DESIGUALDADES E POBREZA:
Como as políticas públicas podem
promover ou enfraquecer a
cidadania social
Boletim Nº11
Março de 2021
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Ao contrário do que às vezes nos que- – e por que são importantes será explicado
rem fazer acreditar, a magnitude e perfil das logo adiante. A presença do Estado como
desigualdades não caem diretamente do provedor central da proteção sinaliza para a
céu nem sobem diretamente dos infernos dimensão distributiva e redistributiva des-
sobre nossas sociedades. Elas são resultados tas políticas nos processos de distribuição
de escolhas sociais. Entre elas, a maneira de renda, riqueza e bem estar, alterando
como se articulam Estado, famílias e merca- ou reproduzindo as estruturas de desigual-
do na garantia de bem estar e na proteção dades existentes no interior de cada país.
aos riscos a que as famílias e indivíduos Uma compreensão adequada das
estão sujeitos ao longo do ciclo de suas vi- condições sociais do Brasil e dos déficits de
das. Às leis, instituições e políticas públicas proteção exige o reconhecimento das múl-
que organizam esta provisão, chamamos tiplas combinações de vetores diversos de
sistemas de proteção social e, de maneira vulnerabilidades, decorrentes dos ciclos de
mais ampla, Estados de Bem Estar Social. vida, dos territórios e áreas de moradia, das
No entanto, a própria definição do condições de saúde e educação, do acesso a
que constitui estas políticas e regras varia bens materiais e simbólicos, do status social,
em cada país, a cada tempo, definindo um da incorporação adversa no mercado de tra-
arranjo específico de políticas que visam as- balho, entre outros. Esta compreensão mais
segurar direitos, proteger contra riscos ou ampliada da problemática social contempo-
suprir necessidades. E estas configurações rânea e da necessidade de transformações
estão embasadas por referenciais norma- sociais profundas no modelo econômico, so-
tivos e concepções de justiça social e são cial e institucional do país, impõe desafios não
frutos de trajetórias históricas e escolhas triviais para as políticas de proteção social.
políticas. Como se afirmou, os sistemas Este boletim parte dessas refle-
de proteção social envolvem a participa- xões para identificar o que ocorreu no
ção do Estado, das famílias e do mercado. Brasil após o impeachment da Presiden-
O peso de cada uma dessas instituições na ta Dilma, evento que marcou uma infle-
provisão do bem estar define - juntamente xão importante na trajetória do Estado
com os objetivos, instrumentos e montan- social brasileiro, que enfrenta agora seus
te de recursos - os diferentes regimes de maiores desafios e cujo desmonte pro-
proteção social. A predominância de cada duz suas mais perversas consequências.
um destes setores embasa uma caracteri-
zação dos Estados de Bem-Estar pelo grau
de desmercantilização e, pode-se acrescen-
tar, também do grau de desfamiliarização
da proteção social. O significado destes
termos nada familiares – desmercantiliza-
ção e desfamiliarização da proteção social
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Figura 2: Tipos de Estado de Bem Estar e o papel das diferentes esferas em sua provisão
tem-se a ênfase nos componentes, dese- e a cada tempo de uma forma específica.
nhos e na composição dessa proteção, de No âmbito da América Latina, uma concep-
sua modelagem interna, digamos assim. ção de proteção social baseada em direitos
Cabe então ressaltar que os sistemas aponta para a necessidade de articular três
de proteção social são compostos por be- conjuntos de políticas: a) garantir assistência
nefícios contributivos e não contributivos. social, articulando benefícios/transferências
No primeiro caso, temos benef ícios ligados e serviços no campo da proteção não contri-
à inserção dos indivíduos no mercado de butiva, incluindo sistemas de cuidado para
trabalho, tais como aposentadoria, seguro públicos especialmente vulneráveis, como
desemprego, enfermidade funcional, den- idosos, crianças e deficientes; b) prover se-
tre outros, cujo acesso está condicionado guridade, no âmbito da proteção contributi-
a uma contribuição prévia daquele indi- va; c) promover uma estrutura de oportuni-
víduo ao custeio do bem ou serviço, ainda dades robusta, no campo da regulação dos
que ele seja público e estatal. Como bene- mercados de trabalho, das políticas de em-
fícios não contributivos temos dispositivos prego, de renda e de acesso a crédito, que
de renda mínima, benef ícios de moradia, estariam ligadas ao âmbito da promoção
familiares e transferências condicionais social, em clara articulação com as políticas
de renda, como f rentes de trabalho, por de trabalho, emprego e renda. Um ponto
exemplo. A assistência social é apenas uma central é a necessária articulação dessas di-
parte desses conjuntos de benefícios não mensões da proteção com o acesso a servi-
contributivos, conforme ilustra a figura 3. ços de saúde e educação de base universal
Não existe uma conformação única (CEPAL, 2010; e CECCHINI & MARTÍNEZ, 2011)
das políticas que fazem parte de um siste- Um aspecto a ressaltar, a par-
ma de proteção social. As arquiteturas são tir dessa perspectiva latino-america-
várias e podem englobar políticas de natu- na, é a articulação dessas políticas de
rezas distintas, combinadas em cada país proteção e promoção social com os
Figura 3: Componentes de um sistema de proteção social: diferentes conformações
proteção social, o que nela está contido, seu definia a incorporação ou exclusão no sis-
campo de atuação, os públicos aos quais as tema de proteção brasileiro (SANTOS, 1979).
