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Neste final de século, marcado por uma série de violências de toda ordem, se
demarcam temas prioritários de pesquisa ou reflexão em cada campo do conhecimento.
Na área da psicanálise emerge com vigor depois de alguns anos a questão da
transmissão psíquica transgeracional também marcada pela violência da alienação do
sujeito que ela comporta assim como a patologia vincular intersubjetiva em relação aos
traumatismos acumulativos.
Quando fazemos referência aos traumatismos acumulativos estamos
apontando à uma situação de perda ou limitação dos elementos que são denominados
garantes sociais e metapsíquicos estreitamente vinculados às novas expressões do que
Freud chamou de "mal-estar na cultura ". Poderíamos reunir em tres grupos de sintomas
do sofrimento psíquico que caracterizam a psicopatologia contemporânea aos quais
encontramos em geral vinculados à diversas patologias da transmissão psíquica
geracional.
Um grupo está referido aos defeitos ou falhas na estruturação das
sustentações ou apoios da vida pulsional. Neste nível observamos que o sujeito
desenvolve formações psíquicas clivadas pouco favoráveis aos processos de
constituição dos objetos internos estáveis nos quais é possível depositar sua confiança.
Uma segunda agrupação está vinculada à formação das identificações e
contratos intersubjetivos que são garantes de um espaço do desenvolvimento da
subjetividade. Neste nível incluímos o contrato narcisista descrito por P.Aulagnier
(1975) como aquele que assegura a continuidade do investimento libidinal de auto-
observação para cada sujeito e o conjunto (grupo social) do qual faz parte. O pacto
denegativo é descrito por Käes como aquele que solicita o trabalho do inconsciente
como necessário à formação do vínculo intersubjetivo no contexto do recalque ou
denegação nos sujeitos.
O terceiro grupo está integrado pela problemática que envolve os processos
das representações ou seja a construção de sentido. Nestes casos o trabalho de
simbolização é atingido e está vinculado especificamente aos traumatismos
acumulativos e aos estados patológicos de luto.
Os trabalhos de Abraham e Torok no início dos anos 70 em torno dos
conceitos de cripta e fantasma marcam o interesse pelo tema da alienação da
subjetividade a partir da qual o sujeito é conduzido a simbolizar em relação a um outro
presente em si como objeto psíquico interno, sendo parasitada assim sua própria vida
pulsional.
Todos nós somos portadores de uma herança genealógica que constitui o
fundamento de nossa vida psíquica e que se processa a nível inconsciente.
Em todas as etapas da vida se impõe ao sujeito a questão da herança
genealógica (como gerenciá-la) e sua pertença a uma filiação. O espaço por excelência
deste processo é o grupo familiar onde se articulam diversos mecanismos de
identificação, lugar de circulação da transmissão psíquica.
A palavra transmissão evoca uma representação de um começo e fim
irreversíveis, espaço de passagem, da repetição, da transformação, de um devir que nos
escapa. Nossa filiação à teoria psicanalítica nos remete a Freud ancestral genial que
nomeia o inconsciente como ferramenta intangível de nosso trabalho de escuta e
interpretação.
Em relação ao tema da transmissão da vida psíquica, Freud utiliza três
modelos de referência (derivados da área médica) um é o modelo da transmissão da
energia nervosa (1895). Outro é o modelo médico social de epidemia e imunidade e
finalmente aquele que mais nos interessa é o modelo de contágio mental ( Le Bon,
psicologia das multidões) vinculado às questões da hipnose e da sugestão assim como
aos mecanismos de identificação e transferência.
Mencionemos dois textos de Freud nos quais ele faz uma análise em torno ao
processo da transmissão psíquica. Em Totem e Tabu (1912-13) considera o mito do
parricídio (a horda primitiva e o assassinato do pai originário pelos irmãos) e a
transmissão do tabu na organização social e na realidade psíquica.
Freud explicita que o tabu é o código não escrito mais antigo da humanidade,
está vinculado a aquilo que é desejado e ao mesmo tempo proibido, ele é transmitido
pela autoridade patriarcal e social: a proibição de matar o animal totêmico enquanto
representante do pai. Neste aspecto Käes salienta a impossibilidade de não transmitir
psiquicamente e os diversos níveis do recalque implícitos neste processo.
Para Freud, uma via de transmissão são a cultura e a tradição. Porem a
transmissão direta por esta última não da uma resposta à questão da continuidade da
vida psíquica. Para que esta seja viável as disposições psíquicas herdadas deverão ser
estimuladas por alguns acontecimentos da vida individual ou seja que a criança vem ao
mundo com estruturas potenciais que serão ativadas nos vínculos intersubjetivos do
meio familiar.
Em "Introdução ao Narcisismo", Freud (1914) assinala a continuidade da
vida psíquica entre as gerações e os diversos mecanismos de identificação em principio
ligados ao sintoma. Neste texto Freud destaca que o indivíduo é para si mesmo seu
próprio fim e que ele está assujeitado à uma corrente geracional como elo da
transmissão, sendo beneficiário e herdeiro do conjunto intersubjetivo, é esta a
articulação percebida por P. Aulagnier que sustenta o conceito do 'contrato narcisista" já
descrito.
Nos últimos anos na clínica psicanalítica observamos com atenção particular
na patologia da transmissão os mecanismos de denegação e forclusão, ou seja aquilo
que permanece oculto e não transformado, estes aspectos estão presentes nos estados
fronteiriços ou borderline, isto é nas patologias narcisistas e nos diversos tipos de
perversão. No campo da terapia familiar psicanalítica observamos diversas disfunções
ligadas a esta problemática, as quais tem como base comum os estados de luto não
elaborados e situações que evocam diversos graus de violência ou traumatismos ao nível
intra-inter e transubjetivo. Isto significa uma interferência na capacidade de organizar
representações e simbolizações do aparelho psíquico singular e do grupo familiar.
