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TEXTOS ESCOLHIDOS

ALEXANDRA KOLLONTAI
SUMÁRIO
As Relações entre os Sexose a Luta de Classes ................................... 4
O Dia da Mulher................................................................................. 30
O Comunismo e a Família .................................................................. 37
A mulher já não depende do homem ............................................ 38
Da família gentílica aos nossos dias ............................................... 39
O capitalismo destruiu a velha vida familiar ................................. 41
Trinta milhões de mulheres suportam uma carga dupla .............. 42
Os trabalhadores aprendem a existir sem vida familiar ................ 44
O trabalho caseiro não é mais uma necessidade .......................... 45
O trabalho industrial da mulher no lar .......................................... 46
A mulher casada e a fábrica........................................................... 47
Os afazêres individuais estão fadados a desaparecer ................... 49
A aurora do trabalho caseiro coletivo ........................................... 50
A criação dos filhos no sistema capitalista .................................... 52
Os filhos e o Estado Comunista ..................................................... 53
A sobrevivência da mãe assegurada.............................................. 56
O matrimônio deixará de ser uma cadeia ..................................... 56
A família como união de afetos e camaradagem .......................... 58
Se acabará para sempre a prostituição ......................................... 59
A igualdade social do homem e da mulher ................................... 61
O Trabalho Femininono Desenvolvimento da Economia .................. 63
A Família e o Estado Socialista........................................................... 78
A família e o trabalho assalariado da mulher ................................ 79
A família no passado ...................................................................... 80

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A atual forma da família ................................................................ 81
A decadência da família atual ........................................................ 82
No capitalismo, um verdadeiro presídio ....................................... 83
Mulheres Militantes nos Dias da Grande Revolução de Outubro ..... 86

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AS RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS
E A LUTA DE CLASSES
1911

Tradução:Maria Luiza Oliveira

4 | Alexandra Kollontai
Entre os múltiplos problemas que perturbam a humanidade,
ocupa, indiscutivelmente, um dos primeiros postos, o problema
sexual. Não há uma só nação, um só povo em que a questão das
relações entre os sexos não adquira cada dia um caráter mais
violento e doloroso. A humanidade contemporânea passa por
uma crise sexual aguda. Uma crise que se prolonga e que,
portanto, é muito mais grave e difícil de resolver.

No curso da história da humanidade não encontraremos,


seguramente, outra época na qual os problemas sexuais tenham
ocupado, na vida da sociedade, um lugar tão importante, atraindo
como por arte de magia, as atenções de milhões de homens. Em
nossa época, mais do que em nenhuma outra da história, os
dramas sexuais constituem fonte inesgotável de inspiração para
os artistas de todos os gêneros da Arte.

Como a terrível crise sexual se prolonga, seu caráter crônico


adquire maior gravidade e mais insolúvel nos parece a situação
presente. Por isto, a humanidade contemporânea lança-se
ardentemente sobre todos os meios conjecturáveis que tornem
possível uma solução para o maldito problema. Mas, a cada nova
tentativa de solução, mais se complica o complexo emaranhado
das relações entre os sexos, dando-nos a impressão de que seria
impossível descobrir o único fio que nos serviria para desatar o
complicado nó. A humanidade, atemorizada, precipita-se de um
extremo ao outro. Mas, o círculo mágico da questão sexual
permanece tão hermeticamente fechado como antes.

Os elementos conservadores da sociedade concluem que é


imprescindível voltar aos felizes tempos passados, restabelecer os

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velhos costumes familiares, dar novo impulso às normas
tradicionais da moral sexual. “É preciso destruir todas as
proibições hipócritas prescritas pelo código da moral sexual
corrente. E chegado o momento de se abandonar esta velharia
inútil e incômoda... A consciência individual, a vontade individual
de cada ser é o único legislador em uma questão de caráter tão
íntimo” — ouve-se esta afirmação nas fileiras do individualismo
burguês. “A solução para os problemas sexuais só poderá ser
encontrada com o estabelecimento de uma nova ordem social e
econômica, com uma transformação fundamental de nossa atual
sociedade” — afirmam os socialistas. Precisamente, porém, este
esperar pelo amanhã não indica que tampouco nós conseguimos
apoderar-nos do fio condutor? Não deveríamos, pelo menos,
encontrar ou localizar este “fio condutor” que promete
desvendar o nó? Não devemos encontrá-lo agora, neste exato
momento? O caminho a seguir nesta investigação nos oferece a
mesma história das sociedades humanas, nos oferece a história
de luta ininterrupta de classes e dos vários grupos sociais, em
oposição por seus interesses e tendências.

Não é a primeira vez que a humanidade atravessa um


período de aguda crise sexual. Não é a primeira vez que as
aparentemente firmes e claras prescrições da moral cotidiana, no
domínio da união sexual, são destruídas pelo afluxo de novos
ideais sociais. A humanidade passou por uma época de crise
sexual verdadeiramente aguda durante os períodos do
Renascimento e da Reforma, no momento em que uma
formidável modificação social relegava a segundo plano a
aristocracia feudal, orgulhosa de sua nobreza, acostumada ao

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dominar sem limitações, e em seu lugar emergia uma nova força
social, a burguesia ascendente, que crescia e se desenvolvia cada
vez mais, com maior impulso e poder.

O código da moral sexual do mundo feudal, nascido no seio


da sociedade aristocrática, com um sistema de economia
comunal e baseado nos princípios autoritários de castas,
devorava a vontade individual dos membros dessa sociedade que
tentavam permanecer isolados. O velho código moral entrava em
choque com novos princípios, que novos princípios, que eram
impostos pela classe burguesa em formação. A moral sexual da
nova burguesia baseava-se em princípios radicalmente opostos
aos princípios morais mais essenciais do código feudal. Em
substituição ao princípio de castas, aparecia uma severa
individualização: os estreitos limites da pequena família burguesa.
O fator de colaboração, essencial na sociedade feudal,
característica de sua economia comunal, tanto como da
economia regional, era substituído pelo princípio da concorrência.
Os últimos vestígios de ideias comunais, próprias dos diversos
graus de evolução das castas, foram ultrapassados pelo triunfante
princípio da propriedade privada.

A humanidade, perdida durante o processo de transição,


ficou em dúvida, durante vários séculos, entre os dois códigos
sexuais, de espírito tão diverso, e permaneceu ansiosa por
adaptar-se à situação, até o momento em que a vida transformou
as velhas normas, alcançando, pelo menos, uma forma
harmoniosa, uma solução quanto ao aspecto externo.

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Porém, durante esta época de transição, tão viva e cheia de
colorido, a crise sexual, apesar de revestida de caráter crítico, não
se apresentou de uma forma tão grave e ameaçadora como em
nossa época. Isto se deveu ao fato de que, durante os gloriosos
dias do Renascimento, durante aquele novo século, iluminado
pela nova cultura espiritual, que coloria o agonizante mundo da
Idade Média, pobre de conteúdo, apenas uma parte
relativamente reduzida da sociedade experimentou a crise sexual.
O campesinato, camada social mais considerável da época, do
ponto de vista quantitativo, sofreu as consequências da crise
sexual de forma indireta, quando, por lento processo secular se
transformavam as bases econômicas em que esta classe se
fundamentava, isto é, unicamente à medida em que evoluíam as
relações econômicas.

As duas tendências opostas lutavam nas camadas superiores


da sociedade. Neste terreno, enfrentavam-se os ideais e as
normas das duas concepções diversas da sociedade. E era onde,
precisamente, a crise sexual, cada vez mais grave e ameaçadora,
fazia suas vítimas. Os camponeses, rebeldes a qualquer inovação,
classe apegada a seus princípios, continuavam apoiando-se nos
sustentáculos das tradições e o código da moral sexual tradicional
permanecia inalterável. Só se transformava, não se abrandava.
Adaptava-se às novas condições da vida econômica, sob a pressão
da grande necessidade. A crise sexual, durante a luta entre o
mundo burguês e o mundo feudal, não afetou a classe tributária.

E mais, ao arruinar-se, classe camponesa apegava-se às


tradições com maior força. Apesar de todas as tempestades que

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desabavam sobre sua cabeça, que abalavam até o solo que
pisavam, a classe camponesa, em geral, e particularmente, os
camponeses russos tentaram conservar, durante séculos e
séculos, em sua forma primitiva, os princípios essenciais de seu
código moral sexual.

O problema de nossa época apresenta um aspecto


totalmente distinto. A crise sexual não perdoa sequer a classe
camponesa. Como doença infecciosa, não reconhece nem graus,
nem hierarquias, contamina os palácios, as aldeias e os bairros
operários, onde vivem amontoados milhares de seres. Penetra
nos lares burgueses, abre caminho até à miserável e solitária
aldeia russa, elege suas vítimas, tanto entre os habitantes da
cidade provinciana burguesa da Europa, quanto nos úmidos
sótãos, onde se amontoa a família operária, e nas enegrecidas
choças do camponês. Para a crise sexual não há obstáculos nem
ferrolho. É um profundo erro acreditar que a crise sexual só
alcança os representantes das classes que têm uma posição
econômica materialmente segura. A indefinida inquietação da
crise sexual franqueia, cada vez com maior frequência, a porta
das habitações operárias, causando tristes dramas, que por sua
intensidade de dor, não tem nada a dever aos conflitos
psicológicos do mundo burguês. Porém, justamente porque a
crise sexual não ataca somente os interesses dos que tudo
possuem, precisamente porque estes problemas sexuais afetam
também uma classe social tão numerosa como o proletariado de
nossos tempos, é incompreensível e imperdoável que esta
questão vital, essencialmente violenta e trágica, seja considerada
com tanta indiferença. Entre as múltiplas ideias fundamentais que

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a classe trabalhadora deve levar em conta em sua luta para a
conquista da sociedade futura, deve estar, necessariamente, o
estabelecimento de relações sexuais mais sadias e que, portanto,
tornem a humanidade mais feliz.

É imperdoável nossa atitude de indiferença diante de uma


das tarefas essenciais da classe trabalhadora. É inexplicável e
injustificável que o vital problema sexual seja relegado,
hipocritamente, ao arquivo das questões puramente privadas. Por
que negamos a este problema o auxílio da energia e da atenção
da coletividade? As relações entre os sexos e a elaboração de um
código sexual que regulamente estas relações aparecem na
história da humanidade, de maneira invariável, como um dos
fatores da luta social. Nada mais certo do que a influência
fundamental e decisiva das relações sexuais de um grupo social e
determinado no resultado da luta dessa classe com outra, de
interesses opostos.

O drama da humanidade atual é desesperador porque,


enquanto diante de nossos olhos são destruídas as formas banais
de união sexual e são desprezados os princípios que as regiam,
das camadas mais baixas da sociedade se elevam frescos aromas
desconhecidos, que nos fazem conceber esperanças risonhas
sobre uma nova forma de vida e impregnam o espírito humano
com a nostalgia de ideais futuros, mas cuja realização não parece
possível. Nós, homens do século em que domina a propriedade
capitalista, de um século onde transbordam as agudas
contradições de classe; nós, homens imbuídos da moral
individualista, vivemos e pensamos sob o funesto símbolo de

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invencível alheamento moral. A terrível solidão que o homem
sente nas imensas cidades populosas, nas cidades modernas tão
irrequietas e tentadoras; a solidão, que não é dissipada pela
companhia de amigos e companheiros, é que o impulsiona a
buscar, com avidez doentia, a sua ilusória alma gêmea, num ser
do sexo oposto, visto que só o amor possui o mágico poder de
afugentar, embora momentaneamente, as angústias da solidão.

Em nenhuma outra época da história os homens sentiram


com tanta intensidade a solidão moral. Necessariamente tem que
ser assim. A noite é muito mais impenetrável quando ao longe
vemos brilhar uma luz. Os homens individualistas de nossa época,
unidos por débeis laços à comunidade ou a outras
individualidades, veem brilhar ao longe uma nova luz: a
transformação das relações sexuais mediante a substituição do
cego fator fisiológico pelo novo fator criador da solidariedade, da
camaradagem.

A moral da propriedade individualista de nossos tempos


começa a afogar os homens. O homem contemporâneo não se
contenta em criticar as relações entre os sexos, em negar as
formas exteriores prescritas pelo código da moral vigente. Sua
alma deseja a renovação da essência das relações sexuais, deseja
ardentemente encontrar o verdadeiro amor, essa grande força
confortadora e criadora que é a única capaz de afugentar a
solidão de que padecem os individualistas contemporâneos. Se é
certo que a crise sexual está condicionada em suas três partes
pelas relações externas de caráter econômico-social, não é menos
certo que a outra quarta parte de sua intensidade é devida, à

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nossa refinada psicologia individualista, que com tanto cuidado a
dominante ideologia burguesa cultivou. A humanidade
contemporânea, como disse, acertadamente, Meisel-Hess, é
muito pobre em potencial de amor. Cada um dos sexos busca o
outro com a única esperança de conseguir a maior satisfação
possível de prazeres espirituais e físicos para si. Cada um utiliza o
outro como simples instrumento. O amante ou o noivo não pensa
nos sentimentos, no trabalho psicológico que se efetua na alma
da mulher amada.

Talvez não haja nenhuma outra relação humana como as


relações entre os sexos, na qual se manifeste com tanta
intensidade o individualismo grosseiro que caracteriza nossa
época. Absurdamente se imagina que basta ao homem, para
escapar à solidão moral que o rodeia, o amor, exigir seus direitos
sobre a outra pessoa. Espera assim, unicamente, obter esta sorte
rara: a harmonia da afinidade moral e a compreensão entre dois
seres. Nós, os indivíduos dotados de uma alma que se fez
grosseira pelo constante culto de nosso eu, cremos que podemos
conquistar sem nenhum sacrifício a maior das sortes humanas, o
verdadeiro amor, não só para nós, como também para nossos
semelhantes. Cremos poder conquistar isso sem dar em troca a
nossa própria personalidade.

Pretendemos conquistar a totalidade da alma do ser amado,


mas, em compensação, somos incapazes de respeitar a mais
simples fórmula do amor: acercarmo-nos do outro dispostos a
dispensar-lhe todo o gênero de considerações. Esta simples
fórmula nos será unicamente inculcada pelas novas relações

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entre os sexos, relações que já começaram a se manifestar e que
estão baseadas também, em dois princípios novos: liberdade
absoluta, por um lado, e igualdade e verdadeira solidariedade
entre companheiros, por outro. Entretanto, por enquanto, a
humanidade tem que sofrer, ainda, a solidão moral e não há
outro remédio senão sonhar com uma época melhor na qual
todas as relações humanas se caracterizem por sentimento de
solidariedade, que serão possíveis por causa das novas condições
da existência. A crise sexual é insolúvel sem que haja uma
transformação fundamental da psicologia humana; a crise sexual
só pode ser vencida pela acumulação de potencial de amor. Mas,
essa transformação psíquica depende completamente da
reorganização fundamental das relações econômicas sobre os
fundamentos comunistas. Se recusarmos esta velha verdade, o
problema sexual não terá solução.

Apesar de todas as formas de união sexual que a


humanidade experimenta hoje em dia, a crise sexual não se
resolveu em nenhum lugar. Não se conheceu em nenhuma época
da história tantas formas diversas de união entre os sexos.
Matrimônio indissolúvel, com uma família solidamente
constituída, e a seu lado a união livre, passageira; o adultério
conservado no maior segredo, ao lado do matrimônio e da vida
em comum de uma moça solteira com o seu amante; o
matrimônio por trás da Igreja, o matrimônio de dois, o
matrimônio triângulo e, inclusive, a forma complicada do
matrimônio de quatro, sem contar as múltiplas variantes da
prostituição. Ao lado destas formas de união, entre os
camponeses e a pequena burguesia, encontramos vestígios dos

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velhos costumes de casta, mesclados com os princípios em
decomposição da família burguesa e individualista; a vergonha do
adultério, a vida em concubinato entre o sogro e a nora e a
liberdade absoluta para a jovem solteira. Sempre a mesma moral
dupla. As formas atuais de união entre os sexos são contraditórias
e complicadas, de tal modo, que nos interrogamos como é
possível que o homem que conservou em sua alma a fé na
firmeza dos princípios morais possa continuar admitindo essas
contradições e salvar esses critérios morais irreconciliáveis, que
necessariamente se destroem um ao outro. Precisamente, o
trabalho a realizar consiste em fazer com que surja essa nova
moral: é preciso extrair do caos as normas sexuais contraditórias
da época presente, as premissas dos princípios que
correspondem ao espírito da classe revolucionária em ascensão.