ações são dirigidas, os critérios para acesso Na área da assistência social, a con-
aos benefícios e serviços, objetivos e alcance formação da política caracterizou-se pelo
das ações...enfim, o desenho dos sistemas caráter precário, fragmentado e insuficien-
se baseia, sobretudo, em concepções mais te dos programas, o que não permitiu a
ou menos densas de justiça (KERSTENET- estruturação de um sistema abrangente e
ZKY, 2006) que informam, ao fim e ao cabo, consistente de garantia de cidadania social.
a amplitude, o escopo e os fins mesmos da Para grupos específicos, formou-se um den-
proteção social. A partir dessa primeira se- so esquema de base não contributiva, com
ção, de natureza mais conceitual, aborda- uma profusão de programas pulverizados,
remos brevemente a trajetória de constru- sobrepostos, fragmentados, focalizados,
ção do sistema de proteção social no Brasil sustentados pelo clientelismo, assistencia-
para depois, na última seção, apresentar as lismo e pela ótica da caridade e da filan-
evidências e consequências do retroces- tropia. Marcada pelo “primeiro damismo” e
so das políticas de proteção social do país. pela perspectiva residual, a assistência so-
cial não era vista como uma política de di-
2. PROTEÇÃO SOCIAL NO reitos, mas pautada muito mais pelo dever
BRASIL de quem oferece ajuda e pelo julgamento
sobre o “merecimento” de quem a recebe.
A trajetória das políticas de proteção
A Constituição Federal de 1988 marca
no Brasil tem início nos anos 20 do século
uma importante inflexão nessa trajetória,
XX, mas ganha corpo nos anos 30, quando
quando se enfatizam os direitos sociais e a
começa a se estabelecer uma nova base da
base universal da proteção social, elevan-
estrutura produtiva no país, mais urbana e
do o status da política de assistência social,
centrada na produção industrial. Entretan-
que passa a assumir um protagonismo no
to, apesar da expansão das políticas públi-
campo da seguridade brasileira, ao lado da
cas de educação, saúde, previdência e as-
previdência social e da saúde. A assistência
sistência, não se constituiu, no país, neste
social adquire, pela primeira vez, o status
momento, um sistema de proteção social
de política pública. A partir desse momen-
de base universalista. O modelo consolida-
to ocorre um adensamento do caráter re-
do no Brasil entre os anos 30 e 70, de caráter
distributivo das políticas sociais e um ine-
fortemente meritocrático / corporativo e de
gável avanço do sistema de direitos sociais.
forma autoritária e tecnocrática, tinha como
Como se configura ou qual o dese-
base a posição ocupacional na estrutura
nho das políticas de proteção social no
produtiva. Alguma aspiração mais univer-
Brasil? Do que estamos falando quando
sal era, neste momento, restrita à educação
falamos de proteção social no país? Cas-
fundamental (ainda que sua concretização
tro (2011) faz uma representação da con-
seja recentíssima) e ao atendimento de ur-
cepção acerca das políticas de proteção
gência à saúde, já que o restante dos ser-
social e promoção social como os dois ei-
viços de saúde permanecia condicionado
xos da política social, conforme Tabela 1.
a contribuição específica -ao pagamento
A partir dessa macro caracterização
privado ou à filantropia. A posição dos in-
dos objetivos e da localização desses dois
divíduos na estrutura ocupacional - espe-
grandes grupos de políticas, o autor identifi-
cialmente a inserção formal no mercado
ca a localização das políticas nessa configu-
de trabalho (a “carteira assinada”) é que
ração, como pode ser visualizado na Figura 6.
