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Sete aulas de

L.S. Vigotski
sobre os fundamentos da
Pedologia

Zoia Prestes e Elizabeth Tunes (org.)

Rio de Janeiro, 2018

© Zoia Prestes e Elizabeth Tunes (org.) /E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2017.
Todos os direitos reservados a Zoia Prestes e Elizabeth Tunes (org.) /E-papers Serviços Editoriais Ltda. É
proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos
editores.
Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-570-9

Traduzido do original russo: L. S. Vigotski. Lektsii po pedologuii. Ijevsk: Izdatelskii dom “Udmurski univer
sitet”, 2001. p. 9-150.
Tradução: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes, Cláudia da Costa Guimarães Santana
Revisão: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes e Lucília Ruy
A foto da capa é de L. S. Vigotski aos 4 anos de idade em Gomel (Bielorussia) gentilmente cedida por
Elena Kravtsova, neta de L. S. Vigotski.

Revisão
Rodrigo Reis

Diagramação
Michelly Batista

Esta publicação encontra-se à venda no site da


Editora E-papers
http://www.e-papers.com.br
E-papers Serviços Editoriais Ltda.
Av. das Américas, 3200, bl. 1, sala 138
Barra da Tijuca – Rio de Janeiro
CEP: 22640-102
Rio de Janeiro, Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

V741s
Vigotski, L. S. (Lev Semionovich), 1896-1934
Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia / L. S. Vigotski ; organização [e
tradução] Zoia Prestes , Elizabeth Tunes ; tradução Cláudia da Costa Guimarães Santana. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : E Papers, 2018.
176 p. : il. ; 21 cm.

Tradução de: Lektsii po pedologuii


Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-570-9

1. Educação de crianças. 2. Psicologia educacional. 3. Educação - Filosofia. I. Tunes, Elisabeth. II.


San tana, Cláudia da Costa Guimarães. III. Título.

18-48970 CDD: 370.1 CDU: 37(01)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Sumário

5 Apresentação
7 O bom, o mau e o feio
7 Um pouco sobre a era de Stalin

10 A crítica encomendada

13 As sete aulas sobre os fundamentos da pedologia de L. S. Vigotski

15 Referências bibliográficas

17 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


17 Primeira aula. O objeto da pedologia

37 Segunda aula. A definição do método da pedologia

56 Terceira aula. O estudo da hereditariedade e do meio na pedologia

73 Quarta aula. O problema do meio na pedologia


92 Quinta aula. Leis gerais do desenvolvimento psicológico da criança

109 Sexta aula. Leis gerais do desenvolvimento físico da criança

129 Sétima aula. As leis do desenvolvimento do sistema nervoso

149 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


149 Nota inicial da edição russa

152 O problema do pensamento e da fala em Vigostki

161 Instrução e desenvolvimento mental da criança na falsa ciência de

Vigotski 168 A metodologia de “investigação de Vigotski”

169 A “lei” de determinação fatalista de predestinação de crianças sob a influência


da hereditariedade e do meio em Vigotski

Apresentação

Este livro contém sete aulas proferidas por Lev Semionovitch Vigotski
ao final da vida. Elas se encontram na primeira parte (“Osnovi pedolo
guii”, Fundamentos de Pedologia) do livro Lektsii po pedologuii (Aulas de
pedologia). A segunda parte do livro, “Problema vozrasta” (O
Problema da Idade), à exceção de três textos,1 compõe o material do
tomo IV das Obras escolhidas de L. S. Vigotski, publicadas na década de
1980 na União Soviética.2 A primeira edição do livro foi publicada na
Rússia em 1996 em homenagem ao centésimo aniversário de
nascimento do autor.
O livro de 1996 (que teve uma segunda edição em 2001) com os
textos das aulas de Vigotski não é a primeira edição. Em 1934, a editora
do Segundo Instituto de Moscou (atual Universidade de Moscou) publi
cou o mesmo material com o título Fundamentos de pedologia, com 211
páginas. No ano seguinte, a primeira parte foi publicada pela editora do
Instituto de Pedagogia de Leningrado no livro Fundamentos de pedolo gia,
com 133 páginas e tiragem de 100 exemplares (LIFANOVA, 1996;
VIGOTSKI, 2001).3 Como é possível observar, as publicações das
obras de Vigotski, mesmo na Rússia, têm sempre uma história que
precisa ser contada antes de nos determos em seu conteúdo.
O material que trazemos ao leitor brasileiro foi traduzido com base
na edição de 2001 e é apenas a primeira parte do livro Lektsii po
pedologuii.
1 “O conceito de idade pedológica”, “A fase negativa da idade de transição” e “O pensamento do
escolar”. Em 2017, este último foi publicado em português em Prestes e Estevam. “Uma aula de
L. S. Vigotski”. Em: Orso, P.; Malanchen, J. e Castanha, A. P. Pedagogia histórico-crítica, educação
e revolução. Campinas: Navegando e Armazém do Ipê, 2017. p. 207-224.
2 Cinco volumes dessa coleção foram traduzidos para o espanhol e publicados pela editora Visor,
de Madri, entre 1991 e 1997. Os seis volumes foram traduzidos para o inglês e publicados entre
1987 e 1999 pela editora Plenum Press (o último volume teve a participação da editora Kluwer
Academic).
3 Infelizmente, não tivemos acesso a essas duas edições.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 5


São textos inéditos em português4 e que compõem a primeira parte,
denominada Fundamentos de Pedologia. Esta é a primeira tradução
para outra língua das sete aulas de Vigotski de acordo com a
bibliografia sistematizada por Vigodskaia e Lifanova (Lev Semionovitch
Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Academia e Smisl,
1996).
Na presente edição, além das sete aulas sobre os fundamentos da
pedologia, de Vigotski, apresentamos também a tradução da brochura
escrita por Eva Izrailevna Rudniova (1898-1988), a quem foi encomen
dada uma crítica às ideias pedológicas do autor. Embora o título do
texto esteja traduzido como “As falsas ideias de L. S. Vigotski na
pedologia”, a tradução literal seria “As deturpações de L. S. Vigotski na
pedologia”. A opção por modificá-lo foi intencional, dado o sentido
dúbio que car rega. Todavia, cabe esclarecer que, em russo, esse duplo
sentido também está presente e pode ter sido intencional da parte da
autora. Seguindo esse texto, recomendamos a leitura da Resolução do
Comitê Central do Partido Comunista da Rússia – dos bolcheviques –
CC do PCR(b) de 4 de julho de 1936: “Sobre as deturpações
pedológicas no sistema do Comissariado do Povo para a Instrução
(Narcompros)”, publicada em português em Prestes (2010, 2012).
Este livro é, sem sombra de dúvida, uma rica fonte para estudiosos
e pesquisadores da teoria histórico-cultural, assim como para
professores e estudantes de diversos campos do saber.
Queremos agradecer a todos os familiares de L.S. Vigotski, em espe cial
a sua neta, Elena Kravtsova, pelo grande apoio e carinho em toda a
nossa jornada de estudos, pesquisas e traduções da obra de seu avô.
Agradecemos também a nossa amiga e companheira Ingrid Fuhr pela
leitura crítica da primeira versão do texto traduzido. Rio de Janeiro,
dezembro de 2017.
As organizadoras.
4 Apenas a quarta aula, “O problema do meio na pedologia”, foi traduzida e publicada pela
Psicologia USP (São Paulo, v. 21, n. 4, p. 681-701, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.
br).

6 Apresentação

O bom, o mau e o
feio Elizabeth

Tunes5 e Zoia Prestes6

Um pouco sobre a era de Stalin


A década de 1930 ficou marcada na história da União Soviética pela con
solidação de um regime que perseguia e matava. Segundo Volkogonov
(2004), o assassinato de Kirov, em 1o de dezembro de 1934, no Instituto
Smolni de Leningrado, foi um marco importante por sinalizar que uma
era sinistra se aproximava. A partir dessa data, o pessoal puniti vo da
NKVD7 aumentou enormemente, rivalizando-se e acabando por
eclipsar os comitês do Partido. Sergei Mironovitch Kirov, bolchevique
e leninista histórico, era um homem simples e de respostas prontas,
considerado por todos como um líder acessível e afável. Era um dos
homens de confiança de Stalin, que o tratava como “meu amigo e ama
do irmão” (VOLKOGONOV, 2004, p. 206). No XVII Congresso do
Partido Comunista, realizado no início de 1934, quando o culto à per
sonalidade de Stalin já era uma realidade, foi ovacionado e aplaudido
por longo tempo. Naquele momento, o triunfo de Stalin fora ofusca do,
principalmente se levarmos em consideração que a eleição para os
cargos mais elevados do Partido não fora muito do gosto do ditador.
Na plenária do Comitê Central, logo após o referido congresso, Kirov
foi eleito membro do Politburo e do Orgburo,8 secretário do Comitê
Central e secretário da organização do Partido em Leningrado. Conta-se
que, logo após o assassinato de Kirov, Stalin se dirigiu a Leningrado e
ele próprio interrogou o assassino, que fora preso. Todos os envolvidos
no

5 Universidade de Brasília (UnB) e Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). 6


Universidade Federal Fluminense.
7 Narodni Komissariat Vnutrenikr Del – Comissariado do Povo de Assuntos Internos. 8
Politburo e Orgburo – Bureau Político e Bureau Organizador.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 7


assassinato e o próprio assassino foram fuzilados. Os chefes da NKVD
de Leningrado foram condenados a penas leves e, posteriormente,
executa dos em 1937, o que levou Kruschiov, bem mais tarde, no XX
Congresso do Partido, a conjecturar sobre a tentativa de encobrir pistas
e ocultar testemunhas que pudessem revelar os verdadeiros mandantes
do crime. Volkogonov (2004) admite não haver informações
suficientes a respeito do caso Kirov. Contudo, conclui que as ordens
não partiram de Trótski, Zinoviev ou Kamenev, como divulgado à
época, e afirma que, pelo “que sabemos de Stalin, por certo houve um
toque seu no evento. A remoção de duas ou três camadas de
testemunhas indiretas leva sua marca regis
trada” (VOLKOGONOV, 2004, p. 209).
O assassinato de Kirov foi um excelente pretexto para a intensifi
cação de perseguições, julgamentos sumários – quando ocorriam – e
execuções. Em vários discursos, Stalin propôs que fossem “liquidados”
– palavra pela qual tinha grande apreço – “a oposição, ou os
remanescentes das classes exploradoras, ou os kulaks, os degenerados,
os agentes duplos, os espiões e terroristas” (VOLKOGONOV, 2004,
p. 212). Com esse pretexto, a grande maioria dos delegados presentes
ao XVII Congresso foram presos, falecendo nas celas ou em campos
de prisioneiros; dos 139 candidatos a membros do Comitê Central
eleitos no congresso, 98 fo
ram presos e fuzilados. Muitos foram participantes ativos da Revolução
de Outubro. “A ‘velha guarda’ leninista foi conscientemente liquidada
porque sabia demais. Stalin queria executivos devotados, funcionários
de uma geração mais nova, pessoas que não conhecessem sua vida
pregressa” (VOLKOGONOV, 2004, p. 213), abolindo a Sociedade dos
Antigos Bolcheviques e a Sociedade dos Ex-presos Políticos. É por
essa razão que Volkogonov (2004, p. 214) declara que “1934 findou
com um trágico presságio. Primeiro, o ‘Congresso dos Vitoriosos’
[início de 1934], de pois, a preparação para o Terror. Teria talvez,
desafiando o calendário histórico, 1937 começado em 1o de dezembro
de 1934?”.
Há, pois, fundamentos para a conjectura partilhada entre estudio
sos da vida e obra de L. S. Vigotski de que se ele não tivesse falecido de
tuberculose na madrugada de 11 de junho de 1934, seria, sem dúvida,
mais um nome na enorme lista de mortos pelas mãos de Stalin no
grande expurgo que ocorreu nos últimos anos da década de 1930,
principal mente se levados em conta os fatos narrados a seguir.
De acordo com Volkogonov (2004), o pensamento de Stalin era
esquemático. Ele costumava “encaixotar” suas ideias, reduzindo-as a

8 O bom, o mau e o feio


formas simples e popularizando-as como pastiches. Não aceitava outra
forma de divulgar suas ideias e, quando isso acontecia, ofendia seus opo
nentes por terem uma “abordagem não marxista”, uma “demonstração
de tendências pequeno-burguesas” ou um “escolasticismo anárquico”
(VOLKOGONOV, 2004, p. 229). Ele tinha consciência de que o ponto
mais fraco de seu intelecto era a impossibilidade de entender o que seria
a dialética. Por isso, envidou esforços no sentido de melhorar seu conhe
cimento filosófico, convidando para seu tutor, em 1925, Jan Sten, um
filósofo bastante conhecido entre os velhos bolcheviques, recomendado
por diretores do Instituto dos Professores Vermelhos. À época, Sten
era subdiretor do Instituto Marx-Engels e, mais tarde, seria executivo
do aparato do Comitê Central, delegado em diversos congressos do
Partido e membro do Comitê Central de Controle (CCC). Como tutor
filo sófico de Stalin, fez um programa de estudo que incluía autores
como Hegel, Kant, Feuerbach, Ficht, Schelling, Plerranov, Kautski e
Bradley. Visitava-o duas vezes por semana em seu apartamento e
procurava lhe esclarecer os conceitos hegelianos de substanciação,
alienação e de iden tidade entre realidade e razão. Stalin se irritava com
a abstração e, por ve zes, perdia a paciência e dirigia a seu tutor
perguntas como: “O que tudo isto tem a ver com a luta de classes?” ou
“Quem emprega toda essa bo bagem na prática?” (VOLKOGONOV,
2004, p. 230). Pacientemente, Sten procurava esclarecer a importância
da filosofia de Hegel para a com preensão das ideias de Marx, mas
Stalin não conseguia compreender as noções básicas daquela filosofia.
Num encontro da Academia Comunista em outubro de 1930, foram
debatidas “as diferenças no front filosófico”. Deborin, Sten, Karev e
Luppol foram considerados culpados por “subes timação da dialética
materialista” e, ao que parece,
[…] tudo o que restou daquelas lições foi a hostilidade ao
professor. Juntamente com N. Karev, I. K. Luppol e com outros
filósofos que eram discípulos do acadêmico A. M. Deborin, Sten foi
declarado um teórico “adulador de Trotsky” e, em 1937, acabou
preso e execu
tado. A mesma sorte parecia destinada a Deborin, que fora muito
ligado a Bukharin no final dos anos 20 e que, em 1930, foi
rotulado por Stalin como “idealista militante menchevique”. No
entanto, ele foi poupado, se bem que proibido de desenvolver
qualquer traba
lho científico ou público (VOLKOGONOV, 2004, p. 230, grifos
nossos).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 9


Em dezembro de 1930, apenas dois meses depois, Stalin fez um
discurso no Instituto de Professores Vermelhos, dirigido por Abraam
Moiseievitch Deborin. Esse discurso ilustra muito bem os modos ver
bais de Stalin e a maneira como ofendia seus oponentes sem examinar
o mérito de suas ideias, apenas desqualificando-os de maneira vil. Esse
pronunciamento se encontra na ata da reunião:
Temos que virar de pernas para o ar e revolver o monte de estrume
que se acumulou na filosofia e nas ciências sociais. Tudo o que foi
escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruído. Sten e Karev
podem ir às favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupilo
de Karev. Sten é um rematado preguiçoso. Só o que sabe fazer é
falar. Karev tem uma cabeça enorme e pavoneia-se por aí como
uma be
xiga inflada. Na minha opinião, Deborin é caso perdido, mas deve
permanecer como editor do periódico [Sob a insígnia do marxismo]
para que tenhamos alguém para derrotar. O conselho editorial
ficará com dois fronts, mas teremos a maioria (apud
VOLKOGONOV, 2004, p. 231).

Como se sabe, Vigotski era próximo de Deborin (ver PRESTES,


2010, 2012) e certamente tinha conhecimento de toda a perseguição
que se desencadearia dali em diante e de que também seria alvo. Em
uma carta endereçada9 ao diretor do Instituto de Pedagogia Guertsen
de Leningrado, Vigotski relatou que fora informado de que seus pontos
de vista teóricos haviam sido qualificados pela Comissão de Depuração
da Psicologia do Instituto de Moscou como idealistas, burgueses e an
timarxistas. Ele argumentou que essa conclusão a respeito de sua teoria
era infundada, que sequer fora ouvido e que seu trabalho, ao contrário,
combatera veementemente certas teorias burguesas e idealistas. Porém,
como se viu posteriormente, ele passou para o rol de personas non gratas
na União Soviética: sofreu uma crítica “encomendada” e suas obras fo
ram classificadas como “proibidas”.
A crítica encomendada
A crítica às ideias de L. S. Vigotski sobre a pedologia foi encomenda da
a Eva Izrailevna Rudniova (1898-1988). Segundo informações a que

9 Provavelmente escrita entre 1932 e 1933.

10 O bom, o mau e o feio


tivemos acesso, ela se formou pela Faculdade de História e Filologia
dos Cursos Superiores para Mulheres na cidade de Odessa e era
professora de história, com mais de cem trabalhos científicos
publicados.
Embora seja referido, no original, como “crítica” às deturpações de
Vigotski na pedologia, o texto de Rudniova se apresenta muito mais
como um amontoado de ofensas pessoais e acusações ao autor do que
como um exame apropriado do mérito de suas ideias e contribuições
teóricas para a ciência da criança. Quando aparentemente se propõe à
análise crítica de formulações do autor, demonstra fragilidade de com
preensão de seus conceitos e muito pouca familiaridade com sua obra,
haja vista a inclusão de Pensamento e fala – considerada a obra-mestra de
Vigotski – como um de seus estudos de pedologia, o que demonstra má
intenção ou total incompreensão da grandeza e genialidade das ideias ali
desenvolvidas e sua incomensurável amplitude, que vai muito além da
ciência da criança, adentrando diversas áreas do conhecimento e
tocando até mesmo em questões de ordem filosófica. Seja por intenção
ou incom preensão, o fato é que esse deslize já demonstra fragilidade
argumen
tativa. O leitor crítico poderá, contudo, verificar por si mesmo outros
exemplos da falta de potência argumentativa após examinar com
atenção as sete aulas de pedologia aqui apresentadas. Nos breves
comentários que se seguem, vamos nos ater a aspectos formais do
texto de Rudniova que nos chamaram atenção pela abundância e
pobreza de estilo.
Já no início, a autora do texto encomendado destaca o fato de
Vigotski ser um dos pilares da pedologia. Por que ele era um dos pilares
dessa ciência? Quem o considerava assim? O sujeito gramatical da frase
não está determinado. Ela também o via desse modo? Ao que parece,
pela frase da autora, as ideias dele tiveram grande repercussão à época.
Restaria saber o porquê. Isso, contudo, não é informado. É bem verda
de que a palavra “pilares” aparece entre aspas, denotando possivelmente
uma ironia da autora-crítica. É apenas o começo; seu texto é repleto de
ironias desse tipo, uma ironia corriqueira, intelectualmente pobre com
finalidades puramente retóricas que visam criar impressões no leitor e
não fazê-lo refletir. A ironia se caracteriza pelo emprego de uma palavra
com sentido oposto ao que ela denota; por isso, seu uso requer inte
ligência. As aspas parecem o recurso de quem não encontrou – talvez
porque não tenha procurado – a melhor palavra. Além dessas ironias
pobres, há uma abundância de adjetivações a respeito de Vigotski e de
sua obra, recurso que também empobrece o estilo. Diríamos que é um

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 11


texto nada substantivo. Sem nos preocuparmos com a precisão, tivemos
a curiosidade de listar qualificações de que lançou mão. A quantidade é
surpreendente: antimarxista; antileninista; reacionário; burguês; visão
tola; visão falsa; ideia cientificamente falsa; tem expressões esquerdistas;
cego; eclético; absurdo; ideias nocivas; idealista/idealista subjetivo; ma
terialista vulgar; tem ponto de vista grosseiro e vulgar; reducionista; me
canicista; metodologicamente/pedagogicamente equivocado; ignorante
em relação aos estudos de Marx e Lenin; teoricamente equivocado; con
trarrevolucionário; formalista; contraditório; teoria artificial e inventada;
anticientífico; dogmático; esquerdista; arquiesquerdista; alimentador de
preconceitos antileninistas; arquirreacionário teórico com inspiração fas
cista; inescrupuloso; incorreto; mentiroso; intelectualmente desonesto;
teoricamente falso; fatalista; “teoria” estapafúrdia; seguidor de
cientistas/ psicólogos burgueses; desvalorizador das grandes conquistas
da Grande Revolução Socialista de Outubro no campo da cultura;
seguidor de es cravos fiéis das classes dos exploradores; causador de
enorme mal para a escola; defensor de ideias radicalmente
contraditórias às indicações dos camaradas Stalin, Kirov e Jdanov;
divulgador acrítico da metodologia burguesa e de psicólogos fascistas;
defensor da predestinação fatalista das crianças em função dos fatores
hereditários; influenciado por autores obscurantistas; “psicologizador”
do meio; defensor da ideia de meio imu tável e da ideia de
superioridade das classes dominantes e retardo dos ex plorados;
defensor da lei biogenética do desenvolvimento; representante da falsa
ciência pedológica; ignorante em relação ao papel do homem na
transformação do meio; defensor da “teoria” espontaneísta
menchevista/ da “teoria” de direita e oportunista de autofluxo;
defensor da “teoria” antileninista de morte gradual da escola.
Algumas qualificações certamente nos escaparam. Contudo, vamos
parar aqui. O que se listou é mais do que suficiente para se constatar
que é um texto escrito bem à moda de Stalin: uma verborreia repleta de
ofensas e acusações pessoais. Há inúmeras incoerências lógicas, contra
dições e distorções das ideias de Vigotski. Vê-se que o rigor, próprio de
um texto acadêmico, está completamente ausente. Não, definitivamente
não é um texto acadêmico. Custa-nos acreditar também que foi escrito
por uma acadêmica com mais de cem publicações científicas. Qualquer
funcionário burocrático do Kremlin com formação de nível colegial e
muita ambição para subir na carreira conseguiria escrever um texto com
tão pouco quilate – se é que há algum – para agradar o chefe supremo.

12 O bom, o mau e o feio


Será que foi, de fato, escrito por Rudniova? Ou será que ela foi volun
tariamente obrigada a assinar o texto elaborado pelo tal funcionário bu
rocrático? Essas conjecturas são perfeitamente justificáveis e
autorizadas pela biografia de Stalin.

