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VIOLÊNCIA DE GÊNERO, DETERMINATES SOCIAIS E DIREITO

Cássius Guimarães Chai


Pós-doutor em Direito. Doutor em Direito Constitucional - UFMG.
Doutor em Direito – Universidade do Porto.
Professor Associado da Universidade Federal do Maranhão e Professor Permanente
do Programa de Mestrado e de Doutorado da Faculdade de Direito de Vitória

Seja ao sul Global ou ao Norte;

Seja na mãe África ou no Afeganistão;

Seja à beira do Tejo, ou à beira do Tigres, a violência de gênero é uma realidade que subtrai
a condição de dignidade do ser humano feminino.

Ela, a violência, teima em subordinar a mulher à sombra do patriarcado, mesmo nos


regimes autoproclamados democráticos, alimentada pelo sexismo, pela misoginia e pela
sujeição do não heterossexual cisgênero masculino. Se em contextos de não crise sanitária a
violência é um quadro de tragédias habituais e naturalizadas, no curso da pandemia, o
Covid-19, no cotidiano, exponencializou a violência intramuros em todos os seus matizes:
da violência contra a criança ao idoso, e contra a mulher.

As pesquisas desenvolvidas e conducentes ao imprescindível Webnário Violência de


Gênero e seus Determinantes Sociais, homônimo do projeto coordenado pelo amigo e
professor catedrático José Manuel Peixoto Caldas, e agora concretizado nesta obra coletiva
literária, ao abrigo do Centro de Investigação do Instituto de Saúde Pública da Universidade
do Porto, firmam o compromisso irrenunciável da academia, suas pesquisadoras e seus
pesquisadores, com a ciência ao serviço da cidadania e, da necessária qualificação do debate
público, pautando e pensando os problemas da vida comum, as responsabilidades do Estado
Social Democrático. E, a um tempo, estas pesquisas constrangem as instituições a
corresponderem às expectativas dos cidadãos e utentes dos serviços públicos, provocam a
elevação da razão pública a um nível de transparência compatível e constitutiva de uma
sociedade de pessoas efetivamente livres e iguais.

A presente obra, portanto, construída na riqueza dos saberes e olhares plurais, encontra no
seu denominador comum, a violência de gênero, as reflexões transdisciplinares às ciências
da Saúde Pública, do Direito, da Política, da Seguridade Social, da Psicologia, da
Semiologia e da Sociologia, nos aspectos e nas variáveis investigativos dos determinantes
sociais, compreendidos estes como os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais,
psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e
seus fatores de risco na população, diagnosticados e premidos, no recorte do objeto
epistemológico das investigações aqui apresentadas, no curso da pandemia Covid-19.
O presente tempo pandêmico, coetâneo da disrupção revolucionária 4.0 das exclusões
sociais das populações econômicas vulneráveis, acentuou a miséria, aprofundou as
desigualdades e demarcou um retorno aos extremismos nacionalistas.

São tempos de crise e de violências multiníveis.

No Brasil o recente relatório da Atlas da Violência (CERQUEIRA et ali., 2021) 1 traz


indicadores ascendentes das agressões contra a mulher, ao tempo em que a polarização
política capitaneada pelo presidente da República catalisa discursos de ódio, e estes
proliferam a desinformação e tensionam a credibilidade das instituições democráticas e das
liberdades, mesmo de pensamento e da igualdade pelo coeficiente da diferença. As redes de
proteção social, tanto no combate ao trabalho escravo contemporâneo, quanto dos
instrumentos de proteção ambiental, e de políticas afirmativas vem sofrendo sensíveis
reduções e mudanças, repercutindo até na coleta de dados que informam o desenho do mapa
da violência fazendo surgir o identificador Morte Violenta por Causa não Identificada.

As reformas trabalhistas que tendem, no Global, à precarização do trabalho, produzem


diretas repercussões nas condições de vida, como suprimindo direitos reservados às
mulheres trabalhadoras, frutos de conquistas sociais compensatórias das desigualdades e das
dificuldades de ingresso no próprio mundo do trabalho.

A pandemia desmistifica a prontidão do Estado de suas promessas de proteção e de


segurança sociais.

A pandemia deixa claro a desarticulação entre governos e sociedade civil, e a falta de


estratégias e planejamento ao seu enfrentamento.

A pandemia ressaltou a falta de empatia que deveria subjazer ao sentimento de fraternidade,


princípio jurídico-político de uma sociedade de pessoas que se afirmam livres e iguais.

Pensar a violência a partir desse caleidoscópio científico, é considerar a sua importância


enquanto objeto que demanda a formulação intersetorial de políticas públicas e de
programas que promovam a equidade na saúde.

De uma perspectiva política, temos que nos por de acordo que após dezoito meses
atravessando esse vale da sombra da morte, a pandemia, seguimos testemunhando
condescendência, acomodação e desinformação.

Condescendência criminosa pela ausência de um planejamento estratégico articulado, inter


e multisetorial, dialógico e hábil on time, especialmente da vacinação.

