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Queremos crianças e professores em atividade

Juliana Campregher Pasqualini e Lucinéia Maria Lazaretti

Um dos pilares centrais da Pedagogia da Infância é o protagonismo infantil. Argumenta-se


que é preciso reconhecer a criança como ator principal e dar voz às crianças, penetrar em sua cultura,
em seus modos próprios de sentir, pensar e agir sobre o mundo. Nas palavras de Borba (2008, p.
85): "os espaços de Educação Infantil devem garantir que a criança se constitua autora de seu
processo de desenvolvimento e aprendizagem, valorizando seus movimentos, expressões, ações,
falas, narrativas e produções". Considera-se que ninguém detém o monopólio de conhecimento
sobre a criança, já que ele é construído de forma dinâmica nas interações, desenvolvendo-se um
programa centrado na criança, nos interesses da criança (FARIA, 1994). Tal proposição se apoia
na premissa de que a diretividade do professor embota ou impede o protagonismo infantil.
Na lógica da Pedagogia da Infância, não é adequado utilizar, na Educação Infantil, a
terminologia relação professor-aluno, pois as interações entre adultos e crianças nos espaços de
convívio coletivos não deveriam ser mediadas pelo ato de ensinar e seus elementos. Cerisara (2004,
p. 10) compreende que o "foco não está nos processos ensino-aprendizagem e, sim, nas relações
educativo-pedagógicas". Com isso, a Educação Infantil passa a ser entendida como um espaço de
relações educativo-pedagógicas, centralizado nas vivências, de forma livre e espontânea, nos
processos e nas manifestações naturais das crianças, o que delega novas atribuições ao professor: a)
aprender a interpretar processos contínuos, em vez de esperar para avaliar resultados; b) aprender a
nada ensinar às crianças, exceto o que podem aprender sozinhas; c) aprender a ingressar na estrutura
de tempo das crianças, cujos interesses emergem apenas no curso da atividade ou das negociações
que surgem dessa atividade; d) aprender a perceber e escutar as crianças e o que demonstram por si.
Isso significa que o professor deve aprender e reaprender com as crianças e, com isso, seguir as
crianças e não os planos, trabalhar com menos certezas e mais incertezas e inovações (EDWARDS,
1999).
Consideramos fundamental que, nas relações pedagógicas, se criem condições para que as
crianças coloquem em movimento seu pensamento, seus afetos e demais processos psíquicos, façam
perguntas, formulem hipóteses, expressem-se e sejam criativas. No entanto, as crianças só
manifestarão essas qualidades no seu desenvolvimento se não as privarmos dos processos de ensino.
E, para isso, é preciso que a criança-aluno seja inserida em atividades compartilhadas com o – e
dirigidas pelo – professor.
Para avançar na direção de uma proposta pedagógica para a educação infantil, é preciso
superar as concepções de desenvolvimento que o caracterizem como processo que se produz natural
e espontaneamente, resultando em uma simplificação de um fenômeno extremamente complexo. É
também necessário superar a falsa dicotomia/oposição entre diretividade do professor e participação
ativa da criança-aluno.
O fato de o professor conceber uma ação de ensino e orientar sua realização não retira da
criança o papel de sujeito ativo. Já o conteúdo da atividade, seus objetivos e a natureza (e conteúdo)
das intervenções mediadoras podem, sim, produzir como efeito a passividade e o assujeitamento.
Esse é, em nosso entendimento, o debate central a ser feito. Entendemos que, para avançar nessa
discussão, é necessário elucidar o conceito de atividade.
É princípio pedagógico para o enfoque histórico-cultural e histórico-crítico que a criança
esteja em atividade na escola, mas o significado de atividade não se confunde com a acepção do
termo no senso comum, como mero sinônimo de fazer coisas, estar executando tarefas e ações
motoras. A atividade humana, preconizada por Leontiev, pressupõe intencionalidade; ela é regulada
por finalidades que a guiam em direção ao alcance de determinado objeto (material ou ideal) que
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atenda a uma necessidade. A própria possibilidade de guiar-se conscientemente por finalidades deve
ser entendida como uma conquista histórica e cultural humana a ser tornada realidade para cada
criança.
Leontiev (1978) explica que o mundo da cultura não está dado de imediato à criança, não é percebido
simplesmente pelo fato de ela estar no mundo. Para que esse mundo circundante da cultura humana
surja para a criança, é preciso que ela exerça uma atividade efetiva mediante a qual possa se
relacionar concretamente com os fenômenos culturais e apropriar-se das criações humanas (a
linguagem, os instrumentos, os objetos, os conceitos, as ideias, a música, as artes etc.). A criança
não é meramente colocada diante do mundo dos objetos humanos, ensina nosso autor: para "se
apropriar dos objetos ou dos fenômenos que são o produto do desenvolvimento histórico, é
necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços
essenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto" (LEONTIEV, 1978, p. 268). Isso significa
que a criança, ao apropriar-se de algum instrumento da cultura, precisa reproduzir em sua atividade
as operações motoras que nele estão incorporadas, o que exige a própria reorganização dos
movimentos naturais e instintivos que conduz à formação de faculdades motoras superiores. "Assim,
quando dizemos que uma criança se apropria de um instrumento, isso significa que aprendeu a
servir-se dele corretamente e que já se formaram nela as ações e operações motoras mentais
necessárias para esse efeito" (p. 321). Ocorre que a atividade efetiva que permite à criança
conquistar novas ações e operações não se forma nela a partir dela mesma, mas na relação com o
outro, a partir de modelos, orientações e instruções concebidos por aqueles que já percorreram o
percurso de apropriação daquela atividade cultural. É preciso que a atividade da criança seja
orientada e organizada para que se possa constituir como fonte de desenvolvimento de novas
capacidades afetivo-cognitivas. Essa afirmação é de singular importância para nosso estudo por
explicitar a divergência em relação a proposições de pesquisadores que defendem que basta
organizar o espaço para que as crianças possam se expressar, conviver e cooperar (FARIA, 2000).
Recorreremos a Elkonin (1998) para discutir o papel da atividade compartilhada entre
adultos e crianças como fonte principal do desenvolvimento infantil. Ao tratar da formação da
atividade objetal na primeira infância (período do desenvolvimento que, na sociedade moderna, vai
aproximadamente de 1 a 3 anos), o autor analisa a aprendizagem espontânea da criança e a
importância da atividade colaborativa orientada pelo adulto:

Sem negar que a criança possa descobrir sozinha as funções de objetos soltos,
ao cumprir por sua própria conta tarefas que exigem o emprego de instrumentos,
consideramos não ser essa, no entanto, a forma fundamental. A forma
fundamental é a de atuarem em conjunto crianças e adultos a fim de,
paulatinamente, estes transmitirem àquelas os modos planejados pela sociedade
para usar os objetos. Nesse trabalho conjunto, os adultos organizam em
conformidade com um modelo as ações da criança, e em seguida estimulam e
controlam a evolução de sua formação e execução. (ELKONIN, 1998, p. 217).

O excerto faz alusão a uma particularidade de formação da atividade objetal na primeira


infância que, de modo amplo, pode ser entendida como princípio explicativo do desenvolvimento
psíquico na infância. Novas atividades, ações e operações formam-se na criança no processo
concreto de comunicação com outras pessoas, como explica Leontiev (1978). O adulto, em
particular o professor de educação infantil, atua como par mais desenvolvido que orienta e organiza
a atividade infantil para que nela se possa gradativamente reconstituir a atividade historicamente
elaborada e conquistada pelos seres humanos que se encontra condensada nas produções da cultura
(linguagem, arte, ciência, filosofia, cultura corporal).

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Em suma, vemos nos pressupostos da psicologia histórico-cultural uma concepção de
desenvolvimento que toma como unidade de análise não o indivíduo/criança, mas a relação criança-
adulto.

Cada nova escala no desenvolvimento da independência, na emancipação em


relação aos adultos, significa simultaneamente o surgimento de uma forma nova
de relação da criança com os adultos e com a sociedade. A relação entre a
tendência à independência e a necessidade de comunicação com os adultos
numa vida conjunta com os mesmos, configura-se em uma das contradições
internas, tidas como a base do desenvolvimento da personalidade da criança
(ELKONIN apud B. D. ELKONIN, 2007, p. 6).

