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A CONSTITUIÇÃO DA ASSISTÊNCIA
SOCIAL COMO POLÍTICA PÚBLICA:
interrogações à psicologia
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Contudo, nós séculos XVHI e XIX, a humanidade "convivia 2002, p. 11). As manifestações e reivindicações dos trabalhadores
com a escravidão, com o conceito de incapacidade em relação às por melhores condições de vida e de trabalho eclodiram com a cri-
mulheres, às crianças, aos índios, e era considerada natural a não se do capitalismo de 1929. Para Huberman (1971), o crescimento
extensão desses direitos a segmentos populacionais, bem como a dos industriais durante a Revolução Industrial na Inglatena trouxe
exclusão de homens escravos e não proprietários" (COUTO, 2006, consigo teorias económicas baseadas nas condições da época,
p. 46). As vicissitudes dessa situação durante a Revolução Indus- como a Teoria de Economia Clássica, cujo pressuposto é "o bem-
trial é exemplificada por Huberman (1971) ao relatar que até um estar da sociedade está ligado ao do indivíduo". Com ironia, Leo
senhor de escravos das índias Ocidentais surpreendia-se com a Huberman diz:
crueldade da jornada de 12 horas e meia de trabalho de crianças de Dê a todos a maior liberdade, diga-lhes para ganharem o mais que
apenas 9 anos de idade. Vê-se que o acesso aos direitos era restri- puderem, apele para seu interesse pessoal, e veja, toda a socieda-
to aos homens livres e proprietários e não a toda a humanidade. E, de melhorou! Trabalhe para si mesmo e estará servindo ao bem
desde então, a luta da sociedade tem sido para universalizá-los. geral. Que achado para os homens de negócios, ansiosos em se
lançarem na corrida dos lucros cada vez maiores! Abram os sinais
Assim, o nascimento dos direitos sociais no século XX é resul- para o trem especial do laissez-faire\a o goverrfo regula-
tado das lutas enfrentadas pela classe trabalhadora desde meados mentar os horários e os salários dos trabalhadores? Isso seria uma
do século XIX. Estes referem-se ao atendimento das necessidades interferência na lei natural e, portanto, inútil - diziam os econo-
humanas básicas, como alimentação, habitação, assistência, saú- mistas clássicos. Qual, então, a função do governo? Preservar a
de, educação, ou seja, "a um mínimo de bem-estar económico e paz, proteger a propriedade, não interferir (HUBERMAN, 1971, p.
segurança, ao direito de participar por completo da herança social 208-209).
e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que Após a crise económica de 1929, a questão social intensifi-
prevalecem na sociedade". Os direitos sociais, juntamente com os cou-se, gerando novas relações entre capital e trabalho e entre es-
civis e os políticos, constituem as três dimensões da cidadania tes e o Estado, fazendo com que as elites económicas admitissem
(MARSHALL, apud OLIVEIRA, 2007, p. 7). A efetivação dos direi- os limites do mercado como regulador natural e resgatassem o pa-
tos sociais está atrelada às condições económicas, ou seja, à inter- pel do Estado como mediador civilizador, ou seja, com poderes
venção do Estado. E este, além de seu papel político, sempre de- políticos de interferência nas relações sociais. Neste sentido, po-
senvolveu ações económicas em prol da empresa capitalista. Esta de-se entender a política social como estratégia de intervenção e
tensão permanente acarreta a dificuldade em viabilizar políticas regulação do Estado no que diz respeito à questão social (CUNHA
sociais públicas, onde "a luta pela universalização dos direitos so- & CUNHA, 2002). É neste cenário, principalmente na Europa do
ciais e políticos e a busca da igualdade como meta dos direitos so- pós-guerra, que se consolida "a proposta do Estado social, imple-
ciais são características de vários momentos e declarações cons- mentador de políticas sociais baseadas nos princípios sociais uni-
truídas pelos homens, principalmente a partir dos séculos XVIII, versais, igualitários e solidários", sendo o precursor do chamado
XIX e XX" (COUTO, 2006, p. 49). Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State (COUTO, 2006, p.
Uma breve retrospectiva evidencia que, até o final do século 52). Pelos princípios do Estado de bem-estar social, todo o indiví-
XIX e início do XX, prevaleciam as ideias liberais de um estado mí- duo tem direito à educação, assistência médica gratuita, auxílio
nimo que somente assegurasse a ordem e a propriedade, e do no desemprego, garantia de uma renda mínima e recursos adicio-
mercado como regulador "natural" das relações sociais. A posição nais para a criação dos filhos.
ocupada pelo indivíduo na sociedade e suas relações eram perce- À medida que o Estado tem a responsabilidade pela formula-
bidas conforme sua inserção no mercado. "A questão social, de- ção e execução das políticas económicas e sociais, diversos seto-
conente do processo produtivo, expressava-se na exclusão das res da sociedade disputam pelo acesso à riqueza. Muitas ações do
pessoas, tanto da própria produção quanto do usufruto de bens e Estado foram resultado destas lutas. Assim, política pública é a
serviços necessários à sua própria produção" (CUNHA & CUNHA,
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resposta do Estado frente às demandas que emergem da socieda- inclusão marginal de grande parcela da população (CUNHA &
de, caracterizando-se como um direito coletivo (CUNHA & CUNHA, 2002). As autoras salientam que as respostas políticas dos
CUNHA, 2002). Para Veronese (1999), política pública "é um con- diversos países à questão social apresentaram algumas medidas
junto de ações, formando uma rede complexa, endereçada sobre comuns, entre elas o corte de benefícios, maior seletividade (não se
precisas questões de relevância social. São ações, enfim, que ob- aplica a todos) e a focalização das políticas sociais, ou seja, atendem
jetivam a promoção da cidadania" (p. 193). E o termo "público", aos mais pobres entre os pobres. Assim, através da privatização de
associado à política, não é uma referência exclusiva ao Estado, programas de bem-estar social, o Estado se isentou da garantia dos
mas sim à coisa pública, ou seja, de todos, com o amparo de uma míriimos sociais necessários à sobrevivência humana.
mesma lei, porém vinculados a uma comunidade de interesses.
Embora as políticas públicas sejam reguladas e frequentemente
providas pelo Estado, elas também englobam preferências, esco- Direitos sociais e políticas sociais no Brasil
lhas e decisões privadas, podendo (e devendo) ser controladas pe- Traçar a trajetória da política da assistência social no Brasil
los cidadãos.
implica, necessariamente, fazer um recorte histórico cont foco no
No final da década de 1960, houve um esgotamento dos mer- Brasil Republicano. Se compararmos com a experiência interna-
cados europeu e japonês, acarretando uma nova crise capitalista cional, não podemos falar de um Estado de Bem-Estar no Brasil.
na década seguinte. A partir deste período, há um reordenamento Contudo, a literatura especializada em políticas sociais aponta os
societário global, com o desenvolvimento de processos de reestru- anos 30 do século XX como o período em que o Estado passou a
turação produtiva, a mundialização do capital financeiro e o avan- intervir nas relações entre capital e trabalho, pois, como país capi-
ço da ideologia neoliberal por todo o globo. O Estado é quem irá
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talista periférico, ingressa tardiamente no mundo industrial. Até
transferir recursos para os interesses do capital, antes voltados
então, a assistência social foi realizada a partir de iniciativas pon-
para o provimento de políticas sociais (PEREIRA, 2006). Segundo
tuais e não como uma concepção de política. As práticas assisten-
Couto (2006, p. 70), "as políticas sociais retomam seu caráter libe-
ciais foram reguladas pela filantropia, inicialmente através da
ral residual; a questão da garantia dos direitos volta a ser pensada
na órbita dos civis e políticos, deixando os sociais para a caridade Igreja - principalmente católica - e depois pelo Estado, deixando
da sociedade e para a ação focalizada do Estado". profundas raízes, como veremos no decorrer do capítulo.
