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A CONSTITUIÇÃO DA ASSISTÊNCIA
SOCIAL COMO POLÍTICA PÚBLICA:
interrogações à psicologia

Lilian Rodrigues da Cruz


Soe c- 9 Ç oj f r ^ Neuza Maria de Fátima Guareschi

Questão de direitos na sociedade capitalista


Pretendemos percorrer neste capítulo a trajetória das políticas
sociais públicas no Brasil, considerando a priorização da família,
que, desde a Constituição Federal de 1988, até a atual implanta-
»
ção do Sistema Único de Assistência Social, é colocada como dire-
triz das políticas de atendimento. Propomo-nos discutir, também,
as práticas da psicologia neste campo.
Para discutirmos a atual configuração das políticas publicas de
assistência social é imprescindível resgatarmos a temática dos direi-
tos, que surge, paulatinamente, na transição de uma sociedade de
organização feudal para a emergência do Estado-nação. Desde sua
origem, o Estado volta-se para o fortalecimento da ordem burguesa,
promovendo ações para" a sua consolidação. As revoluções Indus-
trial (1769), Americana (1776) e Francesa (1789) são determinantes
para esse processo, cujo princípio é o da acumulação e o fundamen-
to é a propriedade privada dos meios de produção.
O século XVIII instaura a chamada era dos direitos civis, ne-
I cessários à ordem burguesa, pois era preciso liberdade de ir e vir
para vender a força de trabalho, bem como ter a garantia de segu-
rança em relação à propriedade privada. Podemos dizer que os di-
reitos civis referem-se à liberdade e à igualdade perante a lei. J á os
direitos políticos emergiram no século XIX em resposta às terríveis
condições de vida da classe trabalhadora, que passou a exigir o di-
reito de organização em sindicatos e de participar da vida política,
reservada aos proprietários. Assim, os direitos políticos refe-
rem-se à participação no exercício do poder, tanto votando como
se tornando elegível (PEREIRA, 2006).

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Contudo, nós séculos XVHI e XIX, a humanidade "convivia 2002, p. 11). As manifestações e reivindicações dos trabalhadores
com a escravidão, com o conceito de incapacidade em relação às por melhores condições de vida e de trabalho eclodiram com a cri-
mulheres, às crianças, aos índios, e era considerada natural a não se do capitalismo de 1929. Para Huberman (1971), o crescimento
extensão desses direitos a segmentos populacionais, bem como a dos industriais durante a Revolução Industrial na Inglatena trouxe
exclusão de homens escravos e não proprietários" (COUTO, 2006, consigo teorias económicas baseadas nas condições da época,
p. 46). As vicissitudes dessa situação durante a Revolução Indus- como a Teoria de Economia Clássica, cujo pressuposto é "o bem-
trial é exemplificada por Huberman (1971) ao relatar que até um estar da sociedade está ligado ao do indivíduo". Com ironia, Leo
senhor de escravos das índias Ocidentais surpreendia-se com a Huberman diz:
crueldade da jornada de 12 horas e meia de trabalho de crianças de Dê a todos a maior liberdade, diga-lhes para ganharem o mais que
apenas 9 anos de idade. Vê-se que o acesso aos direitos era restri- puderem, apele para seu interesse pessoal, e veja, toda a socieda-
to aos homens livres e proprietários e não a toda a humanidade. E, de melhorou! Trabalhe para si mesmo e estará servindo ao bem
desde então, a luta da sociedade tem sido para universalizá-los. geral. Que achado para os homens de negócios, ansiosos em se
lançarem na corrida dos lucros cada vez maiores! Abram os sinais
Assim, o nascimento dos direitos sociais no século XX é resul- para o trem especial do laissez-faire\a o goverrfo regula-
tado das lutas enfrentadas pela classe trabalhadora desde meados mentar os horários e os salários dos trabalhadores? Isso seria uma
do século XIX. Estes referem-se ao atendimento das necessidades interferência na lei natural e, portanto, inútil - diziam os econo-
humanas básicas, como alimentação, habitação, assistência, saú- mistas clássicos. Qual, então, a função do governo? Preservar a
de, educação, ou seja, "a um mínimo de bem-estar económico e paz, proteger a propriedade, não interferir (HUBERMAN, 1971, p.
segurança, ao direito de participar por completo da herança social 208-209).
e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que Após a crise económica de 1929, a questão social intensifi-
prevalecem na sociedade". Os direitos sociais, juntamente com os cou-se, gerando novas relações entre capital e trabalho e entre es-
civis e os políticos, constituem as três dimensões da cidadania tes e o Estado, fazendo com que as elites económicas admitissem
(MARSHALL, apud OLIVEIRA, 2007, p. 7). A efetivação dos direi- os limites do mercado como regulador natural e resgatassem o pa-
tos sociais está atrelada às condições económicas, ou seja, à inter- pel do Estado como mediador civilizador, ou seja, com poderes
venção do Estado. E este, além de seu papel político, sempre de- políticos de interferência nas relações sociais. Neste sentido, po-
senvolveu ações económicas em prol da empresa capitalista. Esta de-se entender a política social como estratégia de intervenção e
tensão permanente acarreta a dificuldade em viabilizar políticas regulação do Estado no que diz respeito à questão social (CUNHA
sociais públicas, onde "a luta pela universalização dos direitos so- & CUNHA, 2002). É neste cenário, principalmente na Europa do
ciais e políticos e a busca da igualdade como meta dos direitos so- pós-guerra, que se consolida "a proposta do Estado social, imple-
ciais são características de vários momentos e declarações cons- mentador de políticas sociais baseadas nos princípios sociais uni-
truídas pelos homens, principalmente a partir dos séculos XVIII, versais, igualitários e solidários", sendo o precursor do chamado
XIX e XX" (COUTO, 2006, p. 49). Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State (COUTO, 2006, p.
Uma breve retrospectiva evidencia que, até o final do século 52). Pelos princípios do Estado de bem-estar social, todo o indiví-
XIX e início do XX, prevaleciam as ideias liberais de um estado mí- duo tem direito à educação, assistência médica gratuita, auxílio
nimo que somente assegurasse a ordem e a propriedade, e do no desemprego, garantia de uma renda mínima e recursos adicio-
mercado como regulador "natural" das relações sociais. A posição nais para a criação dos filhos.
ocupada pelo indivíduo na sociedade e suas relações eram perce- À medida que o Estado tem a responsabilidade pela formula-
bidas conforme sua inserção no mercado. "A questão social, de- ção e execução das políticas económicas e sociais, diversos seto-
conente do processo produtivo, expressava-se na exclusão das res da sociedade disputam pelo acesso à riqueza. Muitas ações do
pessoas, tanto da própria produção quanto do usufruto de bens e Estado foram resultado destas lutas. Assim, política pública é a
serviços necessários à sua própria produção" (CUNHA & CUNHA,