Além do individualismo extremado, defeito fundamental da


psicologia da época atual, de um egocentrismo transformado em
culto, a crise sexual agrava-se muito mais com outros dois fatores
da psicologia contemporânea:

1. – a ideia do direito de propriedade de um ser sobre o


outro; e

2. – o preconceito secular da desigualdade entre os sexos em


todas as esferas da vida.

A ideia da propriedade inviolável do esposo foi cultivada com


todo o esmero pelo código moral da classe burguesa, com sua
família individualista encerrada em si mesma, construída
totalmente sobre as bases da propriedade privada. A burguesia

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conseguiu com perfeição inocular essa ideia na psicologia
humana. O conceito de propriedade dentro do matrimônio vai
hoje em dia muito além do que ia o conceito da propriedade nas
relações sexuais do código aristocrático. No curso do longo
período histórico que transcorreu sobre o signo do princípio de
casta, a ideia da posse da mulher pelo marido (a mulher carecia
de direitos de propriedade sobre o marido) não se estendia além
da posse física, mas sua personalidade lhe pertencia
completamente.

Os cavaleiros da Idade Média chegavam inclusive a


reconhecer nas suas esposas o direito de ter admiradores
platônicos e de receber o testemunho desta adoração pelos
cavaleiros e menestréis. O ideal da posse absoluta, da posse não
só do eu físico, mas também do eu espiritual por parte do esposo,
o ideal, que admite uma reivindicação de direitos de propriedade
sobre o mundo espiritual e moral do ser amado, é que se formou
na mente e foi cultivado pela burguesia com o objetivo de
reforçar os fundamentos da família, para assegurar sua
estabilidade e sua força durante o período de luta para conquista
de seu predomínio social. Esse ideal não só o recebemos como
herança, como também chegamos a pretender que seja
considerado um imperativo moral indestrutível. A ideia da
propriedade se estende muito além do matrimônio legal. É um
fator inevitável que penetra até na união amorosa mais livre. Os
amantes de nossa época, apesar de seu respeito teórico pela
liberdade, só se satisfazem com a consciência da fidelidade
psicológica da pessoa amada. Com o fim de afugentar o fantasma
ameaçador da solidão, penetramos, violentamente, na alma do

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ser amado, com uma crueldade e uma falta de delicadeza que
será incompreensível à humanidade fritura. Da mesma forma
pretendemos fazer valer nossos direitos sobre o seu eu espiritual
mais íntimo. O amante contemporâneo está disposto a perdoar
mais facilmente ao ser querido uma infidelidade física do que
uma infidelidade moral e pretende que lhe pertença cada
partícula da alma da pessoa amada, que se estenda mais além
dos limites de sua união livre. Considera tudo isto como um
desperdício, como um roubo imperdoável de tesouros que lhe
pertenciam, exclusivamente e, portanto, como um saque
cometido à sua revelia.

Tem a mesma origem a absurda indelicadeza que cometem


constantemente dois amantes com relação a uma terceira
pessoa. Todos tivemos ocasião de observar um fato curioso que
se repete continuamente: dois amantes, que mal tiveram tempo
de conhecer-se em suas relações múltiplas, apressam-se a
estabelecer seus direitos sobre as relações sexuais do outro e
intervir no mais sagrado e no mais íntimo de sua vida. Seres que
ontem eram dois estranhos, hoje, unicamente porque os unem
sensações eróticas, apressam-se a apossar-se da alma do outro, a
dispor da alma desconhecida e misteriosa sobre a qual o passado
gravou imagens inapagáveis e a instalar-se no seu interior como
se estivesse em sua própria casa. Esta ideia da posse recíproca de
um casal amoroso estende seu domínio de tal forma que pouco
nos surpreende um fato tão anormal quanto o seguinte: dois
recém-casados viviam até ontem cada um com a sua própria vida;
no dia seguinte à sua união, cada um deles abre sem o menor
escrúpulo a correspondência do outro inteirando-se

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consequentemente, do conteúdo da carta procedente de uma
terceira pessoa que só tem relação com um dos esposos e se
converte em propriedade comum. Uma intimidade desse gênero
só se pode adquirir como resultado de uma verdadeira união
entre as almas no curso de uma longa vida em comum, de
amizade posta à prova. O que se busca, em geral, é legitimar essa
intimidade, baseando-se na ideia equivocada de que comunhão
sexual entre dois seres é suficiente para estender o direito de
propriedade sobre o ser moral da pessoa amada.

O segundo fator que deforma a mentalidade do homem


contemporâneo e que agrava a crise sexual é a ideia de
desigualdade entre os sexos, desigualdade de direitos e
desigualdade no valor de suas sensações psico-fisiológicas. A
moral dupla, característica do código burguês e do código
aristocrático, envenenou durante séculos a psicologia de homens
e mulheres e tomou muito mais difícil livrar-se de sua influência
venenosa do que das ideias referentes à propriedade de um
esposo sobre o outro, herdadas da ideologia burguesa. A
concepção de desigualdade entre os sexos, até no domínio psico-
fisiológico, obriga à aplicação constante de medidas diversas para
atos idênticos, segundo o sexo que os haja realizado. Um homem
de ideias avançadas no campo burguês, que soube desde algum
tempo superar as perspectivas do código da moral em uso, será
incapaz de subtrair-se à influência do meio ambiente e emitirá um
juízo completamente distinto, segundo se trate do homem ou da
mulher. Basta um exemplo vulgar: imaginemos que um
intelectual burguês, um cientista, um político, um homem de
atividades sociais, ou seja, uma personalidade, se enamore de sua

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cozinheira (fato que, aliás, se dá com bastante frequência) e
chegue, inclusive, a casar-se com ela. Modificará a sociedade
burguesa por este fato sua conduta em relação à personalidade
desse homem? Porá em questão sua personalidade? Duvidará de
suas qualidades morais? Naturalmente, não. Agora vejamos outro
exemplo: uma mulher pertencente à sociedade burguesa, uma
mulher respeitável, considerada, uma professora, médica ou
escritora; uma mulher, em suma, com personalidade, se enamora
de um criado e chega ao clímax do escândalo, consolidando esta
questão com um matrimônio legal. Qual será a atitude da
sociedade burguesa em relação a esta pessoa até agora
respeitada? A sociedade, naturalmente, a mortificará com seu
desprezo. Mas, será muito mais terrível se seu marido, o criado,
possui uma bela fisionomia e outros atrativos de caráter físico.
Nossa hipócrita sociedade burguesa julgará sua escolha da
seguinte forma: até onde desceu essa mulher?

A sociedade burguesa não pode perdoar a mulher que se


atreve a dar à escolha do marido um caráter individual. Segundo a
tradição herdada dos costumes de casta, a sociedade pretende
que a mulher continue levando em conta, no momento de
entregar-se, uma série de considerações de graus e hierarquias
sociais, a respeito do meio familiar e dos interesses da família. A
sociedade burguesa não pode considerar a mulher independente
da célula da família; é-lhe completamente impossível apreciá-la
como personalidade fora do círculo estreito das virtudes e
deveres familiares.

18 | Alexandra Kollontai
A sociedade contemporânea vai muito mais longe que a
ordem antiga na tutela que exerce sobre a mulher. Não só lhe
prescreve casar-se unicamente com homens dignos dela, como
lhe proíbe, inclusive, que chegue a amar um ser que lhe é
socialmente inferior. Estamos acostumados a ver como homens,
de nível moral e intelectual muito elevado, escolhem para
companheira de vida uma mulher insignificante e vazia, sem
nenhum valor comparado ao valor do esposo. Apreciamos este
fato como completamente normal e que, portanto, não merece
sequer nossa consideração. Tudo que pode suceder é que os
amigos “lamentem que Ivan Ivanitch tenha se casado com uma
mulher insuportável”. O caso varia tratando-se de uma mulher.
Então, nossa indignação não tem limites e a expressamos com
frases como a seguinte: “Como é possível que uma mulher tão
inteligente como Maria Petrovna possa amar uma nulidade assim!
Teremos que pôr em dúvida sua inteligência. ”

Que determina essa maneira diferente de julgar as coisas? A


que princípio obedece uma apreciação tão contraditória? Essa
diversidade de critérios tem origem na ideia da desigualdade
entre os sexos, ideia que tem sido inculcada na humanidade
durante séculos e séculos e que acabou por apoderar-se de nossa
mentalidade, organicamente. Estamos acostumados a valorizar a
mulher, não como personalidade, com qualidades e defeitos
individuais, independentemente de suas sensações psico-
fisiológicas. Para nós, a mulher só tem valor como acessório do
homem. O homem, marido ou amante, projeta sobre a mulher
sua luz; é a ele e não a ela que tomamos em consideração como o
verdadeiro elemento determinante da estrutura espiritual e

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moral da mulher. Em troca, quando valorizamos a personalidade
do homem, fazemos por antecipação uma total abstração de seus
atos no que diz respeito às relações sexuais.

A personalidade da mulher, pelo contrário, valoriza-se em


relação à sua vida sexual. Este modo de apreciar o valor de uma
personalidade feminina deriva do papel que representou a
mulher durante séculos. A revisão de valores, neste domínio
essencial, só se faz, ou melhor dizendo, só se indica, de modo
gradual. A atenuação dessas falsas e hipócritas concepções só se
realizará com a transformação do papel econômico da mulher na
sociedade, com sua entrada nas fileiras do trabalho.

Os três fatores fundamentais que deformam a psicologia


humana são os seguintes: o egocentrismo extremado, a ideia do
direito de propriedade dos esposos entre si e o conceito da
desigualdade entre os sexos no aspecto psicológico e físico. Esses
três fatores são os que travam o caminho que conduz à solução
do problema sexual. A humanidade não encontrará solução para
este problema até que haja acumulado em sua psicologia
suficientes reservas de sensações depuradas, até que se haja
apoderado de sua alma o potencial do amor, até que o conceito
da liberdade no matrimônio e na união livre seja um fato
consolidado, em suma, até que o princípio da camaradagem haja
triunfado sobre os conceitos tradicionais de desigualdade e de
subordinação nas relações entre os sexos. Sem uma reconstrução
total e fundamental da psicologia humana é insolúvel o problema
sexual.

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Mas, não será essa condição prévia uma utopia desprovida
de base, utopia na qual os idealistas sonhadores baseiam suas
considerações ingênuas? Tentemos aumentar o potencial de
amor da humanidade. Acaso os sábios de todos os povos, desde
Buda e Confúcio até Cristo, não se entregaram desde tempos
remotos a essa tarefa?

Entretanto, há alguém que creia que o potencial do amor


aumentou na humanidade? Reduzir a questão da crise sexual a
utopias desse tipo, por muito bem-intencionadas que sejam, não
significará praticamente um reconhecimento de impotência e
uma renúncia à busca de soluções possíveis?

Vejamos se isto é certo. A reeducação fundamental do ser


humano no domínio das relações sexuais não é algo impossível de
se conseguir. A reeducação é possível porque não é algo que
esteja em contraposição com a vida real. Precisamente, nos
momentos atuais, observamos como se inicia um poderoso
deslocamento social e econômico, suficiente para engendrar
novas bases de vida no campo dos sentimentos e que, pelas
condições que surgiram, estão de acordo com as exigências
assinaladas acima.

Na sociedade atual avança um novo grupo social que tenta


ocupar o primeiro posto e deixar de lado a burguesia, com sua
ideologia de classe e seu código de moral sexual individualista.
Esta classe ascendente, de vanguarda, leva necessariamente em
seu seio os germens de novas relações entre os sexos, relações
que, forçosamente, estarão ligadas a seus objetivos sociais de
classe.

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A complexa evolução das relações econômico-sociais, que se
verifica diante de nossos olhos, que transtorna todas as nossas
concepções sobre o papel da mulher na vida sexual e destrói os
fundamentos da moral sexual burguesa, traz consigo dois fatos
que, à primeira vista, parecem contraditórios. Por um lado,
observamos os esforços infatigáveis da humanidade para adaptar-
se às novas condições da economia social transformada, esforços
que tendem ou a conservar as formas antigas, dando-lhe um
novo conteúdo (manutenção da forma exterior do matrimônio
indissolúvel e monógamo, mas ao mesmo tempo, o
reconhecimento de fato da liberdade dos esposos), ou ao
contrário a aceitação de novas formas que tragam em seu
interior, ao mesmo tempo, todos os elementos do código moral
do matrimônio burguês (a união livre na qual o direito de
propriedade dos dois esposos unidos livremente ultrapassa os
limites do direito de propriedade do matrimônio legal). Por outro
lado, não podemos deixar de assinalar o aparecimento, vagaroso,
porém invencível, de novas formas de união entre os sexos.
Novas, não tanto pela forma, como pelo caráter que anima os
seus preceitos.

A humanidade sonda com inquietação os novos ideais. Mas,


basta examiná-los um pouco, detalhadamente, para neles
reconhecer, apesar de seus limites não estarem suficientemente
demarcados, os traços característicos, pelos quais se unem as
tarefas do proletariado, classe social incumbida de se apoderar da
fortaleza do futuro. Aquele que quer encontrar, no labirinto das
normas sexuais contraditórias, os germens de relações futuras
entre os sexos, mais sadias e que prometam libertar a

22 | Alexandra Kollontai
humanidade da crise sexual, tem, necessariamente, que
abandonar os bairros onde habitam as elites, com sua refinada
psicologia individualista, e olhar as casas amontoadas dos
operários, nas quais, em meio à obscuridade e, ao horror gerados
pelo capitalismo, surgem, apesar de tudo, fontes que vivificam o
amor e abrem caminho a um novo tipo de entendimento entre
homens e mulheres.

Entre a classe operária, sob a pressão de duras condições


econômicas e o jugo implacável da exploração capitalista,
observa-se o duplo processo a que nos referimos. A influência
destruidora do capitalismo, que aniquila todos os fundamentos
da família operária, obriga o proletariado a adaptar-se,
instintivamente, às condições do mundo que o cerca e provoca,
portanto, uma série de fatos referentes às relações entre os
sexos, análogos aos que se produzem, também, em outras
camadas da sociedade. Devido aos salários reduzidos, retarda-se,
contínua e inevitavelmente, a idade de contrair matrimônio do
operário. Há um quarto de século, um operário podia casar-se
dos vinte e dois aos vinte e cinco anos. Hoje em dia, o
proletariado não pode estabelecer um lar antes dos trinta anos,
aproximadamente. Além disso, quanto mais desenvolvidas estão
as necessidades culturais entre os operários, mais valor
concedem à possibilidade de seguir o ritmo na vida cultural, de ir
ao teatro, de assistir conferências, ler jornais, consagrar o tempo
que o trabalho não consome à luta sindical, à política, a uma
atividade pela qual sentem atração, à arte, à leitura, etc.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 23
Tudo isto contribui para que o operário contraia matrimônio
com maior idade. Entretanto as necessidades fisiológicas não
levam em conta o estado do bolso. São necessidades vitais das
quais não se pode prescindir e o operário solteiro, tanto quanto o
burguês solteiro, resolve seu problema na prostituição. Este fato
é um sintoma da adaptação passiva da classe operária às
condições desfavoráveis de existência. E, por causa do nível
bastante baixo dos salários, a família operária vê-se obrigada a
resolver o problema do nascimento dos filhos do mesmo modo
que as famílias burguesas.