Segundo Mestriner (2001), podemos visualizar na trajetória brasi-
A partir daquele período até o momento atual, muitos países
leira fases e alianças: da filantropia caritativa à higiénica, disciplina-
tiveram que fazer forte ajuste económico, uma vez que a questão
dora, pedagógica profissionalizante, vigiada e de clientela. Paulatina-
social foi agravada por diversos fatores, como: desemprego estru-
mente, as intervenções no espaço urbano, de controle da pobreza e
tural, precarização das relações de trabalho, alterações na organi-
das "classes desviantes" reduziu indigentes, abandonados, inválidos
zação familiar e no ciclo de vida (diminuição da taxa de mortalida-
e doentes à categoria de "assistidos sociais". A ação visava amparar
de e aumento da longevidade, por exemplo) e aprofundamento
a população socialmente desfavorecida ou que estivesse fora do mer-
das desigualdades sociais, gerando exclusão e, simultaneamente,
cado de trabalho, incluindo deficientes, idosos e crianças.
Para entender a trajetória brasileira e a construção dos direitos
1. "As medidas de ajustes sobre o enfoque teórico neoliberal estão sedimentadas num pro- civis, políticos e sociais, é preciso reportar-nos ao descobrimento
jeto ideológico, político e económico que exalta a liberdade dos mercados. São elas: a des-
regulamentação da economia, em que se consolida a abertura dos mercados para o livre flu- do país (1500). Mantido como colónia de Portugal por três séculos,
xo de produtos e do capital ao tempo em que fragiliza e compromete a autonomia do Esta- integrou, "na sua organização social e, portanto, no campo dos di-
do-nação. A orientação de recorte neoliberal consiste em medidas de geração de poupan-
ça, combate à inflação com estabilidade monetária a qualquer preço e pagamento da dívida reitos, traços marcantes da relação de dependência com o império
externa no caso particular dos países endividados do Terceiro Mundo" (FIORI apud r
lusitano" (COUTO, 2006, p. 77). A autora lembra que o sistema
COUTO, 2006, p. 70).
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produtivo estabelecido com a Coroa era fundamentalmente agrí- No século XVTH as autoridades brasileiras estavam preocupa-
cola e baseado no trabalho escravo, incidindo diretamente no das com o crescente fenómeno do abandono de bebés pela cidade
campo dos direitos civis, uma vez que estes não eram considera- de Salvador. Estes eram largados à noite, sendo mortos por cães
dos humanos, mas pertencentes ao seu senhor (dono). Eviden- e/ou outros animais. Neste sentido, aquelas reivindicaram à Coroa
cia-se essa relação nas comemorações do bicentenário da chegada a permissão de se estabelecer uma primeira Roda dos Expostos 2
da família real portuguesa ao Rio de Janeiro (1808), onde os escra- na referida cidade. Assim, a Santa Casa de Misericórdia aceitou a
vos, uma das parcelas da população que deveria ser destinatária incumbência, mas exigiu do rei um subsídio. Com os mesmos ar-
gumentos, a segunda Roda foi instalada na cidade do Rio de Janei-
da política de assistência social, nem das festividades da chegada
ro. A última Roda do período colonial foi instalada em Recife, em
de Dom João VI puderam participar.
1789. Com a Independência do Brasil continuaram a funcionar as
Podemos dizer que a nossa colonização pauta-se, também, três rodas coloniais (MARCÍLIO, 1999). Contudo, assistir às crian-
pela evangelização do colonizador europeu, que culminou no mas- ças abandonadas era uma incumbência aceita com muita resis-
sacre da memória das culturas indígena e africana, através da ex- tência pelas Câmaras. Desta forma, estas conseguiram fazer apro-
ploração dessas crianças (MEIHY, 1993). Na percepção dos colo- var uma lei chamada "Lei dos Municípios", em 1828, qtíe abria a
nizadores, os índios viviam em estado de selvageria e barbárie. possibilidade de eximir algumas Câmaras dessa obrigação, pois
Para promover as mudanças nos costumes da população indíge- estas poderiam utilizar os serviços para a instalação da Roda e as-
sistência aos enjeitados em todas as cidades que tivessem uma
na, os jesuítas construíram a primeira casa de recolhimento de cri-
Misericórdia. Nesta parceria, seria a Assembleia Legislativa Pro-
anças no Brasil, em 1551. Esta acolhia as crianças indígenas que
vincial, e não mais a Câmara, quem entraria com uma Roda de
eram separadas dos seus pais. Isolando-as de seus progenitores e,
Expostos nas Misericórdias e colocando estas a serviço do Estado.
consequentemente, das tradições culturais, acreditavam que se- A autora aponta que se perdia, assim, o caráter caritativo da assis-
ria mais fácil fazê-las assimilar a cultura e a religião portuguesa. tência, para inaugurar uma fase filantrópica, associando-se o pú-
Assim, evidencia-se que a primeira iniciativa de atendimento à blico e o privado. Salienta-se que essa lei também foi feita para in-
criança teve como eixo central a caridade. Esta partiu da Igreja centivar a iniciativa particular a assumir a tarefa de criar as crian-
Católica e do pressuposto de que as crianças precisavam modifi- ças abandonadas, liberando as municipalidades desse serviço.
car seu comportamento "bárbaro" (no sentido de contrário às re- Neste momento, identificamos as primeiras alianças entre carida-
gras e normas estabelecidas), ou seja, necessitavam de "corre- de e governo, em que a caridade toma a iniciativa e o governo en-
ção", que era obtida através das referidas escolas (MARTINS & tra com a verba para a manutenção dos estabelecimentos cria-
BRITO, 2001).
Também católico e no modelo de esmola, a Irmandade de Mi-
sericórdia (transferida de Lisboa) dava dotes aos órfãos e caixão
para enterrar os pobres, prioritariamente aos seus integrantes.
