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ISSN edición web: 0719-6296
Copyright 2018: Universidad de Chile, Santiago (Chile)
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Resumo
A criação da Lei n 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, procurou criar mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres no contexto brasileiro. Um dos mecanismos
possíveis é a possibilidade de a Administração Pública ofertar espaços para que os homens autores de violência
possam ser atendidos a m de prevenir a reincidência de novas ações violentas. Contudo, ao não citar
qual política pública será responsável pela criação destes espaços, deixa um vazio jurídico que precisa ser
preenchido. Assim, por meio da discussão sobre os avanços que a referida lei provocou na elaboração de
políticas públicas no contexto brasileiro, apresentamos a Assistência Social, política pública de proteção social
não-contributiva, como um lugar possível para a elaboração de ações para estes homens. Aqui resgatamos
estratégias que vêm sendo utilizadas tanto no Brasil quanto na América Latina que podem dar pistas de como
torná-las referências potentes para a referida política pública. Para fundamentar a discussão utilizamos duas
perspectivas epistemológicas, as teorias feministas e o Construcionismo Social, por possibilitar a ampliação
do olhar sobre a temática sem a pretensão de encerrá-la, mas sim realizar o apontamento de novos caminhos
Public Policy of Social Assistance: A place to work with men who perpetrate violence
Abstract
The creation of Law 11,340/2006, also known as Lei Maria da Penha, sought to create mechanisms to curb
domestic and family violence against women at Brazilian context. One of the possible mechanisms is the
possibility for the Public Administration to oer spaces so that men who perpetrate violence can be cared
for in order to prevent the recurrence of new violent actions. However, by not citing which public policy
will be responsible for creating these spaces, it leaves a legal void that needs to be lled. Thus, through the
discussion of the advances that this law provoked in the elaboration of public policies in the Brazilian context,
we present the Social Assistance, public policy of non-contributory social protection, as a possible place for
the elaboration of actions for these men. Here we retrieve strategies that are being used both in Brazil and
in Latin America that can give clues on how to make them powerful references to the aforementioned public
policy. To support the discussion, we use two epistemological perspectives, feminist theories and Social
Constructionism, because it allows us to widen our eyes on the subject without pretending to close it, but
rather to point out new paths
E-mail: adriano.beiras@ufsc.br
Social e Combate à Fome, 2011). O Serviço de Pro- ção direta ao trabalho reexivo e educativo com os
teção e Atendimento Especializado a Famílias e In- homens.
divíduos (PAEFI), outro ao qual temos interesse em
Com isso, iluminamos o objetivo desse artigo, que
discutir, encontra-se nesta proteção, e presta apoio,
trata de problematizar a Assistência Social como
orientações e acompanhamento dos sujeitos em situ-
possibilidade de ser um campo de trabalho possível
ação de violação de direitos, em especial, a violência,
com as masculinidades, em especial, com a proposta
para [...] a preservação e o fortalecimento de víncu-
de ações e serviços à homens autores de violência,
los familiares, comunitários e sociais e para o forta-
como os grupos que a Lei Maria da Penha propõe,
lecimento da função protetiva das famílias diante do
por exemplo. Para tanto, utilizamos experiências
conjunto de condições que as vulnerabilizam e/ou
brasileiras e latinas que podem servir para a cons-
as submetem a situações de risco pessoal e social.
trução social desta demanda. Compreendemos que a
(Conselho Nacional de Assistência Social CNAS e
demanda se constrói a partir da oferta (Baremblitt,
Ministério do desenvolvimento Social e Combate a
1992 citado por Franco e Merhy, 2005) e resultante
Fome, 2009: 19). Por m, a Proteção Social Especial
de processos de negociação, mediados pela cultura,
de Alta Complexidade, que possui o mesmo objetivo
e que acontece por meio da interlocução dos atores
da Média Complexidade, com a diferença que, nesta,
representantes de diversos saberes e experiências (de
os sujeitos estão de alguma forma afastados do con-
Camargo Jr, 2005).
vívio familiar, encontrando-se em acolhimentos ou
serviços similares (Conselho Nacional de Assistência
Destaca-se, portanto, que o SUAS é um campo de
Social CNAS e Ministério do desenvolvimento Social
atuação reconhecidamente marcado pela construção
e Combate a Fome, 2009), contudo, ainda que seja
de uma política pública de mulheres para mulheres.
possível, não contemplaremos a discussão destes.
