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Acta Scientiarum

http://periodicos.uem.br/ojs/acta
ISSN on-line: 1807-8656
Doi: 10.4025/actascihumansoc .v40i3.40552 HISTÓRIA

A Constituição de 1988 no Brasil e assistência social: trajetórias da


inclusão social e do combate à pobreza
Henrique Rabello Serafim1* e Ismael Gonçalves Alves2,3
1
Programa de Graduação em Direito, Escola Superior de Criciúma, Rua Gonçalves Lêdo, 98, 88802-120, Criciúma, Santa Catarina, Brasil.
2
Programa de Graduação em História, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, Santa Catarina, Brasil. 3Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Socioeconômico, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, Santa Catarina, Brasil. *Autor para correspondência.
E-mail: henriqueserafim@esucri.com.br

RESUMO. O Brasil ao longo de sua trajetória histórica teve promulgada e/ou outorgada oito
Constituições, que no decorrer dos anos foram implementadas conforme as orientações socioeconômicas
de seus agentes burocráticos e políticos. Entre a primeira Constituição, de 1824, e a atual, de 1988,
ocorreram modificações com a intencionalidade de assegurar os preceitos de equidade entre todos os
membros que compõem a comunidade nacional, buscando de certa forma alcançar o bem-estar. Assim, este
artigo tem a intencionalidade de investigar a trajetória histórica das legislações brasileiras que
transformaram algumas políticas sociais em direitos de cidadania. Para esta pesquisa, de cunho qualitativo,
foram utilizados como instrumentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e a documental, na qual
analisa-se um conjunto amplo de legislações composto pelos textos constitucionais e normativas
ministeriais que institucionalizaram e regulamentaram o campo da assistência social em todo o país.
Analisando esse processo histórico, evidencia-se a ampliação dos direitos sociais estabelecidos e garantidos
pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, e que por isso é conhecida como a
Constituição Cidadã.
Palavras-chave: Constituição Federal; assistência social; políticas assistenciais; Bem-Estar.

The Constitution of 1988 in Brazil and social assistance: trajectories of social inclusion and
poverty combat
ABSTRACT. Throughout its historical trajectory, Brazil has enacted and/or granted eight Constitutions,
which over the years were implemented according to the socioeconomic orientations of its bureaucratic
and political agents. The difference between the first Constitution of 1824 and the present Constitution of
1988 is evident, which has been modified with the intention of ensuring the precepts of equity among all
the members of the national community, thus seeking to achieve Welfare. Thus, this article intends to
investigate the historical trajectory of the Brazilian legislations that have transformed some social policies
into citizenship rights. For this qualitative study, bibliographic and documentary research were used as
methodological instruments, in which we analyzed a broad set of legislation composed of constitutional
texts and ministerial regulations that institutionalized and regulated the field of social assistance throughout
the country, guaranteeing to all citizens minimum access to state resources that ensure improved quality of
life. Analyzing this historical process, it is evident the expansion of the social rights established and
guaranteed by the 1988 CRFB, and which is therefore known as the Citizen Constitution.
Keywords: Federal Constitution; social assistance; assistance policies; Welfare.

Introdução socioeconômicas, garantindo assim a pavimentação


A assistência social destinada aos cidadãos sempre do caminho para a consolidação do bem-estar.
No caso brasileiro, a Constituição Federal de
foi um marco divisório entre as sociedades políticas,
1988 pode ser considerada com um dos resultados
que muito divergem sobre a sua funcionalidade e das lutas políticas travadas por movimentos sociais e
quem deve se ocupar de sua executoriedade. Neste partidos políticos que buscavam a valorização do
contexto de produção das políticas sociais os indivíduo e a ampliação de seus direitos sociais.
movimentos sociais são importantes veículos na Assim, importantes avanços para a regulação formal
consolidação, pois por intermédio de sua de direitos foram conquistados e os preceitos de uma
mobilização reivindicam do Estado a materialização sociedade justa e igualitária puderam, ao menos no
de direitos ou a regulação formal de questões campo formal, ser postulados. Segundo Vieira e
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Paganini (2015), a cidadania está em constante República, do Parlamento Nacional e do extinto


processo de transformação, pois quanto maior a Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
organização e a mobilização da sociedade e de seus Fome.
atores mais ampla será a sua definição, rompendo-se Além disso, foi utilizada a pesquisa bibliográfica,
assim com o binômio votar e ser votado para principalmente com o estudo das obras de Gosta
assumir uma postura de efetiva participação da Esping-Andersen (1991), Celso Furtado (2002),
realidade social. Eder Sader (2001) e Marcelo Vicente de Alkmin
Para Maria das Dores Costa (1988), pensar a Pimenta (2007), que repensaram o lugar da política
cidadania é também pensar também a própria social no tempo presente partindo da premissa que
democracia, pois é por intermédio dela que direitos faz parte de um conjunto de garantias que buscam
sociais, civis e políticos são assegurados aos acabar ou atenuar com os efeitos da pobreza que
indivíduos, garantindo as condições necessárias para vulnerabilizam os conteúdos da cidadania plena.
sua manutenção, reprodução e participação plena na
comunidade política nacional. Ainda para a autora, a A proteção social nos textos constitucionais
questão da cidadania “[...] passa pela articulação anteriores a 1988: as garantias sociais via inserção
entre igualdade social e liberdade política, de tal laboral
maneira que a existência de uma é condição e Ao longo da história brasileira as Constituições
garantia da outra” (Costa, 1988, p. 7). nacionais buscaram circunscrever a cidadania e os
Dessa forma, a materialização dos anseios direitos sociais a grupos específicos da sociedade,
populares foi conquistada com a formalização dos privilegiando uns em detrimento de outros. Devido
direitos de cidadania na Constituição Federal de a este caráter seletivo, um volume considerável da
1988, que no título I garante em seu artigo 1º, III, população ficou às margens das garantias
“[...] a dignidade da pessoa humana”, e ainda no constitucionais, pois devido a sua posição de classe
título II, capítulo II, que versa sobre os direitos e/ou seu não trabalho formal direitos políticos e
sociais, garante em seu artigo 6º “[...] direitos sociais sociais foram minimizados em favor da plena
a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a cidadania da classe dominante, que por sua vez
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a dirigia politicamente o país.