As sete aulas sobre os fundamentos


da pedologia de L. S. Vigotski
Os manuscritos que deram origem ao livro de L. S. Vigotski perma
neceram guardados por mais de 60 anos nos arquivos da família de
Serapion Alekseevitch Korotaiev, que, entre 1929 e 1936, foi aluno do
Departamento de Pedologia do Instituto A. I. Guertsen de Leningrado,
onde trabalhava Vigotski, seu orientador. Korotaiev, jovem e ini ciante
professor da Escola Técnica de Aperfeiçoamento Nekrassov de
Leningrado, recebeu das mãos de seu mestre os textos que estavam da
tilografados “em folhas amarelas e cinzas” (VIGOTSKI, 2001, p. 5). O
professor queria ajudar seu aluno.
É sabido que muitos textos de Vigotski foram redigidos e
publicados com base em estenografias de aulas e/ou palestras
proferidas (LURIA, 2001). Muitas vezes, sequer foram revisados por
ele, e vários foram publicados apenas após sua morte. Os textos do
presente livro são um exemplo disso.
Após a morte de Vigotski, o professor C. Z. Katsenboguen
assumiu, em 1934, a orientação da dissertação Desenvolvimento do
pensamento do escolar no processo de resolução de problemas matemáticos, de
Serapion Alekseevitch Korotaiev, finalizada em 1936. Porém, mais uma
tragédia ocorreu. Às vésperas de 1937, C. Z. Katsenboguen foi
declarado inimigo do povo e reprimido. Korotaiev, por sua vez, não
encontrou local para trabalhar e ficou sem o diploma. Ao tentar
recuperar o documento em 1952, soube que não havia sequer registros
do trabalho acadêmico que elaborara e defendera.
É possível perceber uma coerência lógica no desenvolvimento do
conteúdo exposto por L. S. Vigotski em todas as aulas, que, nos manus
critos, estavam apenas numeradas – os títulos, vale ressaltar, foram
dados pela equipe de redatores da edição russa, não pelo autor. A
decisão foi tomada em nome da comodidade do leitor e, como se
afirma na intro dução à edição russa, “não foi uma tarefa difícil, já que,
no início de cada

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 13


aula, ele anunciava e definia com precisão os objetivos de sua
exposição” (VIGOTSKI, 2001, p. 6).
As aulas têm um caráter coloquial, como se fossem conversas entre
ele e seus estudantes. Cada aula tem, no início, a enunciação de seus
objetivos, antecedida, da segunda em diante, de uma síntese do que foi
tratado na aula anterior, procurando-se mostrar como o raciocínio se
segue. No decorrer de cada aula, são apresentados muitos exemplos e
contraexemplos extraídos tanto do cotidiano quanto, principalmente,
de estudos de outros pesquisadores. Esses exemplos são
minuciosamente examinados e dissecados e, em geral, seguidos de
alguns trechos com afir mações teórico-metodológicas e enunciação de
algumas questões-chave, como se ele supusesse as interrogações e
dúvidas que poderiam passar pela mente de seus alunos ou os estivesse
instigando a questionar.
Há uma didática especial que preside o ordenamento de cada aula e
sobre a qual há dois pontos que nos parecem merecer comentário,
ainda que breve. Antes, contudo, cabe esclarecer que não se trata de
uma didática embrutecedora, que visa facilitar a memorização estan
que das definições de cada conceito apresentado. Muito ao contrário,
cada conceito é definido examinando-se suas articulações lógicas com
outros já apresentados e abrindo-se a questão que permite relacioná-lo
aos que estão por vir. Essa estratégia é bastante coerente com as ideias
que expõe, especialmente, no sexto capítulo do livro Pensamiento y ha
bla, “Estudio del desarrollo de los conceptos científicos em la infância”
(VIGOTSKI, 2007): o conhecimento científico se organiza como um
sistema de relações lógicas de coordenação, subordinação e supraorde
nação de conceitos. Esse aspecto parece ser incorporado à sua didática
especial e tudo indica que o que ele pretende com suas aulas é que os es
tudantes apreendam o modo como os conceitos da ciência pedológica
se organizam e não simplesmente memorizem a definição de cada
conceito. Sua intenção parece, coerentemente, que eles compreendam a
estrutura, a organização dos conceitos da ciência pedológica que
propõe. Esse é o primeiro ponto. O segundo diz respeito ao porquê de
esses conceitos se inter-relacionarem de um determinado modo.
Novamente, aqui há con vergência com suas ideias a respeito da relação
teoria e método (ver, espe cialmente, VIGOTSKI, 1997). Para ele,
teoria e método mantêm entre si uma profunda relação. Conforme diz
logo no início da segunda aula,
14 O bom, o mau e o feio
[…] uma vez que cada ciência tem seu objeto de estudo específi
co, logo, para o estudo de qualquer um, é necessário um método
específico. O método é um caminho, um procedimento. Por ser
um procedimento, consequentemente, depende do objetivo para o
qual a ciência orienta-se num determinado campo. Se cada ciência
tem suas atribuições e objetivos específicos, então, é claro que ela
bora também seus métodos de estudos específicos, seus caminhos
de investigação. Assim, pode-se dizer que, da mesma forma que
não existe ciência sem seu objeto, também não existe ciência sem
seu método. O caráter deste é sempre definido pelo caráter do objeto da
ciência (p. 37, grifos nossos).

Assim, subjaz à sua didática especial a intenção de que seus estudan


tes apreendam a ideia de que não há um método único que define o que
é científico – bem ao gosto da visão ocidental contemporânea de
ciência –, mas que há tantos métodos quantos forem os objetos de
estudo da ci ência, isto é, que, na ciência, a teoria, com seus
fundamentos filosóficos, é definidora do método de estudo. Por isso,
em cada uma de suas aulas, ele intercala, regularmente, afirmações
teóricas com questões de método daquela ciência particular.
A pedologia – ciência do desenvolvimento da criança – serviu de
fonte para os estudos no campo da pedagogia e da psicologia que esta
vam germinando na União Soviética após a revolução socialista de
1917. Assim como inúmeros cientistas soviéticos na década de 1920 e
nos anos iniciais da década de 1930, L. S. Vigotski aprofundou os
estudos da pedologia que, junto com outros estudos, fundamentaram
sua concep ção de desenvolvimento humano. Infelizmente, pelas razões
históricas e sociais brevemente apresentadas, a pedologia defendida por
Vigotski, a pedologia científica, não floresceu como poderia, e muitas
outras con tribuições foram impedidas por sua morte prematura e pela
censura e proibição impostas a sua obra ao longo de 20 anos.

Referências bibliográficas
LURIA, A. R. Etapi proidennogo puti. Moscou: Izdatelstvo Moskovskogo Universiteta,
2001. p. 25-46.
PRESTES, Z. R. Quando não é quase a mesma coisa – análise de traduções de L. S.
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Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 15


______. Quando não é quase a mesma coisa – traduções de Lev Semionovitch Vigotski no
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VOLKOGONOV, D. Stalin: triunfo e tragédia. v. 1. Trad. Joubert de Oliveira Brízida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

16 O bom, o mau e o feio

Fundamentos
da Pedologa de
L.S. Vigotski

Primeira aula. O objeto da pedologia10


Hoje, vamos iniciar o curso de pedologia. Nosso curso é propedêutico.
Portanto, deve nos apresentar os principais conceitos dessa disciplina e
a metodologia de investigação da criança, assim como, na clínica, um
curso propedêutico se inicia pela apresentação dos principais conceitos
que abrangem a disciplina e pela metodologia de investigação clínica.
Depois deste curso, deve vir o de pedologia específica ou o das idades,
que deve apresentar a vocês, de forma sistemática, os principais
períodos do desenvolvimento infantil.
Hoje, nossa aula introdutória será dedicada ao esclarecimento de
duas questões: a do objeto e a do método da nossa ciência, ou seja, o
que a pedologia estuda e como faz isso. Essas são as duas principais
questões que devem ser apresentadas hoje, logo no início do nosso
curso.
Antes de tudo, permitam-me iniciar pela primeira questão. O que a
pedologia estuda? Após conhecermos esse objeto de estudo e suas espe
cificidades, então, naturalmente, poderemos chegar à segunda questão.
Como esse objeto deve ser estudado e qual é a especificidade do
método da pedologia em comparação com os métodos de outras
ciências?
Na tradução literal para a língua russa, pedologia significa “ciência
da criança”. Mas como acontece frequentemente, a tradução literal de

10 Os trechos em negrito são do original russo e por isso foram mantidos. As notas de rodapé
estão diferenciadas por: nota da edição russa (N. da E. R.); nota da tradução (N. da T.); nota da
edição brasileira (N. da E. B.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 17


uma denominação da ciência ainda não expressa suficientemente e de
forma precisa o que, desse objeto, é estudado. Podem-se estudar
doenças infantis, patologias das idades infantis, o que, em certo
sentido, também será ciência da criança. Na pedagogia, pode-se estudar
a educação da criança, o que, até certo grau, é ciência da criança.
Pode-se estudar a psi
cologia da criança e isso também será, em certo grau, ciência da criança.
Por isso, desde o início, é preciso estabelecer exatamente o que da
criança é o objeto do estudo pedológico. Portanto, seria mais preciso
dizer que a pedologia é a ciência do desenvolvimento da criança. O
desenvolvimen
to da criança é o objeto direto e imediato da nossa ciência. Ainda
assim, essa definição permanece muito incompleta, porque no mesmo
instante surge uma questão. Está bem. A pedologia é a ci ência do
desenvolvimento da criança. Mas o que é desenvolvimento da criança?
Sem essa explicação, nunca compreenderemos qual é o objeto da
pedologia. Por isso, para a definição desse objeto, permitam-me, vou
me deter em algumas especificidades fundamentais e leis básicas mais
gerais do desenvolvimento infantil. Se assimilarmos essas leis,
saberemos generalizá-las e dizer o que é desenvolvimento infantil.
Então, saberemos também como abordar e estudar a questão do
método da pedologia. A primeira e principal lei que caracteriza o
desenvolvimento infantil – diferentemente de uma série de outros
processos – é que ele possui uma organização muito complexa no
tempo. Como qualquer outro processo, ele é histórico, ou seja,
transcorre no tempo; tem início, tem etapas tem porais determinadas
do seu desenvolvimento e tem fim. Contudo, não está organizado no
tempo de forma que – se é possível dizer assim – o seu ritmo coincida
com o ritmo do tempo; não está organizado de forma que, em cada
intervalo de tempo cronológico, a criança percorra um de terminado
trecho em seu desenvolvimento. Digamos assim: passou um ano e a
criança avançou um tanto no desenvolvimento; no ano seguinte, outro
tanto etc., ou seja, o ritmo do desenvolvimento, a sequência das
etapas que a criança percorre, os prazos que são necessários para que
ela passe cada etapa não coincidem com o ritmo do tempo, não
coincidem com a contagem cronológica do tempo. Isso pode ser
esclarecido com a ajuda de dois exemplos.
Primeiramente, do ponto de vista da astronomia, do tempo crono
lógico, um mês é sempre igual a outro, um ano é sempre igual a outro.
Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento, o valor de cada mês,

18 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


de cada ano é medido pelo lugar que esse mês ocupa no ciclo do
desen volvimento. Por exemplo, vocês sabem que, provavelmente,
durante os primeiros meses de vida, a criança se desenvolve de modo
muito inten so e, em particular, crescem intensamente seu peso e
tamanho. Assim, levando-se em conta o crescimento, o peso, o
aumento da massa corporal e o comprimento, cada mês é uma etapa
muito importante. Durante alguns meses, a criança dobra o seu peso
inicial. Em seguida, se nos deti vermos, digamos, na idade escolar,
veremos que, durante alguns anos, a criança não só não dobra o peso
com o qual ingressou nessa idade, como também esse aumento é
muito insignificante, expressando-se em alguns porcentos, enquanto no
bebê, durante o mesmo período de tempo, ele é igual a 100%.
Agora, imaginem que digam a vocês que uma criança teve um
atraso de três ou seis meses em seu desenvolvimento. Isso é muito ou
pouco? Se for no primeiro ano de vida, isso é muito, mas se ela estiver
em seu 13º ano de vida, isso não acarretará nada de muito sério. Do
ponto de vista da astronomia, cada mês é igual a outro; contudo, isso
perde seu significado no desenvolvimento. O valor de cada mês
depende do ciclo de desenvolvimento em que está contido e do lugar
que ocupa. Dizer que uma criança de dois anos está com um atraso de
um ano em seu desenvolvimento mental significa que é muito e que ela
se diferencia consideravelmente de uma criança real de dois anos.
Dizer, contudo, que um adolescente de 15 anos tem idade mental de
14, ou seja, que está atrasado também um ano, provavelmente
evidencia um atraso extrema mente insignificante.
Novamente, do ponto de vista do desenvolvimento, o valor de cada
intervalo de tempo se define não pela dimensão desse intervalo – um
ano ou cinco anos ou um mês –, mas pelo lugar dele no ciclo de desen
volvimento da criança. Isso está relacionado ao fato de que o tempo e
o conteúdo do desenvolvimento mudam nos diferentes anos de
vida e de desenvolvimento da criança.
O segundo exemplo esclarecerá isso um pouco mais para vocês. Vocês
terão de lidar com ele desde o início na metodologia de inves tigação
pedológica de crianças. Imaginem que encontrem crianças que
nasceram no mesmo dia e na mesma hora. Isso significa que elas são
coetâneas. Agora, imaginem que as estejamos investigando três anos de
pois. Pergunta-se: todas essas crianças, que nasceram no mesmo dia e
na

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 19


mesma hora e viveram em condições mais ou menos semelhantes,
estarão em um mesmo nível de desenvolvimento? Pela certidão de
nascimento,11 elas são coetâneas em relação ao dia e à hora e vocês estão
investigando o seu desenvolvimento. Verifica-se, então, que o
desenvolvimento dessas crianças, que nasceram no mesmo dia e na
mesma hora, não transcorre igualmente, passo a passo, como, por
exemplo, os relógios em que damos corda na mesma hora e que
começam a marcar o tempo juntos, minuto a minuto, coincidindo com
outros relógios. Além disso, se observarmos algumas delas,
comparando-as com seus colegas coetâneos, veremos que, no seu
desenvolvimento, muitas estarão adiantadas, outras, atrasadas e outras,
ainda, se encontrarão no meio. Isso significa que, se observarmos
crianças coetâneas, nascidas no mesmo dia e hora, à medida que se de
senvolvem, apesar de estarem no mesmo período astronômico, com
igual quantidade de anos, meses e dias, conforme a certidão de
nascimento, na verdade, encontram-se em diferentes níveis de
desenvolvimento.
Vamos a um exemplo simples. Como vocês sabem, as crianças co
meçam a falar de modo minimamente compreensível por volta dos dois
anos. Vamos analisar algumas crianças que nasceram no mesmo dia e
na mesma hora e ver o que acontece aos dois anos. Um indicador do
seu modo de falar, aos dois anos, é o surgimento das primeiras orações.
A criança não fala apenas palavras isoladas, mas emprega, pela primeira
vez, uma frase composta. Verifica-se, então, que uma de nossas crian
ças coetâneas empregou a primeira frase composta com um ano e oito
meses; outra, aos dois anos; e uma terceira, aos dois anos e dois meses.
Vocês estão vendo que cada criança atingiu o mesmo nível de desenvol
vimento, um pouco antes, no período esperado ou ainda um pouco
mais tarde. Assim, há a necessidade de determinar a idade
pedológica, ou seja, o nível de desenvolvimento que a criança
realmente atingiu e não a sua idade segundo a certidão de
nascimento. Por exemplo, conforme a certidão, podemos dizer que
todas as crianças têm dois anos? Sim. Pela certidão todas as crianças
têm dois anos. Mas a idade pedológica, ou seja, a idade da fala de uma
delas é de dois anos e quatro meses; a da outra, de dois anos; e a da
terceira, de um ano e 10 meses. O que significa a idade da fala?
Significa o nível real de desenvolvimento que elas atingiram.

11 É comum Vigotski referir-se à “idade do passaporte”. Na Rússia, o passaporte é o documento


de identidade. Existe o passaporte interno, para o território russo, e o estrangeiro, que serve para
as viagens ao exterior. O autor está se referindo, obviamente, ao passaporte interno e à idade das
crianças, que, no Brasil, aparece na certidão de nascimento.

20 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Sobre a terceira, podemos dizer que, embora, pela certidão de nascimen
to, seja uma criança de dois anos, pelo nível do desenvolvimento da fala,
ela é uma criança de um ano e 10 meses. A idade pedológica de sua fala
está atrasada em dois meses em relação à da certidão. Sobre a segunda
criança, posso dizer que a idade da certidão e a pedológica coincidem.
A respeito da primeira criança, posso dizer que a idade pedológica se
antecipou à da certidão em quatro meses. Consequentemente, sempre
que tomamos um grande grupo de crianças, verifica-se que parte delas
adiantou-se no desenvolvimento, enquanto outra parte ficou para trás
em comparação com a idade da certidão. Saber determinar a idade pedo
lógica da criança, ou seja, o nível de desenvolvimento em que se
encontra é um dos principais procedimentos com os quais a pedologia
opera. Ela opera com a idade pedológica da criança e o grau de
divergência, para mais ou para menos, entre essa idade e a da certidão.
Surgem, aqui, duas questões que precisam ser esclarecidas. Vocês
po dem me perguntar: primeiramente, como eu sei que, aos dois anos, a
criança tem que pronunciar a primeira frase? Como eu sei disso? Parto
da premissa de que qualquer criança deve pronunciar a primeira frase
aos dois anos. Por isso, digo que ela se antecipou. Ela tem um ano e
oito meses conforme a certidão de nascimento e, pela fala, tem dois
anos. De que maneira eu comparo? Para isso, tenho a resposta que vou
apresentar detalhadamente no seminário. É exatamente a pedologia
que determi
na a divergência entre a idade da certidão e a pedológica com os assim
denominados padrões ou grandezas-padrão. A grandeza-padrão é uma
grandeza constante, aceita como indicador para – pelo desvio em
relação a ela – julgar o grau de divergência do curso do
desenvolvimento espe
rado em relação ao curso do desenvolvimento real e ao modo como
este transcorreu. Digamos que a grandeza-padrão de temperatura do
nosso corpo seja 37°C e o desvio para mais ou para menos
[represente]12 o grau de aumento ou queda da temperatura.
Como se obtêm esses padrões pedológicos? Eles são obtidos por
meio da investigação estatística de um grande número de
crianças. Estudamos uma grande quantidade de crianças, digamos
100, com here ditariedade saudável, sem doenças graves, normais e em
condições iguais de desenvolvimento. Por exemplo, crianças de creches
de Moscou onde há uma alimentação mais ou menos igual e demais
condições para o

12 No manuscrito lê-se “mede” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 21


desenvolvimento. Verificamos que essas crianças apresentam, em
média, um vestígio da primeira frase aos dois anos. Esta é a grandeza
estatística média que o material apresenta, ou seja, quando a média
estatística da criança apresenta esse vestígio. Comparo cada criança,
separadamente, com essa grandeza estatística média e digo: se, na
pesquisa estatística, uma criança média apresenta esse indicador aos
dois anos e a minha apresentou com um ano e oito meses, então, esta
se desenvolve mais rapidamente do que aquela.
Assim, a pedologia se apoia nesses padrões e grandezas constantes
que caracterizam o desenvolvimento e permitem comparar a idade da
criança segundo a certidão de nascimento com a sua idade real, estabele
cendo os desvios para mais e para menos.
Nos dois exemplos, vimos, então, que o desenvolvimento não trans
corre da mesma forma no tempo, de modo que seu ritmo e velocidade
coincidam com o ritmo do curso do tempo astronômico ou
cronológico. Vimos que, para o crescimento e para o peso, cinco meses
não são a mes ma coisa nos primeiros anos e no 12º ano de vida. Vimos
que, pela certi dão de nascimento, as crianças podem ser coetâneas, mas
podem atingir a idade real em diferentes idades. Então, tanto um
quanto outro exemplo nos convence de que, apesar de acontecer no
tempo, o desenvolvimento não é um processo organizado
temporalmente de modo simples, mas de forma complexa; seu
ritmo não coincide com o ritmo do tempo.
Pergunta-se: como transcorre o desenvolvimento no tempo? A res
posta a isso pode ser dada ainda de forma bem geral. Ele transcorre cí
clica e ritmicamente, de tal forma que, se quisermos simbolizá-lo, numa
superfície plana, com uma linha que se eleva vagarosa e gradualmente,
como se a cada ano transcorresse um intervalo definido de desenvol
vimento, não obteremos uma linha vertical reta, que seria uma repre
sentação equivocada. Se quisermos acompanhar o desenvolvimento de
qualquer particularidade da criança – digamos, como ocorre o aumento
do peso, o crescimento em altura, o desenvolvimento da fala –, teremos
sempre que mostrar uma linha ondulada que segue em elevações,
quedas e se move para cima, ou seja, se desenvolve em ciclos. O
tempo desse desenvolvimento não é uma constante. Períodos de
elevações intensas se alternam com períodos de desaceleração, de
retração. O desenvolvi mento se apresenta sob a forma de uma série de
ciclos distintos, uma série de épocas distintas, de períodos distintos,
dentro dos quais o tempo

22 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


e o conteúdo se manifestam diferentemente. É claro que, se qualquer
alteração no desenvolvimento da criança ocorrer num período em que
se espera uma elevação, isso tem um sentido. Contudo, se essa alteração
ocorrer quando se esperava um leve declínio e não uma elevação, então
o sentido é outro. Por exemplo, suponham que, no último ano, uma
crian
ça tenha ganho pouco ou nenhum peso. Isso é muito ruim se acontecer
no momento em que deveria se dar o desenvolvimento real,
fazendo-nos pensar por que essa criança não ganhou peso quando
todas, nessa idade, o ganham abruptamente. Suponhamos que, em
outro momento, ela não tenha ganho peso. Isso não me preocuparia
porque ela estaria num perí
odo em que o ganho de peso deve ser reduzido. No desenvolvimento, o
significado de cada mudança e de cada acontecimento isolado se define
pelo ciclo a que estão relacionados.
Esses ciclos, essas ondas são observadas tanto em relação a
diferen tes aspectos do desenvolvimento, digamos, do
crescimento, do peso, da fala, do desenvolvimento mental, da
memória, da atenção etc., quanto em relação ao desenvolvimento
como um todo. Se quisermos apresen tar um quadro geral do
desenvolvimento da criança, teremos uma linha ondulada. Esses
ciclos isolados do desenvolvimento tomados juntos são
chamados idades. A idade nada mais é do que um determinado
ciclo de desenvolvimento fechado, separado dos outros ciclos,
que se diferencia por seus tempos e conteúdos específicos. Se
tomarmos as principais ida des infantis, veremos também que elas, por
sua duração, não coincidem umas com as outras. Por exemplo, a
primeira idade – a do recém-nascido – dura aproximadamente um mês,
e, apesar disso, é uma idade completa.
A idade seguinte é a do bebê, e dura aproximadamente nove ou 10
meses; a seguinte, até dois anos; a próxima – a idade pré-escolar –,
quase quatro anos. Estão vendo como uma idade dura quatro anos e
outra, nove meses? Isso significa que os ciclos das idades não
coincidem e não são distribuídos no tempo de um modo simples tal
que, em determina
dos interstícios de tempo, o desenvolvimento percorra também deter
minados intervalos do seu caminho. Assim, essa é a primeira lei ou a
primeira especificidade do desenvolvimento infantil; é esse o
processo que transcorre no tempo, mas o faz ciclicamente.
Agora, o segundo postulado que está relacionado a isso e que per
mitirá esclarecer mais profundamente as características do desenvolvi
mento infantil é a segunda especificidade, que normalmente
carrega