Acomodação alimentada pela cordialidade do jeitinho brasileiro: deixa como está pasta ver
como fica. E, desinformação como estratégia de mitigação da anomia institucional nas
ações intersetoriais de saúde.
Premida pelas desigualdades sócio estruturais, a ideia de Determinantes Sociais da Saúde
encontra na percepção das causas das iniquidades da saúde, os fatores sensíveis
multidimensionais das Condições de vida, Ambiente e Trabalho, Redes sociais,
Comunitárias e Saúde e Comportamentos, Estilos de Vida e Saúde. (CNDSS, 2008).2

É claro que identificar iniquidades exige o esclarecimento conceitual sobre equidade,


ajustado no contexto político-científico, não meramente partidário. Segundo ensinamento de
Ronald Dworkin em “O Império do Direito”, em política, a "eqüidade é uma questão de
encontrar os procedimentos políticos e métodos para eleger dirigentes e tornar suas decisões
sensíveis ao eleitorado." (DWORKIN, 2002; p.200) 3 . Em outras palavras, equidade
constitui em procedimentos decisórios que levam em consideração os aspectos sensíveis à
vida das pessoas a quem se dirigem as decisões. E, importa recolocarmos a ideia de
eqüidade da perspectiva dos Direitos Fundamentais, portanto, das normas de Direito
Constitucional. Assim, é possível assumir que identificar e superar as causas determinantes
de iniquidades na saúde é adotar os desafios e os compromissos de uma moralidade pública
de integridade por uma ordem jurídico-político de Justiça social correspondente à proteção
da dignidade do ser humano, promovendo e estabilizando, pelo trabalho digno, a realização
da livre concorrência contemporânea ao respeito às relações de consumo e dos
consumidores, assegurando a função social da propriedade em um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, e compreendendo necessário a redução das desigualdades
sociais, regionais, em um Estado e em uma sociedade livre, justa e solidaria que lho
contenha, na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade, e quaisquer outras formas de discriminação. (Constituição Brasileira 1988, art. 3º e
art. 5º; Constituição Portuguesa 1976, art. 1º e art. 13.)

São superlativos esses desafios quando os evidenciamos em sociedades, como a brasileira,


de abissais desigualdades estruturais marcadas por racismo estrutural, misoginia, sexismos e
patriarcalismo culturais, que acomodam violências domésticas e institucionais em
permanente estágio de subtração das autonomias, das capacidades cívicas e da dignidade
das mulheres Tudo por meio da violência multifacetada.

Assim, a dialogicidade presente na obra está anunciada e densificada na unidade do objeto


de pesquisa e traduzida na diversidade de abordagens que reconhecem a violência como um
fenômeno sistêmico de saúde pública, na Espanha, em Portugal, no Brasil e alhures, que
requesta adoção de estratégias intersetoriais de políticas públicas ao seu enfrentamento,
tanto para identificar as agressões, suas formas diretas e sub-reptícias, bem com as sequelas
nas vítimas mulheres e crianças, superando e compreendendo o silenciamento, alimentado
pelo temor reverencial dos agressores e o sentimento de impotência e de solidão que
experimentam essas vítimas.
Não há como desconhecer que na complexidade do sistema social, o funcionamento
contemporâneo dos sistemas político, econômico, jurídico e moral, condicionam tanto a
institucionalização do relevante social, sua conversão em pretensão política, e sua
exteriorização jurídica na forma da lei, até mesmo criminalizando o diferente e a moral
alheia. Esse processamento histórico acomoda ou propõe rupturas nas situações e
tendencias evolutivas e desenvolvimentistas, regulando ou não as mobilidades sociais,
migrações, urbanização, estruturação do mercado de trabalho e suas condicionantes
imediatas, a distribuição de renda e acesso à educação. Ao mesmo tempo conduz a
manutenção do status quo das estratificações socioeconômicas como estratégias de poder,
na adoção de indicadores e marcadores de renda, escolaridade, gênero, lugares e espaços
sociais, e suas identidades territoriais.

Determinantes sociais, portanto, exige de todos nós a compreensão que a questão da saúde
não é meramente de sintomatologia imediata de um mal-estar ou de um desconforto
episódico. Não.

— A questão da saúde é complexa, e sua qualidade é uma resultante da convergência de


forças, de vetores e de fatores que lhe condicionam quanto a sua qualidade ou fragilidade de
vida. Portanto, torna-se necessário recolocar o problema nas variáveis: como se vive? Onde
se vive? Sob que circunstâncias de pressões sociais se vive? Ambiente, trabalho, repouso,
não-descanso, moradia e acesso a equipamento públicos? Hábitos alimentares, riscos pelo
consumo de tabagismo e ou alcoolismo, práticas desportivas ou atividades do ócio? Tudo
isto deve ser sopesado e tomado como fatores determinantes sociais da qualidade ou não de
vida. E nessa equação a variável da violência é um exponencial que altera sensivelmente os
resultados de modo negativo quanto à vida digna da mulher, e das mulheres.

Congratulo-me com todas as autorias dos trabalhos aqui descortinados, e de modo especial
anoto minha gratidão ao querido supervisor de pós-doutorado em Saúde Pública, o
professor catedrático e coordenador da obra e seu correspondente projeto, Doutor José
Manuel Peixoto Caldas.

De São Luís do Maranhão para O Porto, Portugal, aos 12 de setembro de 2021.

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