A frequência dos infanticídios e o desenvolvimento da


prostituição são fatos que podem classificar-se dentro de uma só
ordem. Ambos são meios de adaptação passiva do operário à
espantosa realidade que o cerca. Mas, o que não se pode
esquecer é que nesse processo não há nada que caracterize,
propriamente, o proletariado. Essa adaptação passiva é própria
de todas as classes sociais envolvidas pela evolução mundial do
capitalismo.

A linha de diferenciação começa, precisamente, quando


entram em jogo os princípios ativos e criadores. A delimitação
começa onde já não se trata de uma adaptação, mas de uma
reação à realidade que oprime. Começa onde nascem e se
expressam novos ideais, onde surgem tímidas tentativas de
relações sexuais dotadas de um espírito novo. Ainda mais:
devemos assinalar que o processo de reação se inicia,
unicamente, entre a classe operária.

24 | Alexandra Kollontai
Isto não quer dizer, de modo algum, que as outras classes e
camadas da sociedade, principalmente a dos intelectuais
burgueses que, pelas condições de sua existência social, se
encontra mais próxima da classe operária, não se apoderem dos
elementos novos que o proletariado cria e desenvolve. A
burguesia, impulsionada pelo desejo instintivo de injetar vida
nova às suas formas agonizantes, e diante da impotência de suas
diversas formas de relações sexuais, aprende rapidamente novas
formas com a classe operária. Mas, desgraçadamente, nem os
ideais nem o código da moral sexual, elaborados gradativamente
pelo proletariado, correspondem à moral das exigências
burguesas de classe. Portanto, enquanto a moral sexual, nascida
das necessidades da classe operária, converte-se para ela num
instrumento novo da luta social, os modernismos de segunda
mão que dessa moral extrai a burguesia, não fazem mais do que
destruir, definitivamente, as bases de sua superioridade social.

A tentativa dos intelectuais burgueses de substituir o


matrimônio indissolúvel pelos laços mais livres, mais facilmente
desligáveis do matrimônio civil, atinge as bases da estabilidade
social da burguesia, bases que não podem ser outras senão a
família monogâmica baseada no conceito da propriedade.

Na classe operária, sucede tudo ao contrário. A maior


liberdade na união entre os sexos condiz, totalmente, com as suas
tarefas históricas fundamentais. E até podemos dizer que derivam
diretamente dessas tarefas. O mesmo sucede com a negação do
conceito de subordinação, no matrimônio, rompendo os últimos
laços artificiais da família burguesa. O contrário acontece, na

TEXTOS ESCOLHIDOS| 25
classe proletária. O fator de subordinação de um membro desta
classe social a um outro é o mesmo que o conceito de
proletariado. Não convém, de modo algum, aos interesses da
classe revolucionária atar um de seus membros, visto que cada
um de seus representantes, independentes diante de tudo, tem a
incumbência e o dever de servir aos interesses de sua classe e
não aos de uma célula familiar isolada. O dever do membro da
sociedade proletária é antes de tudo contribuir para o triunfo dos
interesses de sua classe, por exemplo, atuar nas greves e
participar em todo o momento da luta. A moral com que a classe
trabalhadora julga todos estes atos caracteriza com perfeita
clareza a base da nova moral.

Suponhamos que um reputado financista, movido


unicamente por seus interesses familiares, retire dos negócios
seu capital, num momento crítico para a empresa. Sua ação,
avaliada do ponto de vista da moral burguesa não pode ser mais
evidente, porque os interesses da família devem estar em
primeiro lugar. Comparemos agora este ato com a atitude dos
operários diante do fura-greves, que retorna ao trabalho durante
o conflito, para que sua família não passe fome. Os interesses da
classe figuram em primeiro lugar, neste exemplo. Referimo-nos
agora a um marido burguês que conseguiu, por amor e devoção à
família, manter afastada a mulher de seus interesses, à exceção
dos deveres de dona de casa e de mulher dedicada
completamente aos cuidados dos filhos. O julgamento da
sociedade burguesa será: um marido ideal que soube criar uma
família ideal. Mas, qual seria a atitude dos operários para um
membro consciente de sua classe que tentasse manter sua

26 | Alexandra Kollontai
mulher afastada da luta social? A moral da classe exige, a custo
inclusive da felicidade individual, a custo da família, a participação
da mulher na luta pela vida que transcorre fora dos muros de seu
lar. Manter a mulher em casa, colocar em primeiro lugar os
interesses familiares, propagar a ideia dos direitos de propriedade
absoluta de um esposo sobre sua mulher, são atos que violam o
princípio fundamental da ideologia da classe operária, que
destroem a solidariedade e o companheirismo, que rompem a
união de todo o proletariado. O conceito de posse de uma
personalidade sobre a outra, a ideia de subordinação e de
desigualdade dos membros de uma só e mesma classe, são
conceitos que contrariam a essência do conceito de
camaradagem, que é o princípio mais fundamental do
proletariado. Este princípio básico da ideologia da classe
ascendente é o que dá colorido e determina o novo código em
formação da moral sexual do proletário, pelo qual se transforma a
psicologia da humanidade, chegando a adquirir uma acumulação
de sentimento de solidariedade e de liberdade, ao invés do
conceito de propriedade: uma acumulação de companheirismo
ao invés dos conceitos de desigualdade e de subordinação.

Toda classe ascendente, nascida como consequência de uma


cultura material distinta daquela que a antecedeu no grau
anterior da evolução econômica, enriquece toda a humanidade
com uma nova ideologia que lhe é característica. Esta afirmativa
corresponde a uma velha verdade. O código da moral sexual
constitui parte integrante da nova ideologia. Portanto, basta
pronunciar as expressões ética proletária e moral proletária, para
escapar da trivial argumentação: a moral sexual proletária não é

TEXTOS ESCOLHIDOS| 27
no fundo mais do que uma superestrutura. Enquanto não se
experimenta a total transformação da base econômica, não pode
haver lugar para ela. Como se uma ideologia, seja qual for o seu
gênero, não se formasse até que se produzisse a transformação
das relações econômico-sociais necessárias para assegurar o
domínio da classe que a gerou! A experiência da história ensina
que a ideologia de um grupo social e, consequentemente, a moral
sexual se elaboram durante o próprio processo da luta contra as
forças sociais que se lhe opõem.

A classe revolucionária só pode fortalecer suas posições


sociais com a ajuda de novos valores espirituais tirados de seu
próprio seio e que correspondam totalmente às suas tarefas de
força em ascensão. Só mediante novas normas e ideais pode esta
classe arrebatar o poder dos grupos sociais opostos.

A tarefa que corresponde, portanto, aos ideólogos da classe


operária é buscar o critério moral fundamental, produto dos
interesses específicos da classe operária, e harmonizar com este
critério as nascentes normas sexuais.

Já é hora de compreender que, unicamente depois de haver


ensaiado o processo criador que se realiza mais embaixo, nas
profundas camadas sociais, processo que engendra necessidades
novas, novos ideais e formas, será possível visualizar o caminho,
no caos contraditório das relações sexuais e desemaranhar a
embaraçada meada do problema sexual.

Devemos recordar que o código da moral sexual, em


harmonia com as tarefas fundamentais da classe, pode converter-

28 | Alexandra Kollontai
se em poderoso instrumento, que reforce a posição de combate
da classe revolucionária. Por que não utilizar este instrumento no
interesse da classe operária, em sua luta para o estabelecimento
do regime comunista e, por sua vez, também, estabelecer
relações novas entre os sexos, que sejam mais perfeitas e felizes?

TEXTOS ESCOLHIDOS| 29
O DIA DA MULHER
1913

Fonte:Primeira Linha em Rede.

30 | Alexandra Kollontai
O quê é o dia da Mulher? É realmente necessário? Será que
é umha concessom às mulheres da classe burguesa, às feministas
e sufragistas? Será que é nocivo para a unidade do movimento
operário? Estas questons ainda se escuitam na Rússia, embora já
nom no estrangeiro. A vida mesma deu umha resposta clara e
eloqüente a tais perguntas.

O Dia da Mulher é um elo na longa e sólida cadeia da mulher


no movimento operário. O exército organizado de mulheres
trabalhadoras cresce cada dia. Há vinte anos, as organizaçons
operárias nom tinham mais do que grupos dispersos de mulheres
nas bases dos partidos operários... Agora os sindicatos ingleses
tenhem mais de 292.000 mulheres sindicadas; na Alemanha som
à roda de 200.000 sindicadas e 150.000 no partido operário, na
Áustria há 47.000 nos sindicatos e 20.000 no partido. Em toda as
parte, em Itália, na Hungria, na Dinamarca, na Suécia, na Noruega
e na Suíça, as mulheres da classe operária estám a organizar-se a
si próprias. O exército de mulheres socialistas tem perto de um
milhom de membros. Umha força poderosa! Umha força com a
qual os poderes do mundo devem contar quando se pom sobre a
mesa o tema do custo da vida, a segurança da maternidade, o
trabalho infantil ou a legislaçom para proteger os trabalhadores.

Houvo um tempo em que os homens trabalhadores


pensavam que deveriam carregar eles sós sobre os seus ombros o
peso da luita contra o capital, pensavam que eles sós deviam
enfrentar-se ao "velho mundo", sem o apoio das suas
companheiras. Porém, como as mulheres da classe trabalhadora
vam entrar nas fileiras de aqueles que vendem o seu trabalho em

TEXTOS ESCOLHIDOS| 31
troca de um salário, forçadas a entrar no mercado laboral por
necessidade, porque o seu marido ou pai estava no desemprego,
os trabalhadores vam começar a reparar em que deixar atrás as
mulheres entre as fileiras dos "nom-conscientes" era danar a sua
causa e evitar que avançasse. Que nível de consciência posui
umha mulher que senta no fogom, que nom tem direitos na
sociedade, no Estado ou na família? Ela nom tem ideias próprias!
Todo se fai segum ordena o seu pai ou marido...

O atraso e a falta de direitos sofridos polas mulheres, a sua


dependência e indiferença nom som beneficiosos para a classe
trabalhadora, e de facto som um mal directo para a luita operária.
Mas, como entrará a mulher nesta luita, como acordará?

A social-democracia estrangeira nom vai encontrar soluçom


correcta imediatamente. As organizaçons operárias estavam
abertas às mulheres, mas só umhas poucas entravam. Por quê?
Porque a classe trabalhadora, ao começo, nom vai dar por si que a
mulher trabalhadora é o membro mais degradado, tanto legal
quanto socialmente, da classe operária, que ela foi espancada,
intimidada, encurralada ao longo dos séculos, e que para
estimular a sua mente e o seu coraçom necessita umha
aproximaçom especial, palavras que ela, como mulher, entenda.
Os trabalhadores nom se vam dar conta imediatamente de que
neste mundo de falta de direitos e de exploraçom, a mulher está
oprimida nom só como trabalhadora, mas também como mae,
mulher. Porém, quando membros do partido socialista operário
entendêrom isto, figérom sua a luita pola defesa das
trabalhadoras como assalariadas, como maes, como mulheres.

32 | Alexandra Kollontai
Os socialistas em cada país começam a demandar umha
protecçom especial para o trabalho das mulheres, seguranças
para as maes e os seus filhos, direitos políticos para as mulheres e
a defesa dos seus interesses.

Quanto mais claramente o partido operário percebia esta


dicotomia mulher/trabalhadora, mais ansiosamente as mulheres
se uniam ao partido, mais apreciavam o rol do partido como o seu
verdadeiro defensor e mais decididamente sentiam que a classe
trabalhadora também luitava polas suas necessidades. As
mulheres trabalhadoras, organizadas e conscientes, figérom
muitíssimo para elucidar este objectivo. Agora, o peso do trabalho
para atrair as trabalhadoras ao movimento socialista reside nas
mesmas trabalhadoras. Os partidos em cada país tenhem os seus
comités de mulheres, com os seus secretariados e burós para a
mulher. Estes comités de mulheres trabalham na ainda grande
populaçom de mulheres nom conscientes, levantando a
consciência das trabalhadoreas em seu redor. Também examinam
as demandas e questons que afectam mais directamente à
mulher: protecçom e provisom para as maes grávidas ou com
filhos, legislaçom do trabalho feminimo, campanha contra a
prostituiçom e o trabalho infantil, a demanda de direitos políticos
para as mulheres, a campanha contra a suba do custo da vida...

Assim, como membros do partido, as mulheres


trabalhadoras luitam pola causa comum da classe, enquanto ao
mesmo tempo delineam e ponhem em questom aquelas
necessidades e as suas demandas que lhes dim respeito mais
directamente como mulheres, como donas de casa e como maes.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 33
O partido apoia estas demandas e luita por elas. Estas
necessidades das mulheres trabalhadoras som parte da causa dos
trabalhadores como classe.

No dia da mulher as mulheres organizadas manifestam-se


contra a sua falta de direitos. Mas alguns dim, por quê esta
separaçom das luitas das mulheres? Por quê há um dia da mulher,
panfletos especiais para trabalhadoras, conferências e comício?
Nom é, enfim, umha concessom às feministas e sufragistas
burguesas? Só aqueles que nom compreendem a diferença radical
entre o movimento das mulheres socialistas e as sufragistas
burguesas podem pensar desta maneira.

Qual o objectivo das feministas burguesas? Conseguir os


mesmos avanços, o mesmo poder, os mesmo direitos na
sociedade capitalista que possuem aogra os seus maridos, pais e
irmaos. Qual o objectivo das operárias socialistas? Abolir todo o
tipo de privilégios que derivem do nascimento ou da riqueza. À
mulher operária é-lhe indiferente se o seu patrom é um homem
ou umha mulher.

As feministas burguesas demandam a igualdade de direitos


sempre e em qualquer lugar. As mulheres trabalhadoras
respostam: demandamos direitos para todos os cidadaos, homens
e mulheres, mas nós nom só somos mulheres e trabalhadoras,
também somos maes. E como maes, como mulheres que teremos
filhos no futuro, demandamos umha atençom especial do
governo, protecçom especial do Estado e da sociedade.

34 | Alexandra Kollontai
As feministas burguesas estám luitando para conseguir
direitos políticos: também aqui os nossos caminhos se separam.
Para as mulheres burguesas, os direitos políticos som
simplesmente um meio para conseguir os seus objectivos mais
comodamente e com mais segurança neste mundo baseado na
exploraçom dos trabalhadores. Para as mulheres operárias, os
direitos políticos som um passo no caminho empedrado e difícil
que leva ao desejado reino do trabalho.

Os caminhos seguidos polas mulheres trabalhadoras e as


sufragistas burguesas separárom-se há tempo. Há umha grande
diferença entre os seus objectivos. Há também umha grande
contradiçom entre os interesses de umha mulher operária e as
donas proprietárias, entre a criada e a senhora... portanto, os
trabalhadores nom devem temer que haja um dia separado e
assinalado como o Dia da Mulher, nem que haja conferências
especiais e panfletos ou imprensa especial para as mulheres.

Cada distinçom especial para as mulheres no trabalho de


umha organizaçom operária é umha forma de elevar a consciência
das trabalhadoras e aproximá-las das fileiras de aqueles que
estám a luitar por um futuro melhor. O Dia da Mulher e o lento,
meticuloso trabalho feito para elevar a auto-consciência da
mulher trabalhadora estám servindo à causa, nom da divisom,
mas da uniom da classe trabalhadora.

Deixa um sentimento alegra de servir à causa comum da


classe trabalhadora e de luita simultaneamente pola
emancipaçom feminina inspire os trabalhadores a unirem-se à
celebraçom do Dia da Mulher.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 35
36 | Alexandra Kollontai
O COMUNISMO E A FAMÍLIA
1920

Tradução de:Carlos Henrique

TEXTOS ESCOLHIDOS| 37
A mulher já não depende do homem
Se manterá a família em um Estado comunista? Persistirá na
mesma forma atual? São estas questões que atormentam, nesse
momento, à mulher trabalhadora e a seus companheiros, os
homens.

