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Resumo
O presente artigo científico esboça concepções jurídicas e tem como objeto a
análise doutrinária, constitucional e principiológica do direito fundamental à
moradia digna. A questão habitacional passou a ser um dos fatores mais
vulneráveis do caos urbano, tornando-se de grande proporção e de difícil solução
para o problema que persiste em nossas cidades e Estados. Percebe-se hoje que
o processo de crescimento urbano intensivo deu-se a partir da industrialização
brasileira. O crescimento das cidades de forma vertiginosa durante o século XX 53
onde as questões estruturais da sociedade nacional nunca foram resolvidas. Esse
crescimento resultou em cidades extremamente desiguais onde a maioria da
população vivem em condições precárias de habitação.
Palavras-chave: Moradia Digna; Direito Fundamental; Políticas de Habitação.
Abstract
This scientific article outlines legal concepts and focuses the doctrinal,
constitutional and principled analysis of the fundamental right to decent housing.
The housing issue has become one of the most vulnerable factors of urban chaos,
making it of great proportion and difficult solution to the problem that persists
in our cities and states. It is noticed today that the process of intensive urban
growth took place from the Brazilian industrialization. The growth of cities
steeply during the twentieth century where the structural issues of national
society were never resolved. This growth resulted in extremely unequal cities
where most of the population live in poor housing.
Key words: Decent Housing; Fundamental Right; Housing Policies.
*
KÁTIA CRISTINA CRUZ SANTOS é advogada, professora da Universidade Federal do
Amazonas, orientadora do NPJ e mestranda em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA).
Exemplo de moradias tipo palafitas ribeirinhas no Bairro de Educados -Zona Central, na cidade de
Manaus/AM. Foto: Kátia Cruz. 54
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Exemplo de moradias tipo palafitas ribeirinhas no Bairro de Educados -Zona Central, na cidade de
Manaus/AM. Foto: Kátia Cruz.
2. Direito à moradia e o déficit intelectual. Enfim, é,
habitacional primeiramente, no espaço do lar,
concretizado num teto com paredes,
2.1 Conceitos de moradia portas, janelas e banheiro, que o
Encontramo-nos no terceiro milénio, indivíduo se sente protegido e
seguro para iniciar o aprendizado da
existem culturas que escavam suas
vida em relação.
moradias na rocha ou tribos africanas
que vivem em choupanas, também 2.2 A moradia como direito
podem ser observados no outro extremo fundamental e como direito humano
desse choque cultural e econômico da
humanidade, que o avanço tecnológico, Os direitos fundamentais apresentam
produz casas construídas com dúplice caráter como bem conceitua
arquitetura de ponta e inteligentes, nas Hesse (1998): “são direitos subjetivos e
quais seus habitantes ganham alta são elementos fundamentais da ordem
segurança e conforto como produto da objetiva da coletividade”.
nova sociedade informatizada. Schneider (1991) ao dizer que “os
Moradia, na concepção Silva (2006), direitos fundamentais são condições sem
constitui ocupar um lugar como moradia, as quais não há Estado Constitucional
ocupar uma casa, ou apartamento etc., Democrático”.
para nele habitar e morar com animus de Os direitos humanos alicerçam a
permanência, na condição de recôndito necessidade de proteção dos seres
para abrigar a família. humanos contra os abusos e as violações
A moradia, portanto, é uma necessidade de condições mínimas de sobrevivência
do indivíduo para desenvolver suas digna. Preexistem ao Estado, sendo 57
potencialidades no campo pessoal, garantidos e efetivados por ele, conforme
familiar, profissional e afetivo, conforme ensinamento de (BOBBIO, 1992):
expressa (GODOY, 2006): (...) os direitos do homem por mais
Um indivíduo, para se desenvolver fundamentais que sejam são direitos
como pessoa, para nascer, crescer, históricos ou seja nascido em certas
estudar, formar sua família, adoecer circunstâncias, caracterizadas por
e morrer com dignidade, necessita lutas em defesa de novas liberdades
de um lar, de uma moradia, da sede contra os velhos poderes, e nascidos
física e espacial onde irá viver. E o de modo gradual, não todos de uma
acesso a essa moradia (...) há de ser vez e nem de uma vez por todas.
patrocinada, tutelada e resguardada
Segundo Sarlet (2009) “a existência
pelo Poder Púbico, incluindo
também as situações em que o
digna estaria intimamente ligada a
próprio indivíduo não puder prestação de recursos materiais
implementá-lo por esforço próprio, essenciais, devendo ser analisada a
isto é, com economias próprias. problemática do salário mínimo,
assistência social, educação, direito à
Sobre o mesmo assunto Carli (2009) previdência social e do direito à saúde”.
destaca que, na verdade, a moradia é:
As expressões “direito humanos” e
Consubstancia atributo essencial da
personalidade, pois é no lócus “direitos fundamentais” são comumente
doméstico que as pessoas utilizados para indicar os direitos
desenvolvem seu caráter, dão seus inerentes à pessoa humana. Os direitos
primeiros passos rumo ao processo humanos são as situações jurídicas que,
de crescimento espiritual, físico e valendo para todos os povos e sendo
comuns a todos os homens, e tendo por O homem busca a moradia, habitação, o
isso uma validade pelo menos moral, abrigo seguro desde as cavernas, o
resultam da natureza ou da condição do direito de moradia enquanto direito
homem e que o Direito Internacional humano é considerado comum a todos os
reconhece, ao passo que os direitos povos, é um direito inerente a toda e
fundamentais se aplicam em qualquer pessoa.
determinada ordem jurídica estatal.