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
No entanto, nas últimas décadas, após o regime
desamparados” (Brasil, 1988, s/p.).
ditatorial, as disputas em torno da ampliação de
De acordo com Alves e Mesquita (n.d.), foi com
direitos civis, políticos e sociais têm ocupado espaço
a promulgação da Constituição brasileira de 1988
de centralidade junto ao conjunto da população que
que o combate à pobreza passa a ser uma
dentre inúmeras reivindicações exige o alargamento
problemática de competência da esfera estatal,
das políticas sociais, principalmente aquelas
ganhando o status e dimensão de problema nacional.
relacionadas à Assistência e a solidificação do Estado
Com essa mudança permitiu-se que a assistência
de bem-estar.
social fosse considerada um direito inerente às
Para dar conta desta empreitada, faz-se necessário
políticas públicas, rompendo com o traço cultural do
realizar um sucinto percurso pelas diversas
‘favor’, e incorporando todos da comunidade
constituições do país com a finalidade de tentar
nacional no sistema de proteção social sem que para
compreender os processos históricos que
isso fosse necessário qualquer tipo de contribuição
desencadearam a paulatina ampliação dos direitos e a
financeira ou inserção no mercado de trabalho.
circunscrição de boa parte dos direitos sociais a
Frente a estas observações, objetiva-se com este
condição de trabalhador. Dessa forma, uma das
artigo investigar a trajetória histórica das legislações
primeiras regulações jurídicas do Estado-nacional
brasileiras que transformaram algumas políticas
brasileiro foi a Constituição de 1824 (Brasil, 1824),
sociais como educação, previdência, saúde e
elaborada e outorgada1 por Dom Pedro I, que entrou
assistência em direitos de cidadania, focalizando em vigor dois anos após a independência do Brasil.
principalmente em sua consolidação na Constituição
Esta Constituição foi baseada em suas
Federal de 1988, na qual as políticas sociais foram
homônimas europeias nas quais prevaleciam
garantidas como direitos de cidadania para todos. modelos de monarquia de cunho liberal,
Para dar conta de tal empreitada buscou-se
compreender e problematizar as políticas sociais por 1
Considera-se uma Constituição outorgada como aquela que parte da vontade
meio da análise de fontes oficiais e institucionais do soberano ou da autoridade de quem governa, não passando por debates
amplos e com a efetiva participação da população. Por sua vez, uma
como as Constituições Federais do Brasil, legislações Constituição promulgada é entendida como aquela que resulta de amplos
debates em assembleias populares com a participação do povo, ou então por
e normas produzidas no âmbito da Presidência da meio de seus representantes políticos.

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principalmente na francesa. O voto e a elegibilidade A Constituição outorgada em 1937 (Brasil,


eram permitidos basicamente aos mais ricos, uma 1937), elaborada pelo jurista Francisco Campos,
vez que a sociedade brasileira era escravista e ministro de Getúlio Vargas, foi escrita sob a
classista, o que dificultava a participação política dos influência do fascismo, colocando o autoritarismo e
mais pobres e favorecia a ampliação dos direitos aos a centralização do poder como regime de Estado.
mais ricos. Nela a pena de morte foi reintroduzida e o direito de
Com a queda da Monarquia e a adoção de greve foi eliminado. O poder tornou-se centralizado
República em 15 de novembro de 1889, promulgou- e o mandato presidencial foi estendido para seis
se uma nova Constituição no ano de 1891, que foi anos, sendo prerrogativa do então presidente Getúlio
inspirada na Constituição estadunidense e assumia o Vargas a indicação de governadores e a interferência
federalismo como modelo de Estado, embasado no no Judiciário (Pimenta, 2007).
modelo instituído na República Argentina. A pena A Constituição promulgada em 1946 (Brasil,
de morte foi abolida, o direito ao voto foi pouco 1946) colocou fim ao Estado Novo e foi elaborada
ampliado, conservando-o ainda como uma pelo Congresso Nacional como resposta à derrota
prerrogativa dos mais ricos (Brasil, 1891). Nela dos fascismos após a queda dos regimes autoritários
pouco se discutiu a proteção social, ficando a cargo e totalitários, na II Guerra Mundial. Nesta nova
de cada ente federado, de acordo com suas próprias Constituição, de cunho democrático, muitos direitos
necessidades, a adoção de políticas sociais voltadas da Constituição de 1934 foram retomados, como a
aos mais pobres. Na grande maioria dos casos os livre expressão e os direitos individuais, e ainda a
estados pouco fizeram pelo tema da Assistência determinação da aposentadoria compulsória dos
Social, deixando a cargo da caridade e da iniciativa servidores públicos aos 70 anos de idade que se
privada o atendimento à população vulnerabilizada e mantém até hoje com o aval do Supremo Tribunal
excluída do processo de acumulação. Federal (Pimenta, 2007).
A Constituição promulgada em 1934 (Brasil, No que tange aos direitos sociais, em seu artigo
1934), por sua vez, foi elaborada por pressão ao 5º, inciso XV, a Constituição previa a competência
governo de Vargas, organizada pelos paulistas na da União em estabelecer normas gerais destinadas à
chamada ‘Revolução Constitucionalista’, em razão defesa e proteção da saúde, permitindo que os
da normatização ao regime implementado após as Estados legislassem apenas de forma complementar.