Estos espaços psíquicos (inter-intra e transubjetivo) fazem parte de uma
conceitualização de J. Puget para indicar a capacidade de representação do aparelho
psíquico em torno à distribuição dos diversos vínculos e sua incidência na realidade
externa. O modelo da estrutura familiar inconsciente é a base para considerar o espaço
intersubjetivo no qual a angustia subjacente é a fusão narcisista e como conseqüência, a
impossível inscrição na genealogia familiar.
No espaço psíquico intrasubjetivo fica amostra o mundo fantasmático e o
imaginário de cada sujeito, o vínculo perderia neste nível uma de suas qualidades que é
o de ser bidirecional. Este espaço é constituído pelas representações do eu corporal e
dos vínculos inter e transubjetivos na ausência de percepções externas. No espaço
transubjetivo se situam as representações do mundo externo real (social e físico) que o
eu adquire desde o originário assim como pela mediação do sego e objetos parentais.
Traumatismo acumulativo
A noção de traumatismo acumulativo me parece uma hipótese significativa
como pano de fundo da patologia transgeracional, ligada na sua origem à eclosão de
vínculos intra-inter e transubjetivos originados em diversas situações de violência.
A palavra trauma assim como traumatismo tem sido utilizadas
originariamente em medicina e cirurgia. Termo retomado por Freud está referido na
psicanálise como um choque violento ou um acontecimento intenso na vida do sujeito
pelo qual o mesmo é incapaz de reagir em forma adequada, produzindo um desborde
emocional que provoca efeitos patógenos duráveis na organização psíquica. Ficou
definido o acento na dimensão econômica do fluxo de excitação excessiva em relação à
capacidade de tolerância do aparelho psíquico.
Se consideramos o traumatismo como uma vivencia acumulativa não
metabolizada, devemos considerar os diversos mecanismos defensivos que a
transformam em impensável na medida que envolvem uma dimensão de transgressão às
regras fundamentais e fundadoras do grupo ou a sociedade. Uma referencia são as
violências sexuais tais como incesto ou sociais as quais mencionamos anteriormente. A
angustia derivada de um excesso de excitação provocada pelo acontecimento traumático
e a incapacidade de contê-lo transformando ou em experiência metabolizada, provocará
necessariamente desorganizações secundarias, efração dos envelopes individuais e
grupais aumentando a violência nos diversos espaços psíquicos.
A importância do campo da realidade do objeto na situação traumática tem
sido um fato evidente na minha experiência clinica com pacientes em análise e grupos
terapêuticos de famílias migradas em situações de violência social. Esta problemática
tem sido objeto de uma ampla produção de trabalhos teórico-clínicos por numerosos
colegas argentinos e está sendo sempre redimensionada considerando os trabalhos de
Abraham e Torok até os mais recentes de Tisseron e Nachin entre outros.
Esta aproximação ao campo da realidade do objeto nos leva a considerar dois
critérios que definem o acontecimento traumático:
a) ataque ao narcisismo
b) perigo de saturação o desborde do aparelho psíquico na sua capacidade de
representação ou como já foi assinalado na sua possibilidade de vetorizar um sentido.
O acento está então colocado tanto nos conteúdos fantasmáticos quanto na
capacidade de contenção ou quebra do aparelho psíquico com patologias que envolvem
a clivagem e o encriptamento. Em conseqüência toda a psicanálise contemporânea está
confrontada a esta problemática das condições de simbolização.
A questão do duplo olhar para à realidade do espaço transubjetivo e os
espaços intra e intersubjetivos anula uma dimensão alienante que existiu na clínica na
escuta e interpretação exclusiva do mundo intrapsíquico. Podemos mencionar alguns
traumatismos vinculados à historia coletiva tais como o da Shoah , os extermínios na
Bosnia Hazegovina, os desaparecidos no período da ditadura Argentina ou chilena, onde
cada sujeito o grupo familiar que vivenciou estas experiências assim como seus
descendentes no nível trans ou intergeracional deverão gerenciar ainda uma tentativa de
elaboração dos diversos traumatismos. Quando isto não é possível observamos os
mecanismos de clivagem derivados destas experiências para evitar a dor e sofrimento
em si próprios e os das pessoas significativas, isto da origem a diversos pactos
denegativos. Nestes casos fica evidente a alienação do sujeito a partir de diversas
situações nas quais se incluem o segredo familiar (como organização patológica) e a
cripta descrita por Abraham e Torok, como sintomas da patologia da transmissão
psíquica. A cripta está constituída por uma configuração psíquica na qual um sujeito é
induzido a simbolizar em relação a um outro presente nele na forma de um objeto
psíquico interno a expensas de sua vida psíquica pulsional. Encontramos nestes casos
dificuldades ou limitações de uma introjeção harmoniosa como conseqüência de um
acontecimento traumático.
O ponto central não é só o trauma senão sua possibilidade ou limitação de
elaboração.
Quando o acontecimento é convertido em segredo Abraham e Torok fazem
referência a um tipo de recalque conservador.
Estes aspectos nos impõem mais uma ferida narcisista, salienta Käes pelo
fato de ter que reconhecer que parte de nosso funcionamento mental excede a biologia e
se estende aos problemas não resolvidos pelos nossos ancestrais. Hoje é impossível
pensar a metapsicologia em termos de um "puro teatro interior".
Laplanche tem se referido à presença do outro em cada sujeito desde as
origens da psique, aspecto desenvolvido na sua teoria da sedução originaria. Nesta linha
de pensamento Freud já tinha assinalado a presença do Superego dos pais na construção
do Superego de cada sujeito.