Esta condição revela uma importante arena de de-
bate sobre as diculdades e facilidades que, tanto as
Esta organização por níveis de proteções per-
trabalhadoras quanto os usuários autores de violên-
mite as pessoas o atendimento de suas demandas
cia, encontram diariamente. Faz parte das narrati-
familiares, comunitárias e sociais, entre as quais
vas das trabalhadoras o problema encontrado em fa-
encontram-se as violências vivenciadas por mulheres
zer os homens, sejam quais forem, aderirem aos ser-
no âmbito doméstico, tendo como autoria destas vi-
viços socioassistenciais. Parte do argumento passa
olências seus parceiros, denidos aqui como homens
pela condição de grande parte deste público perfor-
autores de violência. Desta forma, cabe destacar
mar uma masculinidade que não acessa as políticas
que, paralelo a efetivação do Sistema Único de As-
públicas por ter o seu tempo dedicado ao trabalho
sistência Social - SUAS, o país estava discutindo a
e as atividades distantes da vida doméstica (Car-
criação de uma legislação que garantisse a proteção
doso, 2018). Assim, na inexistência deste público,
º
de mulheres vítimas de violência, chegando a con-
as ações das trabalhadoras estão focadas sempre nas
clusão da Lei n 11.340, de 2006, também conhecida
mulheres, que em sua maioria, são mães e dedicadas
pelo nome Lei Maria da Penha, que entre outras
as tarefas do lar. Neste cenário, questionamos se
coisas, cria mecanismos para coibir a violência do-
não há homens para que as ações dos serviços sejam
méstica e familiar contra a mulher [...] (Brasil e da
ofertadas ou não há oferta de ações especícas às
Penha, 2006).
demandas de homens para que estes acessem os ser-
Segundo Beiras et al. (2012) esta lei altera o Có- viços e reitam sobre suas condições, em especial, a
digo Penal Brasileiro ao triplicar a pena para as autoria de violência contra suas parceiras.
agressões contra as mulheres e aumentando os me-
Como Ramírez Rodríguez e Gutiérrez de la Torre
canismos de proteção para com elas. A lei possibi-
(2017), compreendemos que uma das maneiras de in-
litou os seguintes aspectos: a) aumento do custo da
serir e acelerar a participação de homens enquanto
pena para o autor da violência; b) aumento do em-
corresponsáveis ao enfrentamento à violência de gê-
poderamento e das condições de segurança para as
nero é por meio de adoção de políticas públicas, no
vítimas; c) aperfeiçoou os mecanismos jurisdicionais
(Cerqueira et al., 2015). Destacando o lugar do ho-
caso brasileiro, a Assistência Social. Neste sentido,
para que os serviços socioassistenciais possam ser
mem e do masculino nesta Lei, Banin e Beiras (2016)
aprofundados neste artigo como espaços de mascu-
discutem que o mesmo está ligado diretamente ao
linidades, utilizaremos as orientações técnicas que
viés punitivo, utilizando-se do termo agressor e re-
dão as diretrizes para a condução dos trabalhos pe-
lacionado às medidas coercitivas. Contudo, apesar
las equipes de referência, compostas, em sua maio-
deste teor de punição, é a primeira lei que traz men-
ria, por prossionais da Psicologia e do Serviço So-
cial: Orientações Técnicas sobre o PAIF - Volume Na ação protetiva as intervenções visam amparar,
1 (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate apoiar, auxiliar, resguardar, defender o acesso das
à Fome, 2012a), Orientações Técnicas sobre o PAIF famílias e seus membros aos seus direitos, enquanto
- Volume 2 (Ministério do Desenvolvimento Social que na ação proativa a intenção é antecipar ações
e Combate à Fome, 2012b) e Orientações Técnicas: e intervenções que podem ser vivenciadas pelas fa-
Centro de Referência Especializado de Assistência mílias ou território, mas que ainda não chegaram
Social CREAS (Ministério do Desenvolvimento So- como demanda (Ministério do Desenvolvimento So-
cial e Combate à Fome, 2011). cial e Combate à Fome, 2012a).
A partir desta reexão sobre as ações e estraté- Desta forma, ca evidente que as ações têm foco
gias que as/os trabalhadoras/es utilizam no cotidi- nas famílias e nas relações desta com a comunidade.
ano do trabalho social com as usuárias e com os Assim, conforme o Volume 1 das orientações, o PAIF
usuários, aliadas ao campo brevemente contextuali- deve atender todas as famílias em situação de vulne-
zado acima, rearmamos que nossas discussões bus- rabilidade social do território que atende. Contudo,
carão contribuir para que a destacada política pú- algumas situações demandam um olhar atento, en-
blica seja construída como um lugar para o trabalho tre as quais citamos duas: Famílias com episódios
com homens autores de violência e, sempre que pos- pregressos de violência entre seus membros adultos;
sível, faremos o tensionamento para que os serviços Famílias com episódios pregressos de violência con-
sejam ofertados a todos os homens. tra criança/adolescente (abuso sexual, violência fí-
sica ou violência psicológica) (Ministério do Desen-
volvimento Social e Combate à Fome, 2012a: 42).
