
sobreviver. “Sobreviver para quê?”, pensa. Por fim, desiste.
Voa até pousar no parapeito de uma janela no décimo
quarto andar de um imenso hospital. “Não quero mais.
Vamos destrocar?”, diz ao menino que encontra-se no leito
próximo à janela. Nascido tetraplégico por uma doença
congênita rara, o paciente de onze anos de idade nunca havia
deixado aquele hospital, desde que nascera.
“Mas não é nem meio-dia. O combinado não era o dia
inteiro?”
“Era, mas... mudei de ideia. Quero ficar aqui, mesmo!”
Diante da negativa, o garoto no leito abre os braços e
o pássaro pousa em seu peito. O sabiá bica-lhe os lábios e,
nesse instante, suas consciências mudam de corpo.
“Você sabe que a gente não vai mais poder fazer isso,
né?”
“Tudo bem. Eu já vi o que precisava.”
De repente, a enfermeira abre a porta do quarto para
trocar a medicação. Ágil, o passarinho escapa pela janela
para nunca mais voltar.

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