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Literatura afro-brasileira: a

marginalização das letras escritas


em tinta preta
21 jan, 2012 Camilo Jr. 0 Comments Arte & Cultura, Ativismo, Brasil Mulher, Camilo
Gomes Jr., Combate ao Preconceito, Combate ao Racismo, Literatura, Reflexões
Autor: Camilo Gomes Jr.

Também publicado em: Ontogenia Literária

"Cadernos Negros": Há mais de três décadas divulgado a literatura afrodescendente


no Brasil.

Uma pergunta: quantos romances, contos ou poesias escritos por autores negros você
leu, digamos, nos últimos cinco anos? Destes, quantos eram de autores brasileiros?

Entenda. Vivemos num país onde cerca de 7% da população é declaradamente negra e


mais de 42% se declaram pardos (leia-se mulatos e cafuzos — cuja linha ancestral
apresenta mescla de africanos com europeus ou indígenas —, além de outras
combinações como negros, índios e brancos, ou negros e orientais; por fim, também
se incluem nesse grupo os caboclos — que não têm vínculo de ancestralidade com
africanos). Podemos estimar que um percentual entre 30% e 40% da população deste
país de dimensão continental se constitua de negros ou pessoas que têm alguma
relação de ancestralidade com africanos. Estamos falando de dezenas de milhões de
pessoas. Dezenas de milhões! No entanto, quando olhamos para nossa produção
literária, uma coisa chama a atenção: cadê os autores afro-brasileiros? Quantos você
conhece? Quantas de suas obras você já leu? De quantas gostou?

São perguntas interessantes porque, enquanto a Nigéria já tem um escritor negro


(Wole Soyinka) galardoado com um Nobel de Literatura pela reconhecida qualidade de
sua obra, enquanto os Estados Unidos têm entre seus escritores que já receberam o
mesmo prêmio uma famosa romancista (Toni Morrison) que, autora de estilo e talento
criativo elogiados por diversos críticos das mais variadas correntes, foca-se em
desnudar a condição do negro e, em especial, da mulher negra na sociedade americana
— sociedade que, a exemplo do Brasil, também tem uma história maculada pelo
tráfico de negros africanos e por sua sujeição à escravidão —, não é apenas uma
questão de ainda não haver um escritor afro-brasileiro ganhador de um Nobel (afinal,
tampouco há um brasileiro branco que tenha sido laureado com um); a questão é que
nós simplesmente ignoramos a produção literária de afrodescendentes no Brasil. Puxe
pela memória e cite um autor que conheça. Busque na lista de mais vendidos por um
único título, nacional ou estrangeiro, que se foque na condição do negro em
sociedades que vivem o legado de um passado escravagista — pode até mesmo
procurar por nomes famosos lá fora, como a já citada Toni Morrison ou Alice Walker,
autora do romance A cor púrpura (José Olympio, 2009), sucesso internacional de
público e crítica, cuja versão cinematográfica, de 1985, consta da lista dos grandes
filmes dirigidos por Steven Spielberg. São tarefas inglórias, essas que lhe peço. A gente
se esforça, se esforça, mas os resultados são poucos ou mesmo nenhum.

No Brasil, não se trata apenas de um enorme desinteresse de nosso grande pequeno


público leitor, cuja maioria se ocupa de consumir livros de autoajuda e romancezinhos
açucarados ao estilo de Nicholas Sparks ou como aqueles protagonizados pelo
pseudovampiro machista de Stephenie Meyer. Mesmo a crítica especializada e as
cadeiras de literatura dos cursos de Letras dão pouca relevância ou simplesmente
ignoram a existência de obras nacionais escritas por negros e centradas na situação
dos afrodescendentes no Brasil durante o período da escravidão e depois dela. Digo, é
verdade que há um movimento em escolas e faculdades para que sejam lidas e
estudas mais obras de autores africanos lusófonos, como as do biólogo e escritor
moçambicano Mia Couto, por exemplo, talvez o maior nome da literatura
contemporânea naquele país (e que, diga-se de passagem, é branco). Porém, é
espantoso o número de estudantes de Letras com que nos deparamos
corriqueiramente que não só ignoram a produção (e mesmo a existência) de escritores
africanos negros ou brancos consagrados — como Wole Soyinka, John Coetzee ou
Nadine Gordmer —, ou mesmo de grandes escritores dos países africanos de língua
oficial portuguesa — como José Luandino Vieira (Angola), Manuel Lopes e Orlanda
Amarílis (Cabo Verde), Abdulai Silá (Guiné-Bissau), Mia Couto, José Craveirinha e
Paulina Chiziane (Moçambique), e o poeta Francisco José Tenreiro (São Tomé e
Príncipe) —, como tampouco estão familiarizados com a literatura negra em geral,
incluindo a que se produz no Brasil.