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 23


a denominação de desproporcionalidade ou irregularidade. A
criança é um ser muito complexo. Todos os seus aspectos se
desenvolvem, mas a segunda lei diz que particularidades isoladas
não se desenvolvem de modo regular e proporcional. Por exemplo,
nunca ocorre que partes do corpo de uma criança, digamos, a cabeça,
as pernas e o tronco, cresçam de forma igual. Numa certa idade,
podemos observar um crescimento grande das pernas, mas bem menor
do tronco e da cabeça. Assim, nunca ocorre que os sistemas orgânicos,
os órgãos, por exemplo, os sistemas muscular, nervoso e digestivo,
cresçam regularmente. Em cada perío do, sempre um dos sistemas
cresce mais e outros, relativamente, menos e mais devagar. No bebê,
num determinado período, veremos um de
senvolvimento rápido e intenso dos sistemas nervoso e digestivo e um
relativamente mais vagaroso do sistema muscular. Dessa forma, alguns
sistemas e diferentes órgãos também não crescerão proporcionalmente.
Alguns aspectos do desenvolvimento da criança, digamos o
crescimento em altura e seu desenvolvimento mental, guardam relação
entre si. Mas nunca vamos observar uma relação direta, regular,
proporcional entre o desenvolvimento, digamos, do comprimento do
corpo e da ampli tude da mente. Não temos, aqui, um movimento
direto e regular. Na vida mental da criança, num determinado período
de desenvolvimento, nunca ocorre que, digamos, sua percepção, sua
memória, sua atenção, seu pensamento se desenvolvam de forma
completamente regular e por igual. Sempre algum aspecto de sua vida
mental se desenvolve mais rapi
damente e outros, mais devagar.
Isso significa, então, que o desenvolvimento jamais acontece de
modo proporcional e regular em relação ao organismo infantil como
um todo e à personalidade da criança. Isso nos leva a duas conclusões
muito importantes das quais decorrem, digamos assim, algumas leis.
A primeira delas pode ser formulada da seguinte forma: já que o
desenvolvimento não transcorre regular e proporcionalmente, então,
em cada novo degrau, ocorre não apenas o aumento de partes do
corpo ou de funções, mas altera-se a correlação entre elas. Se, por
exemplo, em um dado período, na criança, crescem irregularmente a
cabeça, as per
nas, o tronco, isso resultará no fato de que as proporções do seu
corpo também serão alteradas. Digamos que tenham transcorridos
três anos e as pernas cresceram mais aceleradamente que a cabeça. O
que acontece rá? Toda a estrutura do corpo será diferente, será outra.
Anteriormente,

24 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


a criança tinha pernas curtas e cabeça grande. Agora, aparece de pernas
compridas e cabeça pequena.
Uma vez que algumas funções e aspectos do organismo crescem ir
regularmente, então, em cada degrau determinado, ocorre não apenas
um maior ou menor crescimento de aspectos isolados, mas também a
reestruturação, o reagrupamento das relações entre as diferentes particu
laridades do organismo, ou seja, a própria estrutura do organismo e
da personalidade muda em cada novo degrau. Este é o primeiro
postulado.
O segundo consiste no fato de que existem algumas leis
básicas que mostram que, em cada idade, determinadas
particularidades da vida orgânica da criança e de sua
personalidade parecem se deslocar para o centro do
desenvolvimento, crescem muito e rapidamente. Antes e depois
disso, elas crescem bem mais devagar e, como se diz, se deslo
cam para a periferia do desenvolvimento. Isso significa que, no desen
volvimento da criança, cada particularidade tem seu período
propício para se desenvolver, ou seja, existe um período em que ela se
desenvolve otimamente.
Digamos que o desenvolvimento da marcha da criança seja mais in
tenso por volta de um ano de vida, podendo começar um pouco antes
e terminar um pouco mais tarde. Assim, é possível dizer que a marcha
se desenvolve intensamente a partir do final do primeiro ano de vida até
o final do segundo ano. Até esse período, desenvolve-se a marcha, ou
melhor, as condições prévias para a marcha. Podemos predizer como
essa criança andará aos seis meses de vida dependendo do que
observamos na formação do esqueleto, da musculatura e da
motricidade de suas pernas. Mas não é possível dizer que, no primeiro
ano de vida, a marcha se de
senvolve tão vigorosamente quanto no segundo. Mais tarde, observare
mos o desenvolvimento do modo de caminhar. Vamos admitir que um
escolar ande melhor que um pré-escolar. Então, seria possível dizer que
a marcha se desenvolve com tanto vigor quanto no primeiro período?
Não. Isso significa que, se tomarmos como exemplo a marcha, veremos
que, num determinado período, concentram-se os acontecimentos mais
importantes no desenvolvimento dessa função. Antes disso, ocorre a
pre paração; depois, vem o aperfeiçoamento. Todavia, tanto a
preparação quanto o aperfeiçoamento são bem mais vagarosos e
empobrecidos do que o cerne do desenvolvimento.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 25


Tomemos como exemplo a fala. Quando se desenvolve a fala? De
novo, aproximadamente entre um ano e meio, três, quatro, cinco anos,
quando a criança normalmente começa a dominar todas as formas bá
sicas da língua materna. A fala se desenvolve antes como balbucio? Sim.
Continua a se desenvolver mais tarde, depois dos cinco? Sim. Mas nem
antes nem depois dessa idade se desenvolve como um turbilhão, de
modo tão intenso, e faz avanços tão importantes. O principal período
em que a fala está no centro do desenvolvimento abrange exatamente
essa faixa etária.
Dessa forma, vemos que cada função tem o seu período
preferencial ou propício de desenvolvimento e, nesse período, uma
determinada fun ção passa para o primeiro plano. Transcorrido o ciclo
correspondente de desenvolvimento, desloca-se para o segundo, e
outra função se apresenta no primeiro plano.
Dessa forma, a desproporcionalidade do desenvolvimento
permite concluir que lidamos com o desenvolvimento que não
conduz apenas ao aumento de aspectos quantitativos das
especificidades da criança. Conduz também à reestruturação das
relações entre diferentes parti
cularidades de desenvolvimento, sendo que cada idade se diferencia de
outra por seu conteúdo de desenvolvimento. Numa determinada idade,
algumas funções se apresentam em primeiro plano e outras, na
periferia; na idade seguinte, outras funções, que estavam na periferia,
passarão ao primeiro plano e as que estavam no centro, para a periferia.
Em particular, essa é a lei de acordo com a qual as funções mais
importantes amadurecem antes. Por exemplo, a percepção se
desenvolve antes da memória. Isso é bem compreensível para nós
porque a percep ção é requisito, é uma função bem mais importante. A
memória pode surgir quando a criança já sabe perceber. A memória e a
percepção se desenvolvem antes do pensamento. O que vocês acham:
o que se desen volve antes, a orientação no espaço ou no tempo? A
orientação no espaço se desenvolve antes. Ela é um requisito, é uma
função básica. Logo, há regularidades nessa sucessão das funções.
Algumas funções amadure cem antes, outras mais tarde. Para que
comecem a amadurecer, algumas têm outras como requisitos etc.
Consequentemente, essa desproporcio nalidade, essa irregularidade de
tempos e do conteúdo do desenvolvi mento em diferentes ciclos
determina que, entre os diversos aspectos do desenvolvimento
durante os ciclos, há uma relação complexa e regular.

26 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


As funções se apresentam umas antes e outras mais tarde, e a ordem
não é casual, mas conforma-se à lei da relação interna que mantêm
entre si. Desvendamos agora que, na primeira lei (sobre o
desenvolvimento cíclico infantil) e na segunda (sobre a
desproporcionalidade ou irregu laridade do desenvolvimento de
diferentes particularidades), o processo de desenvolvimento tem uma
estrutura extremamente complexa, uma organização muito complexa e
um curso no tempo também complexo. Isso significa, então, que
existem leis para essa estrutura complexa, esse curso complexo? Elas
devem existir. Desvendar como atuam essas leis em cada caso
separadamente é ou não importante do ponto de vista prático? É
importante. Consequentemente, deve existir uma ciência que estude as
leis do desenvolvimento e saiba aplicá-las na solução de uma série de
tarefas práticas.
Tentarei relatar como a ciência estuda essas leis e resolve as tarefas
práticas, mas antes falarei de duas especificidades básicas, duas leis fun
damentais do desenvolvimento infantil.
A lei do desenvolvimento infantil consiste em que nem sempre ob
servamos processos apenas progressivos, que seguem em frente,
mas também um desenvolvimento reverso de especificidades ou
de aspectos próprios da criança numa etapa inicial. Normalmente,
essa lei é formu lada de modo que qualquer evolução no
desenvolvimento infantil seja também uma involução, isto é, um
desenvolvimento reverso. É como se os processos de
desenvolvimento reverso ou inverso estivessem en trelaçados no
curso da evolução da criança.
Por exemplo, a criança que aprende a falar para de balbuciar. E não
apenas isso. Como mostra a investigação, a criança falante, mesmo se
quisesse ou se pedíssemos a ela, não conseguiria reproduzir seu
balbucio, aqueles sons que produzia em forma de balbucio. Na criança
que está de
senvolvendo os interesses escolares, as formas de pensamento próprias
ao escolar apagam os interesses da idade pré-escolar, apagam as
especificida des do pensamento próprias da idade pré-escolar. Ocorre
um desenvolvi mento reverso das particularidades que dominavam
anteriormente. Por exemplo, o desenvolvimento psicossexual da
criança. Em cada estágio, a criança tem uma determinada organização
ou estrutura da sua psicosse xualidade. Na passagem para o degrau
seguinte de desenvolvimento, não apenas surge uma nova estrutura ou
organização da sexualidade infantil, mas os traços principais que
caracterizavam a estrutura anterior se sub metem a um
desenvolvimento reverso.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 27


Isso, é claro, não deve ser compreendido no sentido mecânico de
que cada passo à frente está sempre ligado à simples anulação do que
havia antes. Existem relações muito íntimas entre os processos de
involução e os de evolução; há uma dependência íntima. Muito do
que predomi
nava antes não morre simplesmente, mas se reestrutura, se insere numa
nova organização superior. Muita coisa morre, entretanto, no sentido
direto dessa palavra. Há uma série de incorreções, de distúrbios do de
senvolvimento infantil denominados infantilismo. Na tradução literal
para o russo, infantilismo significa “infantilidade”. Quando estudamos
em que consiste a essência desse distúrbio do desenvolvimento, nos con
vencemos de que a essência consiste no fato de que foram
atingidos os processos de involução e de que o sistema que, num
desenvolvimen to normal, deveria, na hora certa, passar para
segundo plano não se apagou a tempo e não sofreu um
desenvolvimento reverso. A criança entra na idade seguinte e
adquire traços que são característicos da ida de madura, mas
alguns aspectos conservam sua organização anterior, infantil;
permanece a infantilidade de aspectos no âmbito do sistema
característico de uma criança mais velha.
Finalmente, eis a última das leis do desenvolvimento em que eu gos
taria de me deter para apresentar mais concretamente a ideia do objeto
da pedologia. Normalmente, ela é formulada como a lei da metamor
fose no desenvolvimento infantil. Vocês sabem que metamorfose são
as transformações qualitativas de uma forma em outra. Ela é uma carac
terística do desenvolvimento infantil e não se resume exclusivamente a
mudanças quantitativas ou a um simples crescimento quantitativo, re
presentando um circuito de mudanças e de transformações qualitativas.
Por exemplo, quando a criança passa do engatinhar para o andar, do
balbucio à fala, das formas de pensamento concreto para o abstrato,
para o pensamento verbal, em todos esses casos, não ocorre apenas um
cresci mento ou aumento de uma função anterior da criança, mas uma
trans formação qualitativa de uma forma que se manifestava de outro
modo. Se tentarmos compreender essa expressão convencionando uma
simples imagem, pode-se dizer que o desenvolvimento infantil está
repleto desses exemplos que lembram a transformação do ovo em
lagarta, da lagarta em crisálida, da crisálida em borboleta, ou seja,
lembram a metamorfose biológica que observamos na ontogênese de
alguns animais, mais especi ficamente dos insetos.

28 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Poderíamos, agora, tecer algumas conclusões gerais com base nas
leis do desenvolvimento que apresentei. Parece-me que os resultados po
deriam ser formulados da seguinte forma. Primeiramente, vemos que o
processo de desenvolvimento infantil não é um mero crescimento
quantitativo de determinadas particularidades; não é um
processo que se resume apenas a crescimento ou incremento.
É um processo complexo que inclui, por força [de sua ciclicidade]13 e
de sua desproporcionalidade, a reestruturação das relações entre
seus aspectos, entre diferentes partes do organismo, entre
diferentes funções da personalidade; uma reestruturação que
conduz à mudança toda a personalidade da criança, todo o seu
organismo, em cada novo degrau.
Em seguida, podemos dizer que o processo de desenvolvimento
infantil não se esgota apenas com essa reestruturação, mas inclui um
circuito inteiro de mudanças e transformações qualitativas, de metamor
fose, quando, diante dos nossos olhos, surge uma nova forma que, no
de grau precedente, não existia, apesar de seu surgimento ter sido
preparado pelo desenvolvimento anterior. Surge, agora, claramente
para nós a ideia que, há muito tempo, bem antes da existência da
pedologia científica, Rousseau expressava numa famosa frase que até
hoje se repete e que, por sua essência, é uma frase com a qual se deve
começar qualquer estudo da pedologia. Rousseau dizia que a criança
não é um simples adulto de tamanho pequeno; ela é um ser que
se difere do adulto não apenas porque é menor em tamanho, não
porque pensa de forma menos de senvolvida, digamos, ou por
outras razões. A criança é um ser que se difere do adulto
qualitativamente pela estrutura de todo o organismo e de toda a
personalidade. Por isso, a transformação da criança em adulto não é
um simples crescimento do pequeno adulto que está dado desde o
início, mas o trajeto de uma série de mudanças qualitativas pelas quais
deve passar até atingir certo grau de amadurecimento. A mesma coisa
que Rousseau diz sobre a criança pequena em comparação com o
adulto se aplica também às crianças em diferentes degraus etários.
Assim como a criança não é um adulto em miniatura, o pré-escolar não
é simplesmente um escolar pequeno e o bebê não é um pré-escolar
menor. Ou seja, de novo, a diferença entre certas idades consiste
não simplesmente em que, no degrau inferior, estejam menos
desenvolvidas as especificida
des que se apresentam mais desenvolvidas nos degraus

superiores. A 13 No manuscrito, “ritmo” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 29


diferença consiste no fato de que a idade pré-escolar, a idade
escolar etc., todas elas representam etapas específicas no
desenvolvimento da criança. Em cada uma dessas etapas, a
criança se apresenta como um ser qualitativamente específico
que vive e se desenvolve segundo leis diferentes próprias de cada
idade.
Agora, vamos nos deter brevemente em algumas questões teóricas e
metodológicas relacionadas à compreensão do desenvolvimento
infantil. Provavelmente, vocês entendem que o desenvolvimento
infantil é um processo complexo, sensivelmente organizado e que tem
uma estrutura e regularidades complexas, e que, na discussão teórica do
mesmo, não há consenso entre as diferentes tendências da pedologia.
Como vocês sabem, não existe consenso na compreensão dos
conceitos básicos, assim como sobre a origem da vida, na biologia.
O conceito de vida, na biologia, é motivo para a divisão de todo o
pensamento científico burguês em dois campos – o dos vitalistas e o
dos mecanicistas –, da mesma forma que o de desenvolvimento infantil
pertence a certo número de conceitos básicos que devem ser
esclarecidos do ponto de vista filosófico e teórico geral. Aqui também
não vamos encontrar consenso de pontos de vista entre os
investigadores.
Quais são as principais soluções metodológicas dessa questão sobre
a natureza do desenvolvimento infantil que existem hoje na ciência e
que vocês encontrarão quando estudarem os cientistas que constroem a
pedologia ou que participaram anteriormente de sua elaboração?
Para ser breve e claro, parece-me que podemos dividir as teorias do
desenvolvimento infantil em três grupos.
O primeiro está ligado, de alguma forma, ao que vocês provavelmen te
conhecem da embriologia, mais precisamente da história da embrio
logia e do que costumamos chamar de preformismo. Vocês sabem que
preformismo é o nome de uma teoria que supunha que, no embrião, na
semente a partir da qual se inicia o desenvolvimento embrionário, já
estaria previamente contida a forma futura que deveria surgir no fi nal
do desenvolvimento, só que em tamanhos pequenos. O desenvolvi
mento consistiria apenas no fato de essa forma pequena, microscópica,
aumentar e se desenvolver em uma forma correspondentemente mais
madura. Na tradução para o russo, preformismo significa “a existência
de uma forma anterior”. Vocês sabem que, desse ponto de vista, no
estágio inicial, anterior à embriologia científica, supunha-se que a
semente do

30 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


carvalho continha o futuro carvalho com todas as suas raízes, com
todos os seus galhos, suas folhas, e que o desenvolvimento consistiria
apenas no fato de esse carvalhinho microscópico se transformar num
enorme carvalho.
Admite-se o mesmo (por via especulativa, bem entendido, ainda
que alguns defensores desse ponto de vista afirmem que verificaram
isso experimentalmente) em relação ao embrião humano, que conteria,
já formado, o futuro homem, e que o desenvolvimento embrionário
leva
ria esse homem microscópico a se transformar num recém-nascido. Na
embriologia, essas teorias foram deixadas para trás há muito tempo e
têm apenas um significado histórico. Na pedologia, elas conservam até
hoje um significado atual. Existem, e não são poucos, grandes
cientistas sérios que defendem esses pontos de vista.
Penso que fica claro por que essas teorias fizeram um ninho mais
denso e firme na pedologia do que na embriologia. Pois bem. Essa
teoria é absurda, contradiz muito os fatos e, assim que começou a
elabora ção experimental da embriologia, foi muito fácil demonstrar
que esse é um postulado fantasioso e não corresponde à realidade. Na
pedologia, contudo, isso é mais difícil porque a criança recém-nascida,
por sua apa rência, realmente dá a impressão de um homem quase
formado. Pela estrutura do seu corpo, pela presença de todos os
órgãos, o bebê pare ce um homem pronto e terminado, apenas sem ter
o tamanho de um homem adulto. Por isso, o preformismo foi o que
durou mais tempo e ainda hoje existe na teoria [embriológica]14 ou
pós-embriológica do desenvolvimento.
Como ele se manifesta? Na pedologia, em que consiste essa teoria? Ela
parte do ponto de vista de que tudo que se desenvolve no homem, na
criança tem sua base última em rudimentos hereditários. De algu ma
forma, toda característica, toda particularidade contígua ou distante,
direta ou indiretamente, guarda relação com embriões contidos nas ca
racterísticas hereditárias da criança. Essa teoria supõe que se encontram
nesses embriões as predisposições para o desenvolvimento dos
aspectos que caracterizam um homem desenvolvido e que, como
expressa um de seus principais representantes, o desenvolvimento nada
mais seria do que a realização, a modificação, a combinação dos
elementos do embrião. Todavia, se os embriões vingarão ou não,
dependerá do desenvolvimento.

