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Espírito Conservador – I
Conservadores do Brasil
Brasil, dezembro de 2016
Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos Vossos fiéis e acendei neles o
fogo do Vosso Amor.
Enviai, Senhor, o Vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da
terra.
Ó Deus, que instruístes os corações dos Vossos fiéis com a luz do Espírito
Santo, fazei que apreciemos retamente todas as coisas segundo este mesmo
Espírito e gozemos sempre de Sua consolação.
Por Cristo, Senhor nosso
Amém
EDITORIAL
Redescoberta
O brilhante escritor, ensaísta e jornalista britânico G. K. Chesterton
considerava a literatura fantástica não como uma forma de escapismo da
realidade mundana, mas sim, o resgate emocional das nossas primeiras
impressões infantis do mundo real e da forma como nos relacionamos com
esse sentimento.
Chesterton celebrava esses momentos primordiais plenos de
humanidade – quando para uma criança se maravilhar bastava o fato de ter
um pai e uma mãe –; momentos poderosos, inseridos num mundo onde tudo é
novo e inesperado, no qual a criança se sente acolhida e amada por sua
família, seu guia e referência durante essas descobertas iniciais. Um mundo
de deslumbramento e amparo, de maravilhas e amor.
“Uma coisa é descrever uma entrevista com uma górgona ou um grifo,
uma criatura que não existe; outra coisa é descobrir que o rinoceronte existe e
depois sentir prazer pelo fato de que ele parece um animal que não existe”[10].
O conto de fadas é um meio para recuperarmos centelhas desses
momentos perdidos de deslumbramento diante de um mundo inédito, quando,
em nossa inocência, deparamo-nos pela primeira vez com o céu, o mar, as
árvores, os pássaros.
Meu filho mais velho, ainda pequeno, tem fascínio por carros. Sua
expressão admirada diante de qualquer veículo – não importa se barato ou
caro, feio ou bonito, novo ou velho, sujo ou limpo – resgata minhas próprias
lembranças desse sentimento há muito esquecido, quando eu mesmo avistei
meu primeiro carro, na minha tenra infância.
Os contos de fadas carregam o potencial para causarem esse efeito. Suas
narrativas sobre um mundo mágico – o Reino Encantado – relembram-nos do
que já nos encantou um dia no mundo real, o assombroso que se tornou
mundano aos adultos que somos hoje.
A redescoberta de que o simples e o trivial podem ser mágicos é a maior
dádiva da literatura fantástica.
É do resgate dessas memórias e emoções esquecidas pelo leitor que
despontam a força simbólica e narrativa dos contos de fadas, recuperando a
criança que já fomos e as surpresas experimentadas no passado.
“Esses contos dizem que as maçãs eram douradas apenas para relembrar
o momento esquecido em que descobrimos que elas eram verdes. Fazem os
rios correr cheios de vinho só para que nos lembremos, por um momento
irrefletido, de que eles correm cheios de água”.[11]
Chesterton corretamente extrapola essa transcendência artística da
literatura a outras formas de expressão humana.
“Tudo o que chamamos de espírito, arte e êxtase significa apenas que
por um terrível instante nos lembramos de que esquecemos”.[12]
Nesse ponto, as teorias de Chesterton e Tolkien se encontram: os contos
de fadas falam de pessoas comuns diante de situações e cenários
surpreendentes, restaurando a dimensão humana em relação ao novo e ao
inesperado.
“(...) as pessoas comuns têm uma vida muito mais instigante; enquanto
as pessoas esquisitas sempre estão se queixando da chatice da vida. É por isso
também que os novos romances desaparecem tão rapidamente, ao passo que
os velhos contos de fada duram para sempre. Os velhos contos de fada fazem
do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes”.[13]
Mais do que isso, Chesterton e Tolkien viam o homem comum como a
razão de ser da narrativa fantástica.