Não devemos achar estranho que nesses últimos tempos


este problema perturbe a mente das mulheres trabalhadoras. A
vida muda continuamente diante de nossos olhos; antigos hábitos
e costumes desaparem pouco a pouco. Toda a existencia da
familia proletaria se modifica e se organiza de uma forma tão
nova, tão fora do comum, tão estranha, como nunca podemos
imaginar.

E uma das coisas que mais causa perplexidade na mulher,


nesses momentos, é a maneira como foi facilitado o divórcio.

De fato, em virtude do decreto do Comissario do Povo de 18


de dezembro de 1917, o divórcio deixou de ser um privilégio
acessível somente aos ricos; de agora em diante, a mulher
trabalhadora não terá que esperar meses e, inclusive, até anos
para que seja julgado seu pedido de separação matrimonial que
dê a ela o direito de separar-se de um marido alcólatra ou
violento, acostumado a espancá-la. De agora em diante poderá se
obter o divórcio amigavelmente dentro do período de uma ou
duas semanas, no máximo.

Porém, é precisamente esta facilidade para obter o divorcio,


fonte de tantas esperanças para as mulheres que são desgraçadas
em seu matrimônio, o que assusta outras mulheres,

38 | Alexandra Kollontai
particularmente aquelas que consideram o marido como o
"provedor" da família, como o único sustento da vida, a essas
mulheres que não compreendem que devem acostumar-se a
buscar e a encontrar esse sustento em outro lugar, não na pessoa
do homem, mas sim na pessoa da sociedade, do estado.

Da família gentílica aos nossos dias


Não há nenhuma razão para nos enganarmos: a família
normal dos tempos passados na qual o homem era tudo e a
mulher era nada -posto que não tinha vontade própria, nem
tempo do qual dispor livremente-, este tipo de família sofre
modificações dia a dia, e atualmente é quase uma coisa do
passado, o qual não deve nos assustar.

Seja por erro ou ignorância, estamos dispostos a crer que


tudo o que nos rodeia deve permanecer imutável, enquanto tudo
o mais muda. Sempre foi assim e sempre será. Esta afirmação é
um erro profundo.

Para nos dar conta de sua falsidade, não precisamos mais


que observar como viviam os povos do passado e, imediatamente,
vemos como tudo está sujeito à mudança e como não há
costumes, nem organizações políticas, nem moral que
permaneçam fixas e invioláveis.

Assim, portanto, a família tem mudado frequentemente de


forma nas diversas épocas da vida da humanidade.

Houve épocas em que a família foi completamente diferente


de como estamos acostumados a admití-la. Houve um tempo em

TEXTOS ESCOLHIDOS| 39
que a única forma de família que se considerava normal era a
chamada família genésica, aquela em que a cabeça da família era
a mãe-anciã, em torno da qual se agrupavam, na vida e no
trabalho comum, os filhos, netos e bisnetos.

A família patriarcal foi em outros tempos considerada


também como a única forma possível de famísilia, presidida por
um pai-amo, cuja vontade era lei para todos os demais membros
da família. Ainda em nossos tempos se pode encontrar nas aldeias
russas, famílias camponesas deste tipo. Na realidade, podemos
afirmar que nesses locais a moral e as leis que regem a vida
familiar são completamente diferentes das que regulamentam a
vida da família do operário da cidade. No campo existem todavía,
grande número de costumes que já não é possível encontrar na
família da cidade proletária.

O tipo de família, seus costumes, etc., varíam segundo as


raças. Há povos, como por exemplo os turcos, árabes e persas,
entre os quais a lei autoriza o marido a ter várias mulheres.
Existiram e todavía se encontram tribos que toleram o costume
contrário, quer dizer, que a mulher tenha vários maridos.

A moral a serviço do homem atual o autoriza exigir de las


jóvenes a virgindade até seu casamento legítimo. Porém, não
obstante, há tribos em que ocorreo o contrário: a mulher tem
orgulho de ter tido muitos amantes e enfeita braços e pernas com
braceletes que indicam o número...

Diversos costumes, que a nós nos surpreendem, hábitos que


podemos, inclusive, qualificar de imorais, outros povos o

40 | Alexandra Kollontai
praticam, como a sanção divina, enquanto que, por sua parte,
qualificam de "pecaminosos" muitos de nossos costumes e leis.

Portanto, não há nenhuma razão para que nos aterrorizemos


diante do fato de que a família sofra uma mudança, porque
gradualmente se descartem vestígios do passado vividos até
agora, nem porque se implantam novas relações entre o homem
e a mulher. Não temos mais que nos perguntar: "o que morreu
em nossos velho sistema familiar e que relações há entre o
homem trabalhador e a mulher trabalhadora, entre o campones e
a camponesa?"

Quais de seus respectivos direitos e deveres se encaixam


melhor nas condições de vida da nova Rússia? Tudo o que seja
compatível com o novo estado de coisas se manterá; o restante,
toda essa bagagem antiquada que herdamos da maldita época de
servidão e dominação, que era a característica dos latifundiários e
capitalistas, tudo isso terá que ser varrido juntamente com a
mesma classe exploradora, com esses inimigos do proletariado e
dos pobres.

O capitalismo destruiu a velha vida familiar


A família, em sua forma atual, não é mais que uma das tantas
herenças do passado. Sólidamente unida, compacta em si mesma
em seus comienzos, e indissolúvel -tal era o caráter do
matrimônio santifico pela cura-, a família era igualmente
necessária para cada um de seus membros. Porque, quem trataria
de criar, vestir e educar os filhos se não fosse a família? Quem os

TEXTOS ESCOLHIDOS| 41
guiaria na vida? Triste sorte a dos órfãos naqueles tempos; era o
pior destino que alguém poderia ter.

No tipo de família a que estamos acostumados, o marido é


quem ganha o sustento, que mantém a mulher e os filhos. A
mulher, por sua parte, se ocupa dos afazeres domésticos e de
criar os filhos.

Porém, desde há um séxulo, esta forma corrente de família


experimentou uma destruição progressiva em todos os países do
mundo, nos que o capitalismo domina, naqueles países em que o
número de fábricas cresce rápidamente, jutntamente com outras
empresas capitalistas que empregam trabalhadores.

Os costumes e a moral familiar se formam simultaneamente


como consequencia das condições gerais da vida que rodeia a
família. O que mais contribuiu para que se modificassem os
costumes familiares de uma maneira radical foi,
indiscutivelmente, a enorme expansão que adquiriu por toda
parte o trabalho assalariado da mulher. Anteriormente, o homem
era a única possibilidade de sustento da família. Porém, desde os
últimos cinquenta ou sessenta anos, temos visto na Rússia (com
anterioridade em outros países) que o regime capitalista obriga as
mulheres a buscar trabalho remunerado fora da família, fora de
casa.

Trinta milhões de mulheres suportam uma carga dupla


Como o salário do homem, a base do sustento da família, era
insuficiente para cobrir as necessidades da mesma, a mulher se
viu obrigada a procurar trabalho remunerado; a mãe teve que ir

42 | Alexandra Kollontai
também à porta da fábrica. Ano a ano, dia a dia, foi crescendo o
número de mulheres pertecentes à classe trabalhadora que
abandonavam suas casas para engrossar as fileiras das fábricas,
trabalhando como operárias, dependientas, oficinistas, lavadeiras
ou empregadas.

Segundo cálculos de antes da Grande Guerra, nos países da


Europa e América, chegava a sessenta milhões o número de
mulheres que ganhavam a vida com seu trabalho. Durante a
guerra esse número aumentou consideravelmente.

A imensa maioria dessas mulheres estavam casadas; fácil é


imaginarmos a vida familiar que podiam disfrutar. Que vida
familiar pode existir onde a esposa e mãe está fora de casa
durante oito horas diárias, dez, melhor dizendo (contando a
viagem de ia e volta)? A casa fica, necessariamente, descudiada;
os filhos crecem sem nenhum cuidado maternal, abandonados a
si mesmo em meio aos perigos da rual, na qual passam a maior
parte do tempo.

A mulher casada, a mãe que é operária, sua sangue para


cumprir com três tarefas que pesam ao mesmo tempo sobre ela:
dispor das horas necessárias para o trabalho, o mesmo que faz
seu marido, em alguma indústria ou estabelecimento comercial;
dedicar-se depois, da melhor forma possível, aos afazêres
domésticos e, por último, cuidar de seus filhos.

O capitalismo carregou para sobre os ombros da mulher


trabalhadora um que a esmaga; a converteu em operária, sem
aliviá-la de seus cuidados de dona de casa e mãe.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 43
Portanto, a mulher se esgota como consequência dessa tripla
e insuportável carga que com frequencia expressa com gritos de
dor e lágrimas.

Os cuidados e as preocupações sempre foram o destino da


mulher; porém sua vida nunca foi mais desgraçada, mais
desesperada que sob o sistema capitalista, logo quando a
indústria atravessa um período de máxima expansão.

Os trabalhadores aprendem a existir sem vida familiar


Quanto mais se extende o trabalho assalariado da mulher,
mais aumenta a decomposição da família. Que vida familiar pode
haver onde o homem e a mulher trabalham na fábrica, em seções
diferentes, se a mulher não dispõe nem sequer do tempo
necessário para para preparar uma comida razoavelmente boa
para seus filhos?! Que vida familiar pode ser a de uma família em
que o pai e a mãe passam fora de casa a maior parte das vinte e
quatro horas do dia, voltados a um duro trabalho que os impede
de dedicar uns poucos minutos a seus filhos?!

Em épocas anteriores, era completamente diferente. A mãe,


a dona de casa, permanecía em casa, se ocupava das tarefas
domésticas e de seus filhos, aos quais não deixava de observar,
sempre vigilante.

Hoje em dia, desde as primeiras horas da manhã, até soar a


sirene da fábrica, a mulher trabalhadora corre apressada para
chegar a seu trabalho; à noite, de novo, ao soar a sirene, volta
correndo à casa para preparar a sopa e cuidar dos afazêres
domésticos indispensáveis. Na manhã seguinte, depois de breves

44 | Alexandra Kollontai
horas de sono, começa novamente para a mulher sua pesada
carga. Não pode, portanto, sorpreender-nos, portanto, o fato de
que, devido a essas condições de vida, se desfaçam os laços
familiares e a família se dissolva cada dia mais. Pouco a pouco vai
desaparecendo tudo aquilo que convertia a família em um todo
sólid, tudo aquilo que constituía suas bases de apoio, a família é
cada vez menos necessária a seus próprios membros e ao estado.
As velhas formas familiares se convertem em um obstáculo.

Em que consistía a força da família nos tempos pasados? Em


primeiro lugar, no fato de que era o marido, o pai, quem
mantinha a família; em segundo lugar, o lar era algo igualmente
necessário a todos os membros da família e em terceiro e último
lugar, poque os filhos eram educados pelos pais.

O que fica atualmente disso tudo? O marido, como vimos,


deixou de ser o sustento único da família. A mulher, que vai
trabalhar, se converteu, nesse sentido, igual a seu marido. Fica
todavía, não obstante, a função da família de criar e manter seus
filhos enquanto são pequenos. Vejamos agora, na realidade, o
que sobra dessa obrigação.

O trabalho caseiro não é mais uma necessidade


Houve um tempo em que a mulher da classe pobre, tanto na
cidade como no campo, passava sua vida no seio da família. A
mulher não sabia nada do que acontecia pra lá da porta de sua
casa e é quase certo que tampouco desejava saber. Em
compensação, tinha dentro de sua casa as mais variadas

TEXTOS ESCOLHIDOS| 45
ocupações, todas úteis e necessárias, não só para a vida da família
em sí, mas também para a de todo o Estado.

A mulher fazia, é certo, tudo o que hoje faz qualquer mulher


operária ou camponesa. Conzinhava, lavava, limpava a casa e
repasaba a roupa da família. Porém não fazia isso sozinha. Tinha
uma série de obrigações que já não têm as mulheres de nosso
tempo: manipulava a lã e o linho, tecia as telas e os adornos e se
dedicava, na medida das possibilidades familiares, às tarefas de
conservação de carnes e demais alimentos; destilava as bebidas
da família e inclusive modelava velas para a casa

Quão diversas eram as tarefas da mulher nos tempos


passados! Assim passaram a vida nossas mães e avós. Ainda em
nossos dias, nas aldeias mais remotas, em pleno campo, sem
contato com as linhas de trem ou longe dos grandes rios, pode-se
encontrar pequenos núcloeos onde se conserva, todavía, sem
modificação alguma, este modo de vida dos bons tempos do
passado, em que a dona de casa realizava uma série de trabalhos
dos quais a mulher trabalhadora das grandes cidades ou das
regiões de grande população industrial não tem noção, desde há
muito tempo.

O trabalho industrial da mulher no lar


Nos tempos de nossas avós eram absolutamente necessários
e úteis os trabalhos domésticos da mulher, do que dependia o
bem-estar da família. Quanto mais de dedicava a dona de casa a
essas tarefas, melhor era a vida no lar, mais orden e abundância
se refletiam na casa. Até o próprio Estado podia se beneficiar

46 | Alexandra Kollontai
bastante das atividades da mulher enquanto dona de casa.
Porque, na realidade, a mulher de outros tempos não se limitava a
preparar purês para ela ou sua família, suas mãos produziam
muitos outros produtos de riqueza como telas, linho, manteiga,
etc., coisas que podiam ser levadas ao mercado e ser
consideradas como mercadorias, como coisas de valor.

É certo que nos tempos de nossas avós e bisavós o trabalho


não era avaliado em dinheiro. Porém não havia nenhum homem,
fosse camponês ou operário, que não buscasse como
companheira uma mulher com "mãos de ouro", frase, todavía,
proverbial entre o povo.

Porque só os recursos do homem, sem o trabalho doméstico


da mulher, não bastavam para manter o lar.

No que diz respeito aos bens do estado, aos interesses da


nação, coincidíam com os do marido; quanto mais trabalhadora
era a mulher no seio da família, mais produtos de todos tipos se
produzia: telas, couros, lã, cuso excedente podia ser vendido no
mercado das redondezas; consequentemente, a dona de casa
contribuía para aumentar em seu conjunto a prosperidade
econômica do país.

A mulher casada e a fábrica


O capitalismo modificou totalmente esse antigo modo de
vida. Tudo o que antes se produzia no seio da família, se fabrica
agora em grandes quantidades nas fábricas. A máquina substituiu
os ágeis dedos da dona de casa. Que mulher trabalharia hoje
modelando velas ou manipulando tecidos? Todos esses produtos

TEXTOS ESCOLHIDOS| 47
podem ser adquiridos na venda mais próxima. Antes, todas as
garotas tinham que aprender a tecer suas roupas. É possível
encontrar em nossos tempos uma jovem operária que faça suas
roupas? Em primeiro lugar, carece do tempo necessário para tal.
O tempo é dinheiro e não há ninguém que queira perdê-lo de
uma maneira improdutiva, quer dizer, sem obter nenhum
proveito. Atualmente, toda a mulher operária prefere comprar
suas roupas a perder tempo fazendo-as.

Poucas mulheres trabalhadoras, e só em casos isolados,


podemos encontrar hoje em dia que preparem as conservas para
a família quando a é que na venda de comestíveis ao lado de sua
casa pode comprá-las perfeitamente preparadas. Ainda no caso
de que o produto vendido no estabelecimento comercial seja de
uma qualidade inferior, ou que não seja tão bom como o que
possa fazer uma dona de casa em seu lar, a mulher trabalhadora
não tem tempo nem energias para dedicar-se a todas as
operações que um tipo de trabalho desse requer.