2 PAIF e PAEFI: Prevenção, Prote-
ção e Proação Mas não basta falar em modalidades de ação que
o PAIF deve propor às famílias que temos citado
Considerado a porta de entrada da rede socioas- até então, é preciso avançar com o questionamento:
sistencial, o Centro de Referência de Assistência So- Como essas ações são colocadas em práticas no dia
cial (CRAS) é o equipamento responsável por ofer- a dia do serviço? Este questionamento surge em
tar o Serviço de Proteção e Atendimento Integral nosso horizonte porque nos parece muito vago falar
às Famílias (PAIF), que dever prever por meio de de ações sem falar que ações são essas. Justamente
ações de caráter preventivo, protetivo e proativo, o querendo dar respostas sobre essas ações que o MDS
desenvolvimento de potencialidades e aquisições das lançou o volume 2 das Orientações Técnicas sobre
famílias e o fortalecimento de vínculos familiares e o PAIF, que tem como proposta o Trabalho Social
comunitários, não devendo possuir caráter terapêu- com Famílias do Serviço de Proteção e Atendimento
tico (Conselho Nacional de Assistência Social CNAS Integral à Família".
e Ministério do desenvolvimento Social e Combate a
Fome, 2009). O conceito de trabalho social com famílias no âm-
bito do SUAS, em especial no PAIF, é denido da
Em 2012, o então chamado Ministério do Desen- seguinte forma:
volvimento Social e Combate à Fome (MDS), publi-
cou dois documentos com orientações técnicas que
Conjunto de procedimentos efetuados a partir
devem servir como norte para as citadas ações pre-
de pressupostos éticos, conhecimento teórico-
ventivas, protetivas e proativas. O primeiro docu-
metodológico e técnico-operativo, com a na-
mento nomeado Orientações Técnicas sobre o PAIF
lidade de contribuir para a convivência, reco-
- Volume 1 - O Serviço de Proteção e Atendimento nhecimento de direitos e possibilidades de in-
Integral à Família - PAIF, segundo a Tipicação Na- tervenção na vida social de um conjunto de
cional de Serviços Socioassistenciais (Ministério do pessoas, unidas por laços consanguíneos, afe-
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2012a), tivos e/ou de solidariedade que se constitui
traz as denições do que seriam as referidas ações. em um espaço privilegiado e insubstituível de
proteção e socialização primárias, com o ob-
A ação preventiva tem o objetivo a prevenção jetivo de proteger seus direitos, apoiá-las no
de quaisquer ocorrências que interram no exercício desempenho da sua função de proteção e soci-
dos direitos de cidadania, requerendo intervenções alização de seus membros, bem como assegu-
orientadas a evitar a ocorrência ou o agravamento rar o convívio familiar e comunitário, a par-
de situações de vulnerabilidade e risco social, que
tir do reconhecimento do papel do Estado na
impedem o acesso da população aos seus direitos.
proteção às famílias e aos seus membros mais
vulneráveis.
É notável as inúmeras possibilidades de ações co- zado exige que a equipe de prossionais seja inter-
letivas na Proteção Social Básica através do CRAS, disciplinar, com domínio teórico-metodológica, agre-
por meio do PAIF de forma a, como já foi expla- gando os mais diversos instrumentos técnicos e ope-
rativos, com bases teóricos-metodológicas e ético-
1 Grifos nossos.
políticas que contribuam para um posicionamento
crítico frente à realidade social. Assim, tal como no cheguem ao CREAS ou podemos propor ações já na
PAIF, o PAEFI/CREAS possui centralidade na fa- Proteção Social Básica?
mília visando o fortalecimento da função protetora
de forma a prevenir e mediar as condições que irão
superar os agravamentos de processos que geram ou
2.1 SUAS: Ações ecazes, possíveis e poten-
acentuam as situações de violência e quaisquer ou-
cialmente possíveis
tras que colocam a família ou algum de seus mem- Ao pensarmos na Assistência Social como um lu-
bros em situação de risco pessoal e social (Ministé- gar possível para o trabalho com homens autores de
rio do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, violência, seja na Proteção Social Básica ou na Pro-
2011). teção Social Especial de Média Complexidade, pre-
cisamos pensar se as estratégias e intervenções pro-
Conforme as Orientações Técnicas do CREAS
postas são ecazes, promissoras ou potencialmente
(Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
promissoras (Flood, 2011). Flood (2011) ressalta
à Fome, 2011), entre as competências dos serviços
que as intervenções ecazes são aquelas têm funda-
que oferta estão o planejamento de ações tendo em
mentação teórica, apresentam evidências de implan-
vista o atendimento qualicado à população, a coor-
tação bem como evidência da ecácia. As promisso-
denação de trabalhos em equipe assegurando a inter-
ras possuem fundamentação teórica, foram implan-
disciplinaridade e, a terceira competência, propiciar
tadas, mas ainda não possuem evidências de ecá-
acompanhamento continuado as ações desenvolvidas
cia, enquanto que as potencialmente promissoras, da
permitindo reexão conjunta para identicação de
mesma forma apresentam fundamentação teórica,
ajustes e aprimoramentos necessários. Essas compe-
contudo essa fundamentação ainda não foi avaliada.