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Tabela 1: Objetivos, tipo de ação, contingências, riscos e necessidades da Política social no Brasil
Contingências, riscos e
Objetivos Tipo de ação
necessidades
- Incapacidade de ganhar a vida
por conta própria devido a fatores
Geração, utiliza- externos, que independem da von-
ção e fruição das tade individual;
Proteção So-
capacidades de in- - Posição vulnerável no ciclo do ser
cial (segurida-
divíduos e grupos humano (ex: crianças e idosos;
de social)
sociais - Situações de risco e contingên-
cias como em casos de acidentes
(invalidez por acidente)
Políticas
Sociais - Despreparo para o trabalho e
Solidariedade e se- exercício da cidadania;
guro social a indiví- - Distorções de renda e riqueza
Promoção duos e grupos em material;
social (opor- resposta a direitos, - Distorções de alocação de bens e
tunidades e risco, contingên- serviços coletivos;
resultados) cias e necessidades - Marginalização de indivíduos e/ou
sociais grupos pela falta de oportunidade
no mercado
Como se vê, é um sistema complexo Federal de 1988 ela é concebida como par-
e heterogêneo, construído, institucionaliza- te do sistema de seguridade social, junta-
do e modificado ao longo dos anos. Assim, mente com a Previdência Social (benefícios
analisa-lo integralmente em detalhes ultra- contributivos) e a Saúde (sistema universal).
passa em muito o escopo e o espaço deste Entretanto, demorou ainda bastante até
boletim. Mas colocar um zoom na política que fosse instituído o Sistema Único de As-
de assistência social permite ter-se a di- sistência Social (SUAS), que estabeleceu, a
mensão do esforço que tem sido feito para partir de 2004, uma nova concepção de pro-
a construção de parte importante da prote- teção, que alterou de forma radical o sen-
ção social no Brasil. A institucionalização da tido e o alcance da proteção social no país.
assistência social como política pública é re- Estruturado como sistema e tendo
lativamente recente e ainda se encontra em como base os princípios da territorialidade
processo de consolidação. Na Constituição e da matricialidade sociofamiliar, o SUAS
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rompe com a tradição clientelista e com o Com o SUAS, a assistência social passa a
viés filantrópico da política de assistência ser organizada como um sistema, estru-
social, inaugurando a perspectiva dos direi- turado a partir de dois níveis de proteção,
tos sociais nesse campo. Quanto à territo- que a organiza por níveis de complexidade,
rialidade, isso implica em considerar o ter- prevendo equipamentos próprios, serviços
ritório como base para organizar a provisão e composição das equipes de profissionais
dos serviços socioassistenciais e a matricia- para um tipo e outro de atendimento. A
lidade sociofamiliar significa tomar a família engenharia operacional da política adota
como foco de ação, superando uma visão a distinção entre dois níveis de atenção: a
individualista das necessidades, existente Proteção Social Básica (baixa complexida-
até então. Entretanto, transitar dessa cul- de), centrada em ações de prevenção e a
tura assistencialista, centrada em práticas Proteção Social Especial (média e alta com-
clientelistas e tuteladoras, para uma visão plexidade), para situações de média e alta
de direitos e de cidadania demanda tempo complexidade em que há violações de direi-
e muito esforço de construção institucional. tos. Para ambos os serviços, tem-se a rede
A partir de 2004, importantes esforços socioassistencial, composta por organiza-
foram feitos para alterar a concepção de po- ções da sociedade civil que complemen-
lítica da assistência e seu enquadramento, tam a oferta de serviços socioassistenciais.
reforçando a ideia de direitos e cidadania.
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Gráfico 2: Evolução das despesas federais com benefícios socioassistenciais – BPC e PBF (2002-2018)
(Em R$ bilhões de 2018)
em nível global, que alcançou um patamar do alimento quanto a sua variedade estão
menor que 5%, resultando na saída do Brasil prejudicados e os moradores possuem res-
do Mapa Mundial da Fome (LUPION, 2017). trições alimentares com refeições diárias
A segurança alimentar é abarcada não realizadas. Por fim, o nível de insegu-
pelos Objetivos de Desenvolvimento Sus- rança alimentar grave é verificado quando
tentável - ODS, mais especificamente pelo os moradores se encontram em situação de
tópico ODS2 - acabar com a fome, alcançar privação severa no consumo de alimentos.