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resposta do Estado frente às demandas que emergem da socieda- inclusão marginal de grande parcela da população (CUNHA &
de, caracterizando-se como um direito coletivo (CUNHA & CUNHA, 2002). As autoras salientam que as respostas políticas dos
CUNHA, 2002). Para Veronese (1999), política pública "é um con- diversos países à questão social apresentaram algumas medidas
junto de ações, formando uma rede complexa, endereçada sobre comuns, entre elas o corte de benefícios, maior seletividade (não se
precisas questões de relevância social. São ações, enfim, que ob- aplica a todos) e a focalização das políticas sociais, ou seja, atendem
jetivam a promoção da cidadania" (p. 193). E o termo "público", aos mais pobres entre os pobres. Assim, através da privatização de
associado à política, não é uma referência exclusiva ao Estado, programas de bem-estar social, o Estado se isentou da garantia dos
mas sim à coisa pública, ou seja, de todos, com o amparo de uma míriimos sociais necessários à sobrevivência humana.
mesma lei, porém vinculados a uma comunidade de interesses.
Embora as políticas públicas sejam reguladas e frequentemente
providas pelo Estado, elas também englobam preferências, esco- Direitos sociais e políticas sociais no Brasil
lhas e decisões privadas, podendo (e devendo) ser controladas pe- Traçar a trajetória da política da assistência social no Brasil
los cidadãos.
implica, necessariamente, fazer um recorte histórico cont foco no
No final da década de 1960, houve um esgotamento dos mer- Brasil Republicano. Se compararmos com a experiência interna-
cados europeu e japonês, acarretando uma nova crise capitalista cional, não podemos falar de um Estado de Bem-Estar no Brasil.
na década seguinte. A partir deste período, há um reordenamento Contudo, a literatura especializada em políticas sociais aponta os
societário global, com o desenvolvimento de processos de reestru- anos 30 do século XX como o período em que o Estado passou a
turação produtiva, a mundialização do capital financeiro e o avan- intervir nas relações entre capital e trabalho, pois, como país capi-
ço da ideologia neoliberal por todo o globo. O Estado é quem irá
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talista periférico, ingressa tardiamente no mundo industrial. Até
transferir recursos para os interesses do capital, antes voltados
então, a assistência social foi realizada a partir de iniciativas pon-
para o provimento de políticas sociais (PEREIRA, 2006). Segundo
tuais e não como uma concepção de política. As práticas assisten-
Couto (2006, p. 70), "as políticas sociais retomam seu caráter libe-
ciais foram reguladas pela filantropia, inicialmente através da
ral residual; a questão da garantia dos direitos volta a ser pensada
na órbita dos civis e políticos, deixando os sociais para a caridade Igreja - principalmente católica - e depois pelo Estado, deixando
da sociedade e para a ação focalizada do Estado". profundas raízes, como veremos no decorrer do capítulo.
Segundo Mestriner (2001), podemos visualizar na trajetória brasi-
A partir daquele período até o momento atual, muitos países
leira fases e alianças: da filantropia caritativa à higiénica, disciplina-
tiveram que fazer forte ajuste económico, uma vez que a questão
dora, pedagógica profissionalizante, vigiada e de clientela. Paulatina-
social foi agravada por diversos fatores, como: desemprego estru-
mente, as intervenções no espaço urbano, de controle da pobreza e
tural, precarização das relações de trabalho, alterações na organi-
das "classes desviantes" reduziu indigentes, abandonados, inválidos
zação familiar e no ciclo de vida (diminuição da taxa de mortalida-
e doentes à categoria de "assistidos sociais". A ação visava amparar
de e aumento da longevidade, por exemplo) e aprofundamento
a população socialmente desfavorecida ou que estivesse fora do mer-
das desigualdades sociais, gerando exclusão e, simultaneamente,
cado de trabalho, incluindo deficientes, idosos e crianças.
Para entender a trajetória brasileira e a construção dos direitos
1. "As medidas de ajustes sobre o enfoque teórico neoliberal estão sedimentadas num pro- civis, políticos e sociais, é preciso reportar-nos ao descobrimento
jeto ideológico, político e económico que exalta a liberdade dos mercados. São elas: a des-
regulamentação da economia, em que se consolida a abertura dos mercados para o livre flu- do país (1500). Mantido como colónia de Portugal por três séculos,
xo de produtos e do capital ao tempo em que fragiliza e compromete a autonomia do Esta- integrou, "na sua organização social e, portanto, no campo dos di-
do-nação. A orientação de recorte neoliberal consiste em medidas de geração de poupan-
ça, combate à inflação com estabilidade monetária a qualquer preço e pagamento da dívida reitos, traços marcantes da relação de dependência com o império
externa no caso particular dos países endividados do Terceiro Mundo" (FIORI apud r
lusitano" (COUTO, 2006, p. 77). A autora lembra que o sistema
COUTO, 2006, p. 70).

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produtivo estabelecido com a Coroa era fundamentalmente agrí- No século XVTH as autoridades brasileiras estavam preocupa-
cola e baseado no trabalho escravo, incidindo diretamente no das com o crescente fenómeno do abandono de bebés pela cidade
campo dos direitos civis, uma vez que estes não eram considera- de Salvador. Estes eram largados à noite, sendo mortos por cães
dos humanos, mas pertencentes ao seu senhor (dono). Eviden- e/ou outros animais. Neste sentido, aquelas reivindicaram à Coroa
cia-se essa relação nas comemorações do bicentenário da chegada a permissão de se estabelecer uma primeira Roda dos Expostos 2

da família real portuguesa ao Rio de Janeiro (1808), onde os escra- na referida cidade. Assim, a Santa Casa de Misericórdia aceitou a
vos, uma das parcelas da população que deveria ser destinatária incumbência, mas exigiu do rei um subsídio. Com os mesmos ar-
gumentos, a segunda Roda foi instalada na cidade do Rio de Janei-
da política de assistência social, nem das festividades da chegada
ro. A última Roda do período colonial foi instalada em Recife, em
de Dom João VI puderam participar.
1789. Com a Independência do Brasil continuaram a funcionar as
Podemos dizer que a nossa colonização pauta-se, também, três rodas coloniais (MARCÍLIO, 1999). Contudo, assistir às crian-
pela evangelização do colonizador europeu, que culminou no mas- ças abandonadas era uma incumbência aceita com muita resis-
sacre da memória das culturas indígena e africana, através da ex- tência pelas Câmaras. Desta forma, estas conseguiram fazer apro-
ploração dessas crianças (MEIHY, 1993). Na percepção dos colo- var uma lei chamada "Lei dos Municípios", em 1828, qtíe abria a
nizadores, os índios viviam em estado de selvageria e barbárie. possibilidade de eximir algumas Câmaras dessa obrigação, pois
Para promover as mudanças nos costumes da população indíge- estas poderiam utilizar os serviços para a instalação da Roda e as-
sistência aos enjeitados em todas as cidades que tivessem uma
na, os jesuítas construíram a primeira casa de recolhimento de cri-
Misericórdia. Nesta parceria, seria a Assembleia Legislativa Pro-
anças no Brasil, em 1551. Esta acolhia as crianças indígenas que
vincial, e não mais a Câmara, quem entraria com uma Roda de
eram separadas dos seus pais. Isolando-as de seus progenitores e,
Expostos nas Misericórdias e colocando estas a serviço do Estado.
consequentemente, das tradições culturais, acreditavam que se- A autora aponta que se perdia, assim, o caráter caritativo da assis-
ria mais fácil fazê-las assimilar a cultura e a religião portuguesa. tência, para inaugurar uma fase filantrópica, associando-se o pú-
Assim, evidencia-se que a primeira iniciativa de atendimento à blico e o privado. Salienta-se que essa lei também foi feita para in-
criança teve como eixo central a caridade. Esta partiu da Igreja centivar a iniciativa particular a assumir a tarefa de criar as crian-
Católica e do pressuposto de que as crianças precisavam modifi- ças abandonadas, liberando as municipalidades desse serviço.
car seu comportamento "bárbaro" (no sentido de contrário às re- Neste momento, identificamos as primeiras alianças entre carida-
gras e normas estabelecidas), ou seja, necessitavam de "corre- de e governo, em que a caridade toma a iniciativa e o governo en-
ção", que era obtida através das referidas escolas (MARTINS & tra com a verba para a manutenção dos estabelecimentos cria-
BRITO, 2001).
Também católico e no modelo de esmola, a Irmandade de Mi-
sericórdia (transferida de Lisboa) dava dotes aos órfãos e caixão
para enterrar os pobres, prioritariamente aos seus integrantes.
2. As rodas de expostos tiveram origem na Idade Média, na Itália. Elas surgiram no século
Instalou-se na cidade de São Paulo em 1560, contando com uma XII com a aparição das confrarias de caridade, que prestavam assistência aos pobres, aos
precária enfermaria (ao mesmo tempo albergue e hospital); provia doentes e aos expostos. As rodas eram cilindros rotatórios de madeira usados em mosteiros
alimentação, abrigo e enfermagem a escravos e homens livres, como meio de se enviar objetos, alimentos e mensagens aos seus residentes. Rodava-se o
cilindro e as mercadorias iam para o interior da casa. sem que os internos vissem quem as
uma vez que não havia médicos no país. Neste mesmo modelo, deixara. A finalidade era a de se evitar o contato dos religiosos enclausurados com o mundo
em São Paulo, foram fundados o Convento de São Bento (1598), a exterior, garantindo-lhes a vida contemplativa. Como os mosteiros medievais recebiam cri-
Venerável Ordem de Nossa Senhora do Carmo (1594), a Ordem dos anças doadas por seus pais, para o serviço de Deus, muitos pais que "abandonavam" seus
filhos utilizavam a roda dos mosteiros para nela depositarem o bebê. Esperavam eles que a
Frades Menores Franciscanos (1640), e o Recolhimento Santa Te- criança não só teria os cuidados dos monges, como seria batizada e poderia receber uma
reza (1685) que, além de ajuda material e de enfermagem, proviam educação aprimorada. Desse uso indevido das rodas dos mosteiros surgia o uso da roda
para receber os expostos, fixadas nos muros dos hospitais, para cuidar das crianças aban-
abrigo e apoio espiritual (MESTRINER, 2001). donadas. Assim, o nome da roda provém deste dispositivo (MARCÍLIO, 1999).

