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A ferida que não fecha: Tratando adultos vítimas de abuso sexual na infância.
Por Luiza Medeiros e Helena Jucá Vasconcelos
Mini-curso apresentado no II Congresso de Gestalt-terapia do Estado do Rio de Janeiro (2008) e no IX
Congresso e XII Encontro Nacional de Gestalt-terapia em Vitória, Espírito Santo (2009).
INTRODUÇÃO
Apesar do incesto ser um tabu e uma transgressão e da impossibilidade cultural de haver envolvimento sexual entre
crianças e adultos, em minha prática clínica me deparei com um grande número de adultos vítimas de violência
sexual na infância. Mesmo com essa extensa demanda clínica, pouco é escrito sobre esse tema, principalmente a
partir da visão fenomenológica existencial. O abuso sexual se caracteriza como toda ação sexual entre duas ou mais
pessoas de qualquer sexo e uma criança ou adolescente, em que o adulto se propõe a obter prazer a partir da
imposição e da sedução (Azevedo e Guerra, 1989 apud Braun, 2002).
Em casos de abuso, o adulto que deveria preservar a segurança e a dignidade da criança, usa da relação estreita
que tem com a vítima e abusa da confiança e do poder como responsável para se aproximar e satisfazer suas
próprias necessidades, praticando atos sexuais que a criança/ adolescente considera inicialmente como de
demonstrações afetivas e de interesse.
Meu objetivo neste mini - curso é abordar o assunto a partir de uma perspectiva teórica e metodológica gestáltica,
ampliando o foco através de um panorama familiar. Acredito que com isso haja a possibilidade de se construir uma
ponte que permita ao terapeuta criar uma maneira eficiente de proceder e ajudar a amenizar o sofrimento de
adultos vítimas de violência sexual na infância ou na adolescência.
CONCEITOS BÁSICOS
Um abuso pode ser considerado um mau uso ou um desregramento. Apessoa que abusa é aquela que se excede
limites e invade fronteiras. Para existir abuso sexual na infância/ adolescência é preciso existir uma falha das
pessoas responsáveis em cuidar da criança/ adolescente, permitindo que ela seja exposta a situações sexuais
inadequadas, na maioria dos casos com adultos que acarretam em graves seqüelas físicas e emocionais.
Normalmente o agressor é alguém em quem a criança confia. Crianças passivas e dependentes costumam ser o
alvo preferido dos autores de abuso, geralmente são pouco vigiadas e vulneráveis emocionalmente. Segundo Pia
Mellody (1989, apud Cukier, 1998) há abuso sexual quando o relacionamento com o filho é mais valorizado pelo
pai do que com o cônjuge.
Atualmente considera-se que os pais abusam da criança sempre que há um desrespeito na hierarquia da relação
pais e filhos. Cukier (1998: 32) afirma que:
É possível considerar que, “no caso de abuso sexual de menores, existem, na maioria das vezes, dois agressores”
(Hellinger, 1996: 27). Aquele que cometeu o ato geralmente fica em figura perante a criança, a família e a
sociedade, porém acredita-se na existência em segundo plano de um pacto secreto na família que envolve
amplamente o contexto familiar onde todos os membros estão comprometidos.
A família incestogênica é uma família disfuncional e todos os seus membros precisam de intervenção terapêutica,
não só o agressor (Braun, 2002). Nesse tipo de família, a criança normalmente tem muito medo de falar e o adulto
tem medo de ouvi-la (Cukier, 1998). Ela teme a punição ou capta no campo a incapacidade dos adultos de protegê-
la da violência do agressor, se sentido desprotegida. Porém, quando por qualquer motivo o agressor entende que a
criança começa a compreender seus atos como abusivos ou, ao menos, como anormais tenta inverter os papéis,
impondo a ela a culpa de ter aceitado seus “carinhos”. Neste contexto, por medo muitas vezes a vítima chega até a
idade adulta sem nunca ter revelado a agressão. Além disso, pode haver sentimento de culpa da criança por
acreditar ter permitido a agressão e por experimentar de algum prazer físico numa situação que é geralmente
aversiva (Braun, 2002).