A realidade, portanto, é que a família contemporânea se


torna cada vez mais independente de todos aqueles trabalhos
domésticos sem cuja preocupação não poderia se poderia
conceber a vida familiar de nossas avós.

O que se produzia anteriormente no seio da família se


produz atualmente com o trabalho comum de homens e
mulheres trabalhadores nas fábricas.

48 | Alexandra Kollontai
Os afazêres individuais estão fadados a desaparecer
A família atualmente consume sem produzir. As tarefas
essencias da donda de caso se reduziram a quatro: limpeza (do
chão, dos móveis, etc.); cozinha (preparação d comida), lavar a
roupa e as vestimentas da família.

Esses trabalhos são esgotantes. Consomem todas as energias


e todo o tempo da mulher trabalhadora que, além do mais, tem
que trabalhar em uma fábrica.

É certo que os afazêres individuais de nossas avós


compreendiam muito mais operações, porém, não obstante,
estavam dotados de uma qualidade de que carece os trabalhos
domésticos da mulher operária de nossos dias; estes perdeream
sua qualidade de trabalhos úteis ao estado do ponto de vista da
economia nacional, porque são trabalhos com os que não se
criam novos valores. Com eles não se contribui para a
prosperidade do país.

É em vão que a mulher trabalhadora passe o dia desde a


manhã até a noite limpando sua casa, lavando e tingindo a roupa,
consumindo suas energias para conservar as roupas em ordem,
matando-se para preparar com seus modestos recursos a melhor
comida possível, porque quando termina o dia não ficará, apesar
de seus esforços, um resultado material de todo seu trabalho
diário; com suas mãos infatigáveis não haverá criado em todo o
dia nada que possa ser considerado como uma mercadoria no
mercado comercial. Mil anos que vivesse, tudo seguiria igual para
a mulher trabalhadora. Todas as manhãs havería tirar a poeira da

TEXTOS ESCOLHIDOS| 49
cômoda; o marido viria com vontade de jantar a noite e seus
filhos voltaríam sempre pra casa com os sapatos cheios de barro...
O trabalho da dona de casa tem a cada dia menos utilidade, é
cada vez mais improdutivo.

A aurora do trabalho caseiro coletivo


Os trabalhos domésticos em forma individual começaram a
desaparecer e dia a dia vão sendo substituídos pelo trabalho
caseiro coletivo e chegará um dia, mais cedo ou mais tarde, ao
ponto que a mulher trabalhadora não terá que ocupar-se de seu
próprio lar.

Na Sociedade Comunista de amanhã, esses trabalhos serão


realizados por uma categoria especial de mulheres trabalhadoras
dedicadas unicamente a essas ocupações.

As mulheres dos ricos, já faz muito tempo, vivem livres


dessas desagradáveis e fatigosas tarefas. Porque a mulher
trabalhadora tem que continuar com essa pesada carga?

Na Rússia Soviética, a vida da mulher trabalhadora deve estar


rodeada das mesmas comodidades, a mesma limpreza, a mesma
higiene, a mesma beleza que até agora constituía o ambiente das
mulheres pertencentes às classes endinheiradas. Em uma
sociedade comunista a mulher trabalhadora não terá que passar
suas escassas horas de descanso na cozinha, porque nela
existiríam restaurantes públicos e cozinhas centrais nos quais
poderá comer todo mundo.

50 | Alexandra Kollontai
Está crescendo o número de estabelecimentos desse tipo em
todos os países, inclusive os capitalistas. Na realidade, se pode
dizer que desde há meio século aumentam a cada dia em todas as
cidades da Europa; crescem como cogumelos depois da chuva de
outono. Porém, enquanto sob o sistema capitalista, somente
pessoas com bolsas bem cheias podem permitir-se ao gosto de
comer nos restaurantes, em uma cidade comunista estarão ao
alcande de todo mundo.

O mesmo se pode dizer da lavagem de roupa e demais


trabalhos caseiros. A mulher trabalhadora não terá que se sufocar
em um oceano de sujeira nem estragar a vista remendando e
costurando a roupa à noite. Não terá mais que levá-la, cada
semana, às lavanderias centrais para ir buscá-la depois lavada.
Desse modo, a mulher trabalhadora terá uma precopação a
menos.

A organização de locais especiais para passar e remendar a


roupa oferecerão à mulher trabalhadora a oportunidade de
dedicar-se às noites a leituras instrutivas, a distrações saudáveis,
ao invés de passá-las como até agora em tarefas esgotantes.

Por tanto, vemos que as quatro últimas tarefas domésticas


que todavía pesam sobre a mulher de nossos tempos
desaparecerão com o triunfo do comunismo.

Não terá do que reclamar a mlher operária, porque a


sociedade comunista haverá acabado com o jugo doméstido da
mulher para fazer sua vida mais alegre, mais rica, mais livre e mais
completa.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 51
A criação dos filhos no sistema capitalista
Que sobrará da família quando desaparecerem todos as
tarefas do trabalho caseiro individual? Todavía teremos que lidar
com o problema dos filhos. Porém, no que se refere a essa
questão, o Estados dos Trabalhadores acudirá em auxílio a família,
substituindo-a, gradualmente, a Sociedade tomará conta de todas
aquelas obrigações que antes recaíam sobre os pais.

Sob o sistema capitalista, a instrução dos filhos deixou de ser


uma obrigação dos pais. O filho aprende na escola. E quando o
filho entra na idade escolar, os pais respiram aliviados. Quando
chega esse momento, o desenvolvimento intelectual da criança
deixa de ser um assunto de sua incumbência.

Não obstante, com isso não terminavam todas as obrigações


da família a respeito da criança. Todavía subsistia a obrigação de
alimentar o filho, calçar-lhe, vestir-lhe, convertê-lo em operário
direito e honesto para que, com o tempo, pude-se sobreviver por
contra própria e ajudar seus pais quando estes se tornassem
velhos.

Porém o mais comum era, não obstante, que a família


operária não pudesse quase nunca cumprir inteiramente estas
obrigações relacionadas a seus filhos. O reduzido salário de que
depende a família operária não lhe permite nem se quer dar a
seus filhos o suficiente para comer, enquanto que o excessivo
trabalho que pesa sobre os pais lhes impede de dedicar à
educação da jovem geração toda a atenção que exige essa tarefa.
Se dava por certo que a família se ocupava da criação dos filhos.

52 | Alexandra Kollontai
Porém, o fazia na realidade? Mais justo sería dizer que é na rua
onde se criam os filhos do proletariado. Os filhos da classe
trabalhadora desconhecem as satisfações da vida familiar,
prazeres dos quais participamos nós com nossos pais.

Porém, além do mais, temos que levar em conta que a


redução dos salários, a insegurança no trabalho e até a fome
convertem, frequentemente, o garoto de 10 anos em um operário
independente. Desde este momento, tão logo o filho (seja menino
ou menina) começa a ganhar um salário, se considera dono de sua
pessoa até o ponto que as palavras e os conselhos de seus pais
deixam de causar-lhe a menor impressão, quer dizer, se debilita a
autoridade dos pais e termina a obediência.

A medida que vão desaparecendo um a um os trabalhos


domésticos da família, todas as obrigações de sustento e criação
dos filhos são desempenhadas pela sociedade ao invés de pelos
pais. Sob o sistema capitalista, os filhos eram, com demasiada
frequência, na família proletária, uma carga pesada e
insustentável.

Os filhos e o Estado Comunista


Nesse aspecto, a Sociedade Comunista também sairá em
auxílio dos pais. Na Rússia Soviética se empreendeu, graças aos
Comissariados de Educação Pública e Bem-estar Social, grandes
avanços. Se pode dizer que neste aspecto já se fez muitas coisas
para facilitar a tarefa da família de criar e manter seus filhos.

Já existem casas para as crianças em fase de amamentação,


creches, jardins de infância, colônias e lares para crianças,

TEXTOS ESCOLHIDOS| 53
enfermarías e postos de saúse para os doentes ou que precisam
de cuidado especial, restaurantes, refeitórios gratuitos para os
estudantes nas escolas, livros de estudo gratuitos, roupas e
calçado para as crianças dos estabelecimentos de ensino. Tudo
isso não demonstra suficientemente que a criança sai do marco
estreito da família, passando o peso de sua criação e educalçao
dos pais à coletividade?

Os cuidados dos pais a respeito dos filhos podem classificar-


se em três grupos: 1º, cuidados que os filhos precisam
imprescindivelmente nos primeiros tempos de sua vida; 2º, os
cuidados que exige a criação do filho, e 3º, os cuidados que exige
a educação do filho.

No que diz respeito à instrução dos filhos, em escolas


primárias, institutos e universidades, já se converteu em uma
obrigação do estado, inclusive na sociedade capitalista.

Por outro lado, as ocupações da classe trabalhadora, as


condições de vida, obrigam, inclusive na sociedade capitalista, a
criação de locais de juego, creches, asilos, etc. Quanto mais
consciência tenha a classe trabalhadora de seus direitos, quanto
melhor estiverem organizados em qualquer estado específico,
tanto mais interesse terá a sociedade no problema de aliviar a
família do cuidado dos filhos.

Porém a sociedade burguesa tem medo de ir demasiado


longe no que diz respeito a considerar os interesses da classe
trabalhadora, e muito mais se contribui para a desintegração da
família.

54 | Alexandra Kollontai
Os capitalistas se dão conta, perfeitamente, de que o velho
tipo de família, em que a esposa é uma escrava e o homem o
responsável pelo sustento e bem-estar da família, de que uma
família desse tipo é a melhor arma para afogar os esforços do
proletariado pela sua libertação, para debilitar o espírito
revolucionário do homem e da mulher proletários. A preocupação
pela qual pode passar a sua família priva o operário de toda sua
firmeza, lhe obriga a transigir com o capital.-Que nos farão os
proletários quando seus filhos tiverem fome?

Contrariamente ao que acontece na sociedade capitalista


que não foi capaz de transformar a educação da juventude em
uma verdadeira função social, em uma obrea do Estado, a
Sociedade Comunista considerará como base real de suas leis e
costumes, como a primeira pedra do novo edifício, a educação
social da geração nascente.

Não será a família do passado, mesquinha e estreita, com


brigas entre os pais, com seus interesses exclusivistas para os
filhos a que moldará o homem da sociedade de amanhã.

O homem novo, de nossa nova sociedade, será modelado


pelas organizações socialistas, jardins infantis, residências,creches
para as crianças, etc, e muitas outras instituições desse tipos nas
que a criança passará a maior parte do dia e nas que educadores
inteligentes o convertirão em um comunista consciente da
magnitude dessa inviolável divisa: solidariedade, camaradagem,
ajuda múltua e devoção à vida coletiva.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 55
A sobrevivência da mãe assegurada
Vemos agora, uma vez que não se precisa atender à criação e
educação dos filhos, que é o que ficará das obrigações da família
com respeito a seus filhos, particularmente depois que haja sido
aliviada da maior parte dos cuidados materiais que trazem
consigo o nascimento de um filho, ou seja, à excepção dos
cuidados que exige um filho recém nascido quando todavía
necessita de atenção de sua mãe, enquanto aprende a andar,
agarrando-se às roupas de sua mãe. Nisso também o Estado
Comunista sai em auxílio da mãe trabalhadora. Já não existirá a
mãe oprimida com um bebê nos braços. O Estado dos
Trabalhadores se encarregará da obrigação de assegurar a
subsistência a todas as mães, estejam ou não legitimamente
casadas, desde que amamente seu filho; instalará por todas parte
casas de maternidade, organizará em todas as cidades e em todos
os povos creches e instituições semeçhantes para que a mulher
possa ser útil trabalhando para o Estado enquanto, ao mesmo
tempo, cumpre suas funções de mãe.

O matrimônio deixará de ser uma cadeia


As mães operárias não têm porque alarmarem-se. A
sociedade comunista não pretende separar os filhos dos pais, nem
arrancar o recem nascido do peito de sua mãe. Não existe a
menor intenção de recorrer à violência para destruir a família
como tal. Nada disso. Essas não são as aspirações da sociedade
comunista.

O que presenciamos hoje? Pois que se rompem os laços da


desgastada família. Esta, gradualmente, vai se libertando de todos

56 | Alexandra Kollontai
os trabalhos domésticos que anteriormente eram outros tantos
pilares que sustentavam a família como um todo social. Os
cuidados da limpeza, etc., da casa? Também parece que
demonstrou sua inutilidade. Os filhos? Os pais proletários já não
podem atender a seus cuidados; não podem assegurar nem sua
sobrevivência nem sua educação.

Esta é a situação real cujas consequências sofrem igualmente


os pais e os filhos.

Portanto, a Sociedade Comunista se aproximará do homem e


da mulher proletários para dizer-lhes:"Sois jovens e se amam".
Todos têm o direito à felicidade. Por isso devem viver vossa vida.
Não tenham medo do matrimônio, já não é mais uma cadeia para
o homem e a mulher da classe trabalhadora. E, sobretudo, não
tenham medo, sendo jovens e saudáveis, de dar a vosso país
novos operários, novos cidadãos. A sociedade dos trabalhadores
necessita de novas forças de trabalho; saúda a chegada de cada
recém-nascido ao mundo. Tão pouco temam pelo futuro de vosso
filho; ele não conhecerá a fome nem o frio. Não será desgraçado,
nem ficará abandonado a sua sorte como acontecía na sociedade
capitalista. Tão pronto ele chegue ao mundo, o Estado dos
trabalhadores, a Sociedade Comunista, assegurará ao filho e à
mãe alimentação e cuidados solícitos. A pátria comunista
alimentará, criará e educará o filho. Porém essa pátria não
tentará, de modo algum, arrancar o filho dos pais que queiram
participar na educação de seus pequenos. A Sociedade Comunista
tomará como todas as obrigações da educação do filho, porém
nunca despojará das alegrias paternais, das satisfações maternais

TEXTOS ESCOLHIDOS| 57
a aqueles que sejam capazes de apreciar e compreender essas
alegrias. Se pode, portanto, chamar isso de destruição da família
por violência ou separação a força da mãe e o filho?

A família como união de afetos e camaradagem


Há algo que não se pode negar, o fato de que há chegado a
hora do velho tipo de família. A culpa disso não é do comunismo:
é o resultado da mudança experimentada pelas condições de vida.
A família deixou de ser uma necessidade para o Estado como
ocorría no passado.

Todo o contrário resulta em algo pior que inútil, posto que


sem necessidade impede que as mulheres trabalhadoras possam
realizar um trabalho muito mais produtivo e muito mais
importante. Tão poucoé necessária a família aos seus membros,
posto que a tarefa de criar osfilhos, que antes lhe pertencia por
completo, passa cada vez mais às mãos da coletividade.

Sobre as ruínas da velha vida familiar, veremos ressurgir uma


nova forma de família que suporá relações completamente
diferentes entre o homem e a mulher, baseadas em uma união de
afetos e camaradagem, em uma união de pessoas iguais na
sociedade comunista, as duas livres, as duas independentes, as
duas operárias. Não mais "servidão" doméstica para a mulher!
Não mais desigualdade no seio da família!

A mulher, na Sociedade Comunista, não dependerá de seu


marido, seus robustos braços serão o que proporcionará a ela seu
sustento. Se acabará com a incerteza sobre a sorte dos filhos. O
Estado Comunista assumirá todas essas responsabilidades. O

58 | Alexandra Kollontai
matrimônio ficará purificado de todos seus elementos materiais,
de todos os cálculos de dinheiros que constituem a repugnante
mancha da vida familiar de nosso tempo. O matrimio se
transformará de agora em diante na união sublime de duas almas
que se amam, que se professem fé mútua. Uma união desse tipo
promete a todo operário, a toda operária, a mais completa
felicidade, o máximo de satisfação que pode caber a criaturas
consciente de si mesmas e da vida que a rodeia.