Sim, há literatura negra e de qualidade escrita neste país. E, não, não estou me
referindo a Machado de Assis, o maior nome de nossa prosa contista e romanesca,
que, embora sabidamente mulato, vestia-se como branco, expressava-se como branco,
vivia rodeado de brancos, casou-se com uma branca e escrevia principalmente sobre
personagens brancos, adotando o estilo de autores brancos. É fato: considerando-se
desde a estética de sua obra até a invejável criatividade do escritor, não há dúvidas de
que Machado foi um talento ímpar em nossa literatura. Isso é incontestável. Sem
exageros, ele bem poderia estar entre os primeiros oito escritores a receber um Nobel
nessa categoria. Porém, entendo como um tanto forçoso querer enxergá-lo como um
escritor de literatura afro-brasileira. E o certo é que temos escritores bem mais
apropriados para essa corrente de produção literária, dos quais eu gostaria de
destacar sobretudo algumas mulheres (já que, se a voz dos autores negros brasileiros
parece ter sido sufocada, mais inaudível ainda se faz a literatura ao mesmo tempo
negra e feminina ou feminista). Gostaria de começar citando, por exemplo, o romance
Úrsula, de 1859 — anos antes de Machado haver publicado seu primeiro livro de
poemas, Crisálidas (1864), seu primeiro livro de contos, Contos fluminenses (1870), e
muito antes de seu primeiro romance, Ressurreição (1872). A autora de Úrsula, Maria
Firmina dos Reis, foi uma mulata de São Luís (MA), filha bastarda numa época em que
isso era uma sina terrível de se carregar, e que, com muita luta, tornou-se professora
primária aprovada em concurso público, escreveu para jornais de literatura e ainda
fundou uma escola que oferecia ensino gratuito para turmas mistas de meninos e
meninas — algo inapropriado para a mentalidade da época e que foi motivo de
escândalo na provinciana comunidade de Maçaricó, onde ficava a escola, do que
resultou à ordem para seu fechamento. O romance Úrsula foi escrito sob o
pseudônimo de “Uma Maranhense”, e a obra passou por praticamente invisível aos
críticos literários até meados da década de 1970, cerca de 115 anos mais tarde,
quando os estudiosos tomaram contanto com uma edição fac-similar do livro. Além
disso, convém destacar que, fora de um restrito círculo de acadêmicos e outros
particularmente interessados na produção literária de afrodescendentes no Brasil,
poucos já ouviram falar de Maria Firmina e de seu romance Úrsula. E, de uma
perspectiva mais geral, é quase como se não houvesse negros e outros brasileiros de
ancestralidade africana produzindo literatura neste país.

Capa de uma edição moderna de "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis. O romance-mãe
da literatura afro-brasileira, escrito em pleno Brasil imperial.

Mas basta pegar qualquer edição dos Cadernos Negros, série de livros atualmente
organizados e editados pelo grupo Quilombhoje — nos quais se vem divulgado a
literatura afro-brasileira desde 1978, especialmente com a publicação de poemas e
contos —, para nos darmos conta de que existem muitos, em vários casos autores de
admirável talento, produzindo versos e prosa de indiscutível qualidade. Infelizmente,
tais poetas e escritores o fazem à margem de uma sociedade, que aparentemente
não se interessa por ler histórias escritas e protagonizadas por negros. E não pense
que é um exagero essa leitura que faço da notável aversão ou desinteresse pela
literatura negra no Brasil.