Já em seu artigo 157, inciso XV, ficou estabelecido
convulsões de 1930. O texto foi influenciado pela
que as legislações relativas ao trabalho e à
Constituição alemã, da República de Weimar (1919-
previdência fossem ancoradas na melhoria das
1933), conceituada como a primeira que incluiu os
condições de trabalho, bem como na assistência
designados direitos sociais em seu texto,
sanitária aos trabalhadores e às gestantes,
estabelecendo um paradigma que seria seguido na
reproduzindo normas já estabelecidas nas
Europa, a exemplo da Constituição espanhola de Constituições de 1934 e 1937. Além disso, a
1931. Constituição estabeleceu a assistência aos
No âmbito social teve grandes avanços, como a desempregados (art. 157, XV); a assistência
determinação do salário mínimo e a jornada de educacional aos alunos necessitados (art. 168, II) e a
trabalho de oito horas diárias, e ainda estabeleceu o proibição de trabalho noturno a menores de 18 anos
voto secreto e universal, ampliando também às (art. 157, IX), entre outros.
mulheres o direito de se elegerem. Anteriormente à Após três anos do golpe de 1964 os militares
Constituição Federal de 1934, a Assistência Social no outorgaram a Constituição de 1967 (Brasil, 1967), na
Brasil era relacionada com a caridade e a filantropia, qual buscavam legalizar o regime de exceção iniciado
normalmente vinculada com instituições privadas e com o golpe. Com esta nova Carta a democracia da
sem relação direta com o governo. O Estado estava Constituição de 1946 estava enterrada, restringindo a
desobrigado de prover qualquer tipo de recursos organização partidária, centralizando o poder no
para a sua implementação, ou seja, não havia o Executivo, impondo eleições indiretas,
direito formal à Assistência Social, situação esta reestabelecendo a pena de morte e suspendendo o
fomentada pela ausência de previsão normativa direito ao Habeas Corpus (Pimenta, 2007).
(Castro, 2013). Neste contexto, a Igreja Católica foi Muitos juristas entendem que a Constituição de
a principal responsável pela execução de atividades 1967 foi alterada substancialmente em 1969 com a
assistenciais, instituindo e mantendo as organizações Emenda Constitucional Número 01. Os militares,
de assistência como, por exemplo, as Irmandades de buscando oferecer um aspecto de legalidade ao
Misericórdia responsáveis pela gerência das Santas estado de exceção, redigiram um novo texto que
Casas de Misericórdia (Silva, 2010). praticamente outorgava uma nova Constituição
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referendando cenário de perseguição, censura e No entanto, o que se observou foi um


repressão promovido pelo regime. Em seu artigo excludente processo de concentração de renda que
158, inciso XV, a Constituição assegurou aos marginalizava a maior parte da população brasileira e
trabalhadores direitos que visassem à melhoria de comprometia a capacidade do Estado de investir em
sua condição social, a assistência sanitária, hospitalar políticas públicas que amenizassem os impactos da
e médica preventiva. Incluiu ainda o direito ao pobreza sobre a vida dos indivíduos. Para Goularti
salário-família, proibiu diferença de salários por Filho (2002, p. 87), “[...] após três décadas de
motivos étnico-raciais e institui a aposentadoria das consideráveis crescimentos econômicos (em média
mulheres aos trinta anos de trabalho. de 7% ao ano), financiados com recursos externos e
O regime adotou as diretrizes públicos, os anos 80 começam dando claros sinais de
desenvolvimentistas, nacionalistas e de combate ao esgotamento deste padrão de financiamento”.
comunismo, atingindo o ápice de sua popularidade De maneira geral, o que se viu nas diversas
na metade da década de 1970 por intermédio do Constituições promulgadas e/ou outorgadas até o
‘milagre econômico’. Segundo Goularti Filho (2002, final de século XX foi a pouca ou nenhuma atenção
p. 86), “[...] a economia brasileira começou a entrar à proteção social, pois em quase todas elas vigoravam
num período de grande euforia consumista, direitos protetivos atrelados à condição formal de
consolidando a indústria de bens de consumo trabalho. Nelas, buscava-se regulamentar e
duráveis”. No início da década de 1980 o governo normatizar o funcionamento da previdência e da
militar entrou em decadência, pois não conseguia assistência médica que por meio de contribuições
mais estimular a economia, controlar a inflação, os financeiras obrigatórias garantiam aos trabalhadores
níveis de pobreza e desigualdade resultantes de seus e trabalhadoras formais direitos de aposentadoria,
projetos de crescimento econômico. Para Goularti licença médica, licença maternidade e indenizações
Filho (2002, p. 86), “[...] os anos 80 foram por acidentes de trabalho. Dessa forma, o que se
caracterizados pela longa crise estrutural, que levou tinha até então eram direitos protetivos
os índices de crescimento históricos a patamares operacionalizados pela inserção no mercado formal
inexpressivos”. de trabalho, cabendo ao restante da população a
Celso Furtado (2002) indica em suas análises o atenção social via caridade e filantropia privada.
recrudescimento das desigualdades durante de
governo militar. Ao analisar o ‘Milagre’, Furtado A Constituição de 1988: novas perspectivas para
defende que a proposital concentração de renda assistencial social
permitiu o crescimento, mas agravou os problemas Com a queda do regime militar, a Constituição
estruturais que iriam desembocar na crise no início promulgada em 1988 restabeleceu a ordem
da década de 1980. Celso Furtado (2002, p. 21) democrática. Esta Carta Magna ampliou da liberdade
afirma, atentando-se ao critério de desenvolvimento, política e de imprensa, a harmonia entre os poderes,
que “[...] o Brasil não se desenvolveu; modernizou- e o artigo 1º previu os princípios fundamentais, que
se. O desenvolvimento só existe quando a população entre outros inclui a dignidade da pessoa humana.