tências devem estar articuladas para atingir os obje-
tivos: o já citado fortalecimento da função protetiva É ponto comum nas três categorias de interven-
da família; a construção de possibilidades de mu- ção a necessidade de haver fundamentação teórica
danças em padrões violentos de relacionamentos no para que o trabalho possa acontecer. Propomos,
âmbito familiar e comunitário; potencialização dos então, trazer as Teorias Feministas que conceituam
recursos para superar situações de violação de direi- Gênero e Masculinidade, isso porque, como expres-
tos e reconstrução de relacionamentos, quando for o sam (Beiras, 2014) e Beiras e Bronz (2016) a uti-
caso; empoderamento e autonomia; protagonismo e lização destas, em especial a Teoria Feminista Pós-
participação social; acesso a direitos socioassistenci- estruturalista, abre a possibilidade de olhar para a
ais; prevenção a institucionalização. diversidade transcendendo as dicotomias, reducio-
nismos, essencializações e naturalizações. Quando
As ações coletivas são tão importantes no PAIF
tratamos especicamente da violência masculina,
quanto no PAEFI, embora o segundo tenha um foco
as investigações e debates apresentam um grande
maior na violação de direitos, ou, em outras pala-
avanço justamente por consequência das propostas
vras, tem ações especializadas, enquanto que o pri-
dos múltiplos Feminismos e do Movimento de Mu-
meiro as ações são na prevenção. Justamente por
lheres (Aguayo e Nascimento, 2016).
isso, que os prossionais que atuam no PAEFI de-
vem conhecer algumas legislações e normativas, que Acreditamos que não é possível trabalhar com ho-
aqui destacamos: Plano Nacional de Enfrentamento mens autores de violência se não compreendermos as
da Violência Sexual Infanto-Juvenil; Lei Maria da relações de gênero e como este gênero é construído.
Penha; Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Vio- Butler (2003) arma que Gênero é um fenômeno in-
lência contra a Mulher (Ministério do Desenvolvi- constante e contextual por ser um ponto de conver-
mento Social e Combate à Fome, 2011: 101). gência entre conjuntos de relações culturais e histo-
ricamente convergentes, estando sempre instável, ou
Tendo isso em nosso horizonte, podemos resga-
seja, sempre em construção e em desconstrução, em
tar nosso questionamento: poderia ser a Assistên-
outras palavras, Butler compreende que o Gênero é
cia Social um espaço possível para o trabalho com
uma categoria vazia, que irá sendo preenchida por
homens autores de violência? Parece evidente que
estas relações convergentes.
sim, conforme buscamos trazer com as orientações
técnicas, contudo, não basta dar uma resposta ar- Assim, Nogueira (2001), compartilhando deste ar-
mativa e nos despedirmos. Se é possível, como é que gumento, compreende que Gênero não é algo ligado
podemos criar ações que sejam ecazes para o aten- a uma identidade individual que possibilita dizer
dimento com esses homens? É preciso esperar que quem é homem, quem é mulher, mas sim desenvolve-
se mediante a discursos organizados em um sistema contextos de violência, requer olhar aquela comuni-
de signicados disponíveis aos indivíduos de forma a dade, aquela família, aquele sujeito, a partir dele e
darem sentido às suas posições, o que historicamente não cair na armadilha de armar que todas as co-
é reconhecido como respostas para a feminilidade e munidades, famílias e sujeitos são daquela forma, ou
para a masculinidade. ainda, de buscar enquadrá-los em uma teoria que ex-
plique a tudo e a todos como iguais.
A própria masculinidade deve passar pela com-
preensão do conceito de Gênero, sendo ela mesma, Este saber localizado, portanto, pode ser cons-
desta forma, uma categoria vazia. Connell et al. truído a partir de outra categoria, a Experiência.