“Pode-se criar uma história a partir de um herói entre dragões, mas não
a partir de um dragão entre dragões. O conto de fadas discute o que o homem
sensato fará num mundo de loucura. O romance realista sóbrio de hoje
discute o que um completo lunático fará num mundo sem graça”.[14]
Tolkien, por exemplo, projetava nos seus diminutos hobbits,
personagens centrais de seus romances O Senhor dos Anéis e O Hobbit, as
ansiedades do campesinato britânico diante do avanço da industrialização e
dos subúrbios modernos. A degradação do modo de vida rural pelo avanço
irrefreável das cidades. Para ele, o Bem se traduzia nos pacatos e simplórios
hobbits, amantes da natureza e de um modo de vida antigo e comunal,
enquanto o Mal transparece na face nervosa e medonha dos orcs,
especialistas em engenhos e construções, implacáveis devastadores do meio
ambiente.
A defesa das tradições populares estava no cerne das preocupações
intelectuais de Chesterton e Tolkien.
“(...) as coisas comuns a todos os homens são mais importantes que as
coisas peculiares a qualquer homem. As coisas ordinárias são mais valiosas
que as extraordinárias; ou melhor, são mais extraordinárias”.[15]
A estima pelas tradições, valores morais, costumes e bom senso da
família cristã reverbera no cerne da atitude conservadora e tradicionalista e,
consequentemente, na prosa de ambos esses festejados autores.
“(...) as coisas mais tremendamente importantes devem ser deixadas
para os próprios homens ordinários — a união dos sexos, a criação dos filhos,
as leis do estado”.[16]
Os contos de fadas derivam dos valores morais compartilhados pela
maioria da sociedade. Eles educam nossas crianças sobre as recompensas do
bom senso e as punições esperadas pelos comportamentos reprováveis. Eles
valorizam a coragem, a prudência, o altruísmo, a amizade, a família, a
compaixão; ao mesmo tempo em que condenam o egoísmo, a raiva, a
covardia, a impiedade, a selvageria, a voracidade.
“É muito fácil ver por que uma lenda é tratada, e assim deve ser, mais
respeitosamente do que um livro de história. A lenda geralmente é criada pela
maioria do povo da aldeia, gente equilibrada. O livro geralmente é escrito
pelo único homem da aldeia que é louco”. [17]
Os contos de fadas são uma ferramenta social premente à formação
moral dos cidadãos responsáveis, em conjunto com a família, religião, escola.
O fantástico integra o arsenal das boas armas da sociedade para tornar
crianças em adultos íntegros, capazes de diferenciar o certo do errado e atuar
com prudência e sabedoria na preservação das instituições e da paz social.
“O país das fadas nada mais é do que o país ensolarado
do bom senso. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que
julga a terra; assim, para mim pelo menos, não era a terra que
criticava a Elfolândia, mas a Elfolândia que criticava a terra.
Conheci o pé de feijão mágico antes de provar feijão; tive
certeza sobre o homem na Lua antes de ter certeza sobre a
Lua. Isso está em harmonia com a tradição popular. Os
obscuros poetas modernos são naturalistas e falam de arbustos
e riachos; mas os cantores dos poemas épicos e fábulas da
antiguidade eram sobrenaturalistas e falavam dos deuses dos
riachos e arbustos. E isso que os modernos querem dizer
quando afirmam que os antigos não "apreciavam a natureza",
porque diziam que ela era divina. As antigas babás não
falavam às crianças sobre a relva, mas sobre fadas que
dançam sobre a relva; e os antigos gregos não conseguiam ver
as árvores devido às dríades.
Mas aqui trato da ética e da filosofia que resultam de
uma dieta de contos de fadas. Se as estivesse descrevendo em
detalhes, poderia anotar muitos princípios nobres e sadios que
deles derivam. Há a lição cavalheiresca de "Jack, o matador
de gigantes", dizendo que os gigantes deveriam ser mortos
por serem gigantescos. E uma revolta viril contra o orgulho
como tal. Pois o rebelde é mais antigo do que todos os reinos,
e os jacobinos têm mais tradição que os jacobitas.
Há a grande lição de “A Bela e a Fera”, dizendo que
uma criatura precisa ser amada ANTES de ser amável. Há a
terrível alegoria de “A Bela Adormecida”, dizendo como a
criatura humana foi abençoada com todos os seus dons
recebidos ao nascer, e, no entanto, amaldiçoada com a morte;
e como a morte pode ser suavizada em sono”.[18]
O fantástico no Brasil
“Vive dentro de mim, como num rio,
Uma linda mulher, esquiva e rara,
Num borbulhar de argênteos flocos, Iara
De cabeleira de ouro e corpo frio”.