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dos . Constatamos que as alianças/parcerias entre Estado e socie-
3 Quando Dom Pedro I assumiu, os grupos que defendiam a inde-
dade civil são antigas e atravessam a história, nas quais a Igreja pendência já tinham maior visibilidade e influência, criando as
Católica marca significativa presença. condições de possibilidade para a independência, em 1822. "Um
Resgatando a história do Brasil (COUTO, 2006), percebemos país independente exigia uma Constituição que o organizasse",
que nos períodos colonial e imperial as relações entre proprietários, sendo que esta "passou a retratar, especialmente no campo dos
escravos, governo e a população em geral era marcada pela cen- direitos, os elementos da sua herança histórica: dependência polí-
tralização do governo e dos proprietários, dificultando a circulação tica, processo de trabalho escravocrata e relações de poder, cen-
de informações e, consequentemente, a organização de movi- tralizados nos grandes proprietários" (COUTO, 2006, p. 83).
mentos coletivos. Embora os ideais da Revolução Francesa e as A primeira Constituição brasileira, promulgada em 1824, as-
ideias provindas da Revolução Industrial (Inglaterra) fossem con- segurou a todos os cidadãos livres, a partir de 25 anos de idade, do
sideradas inconvenientes para o Brasil, paulatinamente foram tra- sexo masculino, o direito ao voto. É preciso lembrar que a abolição
zidas por estudantes oriundos das famílias abastadas, constituin- da escravatura, pelo menos formalmente, somente ocorreu em
do, mesmo que de forma incipiente, a classe burguesa. Diferente-
1888. No que se refere aos direitos sociais, nenhuma garantia sig-
mente da Europa, esses movimentos sociais que pleiteavam a
nificativa foi introduzida. Já na Constituição de 1891, é reduzida
emancipação de Portugal para livrarem-se do fisco e manterem a
aos maiores de 21 anos a condição para votar e ser eleito, vedando
liberdade de comércio, eram, contudo, favoráveis ao trabalho es-
esse direito aos mendigos, analfabetos, praças e religiosos. No
cravo. Vê-se que naquela época imperavam os princípios liberais,
campo dos direitos sociais, dispõe o livre exercício de qualquer
am que os direitos civis e da liberdade individual eram irrelevan-
profissão moral, intelectual e industrial. Cabe enfatizar que as
tes. "No entanto, esses movimentos, embora com suas caracterís-
ticas e dificuldades de organização, representavam embriões de Constituições vão traduzir o momento histórico, social, político e
grupos que questionavam o poder absoluto da Coroa portuguesa económico de cada país, recebendo, ainda, a influência da con-
de regular a vida económica e social brasileira" (p. 81). juntura que vigora no ambiente internacional (cf. COUTO, 2006).

A autora aponta as guerras napoleónicas na Europa, no início Durante a Primeira República (da Proclamação da República,
do século XIX, como principal motivo da vinda da Família Real ao em 1889, até a Revolução de 1930), o Estado não intervinha, pois
Brasil, onde a então Colónia passa à condição de Reino Unido de considerava que a área social não era função pública. Deste modo,
Portugal e Algarve. Como consequência, em 1808 o rei Dom João a assistência era desenvolvida pela Igreja Católica (NOGUEIRA,
VI decreta a abertura do porto brasileiro para o comércio, dando li- apud MESTRINER, 2001). Contudo, o país passara por importan-
berdade de negociar com outros países. Tais movimentos fizeram tes mudanças económicas e políticas, como o fim do regime de
crescer a mobilização em prol da independência do Brasil. Entre- trabalho escravo e a imigração de trabalhadores europeus. Para
tanto, em 1820, a Revolução do Porto (Portugal) - contrária ao Bulcão (2002), as discussões acerca da Lei do Ventre Livre puse-
Estado absolutista - faz com que Dom João VI retorne à Europa. ram em questão a legitimidade da escravidão. Assim, quando de-
cretada a Abolição da Escravatura, em 1888, aproximadamente
meio milhão de escravos transformaram-se em mão de obra assa-
3. Segundo Marcílio (1999), a primeira província a entrar nessa nova sistemática foi a do Rio lariada, provocando mudanças nas relações de trabalho e na eco-
Grande do Sul, criando três Rodas: na cidade de Porto Alegre (1837), em Rio Grande (1838) e
em Pelotas (1849). É necessário enfatizar que o encargo com os expostos era tarefa difícil nomia agrícola. Soma-se a isto o grande contingente de imigran-
para as Santas Casas de Misericórdia. Quem ajudava a manter essas instituições era o espí- tes europeus que vinham substituir a mão de obra escrava, cujo
rito de caridade da população. Como podemos perceber, a partir de 1830, o caráter da assis- crescimento demográfico (negros libertos, nacionais migrados do
tência vai deixando de ser uma ação em mãos das municipalidades e de confrarias de lei-
gos, uma vez que as províncias vão sendo forçadas a subvencionar essa assistência e a con- campo, estrangeiros, mulheres e crianças) acarretou no satura-
tratar os serviços das Santas Casas e/ou das ordens religiosas para cuidar das crianças con- mento do mercado de trabalho. Como consequência, as cidades
finadas nas casas de expostos. Traçando um paralelo, constatamos o protagonismo de Por-
to Alegre, primeira cidade a instalar os Conselhos Tutelares, em 1992. cresceram de forma desordenada em áreas em processo de mo-

