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Martha Giudice Narvaz
George Santayana
RESUM0
ABSTRACT
This paper intends to present some issues about the transgeneration transmission of violence. It is
based on several cases of sexual abusive families in which both, mother and daughter were
victims of sexual abuse in their childhood, secret only disclosured now by the daughter in Family
Therapy.
1
NARVAZ, Martha Giudice. A transmissão transgeracional da violência. Insight-Psicoterapia, v.118, p.17 - 22,
2001.
*Psicóloga, CRP 07/4299. Terapeuta Familiar, Especialista em Violência Doméstica pela USP, Supervisora no
Serviço de Atendimento Familiar do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas de Porto Alegre; integrante do
Comitê dos Direitos da Criança do referido Hospital e das Comissões de Direitos Humanos e Cidadania do Conselho
Regional de Psicologia e da Assembléia Legislativa do RS. Participaram também deste trabalho na coleta dos dados,
a quem gostaríamos de agradecer imensamente, as Terapeutas de Família Carmen Berwanger, Ione Caloy Dohrr,
Claúdia Ribeiro Koeller, Rose Marie Rocha, Isolde Lindemann, Ceres Valle Machado, Marialda Scherer , Daniela
Domingues e Gabriela Azevedo. Agradecemos também o apoio do Comitê dos Direitos da Criança do HMIPV,
especialmente à Lúcia Cogo Marques, Rogério Fradjlich e à Bernadete Magalhães do CRP/07.
1. INTRODUÇÃO
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2. DESENVOLVIMENTO
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sua falta de responsabilidade nos relacionamentos familiares.”(Azevedo e
Guerra, 1 p.62)
Ravazzola8 destaca haver um desvio do foco do agressor (quem deveria realmente ser
responsabilizado) implícito no discurso culpabilizante das mães, discurso este que defende a
conivência e negação maternas diante do abuso das filhas. Para ela, as razões para tal avaliação
parecem desconsiderar a situação de subordinação a que estas mulheres estão submetidas em suas
relações, daí que sua resignação e passividade são erroneamente interpretadas como
complacência e cumplicidade. Para Azevedo e Guerra (in Marques 9), é preciso avaliar que
condições essa mãe tem de vencer o complô do silêncio que cerca o fenômeno do incesto, onde
desempenha igualmente o papel de vítima e não o de ré. Miller11 igualmente destaca essa
postura impregnada de preconceitos de gênero, em que mãe e filha são colocadas numa posição
de rivais e culpadas, ao invés de vítimas, o que remete à questão das construções de gênero em
nossa sociedade que privilegia o comportamento masculino, uma vez minimizado, e culpabiliza
as mulheres, uma vez responsáveis por mediarem as relações familiares. Bravo5 lembra que, em
nossa cultura , as mulheres em geral são educadas para responder às necessidades dos homens, e
não às suas próprias ou às de suas filhas. O papel veiculado pela família engendra uma concepção
de mulher ideal enquanto cuidadora e abnegada, altruísta ao extremo, sendo o homem e, depois,
os filhos, preferencialmente os filhos homens, o principal objeto deste cuidado. Ravazzola8
acrescenta a essa compreensão outra crença de gênero que parece legitimar o abuso sexual: a de
que os homens são seres extremamente sexuais e que não podem se controlar! Já Felipe10
denuncia a necessidade de se desvelar a cumplicidade cultural com práticas violentas contra as
minorias. Que sociedade é essa, pergunta ela, que se torna cúmplice à medida que não dá
visibilidade ao tema? O que leva uma mulher a contemplar seu parceiro estuprando a criança?