(Trecho do poema A Iara,
de Olavo Bilac).
O folclore brasileiro conserva seus vínculos históricos com a sociedade
brasileira contemporânea, porém, seus vínculos morais se acham
enfraquecidos.
A filosofia e a ética contidas nos “contos de fadas brasileiros” não
ressoam mais na nossa sociedade, afinal o mito, por si só, não é literatura. A
literatura atualiza o mito, mas jamais o substitui.
O tratamento artístico responsável dos mitos – atualizados pelo artífice
para o seu tempo – permanece como uma tarefa indispensável da literatura
nacional. Uma tarefa tristemente adiada.
Ainda assim, maior do que a tarefa é o desafio.
Os folcloristas fizeram o seu trabalho, estudaram e registraram os mitos;
agora, cabe aos artistas contribuírem com seu ofício. Para tanto, devem
atentar aos valores morais existentes nos mitos brasileiros. Vide abaixo
alguns exemplos, ressalvadas suas variações regionais:
1. Saci – pregador de peças, cujas ações geram contratempos. Insistente
com quem demonstra desagrado em relação às suas traquinagens. Sua
temática nos ensina a rir dos pequenos infortúnios, e a não se
incomodar diante de dificuldades menores.
2. Iara – alerta aos jovens luxuriosos e imprudentes. Incentiva o
relacionamento masculino apenas com “moças direitas”.
3. Boto – advertência a meninas “oferecidas”, com pretenso cunho
antiabortista.
4. Corpo-seco – condenação a quem humilha ou maltrata os pais. Ensina,
pelo medo, a necessidade de respeito aos progenitores.
Raros artistas se dedicaram com a devida seriedade e competência à
tarefa de contextualizar e explicitar as lições de moral contidas no nosso
folclore a uma audiência brasileira contemporânea.
Seu maior expoente talvez seja Monteiro Lobato, criador de um Reino
Encantado próprio (O Sítio do Pica-Pau Amarelo), o qual se revelou
extremamente habilidoso na atualização de mitos do folclore nacional para o
seu tempo, chegando mesmo a combiná-los com narrativas internacionais,
adaptadas por seu excepcional talento.
Lobato enfrentou a fragilidade dos vínculos morais dos mitos
brasileiros, empregando uma ética própria capaz de se conectar com o leitor
comum. Esses pontos de identificação entre o artista e o público da sua época
se expressaram na sua valorização do ato de brincar, no incentivo à
imaginação infantil, na promoção da liberdade, na nostalgia da vida simples
do campo (em oposição à da cidade), em um período no qual o Brasil se
tornava uma sociedade urbana.
Numa análise mais abrangente, um mito pode ser compreendido pela
coesão do seu conteúdo original (significado) com a sua forma original
(aparência).
Cabe ao artista a ousadia de combinar os elementos originais com sua
sensibilidade para atualizá-los à sociedade de seu tempo sem descaracterizá-
lo a ponto de perder sua ressonância popular.
Um mito despojado do seu conteúdo original, ainda que preserve a sua
forma, arrisca-se a perder sua identificação com a cultura que o originou ou
restar somente como mera farsa ou efeito satírico.
O estabelecimento de uma literatura de fantasia dedicada aos mitos do
folclore brasileiro – mesmo que combinados às influências de outros povos –
representa um desafio urgente ao escritor de fantasia nacional.
Um movimento forte e robusto inexiste neste sentido, porém, é passível
de despontar com o amadurecimento e a multiplicação de uma literatura
duradoura de qualidade no Brasil, capaz de se valer do boom do gênero
fantástico ocorrido mundialmente nas últimas décadas.
Bibliografia complementar
TOLKIEN, J. R. R. (1947). Sobre Contos de Fadas: Ensaios Apresentados a
Charles Williams. Oxford: Oxford University Press.
IV
Como se apoderar de um mercado livre
Reno Martins