2. As rodas de expostos tiveram origem na Idade Média, na Itália. Elas surgiram no século
Instalou-se na cidade de São Paulo em 1560, contando com uma XII com a aparição das confrarias de caridade, que prestavam assistência aos pobres, aos
precária enfermaria (ao mesmo tempo albergue e hospital); provia doentes e aos expostos. As rodas eram cilindros rotatórios de madeira usados em mosteiros
alimentação, abrigo e enfermagem a escravos e homens livres, como meio de se enviar objetos, alimentos e mensagens aos seus residentes. Rodava-se o
cilindro e as mercadorias iam para o interior da casa. sem que os internos vissem quem as
uma vez que não havia médicos no país. Neste mesmo modelo, deixara. A finalidade era a de se evitar o contato dos religiosos enclausurados com o mundo
em São Paulo, foram fundados o Convento de São Bento (1598), a exterior, garantindo-lhes a vida contemplativa. Como os mosteiros medievais recebiam cri-
Venerável Ordem de Nossa Senhora do Carmo (1594), a Ordem dos anças doadas por seus pais, para o serviço de Deus, muitos pais que "abandonavam" seus
filhos utilizavam a roda dos mosteiros para nela depositarem o bebê. Esperavam eles que a
Frades Menores Franciscanos (1640), e o Recolhimento Santa Te- criança não só teria os cuidados dos monges, como seria batizada e poderia receber uma
reza (1685) que, além de ajuda material e de enfermagem, proviam educação aprimorada. Desse uso indevido das rodas dos mosteiros surgia o uso da roda
para receber os expostos, fixadas nos muros dos hospitais, para cuidar das crianças aban-
abrigo e apoio espiritual (MESTRINER, 2001). donadas. Assim, o nome da roda provém deste dispositivo (MARCÍLIO, 1999).
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dos . Constatamos que as alianças/parcerias entre Estado e socie-
3 Quando Dom Pedro I assumiu, os grupos que defendiam a inde-
dade civil são antigas e atravessam a história, nas quais a Igreja pendência já tinham maior visibilidade e influência, criando as
Católica marca significativa presença. condições de possibilidade para a independência, em 1822. "Um
Resgatando a história do Brasil (COUTO, 2006), percebemos país independente exigia uma Constituição que o organizasse",
que nos períodos colonial e imperial as relações entre proprietários, sendo que esta "passou a retratar, especialmente no campo dos
escravos, governo e a população em geral era marcada pela cen- direitos, os elementos da sua herança histórica: dependência polí-
tralização do governo e dos proprietários, dificultando a circulação tica, processo de trabalho escravocrata e relações de poder, cen-
de informações e, consequentemente, a organização de movi- tralizados nos grandes proprietários" (COUTO, 2006, p. 83).
mentos coletivos. Embora os ideais da Revolução Francesa e as A primeira Constituição brasileira, promulgada em 1824, as-
ideias provindas da Revolução Industrial (Inglaterra) fossem con- segurou a todos os cidadãos livres, a partir de 25 anos de idade, do
sideradas inconvenientes para o Brasil, paulatinamente foram tra- sexo masculino, o direito ao voto. É preciso lembrar que a abolição
zidas por estudantes oriundos das famílias abastadas, constituin- da escravatura, pelo menos formalmente, somente ocorreu em
do, mesmo que de forma incipiente, a classe burguesa. Diferente-
1888. No que se refere aos direitos sociais, nenhuma garantia sig-
mente da Europa, esses movimentos sociais que pleiteavam a
nificativa foi introduzida. Já na Constituição de 1891, é reduzida
emancipação de Portugal para livrarem-se do fisco e manterem a
aos maiores de 21 anos a condição para votar e ser eleito, vedando
liberdade de comércio, eram, contudo, favoráveis ao trabalho es-
esse direito aos mendigos, analfabetos, praças e religiosos. No
cravo. Vê-se que naquela época imperavam os princípios liberais,
campo dos direitos sociais, dispõe o livre exercício de qualquer
am que os direitos civis e da liberdade individual eram irrelevan-
profissão moral, intelectual e industrial. Cabe enfatizar que as
tes. "No entanto, esses movimentos, embora com suas caracterís-
ticas e dificuldades de organização, representavam embriões de Constituições vão traduzir o momento histórico, social, político e
grupos que questionavam o poder absoluto da Coroa portuguesa económico de cada país, recebendo, ainda, a influência da con-
de regular a vida económica e social brasileira" (p. 81). juntura que vigora no ambiente internacional (cf. COUTO, 2006).
A autora aponta as guerras napoleónicas na Europa, no início Durante a Primeira República (da Proclamação da República,
do século XIX, como principal motivo da vinda da Família Real ao em 1889, até a Revolução de 1930), o Estado não intervinha, pois
Brasil, onde a então Colónia passa à condição de Reino Unido de considerava que a área social não era função pública. Deste modo,
Portugal e Algarve. Como consequência, em 1808 o rei Dom João a assistência era desenvolvida pela Igreja Católica (NOGUEIRA,
VI decreta a abertura do porto brasileiro para o comércio, dando li- apud MESTRINER, 2001). Contudo, o país passara por importan-
berdade de negociar com outros países. Tais movimentos fizeram tes mudanças económicas e políticas, como o fim do regime de
crescer a mobilização em prol da independência do Brasil. Entre- trabalho escravo e a imigração de trabalhadores europeus. Para
tanto, em 1820, a Revolução do Porto (Portugal) - contrária ao Bulcão (2002), as discussões acerca da Lei do Ventre Livre puse-
Estado absolutista - faz com que Dom João VI retorne à Europa. ram em questão a legitimidade da escravidão. Assim, quando de-
cretada a Abolição da Escravatura, em 1888, aproximadamente
meio milhão de escravos transformaram-se em mão de obra assa-
3. Segundo Marcílio (1999), a primeira província a entrar nessa nova sistemática foi a do Rio lariada, provocando mudanças nas relações de trabalho e na eco-
Grande do Sul, criando três Rodas: na cidade de Porto Alegre (1837), em Rio Grande (1838) e
em Pelotas (1849). É necessário enfatizar que o encargo com os expostos era tarefa difícil nomia agrícola. Soma-se a isto o grande contingente de imigran-
para as Santas Casas de Misericórdia. Quem ajudava a manter essas instituições era o espí- tes europeus que vinham substituir a mão de obra escrava, cujo
rito de caridade da população. Como podemos perceber, a partir de 1830, o caráter da assis- crescimento demográfico (negros libertos, nacionais migrados do
tência vai deixando de ser uma ação em mãos das municipalidades e de confrarias de lei-
gos, uma vez que as províncias vão sendo forçadas a subvencionar essa assistência e a con- campo, estrangeiros, mulheres e crianças) acarretou no satura-
tratar os serviços das Santas Casas e/ou das ordens religiosas para cuidar das crianças con- mento do mercado de trabalho. Como consequência, as cidades
finadas nas casas de expostos. Traçando um paralelo, constatamos o protagonismo de Por-
to Alegre, primeira cidade a instalar os Conselhos Tutelares, em 1992. cresceram de forma desordenada em áreas em processo de mo-
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' demização. Ê o êxodo não se deu acompanhado de proporcional r-ência e a solidariedade, mas passa a ser responsável por ela, regu-
aumento de empregos, nem de serviços públicos voltados à edu- lando-a por meio do CNSS" (MESTRINER, 2001, p. 107).
cação e à saúde.
