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Martha Giudice Narvaz
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Sílvia Helena Koller
Este artigo foi originalmente publicado em Narvaz, Martha & Koller, Sílvia H. (2006). A família que
não é sagrada: Mitos e fatos sobre abuso sexual na família. Em Fabiani Portela & Ingrid Franceschini
(Orgs.), Família e Aprendizagem: Uma relação necessária (cap. 4; pp.59-80). Rio de Janeiro: Wak.
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Martha Narvaz. Psicóloga e Terapeuta Familiar, Especialista na área da violência doméstica pela USP,
e Doutora em Psicologia pela UFGRS. Email: phoenx@terra.com.br
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Sílvia Helena Koller. Psicóloga, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do
Desenvolvimento da UFGRS. Coordenadora do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e
Meninas de Rua-CEP-RUA/UFRGS. Email: skoller@uol.com.br
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Famílias e violência
& SHANSIS, 1991) e, quando sabem, são elas as que mais denunciam os
abusos intrafamiliares. De acordo com Saffioti (1999, p. 131), “64, 5% das
denúncias são feitas majoritariamente pelas genitoras, cifra compatível com
estatísticas internacionais. As vizinhas têm papel importante neste contexto,
denunciando o abuso sexual incestuoso em 13,3% dos casos”. Sattler (1993)
diz que 76% das denúncias de abuso sexual são feitas pelas mães. Já para
Felipe (1999), são raros os casos de incesto na família acerca do qual as mães
não têm conhecimento, silenciando e, inclusive, oferecendo a sexualidade das
filhas como forma de se livrarem do sexo imposto e garantirem seu sustento
econômico. O silenciamento da mãe é percebido como forma de manter a
homeostase familiar, havendo um acordo tácito entre o casal sobre o desvio da
sexualidade do pai em relação à filha, apesar do aparente segredo. Nestes
discursos, há um desvio implícito de responsabilidade do verdadeiro agressor
(RAVAZZOLA,1999), dinâmica segundo a qual “a vergonha de que deveria ser
portador aquele que a agrediu volta-se contra a mulher e a silencia, tornando-a
parte da rede que sustenta a dominação” (ZUWICK, 2001, p. 89).
Além de serem percebidas como passivas, acusadas de permanecerem
em relações violentas e de não protestarem contra os abusos sofridos, as
mulheres e meninas têm, ainda, sido vistas como provocadoras, sedutoras e,
portanto, culpadas pela violência que sofrem (RAVAZZOLA, 1999; ZUWICK,
2001). Desvela-se, assim o discurso patriarcal inscrito nos mitos da
provocação, da conivência e cumplicidade femininas, segundo as quais as
mulheres e meninas, sedutoras, provocam a sexualidade masculina e são
culpadas pelas violências que sofrem. Mãe e filha, nos casos de incesto, são
colocadas numa posição de rivais, ao invés de vítimas. Tais teorias
estigmatizam as mulheres, homogeneizando-as como co-autoras e culpadas
pelos abusos sofridos, tanto por elas quanto pelas filhas. Às mães negligentes,
não protetivas ou sexualmente não responsivas aos desejos sexuais dos
maridos são atribuídos vários distúrbios psiquiátricos, rotuladas de doentes
mentais. O silenciamento das mães diante do abuso das filhas, interpretado
como cumplicidade e conivência, necessita ser situado no contexto histórico da
subordinação feminina (NARVAZ & KOLLER, 2004a; NARVAZ, 2005).
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apoiada em seu relato, que deve ser investigado em toda sua complexidade.
Aspecto importante a ser considerado aqui remete à questão da ambivalência
da criança pelo abusador, em especial se este é uma figura que também
estabelece relação de afeto e de suporte com a criança. Não se pode negar
que, apesar de abusivo, o adulto em voga não é, comumente, abusivo o tempo
todo, podendo estabelecer também vínculo de afeto e de cuidado com a
criança que, diante disso, fica ambivalente. Nesse sentido, é importante
respeitar a ambivalência da criança e o desejo da mesma de proteger a figura
que, mesmo que abusiva, pode também ser ou ter sido (no real ou na fantasia)
uma figura protetiva (CROMBERG, 2004).
Além do mito da sedução infantil e, a ele associado, o mito de que as
crianças fantasiam e inventam sobre abuso, outro mito -que chamaremos aqui
“mito da revitimização” -comumente veiculado no imaginário social é o de que
todo abusador sexual foi, necessariamente, também vítima de abuso sexual em
sua infância. Apesar de haver poucas pesquisas científicas sobre o tema,
nossa experiência de trabalho e de estudo com famílias abusivas e com
abusadores sexuais não confirmam estes dados. Há, isto sim, associação
importante de condutas violentas na vida adulta com vivências violentas na
família durante a infância de sujeitos violentos e abusivos, quer como
testemunha ou como vítima da violência doméstica (KOLLER, 1999). Ainda
assim, a vitimização de abusadores sexuais na infância não pode ser usada
como “desculpa” para a repetição da conduta abusiva na vida adulta, o que
pode ser entendido como mais uma estratégia patriarcal de resgatar
prerrogativas masculinas e, assim, deslocar a responsabilidade para a vítima,
geralmente uma figura feminina e/ou de menor poder na relação.
Considerações finais
Procuramos demonstrar, com este trabalho, que a família nem sempre
é um espaço de proteção, mas também espaço de violência. A violência
doméstica contra crianças e adolescentes parece estar ancorada em preceitos
patriarcais que outrora conferiram ao pai poder absoluto sobre os membros da
família, considerados sua propriedade e que, portanto, poderiam ser “usados”
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Referências