A criança se sente insegura por imaginar que realmente não seria ouvida ou acreditada se revelasse o abuso;
envergonhada tanto pelo que se passa com ela, como pela sua impossibilidade de denunciar e ameaçada por
aquele de quem habitualmente depende física e emocionalmente. Nesta configuração se fecha em silêncio para o
grande alívio de todos os envolvidos direta e indiretamente na violência.
Por esses e outros motivos, as crianças e/ ou adolescentes têm receio de compartilhar o que se passou com eles e
podem guardar esse segredo até a idade adulta. Porém, o que não foi revelado fica presente, através de graves
sintomas, causando disfunções na forma da pessoa fazer contato com o mundo. De acordo com Miller (1997:14),
A maioria das pessoas que sofreram abuso sexual na infância e/ ou adolescência procura atendimento psicológico
muitos anos depois do ocorrido. É pouco comum que essas pessoas construam logo no início do processo
terapêutico uma conexão clara entre a violência sofrida e a queixa que as trouxe ao tratamento. Inicialmente o que
traz essas pessoas à terapia não é o abuso sofrido, mas variados tipos de conflitos e dificuldades como:
manifestações psicossomáticas, comportamento agressivo, perturbações no sono, perturbações na sexualidade,
baixa auto-estima, dificuldade de fazer vínculo, isolamento, sentimento de desamparo, impotência, vergonha,
problemas relacionados com a alimentação como obesidade, bulimia e anorexia, depressão, ideações suicidas,
dependência química e uma série de outros transtornos psiquiátricos.
É possível compreender a conexão existente entre os sintomas físicos, psicológicos e comportamentais e a violência
sexual sofrida na infância, usando como suporte a visão holística, fenomenológica e humanista da Gestalt-terapia,
que traz reflexões acerca de como perceber os conceitos de saúde e doença. Hycner (1995:58), a partir da filosofia
de Buber, enfatiza que “a "patologia" é vista como um distúrbio da existência inteira e como uma "declaração" do
que precisa ser atendido para que a existência dessa pessoa se torne mais integrada”.
A visão positivista desta abordagem identifica o sintoma como uma maneira de ajustamento criativo, ou seja, uma
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criação sábia da pessoa em busca de se harmonizar no campo organismo/ ambiente. Porém, quando o que
inicialmente é uma capacidade saudável de auto - regulação se cristaliza e se transforma em uma forma de contato
disfuncional, o livre fluxo de movimento na vida é impedido gerando desequilíbrio físico e emocional.
Suponho de acordo com a minha vivência clínica e usando como base os norteadores teóricos da Gestalt - Terapia
que os sintomas produzidos pela violência sexual sejam uma forma de auto-regulação cristalizada que apontam
para situações inacabadas e para necessidades não atendidas na infância que podem estarrelacionadas ao pacto
de silêncio feito para manter a homeostase familiar e aos sentimentos de culpa e medo que apontam para dor da
criança presente no sintoma do adulto.
PRÁTICA CLÍNICA
Observei que em 95% dos casos atendidos o abuso foi revelado pela primeira
vez no ambiente terapêutico. Notei também que em 60% dos casos, o agressor era
alguém da família da vítima, 25% eram pessoas próximas da família e apenas 15%
eram desconhecidos da vítima. Esses dados apontam e corroboram com pesquisas
sobre abuso sexual de crianças e adolescentes (Braun, 2002).
Estatística Clínica – Consultório (Entre Maio de 2001 até Fevereiro de
Particular 2009)
O tempo para que a revelação aconteça na terapia depende da urgência da necessidade da pessoa e/ ou da
qualidade do vínculo estabelecido entre o terapeuta e o cliente.
“O passado tem uma tarefa. Enquanto essa tarefa não for cumprida,
o passado nos apresentará - a despeito de todos os controles -
impregnado do sentido dessa tarefa” . Van den Berg, 2003 p. 71
É importante compartilhar que, para que o trabalho terapêutico ganhe amplitude após a revelação, é importante
que o contexto atual e todos resíduos do passado presentes no campo sejam considerados.