a segurança alimentar e melhoria da nu- A Pesquisa de Orçamentos Familiares
trição e promover a agricultura sustentá- 2017-2018 (POF), do Instituto Brasileiro de
vel - o que torna esse indicador ainda mais Geografia e Estatística (IBGE), contempla,
relevante para a discussão desse boletim. dentre outras informações, a trajetória da
Segurança alimentar pode ser defi- situação do Brasil com relação à segurança
nida como o cumprimento do direito de alimentar nos últimos anos. O gráfico 5 de-
todos ao acesso regular e permanente a monstra que, em 2017-2018, dos 68,9 milhões
alimentos de qualidade e em quantidade de domicílios no Brasil, cerca de 36,7% se
suficiente, sem comprometer o alcance a encontravam em algum grau de inseguran-
outras necessidades essenciais. A Organi- ça alimentar, alcançando, ao todo, 84,9 mi-
zação das Nações Unidas para a Agricultu- lhões de indivíduos. Quando se comparam
ra e a Alimentação (FAO) definiu, em 2013, os resultados da POF com o PNAD 2013, úl-
uma escala que mede a insegurança ali- tima vez que os dados sobre esse indicador
mentar segundo 3 graus: leve, moderado e foram produzidos pelo IBGE, nota-se que a
grave. Nessa perspectiva, um domicílio que insegurança alimentar sofreu um aumento
é classificado com insegurança alimentar de 62,4% nos domicílios, ou seja, saltou de
leve quando há uma incerteza e uma preo- 22,6% para 36,7%, o equivalente a 25,3 mi-
cupação com o acesso a alimentos futuros. lhões de domicílios. Além disso, a segurança
Já o nível de insegurança alimentar mode- alimentar, segundo a PNAD 2004, alcançava
rado é observado quando tanto a qualidade cerca de 65,1% dos lares brasileiros e quando
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios 2004/2013 e Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018.
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comparado com a POF 2017-2018 percebe- evidenciando uma piora no nível de desi-
-se que esse número cai para 63,3%, pata- gualdade. Além disso, segundo a mesma
mar mais baixo desde a primeira vez em que pesquisa, mais da metade dos domicílios,
os dados foram produzidos. Dessa maneira, cerca de 51,9%, expostos a níveis graves de in-
os elementos discutidos acima traduzem o segurança alimentar são chefiados por mu-
retrocesso no combate à fome no Brasil na lheres, fato que demonstra como o contexto
medida em que, após uma década de avan- de vulnerabilidade social sob a perspectiva
ços, apontam para uma piora nos indicado- das mulheres assume uma gravidade ain-
res de segurança alimentar, alcançando os da maior e pode ser explicado pela hiper-
patamares mais baixos da série histórica. responsabilização das tarefas domésticas e
Importante mencionar que a inse- pelas dificuldades de inserção no mercado
gurança alimentar atinge, diferentemente, de trabalho formal que pode estar direta-
homens e mulheres e também brancos e mente correlacionado com a discriminação
negros: esta situação de extrema vulnera- no mercado de trabalho e/ou baixo nível de
bilidade é ampliada pelas condições de gê- empregabilidade. Adicionalmente, o gráfico
nero e raça. Nessa perspectiva, o gráfico 6 7 aponta para a situação de segurança ali-
ilustra a prevalência de segurança e insegu- mentar e insegurança alimentar, segundo o
rança alimentar segundo o sexo da pessoa recorte por cor ou raça, e observa-se que os
de referência e nota-se que a desigualdade lares em condição de segurança alimentar
de gênero no acesso aos alimentos cresceu são predominantemente famílias brancas,
bastante de 2013 a 2018. Segundo a PNAD com cerca de 51,5%. A medida em que o grau
2013, cerca de 9,3% dos lares com insegu- de insegurança alimentar aumenta, au-
rança alimentar moderada ou grave eram menta também a predominância de famí-
chefiados por mulheres, contrastando com lias chefiadas por pessoas pretas e pardas,
6,9% dos lares chefiados por homens. Já chegando a 15,8% e 58,1%, respectivamente,
na POF 2017-2018, esse percentual aumen- para a prevalência da insegurança alimentar
ta para 15,3%, enquanto nos lares chefia- grave, demonstrando como a insegurança
dos por homens aponta para apenas 10,8%,
Gráfico 6: Prevalência de segurança alimentar e de insegurança alimentar moderada ou grave, em