em seu conjunto é beneficiada”. Nesse sentido, o Conhecida como a Constituição Cidadã,
governo ditatorial buscou criar plenas condições para externalizou os direitos e as garantias fundamentais,
que apenas uma parcela diminuta da população fosse que numa ótica do direito formal seria o ápice de um
beneficiada pelo crescimento da economia, legando à Estado de bem-estar social2, já idealizado desde o
maioria da população um modelo de vida que tinha preâmbulo.
em sua base a precarização das relações econômicas, PREÂMBULO - Nós, representantes do povo
sociais e culturais. brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Dessa forma, evidencia-se que houve Constituinte para instituir um Estado Democrático,
crescimento econômico, mas não desenvolvimento, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais
pois este relaciona-se a situações de igualdade social. e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
Assim, as décadas de 1960 a 1980 foram marcadas desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna,
por maciços investimentos econômicos, à custa de
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
empréstimos e investimentos internacionais, que
social e comprometida, na ordem interna e
tinham por objetivo fomentar a produção de internacional, com a solução pacífica das
riquezas em setores estratégicos da indústria
nacional que supostamente influenciariam 2
Para Esping-Andersen (1991, p. 101): “O welfare state não pode ser
positivamente no padrão de vida, no consumo e na compreendido apenas em termos de direitos e garantias. Também precisamos
considerar de que forma as atividades estatais se entrelaçam com o papel do
participação do Estado nas questões sociais. mercado e da família em termos de provisão social”.

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controvérsias, promulgamos, sob a proteção de IV - a habilitação e reabilitação das pessoas


Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA portadoras de deficiência e a promoção de sua
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (Brasil, integração à vida comunitária;
1988). V - a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso
A intenção na composição de uma Constituição que comprovem não possuir meios de prover à
que legitime a participação de todos de forma própria manutenção ou de tê-la provida por sua
igualitária é algo que está presente na Constituição família, conforme dispuser a lei (Brasil, 1988).
de 1988, e isso se deve às movimentações realizadas
para a implementação de direitos que assegurassem o Ao longo da discussão foi possível verificar
pleno exercício individual, mas principalmente o da algumas mudanças ocorridas nas Constituições, que
igualdade social. Vieira e Paganini (2015) afirmam em alguns momentos foi mais repressora, desigual e
que a CRFB/1988 foi elaborada num cenário de centralizadora, e em outros mais democrática e
mobilização e participação social, resultando num promotora de condições igualitárias. Estas mudanças
documento de caráter democrático. O artigo 5º ocorreram muito por conta da participação dos
prevê os direitos e deveres individuais e coletivos, e movimentos sociais na conquista de direitos,
do artigo 6º ao 11º os direitos sociais, concedendo ao atuando fortemente pelo alcance dos direitos sociais
indivíduo as condições necessárias exigidas a um da Constituição Federal de 1988.
Estado de bem-estar social. No que diz respeito ao modelo de Estado de
bem-estar, os serviços sociais resguardados pela atual
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção
Constituição brasileira se aproximam em certos
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade aspectos dos compromissos pactuados pelo Estado
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à de bem-estar social social-democrata, analisado pelo
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: cientista político Esping-Andersen. Além da garantia
[...] de universalidade dos bens sociais ele ainda destaca a
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a importância dos partidos políticos, sindicatos e
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o movimentos sociais como centro propulsor de tais
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
compromissos para com o bem-estar geral.
maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição (Brasil, De acordo com Esping-Andersen (1991,
1988). p. 111-112), a garantia de serviços sociais de amplo
espectro e universalizantes encontram-se na
No âmbito da seguridade social, que é confluência de interesses dos “[...] partidos políticos
compreendida pelas ações de iniciativa do Estado
e movimentos de trabalhadores muito poderosos
para assegurar os direitos relativos à saúde,
[que] afetam decisivamente a articulação das
previdência social e assistência social, a relevância do
demandas políticas” em prol do bem-estar comum.
fato está na universalidade da cobertura e do
atendimento, que visa atender a todos de forma No Brasil, durante as décadas de 1970 e 1980
igual. Esta universalidade seria o eixo central do diversos segmentos da sociedade articularam-se em
Estado de bem-estar social, onde os “[...] torno de demandas políticas e sociais que até então
trabalhadores braçais chegam a desfrutar de direitos eram exclusivamente debatidas e decididas nas altas
idênticos ao dos empregados white-collar assalariados esferas do poder, excluindo e marginalizando boa
ou dos funcionários públicos, e todas as camadas são parte da população nacional que não via na
incorporadas a um sistema universal de seguros” materialização das políticas públicas seus anseios e
(Esping-Andersen, 1991, p. 109). Na assistência preocupações representadas.
social o caráter promotor de igualdade é mais latente Dessa forma, pressionando e desafiando a
ainda, pois a Constituição estabeleceu o auxílio ditadura civil-militar os movimentos sociais ligados
financeiro a quem precisar, independente de aos trabalhadores urbanos e rurais, aos estudantes, às
contribuição pretérita, como ocorre com a mulheres e às minorias étnico-raciais pressionaram
previdência social. para que o direito ao voto, o acesso a bens e serviços
Art. 203. A assistência social será prestada a quem sociais, igualdade de direitos, educação e saúde
dela necessitar, independentemente de contribuição universais fossem garantidos e estendidos
à seguridade social, e tem por objetivos: indistintamente a toda a população. Conforme
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à
aponta Fagnani (2005), os movimentos sociais foram
adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; importantes instrumentos antes e durante o processo
III - a promoção da integração ao mercado de de redemocratização, incluindo na agenda nacional a
trabalho; necessidade de reformas políticas e apontando como
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centro de debate uma contundente crítica ao caráter A ruptura com o status quo e o alcance de um
excludente da política social vigente até então. novo modelo de Estado, que fornecesse as liberdades
Assim, ao analisarmos o processo de elaboração individuais e as condições de igualdade social,
da Carta Magna brasileira, vê-se a importância dos serviram como meio de junção às reivindicações
movimentos sociais como uma força da população sustentadas. Conforme Bringel e Gohn (2012), as
para reivindicar melhorias na relação dos órgãos teorias que orientavam os movimentos sociais da
estatais que prestam atendimento à população, mas década de 1980 originavam-se de paradigmas
também são a mola propulsora de mudanças no europeus de abordagem dos novos movimentos
próprio ordenamento político do Estado. A análise sociais, nas quais as categorias de identidade e
das décadas de 1970 e principalmente de 1980 é autonomia foram as de maior destaque, seguidas de
importante não somente para entender o alcance da outras como sociedade civil, cidadania, participação
democratização, mas também para compreender o social, justiça social. A partir destas mobilizações
impacto dos movimentos sociais para a mudança do sociais diferentes demandas entraram na agenda
ordenamento social e sua potência na concretização pública nacional forçando, nas décadas seguintes, os
de objetivos. governantes e/ou representantes políticos a
repensarem e a legislarem sobre questões como
O período de transição à democracia despertou
educação, saúde, trabalho, assistência social e
grande interesse dos analistas brasileiros no estudo
das ações coletivas e dos movimentos sociais. A redistribuição de renda, entre outros.