(2013) e Messerschmidt conrmam essa concepção Para Scott (1998) é por meio da experiência que os
ao tratar a masculinidade como uma entidade que sujeitos podem se tornar visíveis, pois é esta expe-
não é xa, não estando encarnada no corpo mascu- riência que produz o sujeito enquanto história en-
lino ou próprio da personalidade dos sujeitos, sendo cenada por meio da linguagem, da qualidade pro-
assim, as masculinidades são congurações práti- dutiva do discurso, em outras palavras, quando os
cas que são realizadas na ação social e, dessa forma, sujeitos falam de suas experiências estão falando de
podem se diferenciar de acordo com as relações de suas histórias e do modo como foram sendo cons-
gênero em cenário social particular (Connell et al., truídos enquanto sujeitos. Isso não signica eximir
2013: 250). de responsabilidades os homens autores de violência,
mas a partir do momento em que tornam a experiên-
Para Kimmel (2008), o feminismo possibilitou,
cia visível, tem a possibilidade de questionar, reetir
ainda o faz, que o conceito de masculinidade assuma
e se permitirem a novas experiências, desta forma,
dois aspectos importantes, sendo o primeiro deles a
acreditamos que a Experiência assume um viés de
visibilidade da própria mulher e, da mesma forma,
ação política, possibilitando as transformações ne-
a visibilidade do Gênero, permitindo compreendê-lo
cessárias para a igualdade a partir da diversidade
como um sistema de classicação que não apenas es-
(Scott et al., 2005).
tabelece que as mulheres se tornem femininas e os
homens masculinos, mas também os enquadre den- A Interseccionalidade é outra categoria impor-
tro de relações de poder que produzem desigualdade. tante, por também levar em consideração o saber lo-
Outro aspecto abordado por Kimmel (2008) foca na calizado e a experiência, pois, para Nogueira (2013),
Diversidade, permitindo ver como os homens, de- ao se falar de interseccionalidade precisamos estar
pendendo de situações especícas, denem a mas- atentos às especicidades da data, do local, das his-
culinidade de forma diferente. tórias e das localizações (233). Desta forma, ao
falar de interseccionalidade estamos falando de gê-
Havendo compreendido os conceitos de Gênero e
nero, sexo, raça, etnia, classe social, religião e de-
de Masculinidade, Beiras (2014), ainda alertam so-
mais categorias que juntas possibilitam ou impossi-
bre a necessidade de se estar atento às margens do
bilitam o acesso a privilégios socialmente construí-
discurso hegemônico, do que está socialmente legi-
dos, e assim, como a injustiça e a desigualdade so-
timado enquanto verdade. Assim, acreditamos que
cial ocorrem (Crenshaw, 1989). Ressaltamos que
outras categorias são igualmente importantes para o
essas categorias se relacionam de modo a trans-
trabalho com homens autores de violência e também
cender uma identidade somatória, acumulativa (ho-
para o SUAS: Saber localizado; experiência; inter-
mem+branco+classe média...), mas sim, uma iden-
seccionalidade.
tidade que é multiplicativa (homem x branco x classe
média) (Nogueira, 2013).
Quando tratamos de saberes localizados esta-
mos compreendendo a partir de Haraway (1995), que
Consideramos tais fundamentos e conceitos im-
argumenta a favor de políticas e epistemologias de
portantes para dar sustentação as experiências que
alocação, posicionamento e situação que pretendem
traremos a seguir, contudo, queremos destacar que
não responder a universalização, mas sim a parci-
os mesmos estão abertos para reexões, por se tra-
alidade, sendo esta a condição para a produção do
tarem de um conhecimento localizado, parcial e con-
conhecimento. Assim, São propostas a respeito da
tingente (Butler, 1998). As revisões podem aconte-
vida das pessoas; a visão desde um corpo, sempre um
cer na prática, no cotidiano de trabalho, no exercí-
corpo complexo, contraditório, estruturante e estru-
cio ético do trabalho social com as famílias e sujeitos
turado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, do
vulnerabilizados pelos contextos em que constroem
simplismo"(Haraway, 1995: 30). Na Assistência So-
suas relações.
cial, como um todo, não apenas com o trabalho em
O manual Educação para a Ação homens pelo As campanhas sobre normas sociais"buscam re-
m da violência contra a mulher desenvolvido por conhecer e preencher as lacunas que existem entre
Lima et al. (2007) pode ser considerado uma expe- os homens causadas pelas normas sexistas de apoio
riência que contempla este nível. É uma produção a violência, enquanto que nas Intervenções Espec-
feita pelos esforços em conjunto do Instituto Papai, tadoras"a estratégia é envolver toda a comunidade
White Ribbon Campaign e Promundo, com a co- enquanto responsável pela violência e, da mesma
laboração do Instituto Noos, Pró-mulher: Família forma, responsável pela superação desta. Exemplo
e Cidadania, Ecos: Comunicação em sexualidade e desta última é a campanha Cuenta tres: tú, ella,
do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinida- tu familia. Saca lo mejor de ti. Detén la violencia,
des da Universidade Federal de Pernambuco (Gema- lançada em 2007 na Venezuela, promovida pelo Sis-
UFPE). tema das Nações Unidas e a Fundación Banco Fondo
Común, com apoio da Inamujer, por meio audiovi-
Por meio de um conjunto de estratégias que vi-
sual, convida aos homens do país a serem aliados
sam promover a Campanha Laço Branco, o objetivo
no combate a violência contra mulheres e meninas
do trabalho passa pela sensibilização, envolvimento
(Amnistía Internacional, 2008).