Esta união livre, forte no sentimento de camaradagem em


que está inspirada, em vez de escravidão conjugal do passado, é o
que a sociedade comunista de amanhã oferecerá a homens e
mulheres.

Uma vezes que tenham sido transformadas as condições de


trabalho, uma vez que tenha-se aumentado a segurança material
da mulher trabalhadora, uma que tenha desaparecido o
matrimônio tal como consagrava a Igreja - isso é, o chamado
matrimônio indissolúvel, que no fundo não era mais que uma
mera fraude-, uma vez que esse matrimônio seja substituído pela
união livre e honesta de homens e mulheres que se amam e são
camaradas, haverá começado a desaparecer outra calamidade
horrorosa que mancha a humanidade e cujo peso recai por inteiro
sobre a fome da mulher trabalhadora: a prostituição.

Se acabará para sempre a prostituição


Essa vergonha se deve ao sistema econômico hoje em vigor,
à existência da propriedade privada. Uma vez desaparecida a

TEXTOS ESCOLHIDOS| 59
propriedade privada, desaparecerá automaticamente o comércio
da mulher.

Portanto, a mulher trabalhadora deve deixar de se preocupar


com o fato de que a família tal como está constituída hoje está
fadada ao desaparecimento. Seria muito melhor saudar com
alegria a aurora de uma nova sociedade que liberará a mulher da
servidão doméstica, que aliviará o peso da maternidade para a
mulher, uma sociedade em que, finalmente, veremos desaparecer
a mais terrível das maldições que pesam sobre a mulher: a
prostituição.

A mulher, a quem convidamos a que lute pela grande causa


da liberação dos trabalhadores, precisa saber que no novo Estado
não haverá motivo algum para separações mesquinhas, como
ocorre agora.

"Esses são meus filhos. Eles são os únicos a quem devo toda
minha atenção maternal, todo meu afeto. esses são filhos teus;
são os filhos do vizinho. Não tenho nada a ver com eles."

Desde agora, a mãe operária que tenha plena consciência de


sua função social, se elevará ao extremo que chegará a não
estabelecer diferenças "os teus e os meus"; terá que recordar
sempre que de agora em diante não haverpa mais "nossos" filhos,
mas sim os do Estado Comunista, um bem comum a todos os
trabalhadores.

60 | Alexandra Kollontai
A igualdade social do homem e da mulher
O Estado dos Trabalhadores tem necessidade de uma nova
forma de relação entre os sexos. O carinho estreito e exclusivista
da mãe por seus filhos tem que ampliar-se até dar conta de todos
os filhos da grande família proletária.

Ao invés do matrimônio indissolúvel, baseado na servidão da


mulher, veremos nascer a união livre fortalecida pelo amor e o
respeito mútuo de dos membros do Estado Operário, iguais em
seus direitos e em suas obrigações.

Ao invés da família de tipo individual e egoísta, se levantará


uma grande família universal de trabalhadores, na qual todos eles,
homens e mulheres, serão antes de tudo trabalhadores e
camaradas. Esras serão as relações entre homens e mulheres na
Sociedade Comunista de amanhã. Estas novas relações
assegurarão à humanidade todos os gozos do chamado amor
livre, enobrecido por uma verdadeira igualdade social entre
companheiros, gozos que são desconhecidos na sociedade
comercial capitalista.

Abram caminhos à existência de uma infância robusta e sana;


abram caminhos a uma juventude vigorosa que ame a vida com
todas suas alegrias, uma juventude livre em seus sentumentos e
em seus afetos!

Esta é a consigna da Sociedade Comunista. Em nome da


igualdade, da liberdade e do amor, fazemos um chamado a todas
as mulheres trabalhadoras, a todos homens trabalhadores,
mulheres camponesas e camponeses para que resolutamente e

TEXTOS ESCOLHIDOS| 61
cheios de fé se entreguem ao trabalho da reconstrução da
sociedade humana para fazê-la mais perfeita, mais justa e mais
capaz de assegurar ao indivíduo a felicidade a que tem direito.

A bandeira vermelha da revolução social que tremulará,


depois da Rússia, em outros países do mundo proclama que não
está longe o momento em que poderemos gozar do céu na terra,
ao que a humanidade aspira desde há séculos.

62 | Alexandra Kollontai
O TRABALHO FEMININO
NO DESENVOLVIMENTO DA ECONOMIA
1921

Tradução do inglês: Leonardo Gomes, a partir da versão em inglês


disponível no MIA

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença


Creative Commons.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 63
Em sua busca por novas formas de economia e novos modos
de vida que atendam aos interesses do proletariado, a república
soviética inevitavelmente cometeu uma série de erros, e por
diversas vezes teve de corrigir e mudar sua linha. Porém, na
esfera da criação socializada e da proteção da maternidade, a
república operária, desde seus primeiros meses de existência, tem
traçado o caminho correto para as mudanças futuras. E, nessa
esfera, uma revolução profunda e fundamental está em curso.
Neste país, onde a propriedade privada foi abolida e onde a
política é ditada pelo desejo de apurar o nível da economia geral,
agora é possível lidar com problemas que eram insolúveis sob o
sistema burguês.

A Rússia soviética abordou a questão da proteção da


maternidade, levando em conta a solução para o problema básico
da república operária – o desenvolvimento das forças produtivas
do país, o aumento e a restauração da produção. Para tanto, é
necessário, em primeiro lugar, voltar-se para as imensas forças
dedicadas ao trabalho improdutivo e utilizar com eficácia todos os
recursos disponíveis; e, em segundo lugar, garantir à república
operária um fluxo ininterrupto de novos trabalhadores no futuro,
ou seja, garantir o aumento normal da população.

Adotando-se esse ponto de vista, a questão da emancipação


das mulheres do fardo da maternidade soluciona-se por conta
própria. O Estado operário estabelece um princípio totalmente
novo: a criação das novas gerações não é uma questão familiar
privada, mas um interesse sócio-estatal. A proteção e salvaguarda
da maternidade não é apenas do interesse da própria mulher,

64 | Alexandra Kollontai
mas, principalmente, do interesse da economia nacional, ao longo
da transição para um sistema socialista: é necessário resgatar as
mulheres do gasto de energia improdutivo no ambiente familiar
para que tal energia seja utilizada de modo eficiente para o
benefício coletivo; é necessário proteger sua saúde a fim de
garantir à república operária um fluxo de trabalhadores saudáveis
no futuro. No Estado burguês, não é possível tratar a questão da
maternidade dessa forma: as contradições de classe e a falta de
unidade entre os interesses de economias privadas e da economia
nacional se tornam impedimentos. Em uma república operária,
por outro lado, na qual as economias individuais estão se
dissolvendo na economia geral e as classes estão se
desintegrando e desaparecendo, tal solução para a questão da
maternidade é uma exigência da vida, é necessária. A república
operária enxerga as mulheres, primeiramente, como membros da
força de trabalho, como unidades de trabalho vivo; a função da
maternidade é vista como algo de grande importância, como uma
função complementar que não é familiar e privada, mas social.

“A nossa política acerca da proteção da


maternidade e da infância”, como destaca
corretamente Vera Pavlovna Lebedeva, “é baseada
na imagem da mulher no processo produtivo, a
qual nós temos sempre em mente”.

Porém, para que a mulher tenha a possibilidade de participar


do trabalho produtivo sem violar sua natureza ou romper com a
maternidade, é necessário dar um segundo passo; é necessário
que o coletivo assuma todos os cuidados da maternidade que têm

TEXTOS ESCOLHIDOS| 65
pesado tão intensamente sobre as mulheres, reconhecendo,
assim, que a responsabilidade de criar os pequenos deixa de ser
uma função da família privada e passa a ser uma função social do
Estado. A maternidade passa a ser vista sob uma nova ótica. O
poder soviético vê a maternidade como uma responsabilidade
social. O poder soviético, com base nesse princípio, esboçou uma
série de medidas para remover o fardo da maternidade das costas
das mulheres e transferi-lo para as do Estado. O poder soviético
se responsabiliza pelo cuidado do bebê e pelo sustento material
da criança através do subdepartamento de Proteção da
Maternidade e da Infância (chefiado pela camarada V.P.
Lebedeva) e da seção do Narkompros (o Comissariado de
Educação) dedicada à criação socializada.

O princípio aceito pelo poder soviético no que diz respeito a


essa questão é de que a mãe deixe de carregar a cruz da
maternidade e experiencie apenas as alegrias provenientes do
contato da mulher com seu filho. Obviamente, esse princípio está
longe de ser realizado. Na prática, nós estamos muito aquém das
nossas intenções. Em nossas tentativas de construir novos modos
de vida e de viver, de emancipar a mulher trabalhadora das
obrigações familiares, nós sempre nos deparamos com os
mesmos obstáculos: nossa pobreza e a devastação da economia.
Contudo, uma base já foi construída, os caminhos já estão sendo
apontados; a nossa missão é seguir em frente com firmeza e
obstinação.

A república operária não se limita à distribuição de benefícios


e a prover financeiramente pela maternidade. Seu objetivo, acima

66 | Alexandra Kollontai
de tudo, é transformar as condições de vida a fim de tornar
absolutamente possível que uma mulher seja, ao mesmo tempo,
mãe e trabalhadora, além de preservar o bebê para o futuro da
república, cercando-o do cuidado e da atenção necessários. Desde
os primeiros meses de existência da ditadura do proletariado na
Rússia, o poder operário e camponês tem sido bem-sucedido em
sua missão de cobrir todo o país com uma rede de instituições
que visam à proteção da maternidade e à criação socializada das
crianças. A mãe e a criança se tornaram um objeto de atenção
especial na política soviética. Ao longo dos primeiros meses da
revolução, durante os quais ocupei o posto de Comissária do Povo
do Bem-Estar Social, eu considerava como minha missão
primordial estabelecer o rumo que a república operária deveria
tomar na esfera da proteção dos interesses da mulher enquanto
unidade de trabalho e enquanto mãe. Nesse período, a secretaria
dedicada à proteção da maternidade foi estabelecida e passou a
organizar modelos de “palácios da maternidade”. A partir de
então, a camarada Vera Pavlovna Lebedeva tem trabalhado com
competência e entusiasmo, e a causa da proteção da maternidade
floresceu e fincou raízes profundas. Desde o início de sua
gestação, a mulher trabalhadora recebe assistência do poder
soviético. Agora, há centros de atendimento à gestante e à
lactante por todos os cantos da Rússia. Nos tempos do czar,
existiam apenas seis centros de atendimento; agora, nós temos
cerca de 200 deles e 138 lactários.

Porém, é claro, o objetivo mais importante é libertar a mãe


trabalhadora do trabalho improdutivo envolvido em atender às
necessidades físicas da criança. Ser mãe não significa, de modo

TEXTOS ESCOLHIDOS| 67
algum, que a mulher deve trocar as fraldas, dar banho no bebê ou
sequer permanecer ao lado do berço. A obrigação social da mãe
é, acima de tudo, dar à luz um bebê saudável. A república
operária deve, portanto, oferecer à gestante as condições mais
favoráveis possíveis; e a mulher, por outro lado, deve obedecer a
todas as regras de higiene ao longo de sua gestação, lembrando-
se de que, durante esse período, ela não é mais dona de si, mas,
sim, está a serviço do coletivo, “produzindo” no interior de seu
próprio corpo uma nova unidade de trabalho, um novo membro
da república operária. A segunda obrigação da mulher é
amamentar seu bebê; apenas depois dessa etapa a mulher tem o
direito de dizer que cumpriu com suas obrigações. As outras
incumbências relativas aos cuidados dedicados à nova geração
podem ser desempenhadas pelo coletivo. Obviamente, o instinto
maternal é forte, e não há necessidade de suprimi-lo. Contudo,
por que limitar esse instinto apenas ao amor e à criação de seu
próprio filho? Por que não permitir que esse instinto com
potencial valioso para a república operária se desenvolva sem
restrições e alcance seu ponto mais alto, quando a mulher não só
cuida de seus próprios filhos, mas desenvolve uma afeição por
todas as crianças?

O slogan proposto pela república operária, “Não seja mãe


apenas do seu filho, mas de todos os filhos dos operários e
camponeses”, deve mostrar à mulher trabalhadora um novo
ponto de vista acerca da maternidade. Houve casos em que
algumas mães, ainda que comunistas, se recusaram a amamentar
bebês que sofriam de má nutrição apenas por não serem “seus”.
Tal comportamento é aceitável? A sociedade do futuro, imbuída

68 | Alexandra Kollontai
de seu sentimento e sua compreensão comunistas, ficará tão
chocada com tais atos egoístas e antissociais quanto nós ficamos
ao ler sobre a mulher da sociedade pré-histórica que amava seus
filhos, mas era capaz de comer crianças de outras tribos. Ou,
utilizando outro exemplo bastante frequente: a mãe que se
recusa a amamentar seu bebê para evitar o trabalho de cuidar
dele. E será que nós podemos permitir que o número de crianças
abandonadas na Rússia soviética continue crescendo na atual
proporção?

É verdade que a origem desses problemas está no fato de


que a questão da maternidade vem sendo discutida, mas ainda
não foi solucionada. Nesse difícil período de transição, centenas
de mulheres sofrem o desgaste causado pelo duplo fardo do
trabalho assalariado e da maternidade. Não há creches, lares de
crianças e lares de gestantes suficientes, e o auxílio financeiro não
é capaz de acompanhar o aumento dos preços no mercado livre.
Consequentemente, as mulheres trabalhadoras temem a
maternidade e abandonam seus filhos. O aumento do número de
crianças abandonadas, por outro lado, também é uma evidência
de que nem todas as mulheres da república operária entendem
que a maternidade não é uma questão privada, mas uma
obrigação social. Aqueles que trabalham com mulheres devem
discutir essa questão e explicar às operárias, às camponesas e às
funcionárias de escritório as obrigações da maternidade à luz da
nova situação da república operária. Ao mesmo tempo, é
fundamental acelerar o trabalho de desenvolvimento do sistema
de criação socializada e de proteção da maternidade. Quanto mais

TEXTOS ESCOLHIDOS| 69
fácil for para as mães combinarem trabalho e maternidade,
menor será o abandono de crianças.

Nós já destacamos que a maternidade não requer que a mãe


esteja permanentemente ao lado da criança ou que se dedique
exclusivamente à sua educação física e moral. A obrigação da mãe
para com seus filhos é garantir que seu crescimento e
desenvolvimento se dê em um ambiente saudável e normal. Na
sociedade burguesa, as crianças saudáveis e felizes sempre
pertencem às classes abastadas, e nunca às classes mais pobres.
Como isso se explica? Será que é porque as mães burguesas se
dedicaram exclusivamente à educação de seus filhos?
Absolutamente. As mamães burguesas alegremente entregavam
seus filhos aos cuidados de funcionárias contratadas: babás e
governantas. Apenas nas famílias pobres as mães carregam em
suas costas todas as dificuldades da maternidade; as crianças
ficam com as mães, porém morrem feito moscas. Não há
qualquer condição para uma criação normal: a mãe não tem
tempo, então as crianças se criam na rua. Toda mãe da classe
burguesa logo transfere pelo menos uma parte da criação para a
sociedade; ela manda seu filho para o jardim de infância, para a
escola ou para um acampamento de férias. Uma mãe sensata
sabe que a educação social é capaz de oferecer à criança algo que
o amor materno mais exclusivo não consegue. Nos prósperos
círculos da sociedade burguesa, onde é mais importante que a
criança seja educada de acordo com o espírito burguês, os pais
entregam seus filhos aos cuidados de babás, médicos e
pedagogos. Profissionais contratados assumem o papel da mãe na
supervisão dos cuidados físicos e da educação moral da criança, e

70 | Alexandra Kollontai
resta à mãe apenas um direito natural e inalienável: o direito de
dar à luz uma criança.

