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Resenha do texto Literatura Afro-Brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI

A literatura não uma cor determinante de sua estética ou ideologia, mas é a expressão de um
lugar social instituído no e pelo discurso. Assim se constitui a literatura afro-brasileira como
tecida pela visão identificada na trajetória de vida dos africanos escravizados e deportados
para o Brasil, e não podendo separar a literatura dessa experiência da escravidão e do tráfico
negreiro, a escritora Conceição Evaristo denomina escrevicência a atitude literária de colocar
esse contexto como motor da literatura. A escritora citada integra a geração da segunda
metade do século XX que apresenta o negro como sujeito de sua enunciação, do seu discurso,
não pelo fato dos escritores serem negro, mas principalmente por reposicionar o negro na
história e na literatura, pois embora o Modernismo tenha buscado um espírito da brasilidade,
anda assim colocou o negro no lugar construído por uma visão exótica e folclorista, desde a
linguagem e o vocabulário elaborados até a forma como o negro se inscreve na temática. O
legado modernista trabalhou outra perspecitva da literatura negra, não se pode comparar com
a literatura surgida a partir da década de 1970. O próprio poema de Manuel Bandeira “Irene
no céu” denota de forma subjacente São Pedro como um senhor branco que apresenta por
Irene um carinho pelo negro que lhe serve bem , mas o negro submisso como sempre pedindo
licença ao branco.

Assim o início do século XXI permitiu um olhar sobre a literatura afro-brasileira e a ampliação
das pesquisas na constituição de uma nova vertente literária com identidade que reúne desde
a produção dos grandes centros até a localidades mais distantes, como as comunidades
quilombolas. Antes o interesse pela condição dos negros era quase somente de estudiosos
estrangeiros, como Roger Bastide. Simbolicamente, da mesma forma que os quilombolas
lutam pela demarcação de suas terras, herdadas de seus ancestrais, organizações como o
Quilombhoje lutam pela demarcação do seu espaço no campo das produções literárias afro-
brasileiras, daí a escola do nome bem empregada enquanto representativa dessa escola de
pensamento. Também a série Cadernos Negros é representativa da busca desse espaço e
divulgação da produção afro-brasileira.

Quanto à complexidade do critério literatura negra e literatura afro-brasileira envolve


múltiplas vozes da história. Por exemplo, o crítico Domício Proença Filho reflete como negra
em sentido restrito a literatura produzidas por negros assumidos e representativos do seu
lugar social, das suas condições étnico-raciais e históricas, e no sentido amplo por qualquer
escritor que revele as dimensões dos negros como sujeitos a partir da sua identidade. Assim a
categoria incluiria tanto a literatura do negro quanto a sobre o negro, dependendo do olhar
diferenciado de uma literatura que historicamente apresentou o negro no viés de autores
brancos representativos da ideologia dominante e europeia. Nesse caso, os autores brancos
não produziram literatura negra. Castro Alves, embora branco possa ser inscrito como poeta
negro na perspectiva de Zilá Bernd por representar um novo posicionamento do negro. Bernd
também aborda o poema enquanto negro quando apresenta p trânsito entre a alienação e a
conscientização, como buscou Castro Alves em sua obra esse despertar de uma consciência
para a situação dos negros escravizados. O poeta branco emprestava a sua voz ao negro que
em sua lírica romântica se tornava sujeito dessa enunciação, adquiria a voz lhe negada
historicamente, elaborando poeticamente a enunciação do pertencimento e irmanando-se ao
nós coletivo do escravos.
Luiza Lobo já propõe outra categoria para a literatura negra, a escrita por negros. Nessa
discussão aumenta a complexidade e a literatura negra, ou afro-brasileira depende de muitos
fatores e nuances para tecer a sua face identitária.

A denominação afro-brasileira denota um longo processo histórico de ancestralidade africana


e hibridização étnica e cultural ao longo dos séculos de diáspora e até a atualidade, pois o
próprio termo afro-brasileiro numa mistura linguística, religiosa e cultural inclui também a
compreensão da genealogia dos migrantes negros e como assimilaram as outras culturas em
solo brasileiro. Não se pode então falar numa literatura totalmente negra no Brasil da mesma
forma que é complicado afirmar em pesquisas realiadas pelo IBGE que se é negro. Nesse
sentido grande parte da população admite a miscigenação e se identifica por parda, não
havendo lugar para uma postura essencialista.

Quanto aos escritores brasileiros, o exemplo significativo de Machado de Assis enquanto


remanescente negro muitas vezes apresentado sob um olhar reducionista que o coloca como
um sujeito alheio a sua condição racial, embranquecido, quando a verdade a sua obra trata de
forma subjacente a sua posição contra a escravidão e o racismo, como na irônica crônica
publicada na seção “Bons dias” no dia 19 de maio de 1888 sobre a liberdade do escravo
Pancrácio, que renuncia a liberdade para continuar na companhia do se senhor, ou a morte do
senhor em Memorial de Aires, metonímia de sua atitude contra o sistema escravocrata. Nesse
sentido não se pode pensar em Machado como um negro recalcado, pois sua vasta obra
condensa um olhar crítico para a situação do negro. O ponto de vista sobre ele é que buscava
submeter-lhe a “branquitude” hegemônica, desde a mídia como ocorreu na propaganda da
Caixa Econômica até a crítica literária que em grande parte não atenta para a o lugar ocupado
pelo negro na obra machadiana.

Dessa forma, o pensamento do autor Eduardo de Assis Duarte ao discutir a literatura inscrita
na categoria afro-brasileira, de forma dialógica, não fechada envolve uma interação entre
autoria, temática, ponto de vista em identidade com a afrodescendência e a visão do negro de
forma que o posicione como sujeito de sua enunciação ou como objeto numa visão dialógica
que permita a sua voz, mesmo que oportunizada pela autoria branca, sem estigmas socais nem
estereótipos, contribuindo também para a formação de um público receptor e leitor
afrodescendente. Será assim uma literatura afro-brasileira a partir desses pontos a produção
inscrita historicamente, seja da atualidade ou dos períodos literários anteriores, a escritura
que não elimine simbolicamente o negro de sua história e cultura e que ilumine a trajetória de
vida dos grupos negros, colaborando no processo de reconhecimento de suas identidades
pelos próprios afrodescendentes e pelos outros grupos.

Ciro Leandro

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