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“RESUMO”

Obra: A idéia de Justiça em Kant: Seu fundamento na liberdade e na igualdade.


Autor: SALGADO, Joaquim Carlos;

INTRODUÇÃO
A principal tarefa da filosofia no mundo de hoje é levantar questões. A filosofia é uma
reflexão a partir do conhecimento científico do seu tempo. Não é uma reflexão sobre a
realidade imediatamente dada à consciência, mas uma realidade midiatizada pelo
conhecimento científico. Nesse sentido, é um saber de terceiro grau. A filosofia
contemporânea mostra-se cada vez mais como uma reflexão do homem sobre si mesmo.
Um saber da consciência. Uma reflexa sobre a liberdade.
Partindo dessa ideia, a filosofia do direito é concebida como reflexão sobre a possibilidade
da liberdade no convívio social. Nesse caso, a filosofia do direito invade a esfera da filosofia
política, na medida em que a realização da liberdade é uma preocupação comum do direito
e do Estado.
Nisto se mostra a importância de Kant: ter sido o pensador que voltou todo o interesse da
sua investigação filosófica para a questão da liberdade, enquanto exigência racional da
possibilidade da eticidade do homem. Perguntas fundamentais da sua filosofia: como é
possível uma sociedade racional?, ou, Como é possível uma sociedade livre?
O pensamento de Kant aparece como um momento decisivo na formulação teórica de um
novo conceito de justiça: a ideia de justiça como liberdade e igualdade e que, com ideia, não
se realiza totalmente no momento histórico em que se ofereceram as condições concretas
do seu aparecimento, mas fixa um projeto de realização futura.
No mundo antigo, aparece como virtude, cuja essência tem como elemento determinante a
igualdade. Na Idade Média, o mesmo ideal matizou-se de religiosidade. Na Revolução
Francesa, resultado de um processo que teve origem no humanismo da Renascença, não
mais configura a ideia de justiça uma igualdade qualquer, mas uma igualdade dos seres
humanos, enquanto seres que são livres por natureza e criadores de seu próprio destino
político.
Embora a Revolução colocasse a par da igualdade e da liberdade, a fraternidade, Kant não
a leva em consideração, centralizando o seu conceito de justiça num conceito
eminentemente ético, a liberdade e, ao lado dela, a igualdade.
Essa ideia de justiça, como tarefa puramente ética, evidentemente não é ainda a que se
entende por justiça social. Justiça social é a ideia norteadora da consciência política dos
povos civilizados contemporâneos, que não se restringe apenas no conteúdo ético da
liberdade ou da paz perpétua, pois se estende às questões que envolvem as condições de
vida do povo. Enquanto a ideia de justiça que informa o Estado de direito é a realização da
liberdade.
O termo justiça, para significar a ideia implícita na filosofia de Kant, a qual dá o dever ser do
direito, ou a medida de validade do direito positivo, é empregado não apenas como ordem
jurídica dirimidora de conflitos, mas também como liberdade, que justifica aquela ordem
jurídica.
Kant não quer dar o conceito de direito nos moldes atuais (a partido do direito positivo), mas
a ideia do direito, ou seja, o critério (filosófico) pelo qual se julga a validade do direito. A
ideia de justiça como liberdade, colocada no momento da elaboração do direito positivo, é
que torna possível uma paz perpétua entre os homens.
Assim, a tarefa proposta no presente trabalho é explicitar a ideia de justiça em Kant,
procurando demonstrar, a partir da Crítica da Razão Pura, a sua significativa contribuição
teórica para a formulação de uma nova ideia de justiça fundada na ideia de liberdade e
igualdade. (critério supremo de legitimação -racional- do poder político).

IGUALDADE FORMAL E JUSTIÇA ATÉ KANT


A ideia de igualdade como elemento definidor de justiça aparece, desde a Grécia clássica,
como elemento puramente formal. Para o propósito deste trabalho será relembrado o que se
pensou sobre a justiça como igualdade nos textos mais importantes até Kant.

§ A PERSPECTIVA PLATÔNICA:
Antes de Sócrates (citado por Platão) a justiça aparece na Grécia como ordem natural ou
social a que o homem deve ser submetido inexoravelmente. A injustiça é a ruptura dessa
ordem e dá-se pela afirmação da subjetividade (consciente em Sócrates).
Sócrates afirma a subjetividade consciente no ético e faz-se medida do nomos da cidade,
julgando-o e rompendo a harmonia ou a medida objetiva da ordem da polis. Significa isso
abrir caminho para a participação de uma nova ordem, como fez Platão.
O pensamento platônico sobre a justiça é o ponto de partida de uma correta reflexão sobre a
ideia de justiça como igualdade.
Platão, em A república, abre duas perspectivas para a concepção da justiça: a justiça como
ideia e a justiça como virtude ou prática individual.
A justiça aprece já nas primeiras obras de Platão como virtude do cidadão ou do filósofo.
Platão conclui que “só conhece a justiça aquele que é justo”. Esse agir com justiça consiste
exatamente na superação de toda atitude egoísta, no sentido do reconhecimento da
igualdade de direito do outro contra a reivindicação de tudo pra mim, indiferente ao que
ocorra com o outro. Por colocar o outro na mira do agir humano, a justiça torna-se a maior
das virtudes, pois que as demais, a sabedoria, a coragem e a temperança são apenas
interiores e ela é precisamente a que atinge diretamente o Estado como um todo.
No Críto (ou do dever) (é um dos diálogos escritos por Platão), a concepção de justiça é a
do própria Sócrates. A conformidade das nossas ações com a lei é que as torna justas. Só a
sentença ou os atos das autoridades podem ser injustas, não, porém, a lei.
Em A República essa ideia central, que define a justiça como virtude que consiste na
observância da lei permanece, mas num outro plano: não como dedução empírica da
necessidade de observar leis na medida em que sejam a expressão dos costumes, da vida
ética do povo, mas como ideia da razão que informa o próprio Estado de Platão, num plano
filosófico elevado, visto que não mais ligado ao empírico da observação socrática. O Estado
ideal é também o Estado de justiça e nele não há diferença entre as leis e a justiça. Sua leis
são justas porque editadas por quem pratica a virtude da justiça. Platão expressa essa
noção em um conceito que atribui a Simônides (poeta grego): dar a cada um o que lhe
convêm, ao que Simônides chamou de devido. Platão entende devido como que convém.
Só não aceita a ideia de justiça seja concebida entre particulares, mas na elevada dimensão
da estrutura do seu Estado. O que é devido a cada um, o que lhe pertence por natureza é o
posto que corresponde às suas aptidões e a função que cada um pode desempenhar no
Estado. Pois bem, as três primeiras virtudes, a sabedoria, a coragem e a temperança vão
definir não só a natureza de cada indivíduo, mas também a sua posição no Estado.
A justiça consistirá na virtude pela qual cada um se põe no seu lugar, segundo as suas
aptidões, garantido com isso a saúde do Estado. A justiça consistirá na harmonia entre as
três virtudes da alma e, do ponto de vista do Estado, na harmonia das classes que o
compõem.
A justiça em Platão é concebida, pois, como o elemento em que vive o Estado. A sua
preocupação é a função política da ideia de justiça, cuja a igualdade dos membros da
comunidade se expressa numa relação geométrica, na medida em que se garante a cada
um, no Estado, o papel que, pela suas aptidões, lhe corresponde. A justiça assume, assim,
uma expressão de universalidade, pois que harmonia. Muito mais que um receber, é a
justiça um dar de si mesmo, um compromisso do cidadão com o Estado, na medida em que
devo-te todas as aptidões ao serviço da comunidade e, por força desse dever com a
comunidade, receba dela um papel a desempenhar como reconhecimento.
Essa ideia de justiça expressa, afinal, a própria ideia de Estado para Platão.
Platão delineia duas vertentes que se separarão no correr da história: a justiça como ideia
norteadora da conduta e definidora do direito e da lei e a justiça como virtude norteadora e
determinada pela lei. De um lado, a ideia de justiça, do próprio Platão, soberana, não
sujeita nem mesmo à vontade da divindade, informadora do Estado e, de outro, a
concepção da justiça como hábito de cumprir o direito, ora entendido como direito positivo,
ora como direito legislado por Deus ou derivado da natureza.
§ ARISTÓTELES:
Ética eudemônica de Aristóteles é uma atividade, é o desenvolvimento das aptidões do ser
no sentido de realizar a sua perfeição. Segundo Aristóteles, o homem alcança a felicidade
quando realiza o que há de mais particular nele, que se traduz na atividade da alma de
acordo com a razão.
O conceito de eudemônia, em Aristóteles, guarda uma vinculação estreita com a concepção
de justiça esboçada por Platão. Ele aceita o seu ensinamento sobre um aspecto: a sua
conceituação como virtude, ou seja, a justiça é um exercício político, assentando assim a
base de uma vinculação entre a ética e a política, já ideada por Platão, “pois os legisladores
formam os cidadãos na virtude, habituando-se a ela”. Recusa, porém, conceder-lhe o
caratês de uma ideia ontologicamente transcendente, que informa toda a ação virtuosa ou
justa.
Já ao investigar o que seja o bem, em cujo conceito se inclui o de justiça, Aristóteles
combate a teoria das ideias de Platão. Para ele, o bem não pode ser apenas um bem em si,
ou uma ideia do bem. A definição do bem em si coincide com a do homem concreto. A ideia
de bem seria apenas uma forma sem conteúdo. Há várias significações possíveis.
Posta a questão nesses termos, a justiça se coloca dentre os bens que Aristóteles designa
virtudes.
§ O medium da virtude: Aristóteles demonstra que a virtude não é algo natural no ser
humano, mas um hábito. Algo adquirido e não inato. Os valores éticos, ao contrário da
capacidade natural que nasce conosco, só conseguimos na medida em que agimos,
exercitamos.
Aristóteles distingue o que é racional e o que é irracional no homem. Na parte racional,
distingue a virtude do racional em si (da inteligência- saber teórico) e a virtude do caráter (ou
virtudes éticas – o saber prático). As virtudes éticas não se destinam ao conhecer, mas à
ação, posição que se distancia definitivamente de Platão.
A virtude ou a ação moral se caracterizam por 3 aspectos: 1- necessidade de consciência de
que se pratica uma ação justa. 2- Aja por uma decisão que se motiva pela própria ação. 3-
na ação moral, o homem deve agir com firme e inabalável certeza, já que a dúvida impede
que seja um ato virtuoso. Assim, a virtude da justiça é praticada na medida em que se
realizam esses três elementos.
Uma vez desvinculada do elemento saber, a ética se desvincula também de toda ideia ou
dever ser, para atar-se ao real, ao mundo do ser.
Aristóteles estabelece alguns parâmetros do ato virtuoso. A virtude do homem é um hábito
que se dirige para realizar a função que lhe é característica. O que é característico no
homem é ser racional, o que traz como consequência a virtude, por excelência, é
desenvolver a inteligência do homem, não, porém, como ser isolado, mas como ser social. A
virtude se traduz, enfim, no realizar o que o homem tem em si de melhor.
A virtude é uma espécie de harmonia segundo as circunstâncias ou o termo médio que
equilibra os extremos, considerados o momento da ação, o seu fim, a pessoa envolvida e a
forma de ação. Defini-se como uma disposição voluntária adquirida, que consiste em um
termo médio em relação a nos mesmos, definida pela razão e de conformidade com a
conduta de um homem consciente.
Aristóteles, contudo, adverte que esse termo médio não pode ser interpretado de modo
arbitrário, mas segundo o critério do razoável. A virtude é um termo médio com relação,
porém, ao bem e a perfeição que ela deve realizar, a virtude coloca-se no ponto mais alto, o
extremo.
Desse modo, na interpretação de N. Hartmann, a ideia de igualdade aparece como
elemento constitutivo do ato moral e da virtude de Aristóteles. Como a justiça é uma virtude,
vê-se que a estrutura do ato justo revela, desde logo, a ideia de igualdade. Esse médio que
expressa uma igualdade comum a todas as virtudes refere-se, contudo, à ação do indivíduo
humano enquanto ação, ou seja, acidente da substância humana (plano ontológico). Na
ação não deve haver excesso nem carência. Quando a ação envolve no seu objeto material
uma outra substância individual humana, então reaparece a igualdade como objeto definidor
de uma virtude específica: a justiça. Aí, o objeto da ação é o outro indivíduo humano que se
relaciona com quem age, exercendo uma decisiva influência na avaliação da ação. Neste
caso, quando o bem se coloca na perspectiva do outro ser humano, a ação moral, então
chamada justa, deverá ser determinada pela igualdade das substâncias por ela
relacionadas, principalmente a do sujeito que age e do que sofre a ação.
§ Classificação da justiça: Aristóteles distingue duas classes importantes de justiça: a
universal e a particular. Em sentido amplo (universal) se define como a conduta de acordo
com a lei (virtude no sentido de Platão); em sentido estrito (particular), como hábito que
realiza a igualdade (sem privilegiar a lei).
Na ética aristotélica temos, pois, as virtudes que o agente pode referir somente a si mesmo
e as que se referem ao outro. Quando as virtudes são praticadas na dimensão do outro,
chamam-se, quaisquer que sejam, justiça. Se na relação com o outro a virtude é o
cumprimento da lei geral, chama-se virtude universal; se acentuadamente a observância da
igualdade, justiça estrita. Trata-se, neste caso (justiça estrita), de uma virtude dentre as
demais, que Aristóteles denomina justiça particular.
A justiça particular ou a justiça enquanto uma virtude ao lado das demais, classifica-se,
segundo Aristóteles, em justiça comutativa. Nesta esfera é que o conceito de igualdade será
explorado por Aristóteles, como elemento preponderante da justiça.
§ Elementos da virtude: A justiça é uma virtude que só pode ser praticada em relação ao
outro de modo consciente, na medida em que essa prática se destina à realização do seu
elemento fundamental: a igualdade, ou a conformidade com a lei, cujo o objetivo é realizar a
vontade da polis num plano mais alto, ou o bem de modo geral.

Compõem o conceito de justiça no sentido aristotélico, ou seja, a essência dessa virtude,