A república operária não toma as crianças dos braços de suas


mães à força, como versam os relatos fictícios dos países
burgueses sobre os horrores do “regime bolchevique”; pelo
contrário, a república operária procura criar instituições que
permitam que todas as mulheres, e não apenas as mulheres ricas,
tenham a oportunidade de criar seus filhos em um ambiente
saudável e feliz. Em vez de levar mães angustiadas a largarem
seus filhos sob os cuidados de uma babá contratada, a Rússia
soviética deseja que a operária e a camponesa possam trabalhar
tranquilamente, sabendo que seu filho estará seguro nas mãos
hábeis de uma creche, de um jardim de infância ou de um lar de
crianças.

A fim de proteger a mulher como reprodutora racial, a


república operária criou “lares de gestantes”, e vem tentando
abrir novas unidades onde quer que elas sejam mais necessárias.
Em 1921, tínhamos 135 lares. Esses lares não são apenas refúgios
para mulheres solteiras passando por um momento tão
complicado de suas vidas, mas também permitem que mulheres
casadas se afastem do lar, da família e das aflições triviais do
ambiente doméstico e voltem todas as suas atenções para a
recuperação de suas energias após o parto e para o cuidado do
bebê durante as primeiras e mais importantes semanas de sua
vida. Depois desse primeiro momento, a mãe não é mais essencial
para o bebê, mas, ao longo das primeiras semanas, ainda há, por
assim dizer, uma ligação fisiológica entre a mãe e o bebê, e,

TEXTOS ESCOLHIDOS| 71
durante esse período, a sua separação não é recomendável.
Vocês sabem bem, camaradas, com que satisfação as
trabalhadoras e até mesmo as esposas de importantes servidores
do Estado aproveitam sua estadia nos lares de gestantes, onde
serão atendidas com amor e terão paz. Nós não precisamos nos
valer de métodos de agitação para convencer as mulheres a
utilizarem os lares de gestantes. O nosso problema é a limitação
dos recursos materiais da Rússia; nós somos pobres, o que torna
difícil ampliar a nossa rede, a fim de cobrir toda a área da Rússia
operária com tais “postos de atendimento” para operárias e
camponesas. Infelizmente, ainda não há um só lar de gestantes
nas áreas rurais, e, de modo geral, nós fizemos apenas o mínimo
possível para atender às mães camponesas. Na verdade, tudo que
fizemos por elas foi organizar creches para o período de férias, o
que torna mais fácil para a mãe camponesa sair para trabalhar nas
plantações, sem que o seu bebê sofra. Ao longo de 1921, foram
inauguradas 689 creches desse tipo, atendendo a 32.180 crianças.
Para as mães que trabalham em fábricas e escritórios, foram
abertas creches nas fábricas e nas instituições, além daquelas
disponíveis a nível distrital e municipal. Não creio ser necessário
enfatizar a enorme importância dessas creches para as mães. O
problema é que nós não temos creches suficientes e não
podemos atender a um décimo da demanda.

A rede de organizações de educação social, que libertam as


mães do peso do trabalho árduo de cuidar de seus filhos, inclui,
além das creches e lares de crianças que atendem a órfãos e
crianças abandonadas até os três anos de idade, jardins de
infância para crianças de três a sete anos de idade, “lares” infantis

72 | Alexandra Kollontai
para crianças em idade escolar, clubes infantis e, finalmente,
casas-comunas infantis e colônias de trabalho para crianças. O
sistema de educação social também inclui refeições gratuitas para
as crianças em idades pré-escolar e escolar. Vera Velichkina
(Bonch-Bruyevich), revolucionária até o fim da vida, lutou com
unhas e dentes por essa medida, cuja introdução, como já é
sabido, nos ajudou bastante ao longo dos duros anos da guerra
civil e livrou muitas crianças proletárias da fome e da morte em
sua decorrência. A atenção do Estado às crianças fica também
evidente na distribuição de leite gratuito, de rações especiais para
os mais jovens e de roupas e sapatos para as crianças
necessitadas. Todos esses projetos estão longe de serem
completos; na prática, nós atendemos apenas a uma pequena
parcela da população. Contudo, até o momento, nós não
conseguimos libertar o casal de todas as dificuldades envolvidas
na criação dos filhos, não porque seguimos na direção errada,
mas porque nossa pobreza nos impede de cumprir tudo que foi
planejado pelo poder soviético. O rumo geral da política sobre a
maternidade está correto, mas nossa falta de recursos nos freia.
Até o momento, foi conduzido um número ainda modesto de
experimentos. Ainda assim, eles deram resultados e
revolucionaram a vida familiar, introduzindo mudanças
fundamentais nas relações entre os sexos. Essa é uma questão
que discutiremos em outra ocasião.

A missão do poder soviético é, portanto, proporcionar as


condições para que o trabalho da mulher não seja desperdiçado
em atividades não produtivas no lar e na criação dos filhos, mas
que seja aplicado na geração de novas riquezas para o Estado,

TEXTOS ESCOLHIDOS| 73
para o coletivo dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, é
importante preservar não apenas os interesses da mulher, mas
também a vida da criança, e isso se torna possível à medida que
se permite que a mulher combine trabalho e maternidade. O
poder soviético tenta criar uma condição na qual a mulher não
precise se prender a um homem a quem despreza apenas por não
ter para onde ir com seus filhos, na qual a mulher não precise
temer pela sua vida e pela vida de seu filho. Na república operária,
não são os filantropos, com sua caridade humilhante, mas os
operários e camponeses, companheiros na criação de uma nova
sociedade, que se esforçam para ajudar a mãe trabalhadora e se
empenham para amenizar o fardo da maternidade. A mulher que
suporta a provação de reconstruir a economia em pé de igualdade
com o homem, a mulher que lutou na guerra civil, tem o direito
de exigir, nesse momento tão importante de sua vida, no
momento em que ela presenteia a sociedade com um novo
membro, que a república operária, o coletivo, assuma a
responsabilidade de prover ao futuro do novo cidadão.

A Rússia tem, no momento, 524 unidades de educação social


e de proteção da maternidade. Porém, isso é insuficiente. A
natureza transitória da ditadura coloca as mulheres em uma
situação particularmente difícil: aquilo que era velho foi destruído,
mas o novo ainda não foi criado. O partido e o poder soviético, ao
longo desse período, devem dar cada vez mais atenção ao
problema da maternidade e aos métodos para solucioná-lo. Se as
soluções corretas forem encontradas, não apenas as mulheres
serão beneficiadas, mas também a economia nacional.

74 | Alexandra Kollontai
Eu gostaria de dizer algumas palavras sobre uma questão
que é intimamente ligada ao problema da maternidade – a
questão do aborto, e o posicionamento da Rússia soviética em
relação a ela. Em 20 de novembro de 1920, a república operária
sancionou uma lei que abolia as punições atreladas ao aborto.
Qual é a motivação por trás dessa nova atitude? A Rússia, afinal,
não sofre de superprodução de trabalho vivo, mas sim de sua
falta. A Rússia é esparsa, e não densamente povoada. Toda e
qualquer unidade de força de trabalho é preciosa. Por que, então,
estabelecemos que o aborto não é mais uma infração penal? A
hipocrisia e a intolerância são opostas à política proletária. O
aborto é um problema ligado à questão da maternidade e, do
mesmo modo, tem origem na posição insegura ocupada pelas
mulheres (não falamos aqui da classe burguesa, para a qual o
aborto tem outros motivos – a resistência a “dividir” uma
herança, a sofrer o mínimo de desconforto, a sair de forma ou
perder alguns meses da temporada, etc.).

O aborto existe e prospera em toda parte, e nenhuma lei ou


medida punitiva foi capaz de eliminá-lo. Sempre há um modo de
burlar a lei. Porém, as “soluções” clandestinas apenas debilitam as
mulheres; elas se tornam um peso sobre o governo operário, e a
força de trabalho é reduzida. Quando realizado em condições
médicas adequadas, o aborto é menos prejudicial e perigoso, e a
mulher pode voltar ao trabalho mais rapidamente. O poder
soviético entende que a necessidade do aborto somente
desaparecerá, por um lado, quando a Rússia tiver uma rede ampla
e bem desenvolvida de instituições de educação social e de
proteção da maternidade, e, por outro, quando as mulheres

TEXTOS ESCOLHIDOS| 75
compreenderem que dar à luz é uma obrigação social. O poder
soviético, portanto, permitiu que o aborto seja realizado
livremente e em condições clínicas.

Além do desenvolvimento em larga escala da proteção da


maternidade, a Rússia operária tem o dever de fortalecer nas
mulheres o instinto maternal, que é saudável, de fazer com que a
maternidade e o trabalho pelo coletivo sejam compatíveis e,
desse modo, eliminar a necessidade do aborto. Essa é a opinião
da república operária sobre a questão do aborto, que ainda pesa
intensamente sobre as mulheres nos países burgueses. Nesses
países, as mulheres são exauridas pelo duplo fardo da
maternidade e do trabalho assalariado em nome do capital. Na
Rússia soviética, a operária e a camponesa colaboram com o
Partido Comunista na construção de uma nova sociedade e no
desmantelamento do velho modo de vida, que escravizava as
mulheres. Assim que a mulher passa a ser vista essencialmente
como uma unidade de trabalho, encontra-se a solução para a
complexa questão da maternidade. Na sociedade burguesa, onde
o lar complementa o sistema econômico capitalista e onde a
propriedade privada cria uma base para o formato isolado da
família, não há saída para a mulher trabalhadora. E emancipação
feminina só poderá ser completa quando for estabelecida uma
profunda transformação no modo de vida; e os modos de vida só
mudarão com a profunda transformação da produção e com o
estabelecimento de uma economia comunista. A revolução na
vida cotidiana está acontecendo bem na nossa frente, e, nesse
processo, a libertação das mulheres vem sendo aplicada na
prática.

76 | Alexandra Kollontai
TEXTOS ESCOLHIDOS| 77
A FAMÍLIA E O ESTADO SOCIALISTA
Fonte: Partido da Causa Operária
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença
Creative Commons.

78 | Alexandra Kollontai
A família e o trabalho assalariado da mulher
Conservar-se-á a família no Estado comunista? Será esta a
mesma e com a mesma missão que tem hoje? Eis aqui uma
questão que atormenta a mulher da classe operária, e do mesmo
modo os seus companheiros, os homens. Nestes últimos tempos
este problema ocupa particularmente os espíritos no mundo dos
operários, e isto não deve surpreender-nos, já que a vida muda
ante os nossos olhos; vêem-se desaparecer pouco a pouco os
antigos costumes; toda a existência da família proletária organiza-
se de modo novo; de modo insólito e estranho, afirmam alguns.
Todavia, o que mais fez refletir a mulher nas presentes
contingências é que o divórcio foi facilitado na Rússia dos
Sovietes. Com efeito, em virtude do decreto dos comissários do
povo de 18 de dezembro de 1917, o divórcio deixou de ser um
luxo, apenas acessível aos ricos; para o futuro, a mulher operária
não deverá solicitar durante meses, ou durante anos, um
passaporte separado para reconquistar sua independência e
afastar-se de um marido bruto ou bêbado, que a enche de
pancada. Para o futuro, o divórcio far-se-á no espaço de uma
semana, ou, no máximo, duas semanas. Mas precisamente esta
facilidade de divórcio, tão abençoado pelas mulheres infelizes no
matrimônio, é o que espanta as demais, especialmente as que
estão habituadas a considerar o marido como seu único sustento
na vida, e que não compreendem que a mulher deve acostumar-
se a procurar e encontrar o seu sustento em outra parte, não na
pessoa do homem, mas na coletividade, no Estado.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 79
A família no passado
Não se deve dissimular a verdade: a família normal do
passado, em que o homem era tudo e a mulher não era nada - já
que ela não tinha nem vontade, nem dinheiro, nem tempo para si
mesma - esta família está se modificando dia a dia, e podemos
afirmar que já passou. Mas isto não deve espantar-nos. Seja por
erro, seja por ignorância, estamos dispostos a fingir que tudo à
nossa volta continua imóvel, quando na realidade tudo muda. "Foi
sempre assim e assim continuará". Não há nada tão errado como
este provérbio. Basta ler como viviam os homens no passado e
logo nos damos conta de que tudo está submetido a mudanças e
que não há nada fixo e invariável, quer se fale dos costumes, quer
das organizações políticas. E a família, nas diversas épocas da
humanidade, mudou várias vezes de forma, e no passado foi
muito diferente do que estamos habituados a ver hoje. Houve um
tempo em que se conhecia somente uma forma de família: a
família genética, quer dizer, aquela que tinha como chefe uma
velha mãe, à volta da qual se agrupavam os filhos, os netos, os
bisnetos para trabalharem juntos. Noutra época conheceu-se a
família patriarcal, presidida pelo pai-patrono, cuja vontade era lei
para os demais membros da família. Todavia, também nos nossos
dias se podem ver em algumas aldeias estas famílias camponesas.
Com efeito, ali os costumes e as leis da família não são os mesmos
que os do operário da cidade; nas aldeias afastadas dos grandes
centros ainda se encontram muitos costumes que já
desapareceram nas famílias do proletariado urbano. A forma da
família e seus usos variam segundo os povos. Há povos (por
exemplo os turcos, os árabes, os persas, etc.) onde a lei admite

80 | Alexandra Kollontai
que um só marido tenha várias mulheres. Houve, e há ainda,
povos onde o uso tolera absolutamente o contrário, quer dizer,
que uma mulher tenha vários maridos. E, ao contrário do costume
habitual do homem dos nossos dias, que exige que a jovem
permaneça virgem até o seu matrimônio legítimo, havia povos em
que a mulher se vangloriava de ter muitos amantes e usava nos
braços e nas pernas tantos anéis quantos amantes possuía...

A atual forma da família


Certos costumes que nos admirariam e que consideraríamos
como imorais estão consagrados noutros países, que, pelo
contrário, consideram como pecado as leis e os costumes que
regem o nosso país. Por isso, não nos devemos espantar com a
idéia de que a família está se modificando, ao vermos que
desaparecem pouco a pouco os vestígios do passado, que já se
tornam inúteis, e finalmente, porque entre o homem e a mulher
se estabelecem novas relações. Só devemos perguntar: o que
acabou nos costumes da nossa família e quais são, nas relações
entre o operário e a operária, entre o camponês e a camponesa,
os direitos e os deveres respectivos, que se harmonizariam
melhor com as condições de existência da Rússia nova, da Rússia
trabalhadora, isto é, da nossa atual Rússia soviética? Só se
conservará o que convier; todo o resto, todas as coisas velhas e
inúteis legadas pela maldita época da escravatura e dominação,
que foi a dos latifundiários e dos capitalistas, tudo isto será
varrido, junto com a classe dos proprietários, com esses inimigos
declarados do proletariado e até dos pobres...

TEXTOS ESCOLHIDOS| 81
A família, na sua forma atual, não é outra coisa senão uma
das ruínas do passado. Sólida, encerrada em si mesma e
indissolúvel, já que se considera como tal o matrimônio
abençoado pelo pope , era também necessário que assim fosse
para todos os membros. Se a família não tivesse existido, quem
teria alimentado, vestido e educado as crianças e quem as teria
guiado através da vida? A sorte do órfão era no passado a pior de
todas as sortes. Na família a que estamos acostumados, o marido
trabalha e mantém a mulher e os filhos, enquanto a mulher se
ocupa da casa e educa os filhos, de acordo com o que pensa desta
missão.