Em 1937, é promulgada uma nova Constituição para dar sus-
Neste cenário, segundo Mestriner (2001, p. 68), o Estado pas- tentação ao Estado Novo, caracterizado por um período ditatorial
sa a assumir funções maiores, além de coerção. "Terá o papel de que se estendeu até 1945, com a participação do Brasil na Segun-
regulamentação, organização, coordenação, intermediação e até da Guerra Mundial. Novos direitos são introduzidos na área da
de educação, enquanto promotor de uma nova cultura", em con- educação, priorizando as classes sociais menos favorecidas (cf.
sonância com as novas exigências. "Estruturará aparelhos centra- COUTO, 2006).
lizadores para o Estado, destinados ao exercício da repressão, ao Em 1942, é criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), ór-
oferecimento de serviços sociais e à regulação da economia, numa gão responsável por coordenar as ações da assistência em âmbito
época em que emerge o proletariado industrial e avança o capita- nacional e extinta após o Governo Collor, com o indiciamento, por
lismo". Assim, o movimento armado de 1930 é resultado da amea- corrupção, da primeira-dama Rosane Collor de Mello. Dois fenó-
ça da anarquia generalizada e total descontentamento popular, menos caracterizam esse período: a institucionalização do primei-
materializado pela chamada "questão social"; culminou na exone- ro-damismo, com a coordenação da LBA, de Darcy Vargas, mu-
ração do Presidente Washington Luís e levou Getúlio Vargas ao lher de Getúlio Vargas, e o surgimento de Faculdades de Serviço
Governo Provisório. Social visando à profissionalização de mulheres na área da assis-
tência social. A LBA foi criada, inicialmente, para prestar assistên-
i A Constituição de 1934 introduz direitos trabalhistas para regu- cia aos soldados brasileiros recrutados para a guerra e a seus fami-
lar as relações entre capital e trabalho. É nessa época que se institui liares. Para tanto, foram mobilizadas milhares de mulheres que
um conjunto de medidas de proteção ao trabalhador, que mais tar- participavam dos cursos oferecidos pela LBA, tornando-as volun-
de é transformado na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), as- tárias para atuarem na proteção da população em caso de bombar-
segurando-se, ainda, o direito à educação primária integral e gratui- deio, na preparação de alimentos diante de uma situação de es-
ta, o amparo aos desvalidos e à maternidade e à infância, com des- cassez, ou na produção de materiais médico-hospitalares para se-
taque para o atendimento às famílias com prole numerosa. Não é rem usados na guerra (SIMILI, 2006).
por acaso que Getúlio Vargas é até hoje reverenciado como o pai
Mestriner (2001) enfatiza que a institucionalização do primei-
dos pobres. A economia do país transita do modelo agrário e expor- ro-damismo ocorreu a partir da LBA, em que "se desloca o papel
tador em direção a uma economia com base na indústria, iniciando direto do Estado, que vai assumir dupla figura: uma mediada pelas
a concentração da população nas cidades (cf. COUTO, 2006). organizações filantrópicas, outra pela bondade da mulher do go-
Importante destacarmos a criação do Conselho Nacional de vernante" (p. 108).
Serviço Social (CNSS), criado em 1938, pois foi a primeira regula- Posteriormente, até a sua extinção, a LBA passou a coordenar
mentação da assistência social no país. Composto por cinco espe- programas de creches comunitárias, na modalidade de repasses
cialistas na área social e nove elementos do governo, cabia a este de recursos financeiros às entidades assistenciais, mediante o es-
Conselho desenvolver estudos sobre os problemas sociais, coorde- tabelecimento de convénios ou através de programas eventuais,
nar obras sociais e estudar as concessões das subvenções. A inten- como, por exemplo, de distribuição de leite, adaptando-se ao
ção era criar "um órgão nacional de controle das ações da assistên- ideário político-partidário de quem assumisse o governo federal,
cia social que associasse iniciativas públicas e privadas, rompendo com centralização administrativa e sem controle social.
o espontaneísmo da assistência esmolada e introduzindo uma orga- Na Constituição seguinte, de 1946, foram mantidos os direitos
nização racional e um saber no processo de ajuda" (SPOSATI, apud sociais já conquistados e introduzidos novos direitos que até hoje
MESTRINER, 2001). Assim, "o Estado não só incentiva a beneme- repercutem na vida de qualquer trabalhador, merecendo, portan-
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to, o devido destaque: previdência com contribuição dos trabalha- Assistência social como política pública
dores, dos empregadores e da União, direito da gestante ao des- O período compreendido entre 1975 e 1985 corresponde a um
canso antes e depois do parto, igualdade do valor do salário para o dos grandes momentos históricos do país. O movimento político
mesmo trabalho independentemente do sexo, estado civil e nacio- de base nos bairros (organizações reivindicatórias urbanas) e os
nalidade. No governo de Juscelino Kubitschek, o Congresso apro- trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja Católica,
vou a Lei Orgânica da Previdência Social, unificando a Previdência possibilitaram importantes articulações politicas no meio sindical,
em termos de benefícios, garantindo o acesso universal a todos os nos partidos e em várias instituições da sociedade civil (PEREIRA,
trabalhadores urbanos do mercado formal. A centralização admi- 2001). Nessa fase deu-se um avanço das forças de resistência, e
nistrativa da Previdência ocorreu em 1966, com a criação do Insti- desenvolveu-se a prática do enfrentamento do regime militar, que
tuto Nacional de Previdência Social (INPS). Até então cada cate- já havia perdido sua base de legitimidade junto à sociedade devi-
goria profissional podia criar seu próprio plano de aposentadoria e do a crise económica iniciada em 1973, à retomada vagarosa da in-
pensão (COUTO, 2006). flação, à diminuição do paraíso do consumo das classes médias e à
denota eleitoral do regime pela união das forças opositoras da so-
No período de 1961 a 1964, o Brasil passou por uma fase de ciedade civil, em 1974. A partir deste momento - e principalmente
profundo tensionamento institucional, iniciado com a renúncia do nos anos 1980 - , vários movimentos de caráter nacional entraram
Presidente Jânio Quadros e culminando com a deposição de João em cena, tais como o movimento pela redemocratização do país e
Goulart pelos militares. Do ponto de vista dos avanços no campo pelo pluripartidarismo, o movimento estudantil e docente, o femi-
dos direitos sociais, assegurados constitucionalmente, ocorreram nismo, as lutas pela anistia, as reivindicações de profissionais da
a inclusão da gratificação de Natal e o pagamento de salário-famí- saúde e de setores públicos, a atuação da Comissão Pastoral da
lia destinado às mulheres com filhos menores de idade. As duas Terra, dentre outros. A partir de 1985, percebe-se no âmbito na-
últimas constituições, anteriores à de 1988, foram promulgadas cional uma nova conjuntura institucional, decorrente de novo ar-
durante o regime militar, nos anos de 1967 e 1969, respectivamen- ranjo de forças políticas, bem como do agravamento da crise eco-
te. A inspiração predominante, em ambas as Cartas, é de génese nómica, com o galopante índice de inflação.
autoritária, com cerceamento no campo dos direitos políticos e É nesse cenário e com o comprometimento do novo governo
preservação das conquistas sociais, principalmente, na área tra- de convocar a Assembleia Nacional Constituinte, que o clima em
balhista (cf. COUTO, 2006). Neste cenário, merece destaque a torno da futura constituição mobilizou diferentes setores da socie-
criação do Sistema Fundação Nacional/Estaduais do Bem-Estar dade civil e política: a elite hegemónica, os setores populares, as
do Menor , a partir de uma concepção ideológica da doutrina da
4 instituições religiosas, as organizações educacionais, das áreas de
segurança nacional, criando a categoria da criança e do adoles- saúde e dos meios de comunicação, entre outros. Aos poucos, au-
cente em situação irregular. No que se refere à assistência social menta a importância do papel do Estado e das instituições sociais,
propriamente dita, cria-se a exigência de apontar a fonte de custeio visando o fortalecimento da democracia. Uma parte da ação dos
para a concessão de benefícios assistenciais. movimentos sociais passou a privilegiar o nível institucional da
ação política como espaços prioritários para a transformação so-
cial, culminando no que se convencionou chamar "face da institu-
cionalização dos movimentos sociais" (PEREIRA, 2001).