14 No manuscrito, “extraembriológica” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 31


Se uns vingam e outros não, então o quadro será diferente daquele em
que todos ou os últimos vingam, mas não os primeiros. Em seguida,
como diz esse estudioso, no desenvolvimento, esses embriões se modi
ficam, ou seja, mudam de forma dependendo das condições em que se
desenvolvem, atenuam-se ou intensificam-se e, então, tornam-se mais
flexíveis ou, ao contrário, mais rígidos, mais resistentes, dependendo
das condições em que surgem.
Finalmente, no transcurso do desenvolvimento, eles podem estabe
lecer combinações. Por exemplo, não se pode admitir que, nos rudimen
tos hereditários, haja predisposição para determinar qual das crianças
recém-nascidas será, no futuro, um engenheiro ou o melhor especialista
em datilografia. Isso depende da combinação que há nos embriões. Para
cada atividade seria necessária uma combinação de particularidades. No
desenvolvimento, dependendo de como se combinarão as especificida
des, será verificado que um pode ser o melhor engenheiro e outro, o
pior; um poderá ter mais capacidade para datilógrafo e outro, menos.
Então, isso significa que, desse ponto de vista, tudo está contido pre
viamente nos embriões e o desenvolvimento transcorre apenas, repito,
como realização, modificação e combinação de inclinações neles conti
das previamente.
A inconsistência desse ponto de vista, penso, é muito fácil de
de monstrar, levando em consideração que ele, em geral, nega,
em sua essência, o processo de desenvolvimento, assim como faz
toda teoria ligada à ideia de preformismo. Já que tudo está dado
previamente desde o começo, já que tudo ocorre apenas como uma
realização, modificação e combinação do que já estava dado desde o
início, pergunta-se: o que, em geral, diferencia o processo de
desenvolvimento de todo processo de vida? Por exemplo, um homem
maduro ou cada um de nós. Será que a realização ou não de nossas
capacidades não depende das condições de nossa vida? Será que as
condições de vida não mudam ou não modificam nossas
particularidades? Será que, quando adultos, em alguma atividade, não
combinamos nossas inclinações? Consequentemente, se o desenvol
vimento se resumisse apenas àquilo, então, em geral, o desenvolvimen
to não se diferenciaria do não desenvolvimento nem de qualquer outro
estado.
Pois bem. O que é essencial, o que é mais importante e nos permite
destacar o desenvolvimento como um processo específico entre todos
os

32 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


outros? Penso que vocês concordarão comigo se eu disser que o
aspecto mais importante que faz com que o desenvolvimento seja
desenvolvi mento, que lhe atribui uma qualidade sem a qual não pode
ser chamado de desenvolvimento, é o surgimento do novo. Se, diante
de nós, temos um processo no decorrer do qual não surge nenhuma
nova qualidade, nenhuma nova particularidade, nenhuma nova
formação, então, é cla ro, não podemos falar em desenvolvimento no
sentido próprio dessa palavra.
Vamos tomar como exemplo o desenvolvimento cosmológico, quan
do da nebulosa se formam corpos celestes, sistemas inteiros, digamos o
sistema solar. Por que denominamos isso de desenvolvimento? Porque
ocorreu o surgimento de novos mundos, novos sistemas, novos corpos
celestes que não existiam antes. Por que falamos de desenvolvimento da
terra na geologia? Porque também ocorreu o desenvolvimento de uma
série de formações rochosas novas que não existiam antes. Por que, na
história, falamos de desenvolvimento histórico da humanidade? Porque
surgem novas formas de sociedades humanas nunca existentes na histó
ria. Digamos que, agora, nos encontremos numa das mais grandiosas
rupturas históricas vividas pela humanidade, nos encontremos às véspe
ras de um novo regime social que nunca existiu na história da humani
dade. O que isso significa? Significa admitir que o processo histórico é
desenvolvimento histórico, um processo ininterrupto de surgimento do
novo. Apenas nesse caso podemos falar em desenvolvimento. Do
ponto de vista da teoria que estamos analisando, no desenvol vimento
ocorrem apenas a realização e a modificação do que está dado desde o
início. Em outras palavras, do ponto de vista dessa teoria, não surge
nada novo. Já que é assim, fica evidente que, como já havia dito, es
sencialmente, ela leva à negação de qualquer desenvolvimento. Para ela,
a criança é um pequeno adulto, ou seja, é um ser que, em seu estado em
brionário e em pequenas proporções, já contém o que estará desenvol
vido em proporções maiores no adulto. O desenvolvimento consistiria
apenas no crescimento do que já se encontra, em pequenas proporções,
no embrião, tornando-se maior. Consequentemente, essa teoria leva ine
vitavelmente à negação do próprio desenvolvimento.
Outra teoria, contrária a essa, também não me parece correta e con
siste na ideia de que o desenvolvimento é analisado como um
processo determinado não por suas leis internas, mas como um
processo total e

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 33


externamente determinado pelo meio. Esses pontos de vista se
desenvol veram na ciência burguesa e tiveram lugar na pedologia
soviética durante muito tempo. Supunha-se que a criança era um
produto passivo, resul tado das influências do meio, e, assim, o
desenvolvimento consistiria no fato de a criança absorver, acolher de
fora para dentro particularidades que estão presentes nas pessoas que a
rodeiam. Por exemplo, dizem que o desenvolvimento da fala acontece
porque a criança ouve. Falam em tor no dela, ela começa a imitar e
também a falar. Ela simplesmente assimila, decora a fala. Pergunta-se:
por que ela assimila a fala a partir de um ano e meio até os cinco e não
antes nem mais tarde? Por que ela assimila desse modo e passa por
determinadas etapas? Por que a criança não decora a fala da mesma
forma como se decora uma lição na escola? Essa teoria não pode
oferecer resposta a todas essas perguntas. Desenvolve, contudo, seu
ponto de vista até o fim, analisando a criança não como um adulto em
miniatura (essa ideia pertence à teoria do preformismo), mas como uma
“tábula rasa” – provavelmente, já ouviram essa expressão. Os
pedagogos e os filósofos antigos diziam que a criança é uma “tábula
rasa” – uma folha de papel em branco, uma tabuleta em branco, como
dizem (os romanos escreviam nessa tabuleta branca), em que não está
escrito o que deve ria. Ou seja, a criança seria um produto puramente
passivo que, desde o início, não acrescentaria nada de si, nem teria
quaisquer momentos que determinassem o curso de seu
desenvolvimento. Isto é, ela seria um simples aparato de absorção,
apenas um recipiente que, durante o seu desenvolvimento, seria
preenchido com o que comporá o conteúdo da sua experiência. A
criança seria simplesmente uma marca do meio. Por
via externa, assimila e adquire o que vê nas pessoas ao seu redor. Se a
primeira teoria leva à negação do desenvolvimento porque en sina que
nele tudo está dado desde o início, a segunda também o faz, porque o
substitui pelo simples acúmulo da experiência, pelo simples reflexo das
influências do meio e não pelo processo de movimento inter no da
criança.
Como vemos, de forma semelhante, essas duas teorias levam a um
mesmo resultado. Em sua essência, não resolvem, mas aniquilam o pro
blema do desenvolvimento. Como diziam antigamente, não desatam,
mas cortam o nó. Tanto numa quanto na outra, apesar de uma ver
tudo na criança e negar qualquer influência do meio sobre ela e a ou tra
ver tudo no meio e negar qualquer significado na própria criança, o

34 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


resultado conduz ao mesmo ponto, à negação do desenvolvimento.
Uma o substitui pela realização das inclinações que estão
embrionariamente dadas, e a outra, pelo simples acúmulo da
experiência. Como já disse, lá e cá está ausente o mais importante,
aquilo sem o que não se pode tratar de desenvolvimento. É exatamente
lá e cá que está ausente a ideia de que a base do desenvolvimento é o
surgimento do novo.
Por isso, em geral, o terceiro grupo de teorias – que ainda são elabo
radas por diferentes autores e, em medidas distintas, não estão definiti
vamente purificadas de pontos de vista frequentemente equivocados, to
mados emprestados do primeiro e do segundo grupo –está no
caminho
em que, mais cedo ou mais tarde, a pedologia deverá construir
uma teoria do desenvolvimento realmente correta e
metodologicamente irrefutável.
Já mencionei algumas vezes o que é mais importante para esse ter
ceiro grupo de teorias quando falei da crítica aos dois primeiros grupos.
Na base desse grupo de teorias há a ideia de que o desenvolvimento da
criança é um processo de constituição e surgimento do homem, da
personalidade humana, que se forma por meio do ininterrupto
apa recimento de novas particularidades, novas qualidades, novos
traços, novas formações que são preparados no curso precedente
de desenvol vimento e não estão presentes, já prontas, em
tamanhos reduzidos e tímidos, nos degraus anteriores.
Tentei mostrar que a primeira e a segunda teorias levam à negação
do desenvolvimento. Assim, pois, elas não podem e não querem
explicar que surge algo novo. É exatamente essa ideia de surgimento
do novo que compõe o núcleo principal do terceiro grupo de teorias.
Assim, de acordo com esse terceiro grupo, desenvolvimento é um
processo de formação do homem com todas as suas particularidades; é
um processo que transcorre por meio do surgimento, em cada degrau,
de novas qualidades, novas especificidades, novos traços e formações ca
racterísticas do homem. Todas essas particularidades, qualidades novas,
surgem não como se tivessem caído do céu, mas são preparadas pelo
período precedente de desenvolvimento. Assim como o avanço do so
cialismo foi preparado pela história precedente de desenvolvimento e
de decomposição do capitalismo, aqui também acontece isso. Todavia,
ao mesmo tempo, não é possível dizer que o socialismo já esteja
contido na forma capitalista. Aqui também lidamos com o fato de que
essas novas

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 35


formas que surgem em determinado degrau etário são preparadas por
todo o curso de desenvolvimento, mas não se encontram prontas.
Então, do ponto de vista do terceiro grupo de teorias, desenvolvi
mento é um processo de formação do homem ou da personalidade
que acontece por meio do surgimento, em cada etapa, de novas
qualidades, novas formações humanas específicas, preparadas por
todo o curso pre cedente, mas que não se encontram prontas nos
degraus anteriores. É importante levar em consideração duas ideias
inevitáveis para uma definição cientificamente correta da nossa
compreensão. A primeira é: no desenvolvimento, surge algo novo.
Ele não é simplesmente um processo de formação antecipada e isso
difere a nossa compreensão da primeira teoria, a do preformismo. Mas
é importante dizer também que o novo não cai do céu, surge
necessária e regularmente do curso precedente do
desenvolvimento, ou seja, é necessário mostrar a relação entre o novo
e o precedente. Por isso, ao se rechaçar a primeira teoria, não se pode
negar totalmente o que nela é verdadeiro, mais precisamente, a relação
entre as etapas posteriores do desenvolvimento e o passado, e que o
passado, no futuro, tem uma influência iminente no surgimento
do presente. É preciso também ligar isso à ideia de que surgem novas
formações e traços específicos do homem seguindo as leis do
desenvolvimento, isto é, eles não são acrescentados de fora, de modo
inesperado e independente da criança; não caem do céu, não são
criados por uma força vital que, em determinada hora, dita seu
aparecimento. Seu surgimento é necessária e historicamente preparado
pela etapa precedente. Essa segunda ideia também é preciso conservar
e arrolar.
Relatei de forma abstrata essas especificidades porque persegui ape
nas um objetivo: tornar mais consistente a nossa ideia do objeto da
pedo logia. Queria mostrar que o desenvolvimento da criança é um
processo complexo, que contém uma série de regularidades muito
complexas, e que o objeto dessa ciência está no estudo dessas
regularidades.
Vamos conversar sobre as atribuições práticas da pedologia e seus
procedimentos quando formos falar da análise clínica das crianças e
examinar como são utilizados os dados pedológicos para análise de seu
desenvolvimento. A análise concreta das teorias, da última, em particu
lar, faremos ao longo das nossas duas próximas aulas, quando falaremos
sobre o método da pedologia, sobre como ela estuda o
desenvolvimento infantil, sobre o meio e a hereditariedade, ou seja,
sobre quais são as leis

36 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


concretas que existem para a determinação da influência das inclinações
hereditárias no desenvolvimento e qual é o papel real do meio no desen
volvimento da criança. Então, parece-me, tudo isso ficará mais claro e
mais concreto.

Segunda aula. A definição do método da pedologia


Na aula anterior, falamos sobre o objeto da pedologia e
esclarecemos que ela se ocupa do estudo do desenvolvimento da
criança, um processo complexo que se manifesta numa série de
regularidades fundamentais.
Depois, tivemos a oportunidade de ver na prática como, em cada
caso específico, especialmente em transtornos do desenvolvimento,
manifestam-se essas regularidades; como, no desenvolvimento de cada
criança, elas sofrem transtornos, disfunções, se alteram e como o diag
nóstico pedológico procura desvendá-las.
Agora, gostaria de conversar a respeito do método da pedologia. Na
tradução do grego, método significa “caminho”. No sentido
metafórico, entende-se por método o modo de investigação ou de
estudo de uma parte definida da realidade; é o caminho do
conhecimento que conduz à compreensão de regularidades
científicas em algum campo. Contudo, obviamente, uma vez que
cada ciência tem seu objeto de estudo especí
fico, é necessário um método específico para o estudo de qualquer um
deles. O método é um caminho, um procedimento. Por ser um procedi
mento, consequentemente, depende do objetivo para o qual a ciência se
orienta num determinado campo. Se cada ciência tem suas atribuições e
objetivos específicos, então, é claro que elabora também seus métodos
de estudos específicos, seus caminhos de investigação. Assim, pode-se
dizer que, da mesma forma que não existe ciência sem seu objeto,
também não existe ciência sem seu método. O caráter deste é sempre
definido pelo caráter do objeto da ciência. Por isso, se conhecemos,
pelo menos em algumas palavras, o que caracteriza o desenvolvimento
da criança, podemos passar à tarefa de esclarecer qual é a
especificidade do método da pedologia, o que nele é essencial e mais
importante.
Parece-me que a primeira característica que distingue o método pe
dológico consiste no fato de que, como se diz normalmente, ele é um
método de estudo da unidade do desenvolvimento; abrange não
apenas um aspecto do organismo, da personalidade da criança, mas
todos os

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 37


aspectos de um e de outro. Por isso, desde antigamente, afirma-se que o
método pedológico é o da unidade.
Contudo, permaneceu por muito tempo sem clareza o que é esse
método na pedologia. Se esclarecermos com precisão o que ele significa
para a pedologia, compreenderemos, parece-me, os principais meios do
estudo científico e prático distintamente.
Antes de tudo, é preciso dizer que método da unidade não
significa método multilateral. Estudar uma coisa isolada e
multilateralmente, em seguida outra coisa e depois mais outra, estudar
dados específicos, ainda não é o método da unidade, apenas o
multilateral. Normalmente, os estudos multilaterais não abrangem
apenas um, mas vários campos da ci
ência que são necessários não em função de um objetivo teórico, mas
de objetivos puramente práticos e técnicos. Assim, é preciso combinar
da dos de diferentes ciências. Todavia, obviamente, a pedologia não
poderia ser uma ciência específica se seu método consistisse apenas em
coletar e sistematizar dados de ciências diferentes.
O segundo ponto é que o método da unidade não exclui a
análise. Não existe ciência alguma que possa seguir por um caminho
sem recor rer à análise, à decomposição de um todo complexo em
momentos dis tintos que o constituem e o formam. Por isso, quando se
fala de método
da unidade, novamente, não se deve supor um método que, por algum
motivo, seja somatório, generalizante ou que exclua a possibilidade de
um estudo analítico.
[Todas essas definições são negativas].15 Com relação à definição po
sitiva, parece-me que é mais fácil esclarecer o que é método da unidade
na investigação pedológica se tomarmos e contrapusermos os dois prin
cipais modos de análise geralmente utilizados na ciência e, particular
mente, no estudo do desenvolvimento infantil.
Podemos denominar o primeiro desses modos de análise de decom
posição em elementos. Então, no processo de análise, um todo
complexo é decomposto em elementos que o constituem, melhor
dizendo, em par tes constituintes elementares. Um exemplo típico desse
método é a aná lise química, em que decompomos um corpo complexo
em elementos que o constituem. Essas formas de análise existem em
todos os campos da ciência e, em particular, no estudo do
desenvolvimento infantil. Se,

15 Ao que parece, Vigotski tem em vista que as definições indicadas por ele são apresentadas pela
negação – “não são” (N. da E. R.).

38 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


nesse estudo, nos interessar, digamos, a fala, essa formação complexa
que é a fala – que tem seu aspecto fisiológico e também o psicológico
–, e se assumirmos a tarefa de estudar a fisiologia ou a anatomia dos ór
gãos da fala ou a sua psicologia, procederíamos como um químico que
decompõe a água em elementos que a constituem. Tomaríamos cada
aspecto da fala como um elemento independente e estudaríamos cada
um isoladamente.
A outra forma de análise consiste no que se poderia denominar de
método de decomposição ou método de análise que reúne as unidades
num todo complexo. O que isso significa? Qual é a característica do ele
mento que é parte do todo? Penso que, em relação ao todo de que é par
te, o elemento se caracteriza por não ter propriedades presentes no
todo. Se, por exemplo, quero explicar por que a água apaga o fogo, por
que alguns corpos afundam e outros flutuam na água, não posso
responder a isso dizendo que a água é composta de hidrogênio e
oxigênio, sendo sua fórmula química H2O, pois, ao decompô-la em
hidrogênio e oxigê nio, as propriedades nela presentes desaparecem
nesses elementos. Elas são próprias da água apenas enquanto ela é
água. Contudo, o oxigênio mantém o fogo, o hidrogênio sofre a
combustão e a propriedade da água é a de apagar o fogo, que, nesse
caso, desaparece e não pode ser explicada pela soma das propriedades
do oxigênio e do hidrogênio. Então, para a análise que utiliza a
decomposição em elementos, o mais característi co consiste no
fato de que ela decompõe um todo em partes que não contêm
em si propriedades do todo e, por isso, exclui a possibilida de de
explicação das propriedades complexas presentes no todo que é
constituído pelas propriedades das partes isoladas. Não posso
explicar por que a água apaga o fogo pela relação entre o fogo e os
elementos que formam a água. Por isso, pode-se dizer que,
essencialmente, do ponto de vista das propriedades do todo, no
sentido próprio da palavra, essa não é uma análise. É, antes de tudo,
uma contraposição à análise, porque não desmembra o todo complexo
em elementos constituintes isolados, mas reduz as propriedades desse
todo complexo a uma única causa comum.
Quando digo que a água é composta de hidrogênio e oxigênio, isso
está relacionado apenas à sua propriedade de apagar o fogo ou às de
mais propriedades? Claro que, decididamente, isso mantém relação com
as demais propriedades da água. Isso diz respeito ao oceano, à gota de
água da chuva, ou seja, isso é relativo também à água em geral. Então,

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 39


a análise que decompõe em elementos pode apresentar apenas conheci
mentos que mantêm relação com as propriedades comuns de um todo.
Podemos esclarecer a natureza da água em geral via tal análise, mas essa
análise não nos explica o que dela exigimos, ou seja, a decomposição
das propriedades, as explicações de cada uma delas, as relações entre
cada uma delas. Isso significa, essencialmente, do ponto de vista do
estudo das propriedades da água, que essa não é uma análise no
sentido próprio da palavra.
Se isso está claro, então será fácil explicar o que é a análise que de
compõe em unidades um todo complexo, pois ela é definida por
dois traços opostos. A análise que decompõe em elementos é
definida pelo fato de o elemento não conter propriedades do
todo. Já a unidade é definida pelo fato de que é a parte de um
todo que contém, mesmo que de forma embrionária, todas as
características fundamentais próprias do todo.
Digamos assim: para o químico, a água contém hidrogênio e oxigê
nio. O físico, contudo, lida com moléculas, com o movimento molecu
lar interno da água, ou seja, com partículas mínimas que, ainda assim,
são partículas de água e não elementos dos quais ela é constituída. Por
isso, o físico explica uma série de alterações que o corpo físico sofre e
desvenda a relação entre diferentes propriedades por meio das proprie
dades moleculares da água, analisando e desmembrando uma série de
propriedades isoladas que fazem dela um corpo físico.
Se tomarmos uma fórmula bioquímica de alguma substância orgâ
nica, isso será uma análise que decompõe em elementos. Se estudarmos
a vida, a fisiologia da célula viva do organismo, isso será uma unidade,
porque a célula viva conserva em si as propriedades fundamentais do
organismo como um todo. Em termos gerais, a unidade é a célula viva,
ou seja, ela nasce, se alimenta, metaboliza e morre, se altera, se transfor
ma e pode também adoecer etc. Em outras palavras, na pequena célula,
lidamos não com o elemento, mas com a unidade.
A primeira característica da unidade consiste no fato de que a
análise destaca as partes que não perderam as propriedades do
todo. Imaginem que, por meio da análise, eu decomponha um corpo
com plexo – é indiferente se real ou abstrato – em partes isoladas e,
depois, chegue a um determinado limite de decomposição em que
obtenho uma parte que contém em si as propriedades fundamentais do
todo. Por

40 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


exemplo, a molécula de água contém em si as propriedades fundamen
tais da água; a célula viva contém em si algumas propriedades fundamen
tais de qualquer matéria viva, de qualquer organismo. A análise que nos
conduz à compreensão da célula e de sua vida, da constituição do
tecido pelas células, da constituição do órgão pelos tecidos ou a análise
que leva ao estudo das moléculas de água, da tensão molecular ou do
movimento molecular da água nos conduz, como resultado, às partes
da água que não perderam as propriedades do todo, que contêm em si
as proprie dades fundamentais do todo no mais alto grau e de forma
simplificada. Digamos que seja impossível comparar a alimentação da
célula com a do organismo humano; contudo, na alimentação da
pequena célula, há elementos fundamentais de algo vivo. Essa é a
primeira diferença básica entre as duas análises.
Apresentarei exemplos concretos do campo da pedologia, fatos que
mostram a diferença nítida entre uma e outra forma de análise. A
segunda propriedade dessa análise é que ela se vale do método
de decomposição em unidades e, diferentemente da análise
química, não representa uma generalização. Ela não se relaciona
com a natureza da totalidade do fenômeno, mas pode ser uma
análise por meio da decomposição para explicar diferentes
propriedades de uma totalidade complexa. Então, isso significa que
é análise no sentido próprio da pala vra. Por exemplo, não quero
esclarecer toda a vida do organismo huma no, mas uma determinada
função, digamos, a alimentação. Para isso, eu preciso recorrer a quê? À
análise de todo o organismo ou de determina dos aspectos de sua
atividade? De determinados órgãos, de determinados sistemas. Agora,
quero explicar outros aspectos da atividade vital. Preciso recorrer à
análise de outros aspectos. A análise não me conduz a algo como a
fórmula química da água, que mantém uma relação similar tanto com o
grande oceano quanto com a gota de chuva. A análise me permite,
num caso, explicar a digestão e, no outro, o sistema circulatório; num
caso, por que a água apaga o fogo; no outro, por que os corpos
afundam ou flutuam etc. Isso significa que essa é análise genuína, ou
seja, ela per mite, de forma simplificada, o estudo de algumas
características funda mentais de um todo. Passemos aos exemplos
concretos e isso ficará claro. Durante muito tempo, predominou na
pedologia a visão de que o desenvolvimento depende de duas
fontes: a hereditariedade e o meio. Ninguém discordará disso.
Digamos que a fórmula química de

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 41


qualquer desenvolvimento seja a hereditariedade e o meio. Isso
está correto? Penso que, indiscutivelmente, está correto. Isso está
relacio nado ao desenvolvimento como um todo? Sim, do mesmo
modo que a fórmula química guarda relação com a água como um
todo. Quando se tentava utilizar a análise baseada na decomposição do
desenvolvimento e de cada momento isolado do mesmo nos elementos
hereditariedade e meio, estávamos na mesma situação pela qual
passaríamos caso quisésse mos explicar as características concretas da
água – por exemplo, que ela apaga o fogo – partindo da ideia de que
ela é composta de hidrogênio e oxigênio. Esbarraríamos nos elementos
que não contêm em si as proprie dades do desenvolvimento como um
todo. Por exemplo, como explicar a fala da criança? Em relação à fala,
sempre existiram duas visões: o ina tismo e o empirismo. O inatismo
afirmava que toda função é inata, de base hereditária. O empirismo
afirmava que a fala nasce da experiência. Os inatistas diziam: se
colocarmos em condições melhores, entre orado res, uma criança que
tem mal desenvolvida a zona cerebral responsável pela fala, ela não
começará a falar. Isso significa que a fala se desenvolve a partir de
rudimentos hereditários. E os empiristas diziam: coloquem uma
criança com a zona cerebral responsável pela fala desenvolvida junto
de crianças surdas-mudas. Ela nunca falará. Então, isso significa que a
fala se desenvolve no meio e com a experiência. Da mesma forma avan
çava a discussão em relação à percepção do espaço e a quase todos os
aspectos do desenvolvimento. A ciência enxergava, no início, apenas as
contradições.
Dessa forma, quando a ciência entrou em um beco sem saída, sur
giram tendências que tentavam conformar o inatismo e o empirismo.
Começaram a dizer: a fala da criança se desenvolve, por um lado, com
base nas características hereditárias embrionárias e, por outro, sob a in
fluência do meio. Isso está correto? Incontestavelmente, sim. Todavia,
está relacionado tanto à fala quanto, decididamente, ao
desenvolvimento como um todo. Por isso, até agora, enquanto
falávamos do desenvol vimento em geral, seria necessário para a
compreensão e nos satisfazia por completo o princípio de que o
desenvolvimento é determinado pela hereditariedade e pelo meio.
Contudo, assim que surge o desejo de explicar algum aspecto con
creto do desenvolvimento, por exemplo, a fala, com base em caracterís
ticas hereditárias embrionárias plus influência do meio, não podemos

42 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


decompô-la desse modo, porque os caracteres embrionários
hereditários não contêm em si, necessariamente, o surgimento da fala e
o meio ex terno não contém em si a necessidade do surgimento da fala
na criança.
Então, começaram a imaginar que a fala da criança se desenvolve
de convergências, ou seja, do entrecruzamento, da coincidência de uma
influência com outra. Assim, imaginavam a coisa de tal forma que, no
vamente, qualquer influência no desenvolvimento da criança deveria ser
explicada com a ajuda da convergência de dois fatores: da hereditarieda
de, por um lado, e do meio, por outro. Todavia, na verdade, o estudo
dessas questões levou à necessidade de se recusar o modo de análise
que decompõe em elementos. Por que e como?
Antes de tudo, descobriu-se a infertilidade desse método de investi
gação. A fala se desenvolve da [relação mútua]16 entre hereditariedade e
meio. Mas o mesmo pode ser dito em relação a outras características da
criança. O crescimento depende da influência do meio e da hereditarie
dade; o peso da criança também depende disso; a brincadeira, a
atividade de brincar, também depende disso. Qualquer aspecto do
desenvolvimen to da criança que focalizarmos se mostrará sempre
dependente da here ditariedade e do meio. Isso significa que, para todas
as questões relacio nadas ao desenvolvimento, teríamos apenas uma
resposta: depende da hereditariedade e do meio. Além disso,
poderíamos dizer o que há mais do meio e menos da hereditariedade e,
em outro caso, o que há mais da hereditariedade e menos do meio. E
nada mais poderíamos descobrir que fosse muito frutífero com a ajuda
dessa análise.
De que outra forma pode-se tratar a análise, o estudo, digamos, do
desenvolvimento da fala? Dizemos assim: a fala é um todo complexo
que depende tanto do meio quanto da hereditariedade. Essa não
é, contudo, uma característica diferenciada dela, mas algo que é
próprio de todos os aspectos do desenvolvimento infantil.
Como devemos analisar o desenvolvimento da fala da criança? Antes
de tudo, parece-me que devemos partir do fato de que nela existem mo
mentos isolados que representam unidades e não elementos, ou seja,
que representam momentos que conservam, mesmo que de forma
primária, características próprias da fala, assim como uma celulazinha
conserva, de forma primária, características próprias do organismo
como um todo.