são eles: o outro, a consciência do ato, a conformidade com a lei e o bem comum,
além da igualdade.
1 - § O outro: A justiça é uma virtude que, ao contrário das demais (coragem, temperança
etc), só se torna possível na dimensão do outro, enquanto igual ao sujeito que a pratica, vale
dizer, na medida em que seja considerado como ser racional, ou “sujeito”. A alteridade é,
inquestionavelmente, elemento essencial ao conceito de justiça em Aristóteles, seja no
sentido universal (respeito à lei ou prática das virtudes enquanto relacionadas com o outro),
seja no de justiça particular (que manda observar a igualdade).
2- § A vontade: o ato de justiça só se realiza voluntariamente. Alguém que cause um dano
a outrem pode ter causado uma injustiça, mas apenas por acidente, não comete injustiça se
não age voluntariamente.
3- § A conformidade com a lei: na comunidade ética da polis, o justo pouco se
diferenciava do legal oi da norma de direito positivo em geral, fosse ela costumeira ou legal,
ou ainda do padrão de comportamento em geral. A lei, contudo, não é o produto do arbítrio
do legislador. Tem o seu critério de validade: a lei natural que expressa a própria natureza
da ordem política que é uma ordem natural destinada a realizar a autarkeia do homem. A
que realiza essa finalidade do Estado, que se destina ao bem comum e não a interesses
particulares expressa a justiça, e agir em desacordo com seu preceito é injustiça. Há,
portanto, a lei natural ( ou direito natural), que é a lei que revela natureza da comunidade
política. Há um parentesco próximo entre razão, lei e igualdade. A razão é o comum a todos
os homens, o igual. A lei é a razão porque “é a instância impessoal e objetiva” que impede o
arbítrio e realiza a igualdade jurídica formal ( tal como desenvolvida pelo Estado romano).
A virtude é para Aristóteles, assim como na tradição platônica, a vinculação do político com
o ético. A divergência na seguinte concepção: em vez de investigar a justiça como ideia para
depois conhecê-la, definir o direito, isto é, em vez de definir o direito em função da ideia de
justiça, que “só se dá no Estado”.
O ato juto, conforme a lei, de que fala Aristóteles, não é simplesmente e somente o ato
conforme à lei positiva convencional. Devemos distinguir, segundo diz, dois tipos de leis: um
particular ( escrita ou costumeira) que regula a vida de um Estado e outra comum, não
escrita, que é conhecida de todos os povos. A lei comum é uma lei natural, pois tem
validade geral, independentemente da opinião dos homens, embora não imutável, visto que
nem na natureza nada é imutável, apenas entre os deuses. Segundo seja o objeto da
justiça conforme realizar a ação conforme uma ou outra lei, poderíamos deduzir o conceito
de justo legal ou político e justo natural ou original. § Conformidade com a lei e equidade:
o equitativo é o justo que vai além da lei escrita, não além da lei natural. A justiça expressa
pela lei positiva é uma justiça abstrata, sem consideração das particularidades que
envolvem cada fato. Daí a equidade para a correção da aspereza da lei. O justo não é algo
diferente da equidade. Justo é o que observa a lei e a igualdade ou o que é conforme a lei e
a equidade. Ambos, a equidade no momento da aplicação da lei e o justo no da sua
elaboração, procuram realizar uma coisa só: a essência da virtude da justiça que é a
igualdade.
4- § O bem comum: A vinculação do político com o ético tem o seguinte pressuposto
teórico: “ o homem é por natureza destinado à vida em comunidade”. A ética eudemônica de
Aristóteles encontra assim seu coroamento e sua perfeição na política, que é a justiça na
medida em que procura o benefício na comunidade, realizando o justo na medida em que
reconhece que “aos iguais deve corresponder sempre algo igual”.
5-§ A igualdade: A igualdade que dá sentido a própria justiça não é descoberta de
Aristóteles, segundo Del Vecchio, mas dos pitagóricos.
Esse elemento, segundo Aristóteles, aparece em 3 momentos: a) na ação em si- a justiça é
o termo médio do justo e injusto, a carência e o excesso. b) no objeto da ação – neste caso,
a ação aparece na atribuição do bem: injusta é a ação se pratica no sentido de receber mais
bem do que o outro. c) no pressuposto de uma igualdade fundamental (que não despreza
certa desigualdade): o ser humano na justiça universal e o cidadão na justiça particular. Em
princípio, essa igualdade é exigida pela essência racional do homem, embora Aristóteles
leve em consideração, para a prática da ação justa, certas qualidades que possui o ser
humano, desigualmente.
Há, pois, duas espécies de justiça, segundo o tipo de igualdade matemática conhecida: a
justiça distributiva que expressa uma igualdade proporcional, geométrica e a justiça
comutativa que exprime uma igualdade aritmética.
A justiça comutativa tem lugar nas relações interpessoais, neste caso, o que se pretende
como justo é garantir a igualdade dos bens ou dos males que as partes se atribuírem ou
sofrerem na relação interpessoal.
Nas relações interpessoais voluntárias (adesão da vontade das partes, como no contrato), a
justiça comutativa, que aparece nas relações de intercambio que garantem a existência da
comunidade, tem como pressuposto: a) necessidade do bem ser trocado; b) a possibilidade
de disposição do bem por quem deseja trocá-lo; c) o critério de medida de valor (moeda); d)
o acordo das vontades dos indivíduos envolvidos na transação. Nesse caso, embora se fale
em justiça comutativa, há que se observar também a igualdade proporcional, pois não se há
de querer que a obra do construtor valha o mesmo que a do sapateiro. É mais importante o
que produz o mais necessário e que exige maior talento. Nada impede, portanto, que o
produto de um valha mais que o de outro, pelo que é preciso igualá-los.
Nas relações interpessoais involuntária( ou do ilícito), a justiça comutativa aparece fazendo
a seguinte distinção: se o dano se traduz numa reparação à vítima, a justiça se define na
igualdade aritmética entre o dano causado e a reparação que o agressor deve fazer. Aqui
não há que se distinguir as pessoas pelos seus talentos ou méritos.
Entretanto, se se trata de uma pena a ser aplicada pela violação da lei, a igualdade
aritmética entre dano e castigo, como princípio da retribuição taliônica, não realiza justiça.
Há que se recorrer à igualdade de proporções ou geométrica.
Diferentemente do que ocorre com a justiça comutativa, a justiça distributiva define uma
relação, não dos particulares entre si, mas uma relação entre particular e comunidade. Aqui
também rege o conceito de igualdade proporcional ou geométrico, visto que se trata de
definir a posição de cada indivíduo da comunidade. O pressuposto da justiça distributiva é
que todos os homens são iguais, mas também em um certo sentido desiguais.
Qual então o critério da distribuição dos bens da coletividade? Aristóteles não tem dúvida
em adiantar que é o mérito de cada um. Há de se indagar ainda sobre o que produz o mérito
de cada um. E nisto nem todos estão de acordo: Para os democratas radica na liberdade,
para os aristocráticos, nas virtudes.
Com efeito, Aristóteles não nega que a justiça se possa realizar plenamente em qualquer
das formas de governo, seja monárquico, aristocrática ou republicana, desde que promovam
o bem da comunidade, no sentido de atender aos seus interesses e não aos interesses
particulares dos governantes.
Malgrado a manifesta simpatia de Aristóteles pela república e pela direção da polis através
dos seus próprios membros, como cidadãos livres (cidadão é o que participa do governo), a
sua teoria manifesta uma insuperável contradição, gerada talvez pela sua posição ideológica
na sociedade escravocrata grega: livre não é o ser humano em geral, dotado da diferença
específica, a racionalidade. A divisão da sociedade entre livres e escravos não procede das
convenções, mas dá própria natureza, visto que o escrevo é inferior ao senhor (salvo se se
tratar de um grego submetido à escravidão pela guerra): aquele que sendo um ser humano
pertence por natureza não a si mesmo, mas a outros, é por natureza um escravo.
Com isso, o conceito de justiça distributiva de Aristóteles permanece formal e vago,
prestando-se a diferentes sistemas de distribuição. Além do mais, impossibilita fixar
individualmente, em cada caso, o cânon do justo. Kant introduzirá um elemento fundamental
para levantar a contradição entre o cidadão e o homem em geral, atribuindo a todo ser
racional a leberdade como dado essencial e a priori, que não pôde ser levado às últimas
consequências por Aristóteles, por entender a liberdade pelo modelo empírico da sociedade
do seu tempo.

§ A IGUALDADE E O ESTOICISMO :
Um grande passo para a concepção de justiça como critério de igualdade forma de
tratamento igual de todos, perante a lei, foi dado pelas novas condições de vida do Império
Romano, cuja expressão filosófica mais própria aparece no estoicismo.
Hegel descreve na Fenomenologia do Espírito a dissolução do “mundo ético” grego, que
concentrava a essência da comunidade em sua imediatidade e o aparecimento do “Estado
de direito” romano. O Estado, após a destruição da polis, não é mais a comunidade ética em
que o indivíduo aparece integrado como cidadão. Os indivíduos aparecem diante do Estado
universal abstrato como essência punctiformes, isolados na vastidão do Império Romano.
Como indivíduos que reivindicam a essência ética, são todos iguais, mas iguais perante a
lei, sem qualquer vinculação orgânica.
A ética estoicista consiste na inserção na ordem cósmica e na resignação com sua lei
universal, que é a expressão da razão universal, da qual a nossa é apenas o local da sua
aparição.
O logos de Heráclito é, para os estoicos, um critério de ação virtuosa. “É preciso seguir o
universal”, isto é, a razão, pois esta é o universal, e não viver como muitos, como se tivesse
um pensamento só para si.
O formalismo estoico não tem , de outro lado, um critério do verdadeiro ou do bom a não
ser no pensamento abstrato, sem conteúdo: se não posse ser livre concretamente, posso no
pensamento; e isso basta. A liberdade da consciência de si é indiferente com relação ao ser
natural existente. – essa definição parece ter propiciado o direito romano uma definição
mais lúcida da escravidão, negando-a como algo natural.
Essa liberdade abstrata que aparece nos indivíduos torna-os consequentemente iguais
também abstratamente, como pessoas do direito, ou seja, como iguais perante a lei. A
justiça consistirá numa fórmula abstrata de a lei tratar todos igualmente. De outro lado, o
justo é inserir-se na ordem, ou submeter-se a lei natural ou à reta razão. Esta lei natural é a
vontade de Deus ou razão de Deus. A vontade de Deus dos estoicos é, contudo, de um
Deus impessoal não coincide com o demiurgo platônico, nem com o Deus pessoal do
cristianismo que denomina suas criaturas de modo absoluto. Deus é a causa intrínseca e
imanente do universo, ou seja, a razão que forma também a essência da alma humana.
Com isso desaparece o dualismo grego do ser e do dever ser. A razão como princípio
igualitário põe fim às diferenças. No estoicismo, o natural, como universal, funde-se
totalmente no racional, como puro pensar abstrato. A definição de justiça dada por Ulpiano
no Corpus Iuris Civilis reflete essa necessidade de sujeição do homem à lei, que se
manifesta na esfera do divino, na da natureza e na humana. O ius suum cuique tribuere
equivale ao “devido” de que fala Platão. O devido, porém, não é o que decorre da ideia de
justiça como em Platão, mas o que define o direito, ou seja, a lei positiva ou natural.
A definição de Ulpiano (jurista romano), contudo, permanece formal e expressa tão só a
vontade constante e perétua de servir ao direito, em suma, o dever de cumprir a lei: justo
será cumprir a lei, que cria o suum ( ideia de devido). Disso decorre que da justiça será
plúrimo, quando dado pelo direito positivo. Daí a necessidade de recorrer a lei natural, como
objetivo de conseguir-se um conteúdo constante e universal. A justiça desempenha um
papel ancilar diante do direito que lhe dá conteúdo, que é o seu objeto. A lei natural
prescreve à conduta humana o aequum ( igual)
Em Cícero (pensador romano) a razão é o que há “de mais divino” “não só no homem, mas
também em todo o céu e em toda a terra” e que faz com que o homem seja semelhante a
divindade, pois ela é comum a ambos. Ora, diz Cícero, a Lei é uma reta razão”, que escolhe
o certo, devendo por isso serem os homens considerados partícipes da divindade “também
no que se refere a lei”, portanto, partícipe da lei comum. Esta é a lei natural de que fala
Cícero, que define o que é justo e dá o critério supremo da lei humana positiva, visto que
deve estar na “essência de toda lei saber escolher entre o verdadeiro e o justo”. Essa lei
natural é a reta razão, conforme a natureza, “gravada em todos os corações, imutável,
eterna” válida para todos os povos e em todos os tempos, que determinado objeto da
justiça, que também para Cícero, manda “dar a cada um o seu”.

§ SANTO AGOSTINHO:
Santo Agostinho absorve a teoria estóica, através de Cícero, no que diz respeito ao direito e
à concepção da lei. Contudo a trilogia legal (manifesta no divino, na natureza e na humana)
reveste-se agora de um dado fundamental para a nova concepção de justiça: a ideia de um
Deus pessoal. A justiça divina está de um Deus pessoal, cuja vontade criou tudo o que
existe. A justiça divina está em que os homens – o homem é a mais importante criatura,
porque lhe é semelhante – são criatura em iguais condições: todos são filhos de Deus. E
porque todos são iguais a justiça consistirá, daí por diante, num tratamento desigual, porque
os premiados serão os que observam a lei de Deus, a lei natural e, depois, a humana. Essa
trilogia legal se coloca de uma forma escalonada.
A primeira justiça ( lei de Deus) é o ato de justiça supremo do homem, a submissão absoluta
a Deus. Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César é um princípio que
fundamenta a doutrina da diferença entre o inteligível e o sensível, a cidade de Deus e a
cidade dos Homens em Santo Agostinho. A igualdade dos homens entre si é posta por
Santo Agostinho como absoluta, mas somente na esfera da cidade de Deus.
Ocorre de modo diverso se se trata de aferir essa igualdade entre os homens na sua
cidade. Aí a estrutura hierárquica é justificada pela só existência das duas cidades. A cidade
dos homens que objetiva a paz temporária, tem de ordenar-se à cidade de Deus, que realiza
para o homem a paz eterna, em Deus. O Estado que não observa essa ordem comete
injustiça, não podendo ser chamado uma república justa.
Ora, se é dever ordenar os homens com vista ao seu fim último, é dever combater o mal e,
por isso, castigar e dominar os maus, visto que diante das suas ações a piedade é injustiça.
Dái a necessidade de certos homens submeterem-se a outros como servos e da justiça do
castigo infligido aos maus. Para Santo Agostinho não há servidão por natureza. A servidão
nasce do pecado, a guerra, que, mesmo justa, tem origem na guerra injusta da outra parte.
Se na ordem sobrenatural a Lex aeterna (lei de Deus) La justiça constitui na submissão da
criatura ao criador, na ordem natural a Lex naturalis (lei natural) prescreve a harmonia do
homem consigo mesmo, com a natureza. O que deve ser dado à alma é o reconhecimento
da sua dignidade como semelhança de Deus e isto constitui um equilíbrio que revela o
elemento igualdade subjacente na concepção de justiça de Santo Agostinho. A lei humana,
por sua vez, deve ter como fonte de referência a lei natural.
O princípio de justiça natural é um princípio de “equilíbrio entre o que se dá e o que é
devido como suum”. Esse equilíbrio é o que prescreve ao homem a Lex naturalis.

§ SANTO TOMÁS DE AQUINO:


O ponto de partida de Santo Tomás é o mesmo de Santo Agostinho: o homem é imagem e
semelhança de Deus. É sua tarefa desenvolver essa imagem ao nível supremo de sua
perfeição, com vistas ao criador, seu fim último. E mais: o homem não está sozinho no
mundo Enem pode realiar o trabalho sobre ele sem a cooperação dos outros seres
humanos. Daí ter de recorrer aos outros e ao mesmo tempo promover o seu fim individual
em sua função do bem comum, que é o fim último temporal. O fim aparece como a razão de
ser do direito e se desdobra: a) na perfeição da pessoa humana; b) no bem comum que a
possibilita; c) na orientação última para Deus como fim transcendente e suma felicidade da
pessoa.
De início é possível vislumbrar os dois elementos da justiça, ou pelo menos do seu objeto, o
direito, como dirá Santo Tomás: a alteridade, por ter o homem de atender à sua vocação
para o criador juntamente com os outros que a procuram realizar, e a igualdade como ponto
de partida para a consideração da possibilidade do direito manifestada na expressão de
sagrada significação para Santo Tomás: imagem de Deus. Com base neste dado, os
tomistas puderam concluir que o fundamento um editado e absoluto do direito é a pessoa
humana, seu fundamento relativo, a comunidade humana e o seu fundamento último, como
autor da natureza humana e de toda ordem moral – portanto, também do direito- Deus.
A fonte principal da teoria tomista da justiça como virtude específica é a Ética a Nicômaco
de Aristóteles, no seu livro V, onde a justiça se define como “hábito com o qual se fazem
coisas justas”. Hábito é uma qualidade determinada ( não uma disposição natural), que
implica uma ordenação ao ato; hábito operativo e bom, que é exatamente o que se
denomina virtude. A virtude da justiça, contudo, diferentemente do que ocorre com as
demais virtudes morais, tem sede na faculdade da alma denominada vontade ou apetite
racional, o que juntamente com seu objeto material – segundo o qual o homem se relaciona
com os outro conforme dissera Aristóteles – a torna mais próxima da razão e, por isso,
principal virtude moral.
A justiça contém, pois, os três elementos essenciais de toda virtude (o hábito, o agir e o
bem) mais a sua nota específica: o bem é a igualdade para o outro.
São Tomás aceita a definição de Ulpiano: a justiça é uma “vontade constante e perpétua de
dar a cada um seu direito”. Vontade perpétua implica o propósito de agir com justiça
sempre e em qualquer circunstância.
É necessário indagar o objeto da justiça, pois que toda virtude tem um objeto. Objeto da
justiça é o direito. Dá análise do que significa o direito para Santo Tomás, portanto, é que se
terá a nítida noção da justiça.
O direito aparece na segunda parte da definição de Ulpiano por ele adotada: ius suum. O ius
suum, por sua vez, é o mesmo suum de que fala Aristóteles, Cícero ou Santo Agostinho,
esclarecido por Ulpiano pela palavra ius, o que evita que se conceba como justo suum de
fato (como no caso da posse injusta). O suum deve decorrer de uma lei ou norma geral,
para que não tenha origem apenas no fato ou na força, observado, contudo, o princípio
hierárquico da lei natural sobre a positiva. O critério supremo do suum é a igualdade de
proporção, que tem seu fundamento na lei natural.
O que é devido é exatamente o que tem direito ao outro, o que lhe é adequado, nem mais,
nem menos. Isso possibilita dizer que a justiça é a virtude que realiza a igualdade ( a sua
fórmula geral) e, ao mesmo tempo, a virtude que só pode existir na direção do outro. É,
portanto, da sua essência a alteridade. É a igualdade que faz do devido o elemento
especificador da justiça. Se não há igualdade entre o is suum e o debitum, não ocorre a
virtude da justiça.
O direito é , portanto, algo objetivo que a virtude da justiça realiza e que aparece para Santo
Tomás como justo e que se revela como ius susm de um lado e como debitum de outro, que
Santo Tomás considerará como médium rei ( um meio real, objetivo), já que a igualdade
deve dar-se no que é devido ao outro. Diferente, pois, do médium rationis das outras
virtudes puramente morais, que consideram a igualdade tendo em vista as condições
subjetivas do autor da ação. Essa objetivação na avaliação da igualdade proporcional, a ser
realizada pela justiça, é que autoriza Santo Tomás a admitir que se possa punir com pena
maior a injúria ao príncipe que a pratica contra o particular.
O direito objeto da justiça, é algo objetivo,mas não se confunde com a lei. O direito como
justo surge antes como regra da razão que determina o justo. Esta regra da prudência pode
manifestar-se sob a forma escrita, caso em que se chama lei. É nesse sentido que a lei não
se confunde com o direito, o qual, porém, tem sua origem sempre na lei. Entretanto, a lei
natural é o próprio direito que se manifesta como regra criadora do ius suum, embora, como
regra,possa estar somente na razão.
De qualquer forma, a lei escrita ( humana) determina o justo quando está ela conforme a lei
natural ( ou não a contraria) que, por sua vez, é a lei própria do ser racional e que participa
da Lex eaterna ( lei divina), que se dá como vontade do criador nas criaturas.
Ora, a lei segundo Santo Tomás é um ditame da razão como medida dos atos humanos
destinado ao bem comum. Estes são os dois elementos essenciais que compõem o conceito
de lei em Santo Tomás: razão e o bem comum.
Em linguagem técnica contemporânea a lei é para Santo Tomás a fonte do direito. Não
propriamente o direito, que para ele é o justo. Entretanto, a lei que cria o direito, se humana,
tem como critério a validade ( para que possa, portanto, criar o direito) a lei natural, e em
escala ainda superior a lei eterna, supremo critério de validade de todas as leis. A razão,
entretanto, determina o que é justo num determinado ato, segundo uma regra de prudência “
preexistente no entendimento”. Exatamente por isso a arte de legislar é parte da virtude
chamada prudência.
Santo Tomás deixa transparecer, na tradição de Santo Agostinho, uma concepção de
vontade que se assemelha à desenvolvida por Kant. Uma lei promulgada por uma vontade
pura será sempre uma lei justa, conforme a lei natural. Somente uma lei que decorre de uma
vontade deturpada poderá colidir com a lei natural. A vontade divina é pura. De outro lado,
muito distante se coloca do ponto de vista aquiniano da vontade com relação ao de Kant, se
observarmos que Santo Tomás afirma a existência de coisas, externas à vontade, que são
boas em si e , por isso, a determinam.
Tomando a segunda parte da definição de justiça de Ulpiano ( ius suum cuique tribuendi)
incorporada ao pensamente jurídico de Santo Tomás, Olgiati faz uma análise interpretativa
dos conceitos que aparecem na descrição do objeto da justiça à luz da filosofia de Santo
Tomás.
O termo tribuendi designa o elemento material da justiça e se traduz na atividade exterior da
quem pratica o ato justo. O termo cuique denota a ação exterior ordenada ao outro, que dá o
primeiro elemento formal da justiça, a alteridade e que implica duas noções fundamentais: a
pessoa e a sociedade. Já o termo ius suum corresponde o segundo elemento formal, sem o
qual não é possível a virtude da justiça: a igualdade.
Como se vê, na doutrina de Santo Tomás, a justiça é concebida como uma virtude, cujo o
objeto é o direito. O direito por sua vez é que define aquela virtude que lhe dá conteúdo.
Esse direito mostra-se como o igual ou o adequado ao outro, numa tríplice relação em que
esse igual se apresenta de modo diverso, segundo sejam os termos da relação os
seguintes: o social diante do outro, como particular ( justiça particular distributiva), o
particular diante do outro como particular ( justiça comutativa), o particular diante do social
(justiça legal ou social)
O “outro” define, pois, a igualdade na medida em que lhe é devido o que lhe é adequado.
Mas o que lhe é adequado é determinado pela lei, que em última instância é a vontade ou
razão de Deus.
Embora as coisas boas existam independentemente de serem preceituadas, a igualdade
que constitui a ideia de justiça, que tem justificação transcendente, não se propõe realizar-
se total e concretamente no mundo humano, em que a servidão é justificável, apesar de já
superada de certa forma a posição aristotélica a respeito da escravidão (a concepção de
Aristóteles da escravidão como justo natural).
§ 19. GROTIUS E OUTROS REPRESENTANTES DA ESCOLA JUSNATURALISTA
CLÁSSICA.

Em poucos pensadores alemães o pensamento de agostiniano-tomista teve influência.


Dentre os poucos se encontram Ludold Von Bebenburg e Eike Von Repgow, sendo que o
último entendia como fundamento do Direito Natural a vontade de Deus que criou o homem
segundo sua imagem e que todos são iguais em liberdade.
a) Grotius.
Igualdade se liga à justiça. A justiça só se realiza numa vida natural e racional da
comunidade.
O Direito é o que é justo, o que realiza e conserva a sociedade, visto que o injusto é o que
repugna à essência da sociedade dos que gozam da razão. A justiça é vista pelo lado liberal
do Estado, na medida em que o pacto da união que sobre ele se assenta visa à recíproca
ajuda dos cidadãos.
O direito natural é ligado à vontade de Deus, autor da natureza.
b) Puffendorf.
Precursor de Kant.
Direito natural.
 Sem privilégios (criação, história e razão);
 Relação entre igreja, direito, moral, sociedade e particulares;
Regra fundamental do direito natural: todos têm o dever de preservar a comunidade e de
servir ao todo social tão bem quanto possível.
Desdobra em três deveres: como o homem se conduz perante Deus, perante a si mesmo,
perante si mesmo e perante os outros.
Dever do homem perante os outros.
1- Não prejudicar o outro;
2- Considerar o outro como igual em direito. É uma igualdade de direito que, por sua
vez, decorre da reta razão ou dos princípios de direito natural. Retoma a concepção
igualitária do estoicismo;
3- Ser útil aos outros, tanto quanto possível;
A igualdade aparece como núcleo da justiça que Puffendorf chama de equidade.

c) Leibniz.
Retoma preposição de Ulpiano sobre os preceitos do direito: “ honeste vivere, alterum non
laedere, suum cuique tribuere”.
Divisão da justiça:
 Justiça universal (honeste vivere);
 Justiça comutativa (alterum non laedere)
 Justiça distributiva (suum cuique tribuere);
A justiça universal é o degrau supremo de justiça porque compreende a relação com Deus.
Conceito que desarticula da tradição Greco-romana.
Opera a fusão do direito com o ético, demonstrando a base comum existente entre as duas
ordens.

d) Thomasius.
Primeiro que estabelece a diferença entre moral, direito e política.
O juiz do direito natural é a vida feliz do homem a ser atingida através da paz individual ou
social. Regras para se encontrar a felicidade:
1- Regra da Moral (honestum), cuja sanção se reduz ao foro íntimo. Procura paz
interna;
2- Regra da Conveniência da Vida. Regra de ouro positiva. Regra da política, de
sanção externa e tem origem convencional; sua finalidade está na paz externa;
3- Regra que fundamenta a juridicidade. Regra de ouro negativa. Exigência do justo
coercitivo através da sanção externa da lei. Tem como fruto a paz externa individual;
Apresentam uma forma dialética não estanque.

e) Locke
A igualdade é condição para o próprio direito natural que é para Locke a propriedade.
Locke descreve o estado de natureza como um estado de liberdade e igualdade.
O direito de propriedade não é dado por Deus, mas também não deriva do Estado. Ele é
obtido pelo trabalho.
Liberdade como forma de aquisição da propriedade. Dois conceitos.
1- Liberdade Natural. O homem é livre de qualquer poder superior na terra;
2- Liberdade na Sociedade. Não pode ficar sujeita a nenhum poder legislativo senão o
que se estabelece por consentimento da sociedade.
Direito irrenunciável que se conserva ainda que se celebre o pacto social para a constituição
do Estado. Liberalismo burguês.
O objetivo principal pelo qual os homens constituem um estado é a preservação da
sociedade.
f) Hobbes.
Ponto de partida: igualdade tanto física quanto espiritual.
Todos os homens são iguais em sua condição natural; a desigualdade só aparece com as
“leis civis”. É uma lei natural “que cada homem reconheça os outros como seres iguais por
natureza”.
O estado de natureza é um estado de desprazer de convívio com os outros seres humanos.
Impera a guerra de todos contra todos. O homem sai deste estado de natureza através do
estabelecimento de um pacto, pelo qual ele renuncia a sua liberdade para instituir o poder
soberano e com isso prover a conservação de uma vida mais feliz. Essa passagem
necessária se dá através de um pacto que cria esse poder soberano.
No estado de natureza onde impera a guerra de todos contra todos não há o injusto, não há
lei e onde não há lei não há injustiça e nem propriedade, pois só pertence a cada homem
aquilo que ele é capaz de conseguir e conservar. Justo, para Hobbes, é aquele que obedece
à lei. Somente quando há lei em sentido próprio, que é “a palavra daquele que tem direito de
mando sobre os outros”, é que podemos falar de justiça propriamente dita. Só se comete
injustiça contra a pessoa contra a qual se celebrou algum pacto anterior.
Diferentemente de Locke, o Estado Despótico concebido por Hobbes em virtude da renúncia
sem reserva da liberdade natural dos indivíduos não comete injustiça, por isso não é
possível a oposição de qualquer tipo de injustiça.

CAPÍTULO II
A Formação do Conhecimento em Kant.
§ 20
O PROCESSO DE INTERIORIZAÇÃO NA FILOSOFIA DE KANT.

A filosofia de Kant é uma filosofia reflexiva. Parte de um movimento de interiorização que


começa na “Crítica da Razão Pura” pelo conceito de fenômeno que se dá no sujeito e se
aprofunda no mesmo pela aplicação das formas da sensibilidade e do entendimento.
Na esfera da sensibilidade fenômeno é algo interior. Importa para a interiorização que se
trate de uma intuição sensível, a intuição intelectual seria uma comunicação direta do
intelecto com o objeto, já que a matéria do pensamento (entendimento) não seria o sensível,
que não capta o noumenon, mas tão só o fenômeno.
A próxima etapa da interiorização é o momento da disjunção ao mesmo tempo de passagem
da razão teórica para a razão prática. Aparece o conceito de idéia cuja forma é dada pelos
conceitos e cujo conteúdo pela própria razão. A disjunção revela-se no momento em que as
idéias fracassam na tentativa de mostrarem como realidades, ou seja, no fracasso da razão
ao tentar conhecer pelas próprias forças, dispensando a ajuda da sensibilidade. A razão se
convence que no campo teórico não é mais possível dar um passo no movimento de
interiorização sem que se torna contraditório o “em si”. O “em si” não mais se apresenta
como algo externo.
A razão teórica aparece como reguladora e constituidora do conhecimento que não provém
da sensibilidade e por isso é transcendente. A razão torna-se, portanto, prática a vontade
capaz de criar seu objeto por meio de regras que culminarão no imperativo categórico. A
explicitação da vontade pela razão é o momento de encontro do noumenon do homem e,
portanto, o ponto mais interno da filosofia kantiana. A vontade cria seu próprio objeto, o que
não ocorre com o conhecimento pelas representações. Estas são condições dos objetos
enquanto conhecidos, ou seja, para que algo apareça no processo do conhecimento é
necessária a determinação a priori da representação.
Caso diverso acontece com a vontade que não é mera condição a priori do ato moral, como
se condicionasse ou sintetizasse a matéria diversa dada nos sentidos, como acontece no
conhecimento. Nada de externo pode intervir, sob pena de não se cogitar o ato moral.
O direito, embora apareça em Kant como um aspecto exteriorizado não perde seu todo
interior visto que o seu fundamento, em última instancia, é a liberdade ainda que externa. A
liberdade exterior importa na relação de um homem com outro homem o que dá razão de
ser à sociedade e, por isso, permanece de certa forma interior porque só nela é que o
homem é considerado. A vontade livre (liberdade) desdobra-se:
I- A moral: a vontade está recolhida em si mesma;
II- O direito: a vontade se dirige ao outro. Deve (imperativo categórico) reconhecer-lhe a
liberdade para que possa conservar-se livre.
A norma jurídica surge para o resguardo da sociedade como sociedade, isto é, na medida
em que concilia o arbítrio de cada um com a liberdade de todos. Isso somente é conseguido
através da coação.
A vontade em Kant, como momento mais interior da sua filosofia, realiza seu objeto na regra
moral e na regra de direito. Em ambos casos o fundamento é a liberdade.

§ 21
O PROBLEMA DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA.

Ceticismo e dogmatismo são as duas terminais da metafísica. O primeiro representa o caos,


a anarquia da ordem social; o segundo ao despotismo. O instrumento para superar essas
correntes é o criticismo.
Para demolir o dogmatismo e o ceticismo, Kant empreende a crítica da razão pura que
significa o julgamento que a faz de si mesma para verificar dos limites de sua possibilidade
no processo do conhecimento.
Hume observou que as representações procedem das impressões sensíveis, por isso as
relações de causa e efeito não procedem dessas impressões. Para Kant, a causalidade é
um conceito quimérico, entretanto, o erro de Hume está em considerar as coisas em si
mesmas e não como fenômenos.
Kant observa que os nossos conhecimentos ora são empíricos, ora são a priori ou puros. O
conhecimento empírico garante tão somente uma generalidade colhida pela associação de
imagens segundo a frequência dos casos. Já as proposições da matemática e da física pura
apresentam-se com um caráter de universalidade e necessidade, que só podem ser dadas
pelas condições subjetivas do conhecimento de modo, a priori.
De outro lado, Kant observa que os juízos empíricos são todos sintéticos; neles o predicado
não pertencia ao sujeito, mas é-lhe acrescido. Entretanto, há juízos que se definem por uma
análise do sujeito, já que nele está contido o predicado. Os juízos analíticos em nada a priori
contribuem com o conhecimento porque são simples explicações do sujeito. É necessário
que haja juízos sintéticos a priori para que haja essas ciências puras, juízos universais e
necessários em que o predicado é acrescentado ao sujeito por meio de uma operação de
entendimento a partir da sensibilidade.
Um conhecimento constituído de juízos sintéticos não é bastante para caracterizar a
existência de uma ciência. Falta-lhe o caráter de universalidade ou necessidade que
encerram as proposições cientificas como, por exemplo: “o calor dilata o metal”, não
provindo da experiência, só podem ser dados a priori, o que significa que um conceito
anterior à experiência, no sentido lógico-transcendental.
Para justificar o saber humano como ciência e limitar com isso a razão, eliminando os seus
erros, Kant emprega o método que caracteriza o que ele chama de filosofia transcendental
que se caracteriza por partir de um fato e demonstrar as condições a priori de sua
possibilidade. A transcendentalidade “consiste numa anterioridade funcionalmente lógica”
com relação à experiência; e a experiência possível, por sua vez, é o conceito de verdade
de todo conhecimento a priori.