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' demização. Ê o êxodo não se deu acompanhado de proporcional r-ência e a solidariedade, mas passa a ser responsável por ela, regu-
aumento de empregos, nem de serviços públicos voltados à edu- lando-a por meio do CNSS" (MESTRINER, 2001, p. 107).
cação e à saúde.
Em 1937, é promulgada uma nova Constituição para dar sus-
Neste cenário, segundo Mestriner (2001, p. 68), o Estado pas- tentação ao Estado Novo, caracterizado por um período ditatorial
sa a assumir funções maiores, além de coerção. "Terá o papel de que se estendeu até 1945, com a participação do Brasil na Segun-
regulamentação, organização, coordenação, intermediação e até da Guerra Mundial. Novos direitos são introduzidos na área da
de educação, enquanto promotor de uma nova cultura", em con- educação, priorizando as classes sociais menos favorecidas (cf.
sonância com as novas exigências. "Estruturará aparelhos centra- COUTO, 2006).
lizadores para o Estado, destinados ao exercício da repressão, ao Em 1942, é criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), ór-
oferecimento de serviços sociais e à regulação da economia, numa gão responsável por coordenar as ações da assistência em âmbito
época em que emerge o proletariado industrial e avança o capita- nacional e extinta após o Governo Collor, com o indiciamento, por
lismo". Assim, o movimento armado de 1930 é resultado da amea- corrupção, da primeira-dama Rosane Collor de Mello. Dois fenó-
ça da anarquia generalizada e total descontentamento popular, menos caracterizam esse período: a institucionalização do primei-
materializado pela chamada "questão social"; culminou na exone- ro-damismo, com a coordenação da LBA, de Darcy Vargas, mu-
ração do Presidente Washington Luís e levou Getúlio Vargas ao lher de Getúlio Vargas, e o surgimento de Faculdades de Serviço
Governo Provisório. Social visando à profissionalização de mulheres na área da assis-
tência social. A LBA foi criada, inicialmente, para prestar assistên-
i A Constituição de 1934 introduz direitos trabalhistas para regu- cia aos soldados brasileiros recrutados para a guerra e a seus fami-
lar as relações entre capital e trabalho. É nessa época que se institui liares. Para tanto, foram mobilizadas milhares de mulheres que
um conjunto de medidas de proteção ao trabalhador, que mais tar- participavam dos cursos oferecidos pela LBA, tornando-as volun-
de é transformado na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), as- tárias para atuarem na proteção da população em caso de bombar-
segurando-se, ainda, o direito à educação primária integral e gratui- deio, na preparação de alimentos diante de uma situação de es-
ta, o amparo aos desvalidos e à maternidade e à infância, com des- cassez, ou na produção de materiais médico-hospitalares para se-
taque para o atendimento às famílias com prole numerosa. Não é rem usados na guerra (SIMILI, 2006).
por acaso que Getúlio Vargas é até hoje reverenciado como o pai
Mestriner (2001) enfatiza que a institucionalização do primei-
dos pobres. A economia do país transita do modelo agrário e expor- ro-damismo ocorreu a partir da LBA, em que "se desloca o papel
tador em direção a uma economia com base na indústria, iniciando direto do Estado, que vai assumir dupla figura: uma mediada pelas
a concentração da população nas cidades (cf. COUTO, 2006). organizações filantrópicas, outra pela bondade da mulher do go-
Importante destacarmos a criação do Conselho Nacional de vernante" (p. 108).
Serviço Social (CNSS), criado em 1938, pois foi a primeira regula- Posteriormente, até a sua extinção, a LBA passou a coordenar
mentação da assistência social no país. Composto por cinco espe- programas de creches comunitárias, na modalidade de repasses
cialistas na área social e nove elementos do governo, cabia a este de recursos financeiros às entidades assistenciais, mediante o es-
Conselho desenvolver estudos sobre os problemas sociais, coorde- tabelecimento de convénios ou através de programas eventuais,
nar obras sociais e estudar as concessões das subvenções. A inten- como, por exemplo, de distribuição de leite, adaptando-se ao
ção era criar "um órgão nacional de controle das ações da assistên- ideário político-partidário de quem assumisse o governo federal,
cia social que associasse iniciativas públicas e privadas, rompendo com centralização administrativa e sem controle social.
o espontaneísmo da assistência esmolada e introduzindo uma orga- Na Constituição seguinte, de 1946, foram mantidos os direitos
nização racional e um saber no processo de ajuda" (SPOSATI, apud sociais já conquistados e introduzidos novos direitos que até hoje
MESTRINER, 2001). Assim, "o Estado não só incentiva a beneme- repercutem na vida de qualquer trabalhador, merecendo, portan-

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to, o devido destaque: previdência com contribuição dos trabalha- Assistência social como política pública
dores, dos empregadores e da União, direito da gestante ao des- O período compreendido entre 1975 e 1985 corresponde a um
canso antes e depois do parto, igualdade do valor do salário para o dos grandes momentos históricos do país. O movimento político
mesmo trabalho independentemente do sexo, estado civil e nacio- de base nos bairros (organizações reivindicatórias urbanas) e os
nalidade. No governo de Juscelino Kubitschek, o Congresso apro- trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja Católica,
vou a Lei Orgânica da Previdência Social, unificando a Previdência possibilitaram importantes articulações politicas no meio sindical,
em termos de benefícios, garantindo o acesso universal a todos os nos partidos e em várias instituições da sociedade civil (PEREIRA,
trabalhadores urbanos do mercado formal. A centralização admi- 2001). Nessa fase deu-se um avanço das forças de resistência, e
nistrativa da Previdência ocorreu em 1966, com a criação do Insti- desenvolveu-se a prática do enfrentamento do regime militar, que
tuto Nacional de Previdência Social (INPS). Até então cada cate- já havia perdido sua base de legitimidade junto à sociedade devi-
goria profissional podia criar seu próprio plano de aposentadoria e do a crise económica iniciada em 1973, à retomada vagarosa da in-
pensão (COUTO, 2006). flação, à diminuição do paraíso do consumo das classes médias e à
denota eleitoral do regime pela união das forças opositoras da so-
No período de 1961 a 1964, o Brasil passou por uma fase de ciedade civil, em 1974. A partir deste momento - e principalmente
profundo tensionamento institucional, iniciado com a renúncia do nos anos 1980 - , vários movimentos de caráter nacional entraram
Presidente Jânio Quadros e culminando com a deposição de João em cena, tais como o movimento pela redemocratização do país e
Goulart pelos militares. Do ponto de vista dos avanços no campo pelo pluripartidarismo, o movimento estudantil e docente, o femi-
dos direitos sociais, assegurados constitucionalmente, ocorreram nismo, as lutas pela anistia, as reivindicações de profissionais da
a inclusão da gratificação de Natal e o pagamento de salário-famí- saúde e de setores públicos, a atuação da Comissão Pastoral da
lia destinado às mulheres com filhos menores de idade. As duas Terra, dentre outros. A partir de 1985, percebe-se no âmbito na-
últimas constituições, anteriores à de 1988, foram promulgadas cional uma nova conjuntura institucional, decorrente de novo ar-
durante o regime militar, nos anos de 1967 e 1969, respectivamen- ranjo de forças políticas, bem como do agravamento da crise eco-
te. A inspiração predominante, em ambas as Cartas, é de génese nómica, com o galopante índice de inflação.
autoritária, com cerceamento no campo dos direitos políticos e É nesse cenário e com o comprometimento do novo governo
preservação das conquistas sociais, principalmente, na área tra- de convocar a Assembleia Nacional Constituinte, que o clima em
balhista (cf. COUTO, 2006). Neste cenário, merece destaque a torno da futura constituição mobilizou diferentes setores da socie-
criação do Sistema Fundação Nacional/Estaduais do Bem-Estar dade civil e política: a elite hegemónica, os setores populares, as
do Menor , a partir de uma concepção ideológica da doutrina da
4 instituições religiosas, as organizações educacionais, das áreas de
segurança nacional, criando a categoria da criança e do adoles- saúde e dos meios de comunicação, entre outros. Aos poucos, au-
cente em situação irregular. No que se refere à assistência social menta a importância do papel do Estado e das instituições sociais,
propriamente dita, cria-se a exigência de apontar a fonte de custeio visando o fortalecimento da democracia. Uma parte da ação dos
para a concessão de benefícios assistenciais. movimentos sociais passou a privilegiar o nível institucional da
ação política como espaços prioritários para a transformação so-
cial, culminando no que se convencionou chamar "face da institu-
cionalização dos movimentos sociais" (PEREIRA, 2001).
4. A Política do Bem-Estar do Menor (PNBEM) era definida por um órgão central, a Funda- A novidade no cenário das ações coletivas foi que elas passa-
ção Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), e executada nos estados pelas fundações
estaduais do bem-estar do menor (Febem). Pode-se dizer que a Funabem foi criada com o ram a ocupar canais de participação institucional com a criação de
objetivo de formular e implantar a PNBEM, esta última com a incumbência de fixar as bases redes, conselhos, movimentos, fóruns com caráter propositivo,
para uma nova estratégia de atendimento ao chamado "problema do menor", em conso-
nância com os novos tempos e a imagem de eficiência e modernidade do Estado brasileiro pautados em amplas negociações entre sociedade civil e Estado.
(FROTA, 2002). Várias entidades surgiram, bem como movimentos do setor popu-