Para a autora, uma vez que são raros os casos de incesto na família acerca do qual as mães não
tem conhecimento, a maioria das mulheres ainda silencia, entendendo a cumplicidade das
mulheres adultas como forma de oferecimento da filha ao parceiro, na tentativa de livrarem-se do
sexo imposto:
“(...)certas sociedades são altamente „propensas ao estupro‟, enquanto
outras são notavelmente „livres de estupro‟(...) diferenças essas
relacionadas a variáveis sociais como os níveis de violência geral, os
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estereótipos de papéis sexuais e a posição das mulheres dentro da divisão
do trabalho.”(Porter in Felipe, op.cit. p.13)
Que modelos, então, recebem as filhas mulheres, sabidamente ainda as maiores vítimas da
violência sexual? Mesmo que não explicitamente, a formulação parece ser a de que os “homens
devem ser servidos”, não contrariados, atendidos em todas as suas necessidades, mesmo as
sexuais, a fim de garantirem sua sobrevivência e manterem a família intacta! Não há, portanto,
espaço para a independização, autonomia e assertividade feminina, não há espaço para o “não”!
Aprendem desde cedo que não são donas de si mesmas, tampouco de seus corpos e de que talvez
essa seja a “saga” de terem nascido mulheres, legado que se transmite de geração para geração.
Assim, ao invés de cúmplices coniventes, o que encontramos em nossa prática são mulheres
também vitimadas em suas histórias, tanto passada, em sua própria infância, quanto atual, pelos
companheiros abusadores de suas filhas, muitas vezes alcoolistas e violentos com elas próprias !
Isso sem falar em todo sistema de saúde e legal que revitimiza ambas, mãe e filha, com suas
intervenções desarticuladas e preconceituosas, reflexo de uma sociedade sexista e falocêntrica
que mantém os homens na impunidade, imputando as culpas à filha sedutora e à mãe negligente e
sexualmente não responsiva aos desejos do marido!
Nesse sentido, entendemos que essas mulheres, mães das vítimas de incesto , elas próprias
foram e continuam sendo vitimizadas. Internalizaram através do cotidianos das relações
familiares os padrões sexistas da sociedade em que vivemos, o que, entre outros aspectos,
engendra o que Seligman( in Corsi4) denominou de “desamparo aprendido”, ou seja, é assim
que as coisas funcionam e de nada adiantará protestar. Uma vez que elas mesmas não foram
protegidas e acreditadas em sua infância, não aprenderam a proteger as próprias filhas,
configurando-se formas patológicas de relação que incluíam o segredo e o silêncio como forma
de sobrevivência, daí a negação, a passividade e a resignação interpretadas como cumplicidade e
conivência!!!
Filkenhor e Browne12 ao longo de suas pesquisas encontraram que os eventos traumáticos
vividos pelas vítimas de incesto deformam o conceito se si mesmo, alterando o juízo de realidade
e abalando profundamente a auto-estima, além de engendrarem um profundo sentimento de
descrença e desesperança, falta de iniciativa e de autonomia, mostrando-se excessivamente
dependentes e carentes de afeto. Ammerman e Hersen (citados por Bravo5) falam de um
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sentimento de distanciamento com o mundo, perda do interesse, dificuldade em conectar-se com
emoções de qualquer tipo, especialmente as associadas à intimidade e sexualidade, além da
incapacidade para recordar o trauma. Estes sintomas, característicos do Estresse Pós-Traumático
se acentuariam à medida que o indivíduo se encontrasse em situações que recordassem ou
simbolizassem o trauma original. Como, então, exigir dessas mulheres atitudes protetivas
quando não aprenderam a se proteger, uma vez que não tiveram quem as protegesse e estão
mergulhadas num “caldo de cultura “ que também não lhes dá instrumentos para a assertividade
contra o domínio masculino? Como acusá-las de cúmplices negligentes uma vez que elas próprias
apresentam certa “anomia” e distorções de personalidade comparáveis às seqüelas das vítimas
de tortura e de campos de concentração, como nos mostra Herman 2?