§ 22
A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL
Não há conhecimento que não se apoie nas intuições pelas quais o objeto se apoie nas
intuições pelas quais os objetos se dão a conhecer.
Na intuição empírica, o objeto enquanto não determinado, é chamado de fenômeno. No
fenômeno, pode-se distinguir sua forma e sua matéria; esta é diversa do fenômeno
enquanto várias representações, várias impressões sensíveis: é a própria sensação. Essas
sensações, essas representações, são coordenadas desde o momento em que se dão à
sensibilidade. A forma não se confunde com a sensação. Está no espírito a priori, pronta
para se aplicar às sensações que são “a posteriori”. E por ela estar no espírito, a priori,
independentemente da sensação, embora se releve com a sensação, embora se revele com
a sensação, é ela chamada, na sensibilidade, intuição pura.
A sensação na Estética Transcendental não é objeto de estudo de Kant. Na Estética
Transcendental Kant isola a sensibilidade do entendimento e, na sensibilidade, o a priori, do
empírico. Aí são estudadas as duas formas puras da sensibilidade, condições a priori de
todo o conhecimento: espaço e tempo.
§23º
O ESPAÇO
Espaço é a forma de nosso conhecimento externo, como representamos o que está fora de
nós. Está ao lado do tempo.
A pergunta é: o tempo e o espaço são objetos existentes por si só? São apenas as relações
existentes entre as coisas? Ou apenas pertencem ao nosso espírito?
Kant diz que o espaço é, a priori, dado do nosso espírito. Não é ele um conceito empírico, e
sim uma representação que serve de fundamento a todas as coisas externas a nós. Dessa
forma, são conseqüências do espaço os conhecimentos sintéticos das ciências, como a
Geometria.
Se o espaço fosse um conceito empírico, não poderia comprovar os princípios da
Matemática, que são necessários e universais. Sendo empírico, a Matemática seria uma
ciência relativa.
Kant afirma que o espaço precede às intuições dos objetos necessariamente, encontra-se
anteriormente dentro do espírito de quem tem contato com o externo. Assim, é condição
subjetiva do conhecimento dos fenômenos.
§24º
O TEMPO
Utiliza-se para o tempo o mesmo procedimento observado para a análise do espaço.
Só é possível a relação de presente e futuro se o tempo é o fundamento; Pode-se pensar o
tempo sem os fenômenos, mas nenhum fenômeno é compreensível sem o tempo; Do tempo
decorrem princípios apodíticos, como o tempos diferentes não são diferentes, mas
sucessivos; tempos diferentes são apenas partes do mesmo tempo; o tempo é infinito. Sua
representação total não é dada por conceito, mas por intuição.
Conclui Kant que:
O tempo também é condição subjetiva em que se dão todas as intuições, pois precede as
coisas; É a forma do nosso sentido interno, capaz de nos dar a intuição de nós mesmos; é
condição de todos os fenômenos.
O tempo só se apresenta como objetivo enquanto tomamos as coisas como dadas aos
sentidos.
Surgem duas dificuldades ao considerar-se o espaço e o tempo como independentes de
nós: seriam dois entes infinitos mas sem serem algo real; seriam conhecidos através da
experiência e, assim sendo, não poderiam ser base para conhecimentos, como a
Matemática.
§25º
A TEORIA DA IDEALIDADE DO TEMPO E DO ESPAÇO
Kant diz que toda intuição se dá somente sobre os fenômenos, e que não intuímos sobre os
objetos em si. Considerar o espaço e o tempo como objetos em si seria uma contradição
com a realidade fática.
Como conceitos, o espaço e o tempo não poderiam fornecer conhecimentos sintéticos, mas
só analíticos. Exemplificando, de duas linhas retas não se traça uma figura: esse conceito
não se extrai do conceito “linhas retas”.
A teoria da idealidade de todos os objetos dos sentidos que os expressa como simples
fenômenos tem apoio num fato: tudo no conhecimento que pertence à intuição encerra
simples relações: de lugar, de mudança e leis que minam tais mudanças. Aquilo que está
presente no lugar não é conhecido. O mesmo acontece na representação do sujeito por ele
mesmo.
A coisa não é negada quanto à sua existência, mas o conhecimento da coisa em si que é
negado. Conhecemos o objeto enquanto fenômeno, mas não enquanto objeto em si, pois
sempre que ele se apresenta à nossa sensibilidade, recebe um dado subjetivo para poder
ser conhecido: as formas da intuição. Tanto as coisas externas como nossa própria alma
nos são dadas como fenômenos, só cognoscíveis se intuídos através das formas da
sensibilidade: espaço e tempo.
Como é possível a ciência encerre um acréscimo ao conhecimento, ou seja, que se
acrescente ao sujeito de um juízo algo que ele não tem, de modo que esse juízo conserve o
caráter de universalidade e necessidade que só os juízos fornecem? A resposta são as
intuições puras: o espaço e o tempo.
§26º
A LÓGICA TRASNCENDENTAL
Kant passa a estudar o entendimento. Para ele, este é o poder de nós mesmos produzirmos
representações, como a sensibilidade é o poder de recebê-las. Ambos são fundamentais
para que haja o conhecimento. Sem a sensibilidade o objeto não é dado; sem o
entendimento não é pensado.
Assim, há uma ciência distinta da que estuda as regras gerais da sensibilidade (estética
Transcendental); é a ciência que estuda as regras do entendimento em geral: a lógica.
A Lógica se divide em: Lógica Geral, que estuda as regras necessárias para o uso do
entendimento em geral, e particular, que estuda as regras do uso do entendimento para
certos objetos.
A Lógica geral pode ser pura, a que faz abstração do conteúdo do pensamento, ocupando-
se dos puros princípios.
A Lógica aplicada estabelece as regras do uso do entendimento em condições subjetivoas,
empíricas, psicológicas.
Para Kant, só a lógica geral é ciência, pois abstrai de todo conteúdo e se refere ao lado
formal do pensamento. Não tem princípios empíricos e nada tira da psicologia.
LÓGICA TRANSCENDENTAL
É a ciência que determina a origem, a extensão e o valor dos conhecimentos.
Transcendental é todo conhecimento pelo qual nós conhecemos serem certas
representações aplicadas ou pelo qual conhecemos como são possíveis.
Divide-se em Analítica Transcendental e Dialética Transcendental. A Analítica
Transcendental é aparte da Lógica Transcendental que trata dos elementos do
conhecimento puro do entendimento e dos princípios sem os quais objeto algum pode ser
pensado. A dialética Transcendental é uma crítica ao uso ilimitado dos princípios puros do
entendimento.
§27º
A ANALÍTICA TRASNCENDENTAL
É a decomposição de todo o nosso conhecimento “a priori” nos elementos do conhecimento
puro do entendimento. È necessário que os conceitos sejam puros, não empíricos; não
pertençam à sensibilidade e sim ao pensamento e ao entendimento; sejam conceitos
elementares distintos dos derivados que dele se compõem; seu quadro seja completo
abrangendo todo o campo do entendimento puro.
Assim, a Analítica Transcendental será uma ciência em que se poderão fundamentar os
conceitos puros do entendimento.

§28º
OS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO
Exige Kant 3 momentos para que se dê o conhecimento: 1º) o diverso das intuições puras,
isto é, a pluralidade de representações oferecidas pela intuição; 2º) que esse diverso da
intuição pura seja sintetizado pela imaginação que é a síntese referente à função do
entendimento; 3º) representações da síntese operada na imaginação por conceitos, o que
lhe dá unidade.
Basta sabermos quais são as funções reveladas nos juízos para se saber quais são os
conceitos puros do entendimentos, ou categorias, que se aplicam aos objetos para se
formar o conhecimento. As categorias não são predicados transcendentais das coisas, mas
exigências lógicas e critério de todo conhecimento das coisas em geral.
§29º
A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DOS CONCEITOS PUROS
A dedução transcendental estabelece o valor objetivo, que pela dedução metafísica, não
nasceu da experiência, das leis do entendimento. Tal dedução se faz necessária por motivo
dos conceitos puros do entendimento, não sendo intuições.
Pensando-se no entendimento, todo o diverso da intuição, resultado de nossa percepção do
espaço e tempo, é submetido à unidade originariamente sintética da apercepção.
(consciência de si mesmo). A apercepção liga as representações.
O entendimento é o “poder dos conhecimentos”. O objeto só se tornará um objeto se toda
intuição for submetida à unidade da consciência. Pensar, então, não é necessariamente
conhecer. O conhecimento se forma do elemento chamado pensamento e do chamado
intuição, pelo qual o objeto é dado. O conhecimento só existe quando haja pensamento
exercido a partir de uma intuição que oferece o objeto. O conhecimento é sensível, mas nem
sempre empírico.
Se todo conhecimento nosso se dá com a experiência, não significa que todo conhecimento
procede da experiência; o conhecimento é limitado à experiência, mas não inteiramente de
tirado.
Ou a experiência torna possível os conceitos ou os conceitos a experiência. A primeira
hipótese não se mostra verdadeira, pois que conceitos puros são independentes da
experiência.
§30º
O RESULTADO DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL
Demonstrado que o limite de todo conhecimento é uma experiência possível, Kant passa a
analisar o comportamento da razão, já que ela julga poder alcançar certos conhecimentos
pela própria força dos seus conceitos puros, independente de qualquer experiência, levando
em conta, portanto, somente o critério da não contradição que deve dirigir o raciocínio.
Não é que Kant negue a existência da coisa em si, ele nega a possibilidade de conhecê-la,
segundo a possibilidade do conhecimento do homem. Ontologicamente, a coisa existe, com
suporte nos fenômenos. O fenômeno, alerte-se, não é algo fundado somente no
subjetivismo. Para Kant o fenômeno não é pura aparência, é realidade da qual se faz
ciência. Não conhecemos as coisas em si, mas as coisas como aparecem nas nossas
faculdades do conhecimento.

Capítulo III – A ideia

§ 31 – A importância da “ideia”
Os contornos no capítulo se dão no sentido de apresentar, em linhas gerais, o conceito de
idéia, a fim de, após vários mergulhos nos clássicos da filosofia, apresentar a concepção do
conceito segundo Kant. Nesse passo, ao tratar do conceito de uma forma geral, Salgado
aponta que Kant vai até a Filosofia Clássica, buscando em Platão maiores contornos
elucidativos sobre o conceito.
§ 32 – A ideia em Platão
Ao introduzir o leitor no conceito de ideia, segundo a concepção platônica, Salgado
traz à baila os principais pontos da discussão travada em torno da temática por duas
correntes interpretativas, a corrente tradicional, baseada nas ideias e críticas de
Aristóteles, e a dos intérpretes que buscam em Platão um significado mais profundo.
Segundo Salgado (1986, p. 117), a corrente tradicional, “tem origem em Aristóteles,
que afirmava serem as ideais de Platão concebidas como entes [coisas, seres...]”. De
acordo com tal concepção, Platão, ao buscar nas ideias a causalidade dos seres, “criou
outros tantos seres iguais em número aos do mundo sensível [na concepção platônica as
coisas sensíveis nada mais são do que cópias imperfeitas de um modelo ideal, uma ideia
geral. Uma cadeira, por exemplo, é uma cópia imperfeita da cadeira preconcebida no mundo
inteligível, no mundo das ideias. De tal forma, conforme a crítica aristotélica, ao duplicar a
existência das coisas e dos seres, cujo modelo encontra-se no mundo das ideias e a cópia
no mundo sensível, nada mais fez Platão do que criar, no mundo das ideias, um número de
seres em número igual aos existentes no mundo sensível, real]”.
Por sua vez, a segunda corrente, chamada pelo autor de neo-kantianos de
Masburgo, com destaque para Paul Natorp, em busca da profundidade na interpretação, dá
ênfase à superficialidade da interpretação tradicional, a qual não revela “o verdadeiro
alcance nem das palavras, nem do conjunto da obra de Platão”. Assim, para o autor, a idéia
não consiste em uma coisa, mas em um método, “[...] é antes um método, um processo
lógico” (NATORP, apud SALGADO, 1986, p. 117).
Na sequência de sua análise, Salgado revela a inegável importância da religião em
Platão. Segundo o autor, com exceção da obra Parmênides, na qual Platão se dedica ao
estudo das ideias, estas são apresentadas sempre de forma instrumentalizada, como
método ou conjecturas utilizadas na “demonstração da imortalidade da alma ou da
reencarnação” (SALGADO, 1986, p. 119).
Segundo Salgado, Platão concebe de forma distinta dois mundos, visíveis na
alegoria da caverna,1 o chamado mundo sensível (aparência, cópia), o mundo dos
sentidos, material e imperfeito, e o mundo inteligível (verdade, modelo), o mundo da ideias,
imutável e perfeito.
Para se alcançar o inteligível, Platão recorre ao método analítico de Sócrates,
através do qual o sensível (captável através dos sentidos) vai sendo descartado aos poucos,
1
“Na história, dois homens prisioneiros estão acorrentados numa caverna, virados de costas para a abertura, por
onde entra a luz solar. Eles sempre viveram ali, nesta posição. Conheciam os animais e as plantas somente pelas
suas sombras projetadas nas paredes. Um dia, um dos homens consegue se soltar, e vai para fora da caverna. Fica
encantado com a realidade, percebendo que foi iludido completamente pelos seus sentidos dentro da caverna.
Agora ele estava diante das coisas em si, e não suas sombras. Diante do conhecimento. Retornou para a caverna,
e contou para o companheiro o que havia visto. Este não acreditou, e preferiu continuar na caverna, vendo e
acreditando que o mundo é feito de sombras.
Para Platão, as coisas que nos chegam através dos sentidos (tato, visão, audição, etc.), são apenas as sombras das
idéias”. “Quem estiver preso ao conhecimento das coisas sensíveis apenas não poderá alcançar o mundo das
idéias, ficando como o prisioneiro”. (Extraído na íntegra de: http://www.infoescola.com/filosofia/alegoria-da-
caverna/ Acesso em 14 de junho de 2012).
através do raciocínio, até o momento em que se chegue a um conceito, que não está
relacionado a algo material em específico, mas à ideia de a um objeto em geral. “Que não
se refere a este objeto aqui e agora, por exemplo, esta mesa, mas a um objeto em geral; no
exemplo citado, à mesa em geral. Ora, o que vai dar significação universal ao conceito é
exatamente a forma que constituirá a essência do objeto mesa” (SALGADO, 1986, p.120).
Mas Platão, através da observação, entende que as ciências exatas podem oferecer
uma verdade indiscutível, inquestionável, “razão por que o método socrático deverá ser
alcançado e também usado para chegar a outro conceito verdadeiro, através do método das
ciências matemáticas” (SALGADO, 1986, p.121).
As ciências matemáticas, em suas pesquisas, fazem uso do método hipotético, da
formulação de hipóteses na busca por uma verdade inquestionável. De tal forma, os
filósofos, na tentativa de buscar identificar as qualidades de algo, cuja natureza é
desconhecida, devem proceder através da formulação de hipóteses. Para exemplificar:
Platão, na obra Menón, ao investigar se a virtude é passível de ser ensinada, parte de uma
hipótese: “se a virtude é uma ciência [sabendo que a ciência pode ser ensinada], então
poderá ser ensinada”.
Adiante, Salgado afirma quer Platão, na tentativa de demonstrar a relação entre o
mundo sensível e o mundo inteligível, apresenta o seguinte exemplo:
“Se dividirmos uma linha em duas partes desiguais, podemos representar, na parte menor,
as coisas sensíveis, na maior, as inteligíveis. Em seguida, obedecendo a proporção da
divisão anterior, dividimos a parte menor em duas partes desiguais: uma, a maior, que
representa as coisas sensíveis, e outra menor, que representa suas imagens. Dividindo a
parte maior, que representa as coisas inteligíveis, temos: na parte menor, a verdade
enquanto alcançada através de hipóteses, com o auxílio das coisas sensíveis, ou seja, pela
aritmética, geometria, astronomia e estereometria, que ‘não buscam um principio, mas uma
conclusão’” (SALGADO, 1986, p. 123).