24 25
lar dispostos a negociarem diretamente com o Estado, como o da economia e, sendo assim, acabaram por desfigurar os princípios
Movimento pela Constituinte, o Movimento Nacional de Meninos orientadores das mesmas. Foi exatamente nesse contexto que im-
e Meninas de Rua, o Movimento em prol das Reformas de Saúde, o portantes e significativos avanços foram construídos, "acarretan-
SUS, o Movimento dos Mutuários do BNH, o Movimento dos Sem do novas configurações e novas concepções para a área dos direi-
Casa, o Movimento dos Aposentados, a Criação da Pró-Central dos tos civis, políticos e sociais, expressas na organização do sistema
Movimentos Populares. "Ou seja, há uma mudança de paradigma: de seguridade social brasileiro", trazendo, para a área, a assistên-
do modelo expressivo-disruptivo para uma fase integrativo-corpo- cia social como uma política social de natureza pública (COUTO,
rativa" (PEREIRA, 2001, p. 132). 2006, p. 140).
O autor enfatiza que, com o surgimento da "Nova República", A Constituição Federal de 1988 trouxe uma mudança para a
entre os anos de 1985 e 1990, novos paradigmas sociopolíticos en- concepção de assistência social no Brasil. Esta passa a constituir,
tram em cena: recuperação do Estado e da nação, novos canais de juntamente com a saúde e a previdência social, a base da seguri-
pluripartidarismo, substituição da "pedagogia popular" por pro- dade social, notadamente inspirada na noção de Estado de Bem-
postas relacionadas à democracia, à cidadania, ao fortalecimento Estar Social. Este é um marco histórico que institui o início da
da sociedade civil, à atuação de ONGs com trabalhos de parceria transformação da caridade, benesse e ajuda para a noção de direi-
junto ao Estado e a projetos propositivos na esfera pública, como to e cidadania da assistência social apontando para seu caráter de
os conselhos da criança e do adolescente, da educação, da saúde, política pública de proteção social articulada a outras políticas vol-
da habitação e dos movimentos culturais. tadas à garantia de direitos e de condições dignas de vida.
Segundo Cunha e Cunha, (2002), o processo de redemocrati- A assistência social passa a ter caráter universal ainda que se-
zação da sociedade brasileira levou à instalação da Assembleia letivo para quem dela necessita.
Nacional Constituinte e à possibilidade de se estabelecer uma ou- Como apontamos, este período é de intensa crise, com denún-
tra ordem social, em novas bases, "o que fez com que esses movi- cias de corrupção e desvio das verbas do Ministério da Ação So-
mentos se articulassem para tentar inscrever na Carta Constitucio- cial. Segundo Mestriner (2001), a pressão neoliberal e a paralisia
nal direitos sociais que pudessem ser traduzidos em deveres do governamental vão atingir todos os segmentos do setor público,
Estado, através de políticas públicas" (p. 13). com tendências privatistas e cortes de verbas, principalmente a
Assim, as décadas de 1980 e 1990, além de paradigmáticas, educação, saúde, previdência, habitação e assistência social. As
foram paradoxais, no que diz respeito ao encaminhamento de uma políticas sociais desmoralizam-se, demonstrando incapacidade
nova configuração para o cenário político, económico e social bra- total de autorrenovação, apesar da aprovação da nova Constitui-
sileiro. De um lado, desenvolveu-se um processo singular de refor- ção. "As instituições e serviços se encolhem e deterioram, não
mas, no que se refere à ampliação do processo democrático e à or- conseguindo revidar as teses de Estado mínimo e de privatização"
ganização política e jurídica, como a promulgação da Constituição (p. 213). É nesse quadro de crise, após anos de luta, que a Lei
Federal em 1988 (COUTO, 2006, p. 139). Por outro lado, efetivou-se Orgânica da Assistência Social - Loas - (Lei 8.742) é aprovada, em
um processo de recessão e contradições no campo económico, em 07/12/1993 . 5

que ocorreram tentativas de diminuir a inflação galopante e bus-


car a retomada do crescimento, tendo como eixo os princípios da
macroeconomia expressa na centralidade da matriz económica 5. "Paradoxalmente, tal regulamentação se dá no auge do processo de deterioração da LBA
que, desmoralizada pelos escândalos da sua presidenta Rosane Collor, passa a restringir
em detrimento da social. Para a autora, o paradoxo está localizado tanto sua intervenção direta quanto articulada com o conjunto privado de instituições so-
na relação entre os avanços sociais assegurados na Constituição ciais e, da mesma forma, no auge do escândalo das subvenções de parlamentares a institui-
de 1988 e as definições das diretrizes macroeconómicas que con- ções-fantasma que irá desmoralizar não só o CNSS, mas o próprio setor privado de filantro-
pia. É como se a área tivesse que renascer da destruição total de suas instituições tradicio-
cebem as políticas sociais como consequência do funcionamento nais, visto que elas se constituíram sempre na negação do que deveria ser a assistência so-
cial, ou seja, uma politica de garantia de direitos" (MESTRINER, 2001, p. 214).