domicílios particulares, segundo o sexo da pessoa de referência - Brasil - 2013/2018
Gráfico 7: Situação de Segurança Alimentar e Insegurança Alimentar segundo cor ou raça (em %)
alimentar atinge os pretos e pardos de for- importante para se analisar o cenário atual
ma muito mais intensa do que os brancos. dos programas sociais e do sistema de pro-
Parte da explicação para o retrocesso teção social do Brasil. Nesse contexto, para
descrito acima reside na forte recessão eco- fins de análise, vamos investigar esse indi-
nômica que o Brasil enf rentou nos últimos cador através da linha absoluta de pobreza,
anos, resultando no aumento do número de isto é, utilizando o conceito de incidência da
desempregados e de desalentados. Contu- pobreza e que está relacionado com a insu-
do, várias decisões de natureza política to- ficiência de renda e com a proporção da po-
madas pelos governos, principalmente nos pulação com rendimento abaixo de um nível
últimos 4 anos, também explicam os resul- estabelecido. Em outras palavras, a pobre-
tados negativos referentes à garantia do za absoluta classifica os indivíduos a partir
acesso à alimentação. Um exemplo de tais da insuficiência de renda para a satisfação
decisões é evidenciado na extinção do Con- mínima das necessidades básicas de sobre-
selho Nacional de Segurança Alimentar e vivência e, nesse sentido, são classificados
Nutricional (CONSEA), importante esfera de como pobres todos os sujeitos cuja renda
articulação entre a sociedade civil e o gover- não é suficiente para a sua sobrevivência. A
no e que tinha como principal objetivo guiar pobreza extrema utiliza também uma linha
as políticas públicas nessa área. A extinção monetária para identificar as famílias e in-
desse conselho resultou em um estrangu- divíduos que se encontram em situação de
lamento de recursos em projetos estratégi- miséria, com renda insuficiente para pro-
cos de combate à fome, como o Programa ver até mesmo uma alimentação mínima.
de Aquisição de Alimentos da Agricultura Entre 2001 e 2011, o Brasil vivenciou
Alimentar (PAA) e o Programa de Cisternas. uma melhora na série histórica da Pes-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios
3.2 Pobreza (PNAD) referente à renda média das fa-
De todos os indicadores discutidos mílias e um recuo expressivo das taxas de
neste boletim, provavelmente a pobre- pobreza e de extrema pobreza. Importan-
za seja o mais complexo e também o mais te ressaltar que o investimento público na
oferta de proteção gerou não apenas uma
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importantes como uma rede mínima de Deputados, assim como no início de 2020 o
proteção. Dito de outra maneira, nota-se Programa Bolsa Família sofreu um corte de
que esses programas sociais não foram su- 158.452 famílias, a maioria localizada na Re-
ficientes para mitigar o estrago causado no gião Nordeste, corte esse que foi suspenso
mercado de trabalho pela recessão de 2014. pelo Supremo Tribunal Federal (STF) duran-
Entretanto, mesmo ainda insuficientes, tais te a pandemia (XAVIER, 2019; BRITO, 2020).
benefícios estão sendo alvos de diversos
3.3 Desigualdade de renda
cortes orçamentários pelos últimos gover-
nos (BARBOSA, SOARES E SOUZA, 2020). Quanto à desigualdade de renda, os
Uma narrativa que busca explicar o números são ainda mais claros para de-
recrudescimento da pobreza nos últimos monstrar os efeitos do desmonte das políti-
anos afirma a centralidade explicativa da cas de proteção social. O gráfico 9 expõe a
crise econômica internacional de 2008, que trajetória do coeficiente de Gini, importante
teria chegado no Brasil com força a partir medida de desigualdade que varia entre 0
de 2014, marcando essa inflexão. Mas nossa (perfeita igualdade) e 1 (perfeita iniquidade),
hipótese é a de que a crise econômica não para o período de 2012 a 2018 e percebe-se
é suficiente para explicar tais retrocessos; a que o índice em questão vinha de uma ten-
explicação tem que levar em conta a forte dência de queda, mas que essa tendência
política de austeridade fiscal adotada pelos foi interrompida em 2015, com o Índice de
últimos governos, que limita os gastos so- Gini saltando de 0,525 em 2015 para 0,538.