1) COISAS SENSÍVEIS COISAS INTELIGÍVEIS


__________________________/______________________________________________

2) COISAS SENSÍVEIS COISAS INTELIGÍVEIS


/ /
IMAGENS/COISAS SENSÍVEIS/______________________________/VERDADE

O conhecimento científico, inteligível, faz uso do sensível, argumenta Salgado ao citar o


exemplo do geômetra. De tal forma, ao realizar uma demonstração, formula uma hipótese,
mas também faz uso de algo captável através dos sentidos, como figuras geométricas
desenhadas, “ou seja, parte de dados sensíveis para se chegar ao objetivo” (SALGADO,
1986, p. 123). Entretanto, no entendimento platônico, o geômetra sabe que a figura a que se
refere na demonstração, um círculo, não é aquele que foi desenhado por ele, mas a ideia da
figura, que é idêntica e está em sua mente (SALGADO, 1986, p. 123).
De tal sorte, ainda que o sensível auxilie na busca pelo conhecimento científico, o objeto da
ciência não é o conhecimento sensível, mas intelectual.
No exemplo citado anteriormente, na relação entre as coisas sensíveis e as coisas
inteligíveis, a imagem das coisas representa o falso, o sensível representa a opinião, e o
inteligível representa o conhecimento, o verdadeiro conhecimento (SALGADO, 1986, p.
124).
Em síntese, as ideias, em Platão, não são meras representações do pensamento, mas, ao
contrário, constituem-se em realidades objetivas, modelos absolutos do quais as coisas
sensíveis são cópias imperfeitas e mutáveis. De tal forma, a ideia de ser humano é o ser
humano perfeito, universal e imutável, a partir do qual se tem que os seres humanos são
cópias imperfeitas e transitórias.
§ 33 – Crítica a Platão
Conforme foi visto, a concepção platônica coloca as ideias em um patamar superior
ao mundo das coisas sensíveis. Kant, por sua vez, alinha-se a Platão ao apontar sua
importância na esfera prática. Todavia, aponta para equívocos na visão platônica ao permitir
que a razão explique através das ideias os fenômenos da natureza (SALGADO, 1986, p.
131).
§ 34 – Ideia e Razão para Kant (p. 131)
a) A Razão
De acordo com Salgado, (1986, p. 131), o principal conceito, aquele que sustenta o
“sistema moral kantiano”, é o conceito da razão em seu sentido prático. “Tradicionalmente, a
razão é a mais alta faculdade do conhecimento, opondo-se à imaginação e à percepção
sensível e compreendendo, de outro lado, a faculdade dos conceitos ou o entendimento, a
faculdade de aplicar os conceitos aos objetos dados ou a faculdade de julgar, e a faculdade
de extrair conclusões mediatizadas por verdades conhecidas ou razão no sentido estrito”.
O conceito de razão, no entendimento de Salgado, possui suas variantes, concebidas
principalmente em seu sentido amplo e em seu sentido estrito. Em seu sentido amplo, a
razão comporta o conjunto das “faculdades superiores do conhecimento. Já em seu sentido
estrito envolve apenas a “faculdade de tirar conclusões por silogismos [raciocínio
desenvolvido a partir de três proposições, sendo uma maior, outra menor, que são as
premissas, e a outra a conclusão], ou outros tipos de raciocínio”.
No entendimento de Salgado, enquanto a concepção tradicional concebe que a razão ou o
entendimento é a capacidade de criar conceitos, independentemente de sua origem, para
Kant, a razão, no sentido amplo do conceito, comporta também o entendimento “mas
somente na medida em que ele cria conceitos a priori [incondicionados, sem fundamento na
experiência sensível], isto é, que tem origem nele mesmo e não na experiência” (SALGADO,
1986, p. 132).
Todavia, a razão pura, em seu sentido estrito, dá origem às ideias, ideias puras. Essas
ideias são alcançadas quando se busca sua premissas, as causas de sua causa, até que se
chegue a uma ideia incondicionada, espontânea, “que explica a totalidade da série das
causas” (SALGADO, 1986, p. 132).
Adiante, o autor apresenta a concepção kantiana de razão teórica e razão prática, esta
representa as leis, as máximas, que norteiam as ações dos seres racionais. Já a primeira, a
razão teórica, realiza a identificação das leis “segundo as quais os objetos da natureza se
relacionam”. A razão teórica é aquela que busca a “causa das causas”, em busca de
alcançar o conhecimento do todo. (SALGADO, 1986, p. 132/133)
Todavia, a atividade racional que deixa de lado a experiência, o sensível, não se
mostra, segundo o autor, convincente para explicar a “essência das coisas”. “O conceito em
si mesmo não pode oferecer a existência por meio de um processo puramente analítico:
pensar que tenho 20 talheres não faz com que eles apareçam no meu bolso. Somente a
lógica transcendental [que precede e, ao mesmo tempo, se mostra como uma condição
prévia à experiência] é a lógica existente já que nela se demonstram os juízos sintéticos a
priori através da aplicação das categorias [conceitos pré-concebidos], às sensações
[experiência] organizadas pelas formas da intuição sensível” (SALGADO, 1986, p. 134).
b) A Ideia
A ideia, na concepção kantiana, surge como um “produto” da razão. A ideia tem sua
origem a partir das categorias [conceitos a priori], que não se vinculam ao mundo dos
sentidos, mas para o qual devem voltar-se “para que seu uso tenha legitimidade”. De
tal forma, conforme afirma Salgado, (1986, p. 134) as categorias ganham legitimidade a
partir do momento em que são aplicadas a experiência, “o que não ocorre com a ideia”.
Kant, ao construir sua interpretação sobre o conceito de ideia, exaltou a concepção
platônica, mas elaborou sua crítica ao filósofo grego por ter ele estendido sua definição a
todos os entes, ao invés de limitar-se ao seu uso prático, “ou à liberdade. As ideias são para
Kant regras para a faculdade de conhecer do sujeito, não leis constitutivas do objeto. Como
regras para o sujeito, elas colaboram na sistematização do conhecimento científico”.
(SALGADO, 1986, p. 135).
As ideias, afirma Salgado, assumem um caráter metodológico para o sujeito. São
encontradas pela razão por meio de prossilogismos [encadeamentos sucessivos de
silogismos, em que cada conclusão torna-se uma preposição do silogismo seguinte], até que
se chegue ao incondicionado (SALGADO, 1986, p. 136).
Salgado salienta que Kant liga o conceito de ideia ao conceito de regra. Em tal
concepção, a ideia não aparece como apenas um objeto da imaginação, ainda que,
segundo Salgado (1986, p. 137), “como regra não seja observada, isto é, ‘ainda que
ninguém aja de acordo com ela’, pois ‘todo juízo de valor e desvalor só é possível por meio
dessa ideia’, que fundamenta o progresso no sentido da perfeição que ela delineia, ainda
que a não consigamos em razão dos obstáculos, dos impedimentos opostos pela nossa
natureza humana, sujeita também a determinação sensível” (K R v, B, apud SALGADO,
1986, p. 137).
§ 35 – A ideia e a passagem para a filosofia prática de Kant
a) A ideia e fim
De acordo com Salgado, a ideia enquanto um fim, dotada de uma finalidade, na atividade
humana, apenas pode ser identificada na cultura2, que está relacionada à atividade humana
sobre a natureza. Portanto, as ações humanas, ainda que sem uma utilidade visível e
imediata, são dotadas de finalidade. Entretanto, a natureza em si não possui finalidade. “Se
o homem pode criar, fazer cultura, ou seja dar finalidade ou significado às coisas é porque é
dotado de vontade” (SALGADO, 1986, p. 140).

2
Kant define a cultura como “a prestabilidade da natureza para fins desejados por um ser
racional, o que inclui a liberdade” (SALGADO, 1986, p. 141).
A vontade, para Kant, serve como justificação à consideração do homem como “fim último
da natureza porque só ela é ‘ilimitadamente boa’”. Na natureza, segundo Salgado, a vontade
não passa de uma idéia teórica, “[...] que não pode ser demonstrada pela experiência”
(SALGADO, 1986, p. 141/142).
A idéia, de acordo com Salgado, como um fim atua como um elemento de ligação entre a
razão teórica e a razão prática. “[...] A idéia de finalidade é, pois, uma regra do sujeito que
se dirige à natureza, na medida em que aquele que conhece sistematiza os seus
conhecimentos, ordena a natureza por um princípio que lhe possibilita orientar-se nela. Por
essa razão, pode o conceito de finalidade servir de elo entre [...] a lei moral, que é o fim
último, ‘incondicionado, diante do qual todos os outros fins aparecem como meios’ e a
natureza, a que o homem imprime fins através de sua ação” (SALGADO, 1986, p. 143).
b) A idéia na razão prática
Conforme aponta Salgado (1986, p. 143), Kant, ao estabelecer suas críticas a Platão, acaba
por entender que o “único refúgio da razão pura como produtora da idéia é a esfera prática,
especificamente na esfera do agir”, no agir do ser humano.
Salgado, parafraseando Kant, argumenta que “a idéia é uma constituição que realiza a
justiça, a ponto de eliminar mais e mais a necessidade da coercitividade das leis, deveria ser
estudada com mais profundidade, com o que se poderia concluir, diz Kant, ser uma ideia
necessária que uma constituição tenha por fim a mais completa liberdade humana, ou seja,
que realize a compatibilidade da liberdade de cada um com a liberdade de todos, sem que
se considere como sua meta primeira a promoção do bem comum material”. Nesse sentido
o autor argumenta que toda constituição deve ter como seu norte esse princípio (SALGADO,
1986, p.144).
Para Kant, “na ordem prática” é o inteligível, é que aparece como real. Nesse passo, o
palpável, o sensível, não emerge dotado de nenhuma “função fundamental”. “Na natureza é
a experiência a fonte de toda a verdade, dado que nenhum conhecimento se dá no homem
senão quando a sensibilidade ofereça a matéria a pensar” (SALGADO, 1986, p.144/145).
Nesse passo, em Kant, a filosofia platônica pode ser assumida “como um modelo e ponto de
partida para a sua ética”, uma vez que o mundo da empiria (o mundo da experiência, o
mundo sensível) torna-se irreal nesse campo. Entretanto, por sua vez, o mundo da
inteligibilidade é o mundo real. Assim, surge que a idéia, originária da faculdade da razão,
que não ruma para o mundo sensível, assume uma posição na linha de frente da filosofia
prática kantiana (SALGADO, 1986, p.145).
Enquanto na ordem teórica a ideia surge como resultado de um processo dialético
em que o pensar está voltado para a busca pelo incondicionado, a ideia na razão prática,
argumenta Salgado, aparece como um “princípio de ação”. “No âmbito da razão prática, a
idéia embora conserve a característica fundamental da regra que se dirige ao sujeito,
assume a natureza de lei, com as mesmas exigências de validade da lei de causalidade
constituída pela síntese operada pelo entendimento no diverso da intuição sensível; sua
característica é a universalidade como exigência absoluta da razão” (SALGADO, 1986,
p.145).

CAPÍTULO IV – O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA DE KANT (p.155)


§ 37 – O direito na ética em sentido amplo
Na introdução ao quarto capítulo de sua obra, Salgado realiza alguns apontamentos
iniciais em torno da concepção kantiana de ética e direito. Segundo o autor, Kant concebe a
ética em dois sentidos:
Ética em sentido amplo: Corresponde à “ciência das leis da liberdade, que tem para ele
[Kant] o sinônimo de leis éticas, as quais se dividem em morais e jurídicas” (SALGADO,
1986, p. 156).
Ética em sentido estrito: é chamada de “teoria das virtudes”;
Ética e direito, ainda que, conforme aponta Salgado, sejam “formas particulares de
uma legislação universal”, possuam a liberdade como fundamento comum, e tenham o
“imperativo categórico [critério superior de validade], como critério de validade das
máximas”, são conceitos que possuem suas diferenças. A moral (ética em sentido estrito) é
caracterizada pela interioridade: “Interioridade da moral, que se conclui no que chama
moralidade, em que o motivo da ação é a própria lei moral (agir por dever)”. Por sua vez, o
direito é caracterizado pela exterioridade, a “exterioridade do direito que se desenvolve na
legalidade ou no agir conforme a norma [...] (SALGADO, 1986, p. 157).”
Conforme foi apontado, ética e direito, ainda que possuam suas diferenciações em
determinado aspecto, têm como “princípio supremo” a liberdade. Esta, por sua vez, se
constitui em uma das duas esferas de investigação da filosofia kantiana (natureza e
liberdade), na qual “Kant investiga a possibilidade da sua legalidade, a partir de um fato que
não é externo, a lei moral como único ‘fato da razão’, ou seja, a consciência dessa lei moral”
(SALGADO, 1986, p. 157/158).

§ 38 – A vontade

Na concepção filosófica de Kant, conforme aponta Salgado (1986, p. 158), o conceito


de vontade “aparece como um elemento central. É o seu mais profundo interior, em
torno do qual giram os conceitos da ética”. A vontade é apresentada como “própria razão
pura e prática [...] a capacidade de o ser racional agir, não somente segundo leis, como
ocorre na natureza, mas ‘segundo representação de leis, isto é, segundo princípios’”.
Conforme aponta Salgado, uma ética válida universalmente só pode ser
fundamentada na vontade, se levar em consideração apenas a vontade “como pura forma
de agir”. “O ato moral tem de nascer da própria vontade que, concebida como desprovida
de conteúdo e não se determinando por nada do exterior, mas por si mesma, é vontade
pura” (SALGADO, 1986, p. 159).
Apenas a vontade pura é capaz de estruturar a ética “e dar moralidade às ações
dos racionais”. Pois, nenhum fundamento retirado a partir de interações empíricas tem poder
para consolidar um comportamento enquanto um comportamento ético (SALGADO, 1986, p.
160).

§ 39 – Vontade pura e boa vontade


A chamada boa vontade é apresentada por Salgado como aquela que apenas pode
se considerada “em si mesma, como a pura forma do querer humano”, sem que se leve em
consideração do conteúdo da ação “ou quaisquer outros fatores a ela estranhos como
motivo da ação por ela desenvolvida” (SALGADO, 1986, p. 162).
Segundo o autor, “a vontade é boa em si mesma”, uma vez que não estando exposta
aos sentidos, acaba por não contaminar-se por “nada que possa torná-la má. ‘Ela é a
faculdade de determinar-se somente por aquilo que a razão, independentemente da
inclinação, reconhece como praticamente necessário, isto é, como bom’” (SALGADO, 1986,
p. 162).
Segundo, Kant, havendo uma vontade realmente boa em si, “a boa vontade”, essa é
a vontade pura, “[...] uma vontade de que se afirma um valor absoluto e que é padrão de
todo valor moral”. Sendo boa, essa vontade não possui nenhum valor fora de si, uma vez
que todos os valores são produzidos por ela (SALGADO, 1986, p. 163).

§ 40 – A vontade e o formalismo ético

Segundo Salgado, a ética kantiana, por buscar constituir-se em princípios a priori,


“válidos universalmente”, apresenta-se como uma ética formal, “por suportar-se na vontade
formal com faculdade de ação moral, ou seja, a ‘capacidade de o ser humano agir segundo
princípios’, ou ainda, a faculdade de determinar-se segundo o que ‘a razão,
independentemente de qualquer inclinação, reconhece como praticamente’ (moralmente)
necessário. E o que é praticamente necessário é bom” (SALGADO, 1986, p. 164).
O formalismo ético de Kant “é uma exigência da autonomia da vontade”, e esta
decorre da “necessidade de uma ética constituída em princípios universais, necessários ou
válidos” (SALGADO, 1986, p. 165). Tal formalismo decorre da necessidade da
universalidade da lei moral, “e se traduz na idéia de dever ser como criação da razão a partir
de si mesma, isto é, sem recorrer a qualquer conteúdo externo” (SALGADO, 1986, p.
166/167).
Adiante, conforme aponta Salgado tem-se que a ética kantiana não se caracteriza
como formalista pelo fato de ser abstrata, uma ética descompromissada da com a realidade.
“É formalista no sentido de que a exigência da validade universal dos seus preceitos não
permite que eles sejam extraídos do empírico, mas do racional. Trata-se de uma ética a
priori.” E é nesse sentido que é possível chamá-la de ética formal. Todavia, trata-se de ‘um a
priori que se dirige também ao sensível externo” (SALGADO, 1986, p. 170/171).
De tal forma, no formalismo kantiano, não há um total isolamento da lei moral para
com a realidade, uma vez que aquela, a lei moral, esta voltada para “a realidade das ações
humanas e pode ser realizada” (SALGADO, 1986, p. 171).

§ 41 – Ser e dever ser

Conforme aponta Salgado, (1986, p. 173/174) a razão kantiana apresenta-se em dois


momentos: A razão teórica: convencionalmente chamada de intelecto, tem como finalidade
a tarefa de conhecer, e como objeto a “lei da natureza expressa em relações necessárias de
causa e efeito; A razão prática, chamada de vontade, razão do agir, “e que doa finalidade a
si e as coisas, se dirige ao conhecimento das coisas, enquanto princípio de ação, determina
o que deve acontecer e se expressa por uma relação de obrigatoriedade, não de
necessidade.
Conforme exposto pelo autor, é a partir da vontade que se tem do dever ser, uma vez que
ela, apenas ela, cria esse dever ser. O ser, por sua vez, é ocupação do intelecto. Conforme
aponta Hegel: “Enquanto a inteligência se ocupa tão somente de captar o mundo como ele
é, a vontade, ao contrário, procura fazer do mundo, antecipadamente, como ele deve ser”
(HEGEL, apud SALGADO, 1986, p. 174).
Adiante, após traçar algumas discussões em torno da temática, Salgado aponta que o único
sentido possível do dever ser está na ação humana sobre a natureza, na cultura, concebida
como fruto criação humana, “[...] Portanto, na liberdade” (SALGADO, 1986, p. 177).
A partir dos dois mundos, sensível e inteligível, concebidos por Kant, é que se pode
justificar “a dicotomia do ser [esfera das leis da natureza] e dever ser [esfera das leis da
vontade livre], uma dicotomia que nasce a partir da estrutura da própria filosofia Kantiana.
Assim, “enquanto a sensibilidade e o entendimento totalmente comprometido com ela
desvendam o mundo do ser, não podem oferecer qualquer contribuição para o mundo do
dever ser”. Esta, pertence ao inteligível, ao mundo das ideias, ao mundo norteado pela
razão (“faculdade criadora da idéia do dever ser”) que não é determinada pelos sentidos
(SALGADO, 1986, p. 177/178).
Na concepção do pensamento kantiano, o dever ser tem como pressuposto a
liberdade, “que é postulada pelo simples fato de não ser dado da sensibilidade ou da
experiência, o que tornaria o dever ser mero desdobramento do ser da sensibilidade, mas
não uma idéia” (SALGADO, 1986, p. 178).
É no âmbito do dever ser que são encontrados os fundamentos da ética kantiana.
Segundo Salgado, aquele, o dever ser, “não exprime qualquer conteúdo externo”, uma vez
que se trata do próprio “agir, o legislar da razão prática” (SALGADO, 1986, p. 179).