Quem já ouviu falar de Conceição Evaristo, por exemplo? A grande maioria, não. Pois
se trata de uma escritora afro-brasileira, autora de poemas, contos e romances, que já
teve textos traduzidos e publicados em outros países, incluindo a tradução para o
inglês de seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio (publicado no Brasil em 2003, lançado
em inglês em 2007, pela Host Publications). Já existem estudos sobre a obra de
Conceição Evaristo no Brasil e no exterior, em português e em outros idiomas; todavia,
ela continua uma ilustre desconhecida dos leitores deste país e mesmo de grande
parte dos alunos e professores dos cursos de Letras de norte a sul. Seus dois
romances escritos até o momento, Ponciá Vicêncio e Becos da memória (2006) foram
publicados na última década por uma pequena editora voltada para obras afro-
brasileiras. Ambos os títulos certamente tiveram uma primeira tiragem modesta, pois
o número de livros impressos numa possível segunda edição depende do sucesso
comercial da primeira. Houve uma segunda edição de Ponciá Vicêncio, em 2005, mas
também deve ter sido uma tiragem relativamente tímida. Alguns estudiosos que
tiveram acesso a uma (rara) cópia dos romances publicaram artigos, analisando-os e
exaltando suas qualidades estéticas, a engenhosidade narrativa e a construção
esmerada de personagens nem um pouco rasos. Assim foi, dentro e fora do país. No
entanto, uma pergunta: em que livraria encontro hoje esses romances para comprar?

Quem tiver a curiosidade de pesquisar descobrirá que Becos da memória está


esgotado na editora e não se pode encontrar em nenhuma livraria virtual. Nem em
sebos eu encontrei algum exemplar. Já Pociá Vicêncio, apesar das duas edições,
tampouco teve destino melhor. A tradução inglesa da Host Publications pode ser
encontrada em várias livrarias internacionais, como a Amazon ou a Barnes & Noble,
por exemplo. Tina, uma leitora de Owings Mills, no estado americano de Maryland, fez
questão de deixar uma avaliação pessoal da obra na página da Amazon: deu-lhe cinco
estrelas e comentou: “I loved this book. It was very interesting and entertaining. It’s now
one of my favorites. This was my first time reading a novel from someone that was not born
in the United States” [“Adorei este livro. Foi muito interessante e agradável. Agora, é um
de meus favoritos. Esta foi a primeira vez que li um romance de alguém não nascido
nos Estados Unidos”].
Conceição Evaristo (1946 - ): um grande nome da literatura afro-brasileira.

Conceição Evaristo não é a única escritora afro-brasileira de talento, cujo sucesso


comercial e mesmo o reconhecimento acadêmico fica muito aquém do que merece.
Parte do problema reside no eterno cinismo daqueles que, diante de quaisquer
iniciativas afirmativas de grupos minoritários historicamente discriminados e
prejudicados das mais diversas formas, reagem com falsa “indignação”, denunciando a
suposta inversão do preconceito, gritando coisas do tipo: “Queria ver só, se eu
resolvesse abrir uma editora declaradamente focada na produção de literatura
branca, para divulgar autores brancos”. E o pior é saber que muitos leem coisas assim
e balançam a cabeça, concordando, não vendo a falácia gritante que esse tipo de
enunciado encerra. Brancos nunca tiveram as portas das editoras fechadas para eles.
Brancos nunca tiveram problemas de rejeição da grande massa leitora, não
interessada em histórias protagonizadas por… bem, por brancos!

Aliás, a cor da pele sempre esteve associada a uma história de valoração ou


desvaloração social, uma história de traumas, de dor. Essa indelével “marca humana”,
como a definiu o grande Philip Roth (cuja obra não se foca em afro-americanos, diga-
se de passagem, mas sim na condição dos judeus na sociedade americana) em seu
soberbo romance de mesmo título, no qual narra a história de um negro que nasceu
com a pele relativamente clara e poucos traços negroides, e que tenta se valer disso
para se passar por branco e ascender em seu meio social, em meados do século XX,
nuns Estados Unidos marcados por forte segregação racial. A perene ideia da beleza
idealizada nos moldes dos loiros brancos de olhos claros, a propósito, confere aos que
têm esses traços a marca do sucesso no espaço social ou, pelo menos, o afastamento
da suspeita gratuita de que mormente são vítimas aqueles que não os exibem.
Quantos já ouviram histórias de negros barrados em espaços públicos ou privados,
mas ao qual tinham direito de acesso? E quem já ouviu histórias semelhantes de
brancos tornados gratuitamente em suspeitos e personæ non gratæ por conta da
menor concentração de melanina em sua pele?