2G 27
A partir da Loas, a proteção social se coloca como um meca- históricas, reitera a forma restritiva da mesma, pois associa essa
nismo contra as formas de exclusão social que decorrem de certas área ao assistencialismo e às formas emergenciais de atender à
vicissitudes da vida, tais como a velhice, a doença, a adversidade, população, ou seja, vinculada à pobreza absoluta (PEREIRA,
as privações. Inclui neste conceito, também, tanto as formas sele- 1996). Para Couto (2004), o campo da assistência social sempre foi
tivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a uma área nebulosa da relação entre Estado e sociedade civil. Os
comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes) conceitos de assistencialismo e clientelismo têm sido apontados
que permitirão a sobrevivência e a integração sob várias formas na como constitutivos de uma sociedade conservadora que, por mui-
vida social. A assistência social configura-se como possibilidade to tempo, considerou/considera a pobreza como um atributo indi-
de reconhecimento público da legitimidade das demandas de vidual daqueles que não se empenharam para superá-la.
seus usuários e espaço de ampliação de seu protagonismo. Nesse Em 2004, a partir das deliberações da IV Conferência Nacional
sentido, marca sua especificidade no campo das políticas sociais, da Assistência Social, é elaborado o Plano Nacional de Assistência
exigindo que as provisões assistenciais sejam prioritariamente Social (Pnas), aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência So-
pensadas no âmbito das garantias de cidadania sob vigilância do cial (Cnas). O Pnas indica os eixos estruturantes para a sua opera-
Estado, cabendo a este a universalização da cobertura e a garantia cionalização: concepção, territorialidade, financiamento, controle
de direitos e acesso para serviços, programas e projetos sob sua social, monitoramento e avaliação e recursos humanos. Esse pro-
responsabilidade. cesso culmina com a aprovação da regulação, em 2005, do Siste-
Importante ressaltar que a Loas considera como objetivo a ma Único de Assistência Social - Suas que, a exemplo do Sistema
proteção à família, determinando-a como um dos focos de atenção Único de Saúde, estabelece em suas diretrizes a descentralização
da política de assistência social. Contudo, os efeitos da crise eco- político-administrativa, o atendimento a quem dela necessitar, in-
nómica não tornaram possíveis as reformas institucionais mais dependentemente de contribuição à seguridade social e a partici-
amplas nos sistemas de proteção social. Assim, o direito à seguri- pação da comunidade. O Suas se propõe como instrumento para a
dade social, garantido na Constituição, não se efetivou, principal- unificação das ações da Assistência Social, em nível nacional, ma-
mente no que concerne à assistência social. Como consequência terializando as diretrizes da Loas. Em especial, ratifica o caráter de
(ALENCAR, 2004), vimos o aprofundamento das desigualdades política pública de garantia de direitos, contrapondo-se e destitu-
sociais, constituindo-se, sob novos parâmetros, o empobrecimen- indo o histórico assistencialismo do "primeiro-damismo". Esse
to dos trabalhadores e suas famílias. As medidas adotadas para novo modelo de gestão da política da assistência social prioriza a
enfrentar esta situação foram priorizar os programas focalizados família como foco de atenção e o território como base da organiza-
(de cunho assistencialista), os fundos sociais de emergência e os ção de ações e serviços em dois níveis de atenção (CRUZ; SCARPARO
programas sociais compensatórios voltados para o atendimento & GUARESCHI, 2007).
dos grupos pobres e vulneráveis. Neste cenário, corroborou para o
Para Sposati (2006), o Suas não é um programa, mas uma for-
agravamento da pobreza a tendência histórica do sistema de pro-
ma de gestão da assistência social como política pública; inscre-
teção social brasileiro, qual seja, a privatização nas áreas da saú-
ve-se como uma das formas de proteção social não contributiva,
de, educação e previdência.
"como responsabilidade de Estado a ser exercida pelos três entes
A partir destas considerações, podemos dizer que a introdu- federativos que compõem o poder público brasileiro" (p. 110). O
ção da assistência social como política social da área da segurida- Suas provoca, assim, uma ruptura com a concepção da assistência
de social incorpora uma inovação conceituai, mas também reitera social identificada com a benevolência aos pobres e destituídos de
as heranças históricas constitutivas da cultura brasileira. Inova, na cidadania. Essa concepção, que permeou praticamente todo o sé-
medida em que está respaldada tanto no movimento da sociedade culo passado, delegou à Igreja o papel de prestar assistência aos
quanto em garantias legais, pois integra as demais políticas de necessitados sob a ótica da caridade e da benemerência, propici-
proteção social. E, quanto à manutenção das velhas concepções

28 29
ando, ainda, a criação de entidades filantrópicas para atender às básica ou especializada, ou seriam uma ação especializada na
demandas sociais, como concessão e não um direito. atenção básica? A preocupação que esta dicotomia entre básica e
O Suas inova ao definir níveis diferenciados de complexidade especializada nos coloca tem raízes nas práticas históricas, pois
na organização dos equipamentos públicos de proteção social. A mesmo as mais bem-intencionadas, muitas vezes resultaram no
Proteção Social Básica objetiva prevenir situações de risco através indesejado reforço da institucionalização (CRUZ; SCARPARO &
do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortaleci- GUARESCHI, 2007).
mento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à popula- O Suas propõe, como uma das formas de efetivação, a implan-
ção que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da tação do Programa de Atenção Integral à Fajnília (Paif), que é um
pobreza, com precário acesso aos serviços públicos e/ou fragiliza- serviço continuado de proteção social básica desenvolvido nos
ção de vínculos afetivos. Prevê o desenvolvimento de serviços, Centros Regionais da Assistência Social. Esses Centros são espaços
programas e projetos locais de acolhimento, convivência e sociali- físicos localizados estrategicamente em áreas de pobreza, prestan-
zação de famílias e de indivíduos, conforme identificação da situa- do atendimento socioassistencial, articulando os serviços disponí-
ção de vulnerabilidade apresentada. J á a Proteção Social Especial veis em cada localidade e potencializando a rede de proteção social
é a modalidade de atendimento destinada a famílias e indivíduos básica. O Paif destina-se a promover o acompanhamento de famílias
que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocor- em uma determinada região (territorialização); potencializar a famí-
rência de maus-tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, cum- lia como unidade de referência, fortalecendo vínculos internos e ex-
primento de medidas socioeducativas, situação de trabalho infan- ternos de solidariedade; contribuir para o processo de autonomia e
til, dentre outras. As dificuldades em exercer funções de proteção emancipação social das famílias, fomentando seu protagonismo;
fragilizam a identidade do grupo familiar, tornando mais vulnerá- desenvolver ações que envolvam diversos setores, com o objetivo
veis seus vínculos simbólicos e afetivos. de romper o ciclo de reprodução da pobreza entre gerações; e atuar
de forma preventiva, evitando que essas famílias tenham seus direi-
tos violados, recaindo em situações de risco. Essas famílias, em de-
conência da pobreza, estão vulneráveis, privadas de renda e do
As práticas da psicologia no contexto do Suas
acesso aos serviços públicos, com vínculos afetivos frágeis, discri-
A partir do Suas, está previsto nos Centros de Referência da minadas por questões de género, etnia, deficiência, idade, entre ou-
Assistência Social (Cras) e nos Centros de Referência Especializa- tras (CRUZ; SCARPARO & GUARESCHI, 2007).
dos de Assistência Social (Creas) o profissional de psicologia na
composição da equipe mínima. Perguntamos quais as práticas da No município de Porto Alegre, o Paif teve seu projeto de exe-
psicologia nestes centros? No sentido de contribuir para este de- cução aprovado em 2004, com o foco na potencialização da rede.
bate, cabe como questão, que interpretação e operacionalização Foi constatado que algumas famílias que vinham sendo atendidas
de ações se efetivarão na articulação da rede básica e especializa- através de programas de orientação e apoio sociofamiliar continua-
vam em situação de vulnerabilidade, principalmente no que se re-
da de serviços socioassistenciais quando uma ação de abrigamen-
fere às crianças na sinaleira. Contudo, o monitoramento de crian-
to temporário para uma criança pequena é requerida nos chama-
ças e adolescentes na rua acontecia no centro da cidade, através
dos casos de "negligência" em que a segurança da criança requer
de denúncias, bem como do trabalho infantil nas feiras, caracteri-
um acolhimento em tempo integral e, ao mesmo tempo, o investi- zando-se como reincidência ou início da situação de risco, não ha-
mento no trabalho com a presença dos pais. Como poderiam se vendo visibilidade da mendicância nos bainos. Além disto, foi ob-
constituir centros de convivência nos quais a criança pudesse per- servado, também, que questões de sofrimento psíquico tinham
manecer dia e noite e que facilitassem as visitas diárias dos pais ou particular importância na dificuldade de algumas famílias no sen-
familiares? As "famílias substitutas" seriam uma ação da proteção tido emancipatório.