§ 42 – Heidegger e a questão do ser e dever ser em Kant

Conforme aponta Salgado, para Heidegger, “o ser em Kant identifica-se com a


própria natureza, à qual se opõe a idéia de dever ser” (SALGADO, 1986, p. 181).
O dever ser, em Heidegger, é apresentado como um “coroamento do ser”, o qual
“tem seu fundamento no pensar. O dever ser, entretanto, não encontra guarida como ente, o
que é experimentável segundo as ciências naturais e tem de legitimar-se e de credenciar-se
para afirmar-se como tal, a partir de si mesmo” (SALGADO, 1986, p.182).
Adiante, aponta Salgado que as argumentações de Heidegger sobre o ser em Kant,
“tem como pressuposto o desenvolvimento de sua tese sobre a Crítica da Razão Pura,
como fundamento de uma possível metafísica. Fundamento é por ele entendido como plano,
o projeto do plano de construção, arquitetônica, delimitação e distinção da possibilidade
interna da metafísica, e não simplesmente como uma ‘ construção vazia de um sistema e de
suas partes’. Indica como a construção deve ser fundada. Nesse sentido, a Crítica da Razão
Pura é um tratado do método, que dá o esboço de um sistema da metafísica. Daí não ser,
segundo Heidegger, uma teoria do conhecimento ou a teoria da experiência das ciências
positivas, mas a interrogadora da possibilidade de uma ontologia, no sentido da metafísica
geral, que indaga pelo ser em geral e não de uma metafísica especial [...] cujos objetos a
Crítica da razão pura mostrará contraditórios (SALGADO, 1986, p. 185).
Segundo Salgado, Heidegger se posiciona de forma a superar “as posições
kantianas e tem como positivo elucidar que a dicotomia ser e dever ser só tem sentido,
como demonstra Kant, se se concebe o ser nesse dualismo, como esfera da natureza”
(SALGADO, 1986, p. 185).

§ 43 – Hegel e o dever ser

Hegel empenha-se em demonstrar que a filosofia kantiana nada mais é do que o


reflexo de um contexto histórico específico, um contexto revolucionário. Trata de uma
expressão de um momento marcante na história da humanidade, o momento da Revolução
Francesa. “Essa experiência é a experiência da liberdade como algo absoluto, tal como
revelou a Revolução Francesa. A liberdade é aponta como sendo o núcleo do
pensamento de Kant. Uma liberdade que, alçada ao patamar de conceito, é a geradora do
“dever puro e o dever ser, pois que impossível a existência do dever, a não ser em um ente
livre” (SALGADO, 1986, p. 186/187).
O dever ser, em Kant encontra-se no mundo da liberdade, e não no âmbito da
natureza, não podendo, de tal maneira, “ser estudado na esfera da razão teórica, mas [...]
na razão prática que oferecerá resposta aos problemas metafísicos mais importantes. Deus,
o homem e o mundo, que são postulados no sentido de justificar a própria esfera da
liberdade ou da moralidade e que deverão solucionar as grandes oposições levantadas a
partir da crítica a razão pura: oposição interior e exterior, ou liberdade e necessidade, ou
ainda homem e natureza: a oposição dentro do próprio homem que é ser híbrido, em que a
natureza física e psicológica ou sensível se coloca diante do homem como razão; a
oposição entre Deus legislador, que é o postulado do ser moral perfeito – já que o homem
não pode realizar na plenitude o dever moral puro - e a nossa consciência” (SALGADO,
1986, p. 187).
Tendo em vista a resolução da oposição, Kant vai em busca dos postulados da razão
prática: “o postulado da harmonia da natureza com o homem; o postulado da harmonia
interna no homem [...]; e o postulado da harmonia entre o homem e o sobrenatural”
(SALGADO, 1986, p.187).
A primeira oposição, a que se refere ao dever puro e o que lhe é estranho, Kant
buscará solucionar através da separação entre o mundo moral e o mundo natural. “A
moralidade se mostra como imposição pura e simples do dever ao sujeito, pois não ‘ é moral
deduzir a virtude da felicidade, como fazem os epicuristas’”(SALGADO, 1986, p. 187).
É nessa primeira oposição que, segundo Salgado, aparece o problema da felicidade.
Nesse sentido, Kant é criticado por Hegel, que afirma que “todo cumprimento de dever está,
para o sujeito que o cumpre, ligado [...] a felicidade que é o seu fim”. Se para Kant a
felicidade é contingência que não pode interferir no cumprimento do dever, por se a ele
estranha, para Hegel não há dever que não se ligue a felicidade (SALGADO, 1986, p.
187/188).
Tendo em vista solucionar a oposição dever-felicidade, Kant apresenta como
postulado a harmonia entre a moralidade e a natureza, “isso é, uma unidade entre a
consciência teórica do dever [...] e a consciência que age, ou seja, a consciência prática. A
consciência do dever se harmoniza com a consciência individual, que age na medida em
que o cumprimento do dever tenha como conseqüência a felicidade” (SALGADO, 1986, p.
188).
A segunda harmonização proposta na filosofia Kantiana está relacionada ao
dualismo interno ao homem. O ser humano é, ao mesmo tempo, sensibilidade e razão. De
tal forma, faz-se necessário que se postule a unidade entre esses princípios. Segundo o
entendimento Kantiano, por ser o homem, em parte, natural, “seu ato moral não consegue
ser puro”. Em busca da solução ao caso, Kant aponta para a imortalidade da alma como
solução do ato moral. “O ato moral só terá sentido se postularmos que ele é o fim da
natureza, a qual, como natureza, pura e simplesmente, não tem finalidade” (SALGADO,
1986, p. 189).
O terceiro postulado é que concebe a existência de Deus “como um momento
condicionante do sumo bem. “O postulado que Deus resolve as contradições entre o dever e
o agir humano, que nunca conseguem formar uma unidade perfeita. É preciso que haja uma
consciência santa, em que o agir seja idêntico ao dever, em que a natureza não interfira na
moralidade. E essa moralidade não é possível no homem, porque não tem ele liberdade
absoluta [...]”. E, uma vez não sendo absoluta a liberdade é então condicionada. Dessa feita,
torna-se necessário salvar a liberdade absoluta que, no homem, se tornou impossível. “Daí
o postulado de Deus como sua plena realização”. Deus, em Kant, surge como legislador
responsável pela conciliação entre a natureza e a moralidade (SALGADO, 1986, p. 189).
Tendo em vista uma critica a posição kantiana, Hegel analisa profundamente o agir
humano, “demonstrando que o agir concreto, que é moralidade efetiva, está sempre a
oscilar entre aceitar a imposição das circunstâncias ou acolher o império da lei moral ou do
comando do legislador divino. [...] Essa dialética do agir mostrará que as harmonias
preconizadas na visão moral do mundo, da filosofia kantiana, não são reais. [...] Os
postulados são abstratos porque, sendo representações, existem como puro pensamento
separado da realidade” (SALGADO, 1986, p. 189/190).
Conforme aponta Salgado, Hegel não crítica Kant negativamente. Assim, a ética da
subjetividade de Kant é apresentada como um momento necessário á filosofia ética,
“entendida no sentido amplo e tradicional (SALGADO, 1986, p. 190).
Hegel, enfim, busca demonstrar “que o dualismo kantiano leva a conseqüências
abstratas. E para superá-lo, intenta a recuperação da ontologia ou da filosofia especulativa
pela união dialética do sujeito e do objeto, do ser e do pensar, [...] e, no campo ético, a união
do ser e do dever ser. [...] A distinção feita por Kant entre ser e dever ser é abstração que
deve ser superada, da mesma forma que ocorrerá na distinção entre legalidade e
moralidade no interior da razão prática” (SALGADO, 1986, p. 192/193).
Por fim, segundo Hegel, identificando o homem com a razão, Kant transforma o
homem em um ser abstrato. “O homem é também ser vivo e ser vivo não é nele algo
contingente, mas necessário, pois em primeiro lugar ele precisa viver para ser racional,
precisa satisfazer as suas necessidades vitais para que possa desenvolver as suas
qualidades espirituais, já que não pode existir apenas como ser espiritual. [...] No dever ser
kantiano, a moral é algo diverso da moral existente; é moral em si, mas como pura exigência
inessencial, subjetiva e aparente e, por isso mesmo, surge como o confronto permanente
entre o que o homem é e o que deve ser, o que ele é na situação de “insatisfeita existência
empírica” e o que deve ser como lei moral universal. Ora, o homem é, diz Hegel, tal como
deveria ser” (SALGADO, parafraseando Hegel, 1986, p.193).
§ 44 – Os estuários do dualismo

Conforme sintetiza Salgado: “Ética formal do sujeito como colaborador da lei moral,
a priori; Ética axiológica, em que o valor, como conteúdo a priori da lei moral, a determina;
Ética do ser relativizada no monismo da esfera do acontecer”. Ética, ética, ética, conforme
aponta Salgado, todas possuem, “em última instância, um compromisso com a ética de
Kant, quer para desenvolvê-la, no sentido de ultrapassá-la, quer para negar todos, ou alguns
de seus fundamentos” (SALGADO, 1986, p. 194).
Conforme o resumo apresentado por Salgado (1986, p. 194):
a) “O dever ser não pode surgir do ser entendido como o ser da natureza [...]”;
b) “O dever ser procede do ser, da natureza [...]”;
c) “Para superar a dicotomia, o dever ser é apenas momento dialético do ser, que não
podem ser interpretados como regiões incomunicáveis e abstratas, mas momentos que se
superam num resultado superior, a sociedade civil, como que Hegel;
d) “A solução da aporia [dúvida] não esta na disjunção ser ou dever ser no sentido em
que as posições antagônicas de Kant e dos empiristas a colocam [...], resolver-se-ia, na
medida em que se busca a origem do dever ser em um conteúdo a priori, fora da
experiência sensível [...], ou seja, fazendo o dever ser decorrer de um objeto a priori, que
não é criação subjetiva, nem objeto real: o valor; a questão desemboca na axiologia.
Prevalece, neste último caso, o dualismo ser e dever ser, somente na medida em que o ser
se identifica com a natureza, de onde realmente não procede o dever ser, cuja origem é um
objeto a priori, ideal, não real”.
Conforme aponta Salgado, a “resposta da filosofia dos valores, contudo, não pode encontrar
correspondência no pensamento de Kant, para quem esse objeto ideal, a priori [...] é
transcendente e carece da objetividade dada pela experiência” (SALGADO, 1986, p. 194).

§ 45 – Dever ser e liberdade

Conforme aponta Salgado, a capacidade de que é dotada vontade pura, a


capacidade de determinar-se, que é o que se chama de “liberdade em sentido positivo”, leva
ao Sollen (“momento da vontade enquanto já determinada, sem interferência de qualquer
causa externa). Nesse passo, o dever ser aparece como dever ser puro, “que expressa
uma necessidade absoluta, incondicionada [não se determina por algo estranho a vontade
pura] e, por isso, vincula incondicionalmente. Por que não tem origem fora da vontade
pura [...]” (SALGADO, 1986, p. 196).
Adiante, ao adentrar ao conceito de necessidade, Salgado argumenta que a
necessidade é “um modo do ser”, que se mostra como um momento a priori. Nesse sentido,
observa-se que o conceito de necessidade não se adéqua como próprio da esfera do dever
ser.
O Sollen, citado por Salgado como causador do “querer da ação concreta”, não é
apresentado como causa primeira, uma vez que esse posto é ocupado pela liberdade, esta,
pensada como causa incausada, apresenta-se como primeira causa que cria o Sollen, “ou
lhe dá fundamento. O Sollen “só existe para um ser que se coloca em conflito entre os
impulsos e inclinações dos sentidos e o império da vontade pura que se expressa na forma
do Sollen, a lei moral, embora esta possa conceber-se como válida para qualquer racional”
(SALGADO, 1986, p. 197).
Conforme argumenta Salgado, não se pode perder de vista a distinção entre o Sollen
puro e simples de Kant e a ideia como dever ser, “sem esquecer que o Sollen mesmo é uma
ideia”. “O dever ser que aparece no direito se identifica como ideia. Assim, em Kant, tem-se
duas concepções do dever ser: 1º - O dever ser comum, extraído da filosofia platônica que o
traduz como ideia, modelo para a realidade, “o ponto de convergência da ação que, em
Kant, passa a ser uma regra”; 2º - “ O conceito próprio de Kant, restrito a ação moral,
significando a imposição da lei moral, criada pela vontade livre” (SALGADO, 1986, p. 197).
O direito, segundo Salgado, “busca seu fundamento na liberdade como ideia”. E tal
processo corresponde à busca por um critério de validade às suas normas. A moral,
segundo Salgado, corresponde ao exercício pleno da liberdade, “e suas leis são
desdobramentos da liberdade” (SALGADO, 1986, p. 198).
Kant, conforme aponta Salgado, “parte do princípio de dever ser, como o que
caracteriza a ideia, e chega ao conceito estrito de dever ser como lei moral. O dever ser do
direito, como tal, é a liberdade que deve realizar. A validade do direito está comprometida
com a realização da liberdade” (SALGADO, 1986, p. 198).
De acordo com Salgado, a existência do Sollen explica-se pela necessidade humana
do viver em sociedade. Todavia, apura e simples constatação desse fato não se mostra
suficiente para justificar o Sollen, já que outros seres, a exemplo das abelhas, também
vivem em sociedade. “A filosofia kantiana procura explicar: porque o homem é dotado de
vontade, compreendida esta, não como forma de relações causais internas, mas como
capacidade criadora de liberdade” (SALGADO, 1986, p. 199).
As abelhas, tendo o instinto como norte de sua sociedade, prescindem de normas. O
homem por sua vez, só vive em sociedade se sua liberdade for limitada por normas, por
regras, “por um dever ser”. Este, o dever ser, tem como condição a existência de uma
vontade livre, não determinada ou determinável externamente, “mas tão só pela razão pura,
vale dizer, por si mesma”.
Em conclusão, tem-se a constatação de que a liberdade aparece como o cerne da
“reflexão na esfera do dever ser ou do agir, de que ela é fundamento último, pois ‘prático é
tudo o que é possível através da liberdade’, que, entretanto, só se revela a partir da lei
moral” (SALGADO, 1986, p. 200).

§ 46 – A lei moral: princípio, máxima e lei

Conforme aponta Salgado, (1986, P. 200), Princípio “é o conhecimento que dá fundamento


a outro conhecimento. É a priori quando seu fundamento é a própria razão”. Em Kant, no
âmbito prático, o Princípio surge como uma espécie de regra que “dá a última razão do agir
[...] É a representação de leis, segundo as quais o ser racional deve agir [e somente ele, o
ser racional, é capaz de agir segundo a representação de leis]”.
“Esse princípio prático (a representação de uma lei que informa a ação)”, quando entendido
como um fim em si mesmo, é absoluto e objetivo, significando, em Kant, um princípio
universal, válido a todos os seres racionais. De tal forma, integram o conjunto dos
chamados princípios da razão, aqueles que não decorrem do sensível, “mas são a priori [...],
dados somente pela razão” (SALGADO, 1986, p. 200/201).
Em Kant, observa-se a existência de três princípios objetivos de ação: o Princípio Técnico,
o qual pressupõe a utilização de meios eficientes e adequados ao alcance do fim proposto;
o Princípio da Prudência, pelo qual afirma que se deve buscar a felicidade; o Princípio da
Moralidade, um princípio universal, incondicionado, absoluto, válido independentemente
dos desejos, ao qual se sujeitam os princípios técnicos e de prudência.
Conforme aponta Salgado, a Máxima “é um princípio de ação do sujeito” que estabelece a
mediação entre a lei moral (abstrata) e a ação (concreta) do ser.
Para caracterizar-se como lei, uma máxima tem que se apresentar como a “realização do
princípio universal objetivo”. Todavia, apenas a máxima formal pode apresentar-se como
tal, aquela que não se obtém mediante “simples generalização da experiência, mas a priori
(e por isso universal) [...] Só a máxima formal se expurga do conteúdo empírico e garante a
universalidade que caracteriza a lei [...]” (SALGADO, 1986, p. 202/203).
Ela, a máxima formal, indica uma ação mediante reverência a lei moral. Reverência, no
contexto apresentado, aparece como “um estado de consciência despertado pela moral no
ser racional [...]”. A reverência é apresentada como uma motivação de dentro da
consciência humana, através do qual “ela faz da lei moral sua máxima, ao mesmo tempo em
que eleva sua máxima a lei universal. [...]. A reverência a lei, despertada pelo conhecimento
da lei, leva o ser racional a aceitá-la e a fazê-la sua máxima” (SALGADO, 1986, p. 203/204).
Segundo Salgado, uma lei tem como sua principal característica a universalidade, “uma lei
[...] tem que valer para todos os casos e não pode admitir exceção”. Sendo universal, é
válida para todos, sem distinção de qualquer natureza. “E para ser valida para todos, é
formal, isto é, não pode levar em conta os aspectos contingentes da sua aplicação
subjetiva”. Contudo, esse “formalismo do direito da igualdade abstrata de todos perante a
lei”, não se caracteriza como um aspecto que acentua o caráter universal da lei. “Essa
universalidade advém do momento de sua elaboração e significa uma conformidade
absoluta com a razão, na medida em que a vontade pura a cria de tal modo, que seja válida
para todos os seres racionais” (SALGADO, 1986, p. 205).