Para Venger (1976), Mújina (1979) e Elkonin (1998; 1987), essa relação criança-adulto, desde
os primeiros meses de vida, adquire um caráter de atividade compartilhada e instruída entre a criança
e o adulto, atividade essa que desafia o psiquismo infantil e, assim, mobiliza processos psíquicos
ainda não consolidados, mas que já despontam como possibilidade iminente de desenvolvimento.
Essa atividade compartilhada e instruída influi sobremaneira no desenvolvimento das funções
psíquicas, haja vista que esse desenvolvimento "aparece em cena duas vezes, em dois planos:
primeiro no plano social e depois no plano psicológico, ao princípio entre os homens como categoria
intrapsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica" (VYGOTSKI, 1995, p.
150, tradução nossa).
Logo, a figura do par mais desenvolvido é central na teoria histórico-cultural, e seu papel é criar
possibilidades de desenvolvimento para a criança, posto que o desenvolvimento não transcorre
natural ou espontaneamente, como efeito da maturação orgânica ou pelo mero acúmulo de
experiências de interação com o entorno, mas apenas à medida que a criança tem a possibilidade de
apropriar-se ativamente das objetivações da cultura, conquistando, nesse processo, neoformações
psíquicas que transformam sua relação com o mundo, engendrando novas capacidades e novas
necessidades.

Dessa forma, as necessidades e os interesses da criança estão constantemente


relacionados com os adultos, ainda que essa relação adquira novas formas em
decorrência do aumento das possibilidades da criança. Aparecem novas
necessidades, que servem de base para o surgimento de novos aspectos da
atividade fundamental. (VENGER, 1976, p. 61, tradução nossa).

Partindo desse entendimento, não é possível compactuar com a perspectiva de nada ensinar às
crianças e centralizar o processo pedagógico naquilo que podem aprender sozinhas e no que
demonstram e se interessam por si mesmas, conforme preconiza Edwards (1999). Tal
posicionamento consiste, segundo nossa compreensão a respeito das forças motrizes que guiam e
produzem o desenvolvimento infantil, em uma atitude de omissão pedagógica. Como já foi
explicitado, os interesses e as curiosidades que movem as ações das crianças dependem da qualidade
da relação criança-mundo, mediada pela atividade compartilhada e instruída com e pelo par mais
desenvolvido, que potencializa a atuação da criança frente aos objetos e fenômenos que se
apresentam a serem conhecidos e apropriados. Isso significa que os interesses não emanam de uma
força interior, inata, mas se produzem originalmente nas relações sociais externas e vão sendo
internalizados, passando a direcionar as escolhas, seus motivos, enfim, o interesse de agir nessa
realidade. Portanto, quanto maior for a riqueza de experiências, de vivências, proporcionadas pela
escola, maior será o leque de possibilidades de interesses das crianças acerca dos objetos de
aprendizagem. Isso significa que esses interesses emergem do encanto das crianças pelos fenômenos
e objetos da realidade e podem ser transformados em motivos de aprendizagem, mostra Ottoni