década de 1980 marcou, de certo modo, a
institucionalização deste debate no país através da Políticas de transferência de renda no Brasil pós-
emergência de análises altamente qualificadas que até 1988
hoje são importantes referências. Naquele momento
os novos movimentos sociais adquiriram suas A Constituição Federal de 1988 foi um grande
próprias especificidades e chegaram a ser um tema passo para que o povo brasileiro possuísse maiores
central das ciências sociais no país (Bringel & Gohn, condições de igualdade econômica, social e civil, na
2012, p. 9). medida em que programas assistenciais de
transferência de renda foram implementados. Com
As práticas de reivindicação realizadas no Brasil
superam a estratégia de organização como ocorreria isso a ideia de justiça social promovendo condições
com os sindicatos, grupos de esquerda, Igreja igualitárias de acesso a serviços foi determinante para
Católica. Isso ocorria porque os movimentos sociais a ampliação dos programas assistenciais de cunho
se organizavam de forma coletiva, mas não da forma redistributivo. Os padrões clássicos utilizados para os
tradicional por intermédio das organizações. Para programas sociais na década de 1980 se fazem sentir
Sader (2001, p. 10), há a insurgência do ‘novo com as reivindicações de redemocratização do país.
sujeito’, que estaria relacionado a um sujeito criado a Conforme Burlandy, Magalhães, Monnerat, e
partir da prática política e social, e como fruto de Schottz (2007), nesse momento ganham fôlego as
ações de indivíduos que em um dado momento críticas ao caráter de centralização, burocratização,
histórico “[...] passam a definir-se, a reconhecer-se privatização, exclusão e de ineficiência social da
mutuamente, a decidir e agir em conjunto e a intervenção estatal.
redefinir-se a cada efeito resultante das decisões e Dois traços característicos da política social brasileira
atividades realizadas”. vêm se destacando enquanto questões-chave a serem
A efetiva participação dos movimentos sociais na enfrentadas: a) os segmentos pobres são os que
década de 1980 foi substancialmente importante para tradicionalmente têm maiores dificuldades de
a redemocratização do Brasil e para o alcance das acessar os bens e serviços sociais, contribuindo para a
premissas de garantias individuais e coletivas. persistência da desigualdade social; e b) a falta de
Conforme Hamel (2009), por conta dos interação entre os diferentes setores de governo,
entre governo e sociedade e a consequente
movimentos sociais a esfera pública teve imensa
dificuldade de coordenação das ações desenvolvidas
modificação, pois até então somente os partidos (Burlandy et al., 2007, p. 87).
políticos tradicionais e as elites discutiam os
problemas sociais numa hierarquização vertical de Com a redemocratização, a Assistência Social foi
cima para baixo. Dessa forma, estruturou-se uma inserida na nova Carta Magna como um direito
proposta alternativa à lógica do poder dominante no independente de contribuição à previdência social.
país, pois a partir desse momento as aspirações e Diante de um autêntico e paradigmático direito
demandas sociais das classes oprimidas ganharam social, consegue a assistência social obter na atual
espaço para discussão na esfera pública por conta de ordem constitucional, a partir de uma característica
suas manifestações. geral identificadora dessa categoria de direitos, “[...]
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obrigações de prestação positivas cuja satisfação Por meio dessa iniciativa o trabalho infantil foi
consiste num fazer, uma ‘ação positiva’ a cargo dos percebido como um grave entrave para o pleno
poderes públicos” (Queiroz, 2006, p. 25, grifo do desenvolvimento das crianças, vulnerabilizando este
autor). estágio da vida. Por meio do Peti, as crianças
Dessa forma, a assistência aos indivíduos em brasileiras foram inseridas no sistema de proteção
situação de vulnerabilidade deve ser prestada pelo social que atualmente oferta uma série de programas
Estado, com a prática de ações, benefícios e e serviços que inibem sua participação nos mundos
programas sociais que caracterizem a concretude dos do trabalho, garantindo seu acesso à saúde e à
objetivos antecedentemente estipulados pela própria educação de forma universalizada. Por meio do Peti
Constituição (Castro, 2013). Os programas conseguiu-se difundir entre a comunidade nacional
assistenciais foram institucionalizados para alcançar a noção de que a infância é um estágio vulnerável da
os segmentos mais vulneráveis da sociedade, o que vida e que tanto o estado quanto a população em
levou o Brasil a pensar os programas de transferência geral deve garantir que todas as crianças disfrutem
de renda a partir do início da década de 1990, dos bens sociais e culturais aos quais possuem
quando o interesse na implementação deste tipo de direito.