§ 47 – A lei moral como fato da razão

Conforme aponta Salgado (1986, p. 205), a lei moral não se deduz e não induz de
nenhum dado empírico; “É uma proposição sintética a priori”, e, sendo assim, tem origem
direta na razão.
Na sequência, Salgado apresenta os conceitos de razão prática, liberdade e
vontade pura como termos equivalentes. A vontade pura, em sua ação, possui uma lei
racional, “ao mesmo tempo que o exercício da liberdade”. Kant define o “fato da razão ora
como consciência da lei moral [...], ora como consciência da liberdade [...], como momentos
dialeticamente considerados. Como fato da razão, a consciência da liberdade – que é o
terceiro elemento que, como condição absoluta da lei moral, torna possível a ligação sujeito
e predicado num juízo sintético a priori (o imperativo categórico) – evita o regressus ad
infinitum ou o vício do argumento do terceiro homem. É que a consciência da razão sobre a
liberdade é imediata: é um conhecimento pela evidência da proposição, segundo a qual o
ser racional com tal tem de agir e pensar sob o pressuposto da liberdade” (SALGADO, 1986,
p. 206).
Adiante, Kant, aponta a razão como a única esfera em que é possível notar uma
distinção radical entre os animais e os seres humanos. A razão, conforme pode ser
vislumbrado em Kant, tem no homem sua função principal, a moralidade. “A tomada de
consciência direta da moralidade é um fato a priori, não derivado de qualquer atividade
empírica”

§ 48 – A lei moral e o imperativo

Segundo Salgado, o traço principal da lei moral, como princípio formal, cujo contexto
não admite qualquer conteúdo de natureza material, é a universalidade, “que define a sua
validade para todo o ser racional”.
A lei moral, segundo Kant, tem sentido para os seres humanos, como decorrência
exclusiva de ser o homem um ser racional, que, pertencendo ao mundo inteligível, “pode
formular e seguir a lei moral” (SALGADO, 1986, p. 209).
A lei moral tem fundamento exclusivo na razão. Todavia, quando sua formulação e
aplicação se direcionam ao homem, um ser que não é apenas razão, mas também
sensibilidade, “a lei moral manifesta-se como um dever ser que se expressa por um
imperativo”. Sim, um imperativo, “um mando que coage, como: ‘tu deves’[...]” (SALGADO,
1986, p. 209).
Sendo o homem um “misto” de razão e sensibilidade, faz-se necessário que o
sensível esteja submetido ao inteligível, e que “a razão domine totalmente a região sensível
humana para que seus atos sejam morais, visto que a lei moral tem origem exclusiva na
razão”.
Em Salgado, no contexto em que é apresentada, a lei moral e o imperativo chegam
a se confundir. Na verdade, segundo o autor, “a lei moral é uma só. O imperativo não é a
lei moral com uma diferença específica que se lhe acresce, mas a mesma lei moral
considerada do ponto de vista de um ser, que a não pode realizar espontaneamente, porque
pertence também ao mundo sensível” (SALGADO, 1986, p. 209).
Contudo, a vinculação entre imperativo e sensível não quer dizer que a lei moral
tenha origem no mundo sensível, pelo contrário, a lei moral tem origem tão somente na
razão. “A presença do sensível simplesmente faz como que a lei moral [...] se imponha ao
sensível como um mandamento, com toda força de seu império” (SALGADO, 1986, p. 210).

§ 49 – Os imperativos

O imperativo é apresentado como “a forma de um princípio ou a expressão da lei


para o ser humano”, o ser que se constitui de razão e sensibilidade. Segundo Salgado,
“somente o ser cuja vontade pode ser perturbada pelos impulsos e inclinações sensíveis
pode ser destinatário de um comando que se expresse na forma imperativa: ‘tu deves’”
(SALGADO, 1986, p. 211).
§ 50 – As espécies de imperativo (SALGADO, 1986, p. 213/214).

Imperativo hipotético: ocorre “quando o princípio objetivo se condiciona a um fim, à guisa


da relação de meio e fim [...]”.
Imperativo problemático: É quando “o fim ao qual ao qual se refere o imperativo é
possivelmente almejado por alguém”.
Imperativo assertório: É quando “o fim ao qual ao qual se refere o imperativo é
naturalmente desejado por todos”.
Imperativo categórico: É quando o imperativo “é um principio objetivo que ordena uma
ação incondicionalmente porque boa em si mesma, sem relação com outro fim, senão com
ela mesma”. É “o imperativo que define uma tal ação, que é boa em si mesma [...] e que
deve ser praticada necessariamente por todo ser racional;
Kant classifica os imperativos “segundo o grau de coação que cada um pode exercer
na consciência do ser humano”. De tal forma tem-se:
Imperativos técnicos: “É o princípio da destreza, na medida em que define a ação [...]
como meio útil ou adequado a determinado fim (por isso se chama hipotético), que alguém
pode querer (problemático).
Imperativos pragmáticos: Trata-se do “princípio da prudência que define fim a ação (ou
bem enquanto meu bem) como o que é útil a minha felicidade (hipotético) e que é
naturalmente desejado por todos (por isso assertório)”.
Imperativos da moralidade: “Define o bem moral considerado em si mesmo ou a ação
humana enquanto boa em si mesma (por isso categórico) [...] e que deve ser querida por
todo ser racional (apodítico)”.

§ 51 – Possibilidade dos imperativos

Kant, na busca por “explicar a possibilidade dos imperativos e em particular do


imperativo categórico, [...] recorre ao conceito de juízo sintético a priori. Na Crítica da Razão
Pura teve a oportunidade de estabelecer a distinção entre juízo analítico e juízo sintético, da
qual depende a ‘saúde ou ruína da metafísica’, para chegar à conclusão da possibilidade do
juízo sintético a priori, sem o que é impossível qualquer ciência, inclusive a metafísica”
(SALGADO, 1986, p. 215).

§ 52 – Os imperativos hipotéticos

Em Kant, os imperativos hipotéticos aparecem também como analíticos. Ocorrem


“quando o princípio objetivo se condiciona a um fim, à guisa da relação de meio e fim”
( SALGADO, 1986, p. 213).
Pensando na relação meio e fim, mesmo que um determinado fim só possa ser
alcançado através dos meios adequados a tal feito, “essa circunstância traduz sempre uma
relação de que envolve vontade humana como um elemento que define o fim [...]”.
Veja-se o exemplo trazido à baila: “Mesmo que o marceneiro tenha de obedecer a
determinações naturais para que consiga construir uma cadeira [...], a sua ação não se porta
num mundo exclusivamente natural, ou seja, não é ele uma peça na série de causas e
efeitos naturais, mas o princípio de ação, por isso vontade capaz de criar projetos [...]. Ora,
se o elemento vontade aparece aí como origem da obra [...], trata-se de uma atividade
prática passível do comando do imperativo” (SALGADO, 1986, p. 216).

§ 53 – O imperativo categórico e sua possibilidade

Trata-se, o imperativo categórico, de “uma proposição prática a priori, isto é, um


princípio formal de razão pura e prática [...] que exprime um dever ser” (SALGADO, 1986, p.
217).
Diferentemente do hipotético, “o imperativo categórico não ordena um meio com
relação a um fim, pelo que não condiciona a vontade diante de um fim, mas a determina de
modo incondicionado, absoluto, pois que ele mesmo é o fim da ação” (SALGADO, 1986, p.
217).
Diferentemente do hipotético, o imperativo categórico é sintético e a priori; “sintético,
porque a ligação da minha máxima com a lei moral não está incluída previamente na
vontade; e a priori porque não decorre da experiência” (SALGADO, 1986, p. 218). Além
disso, a possibilidade do imperativo categórico deve ser demonstrada e não apenas
explicada.
No imperativo categórico, “o elemento que torna possível a conjunção entre a
obrigação emanada do imperativo e a vontade racional é a liberdade”. Apenas
pressupondo a existência desta é que se torna possível a ação do ser humano.
De acordo com Salgado, afirmar a existência da liberdade é aceitar a existência dos dois
mundos ao qual pertence o homem, o sensível e o inteligível. A possibilidade do imperativo
categórico está ligada ao pressuposto de que pertence o homem aos dois mundos.
O imperativo categórico “é possível porque o dever ser categórico é uma posição sintética a
priori. É uma posição sintética a priori porque o ser humano pertence aos dois mundos [...].
Pertence ao mundo inteligível porque assim o exige a ideia de liberdade. A idéia de
liberdade o faz membro de um mundo inteligível e torna, com isso, possível o imperativo
categórico num ser que também é dotado de sensibilidade. [...] Em suma, o imperativo
categórico é possível sobre o pressuposto da idéia de liberdade” (SALGADO, 1986, p.
222/223).

§ 54 – As fórmulas do imperativo categórico

a) “A fórmula da equiparação da máxima à universalidade da lei da natureza: age de tal


modo que a máxima da tua ação se devesse tornar em lei universal da natureza”;
b) A fórmula da “humanidade ou da consideração da pessoa como fim em si mesma:
age de tal modo que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca como meio simplesmente”.
c) A fórmula da “autonomia ou da liberdade positiva no reino dos fins: age de tal forma
que a tua vontade, através de suas máximas, se possa considerar ao mesmo tempo como
legisladora universal”.

A ideia de Justiça em Kant encontra-se presente nas três fórmulas do imperativo


categórico, “que é o supremo princípio do ético, subjacente a toda a obra de
maturidade de Kant cuja intenção diretora é a vida em comunidade, a política. A
fórmula primeira se assenta na ideia de universalidade ou igualdade; a fórmula
terceira vincula toda ação humana à ideia de liberdade; a formula segunda mostra-nos
o único modo possível de se o homem pessoa e como é possível, através desse
terceiro elemento, realizar a síntese da igualdade e da liberdade ou distribuir
igualmente a liberdade entre os seres racionais. Daí o conceito de Justiça,
preconizado na ação revolucionária na França, e que em Kant assume uma teorização
esplendorosa: a partilha igual do bem maior do ser humano enquanto ser racional
como tal, a liberdade, que aparece como o conteúdo da ideia de Justiça. Essa rica
intuição de Kant sobre a ideia de Justiça é mais explicitada na quinta fórmula do
imperativo categórico, quando a ideia de liberdade aparece não já simplesmente
como conteúdo da lei de igualdade dissertada na primeira e na segunda fórmula, mas
como conteúdo de uma comunidade de seres que se igualam, característica
inconfundivelmente existente em todo racional: pessoas ou fins em si mesmos”
(SALGADO, 1986, p. 224/225).

§ 55 – Universalidade e igualdade

Conforme aponta Salgado, “a primeira fórmula do imperativo categórico expressa a


exigência da lei moral e, mais precisamente, da máxima como critério de sua validade. A
máxima que pode ser elevada à categoria de lei, isto é, universalizada, é válida
moralmente”. Essa validade estende-se para todos os seres racionais, “tendo como padrão
de igualdade e racionalidade dos seres em questão” (SALGADO, 1986, p. 225).
Na busca pelo universal, Kant acaba por não encontrar sua realização, do universal
concreto, no indivíduo. “Embora no indivíduo deva realizar-se a lei moral (o universal),
Kant não acredita nessa realização e apela para postulados da razão para, como medida
heróica, salvar o indivíduo de sua tarefa moral”. Esse postulado é transcendente, não se
inserindo na realidade dos homens. É dessa forma que o “ideal de bem supremo, visto na
perspectiva do indivíduo, nada mais é do que a tentativa de pensar o universal no indivíduo,
mas que, para Kant, tornou-se quase impossível, pela dificuldade de realizar-se nele
plenamente a lei moral” (SALGADO, 1986, p. 226).
Conforme aponta o autor, o universal apenas é passível de realização na
humanidade, enquanto o homem é concebido como espécie, “na idéia de uma paz perpetua
no seio da comunidade humana”.
A paz perpétua é possível apenas em uma “comunidade de justiça”, em uma
comunidade que busca a realização da ideia de Justiça, cuja realização se dá, “na medida
em que a liberdade de todos é assegurada por leis que sejam como um produto da vontade
de todos. A paz perpétua como esforço de Kant no sentido de realizar o universal, é o
coroamento da sua filosofia” (SALGADO, 1986, p. 227).
A lei moral, sendo um princípio da racionalidade pura, em não se “realizando
plenamente no indivíduo, este não poderia construir, juntamente com os outros, leis que
fossem absolutamente racionais”. Se o ideal de bem supremo continua ser como tal, um
ideal, almejado pela razão, mas nunca alcançado, estará a “comunidade da paz perpétua
comprometida”. Por outro lado, se o termo idéia passa a ser entendido como “ao que a
razão aspira e que realiza progressivamente, ainda que se não tenha a perspectiva de sua
plenitude, [...] então a paz perpétua é possível e uma legislação racional plenamente
factível” (SALGADO, 1986, p. 227).
Por outro lado, a norma jurídica apresenta-se de forma menos ambiciosa do que a
lei moral. “Ela visa apenas garantir à esfera da liberdade externa de todos os indivíduos
igualmente. É, portando, concebível que ela atinja o seu fim [...]”(SALGADO, 1986, p. 228).
Na esfera do indivíduo, conforme aponta Salgado, mantém-se o impasse da
realização do universal, “da lei moral que não se dá plenamente em suas ações, visto que
pertencem ao mundo sensível e ao mundo inteligível” (SALGADO, 1986, p. 228).
De todo modo, a filosofia kantiana se apresenta como “um novo modo de aspiração à
realização do universal”. Conforme concebe Kant, a ação do homem sem a lei moral se
torna “cega, irracional, sem validade. Só o apelo a universalidade da lei moral pode conferir
moralidade a ação individual” (SALGADO, 1986, p. 228). E a universalidade é garantida
apenas pela razão.
A lei moral, sendo fundada apenas na razão, “é a priori e, portanto, dotada de uma
universalidade que lhe garante validade incondicionada, não só para o homem, mas para
qualquer outro possível ser racional” (SALGADO, 1986, p. 229).
Em Kant, ganham importância as conseqüências desse universal, co caso, o
imperativo categórico na ação concreta de cada pessoa. A validade do imperativo não é
como a verdade da lei natural, infensa aos que devem observá-la”(SALGADO, 1986, p.
229). Longe disso, sua validade apenas pode ser posta em discussão, “se se supõe a
igualdade daqueles a que o imperativo categórico se destina. “O critério de igualdade é o
mesmo da universalidade, isto é, a razão”. A igualdade aparece como uma idéia, “um
pressuposto da razão, sob pena de não ser possível a lei moral”.
O universal é qualificado como o objetivo, “que tem validade, o impessoal e, por
isso, o princípio de igualdade, que exige uma reciprocidade incondicionada no tratamento
com o outro [...]. Nesse primeiro momento, a igualdade como elemento essencial da ideia
de Justiça apresenta certa semelhança com a regra de ouro de tratamento entre os
indivíduos, vista do lado positivo” (SALGADO, 1986, p. 230).
Segundo Salgado, o imperativo categórico tem a vontade como suporte de sua
universalidade. “Há um critério de aferição da universalidade da máxima de minha ação. É
um critério objetivo, visto que não é pelo simples fato de eu desejar que minha máxima seja
universal que ela será. É necessário [...] que eu possa querer. [...]. [isso ocorre] Quando a
vontade, que aponta a universalidade para minha máxima, não é gerada pelas afecções dos
sentidos, mas determinada pelo princípio da racionalidade que a deve reger” (SALGADO,
1986, p. 231).
Segundo Salgado, a universalidade apresenta-se ainda como critério de validade
para as máximas relativas aos deveres do consigo mesmo. “Nesse caso não corresponde
exatamente a idéia de igualdade subjacente a idéia de justiça. Na dimensão do outro,
porém, essa universalidade não significa mais do que o dever de tratamento igual para
todos, o que é exatamente a expressão primeira da idéia de justiça formal” (SALGADO,
1986, p. 231).
Concluindo, o autor aponta que “Considerar o outro como igual é tratá-lo como
pessoa [...] como fim em si mesmo [...]. considerá-lo como fim em si mesmo é reconhecê-lo
como ser livre” (SALGADO, 1986, p. 232).
CAPÍTULO V – LIBERDADE E JUSTIÇA: a Liberdade como Elemento Central da Ideia
de Justiça
§ 56º - A IDEIA DE LIBERDADE

A ideia de liberdade de Kant não encontra similar nos pensamentos que o


antecederam, exceto pela contribuição de Rousseau. Difere da ideia de liberdade natural
(fazer o que se quer), de liberdade jurídica (fazer o que não é proibido ou ordenado por lei) e
de liberdade de escolha (livre arbítrio).