16 No manuscrito, “influência” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 43


Tomemos um exemplo concreto: o aspecto sonoro da fala.
Provavelmente, vocês sabem que, na velha linguística, estudava-se o as
pecto sonoro da fala. [Estudavam-se os sons]17 com os quais se organiza
a fala. Imaginem que cada palavra seja construída de sons isolados com
os quais se organiza a fala. Isso está correto? Claro. Está certo. Se está
certo que a fala é constituída de sons isolados, de letras isoladas, de
elementos, surge uma série de questões difíceis de resolver. A primeira
consiste em que, se a fala é constituída de sons isolados,
consequentemente, para se estudar como se desenvolvem, na criança,
os seus aspectos sonoros, é preciso decompô-la em sons isolados e
observar quando surgem as letras isoladas “a”, “b”, “v”, “e” etc. Mas o
som “a”, o som “b” etc., como sons em si, não contêm nenhuma
característica própria do som da fala hu
mana, porque podem existir no papagaio ou no bebê até este aprender
a falar. Consequentemente, podemos estudar apenas as propriedades
dos sons acústicos como fenômenos físicos e fisiológicos que
dependem da articulação, dos movimentos articulatórios com a ajuda
dos quais são pronunciados.
Mas o que diferencia o som da fala humana de outros sons
exis tentes na natureza? A diferença entre o som da fala humana e os
sons da natureza é que, em sua essência, os sons com a ajuda dos quais
transmi timos um determinado sentido são uma unidade da fala e não
um mero som, mas um som significante, ou seja, um som que tem a
característica de transmitir um significado. O que diferencia os sons de
qualquer pala vra que pronunciamos de quaisquer outros que existem
na natureza, que podem conter a mesma quantidade de oscilações por
segundo, a mesma duração, ou seja, todas as qualidades físicas? Os
sons da fala humana se diferenciam porque servem para a transmissão
de um determinado senti do. Por isso, a investigação contemporânea
compreendeu que a unidade da fala não é simplesmente um som, mas
um som significante. No estu do contemporâneo da fala, esse som
que soa é designado de fonema, ou seja, é uma combinação de sons
que não pode mais ser decomposta e, às vezes, é um som ou
combinação de sons que não perdeu a principal propriedade da
fala humana e que o faz ser um som humano.
Permitam-me apresentar um exemplo simples. Em duas palavras di
ferentes: um e ottsu,18 temos o mesmo som [u], no início de uma e no

17 No original, “ela era estudada do ponto de vista dos sons” (N. da E. R.).
18 Em russo, um significa “mente” e ottsu significa “ao pai” (N. da T.).

44 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


final da outra. Por suas características físicas, propriedades fisiológicas
e articulatórias, os dois sons são totalmente coincidentes, são o mes mo
som. Contudo, ele é um fonema, uma unidade da fala. Por quê?
Pergunto: o som [u] na palavra ottsu está no final e é um som signifi
cante. Ottsu significa algo? O “u” na palavra um é um som significante?
Não. Logo, isso significa que, no primeiro caso, estamos lidando com
um fonema e, neste último, com um som. Se eu decompuser a palavra
em sons como [u] e [m], então, para mim, toda a palavra permanece
como uma simples combinação casual de determinados sons. Se eu sou
ber decompor a fala em partes, como, nesse caso, o som [u], verei que
ele contém uma propriedade básica da fala humana, uma função de
signi ficados, mas, na verdade, numa forma muito embrionária. Isso
porque, por si só, o som [u] não significa qualquer objeto, nem guarda
relação com esse objeto; é uma função nebulosa de caráter dependente
que ajuda a diferenciar o significado ottsu de ottsa, ottsom, ob ottse
etc.19 Mas isso é o fonema, é a unidade. A análise mostra que a fala
humana, por um lado, se desenvolve e, por outro, se estrutura de
forma desenvolvida não de sons, mas de fonemas, ou seja, de sons
que exercem a função fundamental ou, mais precisamente, a de
significado.
O que diferencia uma e outra análise da fala? Parece-me que, em
uma, decompomos em elementos que perderam as propriedades do
todo. No caso presente, decompomos em unidades que conservam as
propriedades do todo, ainda que de forma primária. A história do de
senvolvimento da fala humana até hoje indica que, enquanto estivermos
estudando-o pelos sons isolados, será difícil entender como se
desenvolve a fala da criança. A investigação mostra que nunca
poderemos entender porque a criança pronuncia algumas palavras e
não outras; porque pro
nuncia algumas letras, alguns sons antes e outros mais tarde. Ainda, o
mais importante é que nunca entenderíamos de que forma a criança assi
mila o principal vocabulário fonético da língua materna, aos dois ou
três anos, se todas essas palavras representassem combinações casuais
de sons

19 Na língua russa, as declinações são formadas por seis casos para os substantivos, pronomes,
adjetivos. São eles: nominativo, genitivo, acusativo, dativo, instrumental e prepositivo. Dependendo
do caso da declinação, o substantivo otets sofrerá alteração em sua desinência. No exemplo
apresentado por Vigotski, a palavra otets está declinada no genitivo, instrumental, prepositivo
(nessa ordem), que, na tradução, seria: do pai, pelo pai, sobre o pai. E ottsu, no dativo, significa “ao
pai” (N. da T.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 45


isolados. Todavia, a criança assimila sem decorar, sem repetição
especial. Aprende, assim, a dizer, de forma estrutural.
Tomemos um exemplo concreto. Provavelmente, vocês sabem que,
no balbucio do bebê, o som [r] aparece muito cedo. Stern supôs que as
formações [er] e [rr] são quase as primeiras a surgirem no balbucio
infantil. Ao mesmo tempo, vocês sabem que o som [r] surge na fala da
criança muito tardiamente. Dessa forma, parece que ela domina o som
[r] no balbucio muito cedo, mas quando começa a falar, até os três,
quatro, cinco anos, não consegue pronunciá-lo. O que se verifica é que
ela domina o som [r] desde cedo, porém apresenta dificuldade com o
fonema não como som, mas como função semântica. Acontece que a
criança que fala [u] e [a] ainda não sabe diferenciar ottsu de ottsa. Por
que ela ainda não sabe falar corretamente ia dam ottsu (“eu darei para o
pai”)? Não é porque não saiba pronunciar o som [u], mas porque a fun
ção desse som lhe é ainda inapreensível. O mesmo ocorre em relação
ao som [r]. A criança aprende o som [r] muito cedo. Todavia, é porque
ele exerce funções complexas de significado na composição da língua
russa que a criança começa a dominá-lo mais tarde. Ainda que seja o
primeiro a surgir no balbucio, aparece já tarde na fala sonora da
criança. Tomei como exemplo apenas esse aspecto do
desenvolvimento infantil – mais exatamente a fala e, no âmbito dela,
apenas um momento, o seu aspecto sonoro, o desenvolvimento da
capacidade de falar. Com isso, vemos, é claro, que eu recorri à análise.
Destaquei a fala no desenvolvimento; na fala, seu aspecto sonoro, e
tentei decompô-lo em determinadas unida des. Então, há uma análise.
Essa análise, contudo, tem um determinado limite: o que conserva a
propriedade dos sons da fala humana em geral, ou seja, a característica
de ser significante.
O que isso quer dizer? Tomemos o segundo exemplo. O estudo do
meio. Penso que vocês concordarão comigo que o significado de cada
elemento do meio será igual dependendo da relação que ele tem com a
criança. Por exemplo, adultos frequentemente conversam da mesma for
ma em torno da criança quando ela tem seis meses e quando tem um
ano e seis meses. Contudo, essa mesma fala, que não mudou, tem o
mesmo significado quando a criança tem seis meses e quando tem um
ano e seis meses? Diferente. Isso significa que a influência de cada
elemento do meio dependerá não do que ele contém, mas da
relação que tem com a criança. O significado de um mesmo
elemento do meio será diferente

46 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


dependendo de sua relação com a criança. A fala dos que estão em
torno da criança não mudará; será a mesma quando a criança tiver um
ano ou três anos, mas o seu significado para o desenvolvimento
mudará.
Agora, imaginem que eu vá estudar do que depende a fala, como
faziam com frequência. A fala das crianças se desenvolve de diferentes
formas. Algumas começam a falar antes e melhor; outras, mais tarde e
pior; algumas se atrasam no seu desenvolvimento, outras se adiantam.
Quando desejam explicar por que é assim, dizem do que depende o de
senvolvimento da fala da criança. Primeiramente, do meio circundante.
Se, no meio circundante, a fala é rica e se conversam muito com a crian
ça, ela tem chances de se desenvolver rapidamente no que diz respeito à
fala. Agora, se no meio circundante, a fala é pobre e conversam pouco
com a criança, ela se desenvolverá de modo pior. Ou seja, depende, em
primeiro lugar, do meio falante e, em segundo, da própria mente
da criança. Se for inteligente, esperta e tiver boa memória, assimilará
me lhor. Todavia, se for obtusa, atrasada e limitada, assimilará de um
modo pior. Tentavam explicar o desenvolvimento da fala partindo
desses dois motivos. Decompunham os dois em elementos e
mensuravam, tomando por base a quantidade de palavras que o ouvido
da criança ouvia por dia ou por hora e procurando esclarecer se isso
realmente explicaria as dife renças no desenvolvimento de sua fala.
Verificou-se que, decididamente, isso não esclarecia por que o
circunstância crucial não é, por si só, nem o meio nem a mente, mas a
relação entre o meio falante e a fala da própria criança. Se gosta
de falar, de se comunicar com os que estão à sua volta, tem necessidade
da fala, é uma coisa. Se tem uma relação tensa com os que estão à sua
volta, fecha-se e cada palavra soa de forma desa gradável, é outra
completamente diferente. Consequentemente, vê-se que, de novo, a
unidade é crucial e não os elementos, ou seja, a relação entre o
momento do meio e as características da própria criança. Se
encontrarmos essa unidade, ela conservará em si o que é próprio
do desenvolvimento da fala como um todo, ou seja, a relação
entre os momentos do meio e os momentos pessoais, isto é, os
que estão enrai zados nas especificidades da própria criança.
Eis por que o estudo que se vale do método de unidades nos permite
estudar a relação; estudamos as unidades que não foram decompostas
em elementos e conservam em si, de forma simplíssima, as relações
entre es ses elementos, ou seja, aquilo que é mais importante no
desenvolvimento.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 47


Penso que as dificuldades despertadas em vocês com a
apresentação dessa parte de minha aula estão relacionadas ao fato de
que estou falando desse método de forma abstrata. Todavia, muita
coisa ficará mais clara sobre a análise própria da pedologia quando, da
próxima vez, exami
narmos o problema do meio e da hereditariedade e esclarecermos o que
diferencia o estudo pedológico da hereditariedade do estudo da heredita
riedade na genética, na biologia; o que diferencia o estudo pedológico
do meio do estudo do meio na higiene. Verificaremos que cada uma
dessas ciências tem atribuições diferentes de investigação, já que cada
uma delas se vale de métodos distintos para o estudo da
hereditariedade e do meio, enquanto a pedologia estuda tanto a
hereditariedade quanto o meio aplicando o método de que estou
falando, ou seja, o método de de
composição em unidades. Por exemplo, a higiene e a genética
estudam a hereditariedade e o meio aplicando o método de análise por
decompo sição em elementos. Isso responde às atribuições dessas
ciências. Então, penso que, da próxima vez, quando nos aproximarmos
concretamente do estudo do meio e da hereditariedade, ficará mais
clara a primeira es pecificidade do nosso método, com o qual, a
princípio, nos encontramos de forma abstrata.
Agora, quero me deter na segunda especificidade que caracteriza o
método pedológico. Uma vez que ela é bem mais simples e está relacio
nada ao método de outras disciplinas, já conhecido por vocês, isso será
bem mais fácil e compreensível.
A segunda especificidade do método de investigação
pedológica consiste em que, no sentido amplo dessa palavra, ele
é clínico. Para explicar o que compreendemos ao dizer que a
pedologia se utiliza do método clínico de estudo, será bem mais fácil
se, por um lado, compa
rarmos esse método na pedologia ao correspondente na clínica – os
dois são suficientemente semelhantes – e se, por outro lado,
contrapusermos o método clínico de estudo com o sintomatológico.
Vocês sabem que, na medicina, antes do desenvolvimento do méto do
clínico, predominava o sintomatológico. Ou seja, estudavam-se não as
doenças, mas os seus sintomas, suas características, seus fenômenos ex
ternos. As doenças eram classificadas e agrupadas por seus sintomas.
Os doentes com os mesmos sintomas, com uma tosse, por exemplo,
eram relacionados em um grupo de doenças. Outros com sintomas de
dor de cabeça, por exemplo, em outro grupo de doenças. Da mesma
forma, em

48 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


qualquer outra ciência, até o início da elaboração científica verdadeira,
predominavam os métodos puramente empíricos, baseados nos estudos
dos sintomas. Por isso, todas as ciências percorrem o caminho do estu
do sintomatológico, do estudo empírico das manifestações externas.
Por exemplo, na botânica e na zoologia, antes de Darwin, as plantas e
os animais eram classificados por manifestações externas, pelas formas
das folhas, pelas cores das flores. Depois de Darwin, começaram a ser
classi ficados pela origem, pelo que havia em comum na origem, em
comum na característica genética, porque passou a ser conhecido o
processo que levou à formação dessas características.
Da mesma forma, na medicina, o predomínio da medicina clínica,
que substituiu a sintomatológica, se mostra pelo fato de que começaram
a estudar não as manifestações externas, mas os processos que levam ao
surgimento dos sintomas. Começaram a estudar os processos
subjacentes aos sintomas. Assim, ficou claro que os doentes com os
mesmos sintomas poderiam ter diferentes processos e os com
processos semelhantes pode
riam ter diferentes sintomas. Ou seja, evidenciou-se a possibilidade de
passar das manifestações externas ao estudo de processos que subjazem
a elas e determinam o seu surgimento e a sua presença.
O mesmo ocorre na pedologia. Inicialmente, ela era uma
ciência sin tomatológica. Estudava as características externas do
desenvolvimento infantil, do desenvolvimento mental infantil, do
desenvolvimento da fala infantil. Constatava que, em certa idade,
a criança apresentava de terminadas características. Como todas
as ciências sintomatológicas, ela era predominantemente
descritiva. Não conseguia explicar por que algo surgiu. Até
mesmo na pedologia soviética, havia pesquisadores que propunham
definir a pedologia como a ciência dos complexos de sin tomas etários,
ou seja, um conjunto de características que diferenciaria determinada
idade. Vocês entendem muito bem que o estudo de caracte rísticas ou
sintomas é apenas uma parte mais geral da função da ciência. A ciência
estuda características para aprender a desvendar o que subjaz a elas; no
caso, digamos, da clínica, estudar o processo patológico; no caso
da pedologia, os processos de desenvolvimento. Isso significa que,
na aplicação do método da pedologia, decisivamente, todas as caracte
rísticas que obtemos nas nossas investigações e observações do
desenvol vimento infantil tomamos apenas como sintomas de
desenvolvimento. Contudo, ao interpretarmos esses sintomas,
contrapondo-os, temos que chegar aos processos de desenvolvimento
que os provocam.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 49


Dessa forma, quando digo que a pedologia emprega o método clí
nico no estudo do desenvolvimento infantil, quero dizer: ela trata as
manifestações observadas no desenvolvimento infantil apenas
como características por trás das quais tenta identificar como
transcorreu ou como ocorreu o próprio processo de
desenvolvimento que levou ao surgimento desses sintomas.
Por exemplo, vocês já viram, da última vez, como determinamos o
desenvolvimento mental da criança. Sabemos que, pela certidão de
nascimento, a criança pode ter seis anos e, pelo desenvolvimento, nove
ou 12. Sabemos que se adiantou no desenvolvimento mental em quatro
anos. O que isso significa para um diagnóstico pedológico? Termina aí
a tarefa da investigação pedológica? Não. Apenas constatamos que isso
ocorreu. Contudo, por que ocorreu? Saberemos apenas se
esclarecermos o que aconteceu no processo de desenvolvimento da
criança. O que le vou a isso? O que essas características evidenciam?
Que não são caracte
rísticas do desenvolvimento mental de uma criança de três anos, mas de
uma de 12 anos. Isso pode acontecer por diferentes motivos.
Frequentemente, lidamos com crianças que são dotadas além de sua
idade. Em uma de minhas conferências, gostaria de apresentar algumas
dessas crianças. Quando trazem uma criança, dizem que ela é desen
volvida além dos anos que tem. Pergunta-se: o que provoca isso? Em
uma delas, verifica-se que isso foi provocado por um desenvolvimento
acelerado. Ou seja, essas crianças simplesmente percorrem o caminho
do seu desenvolvimento em um ritmo muito acelerado. O que uma
crian ça atinge, domina aos oito anos, a outra atinge aos seis. Contudo,
esse desenvolvimento acelerado será posteriormente acompanhado de
um desenvolvimento mais vagaroso, ou, mesmo que não seja vagaroso,
não significa que diante de nós esteja uma criança bem-dotada.
Exemplos extremos típicos dessas crianças com desenvolvimento
acelerado são as wunderkind,20 a respeito de quem vocês provavelmente
já ouviram falar. Wunderkind é aquela que, numa idade muito precoce,
nos impressiona com algumas capacidades específicas – musicais, artís
ticas, matemáticas.
Contudo, wunderkind é uma criança comum com desenvolvimento
acelerado. Admiramo-nos quando a criança tem cinco anos; realmente

20 No original russo, Vigotski usa a palavra alemã wunderkind, que, na tradução para o português,
significa criança prodígio (N. da T.).