30 31
Cabe questionannos qual a diferença entre encaminhar uma seriam os novos aparelhos da "Polícia das Famílias"? Muitas ações 7

família para atendimento em saúde mental, como psicoterapia ou configuram-se em dispositivos de controle sobre as famílias e os
terapia familiar e a medida de proteção legal de orientação e apoio sujeitos, exatamente como se viu com a figura do criminoso (FOU-
sociofamiliar. A questão parece estar na identificação de situação CAULT, 1984) e com os dispositivos higiénicos que fundaram a fa-
de violação de direitos da criança ou adolescente, como abuso se- mília nuclear moderna (DONZELOT, 2001).
xual, maus-tratos e negligência, algumas vezes associada à de- Se a política de Assistência Social é processo de travessia para
pendência de substâncias psicoativas, ou trabalho infantil, ou si- garantir o acesso às demais políticas públicas, este tem sido "a
tuação de rua, para citar alguns exemplos. Interrogamo-nos, espe- nado e contra a correnteza". A pobreza muitas vezes ainda é per-
cialmente, quando a família não busca ajuda por si própria. Quan- cebida como um atributo individual daqueles que não se empe-
do é necessário que um "terceiro" venha intervir, seja a escola, a nharam em superá-la. São poucas as pessoas que acessam a assis-
saúde, a comunidade diretamente, ou através dos operadores de tência social para garantir seus direitos e, muitas vezes, ainda são
direito como o Ministério Público e Juizado da Infância e Juventu- vistas como "pedintes". Para a psicologia comprometida cpm o re-
de. A demanda, neste caso, está colocada fora, a partir de um ou- conhecimento das singularidades e a promoção da autonomia, da
tro, e o trabalho será baseado na constituição da demanda de tra- superação do trabalho infantil de crianças nas sinaleiras, enfim,
tamento. Muitas vezes o encaminhamento não é cumprido pela com intervenções assertivas que garantam os direitos estabeleci-
família, gerando uma determinação legal, ou até uma medida de dos em lei, isto envolve uma mudança de olhares e, com certeza,
abrigamento da criança ou adolescente. Assim, como trabalhar o um avanço na integração da rede que leve seu texto às últimas
retorno à família, uma vez que está implícito que esta faça movi- consequências no sentido da mudança pela via da integração. Ou
mentos de adesão e permanência em tratamento? corre o risco de ser mais um sistema que só fica bonito no papel.
As psicólogas Rispoli, Vinãs e Susin (2004) afirmam que susten-
tar a escuta da subjetividade do usuário face à violação de direitos Algumas interrogações
da criança e do adolescente não é tarefa fácil. Citam como exemplo
Quando nos perguntamos sobre o processo de implantação do
quando uma criança está fora da escola e isso não é problema para
Suas, em nível federal, estadual e municipal, alguns estranhamen-
sua mãe. O dilema é operar de dois lugares: do lado do direito, con- tos, ou melhor, velhos paracligmas são encontrados. A seguir, al-
siderando a lei jurídica, que aponta para a normatização das condu- gumas problematizações.
tas ou do lado da escuta, considerando o ponto de vista da verdade
Iniciamos com a criação do Programa de Aceleração do Cres-
do sujeito . Paradoxalmente, a psicologia vai olhar (ou não) para ou-
6
cimento (PAC), que tem como objetivos gerais: promover a acele-
tros fatores, tais como relativizar os atos do sujeito e escutar em que
ração do crescimento económico, o aumento do emprego e a me-
lugar ele se situa frente a essa violação. Levar em consideração
lhoria das condições de vida da população brasileira (BRASIL,
como se organizam os laços familiares, que princípios e valores re-
2007). Para garantir a implementação do PAC nas favelas de gran-
gem este grupo familiar. O desafio está colocado: como trabalhar
de contingente populacional do Rio de Janeiro, o Estado teve que
com os programas de orientação e apoio sociofamiliar de forma a recorrer à presença da polícia e da Força de Segurança Nacional
promover a autonomia, os direitos das famílias, sem que essa ação
se transforme em mais um veículo de controle? Esses programas
7. Donzelot (2001), no livro A polícia das íamilias, discute como na França dos séculos XVIII
e XIX o social se centrou em torno da família, dos seus exercícios e deveres. Sob o pretexto
de promover a assistência aos segmentos pobres, e utilizando-se da produção de um senti-
6. Estas questões foram trazidas pelas psicólogas Janete Constantinou, Marisa Warpe- mento de responsabilidade social, elege-se o controle e a disciplinarização para fazer valer
chowski e Luciane Susin no "Debate sobre a Psicologia na Assistência Social", promovido a ordem econômico-político-social vigente, que favorecia os interesses da burguesia amea-
pela Comissão de Políticas Públicas do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do çados pela crescente miséria. Dessa forma, a ascensão do social vai promover a produção
Sul, no dia 16/05/2005. de modelos de família, educação e trabalho.

32 33
de modo a possibilitar o acesso da população às ações do referido sofrera um acidente vascular cerebral. Esse Cras está situado geo-
Programa. Esse fato é emblemático para entendermos as conse- graficamente ao lado da Unidade Básica de Saúde, que o citado ci-
quências da prolongada ausência do poder público nesses territó- dadão frequenta e, mesmo assim, passa-lhe despercebido. Diante
rios. Com o vazio de autoridade no cumprimento dos direitos soci- da assistente social, o familiar justificou a necessidade da cadeira,
ais, a periferia passou a ser assistida pelos traficantes e, mais re- adotando uma postura de pedir um favor ao ente público, tendo
centemente, protegida pelas milícias formadas por policiais. A em vista a dificuldade de locomoção da idosa, principalmente para
gravidade da omissão e negligência do Estado em relação a esse fazer a higiene pessoal. Para sua surpresa, recebeu a resposta que
segmento é tão grande que as milícias cobram, por exemplo, uma existiam cadeiras de roda disponíveis sim, que estavam em manu-
taxa dos moradores para a entrega domiciliar de um botijão de tenção, por iniciativa do Rotary Club da cidade, mas que, quando
8