4. A Política do Bem-Estar do Menor (PNBEM) era definida por um órgão central, a Funda- A novidade no cenário das ações coletivas foi que elas passa-
ção Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), e executada nos estados pelas fundações
estaduais do bem-estar do menor (Febem). Pode-se dizer que a Funabem foi criada com o ram a ocupar canais de participação institucional com a criação de
objetivo de formular e implantar a PNBEM, esta última com a incumbência de fixar as bases redes, conselhos, movimentos, fóruns com caráter propositivo,
para uma nova estratégia de atendimento ao chamado "problema do menor", em conso-
nância com os novos tempos e a imagem de eficiência e modernidade do Estado brasileiro pautados em amplas negociações entre sociedade civil e Estado.
(FROTA, 2002). Várias entidades surgiram, bem como movimentos do setor popu-
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lar dispostos a negociarem diretamente com o Estado, como o da economia e, sendo assim, acabaram por desfigurar os princípios
Movimento pela Constituinte, o Movimento Nacional de Meninos orientadores das mesmas. Foi exatamente nesse contexto que im-
e Meninas de Rua, o Movimento em prol das Reformas de Saúde, o portantes e significativos avanços foram construídos, "acarretan-
SUS, o Movimento dos Mutuários do BNH, o Movimento dos Sem do novas configurações e novas concepções para a área dos direi-
Casa, o Movimento dos Aposentados, a Criação da Pró-Central dos tos civis, políticos e sociais, expressas na organização do sistema
Movimentos Populares. "Ou seja, há uma mudança de paradigma: de seguridade social brasileiro", trazendo, para a área, a assistên-
do modelo expressivo-disruptivo para uma fase integrativo-corpo- cia social como uma política social de natureza pública (COUTO,
rativa" (PEREIRA, 2001, p. 132). 2006, p. 140).
O autor enfatiza que, com o surgimento da "Nova República", A Constituição Federal de 1988 trouxe uma mudança para a
entre os anos de 1985 e 1990, novos paradigmas sociopolíticos en- concepção de assistência social no Brasil. Esta passa a constituir,
tram em cena: recuperação do Estado e da nação, novos canais de juntamente com a saúde e a previdência social, a base da seguri-
pluripartidarismo, substituição da "pedagogia popular" por pro- dade social, notadamente inspirada na noção de Estado de Bem-
postas relacionadas à democracia, à cidadania, ao fortalecimento Estar Social. Este é um marco histórico que institui o início da
da sociedade civil, à atuação de ONGs com trabalhos de parceria transformação da caridade, benesse e ajuda para a noção de direi-
junto ao Estado e a projetos propositivos na esfera pública, como to e cidadania da assistência social apontando para seu caráter de
os conselhos da criança e do adolescente, da educação, da saúde, política pública de proteção social articulada a outras políticas vol-
da habitação e dos movimentos culturais. tadas à garantia de direitos e de condições dignas de vida.
Segundo Cunha e Cunha, (2002), o processo de redemocrati- A assistência social passa a ter caráter universal ainda que se-
zação da sociedade brasileira levou à instalação da Assembleia letivo para quem dela necessita.
Nacional Constituinte e à possibilidade de se estabelecer uma ou- Como apontamos, este período é de intensa crise, com denún-
tra ordem social, em novas bases, "o que fez com que esses movi- cias de corrupção e desvio das verbas do Ministério da Ação So-
mentos se articulassem para tentar inscrever na Carta Constitucio- cial. Segundo Mestriner (2001), a pressão neoliberal e a paralisia
nal direitos sociais que pudessem ser traduzidos em deveres do governamental vão atingir todos os segmentos do setor público,
Estado, através de políticas públicas" (p. 13). com tendências privatistas e cortes de verbas, principalmente a
Assim, as décadas de 1980 e 1990, além de paradigmáticas, educação, saúde, previdência, habitação e assistência social. As
foram paradoxais, no que diz respeito ao encaminhamento de uma políticas sociais desmoralizam-se, demonstrando incapacidade
nova configuração para o cenário político, económico e social bra- total de autorrenovação, apesar da aprovação da nova Constitui-
sileiro. De um lado, desenvolveu-se um processo singular de refor- ção. "As instituições e serviços se encolhem e deterioram, não
mas, no que se refere à ampliação do processo democrático e à or- conseguindo revidar as teses de Estado mínimo e de privatização"
ganização política e jurídica, como a promulgação da Constituição (p. 213). É nesse quadro de crise, após anos de luta, que a Lei
Federal em 1988 (COUTO, 2006, p. 139). Por outro lado, efetivou-se Orgânica da Assistência Social - Loas - (Lei 8.742) é aprovada, em
um processo de recessão e contradições no campo económico, em 07/12/1993 . 5
2G 27
A partir da Loas, a proteção social se coloca como um meca- históricas, reitera a forma restritiva da mesma, pois associa essa
nismo contra as formas de exclusão social que decorrem de certas área ao assistencialismo e às formas emergenciais de atender à
vicissitudes da vida, tais como a velhice, a doença, a adversidade, população, ou seja, vinculada à pobreza absoluta (PEREIRA,
as privações. Inclui neste conceito, também, tanto as formas sele- 1996). Para Couto (2004), o campo da assistência social sempre foi
tivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a uma área nebulosa da relação entre Estado e sociedade civil. Os
comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes) conceitos de assistencialismo e clientelismo têm sido apontados
que permitirão a sobrevivência e a integração sob várias formas na como constitutivos de uma sociedade conservadora que, por mui-
vida social. A assistência social configura-se como possibilidade to tempo, considerou/considera a pobreza como um atributo indi-
de reconhecimento público da legitimidade das demandas de vidual daqueles que não se empenharam para superá-la.