e mobilização de homens jovens e adultos no engaja-
mento pelo m da violência contra mulher, onde es- No nível seguinte está a Educação dos Prossi-
tes homens adotem maneiras para resolver conitos onais que possui uma forte fundamentação teórica
que não a violência (Lima et al., 2007). O trabalho que pode mudar o envolvimento cotidiano destes em
em grupo é organizado pela execução de dezesseis direção a fortalecer ou enfraquecer as normas sociais
ocinas que inicia tratando das construções de ho- que sustentam e mantém a violência, especialmente,
mem e mulher, passando pelas questões relativas à em locais de trabalho socialmente reservados para
violência e chegando na denição de um plano de homens, como a polícia, tribunais de justiça e insti-
ação para colocar em prática a referida campanha. tuições médicas
2 (Flood, 2011). No quarto nível,
a estratégia utilizada é o Envolvimento, Fortale-
Na mesma direção, no Uruguai, encontramos o
cimento e Mobilização de Comunidades, que para
manual Prevención de la violencia sexual con varo-
Flood (2011) trata-se de os prossionais possibilita-
nes. Manual para el trabajo grupal con adolescentes
rem que as comunidades possam criar estratégias lo-
y jóvenes escrito e desenvolvido por Aguayo et al. cais para responder de modo ecaz a questão da vio-
(2015), do Centro de Estudios sobre Masculinida-
lência. Entre as ações estão as Equipes de Ação Co-
des y Género. Através de 26 atividades, a proposta
munitárias", onde os membros da comunidade são
do manual é ser uma ferramenta que possibilita às
os responsáveis para criar mecanismos de suporte e
pessoas com interesse em facilitar grupos reexivos
prevenção a violência.
com adolescentes e jovens construir uma metodo-
2 No Brasil, outras instituições podem ser inseridas, como
logia de trabalho em torno de temas fundamentais
equipes de futebol, por exemplo.
Em 2017, pensando em possibilitar que este Um dos programas mapeados é realizada no muni-
quarto nível fosse possível em um Centro de Referên- cípio de Blumenau, no Estado de Santa Catarina
cia de Assistência Social, o município de Balneário
Tendo como um dos principais atores o assistente
Camboriú, Brasil, em parceria com uma universi-
social Ricardo Bertoli, que iniciou, no início da dé-
dade local, realizou um grupo comunitário para tra-
cada de 2000, um programa de atendimento a ho-
balhar a prevenção à violência de gênero. Por meio
mens autores de violência. Atualmente as ativida-
de suas narrativas pessoais sobre as violências, as
des são realizadas também por outros prossionais
usuárias e os usuários eram convidados a reetir so-
como estratégia da política pública de Assistência
bre as violências que sofriam e praticavam de modo
Social, nos Centros de Referência Especializados de
a desnaturalizar as mesmas.
Assistência Social, neste município. (Beiras, 2014)
O nível 05, Alterar as Práticas Organizacionais traz que as intervenções estão organizadas em dois
e, por m, o sexto nível Inuenciando Políticas e Le- eixos: o primeiro eixo é o da Proteção, que acontece
gislação, são ações macroestruturais que envolvem por meio do serviço de acolhimento institucional às
todos os envolvidos nos níveis listados acima. As mulheres e seus lhos em situação de risco pessoal
mudanças nas práticas organizacionais, como insti- provocado pelo fenômeno da violência doméstica, e
tuições de ensino, poder judiciário, instituições mili- o segundo eixo é o da Prevenção e Promoção, que
tares, polícias (Flood, 2011), e vamos inserir aqui, os propriamente o grupo com os homens destas famílias
equipamentos de Assistência Social, são tão impor- em situação de violência doméstica.