gás, recebem cestas básicas do comércio local para, em troca, as cadeiras fossem devolvidas ao Cras, o familiar seria informado
mantê-lo com as portas abertas, dentre tantas outras demonstra- para ir recebê-la. Passados dois meses, o familiar conseguiu auxí-
ções de poder paralelo instituído com a anuência do poder estatal. lio de amigos/vizinhos para adquiri-la.
Todo esse panorama configura a situação, ainda frágil, das políti- Cabe salientar que o referido cidadão pertence à classe média
cas sociais no país. A propósito, indagamos qual é a inter-relação baixa e, pela primeira vez, acreditara na resolutividade do poder
entre o PAC e a Politica Nacional de Assistência Social, uma vez público para suprir uma necessidade que encontra amparo nos
que o PAC, pelo menos nas favelas cariocas, prometera dar enca- dispositivos da Política Nacional de Assistência Social, cujos prin-
minhamento às questões de habitação, de pavimentação e alarga- cípios são: I. Supremacia do atendimento às necessidades sociais
mento das vias para permitir a circulação de transporte de atendi- sobre as exigências de rentabilidade económica; II. Universaliza-
mento em caso de emergência, implantação de creches, dentre ção dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação as-
outras iniciativas. sistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III. Respeito
à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefí-
Será que mais uma vez as exigências económicas foram de-
cios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e
terminantes para dar conta das políticas sociais? Lembremos que
comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de ne-
o PAC utiliza recursos orçamentários da seguridade social e do
cessidade; IV. Igualdade de direitos no acesso ao atendimento,
Ministério da Fazenda como fonte de financiamento. A gestão do
sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equiva-
PAC está vinculada à Casa Civil que, juntamente com as esferas
lência às populações urbanas e rurais; V. Divulgação ampla dos
governamentais dos estados e municípios, são responsáveis por
benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como
sua execução. Segundo dados oficiais, não fica claro como o refe-
dos recursos oferecidos pelo poder público e dos critérios para sua
rido Programa se articula com as demais políticas sociais, pare-
concessão (BRASIL, 2004).
cendo pressupor que esse processo se dê espontaneamente.
Outros exemplos referem-se a vivências cotidianas. Obser- No caso relatado, apesar da vigência do Suas, podemos obser-
va-se que apesar do aparato previsto no Suas para oferecer servi- var o descompasso e a desarticulação entre a saúde (SUS) e a as-
ços à população, quando há necessidade de acionar a política pú- sistência social (Suas). Vemos também que o poder público man-
blica da assistência social, a população, muitas vezes, desconhe- teve a prática de recorrer à sociedade civil para cumprir com suas
ce seus direitos neste âmbito, não é informada a respeito dos pro- responsabilidades legais, explicitando a reprodução das velhas
gramas da rede socioassistencial disponíveis no município e, quan- práticas, principalmente no que se refere à falta de recursos para o
do tem conhecimento, adota uma postura de descrédito quanto à financiamento dos programas e serviços destinados à população.
efetividade de encaminhamento de suas demandas. Para ilustrar
esta situação, relatamos o caso de um cidadão que buscou apoio
8. O Rotary Club é uma entidade de abrangência internacional, cujo lema é "servir a comu-
no Cras, de um município de Santa Catarina, para conseguir uma nidade" . Constituído por empresários de vários setores, cada grupo se reúne semanalmen-
cadeira de rodas a ser utilizada por um familiar, de 101 anos, que te para discutir as ações sociais eleitas e receber o apoio financeiro da entidade.

34 35
Como se vê, a lógica perversa ainda se perpetua, adiando a cida- referência afetiva e moral e a reestruturação das redes de recipro-
dania. Quando o usuário desconhece seus direitos, reprime a de- cidade social" (BRASIL, 2004).
manda, não reivindica a formulação, a execução e o financiamento O pressuposto da teoria económica, de matriz liberal, diz que
da política, deixando de pressionar o poder público a cumprir com o mercado é suficientemente capaz de regular as relações capita-
suas atribuições. listas de oferta e demanda, indicando que a moradia tornou-se
J á a pesquisa de Waiselfísz et al. (2004), cujo foco foi a caracte- uma mercadoria como qualquer outra. E, nesse caso, o próprio
rização da Rede de Proteção às Famílias em Situação de Vulnera- povo se vê identificado como mercadoria.
bilidade Social no município de Porto Alegre, apontou que a maio- O que demanda a frase no cartaz? Há um pedido de ser reco-
ria das informantes soube do Programa Família: Apoio e Proteção nhecido como cidadão, com o direito de morar e de não ser tratado
através dos Conselhos Tutelares (que as encaminharam), assim como mercadoria. Como trabalhar outras formas de inserção das
como de informações de vizinhos/amigos, bem como nos próprios pessoas que estão fora das políticas habitacionais, como aponta o
centros de atendimento da Rede Básica de Assistência Social. O cartaz? A equipe técnica do Cras, por exemplo, poderia degenvolver
estudo apontou também que as entrevistadas têm um bom nível grupos operativos no sentido de organização comunitária, propici-
de conhecimento sobre a documentação exigida, critérios de se- ando e instrumentalizando as pessoas que vivem nessas comunida-
leção, valor dos benefícios, compromissos para a renovação, dura- des a ocupar seu espaço político na sociedade. Uma possibilidade é
ção, bem como procedimentos de suspensão e desligamento. Con- a preparação destas para a representação em fóruns participativos,
tudo, a partir de informações na pesquisa de campo de Cruz (2006), nos quais muitas demandas são desconsideradas por inviabilidade
ainda são poucas as pessoas que acessam a assistência social técnica. Passa pelo resgate da assessoria técnica aos grupos popu-
para garantir seus direitos, e muitas se colocam na posição de "pe- lares para a elaboração de propostas, apropriação da legislação,
dinte" . Isso não surpreende, pois o referido estudo denota também normas e diretrizes, inclusive propiciando o debate e a exigência
a indignação do Conselho Tutelar, por exemplo, quando usuárias dos seus representantes políticos na defesa dos seus direitos, o que
solicitam ingresso em programas da assistência social, afirmando é bem diferente da troca de favores. Entretanto, para tal, é necessá-
que "é mais fácil pedir do que trabalhar". rio trabalhar para uma mudança de posição entre quem dá e quem
recebe. Passa pelo exercício de autonomia/autoria, fundamental
No Brasil, presenciamos o enfraquecimento dos movimentos para o reconhecimento da capacidade do cidadão (independente do
sociais no início do século XXI. Entretanto, algumas vozes interro- grau de instrução ou nível socioeconómico).
gam: "Sr. comprador, este povo não tem onde morar. Vai comprar
o povo junto?" Esse é o texto de uma faixa afixada nas proximida- Para finalizar, urge trazermos para este cenário a nossa prática
des da Vila Safira, zona leste de Porto Alegre, região de grande da docência. Vemos que a formação académica , muitas vezes, 9

concentração de pobreza e alto índice de violência, segundo apu- ainda privilegia o conhecimento técnico-científico, utilizando-se |$
ração do Conselho Tutelar da referida microrregião. O texto ex- de concepções e práticas avaliativas e adaptacionistas. É comum
pressa, de maneira tragicômica, a sabedoria popular para abordar ouvirmos dos alunos e das alunas que os pobres não trabalham
o dilema do déficit habitacional, apontando as necessidades de mais porque recebem a bolsa-família ou "só não trabalha quem
moradia da população pobre. Ao que se pode deduzir, é uma alu- não quer, pois tem emprego para quem se esforça". Trabalhar com
são à venda de uma área de terra, ocupada pela população, reme- políticas públicas exige pensar a partir do lugar do outro, e não
tendo para algumas questões centrais no que se refere aos míni- apenas reproduzir conhecimentos ou aprender técnicas; implica
mos sociais já comentados anteriormente e que estão contempla- sensibilizar para tópicos (pouco contemplados na academia) como
dos naquilo que a Política Pública de Assistência Social configura
como passíveis de proteção social especial, cuja ética "pressupõe
o respeito à cidadania, o reconhecimento do grupo familiar como 9. Quando nos referimos à formação académica, não estamos restringindo à Psicologia,
mas aos variados cursos em que ministramos disciplinas, como Serviço Social, Pedagogia,
Licenciatura em História, Letras, Matemática, entre outras.

36 37
assistência social, direitos humanos, cidadania, movimentos soci- HUBERMAN, L. (1971). História da riqueza do homem. 7. ed. Rio de
ais e conselhos. O desafio é articular a dimensão política na forma- Janeiro: Zahar.
ção académica e, consequentemente, nas práticas profissionais,
pois são indissociáveis. MARCÍLIO, M.L. (1999). A roda dos expostos e a criança abandonada na
história do Brasil. In: FREITAS, M.C. (org.). História social da infância
no Brasil. São Paulo: Cortez.
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