A decadência da família atual


Mas, desde o século passado esta forma tradicional da
família destrói-se progressivamente em todos os países onde
impera o capitalismo, onde aumenta rapidamente o número de
fábricas, de oficinas e de outras empresas capitalistas que fazem
trabalhar os operários. Os costumes e usos familiares
transformaram-se ao mesmo tempo que as condições gerais de
vida. O que em primeiro lugar contribuiu para transformar de
modo radical os usos da família, foi, sem dúvida, a difusão
universal do trabalho assalariado da mulher. No passado, só o
homem foi considerado como o amparo da família. Mas nos
últimos cinqüenta ou sessenta anos vê-se na Rússia (nos outros
países o mesmo fenômeno produziu-se um pouco antes) que o
regime capitalista obriga a mulher a procurar um trabalho
remunerado fora da família, fora da sua casa. O salário do
homem, o sustento, é já insuficiente para as necessidades da
família, e a mulher, por sua vez, viu-se obrigada a trabalhar para

82 | Alexandra Kollontai
ganhar dinheiro; também a mãe tinha que entrar pelas portas das
fábricas ou das oficinas. E ano após ano vê-se aumentar o número
de mulheres da classe operária que desertam da casa, quer para
engrossar as fileiras das operárias, nas fábricas, quer para servir
como jornaleiras, lavadeiras, domésticas, etc. Segundo um cálculo
efetuado antes da guerra mundial, contaram-se nos Estados da
Europa e da América sessentas milhões de mulheres que
ganhavam a vida com um trabalho independente. Durante a
guerra esta cifra aumentou consideravelmente. Quase metade
destas mulheres são casadas e por aqui se vê qual deve ser a vida
da família, quando a esposa e mãe vai para o trabalho e está fora
de casa durante oito horas por dia, que com o trajeto chegam a
dez. A casa está descuidada, necessariamente; os filhos crescem
descuidados pela vigilância materna, abandonados a si mesmos e
expostos aos perigos da rua, onde passam a maior parte do
tempo.

No capitalismo, um verdadeiro presídio


A mulher, a mãe operária, sua sangue para cumprir três
tarefas ao mesmo tempo: trabalhar durante oito horas num
estabelecimento, o mesmo que seu marido; depois, ocupar-se da
casa e, finalmente, tratar dos filhos. O capitalismo pôs nos ombros
da mulher uma carga que a esmaga; fez dela uma assalariada,
sem ter diminuído o seu trabalho de dona de casa e de mãe.
Assim, a mulher dobra-se sob o triplo peso insuportável, que lhe
arranca amiúde um grito de dor e que, às vezes, também lhe faz
verter lágrimas. O afã foi sempre a sorte da mulher, mas nunca
houve sorte de mulher mais terrível e desesperada que a de

TEXTOS ESCOLHIDOS| 83
milhões de operárias sob o julgo capitalista durante o
florescimento da grande indústria...

Quanto mais se generaliza o trabalho assalariado da mulher


tanto mais se decompõe a família. Que vida de família é aquela
em que o marido e a mulher trabalham fora de casa, em que a
mulher nem sequer tem tempo de preparar a comida dos seus!
Que vida de família é a que o pai e a mãe podem passar apenas
alguns momentos com seus filhos! Em outros tempos a vida da
família era muito diferente; a mãe, dona de casa, permanecia no
lar, ocupando-se dele, e não cessava de cuidar dos filhos. Hoje,
mal nasce o dia, ao primeiro apito da sirene da fábrica, a operária
corre para o trabalho; e, quando vem, à noite, de novo ao apito da
sirene, apressa-se em voltar para casa para preparar a comida da
família e fazer os trabalhos de casa mais urgentes. Depois de ter
dormido insuficientemente, volta no dia seguinte à sua jornada de
operária; a vida da operária casada é um verdadeiro presídio! Não
é de surpreender, por conseguinte, que em tais condições, a
família se desmembre e se decomponha cada vez mais. Vê-se
desaparecer pouco a pouco tudo o que antes fazia sólida a vida da
família e a colocava sobre bases estáveis. A família deixa de ser
uma necessidade, tanto para os membros que a compõem como
para o Estado. A antiga forma da família torna-se hoje um estorvo.

Que fazia tão forte a família no passado? Em primeiro lugar,


o fato de que o marido-pai mantinha a família; em segundo lugar,
que o lar comum era necessário para todos os membros da
família, e finalmente, a educação dos filhos por parte dos pais.
Que fica hoje de tudo isto? Dissemos já que o marido deixou de

84 | Alexandra Kollontai
ser o único amparo da família. Neste sentido, a operária é igual ao
homem; aprendeu a ganhar a vida para si mesma e até, às vezes,
para o marido e filhos. Fica a casa e a educação, assim como a
criação dos filhos de tenra idade.

TEXTOS ESCOLHIDOS| 85
MULHERES MILITANTES NOS DIAS DA GRANDE
REVOLUÇÃO DE OUTUBRO
Fonte:Partido da Causa Operária
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença
Creative Commons.

86 | Alexandra Kollontai
As mulheres que participaram na Grande Revolução de
Outubro – quem eram elas? Indivíduos isolados? Não, havia
multidões delas; dezenas, centenas e milhares de heroínas
anônimas que, marchando lado a lado com os operários e
camponeses sob a Bandeira Vermelha e a palavra-de-ordem dos
Sovietes, passou por cima das ruínas do czarismo rumo a um novo
futuro...

Se alguém olhar para o passado, poderá vê-las, essa massa


de heroínas anônimas que outubro encontrou vivendo nas
cidades famintas, em aldeias empobrecidas e saqueadas pela
guerra... O lenço em sua cabeça (muito raramente, até agora, um
lenço vermelho), uma saia gasta, uma jaqueta de inverno
remendada... Jovens e velhas, mulheres trabalhadoras e esposas
de soldados camponesas e donas-de-casa das cidades pobres.
Mais raramente, muito mais raramente nesses dias, secretárias e
mulheres profissionais, mulheres cultas e educadas. Mas havia
também mulheres da intelligentsia entre aqueles que carregavam
a Bandeira Vermelha à vitória de Outubro – professoras,
empregadas de escritório, jovens estudantes nas escolas e
universidades, médicas. Elas marchavam alegremente,
generosamente, cheias de determinação. Elas iam a qualquer
parte que fossem enviadas. Para a Guerra? Elas colocavam o
quepe de soldado e tornavam-se combatentes no Exército
Vermelho. Se elas portassem fitas vermelhas no braço, então
corriam para as estações de primeiros-socorros para ajudar o
Front Vermelho contra Kerenski na Gatchina. Trabalhavam nas
comunicações do exército. Trabalhavam felizes, convictas que

TEXTOS ESCOLHIDOS| 87
alguma coisa significativa estava acontecendo, e que nós somos
todos pequenas engrenagens na única classe revolucionária.

Nas aldeias, a mulher camponesa (seus maridos tinham sido


enviados para a Guerra) tomava a terra dos proprietários e
arrancava a aristocracia dos postos onde ela se alojou por séculos.

Quando alguém recorda os acontecimentos de Outubro, não


vê faces individuais, mas massas. Massas sem número, como
ondas de humanidade. Mas onde quer que olhem, vêem homens
– em comícios, assembléias, manifestações...

Ainda não tinham certeza do que exatamente eles queriam,


pelo que lutavam, mas sabiam uma coisa: não iriam continuar
suportando a guerra. Nem mesmo desejavam os proprietários de
terras e ricos… No ano de 1917, o grande oceano de humanidade
se levanta e se agita, e a maior parte desde oceano feita de
mulheres… Algum dia a historia escreverá sobre as proezas dessas
heroinas anônimas da revolução, que morreram na Guerra, foram
mortas pelos Brancos e amargaram incontáveis privações nos
primeiros anos seguintes a revolução, mas que continuou a
carregar nas costas o Estandarte Vermelho dos Poder Soviético e
do comunismo.

Isto é para aquelas heroínas anôminas, que morreram para


conquistar uma nova vida para a população trabalhadora durante
a Grande Revolução de Outubro, para aqueles a quem a nova
república agora se curva em reconhecimento assim como ao seu
povo jovem, alegre e entusiástico, começando a construir as
bases do socialismo.

88 | Alexandra Kollontai
Entretanto, fora deste mar de mulheres de lenços e toucas
surradas inevitavelmente emergem as figuras daquelas a quem os
historiadores devotarão atenção particular, quando, muitos anos
depois, eles escreverem sobre a Grande Revolução de Outubro e
seu líder, Lênin.

A primeira figura que emerge é a da fiel companheira de


Lênin, Nadezhda Konstantinovna Krupskaya, vestindo seu vestido
cinza liso e sempre se esforçando para permanecer em segundo
plano. Ela poderia passar desapercebida por uma assembléia e
colocar-se em embaixo de algum pilar, mas ele via e ouvia tudo,
observando tudo o que acontecia, então ela poderia mais tarde
fornecer um relato completo para Vladimir Ilich, adicionar seus
próprios hábeis comentários e expor uma idéia sensata,
apropriada e conveniente.

Nesses dias Nadezhda Konstantinovna não falou nas


numerosas e turbulentas assembléias nas quais as pessoas
giravam em torno da grande questão: os Sovietes conquistariam o
poder ou não? Mas ela trabalhou incansavelmente como braço
direito de Vladimir Ilich, ocasionalmente dando depoimentos e
relatando críticas nas reuniões do partido. Em momentos de
grande dificuldade e perigo, quando muitos camaradas firmes
perderam o ânimo e sucumbiram às dúvidas, Nadezhda
Konstantinovna permaneceu sempre a mesma, totalmene
convencida da justiça da causa e de sua vitória certa. Ela
transmitia inabalável confiança, e sua firmeza de espírito,
escondia uma rara modéstia, sempre contaminava com seu ânimo

TEXTOS ESCOLHIDOS| 89
todos aqueles que entravam em contato com a companheira do
grande líder da Revolução de Outubro.

Outra figura que se destaca – outra leal parceira de Vladimir


Ilich, uma camarada-em-armas durante os anos difíceis do
trabalho clandestino, secretária do Comitê Central do Partido,
Yelena Dmitriyevna Stassova. Inteligente, com uma rara precisão,
e uma excepcional capacidade para o trabalho, uma rara
habilidade para “apontar” as pessoas certas para o trabalho. Sua
altura, sua majestosa figura poderia ter sido a primeira no Soviete
no palácio Tavricheski, depois na causa de Kshesinskaya, e
finalmente Smolny. Nas suas mãos segurava um caderno de
anotações, enquanto em seu redor multidões de camaradas do
front, trabalhadores, guardas vermelhos, membros do partido e
dos Sovietes, buscando rapidamente, respostas claras ou ordens.

Stassova carregou a responsabilidade por muitos negócios


importantes, mas se um camarada demonstrava necessidade ou
angústia nesses dias tempestuosos, ela sempre podia auxiliar,
fornecendo explicações, respostas aparentemente rudes, mas ela
fazia o que estava ao seu alcance. Ela foi esmagada com trabalho,
e sempre estava a seu posto. Sempre em seu posto e, no entanto,
nunca empurrou para a linha de frente, nunca adiou. Ela não
gostava de ser o centro das atenções. Sua preocupação não era
com ela mesma, mas com a causa.

Para a nobre e estimada causa do comunismo, pela qual


Yelena Stassova experimentou o exílio e a detenção nas
penitenciárias do regime czarista, deixando-a com a saúde
prejudicada... Em nome da causa ela era firme como aço. Mas em

90 | Alexandra Kollontai
relação ao sofrimento de seus camaradas ela demonstrava a
sensibilidade e a receptividade que só se encontram em uma
mulher com um coração afetuoso e nobre.

Klavdia Nikolayeva era uma mulher trabalhadora de origem


muito humilde. Ela uniu-se aos bolcheviques já em 1908, nos anos
da reação, e suportou o exílio e a prisão... Em1917 ela retornou a
Leningrado e se tornou a organizadora da primeira revista para as
mulheres trabahadoras, Kommunistka. Ela ainda era jovem, cheia
de ânimo e ansiedade. Então ela segurava firmemente o
estandarte, e corajosamente declarava que as trabalhadoras,
esposas de soldados e camponesas precisavam ingressar no
partido. Ao trabalho, mulheres! Vamos defender os Sovietes e o
Comunismo!

Ela discursava em comícios, ainda nervosa e insegura de si,


mas já atraia as pessoas para segui-la. Ela era a única entre os que
carreavam no ombro todas as dificuldades envolvidas na
preparação do caminho a se seguir, disseminando o envolvimento
das mulheres na revolução, uma daquelas que lutou em duas
frentes – pelos Sovietes e o comunismo, e ao mesmo tempo para
a emancipação das mulheres. Os nomes Klavdia Nikolayeva e
Konkordia Samoilova, que morreram exercendo funções
revolucionárias em 1921 (vítimas da cólera), são
indissoluvelmente ligados aos primeiros e mais difíceis passos do
movimento das trabalhadoras, particularmente em Leningrado.
Konkordia Samoilova foi uma militante do partido de
incomparável abnegação, excelência, uma oradora metódica que
sabia ganhar os corações dos trabalhadores. Aqueles que

TEXTOS ESCOLHIDOS| 91
trabalhavam ao seu lado lembrarão por por muito tempo de
Konkordia Samoilova. Ela era simples nos costumes, simples na
aparência, exigente na execução das decisões, severa com ela
mesma e com os outros.

Particularmente notável é a gentil e encantadora figura de


Inessa Armand, que foi incumbida de um trabalho partidário
muito importante na preparação da Revolução de Outubro, e que
depois contribuiu com muitas idéias criativas para o trabalho
entre as mulheres. Com toda sua feminilidade e bondade nas
maneiras, Inessa Armand era inabalável em seus convicções e
capaz de defender aquilo que ela acreditava correto, nesmo
quando deparada com temíveis oponentes. Depois da revolução,
Inessa Armand se dedicou à organização do amplo movimento
das trabalhadoras, e a conferência foi sua criação.

Um imenso trabalho foi feito por Varvara Nikolayevna


Yakovleva durante os difíceis e decisivos da Revolução de Outubro
em Moscou. No terreno de batalha das barricadas ela mostrou a
determinação meritória de uma líder do quartel-general do
partido. Muitos camaradas disseram na ocasião que sua
determinação e coragem inabaláveis foi o que deu ânimo aos
vacilantes e inspirou aqueles que haviam perdido suas forças.
“Avante!” – para a vitória.

Assim que se recorda das mulheres que tomaram parte na


Grande Revolução de Outubro, mais e mais nomes e faces surgem
como mágica da memória. Poderíamos falhar ao honrar hoje a
memória de Vera Slutskaya, que trabalhou de modo abnegado na

92 | Alexandra Kollontai
preparação para a revolução e que foi morta pelos Cossacos no
primeiro front Vermelho próximo a Petrogrado?

Podemos nos esquecer de Yevgenia Bosh, com seu


temperamento inflamado, sempre pronta para a batalha? Ela
também morreu no trabalho revolucionário.

Podemos nos omitir de mencionar aqui dois nomes


intimamente ligados com a vida e a atividade de V. I. Lênin – suas
duas irmãs e companheiras em armas, Anna Ilyinichna Yelizarova
e Maria Ilyinichna Ulyanova?

…E a camarada Varya, das oficinas de linhas de trem em


Moscou, sempre animada, sempre inquieta? E Fyodorova,
trabalhadora têxtil de Leningrado, com seu rosto amável e
sorridente e seu destemos quando estava lutando nas barricadas?

É impossível listar todas elas, e quantas delas permanecem


desconhecidas? As heroínas da Revolução de Outubro formavam
todo um exército, e embora seus nomes estejam esqucidos, sua
abnegação vive em cada vitória daquela revolução, em todos os
ganhos e façanhas desfrutadas pelos trabalhadores da União
Soviética.

É logico e incontestável que, sem a participação das


mulheres, a Revolução de Outubro não traria a Bandeira
Vermelha da vitória. Glória às trabalhadoras que marcharam sob a
bandeira vermelha durante a Revolução de Outubro. Glória à
Revolução de Outubro que libertou as mulheres!

TEXTOS ESCOLHIDOS| 93

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