tantes quanto envolver a comunidade na prevenção,
Outra proposta que nos produzem sentidos é rea-
isso requer armar que, se as práticas organizacio-
lizada pelo Instituto Noos, por meio da metodologia
nais não mudarem as ações de prevenção demoram
denominada Grupo Reexivo de Gênero (Beiras e
para se tornarem ecazes. Da mesma forma, não
Bronz, 2016). Beiras (2014: 22)informa que o obje-
basta apenas envolver os sujeitos nas ações se não
tivo da intervenção está em promover e também ofe-
possibilitar que essas ações se transformem em ações
recer métodos pacícos de resolução de conitos, as-
políticas, da mesma forma, devem também estar en-
sim como promover relações equitativas de gênero.
volvidos na construção e na universalização de direi-
Sobre a metodologia utilizada, trata-se de uma prá-
tos.
tica onde diferentes descrições sobre como nos re-
Tendo propostas ações para a Proteção Social Bá- lacionamos, a partir de um lugar socialmente de-
sica por meio do PAIF, na Proteção Social Especial nido, são expostas e confrontadas (Beiras e Bronz,
de Média Complexidade, traremos alguns exemplos
3
2016) .Tal proposta é potente para o atendimento de
de experiências com homens autores de violência que homens autores de violência no CREAS, pois parte
podem servir de referência para a criação de estraté- da compreensão da violência como uma construção
gias ecazes, destacando que as ações acima também social, podendo, então, ser desconstruída. Trata-se,
podem ser efetivas para esta proteção, contudo, esta- na compreensão de Beiras e Bronz (2016) e Bronz,
mos destacando a especialidade que o serviço possui. de criar um espaço convívio onde se deve valorizar a
Vale a pena destacar que os programas de atenção diversidade através do exercício do diálogo, de pro-
aos homens autores de violência do Brasil, em sua blematização e questionamento que pode promover
maioria, têm proposto reexões sobre as causas do uma imersão crítica e novos olhares sobre o cotidiano
comportamento violento por meio do enfoque nos de seus participantes, de produção individual e co-
Estudos de Gênero. Em outros países, como México letiva de conhecimento, de valorização da cidadania
e Argentina, por exemplo, além da perspectiva de quando desvela a importância de cada participante
gênero, também há intervenções fundamentada no e do grupo na constituição dos saberes ancorados
enfoque cognitivo-comportamental e em grupos de no contexto social do qual todos fazem parte, exa-
reeducação (Baños Cano et al., 2017). tamente o que prevê a Política Nacional de Assis-
tência Social (Ministério do Desenvolvimento Social
Iniciamos com a experiência do mapeamento de
e Combate à Fome, 2004) e a Tipicação Nacional
programas que atendem homens autores de violên-
dos Serviços Socioassistenciais (Conselho Nacional
cia no Brasil realizado por Beiras (2014). O obje-
de Assistência Social CNAS e Ministério do desen-
tivo foi conhecer as especicidades e necessidades
volvimento Social e Combate a Fome, 2009).
dos programas e, ainda, realizar a promoção do de-
3O livro está disponibilizado na ver-
senvolvimento de uma rede entre estes programas
são digital e pode ser acessado pelo link:
para intercâmbio de informações e trocas de expe-
https://issuu.com/annacarlaferreira/docs/metodologiapdf-
riências que possibilitasse futuros aprimoramentos. 07-06-2017
É certo que outras práticas poderiam ser citadas ao já citado anteriormente em Baremblitt (1992 ci-
como exemplos ecazes ou promissoras para o aten- tado por Franco e Merhy, 2005) sobre a construção
dimento especializado de homens autores de violên- da demanda.
cia no âmbito do PAEFI (Toneli et al., 2010; Bei-
Nesta direção, resgatando o nível 5 proposto por
ras, 2013), contudo as duas práticas foram escolhi-
Flood (2011), é necessário capacitar estas trabalha-
das por serem experiências atuais que acontecem em
doras e estes trabalhadores, por serem, junto com
território nacional, especialmente, por estarem fun-
os usuários e as usuárias, os principais sujeitos pro-
damentadas nas teorias feministas e nos estudos das
tagônicos de uma nova organização do processo de
masculinidades.