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Ao tomar conhecimento da violência, o terapeuta precisa cuidar para não se perder no sofrimento do cliente, nem
ficar fixado no o rótulo de abuso sexual e deixar estar presente na relação com a pessoa. Isto porque, a
profundidade do tema tende a mobilizar feridas antigas do cliente e gestalten abertas do terapeuta. Este processo é
doloroso, pode trazer a tona muito confusão e uma mistura de sentimentos em relação ao acontecimento em si e a
todos aqueles envolvidos no episódio.
Observei durante todos os processos terapêuticos que acompanhei que o passado da criança não resolvido
continuava tendo peso no presente do adulto. Minha hipótese é que a criança ressentida prende o adulto em
fantasias catastróficas, o isolando do mundo. O adulto permanece com medo do desamparo e é comum que inicie o
processo terapêutico tendo algumas ressalvas em relação a capacidade do de terapeuta acolher e suportar sua dor .
É essencial para o terapeuta estabelecer uma relação sólida e profunda com este tipo de cliente. É importante
lembrar que essa pessoa passou na infância/adolescência por uma forte vivência de ausência de respeito e por
experiências de abuso de confiança e poder. De acordo com Perls (1977:66),
O interesse e a disponibilidade genuína do terapeuta por seu cliente fazem com que ele aja de forma diferente
daquele que violentou e daqueles que não estiveram disponíveis para atender as necessidades ou acolher seu
sofrimento na infância/ adolescência.
Uma das funções da terapia com adultos vítimas de violência sexual na infância/adolescência é tornar possível o
encontro do adulto com sua criança interior e possibilitar que a pessoa experiencie sentimentos e sensações da
criança no aqui e agora da terapia (Cukier, 1998).
É comum que uma rejeição ou desapontamento no presente toque a ferida antiga de uma maneira devastadora e
que de forma não consciente o cliente perpetue os pais abusivos, continue a se submetendo às vontades de outros
ou se coloque em situações onde será desrespeitado ou injustiçado. É útil para psicoterapia trazer a tona e
aprofundar esse tema ajudando o cliente a perceber o impacto das experiências infantis na suas dificuldades atuais
(Cukier, 1998).
É importante que o terapeuta ajude o cliente a se dar conta de como ele se fixa no passado e reage no aqui e agora
ao abandono de sua infância. No entanto, o trabalho para o fechamento de situações inacabadas é lento e
contínuo. Pode ser fortalecido através da relação terapêutica e da re - significação de cenas infantis. O uso de
recursos lúdicos e criativos pode ajudar a atualizar a forma da pessoa fazer contato no mundo. Assim, o cliente
pode gradativamente se responsabilizar mais por sua vida e por suas escolhas no presente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje apesar do número de casos ser abundante em todas as classes socioeconômicas, o material bibliográfico em
nossa abordagem sobre esse tema é bastante restrito, quase inexistente.
Proponho neste mini - curso a exploração e o debate através de uma visão biopsicossocial de alguns temas
fundamentais para o tratamento dessa demanda específica como: a importância da qualidade do vínculo entre o
cliente e o terapeuta; a influência do campo; as perturbações da fronteira de contato; a responsabilidade além do
agressor; a relação da vítima com o agressor; a função do segredo; o impacto da revelação no sistema familiar e as
seqüelas emocionais, físicas e comportamentais identificadas na vida adulta; etc.
Neste trabalho pretendo compartilhar ferramentas teóricas e metodológicas que ajudem ao gestalt- terapeuta a
encorajar seus clientes a tomarem consciência de suas histórias, a fazerem contato com suas antigas feridas,
integrá-las ao presente e assim se darem conta de que é possível encontrar um novo caminho em direção uma
maior fluidez em suas vidas.
REFERÊNCIAS:
BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre: AGE, 2002.
HELLINER, B. Constelações familiares: o reconhecimento das ordens do amor. Cultrix, São Paulo, 1996.
PERLS, F. S. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. São Paulo: Zahar, 1981
VAN DEN BERG, J.H. O paciente psiquiátrico: Esboço de uma psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Livro
Pleno, 2003.