Nos encontramos no terceiro milénio,
existem culturas que escavam suas
Alexandrino (2007), contribuindo para o moradias na rocha ou tribos africanas
debate e de maneira didática, formulou que vivem em choupanas, também
as seguintes considerações acerca do podem ser observados no outro extremo
tema: desse choque cultural e econômico da
humanidade, que o avanço tecnológico,
Os direitos humanos não se produz casas construídas com
diferenciam dos direitos arquitetura de ponta e inteligentes, nas
fundamentais nem pelo exclusivo da quais seus habitantes ganham alta
referência a valores éticos segurança e conforto como produto da
superiores, nem pela
nova sociedade informatizada.
fundamentalidade, nem pela
finalidade. O que distingue uns e Porém o significado de moradia como
outros são os traços seguintes: a) os direito humano permanece o mesmo para
direitos humanos podem ser direitos o indivíduo, não importando a sociedade
puramente morais, ao passo que os a qual pertença sendo assim a acepção
direitos fundamentais são sempre comum do direito de moradia em
jurídicos, b) os direitos humanos não
diferentes culturas é o objetivo a qual ela 58
estão necessariamente positivados,
ao passo que os direitos se destina qual seja local de abrigo, bem-
fundamentais são direitos previstos estar, proteção e segurança da família.
na constituição, c) os direitos A positivação dos direitos fundamentais
humanos apresentam uma pretensão do Homem, sobretudo o direito à
de vinculatividade universal, ao
moradia é reconhecido como direito
passo que os direitos fundamentais
vinculam, sobretudo o Estado, no
fundamental do homem e como tal,
âmbito de uma ordem jurídica encontra abrigo normativo tanto no
concreta, situada no espaço e no plano de direito internacional quanto no
tempo, d) os direitos humanos são plano de direito nacional, tendo seu
em regra, direitos abstratos, ao passo reconhecimento como direito
que os direitos fundamentais fundamental a partir da Declaração
incorporam tradicionalmente Universal dos Direitos Humanos de 1948
garantias jurídicas concretas e no plano internacional e na esfera
delimitadas, imediatamente brasileira partir da Emenda
acionáveis pelos interessados, e) Constitucional nº 26 de 2000.
nada impede que os direitos
humanos possam, em certos casos e 2.3. Direito à moradia digna e o
para certo efeitos, ser concebidos mínimo existencial
como fins ou como programas
morais de reforma ou de ação O Estado tem a obrigação de garantir à
política, ao passo que os direitos pessoa humana um patamar mínimo de
fundamentais necessitam sempre de recursos, abaixo do qual nenhum ser
determinados mecanismos de humano pode estar, sob pena de ter
garantia jurisdicional. violado a sua dignidade.
Na concepção de Torres (1999) “os capacidade de formular objetivos e
direitos referentes ao mínimo existencial estratégias consistentes que
incidiriam sobre um conjunto de consideram como adequadas a seus
condições que seriam pressupostos para interesses e suas intenções de pô-los
o exercício da liberdade”. em práticas nas atividades que
empreendem. São três as variáveis
Leivas (2006), necessidades básicas se que afetam os níveis de autonomia
vinculam à prevenção de prejuízos individual: o grau de compreensão
graves. Ou seja, a realização das que uma pessoa tem em si mesma,
necessidades humanas básicas implica a de sua cultura e do que se espera dela
evitar danos de ordem significativa para como indivíduo; a capacidade
psicológica que possui para
a construção de uma pessoa com saúde a
formular opções para si mesma e as
autonomia na sociedade em que está oportunidades objetivas que lhe
inserida. permite atuar por consequência.
Didaticamente necessidades podem ser Estes padrões de satisfação de
assim sistematizadas: (1) Necessidades necessidades básicas, por uma questão
básicas (2) Agentes de satisfação dessas de desenvolvimento econômico e
necessidades básicas, a par dessa cultural de uma da sociedade variam no
classificação, compreendem-se tempo e no espaço. Vale dizer: os
necessidades básicas: padrões mínimos de satisfação das
As condições prévias de toda ação necessidades básicas não são os mesmos
individual, em qualquer cultura, são entre, por exemplo, Brasil e França,
a saúde e a autonomia, portanto, como também não guardam identidade
estas constituem as necessidades com o Brasil de hoje e o Brasil de cem
humanas mais elementares e anos atrás. 59
formam as pré-condições básicas
para evitar prejuízos graves. Ao entender moradia como agente de
satisfação das necessidades básicas
A saúde física, antes que a mera
sobrevivência constitui uma (saúde e autonomia), surge uma nova
necessidade humana básica, para pergunta o que deve ser entendido por
desenvolver-se bem na vida um nível mínimo de satisfação no que
cotidiana- com independência de concerne à moradia? A resposta a essa
sua atividade ou contexto cultural-, indagação aponta para a delimitação do
os seres humanos precisam ir muito conteúdo fático e jurídico do direito de
mais além da mera sobrevivência. morar à luz da dignidade da pessoa
Devem gozar de no mínimo boa humana. Esse conjunto fático e jurídico
saúde. Tendo em vista a proposta de determina o que convencionamos
definições universais e chamar de moradia digna.