seus usuários e espaço de ampliação de seu protagonismo. Nesse Em 2004, a partir das deliberações da IV Conferência Nacional
sentido, marca sua especificidade no campo das políticas sociais, da Assistência Social, é elaborado o Plano Nacional de Assistência
exigindo que as provisões assistenciais sejam prioritariamente Social (Pnas), aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência So-
pensadas no âmbito das garantias de cidadania sob vigilância do cial (Cnas). O Pnas indica os eixos estruturantes para a sua opera-
Estado, cabendo a este a universalização da cobertura e a garantia cionalização: concepção, territorialidade, financiamento, controle
de direitos e acesso para serviços, programas e projetos sob sua social, monitoramento e avaliação e recursos humanos. Esse pro-
responsabilidade. cesso culmina com a aprovação da regulação, em 2005, do Siste-
Importante ressaltar que a Loas considera como objetivo a ma Único de Assistência Social - Suas que, a exemplo do Sistema
proteção à família, determinando-a como um dos focos de atenção Único de Saúde, estabelece em suas diretrizes a descentralização
da política de assistência social. Contudo, os efeitos da crise eco- político-administrativa, o atendimento a quem dela necessitar, in-
nómica não tornaram possíveis as reformas institucionais mais dependentemente de contribuição à seguridade social e a partici-
amplas nos sistemas de proteção social. Assim, o direito à seguri- pação da comunidade. O Suas se propõe como instrumento para a
dade social, garantido na Constituição, não se efetivou, principal- unificação das ações da Assistência Social, em nível nacional, ma-
mente no que concerne à assistência social. Como consequência terializando as diretrizes da Loas. Em especial, ratifica o caráter de
(ALENCAR, 2004), vimos o aprofundamento das desigualdades política pública de garantia de direitos, contrapondo-se e destitu-
sociais, constituindo-se, sob novos parâmetros, o empobrecimen- indo o histórico assistencialismo do "primeiro-damismo". Esse
to dos trabalhadores e suas famílias. As medidas adotadas para novo modelo de gestão da política da assistência social prioriza a
enfrentar esta situação foram priorizar os programas focalizados família como foco de atenção e o território como base da organiza-
(de cunho assistencialista), os fundos sociais de emergência e os ção de ações e serviços em dois níveis de atenção (CRUZ; SCARPARO
programas sociais compensatórios voltados para o atendimento & GUARESCHI, 2007).
dos grupos pobres e vulneráveis. Neste cenário, corroborou para o
Para Sposati (2006), o Suas não é um programa, mas uma for-
agravamento da pobreza a tendência histórica do sistema de pro-
ma de gestão da assistência social como política pública; inscre-
teção social brasileiro, qual seja, a privatização nas áreas da saú-
ve-se como uma das formas de proteção social não contributiva,
de, educação e previdência.
"como responsabilidade de Estado a ser exercida pelos três entes
A partir destas considerações, podemos dizer que a introdu- federativos que compõem o poder público brasileiro" (p. 110). O
ção da assistência social como política social da área da segurida- Suas provoca, assim, uma ruptura com a concepção da assistência
de social incorpora uma inovação conceituai, mas também reitera social identificada com a benevolência aos pobres e destituídos de
as heranças históricas constitutivas da cultura brasileira. Inova, na cidadania. Essa concepção, que permeou praticamente todo o sé-
medida em que está respaldada tanto no movimento da sociedade culo passado, delegou à Igreja o papel de prestar assistência aos
quanto em garantias legais, pois integra as demais políticas de necessitados sob a ótica da caridade e da benemerência, propici-
proteção social. E, quanto à manutenção das velhas concepções
28 29
ando, ainda, a criação de entidades filantrópicas para atender às básica ou especializada, ou seriam uma ação especializada na
demandas sociais, como concessão e não um direito. atenção básica? A preocupação que esta dicotomia entre básica e
O Suas inova ao definir níveis diferenciados de complexidade especializada nos coloca tem raízes nas práticas históricas, pois
na organização dos equipamentos públicos de proteção social. A mesmo as mais bem-intencionadas, muitas vezes resultaram no
Proteção Social Básica objetiva prevenir situações de risco através indesejado reforço da institucionalização (CRUZ; SCARPARO &
do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortaleci- GUARESCHI, 2007).
mento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à popula- O Suas propõe, como uma das formas de efetivação, a implan-
ção que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da tação do Programa de Atenção Integral à Fajnília (Paif), que é um
pobreza, com precário acesso aos serviços públicos e/ou fragiliza- serviço continuado de proteção social básica desenvolvido nos
ção de vínculos afetivos. Prevê o desenvolvimento de serviços, Centros Regionais da Assistência Social. Esses Centros são espaços
programas e projetos locais de acolhimento, convivência e sociali- físicos localizados estrategicamente em áreas de pobreza, prestan-
zação de famílias e de indivíduos, conforme identificação da situa- do atendimento socioassistencial, articulando os serviços disponí-
ção de vulnerabilidade apresentada. J á a Proteção Social Especial veis em cada localidade e potencializando a rede de proteção social
é a modalidade de atendimento destinada a famílias e indivíduos básica. O Paif destina-se a promover o acompanhamento de famílias
que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocor- em uma determinada região (territorialização); potencializar a famí-
rência de maus-tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, cum- lia como unidade de referência, fortalecendo vínculos internos e ex-
primento de medidas socioeducativas, situação de trabalho infan- ternos de solidariedade; contribuir para o processo de autonomia e
til, dentre outras. As dificuldades em exercer funções de proteção emancipação social das famílias, fomentando seu protagonismo;
fragilizam a identidade do grupo familiar, tornando mais vulnerá- desenvolver ações que envolvam diversos setores, com o objetivo
veis seus vínculos simbólicos e afetivos. de romper o ciclo de reprodução da pobreza entre gerações; e atuar
de forma preventiva, evitando que essas famílias tenham seus direi-
tos violados, recaindo em situações de risco. Essas famílias, em de-
conência da pobreza, estão vulneráveis, privadas de renda e do
As práticas da psicologia no contexto do Suas
acesso aos serviços públicos, com vínculos afetivos frágeis, discri-
A partir do Suas, está previsto nos Centros de Referência da minadas por questões de género, etnia, deficiência, idade, entre ou-
Assistência Social (Cras) e nos Centros de Referência Especializa- tras (CRUZ; SCARPARO & GUARESCHI, 2007).
dos de Assistência Social (Creas) o profissional de psicologia na
composição da equipe mínima. Perguntamos quais as práticas da No município de Porto Alegre, o Paif teve seu projeto de exe-
psicologia nestes centros? No sentido de contribuir para este de- cução aprovado em 2004, com o foco na potencialização da rede.
bate, cabe como questão, que interpretação e operacionalização Foi constatado que algumas famílias que vinham sendo atendidas
de ações se efetivarão na articulação da rede básica e especializa- através de programas de orientação e apoio sociofamiliar continua-
vam em situação de vulnerabilidade, principalmente no que se re-
da de serviços socioassistenciais quando uma ação de abrigamen-
fere às crianças na sinaleira. Contudo, o monitoramento de crian-
to temporário para uma criança pequena é requerida nos chama-
ças e adolescentes na rua acontecia no centro da cidade, através
dos casos de "negligência" em que a segurança da criança requer
de denúncias, bem como do trabalho infantil nas feiras, caracteri-
um acolhimento em tempo integral e, ao mesmo tempo, o investi- zando-se como reincidência ou início da situação de risco, não ha-
mento no trabalho com a presença dos pais. Como poderiam se vendo visibilidade da mendicância nos bainos. Além disto, foi ob-
constituir centros de convivência nos quais a criança pudesse per- servado, também, que questões de sofrimento psíquico tinham
manecer dia e noite e que facilitassem as visitas diárias dos pais ou particular importância na dificuldade de algumas famílias no sen-
familiares? As "famílias substitutas" seriam uma ação da proteção tido emancipatório.