Para Rousseau, liberdade é a autonomia na esfera política e Kant entende essa


autonomia como liberdade moral do indivíduo, cuja ação livre decorre exclusivamente da
razão (pura prática). A razão determina a ação e resulta no bem – o bem é interno à
liberdade.

§ 57º - A INFLUÊNCIA DE ROUSSEAU NA FORMAÇÃO DA IDEIA DE LIBERDADE EM


KANT

Kant vê Rousseau como o descobridor da natureza do homem e de suas leis.


Mas Kant não transporta simplesmente as ideias de Rousseau, mas busca a “essência
escondida” da obra e Rousseau.

Em Rousseau, a natureza é o estado originário de que sai o homem e, ao


mesmo tempo, o fim a que ele volta (ser e dever ser não são diferenciados). Kant assimila a
atribui a liberdade a ideia de ponto central em torno do qual o homem gira e que fundamenta
a autoridade. A “vontade geral” descrita por Rousseau é idêntica à “consciência moral” de
Kant (e no direito pode ser chamada de “vontade geral”).

“A liberdade, portanto, como autonomia (herança positiva de Rousseau), é o


centro da filosofia prática de Kant; não simplesmente a lei (ou o dever ser) como algo dela
separado, ocupando o lugar central do seu pensamento.”

A justiça é o objeto de toda a legislação a que visa o Estado. A liberdade é


identificada com a lei, no conceito de autonomia.

§ 58º - A LIBERDADE PARA KANT

A vontade é a razão pura prática. O arbítrio é livre quando é determinado pela


vontade, ou seja, pela razão pura prática. O arbítrio humano distingue-se, portanto, do
arbítrio animal pela faculdade de ser determinado pela razão prática.

O arbítrio humano não é determinado pela lei da natureza, mas pela vontade,
que gera a liberdade como autonomia.

A liberdade é a hipótese necessária de todas as regras e, por isso, de todo o uso


do entendimento. A espontaneidade ocupa no processo de revelação da liberdade o papel
da autonomia ou da criação de leis pela razão.

A vontade é livre quando é boa (pura) e, portanto, capaz de criar as leis da razão
que determinam o arbítrio (leis da liberdade).
O arbítrio não significa respeitar ou não a lei moral, mas a possibilidade de se
determinar pela lei moral. “O homem não é nem uma divindade, nem é fera nem é ser
diabólico”. Assim não age conforme a vontade pura, mas tem capacidade moral e não
escolhe o mal pelo mal.

Em um ser irracional ou em um ser diabólico a liberdade é impossível.

O dever ser decorre da liberdade. A distinção entre a ética tradicional e a ética


kantiana está exatamente na ideia de liberdade enquanto autonomia – o bem que obriga é a
própria vontade, que é boa em si mesma.

A submissão do homem à lei moral, em Kant, visa exatamente à liberdade que


ela representa. “A própria lei é o critério de aferição da liberdade do arbítrio, que não se
deixa determinar pelos sentidos, mas pela lei moral da razão pura”.

§ 59º - LIBERDADE E DIREITO

Uma ação é moral quando é fim em si mesma e não meio adequado a outro fim.
É fim em si mesma a ação derivada da vontade pura, ou seja, a ação plenamente livre. O
homem é fim em si mesmo porque é racional e, em consequência, livre, já que a liberdade é
uma qualidade de todo ser racional.

O princípio do ser racional pode ser identificado com o princípio da humanidade.

A liberdade que caracteriza a pessoa e a torna fim em si mesma é o bem maior e


o único direito inato no ser racional. Justo é o que promove a liberdade, o governo de si
mesmo para si mesmo. Injusto é o que impede a liberdade que se realiza segundo leis
universais.

A liberdade, que é direito fundamental de cada um, só pode ser garantida na


sociedade civil, onde a limitação imposta ao arbítrio de cada um pelo pacto social é igual
para todos (Kant assume as feições negativas do contrato social vislumbradas em
Rousseau).

§ 60º LIBERDADE EXTERNA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

O conceito de vontade pura liga-se ao conceito de liberdade interna ou


autonomia e o de uma vontade enquanto age em meio às afecções dos sentidos, ao de uma
liberdade externa.

O conceito de liberdade externa traz a seguinte consequência fundamental:


embora direito e moral procedam, em última instância, de uma mesma raiz, a liberdade que
lhes dá fundamento, direito e moral não são ordens normativas idênticas, diferindo
formalmente.

Direito, moral e política têm a mesma raiz, já que são todos éticos e todos
encontram a sua justificação radical no conceito de liberdade (sem o qual nada ético é
possível).
Para Kant, há somente um dever comum a todos os tipos de imperativos: aquele
que surge para a vontade, na medida em que seja essa vinculação criada por uma lei que
tem origem na razão.

É a limitação da vontade pela lei que implica a não distinção do dever moral do
dever jurídico.

A ação pode ser moral ou jurídica – na ação moral o homem age por dever e na
ação jurídica o homem age conforme o dever (a diferença é o motivo da ação).

O dever externo é o dever para com os outros. Todo dever jurídico é externo e
procede de uma legislação. A ação moral difere pelo motivo da ação.

Os deveres esternos só são jurídicos quando precedem de uma legislação, a


qual concilia os arbítrios. Assim, a conformidade da ação ao direito é suficiente, sendo que o
direito decorre do imperativo categórico.

Não existisse a legislação, os deveres seriam todos morais. A distinção do direito


e moral, para Kant, decorre da diversidade do motivo consignado na legislação de um e de
outro (e não pela diversidade dos deveres em si).

“À base de diferença entre moral e direito estão fundamentalmente o motivo da


ação e o seu caráter exclusivamente externo no direito – segundo consideremos a liberdade
no uso externo do arbítrio (diante do outro) – bem como a fora da vontade que legisla: se é
uma vontade particular a legisladora, estamos diante da moral; se é uma vontade comum de
dois sob uma lei geral ou vontade da comunidade, que legisla, temos o direito”.

Toda a questão da diferença entre o direito e a moral está na distinção entre


liberdade considerada no seu momento externo e liberdade no seu momento interno, se
perder de vista que se trata da mesma liberdade, tanto no direito como na moral.

A liberdade em seu sentido próprio é sempre a liberdade positiva da autonomia;


isso é válido tanto para o direito quanto para a moral. Na moral, a autonomia diz-se da
vontade individual pura que legisla para si mesma (ou liberdade interna).

No direito é a mesma vontade legisladora, não mais enquanto legisla apenas


para si mesma, mas enquanto participa da elaboração de uma legislação universal
limitadora dos arbítrios individuais.

Essa é a liberdade jurídica no sentido próprio ou liberdade externa, que em


essência é sempre a mesma autonomia.

CAPÍTULO VI – JUSTIÇA E DIREITO: A Justiça como Ideia do Direito

§ 61º - UMA PERSPECTIVA UTÓPICA IMPORTANTE DAS CRÍTICAS

A demonstração dos objetos da fé terminaria por submeter a própria fé a uma


explicação psicológica, que a colocaria como fenômeno estudado por uma ciência cujo
objeto é dado na sensibilidade. Isso equivaleria a tornar sem validade os objetos da fé. Uma
demonstração dos objetos da fé para além da experiência seria impossível, como
suficientemente provado pela dialética da razão pura.

A imortalidade da alma e a existência de Deus são postulados como salvação da


fé e da moral do indivíduo. A liberdade, por sua vez, é o postulado fundamental e única
condição do ethos social do homem, que se desloca para a ideia da república pura e se
universaliza pelo conceito de paz perpétua universal.

§ 62º - O JUSTO E O DIREITO NATURAL

O direito do homem e o direito da humanidade em mim, que exigem de mim que


respeite o outro e me faça respeitar pelos outros, não incluem o direito à vida, à
subsistência, à perpetuação da espécie, que só são direitos por força de ser o homem livre,
racional. Embora o homem pertença aos dois mundos, sensível e inteligível (corpo e
espírito), o direito da humanidade, nele existente e inato, só procede da razão. Por isso,
entre os animais, embora existam tais situações biológicas, não são direitos.

O ético só se dá no domínio da razão. Sendo, entretanto, o corpo parte


integrante do ser humano e condição do exercício da liberdade, o corpo também pode ser
tido como conteúdo do direito da humanidade, e, portanto, indisponível e inalienável. Isso
que torna impossível qualquer contrato de escravidão.

O direito natural não significa um conjunto de princípios superiores ao direito


positivo; são, em verdade, princípios da razão que justificam esse conjunto de princípios
superiores ao direito positivo, dando-lhe conteúdo e justificando a própria existência do
direito positivo e sua validade.

“Kant pode ser chamado jusnaturalista somente no sentido de que o direito


positivo, para ele, não encontra o seu fundamento de validade última em si mesmo ou no
arbítrio do legislador, mas na razão, ou, em última instância, na liberdade, o único direito
natural.

Essa posição é essencialmente diversa de todo o jusnaturalismo que o


precedeu, pois Kant foi o primeiro a buscar na liberdade um supremo e rigoroso critério de
validade de todo ético”.

Justo é o que está conforme os princípios a priori da razão prática, ou, mais
precisamente, da razão juridicamente prática. A partir desses princípios, desenvolve-se a
fundamentação filosófica do direito pelo desdobramento dos seguintes imperativos
categóricos do direito:

- reconhecer como válida a lei a que pudermos dar o nosso consentimento;

- ingressar numa sociedade juridicamente organizada;

- construir a república;

- promover a paz perpétua.

§ 63º - A DEFINIÇÃO DO DIREITO


Conforme zombaria realizada na Crítica da Razão Pura, Kant defende que o
conceito de direito não pode ser buscado no empírico e nem através da razão especulativa.

O direito deve ser objeto de consideração no âmbito da razão prática, razão pela
qual não se explica pela noção de necessidade limitada à natureza, na experiência, mas, a
priori, na razão pura prática.

A partir daí, Kant discute a limitação igual para todos como justa, segundo uma
lei universal da liberdade.

§ 64º - A COAÇÃO DO DIREITO E A LIBERDADE

A coação no direito, para Kant, tem um caráter ético. O direito é o instrumento de


realização da interioridade na exterioridade. Como interioridade, o homem é liberdade e
razão.

A ordem coativa (exterior) recebe da razão o toque da interioridade, já que não é


uma ordem coativa qualquer, mas a ordem coativa fundada na razão segundo o princípio da
limitação igual para todos os membros da sociedade humana.

O exterior do direito, ou seja, a coação, possibilita a realização do interior


humano, enquanto ação puramente ética da pessoa no exterior, enquanto esse indivíduo se
põe em comércio com outro.

A sociedade é o interior exteriorizado ou o exterior interiorizado, ou seja, o


exterior que se tornou racional, conforme proposto por Hegel.

CAPÍTULO VII – DIREITO E ESTADO: o Estado como Guardião do Direito

§ 65º - O CONTRATO SOCIAL

O direito estrito caracteriza a sociedade civil, e só através do direito estrito é que


a liberdade é possível numa sociedade.

A sociedade civil ou a situação de direito só é possível sob a ideia de um pacto


livre de todos os seus membros. No estado de natureza só pode existir o direito privado, o
que não significa a ausência de justiça (pois a ausência de justiça representa o uso ilimitado
da liberdade externa). O que existe é a ausência de direito público positivo, com o aparelho
de justiça mantido pelo Estado (direito estrito).

“A deficiência do direito natural ou privado (do estado de natureza) é que se


trata, nesse estado, de uma vida social, mas de uma vida social que não é regulada pelo
direito (público); não é uma vida social regulada pelo direito, que constitui a sociedade civil
ou Estado. Existem no estado de natureza sociedades (família, ordas e tribos); o que não
existe é a organização de um direito garantido pelo Estado”.

§ 66º - LIBERDADE, IGUALDADE E CIDADANIA


A sociedade civil se assenta sob os seguintes princípios: a liberdade de cada
pessoa (“como homem”), a igualdade dentre as pessoas (“como súditos”) e a
autossuficiência de cada pessoa (“como cidadão”).

Cidadão é o colegislador da sociedade política.

A condição para que um membro da comunidade seja cidadão é a


autossuficiência, ou seja, a produção material da sua vida de forma independente. Essa
independência é dada por um rendimento que pode ser auferido pelo exercício de uma
profissão ou pelas rendas oriundas de uma propriedade. A independência financeira é
condição para a independência da vontade.

§ 67º - O CAMINHO PARA O REPUBLICANISMO

“Se Kant aceita e defende o progresso ético na sociedade humana em direção à


sociedade civil, a uma ‘república pura’ e, em consequência, à paz perpétua entre os povos,
então a teoria do cidadão não ficará cristalizada por esses elementos empíricos apontados;
mesmo porque a exclusão do arbítrio de todos sobre o que considero meu, só se justifica
pela liberdade, isto é, na medida em que essa exclusão não se opera pela violência tão
somente, mas pela livre concordância de todos, manifestada no pacto originário”.

§ 68º - REVOLUÇÃO E REFORMA NO CAMINHO DA CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA

Kant reconhece a revolução como tendo uma finalidade ética, já que objetiva
realizar a liberdade, que é o critério supremo e fundamento da ordem jurídica e política.

A ideia da criação da constituição civil tem a sua realidade prática como a lei a
priori da razão, que manda que se obrigue ao legislador que legisle de tal modo, que
possam ser suas leis consideradas como originadas da vontade de todo o povo. Isso
significa a impossibilidade de exercício do direito de resistência, que poderia ser imposto
pela vontade psíquica contra uma lei racional.

§ 69º - O ESTADO REPUBLICANO

Kant não diferencia o Estado despótico do Estado Republicano. Isso porque a


finalidade do Estado, em Kant, é ética, e, portanto, ao Estado cabe garantir o direito.

O Estado despótico também garante o direito, na medida em que preserva a


sociedade de incidir no estado de natureza, em que não haveria nem liberdade nem direitos
garantidos.

§ 70º - A PAZ PERPÉTUA

Kant identifica o bem supremo do indivíduo com a ideia de Deus e da


imortalidade da alma, sendo postulados da razão pura.

A plena eficácia dos atos morais do indivíduo como forma de superação não
dialética de ser e dever ser só se encontra na imortalidade. A imortalidade é, assim, a
realidade justa dos seus atos e, ao mesmo tempo, a realidade divina.
Kant não pensa na criação de uma sociedade perfeita com a extinção dos
entraves físicos ao respeito à liberdade de cada um.

Não basta que sejam criadas leis perfeitas para que o indivíduo se torne bom, e
a partir daí sejam extintas as penas.

O direito aparece em Kant como uma exigência da sociedade livre de indivíduos,


que são humanos. A ideia da liberdade dirige a história humana, não só porque a história é
construída para o homem poder ser livre. A liberdade é o reino da paz perpétua, a qual ela
mesma instaura, tendo em vista que uma legislação universal assentada sobre a razão pura
é o fim último da história e só pode ser alcançada por meio do Estado de direito pleno.

“O direito assume em Kant uma dignidade total. O direito ‘não se pede’, diz ele,
mas exige-se. Essa exigibilidade não decorre, porém, da coação que o resguarda, mas do
dever, ou seja, da obrigação que o outro assume. Por isso, também o devedor no direito é
dignificado, visto que a exigência do outro não tem o seu fundamento na força pura e
simples (coação), mas, em última instância, na vontade autônoma (liberdade do devedor e
na lei que a todos iguala e através da qual somente são possíveis a exigência e a coação).
A comunidade que vivesse totalmente segundo o direito (soberano e súditos) poderia
dispensar os deveres da bondade, pois que enquanto os deveres do amor são
condicionados, os do direito são incondicionados”.

Somente quando a política obedece ao princípio da justiça ditado pela razão


pura prática, superando os sofismas das técnicas utilitaristas de governo, que procuram
meios mecânicos de dirigir, é que é possível garantir a paz perpétua, cuja realidade (e não
apenas aproximação) Kant vê atestada e garantida na exemplar constituição livre dos
revolucionários franceses que ‘tinham em vista o direito do povo, a que pertenciam’.

CONCLUSÃO – JUSTIÇA: Igualdade e liberdade

(transcrição do capítulo completo)

O capítulo é curto (9 páginas) e merece ser lido como um resumo de todo o trabalho.

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