programa passa a ser inserido no contexto da nova Já na década de 2000 destacam-se outras
ordem brasileira. iniciativas de transferência de renda, sobressaindo-se
Em 1991, por intermédio do projeto de Lei nº entre elas o Vale Gás, programa criado pelo então
80, o então senador Eduardo Suplicy propunha a presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) em
instituição do Programa de Garantia de Renda 2001, sendo posteriormente incorporado ao
Mínima, de caráter universalista, que sugeria programa Bolsa Família. Este programa era
transferir uma renda para todos os brasileiros com administrado pelo Ministério de Minas e Energia,
mais de 25 anos de idade numa faixa de renda pré- garantindo o auxílio financeiro de R$ 15,00 a cada
determinada. A ideia era beneficiar sob a forma de dois meses para famílias que possuíam renda mensal
imposto de renda negativo as pessoas que recebiam de no máximo meio salário mínimo para que
até 2,5 salários-mínimos brutos mensais, sendo que pudessem realizar a compra do gás de cozinha,
“[...] o imposto de renda negativo seria sendo que no ano de 2001 o salário mínimo era de
correspondente a 50% da diferença entre aquele R$ 180,00.
patamar de renda e a renda da pessoa, caso ela O programa atendia a famílias que já eram
estivesse trabalhando, e 30% no caso em que a assistidas pelo Bolsa Escola e outros programas que
pessoa tivesse rendimento nulo” (Suplicy, 2002, integravam a chamada Rede de Proteção Social. O
p. 123). objetivo inicial do programa era diminuir a fome no
Em 1996, no governo do presidente Fernando país, no entanto, mesmo com o acesso ao gás,
Henrique Cardoso (FHC), foi instituído o estudos realizados demostraram que muitas famílias
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). atendidas por esta política ainda sofriam com a
No entanto, foi somente com sua estruturação pela desnutrição porque não conseguiam comprar o gás
Lei nº 12.435, de 06 de Julho de 2011, sob a égide do regularmente (Brasil, 2002). De caráter focalizado,
extinto Ministério do Desenvolvimento Social e este programa, apesar de impactar positivamente na
Combate à Fome3, que o programa obteve impactos diminuição das vulnerabilidades, possuía ação
positivos sobre a população infantil, expandindo-se limitada, já que não garantia o pleno acesso ao
por diferentes regiões do país. Este programa é conjunto de alimentos necessários para o combate à
integrante da Política Nacional de Assistência Social, subnutrição. Ainda cabe ressaltar seu caráter seletivo,
que, no âmbito do Suas4, compreende transferências pois elencava como alvo principal um grupo
de renda, trabalho social com famílias e oferta de pequeno de indivíduos que estavam em situação de
serviços socioeducativos para crianças e adolescentes vulnerabilidade, impactando muito pouco sobre
que se encontrem em situação de trabalho (Brasil, outras esferas da vida.
2011). Outro importante programa deste mesmo
contexto histórico foi o Bolsa Escola, implantado em
3
O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome foi extinto em 2001, durante o governo de FHC, e posteriormente
29/09/2016 pela Lei nº 13.341, sendo transformado em Ministério do
Desenvolvimento Social e Agrário. incorporado ao programa Bolsa Família. O programa
4
O Sistema Único de Assistência Social integra uma política pactuada
nacionalmente, que prevê uma organização participativa e descentralizada da
tinha como objetivo promover o combate à pobreza
assistência social, com ações voltadas para o fortalecimento da família. Baseado e a exclusão social por intermédio da educação,
em critérios e procedimentos transparentes, o Sistema altera fundamentalmente
operações como o repasse de recursos federais para estados, Municípios e fornecendo mensalmente às famílias que se
Distrito Federal, a prestação de contas e a maneira como serviços e as
municipalidades estão hoje organizados (Brasil, 2011). enquadravam em seus ditames um valor para ser
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investido na educação das crianças, impedindo que proveriam os serviços para o cumprimento da
fossem obrigadas a trabalhar para obter renda. O ‘Agenda de Compromissos’ (Brasil, 2001).
pagamento da bolsa era de R$ 15,00 por filho, Ambos os programas foram importantes
limitado ao máximo de três crianças, e dava-se instrumentos na concretização dos direitos sociais,
através de saque em agência da Caixa Econômica no entanto seu caráter extremante focalizado e o
Federal. baixo aporte financeiro do estado em sua promoção
Para participar da Bolsa Escola as famílias diminuíram sua capacidade protetiva, deixando de
precisavam se enquadrar em alguns requisitos, como fora dos programas centenas de milhares de famílias
morar há mais de cinco anos no município da escola que viviam na miséria. Além disso, o excesso de
onde a criança pretendia estudar; possuir uma renda contrapartidas fazia com que cotidianamente
mensal máxima de meio salário por pessoa adulta de centenas de famílias fossem expulsas do programa,
cada família e que estivesse apta para trabalhar; os vulnerabilizando ainda mais indivíduos que viviam
filhos deveriam ter entre sete e 14 anos de idade e em situação de miséria extremada. Neste contexto,
estar matriculados em uma escola; necessidade de as contrapartidas possuíam um caráter especialmente
que o responsável se comprometesse em manter as investigatório e punitivo, aquém de suas reais
crianças frequentando a escola. Para poder participar pretensões que era facilitar o acesso à saúde e
do Bolsa Escola a família deveria possuir renda educação de maneira universal.
mensal máxima de R$ 90,00 por pessoa, e os filhos Em abril de 2003, já no governo do então
deveriam estar matriculados e frequentando presidente Lula, foi criado o programa nacional de
regularmente a escola. O acompanhamento e o acesso à alimentação ‘Cartão Alimentação’, instituído
controle de frequência das crianças na escola eram pelo decreto nº 4.675, de 16 de abril de 2003, que
realizados pela Secretaria de Educação (Brasil, 2001a; visava garantir a pessoas em situação de insegurança
2001b). alimentar recursos financeiros ou o acesso a
Criado também pelo governo de FHC, o Bolsa alimentos em espécie, cabendo ao Gabinete do
Alimentação foi instituído pela Medida Provisória nº
Ministro de Estado Extraordinário de Segurança
2.206-1 de 06 de setembro de 2001 (Brasil, 2001a;
Alimentar e Combate à Fome a definição da forma
2001b), e incorporado em 2003 pelo Bolsa Família.