30 31
Cabe questionannos qual a diferença entre encaminhar uma seriam os novos aparelhos da "Polícia das Famílias"? Muitas ações 7
família para atendimento em saúde mental, como psicoterapia ou configuram-se em dispositivos de controle sobre as famílias e os
terapia familiar e a medida de proteção legal de orientação e apoio sujeitos, exatamente como se viu com a figura do criminoso (FOU-
sociofamiliar. A questão parece estar na identificação de situação CAULT, 1984) e com os dispositivos higiénicos que fundaram a fa-
de violação de direitos da criança ou adolescente, como abuso se- mília nuclear moderna (DONZELOT, 2001).
xual, maus-tratos e negligência, algumas vezes associada à de- Se a política de Assistência Social é processo de travessia para
pendência de substâncias psicoativas, ou trabalho infantil, ou si- garantir o acesso às demais políticas públicas, este tem sido "a
tuação de rua, para citar alguns exemplos. Interrogamo-nos, espe- nado e contra a correnteza". A pobreza muitas vezes ainda é per-
cialmente, quando a família não busca ajuda por si própria. Quan- cebida como um atributo individual daqueles que não se empe-
do é necessário que um "terceiro" venha intervir, seja a escola, a nharam em superá-la. São poucas as pessoas que acessam a assis-
saúde, a comunidade diretamente, ou através dos operadores de tência social para garantir seus direitos e, muitas vezes, ainda são
direito como o Ministério Público e Juizado da Infância e Juventu- vistas como "pedintes". Para a psicologia comprometida cpm o re-
de. A demanda, neste caso, está colocada fora, a partir de um ou- conhecimento das singularidades e a promoção da autonomia, da
tro, e o trabalho será baseado na constituição da demanda de tra- superação do trabalho infantil de crianças nas sinaleiras, enfim,
tamento. Muitas vezes o encaminhamento não é cumprido pela com intervenções assertivas que garantam os direitos estabeleci-
família, gerando uma determinação legal, ou até uma medida de dos em lei, isto envolve uma mudança de olhares e, com certeza,
abrigamento da criança ou adolescente. Assim, como trabalhar o um avanço na integração da rede que leve seu texto às últimas
retorno à família, uma vez que está implícito que esta faça movi- consequências no sentido da mudança pela via da integração. Ou
mentos de adesão e permanência em tratamento? corre o risco de ser mais um sistema que só fica bonito no papel.
As psicólogas Rispoli, Vinãs e Susin (2004) afirmam que susten-
tar a escuta da subjetividade do usuário face à violação de direitos Algumas interrogações
da criança e do adolescente não é tarefa fácil. Citam como exemplo
Quando nos perguntamos sobre o processo de implantação do
quando uma criança está fora da escola e isso não é problema para
Suas, em nível federal, estadual e municipal, alguns estranhamen-
sua mãe. O dilema é operar de dois lugares: do lado do direito, con- tos, ou melhor, velhos paracligmas são encontrados. A seguir, al-
siderando a lei jurídica, que aponta para a normatização das condu- gumas problematizações.
tas ou do lado da escuta, considerando o ponto de vista da verdade
Iniciamos com a criação do Programa de Aceleração do Cres-
do sujeito . Paradoxalmente, a psicologia vai olhar (ou não) para ou-
6
cimento (PAC), que tem como objetivos gerais: promover a acele-
tros fatores, tais como relativizar os atos do sujeito e escutar em que
ração do crescimento económico, o aumento do emprego e a me-
lugar ele se situa frente a essa violação. Levar em consideração
lhoria das condições de vida da população brasileira (BRASIL,
como se organizam os laços familiares, que princípios e valores re-
2007). Para garantir a implementação do PAC nas favelas de gran-
gem este grupo familiar. O desafio está colocado: como trabalhar
de contingente populacional do Rio de Janeiro, o Estado teve que
com os programas de orientação e apoio sociofamiliar de forma a recorrer à presença da polícia e da Força de Segurança Nacional
promover a autonomia, os direitos das famílias, sem que essa ação
se transforme em mais um veículo de controle? Esses programas
7. Donzelot (2001), no livro A polícia das íamilias, discute como na França dos séculos XVIII
e XIX o social se centrou em torno da família, dos seus exercícios e deveres. Sob o pretexto
de promover a assistência aos segmentos pobres, e utilizando-se da produção de um senti-
6. Estas questões foram trazidas pelas psicólogas Janete Constantinou, Marisa Warpe- mento de responsabilidade social, elege-se o controle e a disciplinarização para fazer valer
chowski e Luciane Susin no "Debate sobre a Psicologia na Assistência Social", promovido a ordem econômico-político-social vigente, que favorecia os interesses da burguesia amea-
pela Comissão de Políticas Públicas do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do çados pela crescente miséria. Dessa forma, a ascensão do social vai promover a produção
Sul, no dia 16/05/2005. de modelos de família, educação e trabalho.
32 33
de modo a possibilitar o acesso da população às ações do referido sofrera um acidente vascular cerebral. Esse Cras está situado geo-
Programa. Esse fato é emblemático para entendermos as conse- graficamente ao lado da Unidade Básica de Saúde, que o citado ci-
quências da prolongada ausência do poder público nesses territó- dadão frequenta e, mesmo assim, passa-lhe despercebido. Diante
rios. Com o vazio de autoridade no cumprimento dos direitos soci- da assistente social, o familiar justificou a necessidade da cadeira,
ais, a periferia passou a ser assistida pelos traficantes e, mais re- adotando uma postura de pedir um favor ao ente público, tendo
centemente, protegida pelas milícias formadas por policiais. A em vista a dificuldade de locomoção da idosa, principalmente para
gravidade da omissão e negligência do Estado em relação a esse fazer a higiene pessoal. Para sua surpresa, recebeu a resposta que
segmento é tão grande que as milícias cobram, por exemplo, uma existiam cadeiras de roda disponíveis sim, que estavam em manu-
taxa dos moradores para a entrega domiciliar de um botijão de tenção, por iniciativa do Rotary Club da cidade, mas que, quando
8
gás, recebem cestas básicas do comércio local para, em troca, as cadeiras fossem devolvidas ao Cras, o familiar seria informado
mantê-lo com as portas abertas, dentre tantas outras demonstra- para ir recebê-la. Passados dois meses, o familiar conseguiu auxí-
ções de poder paralelo instituído com a anuência do poder estatal. lio de amigos/vizinhos para adquiri-la.
Todo esse panorama configura a situação, ainda frágil, das políti- Cabe salientar que o referido cidadão pertence à classe média
cas sociais no país. A propósito, indagamos qual é a inter-relação baixa e, pela primeira vez, acreditara na resolutividade do poder
entre o PAC e a Politica Nacional de Assistência Social, uma vez público para suprir uma necessidade que encontra amparo nos
que o PAC, pelo menos nas favelas cariocas, prometera dar enca- dispositivos da Política Nacional de Assistência Social, cujos prin-
minhamento às questões de habitação, de pavimentação e alarga- cípios são: I. Supremacia do atendimento às necessidades sociais
mento das vias para permitir a circulação de transporte de atendi- sobre as exigências de rentabilidade económica; II. Universaliza-
mento em caso de emergência, implantação de creches, dentre ção dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação as-
outras iniciativas. sistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III. Respeito
à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefí-
Será que mais uma vez as exigências económicas foram de-
cios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e
terminantes para dar conta das políticas sociais? Lembremos que
comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de ne-
o PAC utiliza recursos orçamentários da seguridade social e do
cessidade; IV. Igualdade de direitos no acesso ao atendimento,
Ministério da Fazenda como fonte de financiamento. A gestão do
sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equiva-
PAC está vinculada à Casa Civil que, juntamente com as esferas
lência às populações urbanas e rurais; V. Divulgação ampla dos
governamentais dos estados e municípios, são responsáveis por
benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como
sua execução. Segundo dados oficiais, não fica claro como o refe-
dos recursos oferecidos pelo poder público e dos critérios para sua
rido Programa se articula com as demais políticas sociais, pare-
concessão (BRASIL, 2004).
cendo pressupor que esse processo se dê espontaneamente.