50 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


nos impressiona porque, aos cinco anos, por exemplo, demonstra co
nhecimentos matemáticos que são próprios de um jovem de 19 ou 20
anos ou de um adulto. O que há de impressionante nesse caso? Não são
as capacidades matemáticas em si, mas o fato de estarem presentes
numa criança tão pequena. Contudo, a maioria das wunderkind têm
como destino se tornarem pessoas medianas ou ficarem até mesmo
abaixo de pessoas com desenvolvimento médio. De uma grande
quantidade de wunderkind que prometem se tornar músicos,
matemáticos ou pintores reconhecidos, a maior parte, com frequência,
não se transformam nem em músicos, nem em matemáticos, nem em
pintores medianos poste
riormente. Tornam-se pessoas abaixo da média, porque a aceleração é
uma das manifestações de formas patológicas de desenvolvimento, de
desenvolvimento incorreto que não levará a nada bom. O compositor
alemão Liszt expressou essa especificidade da wunderkind num aforismo
muito irônico quando disse que ela está com seu futuro no passado, ou
seja, se antecipou muito precocemente na linha do seu futuro, mas é
uma criança sem futuro, no verdadeiro sentido da palavra.
Todavia, há crianças que também manifestam precocemente desen
volvimento mental próprio de uma idade mais avançada. Elas se
diferen ciam das anteriormente mencionadas por serem,
essencialmente, verda deiros futuros talentos ou futuros gênios.
Apesar de os sintomas daquelas ou dessas formas de desenvolvimen to
serem semelhantes, há necessidade de diferenciar a futura criança ge
nial da futura wunderkind, ou seja, da futura flor estéril. Como fazer
isso? Os sintomas são semelhantes. A criança que você recebe apresenta
um QI (a relação entre a idade mental e a idade da certidão de nasci
mento) igual a 1,9; ela tem 10 anos, mas demonstra ter 19. A outra
criança revela um QI equivalente. Porém, uma é a futura wunderkind e a
outra, um futuro gênio. Como diferenciar isso? Da mesma forma como
fizemos quando diferenciamos dois quadros sintomáticos semelhantes
um do outro. Procuramos os sintomas diferenciados. Dizemos assim:
de acordo com essas características, as duas crianças são parecidas.
Devemos procurar características pelas quais elas não se parecem, que
nos permi tam diferenciá-las. Particularmente, em relação a essas
crianças, existe uma característica comum: a que tem desenvolvimento
acelerado ou, em casos extremos, a wunderkind nos impressiona com a
presença de sintomas que são característicos de idades mais avançadas;
mas a criança

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 51


realmente bem-dotada, talentosa, genial nos impressiona com a
presença de sintomas que são característicos de sua própria idade,
porém levados a um desenvolvimento completo, rico, florescente,
pleno. Se pudésse mos dizer assim: em seu desenvolvimento, a
wunderkind se caracteriza pela presença de sintomas que se
adiantam às suas idades. Todavia, a criança verdadeiramente
talentosa e bem-dotada se caracteriza por predominarem, no seu
desenvolvimento, propriedades características de sua idade,
idade que é, contudo, vivenciada de forma especialmente criativa
e rica.
Vou apresentar um exemplo concreto. Recebi um menino que foi
descoberto por acaso. Ele era um matemático genial. O menino tinha
oito anos e 10 meses. Hoje, ele domina uma série de disciplinas do cam
po da matemática avançada. Ao estudar essa criança, vimos que ela nos
impressionava não por ter nove anos e uma mente madura de um estu
dante de 20 anos ou de um assistente de 25 ou de um mestre
matemático de 30. O menino nos impressionou por sua relação com a
matemática avançada e por demonstrar especificidades mentais
próprias de qualquer criança de nove anos. Entretanto, essas
especificidades de uma mente de nove anos foram levadas até os
limites da genialidade, assim como, precisamente, um gênio adulto se
diferencia de qualquer um de nós não por revelar, aos 30 anos, a
experiência própria de um idoso de 90, mas por levar a medidas geniais
as mesmas especificidades de uma pessoa de 30 anos.
Por exemplo, esse menino de aproximadamente quatro ou cinco
anos descobriu, por ele mesmo, a forma de elevar o denominador a um
numerador comum. Ele ouviu a mãe perguntar ao pai quanto restaria
se, de 3/4, subtraísse 1/3. Raciocinou e disse qual seria o resultado e o
que restaria, apesar de ninguém ter lhe ensinado como fazer a
subtração de proporções. Quando lhe indagaram como conseguiu,
verificou-se que, inicialmente, ele descobrira sozinho a forma de
chegar a um numerador comum muito antes de realizar a operação.
Caso vocês me perguntem: se explicarmos algumas operações simples
com subtração de proporções, isso é acessível a qualquer criança nessa
idade? As experiências de Leman21 e de outros demonstraram que sim.
Todavia, a criança descobriu sozinha essa forma de calcular. Quando
conhecemos uma série de sintomas, nos

21 No original russo, Levan (N. da E. R.). Trata-se de um pedagogo dedicado ao trabalho com
crianças surdas da Tchecoslováquia (N. da T.).

52 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


convencemos de que diante de nós está realmente uma criança genial,
ou seja, um desenvolvimento de outro tipo, totalmente diferente do de
uma criança com o desenvolvimento acelerado.
Trouxe esses casos para mostrar que a pedologia não estuda
sempre os sintomas por si sós, mas, utilizando os estudos dos
mesmos, tenta chegar aos processos de desenvolvimento
subjacentes àqueles sintomas. Por isso, ela classifica os processos de
desenvolvimento em diferentes es
tágios, com seus aspectos isolados. Assim, o método da pedologia pode
e deve ser denominado de método clínico, ou seja, método que
caminha das manifestações específicas dos processos de
desenvolvimento para o estudo dos próprios processos de
desenvolvimento, de sua essência, de sua natureza.
A terceira especificidade que define o método pedológico é o que
poderia ser denominado de caráter genético comparativo. Nem toda
disciplina clínica se vale obrigatoriamente do modo ge nético de análise
do seu objeto. Ao contrário, muitas disciplinas clí nicas usam outros
modos. Mas a pedologia, que estuda o desenvolvi mento, dada a
essência deste, não pode não empregar o modo genético comparativo.
O que significa isso? Quando estudamos algum processo de desen
volvimento, como podemos proceder? Podemos observar diretamente,
digamos, o percurso do desenvolvimento embrionário? Podemos obser
var diretamente, desde o momento da concepção até o nascimento, o ca
minho que o embrião percorre no útero materno? Claro que não.
Como podemos fazer para estudar esse caminho? Estudamos o
embrião com o método comparativo de cortes: o que houve na
primeira semana, na segunda, na terceira, na quarta etc. Ou seja,
levamos em conta os pontos isolados de desenvolvimento e os
comparamos entre si. Assim, podemos ver o que era e o que se tornou.
Compomos uma imagem do ponto de partida até onde a criança
chegou, por qual motivo, em que prazo, qual caminho percorreu para
chegar de um ponto do desenvolvimento a outro, que acontecimentos
ocorreram no meio. A pedologia se vale precisamente do mesmo
método de cortes etários comparativos.
Podemos observar diretamente, in vivo, o desenvolvimento da men te
da criança, de sua memória, o seu crescimento? Não. Podemos apenas
comparar o desenvolvimento da sua mente nesse instante e daqui a seis
meses, depois mais seis meses e mais seis meses. Veremos que, aos oito

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 53


anos, a criança possui algumas especificidades; aos 12, outras e mais ou
tras. Fica claro o que houve com ela ao longo de meio ano: aos nove
anos e aos nove e meio. Percebo o caminho percorrido pela criança
dos oito aos 12 anos. Em outras palavras, comparo o quadro de
desenvolvimento em diferentes etapas etárias. Essa comparação
é o método principal com a ajuda do qual podemos obter o nosso
conhecimento sobre o caráter e a trajetória do desenvolvimento
infantil. Mas como essa comparação não é realizada numa ordem
aleatória, mas apenas numa ordem genética, então estamos lidando
com o método genético comparativo. Por exem
plo, na clínica, utilizam também o método comparativo. Comparam,
digamos, uma doença com outra. Isso seria também o método genético
comparativo? Não. Porque, nesse caso, são comparadas entre si diferen
tes formas de processos de enfermidades. No entanto, eu comparo não
apenas formas de desenvolvimento infantil – faço isso também –, mas
comparo principalmente a própria criança com ela mesma em
dife rentes etapas de seu desenvolvimento. Quer dizer, o objeto da
minha comparação são as diferentes etapas de desenvolvimento
infantil. É nesse sentido que dizem que a pedologia se vale, em seus
estudos, do método genético comparativo. Ela produz como que
recortes comparativos do desenvolvimento em diferentes etapas
etárias, e, contrapondo umas às outras, utiliza a comparação como
meio para representar o caminho de desenvolvimento percorrido pela
criança.
Permitam-me esclarecer isso num exemplo concreto. Sei, por exem plo,
que, no momento do nascimento, quando a idade da certidão de
nascimento da criança é indicada com zero, ela não fala; ela é um ser
sem palavras. Aos seis anos, já tem uma fala desenvolvida. Em geral, já
domina corretamente a língua materna. Agora, quero estudar o desen
volvimento do percurso dessa fala. Para isso, investigo o que acontece
aos três, aos cinco meses e o que acontece com um ano, um ano e
meio, dois e dois anos e meio. Então, descubro, por exemplo, que, por
volta dos três meses, se manifesta nela o gesto indicativo que tem
relação com a fala. Em seguida, aproximadamente aos seis meses ou
um pouco antes, surge o balbucio desarticulado; logo depois, aparecem
as primeiras palavras, a criança começa a falar com palavras separadas.
Aproximadamente aos dois anos surgem frases com duas palavras etc.
O que isso me esclarece? Comparando o que surgiu de novo e o que
desapareceu de velho, já obte nho um quadro inteiro de
desenvolvimento. Não constato simplesmente

54 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


como a criança passou de uma existência sem palavras para uma fala de
senvolvida, mas conheço também o caminho que percorreu até o grito,
até o balbucio; depois, o balbucio desapareceu e surgiu algo mais, nessa
sequência, um evento dependendo do outro. Seguindo esse caminho,
com essas regularidades, a criança chegou à fala. Comparando a fala da
criança em diferentes etapas etárias, percebo, cada vez, o que
desapareceu e o que surgiu de novo, em que relação o novo está com o
que havia an tes. Seguindo com esse método de cortes comparativos,
percorrendo esse caminho de comparação genética, obtenho a
possibilidade de imaginar,
ter uma ideia do caminho de desenvolvimento da criança. O método
comparativo é empregado na pedologia ainda em outro recorte, no
mesmo sentido em que é utilizado em qualquer disciplina clínica, mais
exatamente quando não comparo a criança com ela mesma, mas
quando comparo entre si crianças com diferentes tipos de desenvol
vimento. Então, será o método comparativo. Por exemplo, hoje, quando
apresentei o exemplo do método clínico, tentei mostrar que a criança
bem-dotada ou genial se desenvolve de modo diferente da que tem de
senvolvimento acelerado. Comparei a criança não com ela mesma, mas
com outra. Esse também é um dos procedimentos, mas ele não contém
nada típico para a pedologia. Ele é próprio de qualquer ciência que se
vale do método clínico. Toda ciência que utiliza o método clínico e es
tuda determinados processos que não são observados diretamente, não
são subjacentes aos sintomas, queira ou não, deve diferenciar várias for
mas de transcurso desses processos. Por isso, a comparação desse
gênero, a aplicação do método comparativo desse gênero não é algo
exclusivo, específico da pedologia. A aplicação do método genético
comparativo, como já foi dito, em relação ao desenvolvimento etário é,
para a pedolo gia, seu diferencial específico.
Agora, permitam-me apenas resumir o que disse. Afirmei a vocês
que toda ciência, incluindo a pedologia, tendo seu objeto específico de
estudo, deve ter também o seu método ou o seu caminho de investi
gação. Esse caminho é definido pelas especificidades do objeto que é
estudado por uma determinada ciência. De acordo com elas, a
pedologia elabora seu método especial, que é definido, como tentei
abordar, por três momentos básicos. Primeiramente, porque é um
método global de estudo da criança. Não se deve entender por
método de estudo da unidade o estudo multilateral, nem o estudo que
exclui a análise, mas

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 55


sim um tipo específico de análise, mais exatamente, a que se vale
do método de decomposição em unidades e não em elementos.
Essa parte difícil da aula de hoje será, espero, melhor compreendida
após a próxima conversa, mais concreta, em que estudaremos o meio e
a hereditariedade na pedologia, concretizando esse método de
decomposição em unidades. Uma vez que as outras ciências estudam
os mesmos objetos com outros métodos, a diferença desse tipo de
análise ficará clara.
A segunda especificidade do método pedológico é que ele
tem um caráter clínico no sentido de estudo dos processos de
desenvolvimento que subjazem aos sintomas em determinadas
idades.
E a terceira especificidade consiste no fato de que esse
método é genético comparativo, estuda a especificidade do
desenvolvimento da criança em diversas etapas etárias e as
compara entre si, em espaços de tempo mais estreitos,
levando-nos, com isso, quem sabe, ao esclareci
mento do caminho que a criança percorre no desenvolvimento de
uma etapa a outra.
Essas são as três especificidades básicas que definem o método de
investigação pedológica. Nos seminários e nas aulas práticas, conhecere
mos uma série de procedimentos metodológicos de investigação.
Existem muitos: são procedimentos de investigação do
desenvolvimento físico e mental da criança, de determinadas funções e
aspectos de seu desenvol vimento mental e da fala, bem como métodos
de investigação da criança etc. Mas isso já não é método, é
metodologia, ou seja, é um determinado sistema de procedimentos
técnicos que realizam um ou outro método. Todavia, pode-se aplicar
corretamente essa metodologia apenas quando se compreendem os
princípios do próprio método a respeito do qual falei hoje. Na
pedologia, qualquer metodologia permite que assimilemos apenas os
sintomas e, depois, interpretando-os, cheguemos ao diagnósti co do
desenvolvimento no sentido próprio dessa palavra.

Terceira aula. O estudo da hereditariedade


e do meio na pedologia
Hoje, gostaria de relatar a vocês sobre o estudo do meio e da heredita
riedade na pedologia e espero ter a oportunidade de mostrar, de forma
mais concreta do que da última vez, em que consiste a especificidade do
método pedológico de investigação.

56 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


É provável que vocês já saibam que o desenvolvimento da criança
pode ser iminentemente determinado pela hereditariedade e pelo meio.
Isso é bastante claro e não exige comprovação. Todavia, o que
apresenta um grande interesse é esclarecer o que a pedologia estuda
em relação à hereditariedade e ao meio e como o faz.
Iniciaremos pela hereditariedade. Havia dito, da última vez, que a
pedologia não estuda as leis da hereditariedade em si mesmas, mas seu
papel no desenvolvimento, assim como, por exemplo, o clínico geral
também não estuda as leis da hereditariedade, mas, digamos, como elas
se aplicam na transmissão de determinadas doenças hereditárias. Do
mesmo modo, o pedagogo estuda de que forma inclinações
hereditárias, transmitidas segundo leis da hereditariedade, influenciam
o desenvolvi mento do que é hereditário. Por sua vez, as leis de
transmissão de carac
terísticas hereditárias são estudadas pela genética e pela biologia geral.
Isso conduz a consequências importantes. Na pedologia, o proble ma
da hereditariedade é apresentado de forma diferente de como é
feito na biologia geral ou na genética.
Gostaria de chamar atenção para quatro momentos que mudam
quando o problema da hereditariedade passa da genética para a
pedologia. Antes de tudo, na genética, quando queremos estudar as leis
da here ditariedade, interessa-nos, predominantemente, a transmissão
de certas características simples; tentamos tomar certas características –
por exem plo, a cor dos olhos – que parecem ser hereditariamente
determinadas ao máximo. Por isso, na genética, lidamos
predominantemente com o estudo dessas características simples.
Do ponto de vista da vida, do desenvolvimento da criança, essas
características são importantes? Será que podemos esperar que crianças
com olhos azuis, com olhos claros, se desenvolvam de forma diferente
e que seu destino seja totalmente distinto das crianças com olhos
escuros, com olhos de cor escura? Claro que não. É claro que essas
características não são essenciais nem importantes em si mesmas.
Contudo, elas o são do ponto de vista dos indícios de hereditariedade,
pois estudando como é transmitida a cor escura ou clara dos olhos, o
geneticista estabelece as leis segundo as quais ocorre a transmissão
hereditária dessa característica simples. Essas características, todavia,
possibilitam saber muito pouco sobre o que interessa ao pedólogo;
poderemos saber pouco a respeito de como a hereditariedade
influencia o desenvolvimento. Por isso, em

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 57


grande parte das vezes, o pedólogo não lida com características
simples, digamos, a cor dos olhos ou dos cabelos, mas com as
complexas, que surgem e se alteram ao longo do
desenvolvimento, porque apenas na relação entre elas é que
podemos estabelecer qual é o papel desempe
nhado pela hereditariedade no desenvolvimento.
Em segundo lugar, o que muda quando o problema da heredita
riedade é transferido da genética geral para a pedologia? A genética se
interessa pelo estudo de características puramente hereditárias, a cor
dos olhos, por exemplo. A ela interessam características que dependem
mi nimamente do meio. Aliás, quanto mais frequente uma
característica, mais ela é determinada pela hereditariedade e menos é
suscetível à influ ência de fatores não hereditários, provenientes do
meio, na sua configu ração. Assim, a genética consegue obter
conclusões mais puras que são de seu interesse.
Ao contrário, não interessa ao pedólogo as características
puramen te hereditárias, que independem do meio, mas aquelas
cujo desenvol vimento sofre influência conjunta do meio e da
hereditariedade. Neste caso, exatamente no ponto em que as
inclinações hereditárias e influên cias do meio participam da
configuração de determinada característica, é que podemos esperar
encontrar o papel, o significado, o peso específico das influências
hereditárias em relação às demais. Então, ao estudar o problema da
hereditariedade, o pedólogo não lida com características puramente
hereditárias, mas, em grande parte, com as de origem híbri da. Esse é o
segundo ponto.
Querendo ou não, em última instância, a genética não precisa estu
dar a hereditariedade pura, mas as características diferenciadas,
variantes, que existem na espécie humana. Por exemplo, ela estuda as
diferentes cores dos olhos e por que variam entre as pessoas. Todavia,
não apenas as características que me diferenciam de outra pessoa são
geneticamente de terminadas; também o são as comuns a mim e a outra
pessoa. Por exem plo, tenho os olhos escuros, e isso é uma
característica diferenciada, uma variante na cor dos meus olhos que me
distingue de pessoas com olhos claros. Contudo, a própria estrutura do
meu olho também é genetica mente determinada. Exatamente por ter
que estudar, de forma pura, as leis de transmissão dos caracteres
hereditários é que a genética investiga mais as características
diferenciais, variáveis, e comparativamente menos as características
humanas hereditárias comuns.

58 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Por sua vez, o pedólogo não se interessa apenas pelas
características que variam, que diferenciam uma criança de
outra, mas pelo modo como as inclinações hereditárias presentes
na pessoa conduzem as crianças a um determinado tipo de
desenvolvimento.
Por exemplo, como a genética estuda o desenvolvimento da fala?
Interessam-lhe as especificidades individuais, as variantes que diferen
ciam a fala de uma criança da fala de outra. Para a pedologia, contudo,
o problema é esclarecer, em primeiro lugar e em termos gerais, quais
são as inclinações hereditárias das crianças e que papel desempenham,
junto com os eventos do meio, no desenvolvimento da fala. Quer dizer,
interessará à pedologia não apenas as diferenças individuais
específicas, mas também as características hereditárias comuns
a todas as pessoas.
Finalmente, o último ponto. Ao estudar a hereditariedade, a gené
tica lida normalmente com características que são pré-formadas, isto é,
formadas desde o início do desenvolvimento, estáticas, pouco alteráveis,
que não são submetidas a reestruturações bruscas ao longo do desen
volvimento. Por quê? Porque a genética almeja estudar características
dos indícios que se manifestam nas leis hereditárias e, para isso, precisa
considerar as que são estáveis, constantes, que não se alteram ao longo
da vida. Se ela levar em conta uma característica inconstante que
depende do desenvolvimento, é claro que será difícil enxergar, de
forma pura, as leis da hereditariedade.
Por sua vez, interessa ao pedólogo a influência da hereditariedade
no desenvolvimento da criança. Ele se interessa, primeiramente,
pelas características dinâmicas que surgem ao longo do
desenvolvimento da criança, não pelas que já estão dadas e são
independentes deste.
Todas as quatro diferenças na apresentação do problema da heredi
tariedade na pedologia e na genética decorrem das atribuições diferen
tes das duas ciências. A genética estuda as leis da hereditariedade e, por
isso, necessita de características puras, em estado puro; requer as que
são inalteráveis e estáveis ao máximo. A pedologia estuda o papel da
hereditariedade no desenvolvimento e, por isso, focaliza
características híbridas, instáveis e que se submetem a alteração
no processo de desen volvimento da criança.
Disso decorre uma abordagem para a definição do papel ou da in
fluência da hereditariedade no curso do desenvolvimento. Na genética,

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 59


adota-se a fórmula de Pearson,22 que admite que a hereditariedade seja
a correlação entre o grau de parentesco e o de semelhança: quanto mais
próximo o parentesco e maior a semelhança de alguma característica en
tre duas pessoas analisadas, mais dados subjacentes existem sobre a
deter minação hereditária de tal característica. Para a pedologia, essa
fórmula é falsa. No desenvolvimento da criança, podemos dizer que a
hereditarie dade seja a correlação entre o grau de parentesco e o grau de
semelhança? Por exemplo, a criança se parece muito com o pai em
algumas qualidades do seu caráter, de suas convicções, de suas paixões
e gostos. Vamos admi tir que essa semelhança seja igual a 90%; a
coincidência total seria igual a 100%. Suponhamos que essa
semelhança seja de 90%. Suponhamos também que o grau de
parentesco, aqui, seja o mais próximo: 100%. Podemos dizer,
consequentemente, que essa semelhança entre o pai e o filho é a que
foi provocada necessariamente por motivos hereditários? Parece-me
que não, pois isso poderia ser devido também ao fato de que o pai
influenciou o filho não com a contribuição de fatores hereditários, mas
de fatores do meio. Apresento, a seguir, investigações simples que
conduziram a uma série de mal-entendidos. Na Alemanha, Peters23 es
tudou as notas escolares de crianças de uma escola popular por quatro
gerações e descobriu que existe uma correlação muito alta entre as
notas boas do bisavô, do avô, do pai e do filho, e também entre as
notas ruins do bisavô, do avô, do pai e do filho. Ele concluiu que a
capacidade de es tudar e obter boas notas na escola, de acordo com a
fórmula de Pearson, é hereditariamente determinada. Por quê? Porque
a correlação entre as notas boas e ruins é mais estreita quanto mais
próximo for o parentes co entre os escolares estudados. Todavia, basta
examinar esse estudo do ponto de vista pedológico para verificarmos
que essa conclusão é incor reta. Por quê? O que é preciso para
obtermos boas notas na escola? É necessária uma série de condições.
Vamos admitir que os camponeses fossem abastados. Contudo, Peters
estudou principalmente camponeses alemães de povoados rurais. Se as
demais condições fossem as mesmas, os camponeses abastados teriam
melhores chances de que seus filhos se saíssem bem na escola do que
os não abastados, pobres? Claro. O mero fato de o bisavô, o avô e o
pai serem alfabetizados cria condições para que

22 Karl Pearson (Londres, 1857-1936), cientista inglês que desenvolveu métodos estatísticos de
investigação de fenômenos psíquicos.
23 W. Peters (1880-?), famoso pesquisador no campo dos rudimentos psíquicos hereditários.60

Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski

o neto seja alfabetizado? Claro. Parece que, quando falamos de desen


volvimento e de características muito complexas que não estão
presentes desde o início e que envolvem a herança e o meio, a
semelhança e sua coincidência com o grau de parentesco nada nos diz
sobre a natureza hereditária ou não hereditária dela.
Vamos à segunda investigação. Na Alemanha, Bühler24 estudou
crianças infratoras e constatou que existe uma grande correlação entre
elas e pais infratores. Há maior quantidade de infratores entre crianças
com pais que, em alguma época, cometeram infração e foram ambos
presos, ou apenas um deles, do que nos grupos em que nenhum dos
pais esteve na prisão. Novamente, Bühler tece uma conclusão segundo
a fórmula de Pearson: já que entre pais e crianças existe semelhança na
inclinação para cometer infrações e essa semelhança está intimamente
relacionada ao grau de parentesco, isso significa que as inclinações que
levam a pessoa à cadeia também são determinadas e transmitidas here
ditariamente. Podemos, de novo, observar o equívoco dessa conclusão
quando aplicada a características complexas, híbridas e dinâmicas. Por
quê? Pelo simples fato de considerar que, se os dois pais estiveram na
prisão, isso pode contribuir para que a criança cometa uma infração. A
criança pode ficar abandonada, passar fome e o próprio exemplo dos
pais pode influenciá-la de forma degradante. Finalmente, os motivos de
caráter social que levaram o pai e a mãe a cometerem um crime podem
também levar a criança a fazê-lo. Portanto, em todos esses casos em que
se utiliza a fórmula de Pearson, chega-se a uma conclusão equivocada.
Concluindo, podemos dizer que o problema da hereditariedade
se apresenta na genética e na pedologia de modo tão diferente
que a fór mula geral de Pearson é incorreta para aplicação a
características com plexas estudadas pela pedologia.
Gostaria de falar a respeito de um dos principais métodos que auxi lia a
pedologia contemporânea a estudar a hereditariedade e seu papel
no desenvolvimento da criança: o método comparativo do estudo
de gêmeos. Vocês sabem que, às vezes, nascem gêmeos. Os gêmeos
são de diferentes tipos. Provavelmente, vocês também já ouviram falar
disso. Alguns são univitelinos e outros, bivitelinos. A diferença entre
eles é que, em um caso, nascem duas crianças que se desenvolveram de
um mesmo

24 Charlote Bühler (1893-1974), psicóloga austríaca que estudava os problemas da psicologia


infantil e genética.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 61


óvulo fertilizado e, no outro, desenvolveram-se duas crianças a partir de
dois óvulos diferentes fertilizados. Penso que vocês entendem qual é a
diferença que existe entre os dois tipos de gêmeos. Os univitelinos têm
carga hereditária idêntica. São os únicos seres no mundo cuja heredita
riedade coincide absolutamente. Como se expressou um dos investiga
dores, ela coincide assim como a dos nossos lados direito e esquerdo do
corpo. Por quê? Porque eles se desenvolvem de um mesmo óvulo fertili
zado, ou seja, de uma mesma célula do pai e da mãe. Então, os
caracteres
hereditários dos gêmeos univitelinos são absolutamente
coincidentes. Em relação aos gêmeos bivitelinos, que se
desenvolvem de dois óvulos fertilizados, a hereditariedade não é
idêntica e existe diferença entre os dois, assim como entre o
irmão e a irmã ou entre dois irmãos ou duas irmãs.
Agora, imaginem que estejamos estudando gêmeos univitelinos e
bivitelinos e comparando-os da seguinte forma. Estudo alguma caracte
rística, digamos, o desenvolvimento da fala. Estudo isso e mais alguma
coisa nos gêmeos univitelinos. Imaginem que eu tenha quatro crianças,
um par de gêmeos univitelinos e outro de bivitelinos. Estudo as capa
cidades musicais e a fala nos dois casos. Como consigo estabelecer a
semelhança no interior de cada par? Estudo como são desenvolvidas as
capacidades musicais num gêmeo e no outro. Se elas se desenvolverem
de modo completamente igual, digo que coincidem 100%. Se se desen
volverem de forma que a coincidência seja apenas pela metade, digo
que a semelhança se expressa em 50%.
Estudei as capacidades musicais dos gêmeos e estabeleci que o coefi
ciente de semelhança se expressa pela cifra 0,93 nos univitelinos e 0,67
nos bivitelinos. Se, entre os gêmeos univitelinos, houvesse uma total
coincidência, a cifra seria igual a 1 (um); caso contrário – sem nenhu ma
coincidência –, seria igual a 0 (zero). Se estudasse 100 crianças e
obtivesse coincidência em 93 casos, então a semelhança equivaleria ao
coeficiente 0,93; nos gêmeos bivitelinos, apenas a 0,67.
Comparei a fala dos gêmeos dentro de cada par. Constatou-se que,
nos gêmeos univitelinos, a fala apresenta um coeficiente de semelhança
ainda maior, igual a 0,96, enquanto nos bivitelinos, equivale a 0,89.
Então, vamos agora analisar o que isso tudo significa. Gostaria de
perguntar a vocês: com base em que dados se pode dizer qual das duas
capacidades estudadas – as musicais ou as da fala – é a mais e qual é a

62 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


menos determinada pela hereditariedade? Raciocino da seguinte forma:
o que diferencia os gêmeos univitelinos dos bivitelinos? O que os dife
rencia é o fato de os primeiros terem uma carga hereditária idêntica. No
que diz respeito ao meio de desenvolvimento dos gêmeos univitelinos e
dos bivitelinos, as condições intrauterinas foram iguais, os dois pares de
gêmeos se desenvolveram no útero da mãe ao mesmo tempo, o que sig
nifica que, se a mãe se sentia física e psiquicamente do mesmo modo
em relação a cada um, a gravidez foi única. Os gêmeos nasceram e
viveram nas mesmas condições. Normalmente, exceto em alguns casos
sobre os quais falarei mais adiante, as condições de desenvolvimento
de gêmeos são iguais, assim como a vida de dois irmãos numa só
família. Contudo, nos gêmeos, são ainda mais semelhantes, porque eles
nasceram na mes ma época e viveram normalmente juntos.
Considerando, então, que há semelhança em relação ao meio nos
gêmeos bivitelinos e nos univiteli nos, o que diferencia um par do
outro? A diferença é que a carga heredi tária é idêntica nos segundos e
não o é nos primeiros.
Penso da seguinte forma: se uma característica minha depende da
hereditariedade, isso significa que, entre gêmeos univitelinos e bivite
linos, deve haver grande divergência quanto à semelhança intrapar. Se a
característica depende da hereditariedade e esta é igual num caso e
diferente no outro, então, no que diz respeito à característica focalizada,
a semelhança deve ser muito maior nos gêmeos univitelinos. No
âmbito de cada par univitelino e de cada par bivitelino, as
condições do meio são mais ou menos iguais, mas, nos gêmeos
univitelinos, a carga here
ditária é idêntica, enquanto nos bivitelinos, não.
Nasceram duas crianças de um mesmo óvulo fertilizado. Se estudo
uma característica que depende maximamente da hereditariedade, então
a sua semelhança nos gêmeos univitelinos deve ser bem maior que nos
bivitelinos, já que a carga hereditária é idêntica nos primeiros. A carac
terística que estudo depende da hereditariedade, então, nesse caso, deve
apresentar uma grande semelhança; já no par de gêmeos bivitelinos, por
não ser idêntica, deve apresentar similitude bem menor. O grau de
here ditariedade de determinada característica será definido pelo
grau de di vergência entre os coeficientes de semelhança dos
gêmeos univitelinos e dos bivitelinos. Quanto maior a
divergência entre esses coeficientes, ou seja, quanto maior a
semelhança nos gêmeos univitelinos em relação aos bivitelinos,
mais a característica é determinada hereditariamente.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 63


Vejamos com exemplos. Imaginem uma característica A que apre
sente um grau de semelhança de 0,30 tanto nos gêmeos univitelinos
quanto nos bivitelinos. O que isso significa? Será que o fato de a carga
hereditária ser idêntica em uns e não ser em outros teve influência? Será
que esse fato influenciou o coeficiente de semelhança? Não. Nos dois
casos é 0,30. Então, a hereditariedade não desempenhou nenhum papel.
Se não há divergência, isso significa que a característica não é
hereditaria mente determinada. Imaginem que outra característica B
apresente uma semelhança de 0,93 nos gêmeos univitelinos e de 0,13
nos bivitelinos. Isso, por exemplo, em relação ao timbre de voz. Essa, é
claro, é uma característica bastante determinada hereditariamente. Por
quê? Porque as condições do meio dentro de cada par são iguais, sendo
a semelhança mínima neste caso e máxima no anterior. Por que, no
caso em questão, pode existir tamanha semelhança? Porque a carga
hereditária é idêntica. Isso significa, então, que, quanto maior a
divergência no coeficiente de semelhança entre os gêmeos univitelinos
(GU) e os gêmeos bivitelinos (GB), mais a característica é determinada
hereditariamente.
Agora, se retornarmos aos nossos exemplos, poderemos ver o que
é mais determinado hereditariamente: as capacidades musicais ou o de
senvolvimento da fala? As capacidades musicais, pois a diferença entre
os gêmeos é de 0,93 e 0,67 nesse caso, ao passo que é de 0,96 e 0,89 no
caso da fala. Isso significa que o coeficiente absoluto de semelhança
não é importante em si mesmo, pois o que importa é o quanto esses
coeficien tes de semelhança divergem entre os dois pares de gêmeos.
Por exemplo, poderia considerar uma característica que apresentasse
coeficiente igual a 0,17 nos GU e a 0,20 nos GB. Essa característica
seria mais determinada hereditariamente do que a fala, que é igual a
0,96 nos GU. O importante é a divergência.
Caso isso esteja claro, então, imaginem o caráter do método
aplicado na pedologia em geral e que é fundamental para o estudo da
hereditarie dade e de seu papel no desenvolvimento. Tomam-se gêmeos
univitelinos e bivitelinos. Para simplificar, separei um par de cada.
Contudo, em fun ção da estatística, posso separar, para conferência, não
apenas dois pares, mas 100, algumas centenas de pares de uns e de
outros.
Para que considerar muitos pares? Para eliminar características ca suais.
Levando-se em conta o meio, há gêmeos que não são educados
igualmente. Um dos casos foi publicado em Moscou. Num estudo com

64 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


gêmeos, quando a mãe informou sobre a época em que eram bebês, dis
se que viviam em condições completamente iguais: eram alimentados e
banhados do mesmo modo e recebiam o mesmo cuidado. Contudo, no
decorrer da conversa, verificou-se que ela sempre alimentava um antes
do outro; dava banho primeiro num e depois, na água suja, no outro.
Então, as condições higiênicas e de alimentação, propriamente dizendo,
não foram iguais. Essa divergência pode ocorrer porque um gêmeo é
considerado mais esperto, mais querido, e o outro simplesmente é sub
metido a condições piores. Por isso, para igualar as condições, separa-se
uma amostra representativa maior tanto de GU quanto de GB. Essa
amostra permite obter dados mais seguros e estatisticamente
fidedignos. Quando utilizamos essa amostra, consideramos também
algumas carac
terísticas complexas, digamos, o desenvolvimento da fala, das capaci
dades musicais, o desenvolvimento mental da criança, esclarecendo-se
o coeficiente de semelhança nos GU e nos GB. Assim, evidenciam-se
as características que apresentam maior ou menor divergência. Quanto
menor a divergência, mantidas as demais condições, em relação à carac
terística investigada nos dois casos, menos ela é determinada hereditaria
mente. Quanto maior a divergência, mantendo-se as outras condições
iguais, mais ela é determinada hereditariamente. Então, por meio do
estudo de características complexas nos gêmeos univitelinos e
bivite linos, temos a possibilidade de estudar a influência da
hereditariedade na formação e no desenvolvimento de
características complexas e di nâmicas que são determinadas não
apenas pela hereditariedade, mas também pelo meio.
Agora, gostaria de relatar brevemente um estudo sobre o papel da
hereditariedade no desenvolvimento em que foi utilizado o método de
estudo comparativo de gêmeos univitelinos e bivitelinos.
Primeiramente, se considerarmos características do
desenvolvimento concernentes ao psiquismo da criança, ou seja,
características complexas que surgem no desenvolvimento e que são
determinadas tanto pela he reditariedade quanto pelos fatores do meio,
e outras características que guardam relação com o desenvolvimento da
personalidade consciente do ser humano, evidencia-se que, entre as
funções elementares, mais simples, mais primitivas, a divergência é
maior do que nas funções superiores. Por exemplo, se consideramos o
aspecto motor da criança e estudamos as funções motoras e seu
desenvolvimento nos gêmeos univitelinos e nos

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 65


bivitelinos, vemos que, quanto mais elementar é a função
estudada, mais próxima está, por sua natureza, do ato
motor mais elementar, bem como maior será a divergência
entre os dois tipos de gêmeos. Se a divergência é maior,
consequentemente, essa função é mais determinada
hereditaria
mente. Se considerarmos o que se admite chamar, na
psicologia, de atos psicomotores, ou seja, as formas
superiores de movimento – por exem plo, as formas
voluntárias de movimento, os movimentos que são, de um
modo ou de outro, relacionados ao psiquismo, à
consciência da pessoa e estão ligados aos centros
superiores do cérebro –, a divergência será me
nor. Ou seja, a função se mostra menos determinada
hereditariamente. Então, com base nas investigações, a
primeira lei que delas decorre mostra que, mantendo-se as
demais condições iguais (caso sejam esco lhidas funções do
mesmo gênero), quanto mais elementar é a função,
maior a divergência dos coeficientes de semelhança
entre os GU e os GB. Mais uma vez, quanto mais alto
o nível da função, mantendo- -se as mesmas as
demais condições (no caso de escolha de funções do
mesmo gênero), menor é a divergência. Por isso, sob a
forma de uma lei específica, pode-se dizer que,
mantendo-se as demais condições iguais, as funções
elementares, que parecem estar bem no início do desenvol
vimento e constituem condições para o desenvolvimento
posterior, são mais determinadas hereditariamente do que
as funções mais complexas de mesmo gênero, de nível
superior, que surgem relativamente tarde no
desenvolvimento.
A segunda lei esclarece um pouco essa lei anterior.
Imaginem que te nhamos uma série de funções, de
características A, B, C, D, H etc. Nesse caso, não anotarei
separadamente as observações sobre os dois tipos de
gêmeos, mas apenas as divergências existentes entre eles.
Quanto maior a divergência, maior a determinação
hereditária.
Suponhamos que, nesse caso, iniciemos pela divergência
máxima. A divergência maior é igual a 0,60. Se
considerarmos uma série de funções, jamais será
observada uma queda constante dessa divergência: função
A = 0,60; B = 0,55; C = 0,50; D = 0,45; H = 0,40; K =
0,35; L = 0,30 etc. Durante muito tempo, os
pesquisadores procuraram essa escala, no topo da qual
estariam as funções determinadas hereditariamente ao
máximo; no degrau lá embaixo, as que seriam
minimamente determinadas e, en tre elas, dispostas
regularmente, as demais funções, numa ordem decres
cente de sua determinação hereditária. Supunha-se que isso

poderia ser 66 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski

encontrado. No entanto, verificou-se que nunca poderíamos obter essa


série. Se considerarmos uma série de funções que abrangem, mais ou
me nos em sua totalidade, as manifestações humanas no
desenvolvimento da criança, sempre aparecerão rupturas bruscas que
separam um grupo de funções de outro. Da mesma forma, entre um
grupo e outro de funções não apenas não existe uma passagem tão
constante, mas parece haver um salto no interior de um mesmo grupo.
Se a divergência num grupo se expressa por dezenas como 60 e 45, no
outro ela o faz por unidades até o limite de 10. Não existe,
consequentemente, esse movimento constante, gradativo, decrescente
de determinação hereditária em toda a série de funções. Quando
estudamos todas elas juntas, encontramos uma ruptu
ra que divide bruscamente a série em duas partes.
Quando perguntamos como são esses dois grupos de funções, ve
rifica-se que, em um deles, a divergência se expressa de forma brusca e
apresenta números grandes e consideráveis, pois estamos lidando com
funções elementares, inferiores, que, como podemos supor, são predo
minantemente produto da evolução biológica que nos aproximou da
constituição do tipo humano. Já no segundo grupo, que se segue à rup
tura, à linha em que a divergência não se manifesta por números
grandes e consideráveis, mas incomensuravelmente menores, estamos
falando a respeito de funções superiores, especificamente humanas e
que, como podemos supor com base nas pesquisas de que dispomos,
são produto do desenvolvimento histórico do homem. Ou seja, são
aquisições que o homem fez ao longo de seu desenvolvimento no
processo histórico. Consequentemente, essa ruptura ou divisão brusca
mostra que, no de senvolvimento ontogenético, as diferentes funções
não estão apenas numa relação quantitativa diferente com a
hereditariedade, sendo umas mais e outras menos relacionadas. No que
se refere à hereditariedade, o grupo de funções superiores está
qualitativamente em outra relação que não a das funções inferiores.
Isso se expressa no fato de não haver uma passagem gradual, mas uma
ruptura, já que as próprias escalas dessa di vergência são diferentes
para diferentes grupos de funções. No âmbito de cada grupo de
funções, existem divergências maiores e menores, mas, entre os dois
grupos, há uma ruptura e não uma passagem gradual. Isso mostra que
as funções superiores, produto do desenvolvimento histó rico do
homem, encontram-se numa outra relação com a hereditarie dade
que não a das funções elementares, predominantemente produto

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 67


do processo de desenvolvimento evolutivo do homem. Dessas duas
leis que relatei até agora, podemos e devemos extrair conclusões que
têm um grande significado teórico e prático.
Que conclusão podemos extrair da primeira lei? Se vocês se lem
bram, defini a primeira lei de forma a afirmar que a divergência entre as
funções superiores é menor do que entre as elementares, mantendo-se
iguais as demais condições. Por isso, pode-se concluir que quanto
mais longo o caminho do desenvolvimento de alguma função (o
que signi fica função superior? É a que surge mais tarde e percorre um
caminho mais longo no seu desenvolvimento), menor a influência
hereditária. Ela não se manifesta tão diretamente. Quanto mais
curto o caminho de desenvolvimento de alguma função, mais
diretamente se manifesta determinada influência da
hereditariedade. Vamos considerar a cor dos olhos. Essa
característica do homem percorrerá um caminho longo no seu
desenvolvimento? Insignificante, porque ela é muito determinada
hereditariamente. No caso das funções superiores humanas, o caráter,
as convicções éticas, a visão de mundo etc., maior é o caminho
percorrido e menor a determinação hereditária direta, mantendo-se as
demais con
dições iguais. Isso significa que o desenvolvimento não realiza,
modifica ou simplesmente combina inclinações hereditárias. Ele
acrescenta algo novo a essas inclinações. Como se diz, ele
mediará essa realização de inclinações hereditárias e, no seu
processo, surgirá algo novo, que re
fratará uma ou outra influência hereditária.
Da segunda lei – que afirma que as funções se dividem bruscamente
em duas partes, não havendo gradação, passagem gradativa da determi
nação hereditária entre elas – podemos extrair a seguinte conclusão: as
inclinações hereditárias guardam uma relação com as funções inferiores
totalmente diferente do que guardam com as superiores. Se, no caso das
funções inferiores, essas inclinações são mais ou menos diretamente de
terminantes de seu desenvolvimento, no das superiores, é mais provável
que desempenhem papel de condições e não de momentos determinan
tes de seu desenvolvimento. A segunda lei diz que não há uma
passagem gradativa. Então, pode-se concluir que algumas funções não
são simples mente menos determinadas do que outras. Isso pode ser
dito a respeito de quaisquer funções inferiores: elas mantêm uma
determinada relação com a hereditariedade e as inclinações
hereditárias se encontram, de modo específico, numa relação
diferente com a vida e com as funções

68 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


superiores. Ainda, em que consiste essa outra relação? Quanto às
funções inferiores, as inclinações hereditárias influenciam de modo
mais ou me nos direto o caráter e o destino da própria função;
porém, em relação às superiores, tais inclinações são,
provavelmente, condições cuja presen ça é necessária para que
essas funções possam se desenvolver, já que, no
seu ponto de origem, nada existe além dessa condição. Contudo, a
lei mais complexa, difícil, importante e interessante é a terceira.
Teremos feito o principal se a assimilarmos. Falarei sobre ela
apresentando um exemplo concreto, e depois de uma forma mais geral.
Vamos tomar um exemplo simples. Imaginem que eu estude uma ca
racterística nos dois tipos de gêmeos e encontre uma divergência entre
os coeficientes de semelhança igual a 0,37. Isso significa que essa carac
terística é, num certo grau, hereditariamente determinada, pois a diver
gência é grande. Mas eis que se apresenta a questão: se encontrei isso
em crianças de três anos, o que acontecerá quando eu estudar essas
mesmas crianças aos sete e aos 13 anos? Verifica-se que não será
mantida a mesma divergência. Nas crianças de sete anos, ela será de
0,29, e nas de 13, de 0,27. Então, essa divergência não é constante, não
é permanente, não fica inalterada com a idade, muda com a idade. Eis
o fato. Agora, perguntamos: o que isso significa? À primeira vista, pode
pa recer incompreensível. Convencionamos que a divergência mede a
de terminação hereditária. Em um caso, a divergência em relação à
mesma característica é maior; no outro, menor. Isso significa que a
determinação hereditária da característica mudou. Mas a
hereditariedade da criança poderia mudar dos três aos 13 anos? Claro
que não. A hereditariedade não muda dos três aos 13 anos. O que
aconteceu, então? O papel da hereditariedade no desenvolvimento
mudou; o peso específico da influ ência hereditária se alterou.
Ficando claro isso, é possível formular a lei que nos interessa de for
ma geral. Podemos dizer assim: o coeficiente de semelhança, no
âmbito dos GU e dos GB, em relação à mesma característica não
é constante nem permanente ao longo do desenvolvimento etário da
criança. Ele se altera na passagem de uma idade a outra e, como
consequência, se altera também a divergência do coeficiente entre os
GU e os GB. Como a divergência pode se alterar? Ela é uma diferença
e pode se modificar apenas se forem alterados o subtraendo ou o
diminuendo. Isso significa que, se modificamos o diminuendo ou o
subtraendo, consequentemente

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 69


se altera a diferença. Que conclusão podemos extrair dessa lei? Que a
hereditariedade não se modifica ao longo do desenvolvimento
etário, mas o peso específico de sua influência pode sofrer
alteração se, de fato, como falamos desde o início, surge algo
novo que não estava pronta
mente contido nas inclinações hereditárias.
Então, digamos, no período de desenvolvimento em que surge o
novo, o papel da influência hereditária pode ser relativamente menor e
seu peso específico pode se tornar menor. Consequentemente, alteram-
-se, de modo constante, o peso específico e o significado relativo das in
fluências hereditárias. A cor dos olhos é determinada pela hereditarieda
de. Digamos que, por força dessa lei, eu tenha recebido a cor escura dos
olhos de um dos meus antepassados. Essa cor mudará ao longo do meu
desenvolvimento etário? Não. Contudo, verifica-se também que carac
terísticas hereditárias imutáveis alteram seu peso específico ao longo do
desenvolvimento das funções superiores. No caso em que a
característica se desenvolve, surge necessariamente algo novo nela, e, à
medida que esse novo se desenvolve, o peso específico das
influências hereditárias se torna ou mais forte e passa para o
primeiro plano ou mais fraco e passa para o segundo plano. O
que acabei de mostrar (um exemplo de redução das influências
hereditárias) é a divergência no desenvolvimento de um dos aspectos
da fala. Todavia, não pensem que é sempre assim: nos anos iniciais,
essa divergência é máxima; menor nos intermediários e mínima nas
idades mais avançadas. Às vezes, lidamos com fenômenos opostos, em
que a divergência é muito insignificante na infância e muito significante
aos 1[?]25 anos. Em relação a algumas especificidades da constituição
psicossexual, pode-se dizer que a divergência entre GU e GB se mostra
mínima exatamente na infância. No período da puberda de, quando
todo o sistema psicossexual da pessoa é desdobrado e atin ge o nível de
amadurecimento, essas influências hereditárias são fortes. Dessa forma,
o seu peso específico cai ou cresce com a idade, mas pode cair antes e
crescer depois e vice-versa. Consequentemente, não há uma regra
única para todas as funções que mostre que, com a idade, o peso
específico cresce ou cai necessariamente.
Finalmente, eis o quarto pressuposto ou o quarto resultado
obtido no processo de investigação de gêmeos e que também
caracteriza o papel da hereditariedade no desenvolvimento da criança.
Com as pesquisas,