de concessão do benefício, se em dinheiro ou em
O programa destinava-se à promoção das condições
alimentos em espécie.
de saúde e nutrição de gestantes, nutrizes e crianças
Considerando a situação de insegurança
de seis meses a seis anos e onze meses de idade,
alimentar como a falta de acesso à alimentação digna,
mediante a complementação da renda familiar para
em quantidade, qualidade e regularidade suficientes
melhoria da alimentação, pagando valores que
para a nutrição e a manutenção da saúde da pessoa
variavam de R$ 15,00 a 45,00 por família
humana, o programa pagava o valor de R$ 50,00 por
beneficiada.
pessoa ou família com renda familiar mensal per
Após o ingresso do Município no Programa, cada
capita de até meio salário mínimo, que no ano de
família cadastrada recebia a importância mensal de
2003 era de R$ 240,00, sendo que cada pessoa ou
R$ 15,00 (quinze reais) por beneficiário até o limite
família receberia mensalmente apenas um benefício
de três Bolsas-Alimentação, ou seja, até R$ 45,00
do ‘Cartão Alimentação’ (Brasil, 2003).
(quarenta e cinco reais); a mãe ou responsável pelo
Criado também em 2003, o programa Bolsa
recebimento do benefício tinha um cartão
Família só foi instituído pela lei nº 10.836, de 09 de
magnético para retirada mensal do dinheiro em
janeiro de 2004, a partir da junção e aperfeiçoamento
qualquer ponto de atendimento da Caixa Econômica
Federal (CEF). O Bolsa Alimentação tinha duração de outros programas já existentes, como o Vale Gás,
de seis meses, podendo ser renovado por períodos Bolsa Escola e Bolsa Alimentação. Este é um
iguais, desde que o responsável pelo recebimento programa que contribui para o combate à pobreza e
cumprisse uma ‘Agenda de Compromissos’, que à desigualdade no Brasil, possuindo três eixos
consistia em ações básicas como pré-natal, vacinação, principais de atuação: complemento de renda, acesso
acompanhamento do crescimento e a direitos e articulação com outras ações. É
desenvolvimento infantil e atividades educativas em considerado um programa de transferência direta de
saúde e nutrição. renda, direcionado às famílias em situação de
Os beneficiários do Programa eram assistidos por pobreza e de extrema pobreza em todo o país, de
uma equipe do Programa Saúde da Família (PSF), modo que consigam superar a situação de
pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) ou vulnerabilidade e pobreza. O programa busca
ainda por uma unidade básica de saúde nas garantir a essas famílias o direito à alimentação e o
localidades não cobertas pelo ACS ou PSF, que acesso à educação e à saúde.
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A transferência de renda segue critérios pode ser considerado um beneficiário indireto do


socioeconômicos, sendo que no ano de 2015, cujo programa, pois receberá dos indivíduos benefícios
valor do salário mínimo era de R$ 788,00, os econômicos na forma de pagamento por algum
seguintes valores eram transferidos: renda até serviço prestado ou bem de consumo vendido. A
R$ 77,00 para famílias com renda mensal de até transferência de renda funciona como um auxílio
R$ 77,00 por pessoa; renda entre R$ 77,01 e 154,00 para aquelas famílias que se encontram em situações
para famílias que possuam em sua composição de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, e que, se
gestantes, nutrizes (mães que amamentam), crianças não estivessem assistidas por um programa como o
e adolescentes com idade entre zero e 16 anos Bolsa Família, estariam à mercê da benevolência da
incompletos; renda de zero a R$ 154,00 para famílias sociedade e da caridade.
que possuam em sua composição adolescentes entre
16 e 17 anos (Brasil, 2004). Em todo o Brasil, Considerações finais
atualmente mais de 13,9 milhões de famílias são
atendidas pelo Bolsa Família. Para se candidatar ao O desenvolvimento dos indivíduos por ser
programa, é necessário que a família esteja inscrita caracterizado pelo processo de ampliação de suas
no Cadastro Único para Programas Sociais do liberdades individuais, naquilo que se relaciona às
Governo Federal, com seus dados atualizados há suas capacidades e as oportunidades disponíveis,
menos de dois anos. fomentando sua plena participação nas diferentes
Os programas de transferência de renda a esferas da vida social e garantindo acesso
exemplo do Bolsa Família mostram-se como meios incondicional ao gozo da vida coletiva. O
de atuação pelos quais o Estado implementa políticas mecanismo de ampliação das liberdades abrange as
de combate à pobreza e à desigualdade, fortalecendo dinâmicas sociais, econômicas, políticas
a ideia de políticas redistributivas que possibilitem o indispensáveis para a garantia de uma diversidade de
acesso a produtos e serviços a indivíduos que se oportunidades para todos, bem como o ambiente
encontram em situação de vulnerabilidade social. favorável para que cada um possa exercer, na
Sendo assim, cabe ao governo federal com apoio dos plenitude, sua cidadania.
governos municipais e estaduais, num trabalho Dessa forma, o desenvolvimento humano precisa
interligado, implementar ações que visem atender as centrar-se nos indivíduos e no crescimento do seu
metas de curto e longo prazo para concretizar a bem-estar, entendendo-se não apenas pelo acúmulo
efetivação das necessidades sociais. de riqueza e de renda, mas pela ampliação do escopo
Esta articulação trará não somente eficiência ao das opções, das habilidades e da liberdade de escolha.
programa do Bolsa Família, mas também Assim, a renda e a riqueza não são fins em si
transcenderá a novos campos de atuação, bem como mesmas, mas meios que possibilitam às pessoas viver
a outros problemas sociais que devem ser alvos de conforme desejem.