Outros exemplos referem-se a vivências cotidianas. Obser- No caso relatado, apesar da vigência do Suas, podemos obser-
va-se que apesar do aparato previsto no Suas para oferecer servi- var o descompasso e a desarticulação entre a saúde (SUS) e a as-
ços à população, quando há necessidade de acionar a política pú- sistência social (Suas). Vemos também que o poder público man-
blica da assistência social, a população, muitas vezes, desconhe- teve a prática de recorrer à sociedade civil para cumprir com suas
ce seus direitos neste âmbito, não é informada a respeito dos pro- responsabilidades legais, explicitando a reprodução das velhas
gramas da rede socioassistencial disponíveis no município e, quan- práticas, principalmente no que se refere à falta de recursos para o
do tem conhecimento, adota uma postura de descrédito quanto à financiamento dos programas e serviços destinados à população.
efetividade de encaminhamento de suas demandas. Para ilustrar
esta situação, relatamos o caso de um cidadão que buscou apoio
8. O Rotary Club é uma entidade de abrangência internacional, cujo lema é "servir a comu-
no Cras, de um município de Santa Catarina, para conseguir uma nidade" . Constituído por empresários de vários setores, cada grupo se reúne semanalmen-
cadeira de rodas a ser utilizada por um familiar, de 101 anos, que te para discutir as ações sociais eleitas e receber o apoio financeiro da entidade.
34 35
Como se vê, a lógica perversa ainda se perpetua, adiando a cida- referência afetiva e moral e a reestruturação das redes de recipro-
dania. Quando o usuário desconhece seus direitos, reprime a de- cidade social" (BRASIL, 2004).
manda, não reivindica a formulação, a execução e o financiamento O pressuposto da teoria económica, de matriz liberal, diz que
da política, deixando de pressionar o poder público a cumprir com o mercado é suficientemente capaz de regular as relações capita-
suas atribuições. listas de oferta e demanda, indicando que a moradia tornou-se
J á a pesquisa de Waiselfísz et al. (2004), cujo foco foi a caracte- uma mercadoria como qualquer outra. E, nesse caso, o próprio
rização da Rede de Proteção às Famílias em Situação de Vulnera- povo se vê identificado como mercadoria.
bilidade Social no município de Porto Alegre, apontou que a maio- O que demanda a frase no cartaz? Há um pedido de ser reco-
ria das informantes soube do Programa Família: Apoio e Proteção nhecido como cidadão, com o direito de morar e de não ser tratado
através dos Conselhos Tutelares (que as encaminharam), assim como mercadoria. Como trabalhar outras formas de inserção das
como de informações de vizinhos/amigos, bem como nos próprios pessoas que estão fora das políticas habitacionais, como aponta o
centros de atendimento da Rede Básica de Assistência Social. O cartaz? A equipe técnica do Cras, por exemplo, poderia degenvolver
estudo apontou também que as entrevistadas têm um bom nível grupos operativos no sentido de organização comunitária, propici-
de conhecimento sobre a documentação exigida, critérios de se- ando e instrumentalizando as pessoas que vivem nessas comunida-
leção, valor dos benefícios, compromissos para a renovação, dura- des a ocupar seu espaço político na sociedade. Uma possibilidade é
ção, bem como procedimentos de suspensão e desligamento. Con- a preparação destas para a representação em fóruns participativos,
tudo, a partir de informações na pesquisa de campo de Cruz (2006), nos quais muitas demandas são desconsideradas por inviabilidade
ainda são poucas as pessoas que acessam a assistência social técnica. Passa pelo resgate da assessoria técnica aos grupos popu-
para garantir seus direitos, e muitas se colocam na posição de "pe- lares para a elaboração de propostas, apropriação da legislação,
dinte" . Isso não surpreende, pois o referido estudo denota também normas e diretrizes, inclusive propiciando o debate e a exigência
a indignação do Conselho Tutelar, por exemplo, quando usuárias dos seus representantes políticos na defesa dos seus direitos, o que
solicitam ingresso em programas da assistência social, afirmando é bem diferente da troca de favores. Entretanto, para tal, é necessá-
que "é mais fácil pedir do que trabalhar". rio trabalhar para uma mudança de posição entre quem dá e quem
recebe. Passa pelo exercício de autonomia/autoria, fundamental
No Brasil, presenciamos o enfraquecimento dos movimentos para o reconhecimento da capacidade do cidadão (independente do
sociais no início do século XXI. Entretanto, algumas vozes interro- grau de instrução ou nível socioeconómico).
gam: "Sr. comprador, este povo não tem onde morar. Vai comprar
o povo junto?" Esse é o texto de uma faixa afixada nas proximida- Para finalizar, urge trazermos para este cenário a nossa prática
des da Vila Safira, zona leste de Porto Alegre, região de grande da docência. Vemos que a formação académica , muitas vezes, 9
concentração de pobreza e alto índice de violência, segundo apu- ainda privilegia o conhecimento técnico-científico, utilizando-se |$
ração do Conselho Tutelar da referida microrregião. O texto ex- de concepções e práticas avaliativas e adaptacionistas. É comum
pressa, de maneira tragicômica, a sabedoria popular para abordar ouvirmos dos alunos e das alunas que os pobres não trabalham
o dilema do déficit habitacional, apontando as necessidades de mais porque recebem a bolsa-família ou "só não trabalha quem
moradia da população pobre. Ao que se pode deduzir, é uma alu- não quer, pois tem emprego para quem se esforça". Trabalhar com
são à venda de uma área de terra, ocupada pela população, reme- políticas públicas exige pensar a partir do lugar do outro, e não
tendo para algumas questões centrais no que se refere aos míni- apenas reproduzir conhecimentos ou aprender técnicas; implica
mos sociais já comentados anteriormente e que estão contempla- sensibilizar para tópicos (pouco contemplados na academia) como
dos naquilo que a Política Pública de Assistência Social configura
como passíveis de proteção social especial, cuja ética "pressupõe
o respeito à cidadania, o reconhecimento do grupo familiar como 9. Quando nos referimos à formação académica, não estamos restringindo à Psicologia,
mas aos variados cursos em que ministramos disciplinas, como Serviço Social, Pedagogia,
Licenciatura em História, Letras, Matemática, entre outras.
36 37
assistência social, direitos humanos, cidadania, movimentos soci- HUBERMAN, L. (1971). História da riqueza do homem. 7. ed. Rio de
ais e conselhos. O desafio é articular a dimensão política na forma- Janeiro: Zahar.
ção académica e, consequentemente, nas práticas profissionais,
pois são indissociáveis. MARCÍLIO, M.L. (1999). A roda dos expostos e a criança abandonada na
história do Brasil. In: FREITAS, M.C. (org.). História social da infância
no Brasil. São Paulo: Cortez.
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