ciais e promove cortes em áreas estratégicas Traduzindo esse índice para outra medida,
da rede de proteção social, alinhados com tem-se que do final de 2014 até o segundo
representações e visões residuais da prote- trimestre de 2019, o rendimento dos 50%
ção e da assistência social. Por exemplo, a mais pobres da população diminuiu 17%,
Emenda Constitucional n° 103/2019, conhe- a dos 10% mais ricos 3% e a dos 1% mais ri-
cida como Reforma da Previdência, che- cos aumentou cerca de 10% (NERI, 2019).
gou a debater o fim do Benef ício de Pres- A partir dos dados acima, fica eviden-
tação Continuada, mas voltou atrás após te que 2015 foi um divisor de águas e que
uma acalorada discussão na Câmara dos a recessão de 2014 impactou os pobres de
Gráfico 9: Coeficiente de Gini para a renda domiciliar per capita (2012-2019) - Brasil
o fosso das distâncias entre ricos e pobres Os dados aqui inseridos demons-
no mundo e no país. Embora a pandemia tram, sem dúvida, o encolhimento dos dis-
nos conecte com a nossa vulnerabilida- positivos de proteção ao mesmo tempo
de mais básica, ao adoecimento e à morte, em que se tem a ampliação da pobreza e
essa vulnerabilidade está marcada também da desigualdade. Tem-se uma redução da
pela cunha da desigualdade. Além disso, cobertura do principal programa de trans-
ficou mais evidente a centralidade do Es- ferência de renda do país simultaneamen-
tado para garantir proteção aos cidadãos te à deterioração das condições de vida da
diante de um evento de risco tão drásti- população brasileira e ao retorno da fome,
co quanto uma pandemia, que nos amea- limiar básico da reprodução humana. Não
ça a todos, mas cuja incidência, letalidade apenas na política de assistência, mas
e consequências variam de acordo com a também nos demais pilares da proteção
renda, território, gênero e cor da população. social, como na reforma trabalhista, tem-
O auxílio emergencial veio como -se evidências da desestruturação e enfra-
uma medida de proteção e foi responsável quecimento das políticas voltadas para a
pela contenção da pobreza durante o ano promoção, afinal, da justiça social no país.
de 2020, como vários estudos apontaram O grande desafio é não apenas manter
(BARBOSA, PRATES, 2020). Entretanto, o de- viva a chama do compromisso com a demo-
bate sobre o tema tem mostrado a neces- cracia e com a concepção de direitos, mas
sidade de um dispositivo de proteção mais também adotar uma concepção ousada de
permanente, que possa viabilizar uma ren- proteção, alinhada com uma perspectiva de
da básica a todos os cidadãos e cidadãs, de proteção social transformadora (DEVEREUX
caráter universal e incondicional e articula- & SABATES-WHEELER, 2004), que coloca ên-
do aos demais programas e dispositivos de fase no potencial da proteção social contri-
proteção social, de caráter não monetário. buir para o crescimento econômico. Nesse
Um sistema de saúde público e uni- sentido, a proteção social não é vista apenas
versal e serviços socioassistenciais voltados como uma medida paliativa de curto prazo e,
para prevenção, proteção e promoção so- em geral, adotada ex-post para amenizar as
cial, juntamente com políticas contributi- desigualdades geradas pelo próprio proces-
vas e regulatórias no campo do trabalho e so de crescimento econômico, mas também
previdência social constituem os alicerces como um importante componente do pró-
da concepção de seguridade social que está prio processo de crescimento econômico.
na Constituição Federal e que forjou a uto- Ao alterar hierarquias e relações desiguais, a
pia democrática dos anos 80 do século 20. proteção social pode contribuir para a trans-
O debate sério sobre os rumos das po- formação social, o que irá reduzir as vulne-
líticas de proteção social no país exige que rabilidades econômicas. Se o argumento
políticas de renda básica e outros dispositi- ético ou a dimensão normativa de justiça
vos de proteção social e de políticas públicas, não for suficiente para mobilizar corações
como os serviços socioassistenciais e os ins- e mentes na defesa da proteção social no
trumentos de justiça tributária, sejam consi- Brasil, que esta defesa seja então por razões
derados em relação entre si, de forma inte- mais comezinhas e pragmáticas, para favo-
grada, coordenada e embasada, sobretudo, recer o desenvolvimento econômico e viabi-
por concepções densas de justiça, como de- lizar as condições básicas da solidariedade,
nomina Kerstenetzky (2006), que fornecem coesão e manutenção do tecido social, sob
as bases normativas a partir das quais são pena do seu esgarçamento e da barbárie.
construídas as arquiteturas de proteção social.
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