produção (Franco e Merhy, 2005) de proteção social,
Assim, o diferencial da Assistência Social, seja no a partir de discussões e mobilizações. Assim, a cons-
CRAS ou CREAS, para ser o lugar de atendimento trução da Assistência Social como um espaço para
de homens autores de violência, reside em sua con- o trabalho com homens autores de violência, utili-
dição de política pública de proteção social que tem zando as palavras de Franco (2003 citado por Franco
como objetivo fortalecer os vínculos familiares e co- e Merhy, 2005: 187) escritas para serviços de saúde,
munitários. Esta condição coloca em destaque um é sempre um processo de construção social, polí-
importante aspecto: não é um lugar reconhecido tica, cultural, subjetiva e tecnologicamente determi-
pela punição às usuárias e aos usuários. Ao não nado. Neste sentido, algumas ações estão sendo re-
ser este lugar, onde o fantasma da punição está alizadas com as equipes de referência de Centros de
presente, como nas delegacias, tribunais e defenso- Referência de Assistência Social em Florianópolis,
rias públicas, a possibilidade de vínculo dos homens Brasil, meio da extensão universitária, onde Beiras,
com o serviço, em nossa compreensão, pode ser fa- em conjunto com acadêmicos, estão capacitando es-
cilitada. tas equipes para compreender o campo de atuação
destes prossionais por meio da ótica dos Estudos
Nossa tendência é reforçar o CREAS como o prin-
de Gênero, para assim propor processos formativos
cipal lugar na Assistência Social, por dois motivos
que os capacitem a atuar com homens autores de
que destacamos da Tipicação dos Serviços Socioas-
violência e as demandas que estes apresentam aos
sistenciais: (1) as usuárias e os usuários são pessoas
serviços socioassistenciais.
que vivenciam violações de direitos por decorrên-
cia de violência (física, psicológica, sexual e outras);
(2) prevenção a reincidência de violações de direitos. 4 Considerações Finais
Estes motivos criam a possibilidade do atendimento
Ao longo deste artigo, apresentamos à política pú-
de homens autores de violência, pois sem o trabalho
blica de Assistência Social e seus níveis de proteção,
com os mesmos, a reincidência ca facilitada e novas
em especíco a Proteção Social Básica e a Proteção
violações de direitos devido à violência.
Social Especial de Média Complexidade, algumas
Contudo, a construção da Assistência Social en- experiências brasileiras e outras da América Latina
quanto este lugar traz desaos. Em pesquisa de mes- que podem ser uteis aos seus serviços, trabalhado-
trado realizada por Cardoso (2018) em um CREAS, ras, trabalhadores, usuárias e usuários na constru-
foi possível constatar que as práticas das trabalha- ção das demandas que chegam aos equipamentos,
doras e dos trabalhadores ainda são planejadas sem seja no CRAS, seja no CREAS. Em um campo mar-
a reexão sobre Gênero, e por consequência, sobre as cado pelo feminino, ampliar a matriz de possibilida-
masculinidades. Algumas destas práticas ainda re- des para o atendimento de homens nos parece total-
forçam as mulheres como responsáveis pela violência mente necessário.
que sofrem e, algumas outras, colocam os homens
Parece-nos claro que as experiências propostas e
também como vítimas da Lei Maria da Penha. Ou-
os recortes feitos nas orientações do Ministério do
tros aspectos da pesquisa podem ser relevantes para
Desenvolvimento Social serviram para comprovar
a discussão. Entre eles está o olhar criminalizante
nosso objetivo em tornar a Assistência Social um lu-
ao autor de violência, os mesmos são reconhecidos
gar possível e potente para o trabalho com homens
como agressores, em uma condição naturalizada da
autores de violência. Contudo, cabe-nos ressaltar
violência onde não se há o que fazer. Outros pontos
que as partes deixadas de fora não tornam nossos
são os (pré)conceitos dos prossionais quanto as me-
argumentos descartáveis ou mesmo contraditórios.
todologias coletivas de atendimento e acompanha-
Destacamos, ainda, que compreendemos a relação
mento e as ações feminilizadas, que são pouco atra-
entre homens e políticas de igualdade de igualdade
tivas para os homens. Este último ponto se conecta
Fica evidente, portanto, que a Assistência Social net Mateo, M., editor, Homes i gènere. Políti-
ao colocar enquanto política pública com o objetivo ques locals i la transformació de les masculini-
principal de promover a proteção social de famílias tats, pp. 173209. ICPS, Barcelona.
e sujeitos, ela deve se propor a ser o lugar que trans-
Beiras, A. (2014). Relatório mapeamento de serviços
cenda o atendimento e do acompanhamento destes.
de atenção grupal a homens autores de violência
Deve ser um lugar que promova as reexões e deba-
contra mulheres no contexto brasileiro.
tes necessários para a transformação de uma socie-
dade sem hierarquias de gênero, o que requer ar- Beiras, A. e Bronz, A. (2016). Metodologia de gru-
mar, que deve ser um lugar que vai além dos grupos pos reexivos de gênero.
de homens dos autores de violência, indo em direção
Beiras, A., Moraes, M., Alencar-Rodrigues, R., e
a discussão das masculinidades e das feminilidades e
Cantera, L. M. (2012). Políticas e leis sobre vi-
o que se coloca tradicionalmente como lugar de ho-
olência de gênero reexôes críticas. Psicologia
mem e lugar de mulher enquanto identidades xas.
& Sociedade, 1(24):3645.
º
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