transculturais de necessidades, os
autores optam por uma definição 2.4. Direito à moradia e a dignidade da
negativa de saúde física, pessoa humana
vinculando-a com a ausência de
enfermidade biológica, uma vez que O princípio da dignidade da pessoa
enfermidades graves geralmente humana impõe-se como critério de
incapacitam a quem delas padecem orientação e interpretação do
para participar todo o bem que ordenamento jurídico, devendo-se
poderiam na forma específica de acrescentar a ideia que vêm estampada
vida na qual se encontram. no princípio da máxima efetividade das
Os indivíduos expressam sua normas constitucionais relativas aos
autonomia por referência a sua direitos e garantias fundamentais.
A dignidade da pessoa humana, por ser corresponsável nos destinos da
fundamento do Estado democrático de própria existência e da vida em
direito brasileiro é, como diz Rocha comunhão dos demais seres
(2004): humanos.
“(...) princípio havido como super Alexy (2008) admite que a norma da
princípio constitucional, aquele no dignidade da pessoa humana pode ser
qual se fundam todas as escolhas percebida como princípio, devendo
políticas estratificadas no modelo de gerenciar todo ordenamento, e como
direito plasmado na formulação
regra, tratando da questão das condições
textual da constituição”
mínimas de existência, e, neste sentido,
Afirma esta jurista quando trata da com caráter absoluto.
positivação da dignidade da pessoa
humana no art. 1º, III da Constituição Miranda (1998) sistematizou
Brasileira que: características da dignidade da pessoa
humana: a) reporta-se a todas e a cada
a expressão daquele princípio como
fundamento do Estado brasileiro
uma das pessoas, e é a dignidade da
quer significar, pois, que ele existe pessoa individual e concreta b) cada
para o homem, para assegurar pessoa vive em relação comunitária, mas
condições políticas, sociais, a dignidade de que possui e dela mesma,
econômicas e jurídicas que lhe e não da situação em si c) o primado da
permitam atingir os seus fins; que é pessoa é o do ser, não o do ter; a
o seu fim é o homem, e é fim em si liberdade prevalece sobre a propriedade
mesmo, quer dizer, como sujeito de d) a proteção da dignidade das pessoas
dignidade, de razão digna e está além da cidadania portuguesa e
superiormente posta acima de todos postula uma visão universalista da 60
os bens e coisas, inclusive do
atribuição de direitos e) a dignidade da
próprio Estado.
pessoa pressupõe a autonomia vital da
Sarlet (2009) propôs uma conceituação pessoa, a sua autodeterminação
jurídica para a dignidade da pessoa relativamente ao Estado, às demais
humana que, além de reunir a entidades públicas e as outras pessoas.
perspectiva ontológica e instrumental
destacou-lhe a faceta intersubjetiva Constata-se que o princípio da dignidade
quanto à dimensão negativa (defensiva) da pessoa humana impõe um dever de
e à positiva prestacional: abstenção e de condutas positivas
tendentes a efetivar e proteger a pessoa
temos por dignidade da pessoa
humana a qualidade intrínseca e
humana. É imposição que recai sobre o
distintiva de casa ser humano que o Estado de respeitar, proteger e promover
faz merecedor do mesmo respeito e as condições que viabilizem a vida com
consideração por parte do Estado e dignidade.
da comunidade, implicando, neste
sentido um complexo de direitos e Os direitos da pessoa humana
deveres fundamentais que consagrados no plano internacional e
assegurem a pessoa tanto contra interno tem como escopo resguardar a
todo e qualquer ato de cunho dignidade e condições de vida
degradante e desumano, como minimamente adequadas do indivíduo,
venham a lhe garantir as condições bem como proibir excessos que por
existenciais mínimas para uma vida ventura sejam cometidos por parte do
saudável, além de propiciar e
Estado ou de Particulares.
promover sua participação ativa
A moradia digna deve ser habitável, adequada também significa estar
tendo condições de saúde física e de localizada em lugares que permitam
salubridade adequadas, tais como acesso as opções de emprego, transporte
saneamento básico, água potável, público eficiente, serviços de saúde,
fornecimento de energia elétrica, custo escola e lazer.
acessível, infraestrutura, etc. Moradia
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Exemplo de moradias tipo palafitas ribeirinhas no Bairro de Educados -Zona Central, na cidade de
Manaus/AM. Foto: Kátia Cruz.