políticas públicas. Assim, os Ministérios e as A ascensão da economia não pode ser traduzida
Secretarias devem estar sempre se aperfeiçoando no automaticamente em qualidade de vida, aliás,
sentido de preconceber os anseios sociais para que a diversas vezes o que se verifica é o reforço das
população considerada em situação de desigualdades. É necessário que este crescimento
vulnerabilidade social tenha o amparo do Estado. possa ser transformado em conquistas reais para as
Nesse sentido, o dever do Estado em promover a pessoas, ou seja: crianças com mais acesso a saúde,
igualdade pode se dar de diferentes formas, seja em educação para todos e com qualidade, ampliação da
atenção ao indivíduo, seja em atenção ao capital. participação política dos cidadãos, balanceamento da
Diante deste paradigma o Estado deve fornecer renda e das oportunidades entre todos, maior livre-
produtos e serviços de qualidade para promover a arbítrio, entre outras. Assim, quando se coloca as
emancipação dos beneficiados, fazendo com que eles pessoas no centro da análise do bem-estar, o enfoque
alcancem por intermédio do programa assistencial do desenvolvimento humano possibilita redefinir o
maneiras de superar as vulnerabilidades. Os modo como pensamos e lidamos com o
programas de transferência de renda possuem essa desenvolvimento.
função, pois garantem aos indivíduos acesso a Durante boa parte do século XX, as
equipamentos e serviços sociais que lhes Constituições brasileiras relegaram a segundo plano
possibilitem maior equilíbrio social. as questões atinentes à Assistência Social, deixando a
Por outro lado, transferência de renda pode cargo da filantropia e da caridade ações protetivas
auxiliar no desenvolvimento socioeconômico, pois que visassem a diminuir os impactos negativos do
injeta na economia local dinheiro capaz de capitalismo sobre a vida da população vulnerável. As
movimentar o setor econômico, ou seja, o mercado diversas Constituições que vigoraram até o final do
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século XX garantiam pouca ou nenhuma proteção acesso aos serviços sociais tornou-se um imperativo,
aos brasileiros que estivessem fora do mercado de unindo boa parte da sociedade em torno da questão
trabalho, transformando a Assistência Social estatal social.
em privilégio dos poucos que podiam contribuir Foi dentro deste escopo que os programas
financeiramente com este sistema protetivo. assistenciais em seus diversos formatos tornaram-se
Nesse período a estrutura do Estado era mínima uma alternativa no combate à pobreza, permeando as
e havia pouco espaço para políticas sociais de cunho questões educacionais de saúde pública, nutrição,
universal, aquelas que existiam eram focalizadas, trabalho decente, etc., que precarizam e
emergenciais e cessavam logo que o problema era vulnerabilizam os conteúdos da cidadania. Assim, os
combatido, como foram os casos das vacinações, dos programas assistenciais possuem, dentre outras
‘menores abandonados’, das campanhas de finalidades, realizar a transferência de renda para
letramento, entre outras. Se durante a Monarquia e indivíduos que se encontram em situação de
Primeira República as políticas sociais eram vulnerabilidade, análoga à pobreza.
diminutas, pouco efetivas e calcadas no discurso Com isso o Estado implementa um programa
liberal de diminuição do Estado, durante a Segunda para transferir renda aos indivíduos que carecem
República estas mesmas políticas estavam destinadas deste auxílio para garantir suas condições mínimas
apenas aos trabalhadores urbanos, deixando de fora de existência. No Brasil, desde a redemocratização
do círculo trabalhadores rurais, desempregados e na década de 1980, pudemos ter a vivência de
seus familiares. O entendimento da proteção social governos com ideologias liberais, e mais
como um direito pleno inexistia. recentemente, com os presidentes Luís Inácio Lula
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 é da Silva e Dilma Vana Rousseff, a inserção de
reconhecida entre os mais diversos setores da paradigmas de um governo social. Assim,
sociedade brasileira como Constituição Cidadã. Isso implementado em 2004 no governo Lula, o
ocorre devido à amplitude e o alargamento dos programa Bolsa Família visa realizar a transferência
direitos individuais e coletivos, garantidos por direta de renda às pessoas consideradas em situação
intermédio dos princípios fundamentais e dos de pobreza ou de extrema pobreza.
direitos e garantias fundamentais, tais como o Brasil Com esta pesquisa sobre alguns programas
constituir-se de um Estado Democrático de Direito. assistenciais de cunho redistributivo, é possível notar
Assim, tem-se como fundamentos a cidadania, a a implementação das diretrizes da Constituição
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do Federal de 1988, ao estabelecer a transferência de
trabalho e da livre iniciativa, constituindo como renda a quem necessita, independente de pagamento
objetivos fundamentais a construção de uma à Previdência Social. Sobre as Constituições do
sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da Brasil, pode-se verificar a gradativa ampliação dos
pobreza e a exclusão social, redução das direitos sociais aos indivíduos, que atuando de forma
desigualdades sociais e regionais, garantindo que participativa fizeram com que o Estado
todos são iguais perante a lei, sem distinção de implementasse programas sociais redistributivos,
qualquer natureza. E mais do que dar ênfase ao que pretendiam ampliação da igualdade.
indivíduo, a Constituição Federal de 1988 também
externaliza a importância dos direitos sociais, que são Referências
garantidos por intermédio da seguridade social, que Alves, I. S., & Mesquita, S. P. (n.d.). O programa Bolsa
abrange direitos universalizantes à saúde, Família: uma análise de seus limites e potencialidades
previdência social e assistência social. enquanto política pública intersetorial, transversal e focalizada
No entanto, cabe ressaltar a importância dos (Monografia de Especialização). Universidade Federal
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Altera a Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993, que
dispõe sobre a organização da assistência social. License information: This is an open-access article distributed under the terms of the
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