25 No manuscrito está desse modo (N. da E. R.).

70 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


esclareceu-se que não há e não pode haver uma definição sumária
das influências hereditárias no curso do desenvolvimento que
tenha a mes ma relação com todos os aspectos deste e com todas
as idades. Vimos que algumas características têm um peso específico
do ponto de vista de sua determinação hereditária, mas outras têm um
peso diferente. Alguns aspectos do desenvolvimento estão mais
diretamente relacionados à he reditariedade e outros, menos. Numa
certa idade, as influências heredi tárias, mesmo que em relação a uma
característica apenas, se mostram de modo mais direto e, em outra
idade, de forma não tão direta. Por isso, não há uma fórmula geral,
uma regra comum que possa expressar e de terminar sumariamente o
papel das influências hereditárias no curso do desenvolvimento. Essas
influências hereditárias são rigidamente diferen ciadas de acordo com
certos aspectos do desenvolvimento ou com certas idades de
desenvolvimento de cada um deles.
Eis por que, ao lidar com características complexas, híbridas,
dinâ micas e mutáveis, o pedólogo não pode separar diferentes
aspectos do desenvolvimento – os que são determinados
hereditariamente e os que são determinados pelo meio. O
problema se mostra bem mais comple xo e exige um estudo
diferenciado, em diferentes degraus etários, das influências
hereditárias no curso do desenvolvimento para cada um dos seus
aspectos isoladamente e para o mesmo aspecto separadamente.
Resta-me dizer, muito brevemente, a respeito dos dois últimos pos
tulados que decorrem da investigação com gêmeos e que, junto com os
outros que apresentei até o momento, esgotam o fundamental, o mais
importante: o conteúdo do estudo geral do papel da hereditariedade no
desenvolvimento da criança.
O primeiro postulado mostra que, quando se trata de herança de
características humanas comuns, ou seja, do mesmo gênero ou seme
lhantes, a divergência nos coeficientes de semelhança entre GU e GB é
menor do que quando se trata da herança de características variáveis,
mantendo-se as demais condições iguais. Por exemplo, a característi ca
do meu olho. Penso que é fácil compreender que, se eu enumerar todas
as características do meu olho, será possível observar as variáveis que,
em outras pessoas, possam ser diferentes das minhas e também ser
comuns a qualquer olho humano. Então, mantendo-se as mesmas as
demais condições, se considerarmos características análogas,
veremos que a divergência será menor ou maior ao se estudar,
respectivamente,

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 71


o desenvolvimento de aspectos humanos comuns ou as
características variáveis, isto é, as que diferem de pessoa para
pessoa. Como veremos mais à frente, essa lei tem uma grande
aplicação no estudo do desenvol vimento físico da criança, assim como
no das leis gerais do crescimento e das regularidades específicas e
constitucionais que definem o crescimen to de crianças com diferentes
tipos de constituição.
Finalmente, o último postulado é frequentemente apresentado, em
sua essência, como se fosse uma síntese do que dissemos antes.
Analisamos a divergência nos coeficientes como uma característica
ou uma medida da determinação hereditária desta. Podemos
perceber que essa divergência nunca é igual a zero e, tendo em vista os
aspectos que se desenvolvem, nunca é igual a 100. O que isso significa?
Caso a diver
gência fosse igual a zero, isso significaria que a hereditariedade não de
sempenharia papel algum no desenvolvimento daquela característica. Se
a divergência for igual a 100, isso significa que apenas a hereditariedade
tem esse significado. Caso considerássemos as características simples
com as quais opera a genética, digamos, a cor dos olhos, veríamos que
o coe ficiente de divergência seria igual a zero ou a 100. Todavia, se
levarmos em conta características com as quais opera a pedologia – as
relacionadas ao desenvolvimento e que têm uma história de
desenvolvimento –, ve remos que a divergência nunca será igual a zero
ou a 100. Isso significa que sempre há divergência e, se ela existe, por
menor que seja, indepen dentemente da função superior que estejamos
estudando, então, lá na ponta, o componente de hereditariedade
participa do desenvolvimento por menor que seja seu peso
específico relativo nesse caso concreto. O papel desse
componente nunca se reduz a zero absoluto e, da mes ma forma,
nunca a divergência é igual a 100. Isto é, um aspecto que se
desenvolve nunca é determinado apenas como uma característica
puramente hereditária, ou seja, o meio também participa do
desen volvimento. Logo, o desenvolvimento contém sempre,
numa unidade, aspectos hereditários e do meio. É verdade que
essa unidade é variada. Vimos que o papel e o peso específico das
influências hereditárias podem ser maiores em relação a algumas
funções do que em relação a outras, e menor numa determinada idade
do que em outra. Consequentemente, essa unidade é mutável.
Contudo, por menor que seja o peso específico da hereditariedade, ele
nunca cai a zero, e seja qual for o peso específico do meio no
desenvolvimento da criança, ele também nunca cairá a zero,

72 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


tornando a divergência igual a 100. Logo, os componentes das
influên cias hereditárias e das influências do meio participam
diretamente das características que se desenvolvem. Ou seja,
desenvolvimento é sempre um processo dinâmico, uma unidade
de influências hereditárias e do meio. Contudo, essa unidade não
é constante, não é permanente, não é algo dado para todo o
sempre e sumariamente determinado. É uma unidade mutável,
diferenciada, constituída de diversas formas e requer, a cada vez,
um estudo concreto. Nunca se observou algum aspecto do
desenvolvimento que fluísse como se fosse determinado apenas
pela herança ou pelo meio, ou seja, o desenvolvimento não
consiste de uma combinação mecânica de dois fatores, de duas
forças externas, do meio
e da hereditariedade, que se combinam e o movem para frente.
Da próxima vez, vamos nos deter no estudo do meio. Esclareceremos
também como, atualmente, foram identificadas as diferenças entre o es
tudo da hereditariedade na pedologia e na genética, bem como eluci
daremos a diferença entre o estudo do meio na pedologia e na higiene.
Daí, então, poderemos formular algumas conclusões concretas sobre a
nossa conversa anterior – sobre a natureza do método na investigação
pedológica.

Quarta aula. O problema do meio na pedologia


Hoje, o tema de nossa aula é o problema do meio na pedologia. Ele se
apresenta da mesma forma que o problema da hereditariedade, con
forme vimos, quando falamos que a pedologia estuda a hereditariedade
sob seu ponto de vista específico e não se interessa pelas leis dela em si
mesmas, mas pelo papel que desempenha no desenvolvimento da crian
ça. O mesmo pode ser dito a respeito do meio. A pedologia não estuda
o meio em si mesmo; isso é objeto de outras ciências. Entre as ciências
mais próximas da pedologia, poderíamos indicar a higiene como a que
predominantemente estuda o meio do ponto de vista de sua relação
com o adoecimento e a preservação da saúde.
Do mesmo modo que em relação à hereditariedade, o pedólogo
não estuda o meio e as leis de sua estruturação, mas o seu papel e o
significa do de sua participação e influência no desenvolvimento da
criança. Por isso, precisamente como no problema da hereditariedade,
também aqui devemos, antes de tudo, esclarecer algumas leis básicas e
conceitos que caracterizam esse significado ou papel.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 73


Em primeiro lugar, gostaria de apresentar o que, brevemente, já
destacamos. Precisamente, para uma compreensão correta do papel do
meio no desenvolvimento da criança, é necessário investigá-lo não com
parâmetros absolutos, mas relativos, se for possível assim expressar. O
meio não deve ser estudado como um ambiente de desenvolvimento
que, por força de conter determinadas qualidades ou características, já
define pura e objetivamente o desenvolvimento da criança. É sempre
necessário abordá-lo do ponto de vista da relação existente entre ele e a
criança numa determinada etapa de desenvolvimento. Isso pode ser afir
mado como uma regra geral que se repete com frequência na pedologia:
é necessário passar dos indicadores absolutos do meio para os relativos,
ou seja, para esses mesmos indicadores na sua relação com a criança.
Duas ideias nos permitem defender esse pensamento. A primeira é
que o papel de quaisquer elementos do meio é distinto em diferentes
degraus etários. Por exemplo: a fala das pessoas que estão ao redor da
criança pode ser a mesma quando ela tem seis meses, um ano e seis
meses ou três anos e seis meses. Ou seja, a quantidade de palavras que
ela ouve e o caráter da fala, do vocabulário, da erudição, considerando
o contexto cultural, podem permanecer os mesmos. Contudo, qualquer
um enten de que esse fator, que não mudou ao longo do
desenvolvimento, tem um significado diferente quando a criança
compreende a fala, quando não a compreende de forma alguma e
quando se encontra entre essas duas fases, começando a
compreendê-la.
Dessa forma, o papel do meio no desenvolvimento pode ser eviden
ciado apenas quando levamos em consideração a relação entre a criança
e o meio.
Antes de tudo, o meio, no sentido direto da palavra, se modifica
para a criança a cada degrau etário. Alguns autores dizem que o de
senvolvimento da criança consiste na ampliação gradativa do seu meio.
O útero da mãe é o meio da criança que ainda não nasceu; após vir ao
mundo, também dispõe, como meio próximo, de um ambiente muito
pequeno. Como se sabe, o mundo distante não existe para o recém-nas
cido. Para essa criança, existe apenas o mundo que se relaciona direta
mente com ela, ou seja, o que se articula em torno de um espaço
estreito, formado por fenômenos e objetos ligados ao seu corpo. Aos
poucos, o mundo distante começa a se aproximar. Contudo, no início,
trata-se também de um mundo muito pequeno: o mundo do quarto, do
pátio

74 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


mais próximo, da rua. Quando começa a andar, esse mundo se expande
e, cada vez mais, novas relações entre a criança e as pessoas que a
circun dam se tornam possíveis. Posteriormente, o meio se modifica
por força da educação, que o torna específico para a criança a cada
etapa etária: na primeira infância, a creche; na idade pré-escolar, o
jardim de infância; na idade escolar, a escola. Cada idade tem seu
próprio meio, organizado para a criança de tal maneira que, quando
tomado no sentido de algo puramente externo, se modifica na
passagem de uma idade para outra.
Todavia, isso é pouco. Até mesmo quando o meio se mantém
pouco alterado, o mero fato de a criança mudar, no processo de
desenvolvi mento, faz com que se modifiquem o papel e o significado
dos momen tos do meio que parecem permanecer inalterados. Um
evento que tem determinado significado desempenha um papel numa
idade específica. Todavia, dois anos depois, começa a ter outro
significado e a desempe nhar outro papel por força de mudanças da
criança. Ou seja, a relação da criança com aqueles eventos do meio
mudou.
Valendo-nos de exemplos que vimos quando analisamos crianças,
podemos dizer, com mais precisão ou exatidão, que os momentos essen
ciais para definição da influência do meio no desenvolvimento psicoló
gico, no desenvolvimento da personalidade consciente, são a vivência.
A vivência de uma situação qualquer, de um componente qualquer do
meio define como será a influência dessa situação ou meio sobre a crian
ça. Ou seja, não é esse ou aquele momento, tomado independentemente
da criança, que pode determinar sua influência no desenvolvimento pos
terior, mas o momento refratado através da vivência da criança.
Tomemos um exemplo simples dentre os casos de nossa clínica.
Estamos lidando com três crianças da mesma família. O ambiente ex
terno a essa família é igual para as três crianças. Em essência, é uma
situação muito simples. A mãe bebia e, pelo que se viu, sofria de trans
tornos nervosos e psíquicos por causa disso. As crianças se deparavam
com uma situação extremamente difícil. Certa vez, em um momento de
embriaguez ou por ocasião de uma crise decorrente do transtorno, a
mãe tentou atirar um filho pela janela, espancou e derrubou as crianças
no chão. Numa palavra, as crianças viviam num ambiente de pavor e
terror.
Trouxeram-nos as três crianças. Cada uma delas apresentava um
quadro completamente específico de distúrbio de desenvolvimento na
mesma situação. O mesmo ambiente apresentava quadros completa
mente diferentes nas três crianças.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 75


Na criança menor, tínhamos um quadro que se apresenta com mais
frequência junto a crianças pequenas em circunstâncias como essa. Ela
reagia a isso com uma série de sintomas neuróticos, isto é, defensivos.
Estava oprimida pelo pavor em relação ao que estava acontecendo.
Como resultado, desenvolveu medos, enurese, gagueira; às vezes,
simplesmente silenciava ou perdia a voz. Em outras palavras, ela reagia
à situação com total abatimento e indefensibilidade.
Na segunda criança, desenvolveu-se um estado de extremo sofri
mento (vimos um exemplo quando estudamos uma de nossas crianças).
Exatamente, como se diz, um estado de conflito interno que é frequen
temente encontrado em situações semelhantes, quando surge uma rela
ção afetiva contraditória da criança com a mãe – lembrem-se do que já
falamos –, uma relação ambivalente. Por um lado, a mãe era, para ela,
um objeto de muita ligação; por outro, era fonte de medo, das mais pe
sadas impressões que sentia. Autores alemães denominam esse
complexo afetivo que a criança sente de Mutter-Hexkomplex, ou seja,
“complexo da mãe bruxa”, que é quando se unem o amor pela mãe e o
terror diante da bruxa. O segundo filho foi trazido com um conflito
evidente, com uma contradição interna decorrente do choque da
relação positiva e negativa com a mãe; por um lado, uma relação afetiva
forte e, por outro, um ódio terrível dela, ou seja, um comportamento
terrivelmente contraditório. Ele queria voltar prontamente para sua
casa e, ao mesmo tempo, expres sava pavor quando falavam desse
retorno.
Finalmente, a terceira criança, o filho mais velho, à primeira vista,
apresentou um quadro inesperado. Acabamos percebendo que se
tratava de uma criança de inteligência curta, bastante tímida, mas que,
ao mes mo tempo, apresentava traços de alguma maturidade, seriedade
e preo cupações precoces. Esse filho entendia a situação, entendia que
sua mãe era doente e sentia pena dela; percebia que as crianças mais
novas esta vam em perigo quando a mãe se enfurecia. Coube-lhe um
papel específi co a desempenhar. Ele deveria levar a mãe para se deitar,
cuidar para que ela não fizesse nada com os pequenos e consolá-los.
Ele simplesmente se tornou o chefe da família, o único que deveria
cuidar dos demais. Como resultado, o curso de seu desenvolvimento
mudou bruscamente. Ele não era um garoto de vivacidade
correspondente à sua idade, com interesses reais e simples, em
vigorosa atividade. Tratava-se de uma criança que se alterara
acentuadamente durante seu desenvolvimento, uma criança de outro
tipo.

76 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Quando se toma esse exemplo – e de exemplos assim está
repleta a experiência de um pesquisador que se ocupa de
material concreto –, vê-se facilmente que uma mesma
situação do meio, um mesmo aconteci mento que atinge
diferentes pessoas que se encontram em etapas etárias
distintas tem uma influência distinta sobre o
desenvolvimento de cada uma delas.
O que determina que as condições do meio exerçam três
influências diferentes em três crianças distintas? Isso se
explica pelo fato de que a re lação de cada uma delas com
os acontecimentos do meio é diferente. Ou, poderíamos
dizer, cada uma das crianças vivenciou a situação de forma
diferente. Uma a vivenciou sem lhe atribuir um sentido,
sem compreen der o pavor que a introduzia numa situação
de indefensibilidade. A outra a vivenciou de forma
consciente como um conflito agudo entre uma relação
afetiva intensa e sentimentos de medo, ódio e raiva. A
terceira, até certo ponto, como um menino de 10 ou 11
anos poderia vivenciá-la, como uma desgraça que se
abateu sobre a família e que exigia deixar tudo de lado
para, de alguma forma, tentar suavizá-la, ajudar a mãe
doente e as crianças. Então, a influência que a situação
exerceu sobre o desenvol vimento das três crianças foi
diferente em função do aparecimento, nas mesmas, de três
vivências distintas acerca da mesma situação.
Com a ajuda desse exemplo, gostaria de esclarecer a ideia
de que, de um modo diferente de outras ciências, se a
pedologia não estuda o meio enquanto tal,
independentemente da criança, mas o seu papel e influên
cia no curso do desenvolvimento, então ela deveria
encontrar o prisma que refrata a influência do meio sobre
a criança. Ou seja, ela deveria saber encontrar a relação
existente entre a criança e o meio, a vivência da
criança, como ela toma consciência, atribui sentido e se
relaciona afe tivamente com um determinado
acontecimento. Digamos que esse seja o “prisma” que
define o papel e a influência do meio no desenvolvimento
do caráter da criança, no seu desenvolvimento psicológico
e assim por diante.
Em função desse exemplo, gostaria de chamar atenção
para apenas mais um ponto. Se se recordam, quando
falamos sobre o método da nossa ciência, tentei defender
a ideia de que, na ciência, a análise que decompõe em
elementos deve ser substituída pela análise que articula
unidades num todo complexo. Além disso, dissemos que,
diferentemen
te dos elementos, as unidades representam os produtos da

análise que Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 77

não perdem as características inerentes ao todo e, de um modo simples,


conservam as características deste.
Hoje, valendo-me de um exemplo concreto de estudo do meio, gos
taria de mostrar algumas dessas unidades com que a pesquisa
psicológica opera. A vivência pode ser um exemplo. Vivência é uma
unidade na qual se representa, de modo indivisível, por um lado,
o meio, o que se vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo
que está fora da pes soa –, e, por outro lado, como eu vivencio isso.
Ou seja, as especificida des da personalidade e do meio estão
representadas na vivência: o que foi selecionado do meio, os
momentos que têm relação com determinada personalidade e foram
selecionados desta, os traços do caráter, os traços constitutivos que têm
relação com certo acontecimento. Dessa forma, sempre lidamos com
uma unidade indivisível das particularidades da personalidade e
das particularidades da situação que está representada na
vivência. Por isso, metodologicamente, quando estudamos o papel do
meio no desenvolvimento da criança, é vantajoso fazer a análise do pon
to de vista de suas vivências porque, como já disse, nelas são levadas em
conta as particularidades pessoais que participaram da definição da re
lação da criança com uma dada situação. Por exemplo, será que todas as
minhas particularidades pessoais constitutivas e dos mais diversos tipos
participam inteira e igualmente? Claro que não. Numa determinada si
tuação, algumas de minhas particularidades constitutivas desempenham
papel principal; em outra, desempenham esse papel outras especificida
des que, na situação anterior, sequer poderiam se manifestar. Para nós, é
importante saber não apenas quais são as particularidades constitutivas
da criança, mas quais delas, em dada situação, desempenharam
papel decisivo na definição da relação da criança com
determinada situação, enquanto em situação distinta, outras o
fizeram.
Assim, a vivência auxilia a destacar as peculiaridades que desem
penharam um papel na definição da relação com uma dada situação.
Imaginem que, pela minha constituição, eu seja dotado de certas parti
cularidades. É claro que vou vivenciar uma situação de um determinado
modo. Contudo, se sou dotado de outras especificidades, certamente
vou vivenciá-la de outra maneira. Por isso falam a respeito das
peculiaridades constitutivas das pessoas, diferenciando-as em agitadas,
comunicativas, animadas, ativas ou mais emotivas, indolentes e obtusas.
É claro que, se lidamos com duas pessoas que têm características
constitutivas opostas,

78 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


um mesmo acontecimento provocará vivências distintas em cada uma.
Consequentemente, de modo geral, as especificidades constitutivas da
pessoa ou da criança parecem ser mobilizadas por uma vivência na qual
se precipitam e se cristalizam. Ao mesmo tempo, a vivência não
represen
ta apenas a conjugação dessas particularidades pessoais da criança, que,
por sua vez, definem como esta vivenciou determinado acontecimento,
mas também os diversos acontecimentos vivenciados de diferentes ma
neiras pela criança. Uma mãe embriagada ou psiquicamente doente é o
mesmo que uma babá psiquicamente doente, mas não é o mesmo que
um pai ou um vizinho embriagado. Isso significa que o meio, que, nesse
caso, apresentou-se como uma situação concreta, também é sempre re
presentado numa determinada vivência. Por isso, temos razão ao
analisar a vivência como uma unidade de momentos do meio e da
personalidade. Justamente por isso ela é um conceito que permite a
análise das leis do desenvolvimento do caráter e o estudo do papel e da
influência do meio no desenvolvimento psíquico da criança.
Tomemos mais um exemplo que também ajudará a esclarecer como
a pedologia estuda, concretamente, o papel do meio no
desenvolvimento da criança ao investigar as relações que existem entre
ela e o meio circun dante. Penso que vocês concordarão com o fato de
que uma ocorrência qualquer no meio, ou uma situação qualquer,
influenciará a criança de formas diferentes dependendo de como ela
compreende seu sentido e significado. Por exemplo, imaginem a
seguinte situação: morre uma pes soa na família. É claro que a criança
que entende o que é a morte reagirá a isso de uma maneira diferente
daquela que não entende nada do que ocorreu. Ou, então, uma família
em que os pais se separam. Nessas fa mílias, frequentemente nos
deparamos com momentos ligados a crianças difíceis de serem
educadas. Mais uma vez, a criança que entende o que está acontecendo,
que entende o significado do que se passa, reagirá de forma diferente
daquela que não o faz.
De forma breve e simples, poderia dizer que a influência do meio
no desenvolvimento da criança, junto com as demais influências,
será medida também pelo nível de compreensão, de tomada de
consciência, de atribuição de sentido ao que nele acontece. Se as
crianças tomam consciência de formas distintas, isso significa que um
mesmo aconteci
mento terá sentidos completamente diferentes para elas. Sabemos que,
muitas vezes, acontecimentos tristes significam alegria para a criança
por

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 79

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