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A forma escolar da tortura, Rubem Alves

Eu fui vítima dele. Por causa dele, odiei a escola. Nas minhas caminhadas passadas, eu o via
diariamente. Naquela adolescente gorda de rosto inexpressivo que caminhava olhando para o
chão. E naquela outra, magricela, sem seios, desengonçada, que ia sozinha para a escola. Havia
grupos de meninos e meninas que iam alegremente, tagarelando, se exibindo, pelo mesmo
caminho. Mas eles não convidavam nem a gorda nem a magricela. "Bullying" é o nome dele.
Dediquei-me a escrever sobre os sofrimentos a que crianças e adolescentes são submetidos
em virtude dos absurdos das práticas escolares, mas nunca pensei sobre as dores que alunos
infligem a colegas seus. Talvez eu preferisse ficar na ilusão de que todos os jovens são vítimas.
Não são. Crianças e adolescentes podem ser cruéis.

Dediquei-me a escrever sobre os


sofrimentos a que crianças e
adolescentes são submetidos em
virtude dos absurdos das práticas
escolares, mas nunca pensei
sobre as dores que alunos
infligem a colegas seus

"Bullying." Fica o nome em inglês porque não se encontrou palavra em nossa língua que
seja capaz de dizer o que "bullying" diz. "Bully" é o valentão: um menino que, por sua força e
sua alma deformada pelo sadismo, tem prazer em bater nos mais fracos e intimidá-los.
Vez por outra, crianças e adolescentes têm desentendimentos e brigam. São brigas que têm uma
razão. São acidentes. Acontecem e pronto. Não é possível fazer uma sociologia dessas brigas.
Depois delas, os briguentos podem fazer as pazes e se tornar amigos de novo. Isso nada tem
a ver com "bullying". No "bullying", um indivíduo -o valentão- ou um grupo escolhe a vítima
que vai ser seu "saco de pancadas". A razão? Nenhuma. Sadismo. Eles "não vão com a cara" da
vítima. É preciso que a vítima seja fraca, que não saiba se defender. Se ela fosse forte e soubesse
se defender, a brincadeira não teria graça.
A vítima é uma peteca: todos batem nela e ela vai de um lado para outro sem reagir. Pode-se
fazer uma sociologia do "bullying" porque ele envolve muitas pessoas e tem continuidade no
tempo. A cada novo dia, ao se preparar para a escola, a vítima sabe o que a aguarda.
Até agora, tenho usado o artigo masculino, mas o "bullying" não é monopólio dos meninos.
As meninas também usam outros tipos de força que não a dos punhos. E o terrível é que a vítima
sabe que não há jeito de fugir. Ela não conta aos pais, por vergonha e medo. Não conta aos
professores porque sabe que isso só poderá tornar ainda pior a violência dos colegas. Ela está
condenada à solidão. E ao medo acrescenta-se o ódio. A vítima sonha com vingança. Deseja que
seus algozes morram. Vez por outra, ela toma providências para ver seu sonho realizado. As
armas podem torná-la forte. Na maioria dos casos, o "bullying" não se manifesta por meio de
agressão física, mas por meio de agressão verbal e de atitudes. Isolamento, caçoada, apelidos.
Aprendemos com os animais. Um ratinho preso numa gaiola absorve a informação
rapidamente. Uma alavanca lhe dá comida. Outra alavanca produz choques. Depois de dois
choques, o ratinho não mais tocará a alavanca que produz choques. Mas tocará a alavanca da
comida sempre que tiver fome. As experiências de dor produzem afastamento. O ratinho
continuará a não tocar a alavanca que produz choque ainda que os psicólogos que fazem o
experimento tenham desligado o choque e tenham ligado a alavanca à comida.
Experiências de dor bloqueiam o desejo de explorar. O fato é que o mundo do ratinho ficou
ordenado. Ele sabe o que fazer. Imaginem, agora, que uns psicólogos sádicos resolvam submeter
o ratinho a uma experiência de horror: ele levará choques em lugares e momentos imprevistos
ainda que não toque em nada. O ratinho está perdido. Ele não tem formas de organizar o seu
mundo. Não há nada que ele possa fazer. Seus desejos, imagino, seriam dois. Primeiro: destruir
a gaiola, se pudesse, e fugir. Isso não sendo possível, ele optaria pelo suicídio. Edimar era um
jovem tímido de 18 anos que vivia na cidade de Taiúva, no Estado de São Paulo. Seus colegas
fizeram-no motivo de chacota porque ele era muito gordo. Puseram-lhe os apelidos de "gordo",
"mongolóide", "elefante cor-de-rosa" e "vinagrão", por tomar vinagre de maçã todos os dias, no
seu esforço para emagrecer. No dia 27 de janeiro de 2003, ele entrou na escola armado e atirou
contra seis alunos, uma professora e o zelador, matando-se a seguir.
Luis Antônio era um garoto de 11 anos. Mudando-se de Natal para Recife por causa do seu
sotaque, passou a ser objeto da violência de colegas. Batiam nele, empurravam-no, davam-lhe
murros e chutes. Na manhã do dia fatídico, antes do início das aulas, apanhou de alguns meninos
que o ameaçaram com a "hora da saída". Por volta das 10h30, saiu correndo da escola e nunca
mais foi visto. Um corpo com características semelhantes ao dele, em estado de putrefação, foi
conduzido ao IML (Instituto Médico Legal) para perícia.
Achei que seria próprio falar sobre o "bullying" na seqüência do meu artigo sobre o tato que se
iniciou com: "O tato é o sentido que marca, no corpo, a divisa entre os deuses Eros, do amor, e
Tânatos, da morte. É por meio do tato que o amor se realiza. É no lugar do tato que a tortura
acontece". O "bullying" é a forma escolar da tortura.

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