Se você nunca pensou nisso, pense. Muitos já viram o vídeo famoso de um estudo
feito com crianças negras que são colocadas diante de bonecas, uma branca e outra
negra, enquanto respondem a questões feitas pelos pesquisadores. A essas crianças
são perguntadas coisas como “Qual boneca é a bonita?” (a criança aponta a branca),
“Qual é a feia?” (a criança aponta a negra), e a pergunta mais avassaladora: “Com que
boneca você se parece?” (a criança, os olhinhos sem alegria, a expressão contida,
inocente, mas já marcada pela dor de viver sob um sistema de valoração estética que
elege seu tipo como o avesso do ideal e desejável, aponta para a boneca negra). O
interessante é que, bem antes dessa pesquisa, bem antes dessas imagens comoventes
serem gravadas, uma romancista já havia pintado todo esse retrato sofrido numa
história que ainda hoje é tida como uma das obras-primas da literatura afro-
americana: O olho mais azul, romance de estreia da premiadíssima Toni Morrison,
publicado em 1970 (no Brasil, a tradução foi lançada pela Companhia das Letras, mas
também já se encontra esgotada). Nele, uma criança negra, a menina Pecola, já
vitimada pelas desgraças em sua vida, vai desenvolvendo uma obsessão gradativa por
ficar branca e ter olhos azuis. O livro destaca o forte impacto psicológico do racismo (e
do abuso sexual) sobre uma vulnerável menina negra numa sociedade
segregacionista.

De forma semelhante, o romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, também


apresenta a deteriorização psíquica de uma mulher negra, no Brasil após a abolição da
escravatura. Porém, desenvolve o tema por outra via e discute ainda outros aspectos,
como, por exemplo, a alegada incapacidade do negro, sua suposta inferioridade
intelecto-cognitiva em relação ao branco. Para citar um exemplo, num trecho em que
é relatada a infância do pai de Ponciá, a personagem-título, deparamo-nos com um
parágrafo interessante, que fala de quando o “coronelzinho” branco se dá conta de
que o menino negro, com quem se divertia como se fosse um brinquedo, podia
aprender tão facilmente quanto qualquer menino branco:

Pajem do sinhô-moço, escravo do sinhô-moço, tudo do sinhô-moço, nada do sinhô-moço.


Um dia o coronelzinho, que já sabia ler, ficou curioso para ver se negro aprendia os
sinais, as letras de branco e começou a ensinar o pai de Ponciá. O menino respondeu logo
ao ensinamento do distraído mestre. Em pouco tempo reconhecia todas as letras. Quando
sinhô-moço se certificou que o negro aprendia, parou a brincadeira. Negro aprendia sim!
Mas o que o negro ia fazer com o saber de branco? O pai de Ponciá Vicêncio, em matéria
de livros e letras, nunca foi além daquele saber (Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, Ed.
Mazza, 2003, p. 18).

O menino negro “nunca foi além daquele saber” porque o menino branco teve receio
das consequências de se educar um negro. Um negro “com o saber de branco”? O que
poderia fazer? Melhor não! Na verdade, o que o negro letrado poderia fazer (e muitos
o fizeram) foi expressar, fazer ouvida, ou melhor, lida, a sua voz, a voz que, já de fora
das senzalas, ainda ecoava lá de dentro, de suas prisões frias, sujas e escuras. Ao
longo de todo o século XX e nestas primeiras décadas do terceiro milênio, vários
autores têm surgido, publicando poemas, contos e romances em que a negritude é
resgatada, revigorada e reafirmada com orgulho. Um orgulho que se justifica por se
contrapor aos séculos de dor, de tortura e vazio existencial em que penaram seus
antepassados. Nesse sentido, muitos se esforçaram por resgatar essa memória
perdida, enterrada sob o cinismo da história dos que a contam, enquanto tentam
fingir que o passado não foi. Ou que não foi como foi.