Mais além da intervenção pontual, fundamental nas situações de vitimização, pensamos
que a ampliação do foco para a análise da transmissão transgeracional de padrões produzidos e
reproduzidos socialmente que parecem legitimar a violência contra as mulheres e crianças,
especialmente as meninas, é urgente para quem trabalha com famílias e violência! Para tanto,
devemos questionar nossas próprias crenças e desvelar nossos próprios preconceitos, diria
Cecchin13, entre eles os mitos da família perfeita e da mãe santificada, onipresente e onisciente.
Nossa escuta, então, deverá ser realmente verdadeira e sem censura, pois, como nos
demonstrou Penn14 ,muitas vítimas omitiam ou interrompiam seus relatos quando sentiam alguma
forma de crítica ou desconforto em sua escuta. É preciso estarmos preparados para auxiliarmos as
vítimas a libertarem suas vozes sufocadas pela violência e a re-matrizarem suas experiências
de não proteção, oferecendo-lhes um novo modelo de relação em que padrões mais protetivos
possam emergir, tanto para si mesmas quanto para suas filhas!
Como nos ensina Tilman-Ostyn15, acolhemos a criança maltratada que um dia foram,
reconectando-as com o sofrimento endurecido do passado a fim de auxiliá-las a passar da
“amnésia à anistia” das vivências traumáticas denunciados só agora pelo abuso das filhas. Isso
possibilita que, em cada geração, se possam elaborar aqueles traumas ou “fantasmas” do passado
, integrando os eventos traumáticos agora numa nova condição de apoio e proteção oferecidos por
uma escuta não ameaçadora. Cabe ressaltar aqui que compreender estes legados não significa,
absolutamente, justificar ou minimizar a violência e a não-proteção, mas entendê-la como
apreendida e aprendida no contexto concreto das relações familiares cotidianas em que se
produziu para, então, desconstruí-los. A partir da apropriação destas mulheres de suas próprias
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histórias e dos legados de vitimização nela contidos, oportuniza-se um espaço para reflexão e
construção de novas formas de relação que não aquelas que se “impunham” como profecias,
mitos ou missões em suas matrizes familiares (Groissman et al 16).
Diferentes teóricos e clínicos de diversas escolas postulam a hipótese por nós cogitada a
partir de nossa prática cotidiana acerca da “transmissão transgeracional da violência”. Stern17
e Perry18 , através de estudos neuroendócrinos, encontraram evidências de que a herança genética
e os padrões de vínculo são profundamente marcados pelas experiências vividas, especialmente
se traumáticas, influenciando, inclusive, a estruturação da personalidade e os padrões de conduta
através de modificações da própria arquitetura cerebral. Stierlin19 descreve extensivamente em
sua obra os processos de delegação e legado, de certa forma fundantes na história da terapia
familiar. Andolfi e Angelo20 falam dos registros de necessidades que, uma vez não satisfeitos,
passam de uma geração a outra em busca de satisfação. Bowen (citado por Schutzenberger21) em
seus trabalhos pioneiros com famílias de esquizofrênicos, levantou a questão da transmissão da
angústia de uma geração a outra. Boszormeny-Nagi (referido por Schutzenberger21) postula as
lealdades invisíveis e a contabilidade familial, em que as “contas não quitadas” de uma família
passam à próxima geração em busca de ressarcimento! Recentemente, Schutzenberger21 descreve
extensivamente em sua obra o interessante conceito de “fantasma” de Abrahan e Torok, segundo
o qual ele aparece de tempos em tempos e age após uma ou duas gerações, denunciando
segredos: “Na visão transgeracional, uma pessoa, admitindo um fantasma que sai da cripta, sofre
de uma doença genealógica familial e das conseqüências de um não-dito secreto.” ( Abrahan e
Torok, in Schutzenberger21, p.67 )
Para Schutzenberger21, cada família tem um romance, histórias e segredos que se repetem
e que se recontam como numa saga, numa história mítica transmitida de geração em geração, daí
que, para reconquistar nossa liberdade e sair da repetição. É preciso, pois, investigar as histórias
das mães não-protetivas e dos pais abusivos e conectá-los com suas próprias histórias de abuso e
violência. Segundo Tilman-Ostyn15, as crianças denunciam, através dos seus sintomas, os
traumatismos dos pais, auxiliando-os, então, a redescobrir zonas ocultas e petrificadas neles
mesmos! Como bem coloca-nos Sluzki,22 o processo terapêutico para vítimas de violência é uma
luta extenuante através da qual a experiência traumática pode ser re-contextualizada e re-
historicizada, restabelecendo-se nestes sujeitos a possibilidade de indignação para, então,
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recuperarem sua auto-estima e sua dignidade, outorgando-se o direito de terem direitos e verem
resgatada sua cidadania.