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(2016). Em seu estudo, a pesquisadora observou que o conteúdo (curricular) "animais ovíparos e
mamíferos", ao ser ensinado por meio de diferentes estratégias e com intervenção qualificada do
professor, aguçou novos interesses e levantou hipóteses e questionamentos sobre o fenômeno
conhecido e apropriado pelas crianças.
Assim, é necessário que o professor de educação infantil delimite finalidades e parâmetros que
organizem, regulem e dirijam a atividade infantil, para que essa atividade seja desenvolvente, isto
é, para que efetivamente provoque a formação de novas capacidades no psiquismo infantil e,
consequentemente, novas possibilidades de ação no mundo. Mas isso não significa que as
finalidades devam ser estabelecidas para a criança, e sim com a criança, como processo
compartilhado no plano interpsíquico que cria as condições necessárias para que ela venha a
dominar os meios para a autorregulação da conduta, construindo sua autonomia e atuando na
formação intrapsíquica.
Logo, o protagonismo não está na criança ou no professor: o que está em cena é a relação
educativa. Nesse sentido, resgatamos também a atividade do professor "compreendido como alguém
que transmite à criança os resultados do desenvolvimento histórico, explicita os traços da atividade
humana objetivada e cristalizada nos objetos da cultura e organiza a atividade da criança"
(PASQUALINI, 2006, p. 193), e não meramente alguém que assiste, acompanha e estimula o
desenvolvimento infantil. Contrapomo-nos, assim, à descaracterização, difundida pela Pedagogia
da Infância, do professor como alguém que ensina, tendo sua interferência na sala de aula reduzida
a mera participação, como aponta Arce (2004).
Entendemos que esse professor, para estar em atividade, precisa colocar-se como sujeito da
atividade de ensino, estabelecendo uma relação consciente com os motivos e finalidades dessa
atividade, dominando seus meios e vislumbrando resultados almejados. Isso significa ter clareza do
significado de sua função e compromisso social e assumir subjetivamente a necessidade social
objetiva de promover a humanização e o desenvolvimento cultural das crianças, produzindo
aprendizagens que elevem a capacidade psíquica delas. Para tanto, ele deve valer-se do
planejamento como instrumento organizador e orientador das ações de ensino.
Surge, então, outro questionamento: posicionar o holofote sobre a relação educativa e demarcar
o papel ativo do professor significa que todo o tempo que a criança passa na escola precisa ser/estar
dirigido? Com base nos princípios teóricos expostos, é possível compreender que ações não
dirigidas e opcionais também têm grande importância na escola de educação infantil. Organizar o
tempo e o espaço da educação infantil de modo que a criança possa fazer escolhas e fixar-se em
ações compartilhadas com seus pares evidentemente também movimenta aprendizagens!
O que se convencionou chamar de "tempo livre" mostra-se fundamental não meramente como
intervalo entre ações dirigidas, mas também como possibilidade de experimentar situações sem
direcionamento externo que exigem da criança o exercício de tomada de decisão, processo que tem
papel importante para a formação da autonomia e independência. Além de produzir
desenvolvimento, consideramos que momentos não dirigidos e opcionais são válidos e necessários
como fruição, até mesmo como descanso, contribuindo para o bem-estar infantil na escola. É preciso
cuidado, entretanto, em qualificar tais situações como exercício de liberdade da criança, alçando-as
ao status de prioridade.
A concepção de liberdade como ausência de restrições diretas e direcionamentos externos
imediatos fixa-se na aparência do fenômeno, pois desconsidera que os direcionamentos internos
individuais da conduta humana são constituídos a partir dos processos interpsíquicos, permeados
por conteúdos ideológicos. A supressão do direcionamento externo imediato não anula os efeitos do
direcionamento internalizado e, portanto, mediado, razão pela qual a noção de liberdade, do ponto
de vista histórico-cultural e histórico-crítico, passa necessariamente pelo processo de
desenvolvimento de consciência dos condicionantes da existência e, em última instância, pela

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transformação objetiva desses condicionantes. Com isso, queremos trazer elementos para
problematizar a noção de "atividade livre" da criança como eixo da prática pedagógica e demarcar
a atividade dirigida por um par mais desenvolvido como condição de construção da liberdade.
Não sendo a única forma de atividade a compor o trabalho pedagógico das escolas de Educação
Infantil, a presença da atividade dirigida pelo professor é prioritária e decisiva para possibilitar a
ampliação do conhecimento de mundo da criança e seu acesso ao patrimônio histórico-cultural como
fonte de seu desenvolvimento. A criança não pode manifestar interesse por algo que não conhece!
É tarefa da escola libertar o aluno da estreiteza da experiência singular imediata, criando as
condições de realização, para cada criança, da possibilidade derradeiramente humana de enriquecer
sua subjetividade em formação por meio da incorporação da atividade de gerações e gerações
precedentes, ou seja, da História humana. É pela reprodução, em cada indivíduo, da universalidade
da cultura humana que se garante a formação de capacidades produtivas e criadoras.

Toda a atividade criadora da imaginação mantém relação direta com a riqueza


e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é
o material com o qual a fantasia erige seus edifícios. Quanto mais rica for a
experiência humana, maior será o material de que dispõe essa imaginação
(VIGOTSKI, 1998, p. 17).

Com isso, esperamos evidenciar que a defesa do ensino e do currículo na educação infantil em
nada sustenta a supressão da potência criativa da criança, ao contrário, pretende justamente formar
a atividade criadora que não existe a priori e vem sendo erroneamente concebida como condição ou
propriedade natural da infância, como bem analisa Saccomani (2016).

PASQUALINI, Juliana Campregher; Lucinéia Maria Lazaretti. Que


educação infantil queremos?: um manifesto em defesa da educação escolar para
crianças pequenas, Bauru, SP: Mireveja, 2022.

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