Hoje, é lamentável ter de admitir que tantos de nós jamais tivemos contato com um
sem-número de obras contemporâneas dessa admirável literatura. Obras de
reconhecível valor literário, mas que são ignoradas até mesmo pelos cursos de Letras
do país, que dirá pelas livrarias, mais interessadas em potenciais sucessos de venda. É
vergonhoso que obras recém-lançadas já estejam esgotadas, inacessíveis, sem
previsão de novas edições numa tiragem maior. É ainda mais triste saber que, se
literatura negra já não faz sucesso, tanto pior se for negra e feminista, com um
enfoque maior na condição da mulher de pele escura no miscigenado “Brasil de todas
as raças”, do falso “preconceito inexistente”. É uma pena que nomes como Conceição
Evaristo, Geni Guimarães (autora de A cor da ternura, FTD, 1994) ou Ana Maria
Gonçalves (e seu elogiadíssimo e volumoso romance histórico Um defeito de cor, Ed.
Record, 2009), para citar apenas alguns poucos nomes, não estejam em destaques nas
prateleiras das livrarias de todo o país. No caso da última, consola saber que ao
menos está tendo um modesto sucesso comercial que lhe garantiu cinco edições da
obra. Mas, ainda assim, é preciso bem mais. O Brasil precisa aprender com o exemplo
de outros países que hoje se orgulham de uma linha vigorosa de literatura
afrodescendente. E precisa também dar a devida atenção à produção das mulheres
negras, que enfrentam a dupla condição de vítimas históricas de uma absurda
discriminação para com a cor de sua pele e para com o gênero a que pertencem.

Bem, encerro este texto compartilhando com o leitor um conto maravilhoso de


Conceição Evaristo, disponível na internet. É a minha homenagem a todas essas
escritoras guerreiras de um Brasil onde os poucos que leem não se mostram muito
interessados por ler o que se escreve em tinta preta nas páginas de nossa história,
manchadas de sangue e suor.

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OLHOS D’ÁGUA (Conceição Evaristo)


Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha
boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da
nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até
ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando… De que cor eram os olhos de minha
mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e
outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a
princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em
uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que cor
eram os olhos de minha mãe?
Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias
dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de
minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como
também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele
momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os
seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários
detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo… Da
verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela… Um dia, brincando de pentear
boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lavalava, o
passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas,
descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse
carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe
daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso
engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?
Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe.
Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam
nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam
roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se
com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe
cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso
desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela
cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas
infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias
de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a
brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava
em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em
um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco.Aquelas flores eram depois
solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos
reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha.
Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma
maneira triste e com um sorriso molhado… Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a
nossa fome. E a nossa fome se distraía.
Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na
soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas
viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia
aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o
céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma
de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos
sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama,
agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto
balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre
nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva … Sei que tudo
me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos
de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava,
chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de
minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e
para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu nunca
esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas
de minhas tias e todas a mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu
entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a
terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas
Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de
minha mãe?
E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de
minha mãe, naquele momento, resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que
nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca
mais esquecer a cor de seus olhos. E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a
sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser
descoberta da cor dos olhos de minha mãe.
E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar
extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?  Vi só lágrimas e
lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se
minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha
mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o
seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d ’água. Águas de Mamãe Oxum!
Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela
superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se
misturarem às minhas.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de
minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são oespelho dos olhos da outra.
E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas
estávamos nesse doce jogo, ela tocousuavemente o meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão
baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e
encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei, quando,
sussurrando minha filha falou:
Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

(Conto publicado em Cadernos Negros, vol. 28, 2005.)
***
OBS.: A inspiração para o presente texto me veio de minha esposa, que é da área de Letras
e tem especial interesse pela literatura feminina e afrodescendente.

Camilo Jr.

Tags:  Conceição Evaristo, Literatura afro-brasileira, Literatura feminista, Ponciá


Vicêncio, Racismo, Toni Morrison.

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