Talvez assim possamos auxiliar a romper o destrutivo ciclo da transmissão da violência,
especialmente sexual, que rouba das meninas, como diz Vigarello, citado por Felipe10 o direito
de escolher com quem compartilhar sua experiência erótica, solo fértil para futuros abusos e
domínio masculinos.
3. CONCLUSÃO
A partir do relato de dezenas de famílias atendidas num período de cerca de três anos, de
1998 a meados de 2001, evidenciou-se, em nossa prática cotidiana, a hipótese da transmissão
transgeracional, dada a incidência de repetição dos casos de violência, especialmente sexual, ao
longo de várias gerações. Mães e filhas, vitimadas pela mesma experiência de abuso sexual
incestuoso sobre a qual jamais ousaram falar, puderam re-conectar-se com suas histórias de dor e
violência, compartilhá-la e traçar um caminho diferente daquele outrora traçado por suas próprias
mães, numa postura de ajuda mútua mais que rivais competidoras. Não seria o desvelamento do
abuso da filha uma forma de denúncia do abuso da mãe e, por conseguinte, denúncia da história
de abuso de gerações e gerações em que as meninas e as mulheres seguem sendo ainda as
maiores vítimas?
Observou-se, também, nessas famílias, a associação entre violência doméstica e
alcoolismo, bem como a ocorrência simultânea de várias formas de abuso, seja sob a forma de
negligência ou abandono, violência física e castigos corporais severos ou violência psicológica.
Encontramos ainda a presença significativa de violência contra a mulher nos relatos das famílias
com as quais trabalhamos, concomitantemente à violência contra as crianças, o que é respaldado
pela literatura nacional e internacional. Diante de tudo isso, parece-nos fundamental dar
visibilidade ao tema, uma vez ainda tabu em nosso meio, mesmo científico, propondo formas
preventivas que possam ser veiculadas nas Redes de Saúde e Educação, bem como incluir-se
como disciplina obrigatória nos Cursos de Graduação das mais variadas Ciências que tangenciem
o tema a temática da Violência Doméstica, em especial do Abuso Sexual. Nesse sentido,
incluímos em anexo um “Questionário de Prevenção ao Abuso Sexual” que pode ser utilizado
nos mais diversos espaços de promoção e defesa dos Direitos das Crianças.
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Para nós, enquanto terapeutas familiares, diríamos que estas meninas denunciam a
vitimização oculta sofrida por suas mães, como que tentando, agora, através do contexto
protetivo da terapia, oportunizar a elas “saldar” as velhas dívidas de suas infâncias, quem sabe
sacrificando, para isso, seu corpo e sua própria infância! Oportunizam este espaço às suas mães
que, hoje, denunciando e protegendo as filhas- diferentemente do que suas avós puderam fazer -
re-apropriam-se de suas histórias para, então, re-escrevê-las , re-matrizando a experiência de
várias gerações de mulheres que podem se colocar não mais como “sujeitadas” mas
protagonistas de uma nova trama. Ao denunciarem o abuso e domínio masculinos, devolvem
autonomia e dignidade a seus corpos! Re-escrevem, assim, não só sua história individual, mas a
história coletiva de todas nós mulheres, exorcizando os fantasmas da exploração do feminino!
Martha Medeiros23
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